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m 28 de dezembro de 1895, no Salão Grand Café, em Paris, aconteceu a primeira apresentação pública do cine- matógrafo, invento dos irmãos Lumière que comoveu os trinta e poucos presentes. Hoje conhecido como cinema e muito diferente daquela ocasião, o invento é mania mundial e movimenta uma indústria multibilionária. Utilizado como f o rma de registrar acontecimentos ou de narrar histórias, o cinema é conhecido como a sétima arte, desde a publicação do Manifesto das Sete A rtes pelo teórico italiano Ricciotto Canudo, em 1914. No manifesto, o cinema é explicado como a arte que contém todas as outras, por isso é a séti- ma. Hoje, passadas décadas do início do cinema colo- rido, o preto e branco continua passando nas telas, porém, geralmente, não mais no grande circuito. Este tipo de filme ficou restrito às pequenas dis- tribuidoras, sendo exibido no circuito de filmes de arte, nas casas de cultura, nos espaços destinados a filmes considerados cult. Julho/Dezembro 2006 6 ANA CRISTINA DIEGUEZ, MARIA PORTUGAL, RAFAEL VINICIUS E STELLA VELLOSO Cinema: das origens ao filme cult Cena do filme O gabinete do Dr. Caligari

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m 28 de dezembro de 1895, no SalãoGrand Café, em Paris, aconteceu aprimeira apresentação pública do cine-matógrafo, invento dos irmãos Lumière

que comoveu os trinta e poucos presentes. Hojeconhecido como cinema e muito diferente daquelaocasião, o invento é mania mundial e movimentauma indústria multibilionária. Utilizado comof o rma de registrar acontecimentos ou de narr a rhistórias, o cinema é conhecido como a sétimaa rte, desde a publicação do Manifesto das Sete

A rtes pelo teórico italiano Ricciotto Canudo, em1914. No manifesto, o cinema é explicado como aa rte que contém todas as outras, por isso é a séti-m a .

Hoje, passadas décadas do início do cinema colo-rido, o preto e branco continua passando nas telas,porém, geralmente, não mais no grande circuito.Este tipo de filme ficou restrito às pequenas dis-tribuidoras, sendo exibido no circuito de filmes dearte, nas casas de cultura, nos espaços destinados afilmes considerados cult.

Julho/Dezembro 20066

ANA CRISTINA DIEGUEZ, MARIA PORTUGAL, RAFAEL VINICIUS E STELLA VELLOSO

Cinema: das origensao filme cult

Cena do filme O gabinete do Dr. Caligari

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Estilo é a principal motivação para que ainda hojesejam feitos filmes em preto e branco. Esta é a cons-tatação do produtor Júlio Uchoa, sócio da AnanãP roduções. “Atualmente, quando todos os filmeslançados no circuito são coloridos, o preto e brancov i rou uma exceção utilizada apenas por questõesestilísticas. E a maioria do público, conhecendo ocinema colorido, não mais aceita o filme sem cor”.Uchoa ressalta ainda que embora algumas pro-duções sejam feitas em preto e branco, infelizmenteos exibidores ainda fazem restrições a este tipo defilme. “É uma pena, porque a experimentação emp reto e branco é uma tendência muito forte. Só queos exibidores querem bilheteria e o público não estáhabituado a este formato”, lamenta.

A história do cinema em preto e branco se cons-trói por meio de diferentes estilos e movimentos,como a chanchada brasileira ou a nouvelle vague,do cinema francês. Mas são o expre s s i o n i s m oalemão e o neo-realismo italiano que se destacamno contexto cinematográfico mun-d i a l.

Quem trabalhou nos primór-dios do cinema, pode comentarbem sobre as diferenças entre ocinema em preto e branco e ocolorido. É o caso da atriz DercyGonçalves, grande estrela daschanchadas. Segundo a atriz,que em 2007 completa 100 anosde idade, o cinema em preto e branco era muitomais bonito. “A cor é muito importante para o ci-nema, mas quando ele era em preto e branco, ascenas eram mais bem feitas, apesar de não ter atécnica que se trabalha nos dias atuais”. Ela contaque em cena tudo deveria ter uma perfeição maior,já que com a entrada da cor, o público ficou “maisligado” no resultado final, e não na construção dascenas. Dercy ainda relembra seus tempos natelona: “na minha época, fazer o filme era umadificuldade. O estúdio era horrível, tudo muitoescuro e a gente sempre com muito pó na cara paradestacar no cenário”.

Cinema expressionista: tensão da guerratraduzida

Uma das estéticas mais influentes na história do

cinema, o expressionismo não é uma réplica domundo real, mas sim a expressão subjetiva da rea-lidade. A marca da angústia e da dor está presentenesse movimento artístico, nascido na Alemanhapós Primeira Guerra Mundial, que reflete o profun-do desalento dos milhões de pessoas que tiveram oterror despertado dentro delas.

Os cenários fantasmagóricos e a atmosfera depesadelo são reforçados pelo contraste da luz eda sombra do cinema em preto e branco. O filmeque marcará o início do movimento na sétimaa rte é O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wi e n e ,em 1919. O enredo fala de um cientista que pre-tende, diante de uma platéia, mostrar as habili-dades psíquicas de um sonâmbulo, que vivecomo se fosse um morto-vivo, em estado de ani-mação suspensa. Segundo o Dr. Caligari (We rn e rKrauss), seu homem-fantasma também é capazde prever o futuro. Cheio de f l a s h b a c k s, assassi-natos e tensões, o filme choca o espectador ao

re p re s e n t a r, de forma subjetiva,o mundo interior dos assoladospela guerr a .

De acordo com o autor AlfredoRubinato, em O despertar dabesta: a alma do expressionismoalemão e sua tradução estética nocinema, a estética expressionistaalemã atingiu um grau máximode abstração do universo re a l

pelos próprios dados objetivos da ciência. Sob ocaos da modernidade que acabava de surgir com oséculo XX, o expressionismo se deu de forma maislouvável na arte que possibilitava a tradução domovimento, mesmo que em pretoe branco: o cinema.

Neo-realismo: o povo é oobjetivo

Realizado com pouco dinheiro,deficiência suprida pela represen-tação direta da realidade e pelaidentificação dos sentimentos dopovo, o cinema neo-realista surgiu e teve suaexpressão máxima na Itália do pós-guerra, de 1945a 1950. Atores não-profissionais, takes ao ar livre eassuntos contestadores compunham o cenário

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Atualmente, quando todos os filmes lançados no circuito são coloridos,

o preto e branco virou uma exceção

utilizada apenas por questões estilísticas

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dessa arte que procurou retratar o cotidiano daparcela da população que mais sofreu com a guer-ra: o proletariado.

O primeiro filme marcante trabalhado por essaestética, que tem sua “pobreza” reforçada por serainda cinema em preto e branco, foi Roma CittàA p e rta (Roma Cidade Abert a ), de 1945, de Robert oRosselini, que retrata a dramática resistência ita-liana à ocupação nazista. Cineasta engajado e pre-ocupado em expressar o emocional do povo duranteos horro res da guerra, Rosselini quis mostrar comsua arte a população frágil engolida pelo sistema.

Também com relevância merece ser citado ocineasta Vittorio de Sica, que via poesia no cotidi-ano. Segundo o autor Marcelo Ikeda, que escreveuSobre duas vertentes do Neo-Realismo italiano: entre oespecífico e o universal, Vittorio de Sica, cujo maisimportante filme é Ladri di biciclette (Ladrões de bici-c l e t a ), era menos diretamente engajado queRosselini, mas, mesmo assim, procurava retratarcomo a guerra foi capaz de demonizar pouco apouco a vida dos italianos.

A rtistas preocupados em relatar a situação socialde seu povo, os cineastas neo-realistas influenciamaté hoje muitas correntes cinematográficas, não per-mitindo que o cinema se torne uma produção suces-siva de imagens sem valor algum. Aqui, o espectadornão se atordoa com a corrida de cenas vazias, massim com o peso social de cada uma delas.

O experimentalismo e o charme do preto e dobranco no cinema

A transição do cinema preto e branco para o colo-rido foi um marco importante para o cinema, sócomparado, talvez, ao advento do som. A forte pre-sença da cor gerou ainda certa inadequação dosfilmes em preto e branco, já que no imagináriopopular atual os filmes que não possuem cor sãotaxados, muitas vezes, como cansativos e mo-nótonos.

Como a maioria das pessoas não mais aceita osfilmes sem cor, A lista de Schindler (1993), do diretorSteven Spielberg, apareceu como uma grande sur-presa neste cenário. Apesar do filme ser distribuídopela Universal Pictures, um dos estúdios maispoderosos dos EUA, a sua aceitação pelo grandepúblico comprova que o uso inteligente do preto edo branco no cinema ainda pode colher seus frutos,já que este longa-metragem ganhou sete Oscars,incluindo os de melhor filme e melhor fotografia.

“O preto e o branco funcionam como uma ver-tente experimental, já que eles resgatam o experi-mentalismo e a vanguarda no cinema”, afirmaAndréa França, professora do curso de cinedocu-mentário da PUC-Rio. Ela disse que diretores comoCarlos Nader, do documentário Preto e branco eSandra Kogut, produtora de Parabolic People e quejá trabalhou no programa “Brasil Legal”, da RedeGlobo, utilizam a fotografia em preto e brancocomo algo essencial em seus filmes, sendo issoexplicado pelo trabalho que estes diretores desen-volvem com videoarte.

A cor no cinemaRoland Barthes, crítico francês dos anos 1950,

afirmou, certa vez, que colorir o mundo significaem última análise negá-lo. Logo, a cor deveria secomportar de forma que não pudesse esmagar arealidade e deveria interpretá-la de forma poética.Para isso, deveria ter uma presença psicológica, afim de justificar o seu uso, partindo do pressupostode que sem a sua intervenção algumas idéias nãoseriam desenvolvidas de maneira mais eficaz. “Estaanálise mostra-se bem atual, já que se a cor nãojustifica a sua presença, o filme proposto pode ficarempobrecido e chegar a um nível inferior ao velhopreto e branco”, afirma André Setaro, professor de

Samba em Berlim, filme com direção de Luiz Barros eque contou com a participação de Virginia Lane

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cinema da Universidade Federal da Bahia (UFBA),que se classifica como um cinéfilo “de carteirinha”.

Outro destaque no escasso cenário do cinema empreto e branco na atualidade é Boa noite e boa sorte(2005), em que o ator e diretor George Clooney faz aopção de retratar um polêmico período da históriados Estados Unidos filmando em preto e branco, afim de abordar de maneira estética e totalmenteanticomercial o tema de seu filme. “Apesar de afas-tar milhões de dólares de seu longa, ele contribuiude forma eficaz com a estética e se mostrou, ainda,um diretor corajoso, já que fazer um filme como estena Hollywood de hoje requer bastante pulso e, éclaro, competência”, conclui o estudante de Comu-nicação Rodrigo Cunha, um apaixonado pela séti-ma arte.

No âmbito dos filmes de cunho mais documental,destaca-se Preto e branco (2004), de Carlos Nader, noqual apesar de não remeter ao clássico filme preto ebranco na concepção do mesmo, traz personagensdas duas raças, como que fazendo um contraponto,para abordar as relações raciais entre cidadãoscomuns da cidade de São Paulo. “Mostrando nodecorrer do filme uma fotografia centrada nos per-sonagens paulistanos das duas raças, o diretor criauma série de argumentos sobre a coexistência entreelas, partindo da idéia de que a relação entre bran-

cos e negros é desigual em todo o mundo”, afirma aestudante de jornalismo Érika Guimarães, que jáassistiu o documentário e o coloca como sendo umdos melhores já feitos sobre o preconceito racial noBrasil.

O fato é que a presença da cor no cinema é algoque veio para ficar e a difusão do cinema em pretoe branco será algo extremamente difícil, em conse-qüência da grande aceitação pelo público dos filmescoloridos. Mas, enquanto existirem diretores volta-dos para o trabalho estético e estilístico, o preto e obranco ainda terão o seu espaço no cinema.

A preocupação do homem como re g i s t ro do movimento é antiga,o que se comprova com indícioshistóricos e arqueológicos. Odesenho e a pintura foram asprimeiras formas de re p re s e n t a ros aspectos dinâmicos da vidahumana e da natureza, pro d u z i n-do narrativas através de figuras.O jogo de sombras do teatro ori-ental de marionetes é considera-do um dos mais remotos pre c u r-s o res do cinema. Experiênciasp o s t e r i o res, como a câmara escu-ra e a lanterna mágica cons-tituem os fundamentos da ciên-cia óptica, que tornou possível arealidade cinematográfica.

Jogos de sombras: Surge naChina, por volta de 5.000 a.C. É ap rojeção, sobre paredes ou telasde linho, de figuras humanas,animais ou objetos re c o rtados emanipulados. O operador narra aação, quase sempre envolvendopríncipes, guerre i ros e dragões.

Câmara escura: O invento é

desenvolvido pelo físico napoli-tano Giambattista Della Porta, noséculo XVI, que projeta uma caixafechada, com um pequeno orifícioc o b e rto por uma lente. Atravésdele penetram e se cruzam osraios refletidos pelos objetos exte-r i o res. A imagem, invertida, ins-c reve-se na face do fundo, no inte-rior da caixa.L a n t e rna mágica: Criada pelo

alemão Athanasius Kirc h n e r, nametade do século XVII, baseia-seno processo inverso da câmaraescura. É composta por uma caixacilíndrica iluminada à vela, quep rojeta as imagens desenhadasem uma lâmina de vidro.

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Origens do cinema

Boa noite, boa sorte: a filmagem em preto e brancoacentua o clima de tensão do filme

Praxinoscópio