ciência da defesa - salvador ghelfi raza

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  • 7/27/2019 Cincia da Defesa - Salvador Ghelfi Raza

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    Center for Hemispheric Defense Studies

    REDES 2003

    Research and Education in Defense and Security Studies

    October 28-30, 2003, Santiago, Chile

    Panel: Strategic Studies Epistemology

    Cincia de Defesa

    Salvador Ghelfi Raza

    Brazil

    The statements and opinions presented by the authors of "REDES 2003 AcademicPapers", do NOT represent the views of the Department of Defense (DoD), the NationalDefense University (NDU) or the Center for Hemispheric Defense Studies (CHDS). Anyrelease, quotation or extraction for publication must be coordinated with the author of thedocument. Any use of these materials outside of the context of this seminar is NOTauthorized.

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    CENTERFORHEMISPHERICDEFENSESTUDIES

    REDES 2003

    Research and Education in Defense and Security Studies

    OUTUBRO 2003 SANTIAGO, CHILE

    PANEL ON STRATEGIC STUDIES

    Cincia de Defesa

    Salvador Ghelfi RazaNational Defense University

    Center for Hemispheric Defense Studies

    ([email protected])

    O Dr. Salvador Ghelfi Raza professor de Assuntos de Segurana Nacional (National Security Affairs) noCentro de Estudos Hemisfricos de Defesa da Universidade Nacional de Defesa dos EUA em Washington,

    D.C., e membro do Grupo de Estudos Estratgicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    (UFRJ/GEE). Recebeu seu Ds.C. em Estudos Estratgicos pela Universidade do Rio de Janeiro

    (UFRJ/COPPE) e possui um mestrado em Defense Studies pela Univerdidade de Londres. Sua rea deinteresse inclui projeto de fora, anlise de defesa, jogos e simulaes, e manobra de crises. O autor

    agradece ao CMG (RRM). Alberto de Oliveira Jnior por sua colaborao na reviso desse trabalho e por

    suas valiosas observaes sobre os aspectos da Estratgia de Retaliao Macia dos EUA. As opinies,

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    concluses e recomendaes aqui expressas so de inteira responsabilidade do autor e no refletem o

    entendimento de nenhuma agncia, organizao ou governo.

    SUMRIO

    H muita retrica nos estudos tericos de defesa, muitas narrativasexperienciais, e pouco lastro conceitual. Por outro lado, na rea da aplicao prtica da

    defesa, h um excessivo rigor na formulao matemtica de modelos, um exagerado

    reducionismo de aspectos intangveis aplicaes de engenharia e de princpioseconomtricos a esses modelos, mas pouca semelhana desses modelos com os

    fenmenos que eles buscam representar. Entre esses extremos, a cincia de defesa

    estaria condenada a narrar prticas blicas esterilizadas de consistncia terica ou,

    ento, a travestir-se de quasi-cincia mergulhada em erros circulares e inconsistnciasconceituais que s serviriam para justificar autoritariamente preconceitos e posies

    ideolgico-doutrinrias.

    Esse trabalho busca evidenciar que essa viso limitada, seno equivocada. Quea cincia de defesa, tal como todas as demais cincias, aproxima-se dessas duasperspectivas somente quando estudada sem rigor metodolgico, ou quando praticada

    sem uma anlise crticas das premissas que sustentam a expectativa de eficcia dos

    resultados por ela antecipados; e que ela afasta-se dessas perspectivas, convergindo emdireo s demais cincias, quando intenciona estudar seu objeto de anlise (a defesa)

    de forma sistemtica, rigorosa, baseada em evidncias, generalizante (concepo de

    princpios gerais e hipteses de refutao), no-subjetiva, e cumulativa1.

    No desenvolvimento desse propsito, elabora-se um esquema terico que define acompetncia e aloja a cincia de defesa no conjunto de suas pares, com o que oferece-se

    um panorama temtico que almeja a possibilidade de instruir o desenho de metas e

    currculos para a educao tanto de civis como de militares nessa cincia. Com isso, otrabalho tem a ambiciosa pretenso de justificar a existncia de uma nova cincia,

    explicar seu domnio de competncia, evidenciar algumas de suas hipteses, prever sua

    aplicao prtica e antecipar desdobramentos.2

    1 Esses atributos das cincias podem ser encontrados em Gerring. J. Social Science Methodology: ACriterial Framework. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2001. p. xv.2 Deve ser mencionado que esse artigo, ao propor a formalizao da cincia de defesa como rea deinvestigao cientfica, reflete uma longa tradio de esforos similares. Talvez, entretanto, o primeiro a

    apresentar essa postulao formal no perodo ps-Guerra Fria tenha sido John Baylis [Baylis, John, etal., eds. Strategy in the Contemporary World: An Introduction to Strategic Studies.Oxford, U.K.: Oxford Univ. Press, 2002]. Para um sumrio, vejahttp://www.nwc.navy.mil/press/review/2002/autumn/ br2-a02.htm. Veja, ainda, Betts, R. Should StrategicStudies Survive? http://www.gcsp.ch/etc/Should% 20Strategic%20Studies%20Survive.pdf. Nesse artigo,Betts faz uma referncia importante a um artigo de Bernard Brodie Strategy as a Science (1949) - que

    pode ser considerado o precursor dessa idia nos tempos modernos. Nesse sentido, esse trabalho avana nomesmo caminho desbravado por Brodie e retomado por Betts ao propor uma estruturao temtica eevidenciar alguns dividendos prticos com nfase na disseminao do conhecimento (educao formal) nosassuntos de defesa.

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    http://www.nwc.navy.mil/press/review/2002/autumn/br2-a02.htmhttp://www.gcsp.ch/etc/Should%20Strategic%20Studies%20Survive.pdfhttp://www.nwc.navy.mil/press/review/2002/autumn/br2-a02.htmhttp://www.gcsp.ch/etc/Should%20Strategic%20Studies%20Survive.pdf
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    CINCIA DE DEFESA DEFINIO DE PARTIDA E RELACIONAMENTOS

    O que cincia de defesa? Em termos sintticos - como definio de partida prope-se entender a cincia de defesa como sendo a rea de conhecimento que aloja oestudo, orienta as prticas e transmite conhecimentos sobre a defesa de maneiracientfica. O conceito de estudo, aqui, enseja a noo de pesquisa, estruturao, anlise,

    aplicao e disseminao de conceitos e prticas. Defesa, por sua vez, define um conjuntode capacidades articuladas com o provimento de um estado de segurana desejado, sendoessas capacidades instrumentalizadas por meio de um sistema de processos eprocedimentos politicamente determinados.3 Nesse contexto, os processos eprocedimentos abrangem a identificao das demandas e naturezas futuras do uso ouameaa do uso da fora; o projeto dos requisitos dessa fora; o planejamento para a ao;a superviso, comando e controle das aes empreendidas; e a avaliao dos resultadosdessas aes.4 A natureza cientfica dessa disciplina aloja-se no rigor metodolgico comque ela exige a contnua avaliao crtica dos processos empregados para gerar, verificare validar os conhecimentos e prticas requeridos para o provimento da defesa, para o queutiliza um sistema conceitual plenamente definido, com hipteses e premissas prprias

    distintas de todas as demais disciplinas.5

    3 Essa conceituao reflete o entendimento de que a defesa, tal como outros fenmenos como poder,justia, etc, somente podem ser medidos segundo os efeitos que produzem no ambiente aonde semanifestam. Trata-se, portanto, de uma medida indireta, sujeita a percepo e critrios dos observadores.Enquanto tal, os efeitos seriam decorrentes do que Owens denomina de arsenal de alternativas e aes

    blicas disponveis ao governo para assegurar a manuteno de um estado de segurana contra ataquesexternos e insurreies domsticas. Owens, M. T. An overview of U.S. Military Strategy: concepts andHistory. in Strategy and Force Planning. (2.ed.) Annapolis, USA: NWC. 1997. pg. 386. O fenmenodefesa, dessa forma, conforma um conjunto de resultados decorrentes do uso ou da ameaa do uso da foravisando o provimento de um propsito poltico. Isso significa que o conjunto de capacidades que definem adefesa vo para alm dos simples meios de fora uma funo instrumental - para incluir as consideraes

    das formas e processos pelos quais ela gera a percepo de suas habilidades, atuais ou potenciais, paratransformar o ambiente aonde ela se aloja visando um propsito definido nesse mesmo ambiente.

    A identificao do que seja o estado de segurana um atributo do governo, para o que enseja uma reflexotica sobre aquilo que o povo, como um todo, acredita serem as necessidades indispensveis para aconsecuo de suas aspiraes em cada momento histrico, reflexo do conjunto das idias vigentes.Decorre da a necessidade de identificar as correntes de pensamento, em cada momento histrico, queconformam as perspectivas por meio das quais a dinmicas polticas na cena internacional so interpretadase traduzidas em termos de conceitos e regras de ao prtica. Para uma discusso do conceito de "estado desegurana", enquanto propsito da defesa, veja. Lippman W. U.S.Foreign Policy. Boston, EUA: JohnHopkins Press. 1943, pp. 51. Wolfers, A. American Defense Policy. Baltimore, EUA: The Johns HopkinsPress, 1965. pag. 3. utiliza o entendimento de Lippman para uma das mais completas revises da Polticade Defesa dos EUA.4 Para um detalhamento dessas atribuies funcionais, veja, Poiries, L. Las Voces de La Estratgia. (trad.Jos Tamayo do original em francs Les Voix de la Stratgie).Madrid: Coleccion Ediciones Ejercito. pg.146-149.5 importante notar a distino entre a cincia de defesa definida como tal e a cincia militar atualmente

    praticada pela China e aquela concebida na ex-Unio Sovitica. Tanto na China como na ex-UnioSovtica, cincia militar um equivalente limitado da doutrina militar. No caso da China, especificamente,a cincia militar consiste de: (1) cincia militar bsica, que inclui os conceitos fundamentais que regem asoperaes militares do Exrcito de Libertao Popular nos vrios nveis da guerra (a cincia militar bsicaincluiria todas as doutrinas operacionais incluindo as doutrinas do poder areo e espacial - que aRepblica Popular da China pratica); e (2) teoria militar aplicada, que trata dos aspectos especficos de

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    Evidenciam-se ai os dois fatores que do especificidade cincia de defesa,distinguindo-a de outras disciplinas: a natureza do objeto de seu estudo (a defesa) e seusistema conceitual prprio associado a um conjunto de normas e prticas que asseguramos requisitos de causalidade, empirismo e sistematicidade. Esses trs requisitos so osmesmos que asseguram a cincia poltica sua cientificidade, conforme explica Alan

    Isaak:O primeiro requisito implica em que os cientistas devem assumir alguma formade causalidade... nada simplesmente acontece por acaso. O segundo requisito

    est relacionado, entre outras coisas, com o fundamento da observao

    intersubjetiva no provimento da natureza impessoal da cincia. O terceirorequisito assegura a formulao e verificao de generalizaes empricas

    levando ao desenvolvimento de um sistema conceitual.6

    Um sistema conceitual configura um conjunto inter-relacionado de proposiesque permite: a) investigar um campo de conhecimento, b) instruir a busca de solues, c)verificar essas solues e d) contribuir para comunicar com clareza seus resultados.

    a) A investigao nasce de um objeto terico/prtico precisamente colocado, queindicar o que relevante ou irrelevante observar e os dados que devem serselecionados.

    b) Para instruir a busca de solues, o sistema conceitual oferece elementos quepermitem a construo de suposies plausveis que se relacionem a umconjunto de conceitos aceitos como vlidos.

    c) A verificao determina a identificao da adequabilidade e da abrangncia dasoluo encontrada, garantindo a essencialidade dos seus componentes,enquanto mantendo o arranjo de suas partes componentes logicamenteconsistente. Pode ser efetuado de forma terica, quando investiga os aspectos

    lgicos da soluo proposta, ou emprica, quando ento considera o exame desua consistncia com a realidade observada.

    d) A clareza da comunicao dos resultados deriva do emprego de um conjuntode termos adequadamente definidos e entendidos que o arranjo conceitualoferece.

    Note-se, portanto, que no somente a presena de um mtodo que despecificidade s cincias de defesa o mtodo traduz a imposio de uma hierarquia deprocessos visando a consecuo de um propsito previamente definito7, mas no impe

    como aplicar a fora militar em cada nvel do combate (similar a doutrina organizacional dos EUA). VerShi Yunsheng, PLA Navy Military Science, in Chinese Navy Encyclopedia, vol. 1 Beijing: Haichao

    Publishing House, 1998), 1631. A cincia militar sovitica era expressa como sendo um sistemaunificado de conhecimentos visando a preparao e conduo dos conflitos armados com o propsito dedefender a Unio Sovitica contra agresses imperialistas. Para o caso sovitico, ver Scott H. E Scott W.The Armed Forces of the USSR. Colorado: Westview, 1979. pg. 69.6 Isaak. A. C. Scope and Methods of Political Science. (rev. ed.) Michigan, Illinois: The Dorsey Press,1975. pg. 48.7 Para outros entendimentos de mtodo veja Jolivet, Regis. Curso de Filosofia. 13. Ed. Rio de Janeiro: Agir,1979. Pag. 71. Bunge, Mario.La cincia, su mtodo y su filosofia. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1974, pag.55. Ou ainda Cervo, A. L. e Bervian, P. A.Metodologia Cientfica. 2.ed. So Paulo: McGraw-Hill, 1978.

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    nem o que pensar nem sobre o que pensar. O que d essa especificidade, importantevoltar a mencionar, a natureza do produto resultante da combinao do mtodo com osistema conceitual, o qual conforma uma moldura de referncia que descreve e explica anatureza do fenmeno da defesa e torna prtico o conhecimento produzido nesseprocesso.

    MAPEAMENTO DAS PARTES COMPONENTES

    O grau de complexidade da defesa, enquanto objeto de anlise, uma questoemprica e no lgica. Isso significa que possvel identificar regularidades desde queseja estabelecido um referencial para a organizao do fenmeno uma moldura dereferncia, que possibilite, primeiro, descrever o fenmeno para, depois, procurarexplic-lo. Nesse sentido, deve ser visto que, do ponto de vista epistemolgico, a moldurade referncia utilizada sempre resultado de um arbtrio que procura capturar em umdado momento uma perspectiva dominante, fazendo com que suas concluses sejamsempre contingenciais e temporalmente aceitas segundo sua utilidade sua capacidade deexplicar a realidade fenomenolgica. Enquanto tal, a moldura de referncia da cincia de

    defesa oferece a condio de possibilidade para o desenvolvimento de uma srie deconceitos que habilitam a descrio de um conjunto de fenmenos, at que outra moldurade referncia que oferea melhores explicaes tome seu lugar - levando refutao dashipteses anteriores, com o que promove o avano no conhecimento.8

    Contrariar esse entendimento implica em aceitar que a cincia teria um fim ltimopara o qual ela caminharia de forma inexorvel. Aceitar esse entendimento implica emreconhecer que a cincia - todas as cincias, inclusive a de defesa evoluem sem um fimpre-fixado, sem um limite que no aquele que elas mesmas venham a impor-se naconcepo de novos conhecimentos (evidncia de erros lgicos o que levaria a novashipteses). Ao assumir-se essa ltima posio, postula-se que a cincia de defesa expandeconstantemente seu domnio de conhecimento e, com isso, sua habilidade de explicar ofenmeno que ela toma como seu objeto de anlise.

    O domnio desse conhecimento em expanso necessita, entretanto, ser classificadoem disciplinas que permitam sistematizar e relacionar o acmulo de conhecimento criadonesse processso evolutivo (requisito de sistematicidade). Nesse sentido, as disciplinas da

    8 Paul Feyerabend, por outro lado, entende que o progresso do conhecimento se d por meio de erros edesvios, e que uma tentativa de tornar as metodologias mais racionais e precisas para evitar esses erros edesvios acaba por tolher as possibilidades de renovao. Como ele afirma, sem "caos", no hconhecimento. Feyerabend, P.Dialogos sobre el metodo. Madri, Espanha: Catedra, 1990. pg. 279.

    J Alberto Oliva contra-argumenta que o caos epistemolgico s pode justificadamente atacar oembasamento epistmico dos preceitos intelectuais que tm sido apresentados como indispensveis

    pesquisa cientfica, sem ter como rechaar em geral mximas comportamentais (em sua configuraopsico-social) uma vez que isso acarretaria a desfigurao da tipologia de ao a que esto vinculadas. Emoutras palavras, continua Oliva, no se pode discorrer criticamente sobre o fazer da cincia se as condutasimprescindveis definio da singularidade de suas aes esto sendo qualificadas de inteis. Nessesentido, complementa Oliva, no que ultrapassar a dimenso epistemolgica (o que diz sobre a cincia esobre as regras metodolgicas efetivamente empregadas pelos pesquisadores) da crtica cincia, oanarquismo se revelar "utpico", uma vez que propor o abandono das regras norteadoras das condutasditas cientficas acarretaria a dissoluo do modo cientfico de pensar e agir. Oliva, A. Epistemologia: acientificidade em questo. Campinas: Papirus, 1990. pg. 151. Para ampliar essa discusso, veja Horgan, J.O fim da cincia. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. pg. 49-82.

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    cincia de defesa, tal como outras disciplinas, compartimentaliza-se em reas temticasque retratam os diversos domnios de conhecimento e aes que conformam a defesa, eas relaes que ela estabelece com o ambiente aonde ela se aloja.

    Antes de continuar, importante relembrar que essa compartimentalizao resultada moldura de referncia utilizada e que, portanto, tal compartimentalizao (as

    disciplinas e suas reas temticas componentes) pode evoluir, transmutar-se, desaparecer,etc, conforme o conhecimento acumulado, reformulado, transmutado, sem que issoprejudique a contnua evoluo do conhecimento sobre o fenmeno tomado como objetode anlise a defesa; apenas significa que as reas temticas que integram as disciplinase as prprias disciplinas que agregam as reas temticas que descrevem e explicam ofenmeno evoluem no tempo.

    Tal entendimento refuta a postulao de reas temticas e disciplinasabsolutamente determinadas e fixas. Em termos prticos, refuta-se a noo de que oscentros de estudo [de segurana, de defesa, de estudos estratgicos, de estudos da paz, deanlise de oramentos de defesa, etc.] em certa medida, ao definirem seus domnios decompetncia (as reas temticas e disciplinas que exploram para fins de educao,pesquisa, etc.) estejam definindo o fenmeno defesa. Isso no faz sentido algum senocomo ideologia9 Sob uma certa perspectiva, a definio de currculos de centros de estudopareceria ser uma questo puramente tcnica, sem nenhuma relao com ideologias, jque pressupe-se que ela tem a ver apenas com mtodos para prover informaesfidedignas sobre as demandas educacionais, mtodos para selecionar e desenvolver osmateriais instrucionais, construir conhecimentos, e analisar resultados. Entretanto, ela sempre muito mais do que isto, pois, comumente, est carregada de pressuposies quetodos aceitam.10A nica coisa que pode ser dita que os estudos, pesquisas e trabalhosque esses centros realizam oferecem um conjunto de respostas a um conjunto de questespor eles mesmos colocadas.11 Em suma, o fenmeno defesa no o que um qualquerum - centro de estudos [de defesa] estabelea como objeto de suas disciplinas. No

    9 O termo ideologia segundo sua formulao inicials no incio do sculo XVII, retratava a aquisio, pelohomem, das idias calcadas sobre o prprio real. Esse entendimento ganha nova forma com o positivismodo final do sculo XVIII, quando ento ideologia retratava o conjunto de idias de uma poca, tanto como"opinio geral" quanto no sentido da elaborao terica dos pensamentos dessa poca. Burns, M. E. Ideasin conflict. Londres, Inglaterra: Univesity Paperbacks, 1960. pg. 83-92.10 Para essa discusso veja Alves, R.Filosofia da Cincia. So Paulo: Ars Potica, 1996. pg. 100.11 O termo centro de estudos utilizado aqui como categoria abrangente de organizaes educacionais. O

    propsito dos argumentos sobre os centros de estudo, alm do de compor a lgica do texto, ,subsidiariamente, o de alertar para um dois aspecto observados em todo o Hemisfrico Ocidental (inclusivenos EUA), ainda sem suficiente evidncia emprica. O primeiro diz respeito a tendncia de centros de

    estudos de defesa (aqui empregado em seu sentido literal) extrapolarem em suas atividade prticas odomnio de competncia que seus ttulos pareceriam autorizar. Um centro de estudos de defesa elaborandotrabalhos sobre preservao ambiental, por exemplo. Nesse caso, as consequncias, runs em sua maioria,so evidentes. O segundo aspecto diz respeito a centros de estuda de defesa, que possuem uma linhatemtica claramente ideologizada, quando ento o termo estudos est claramente mal empregado comoqualificador, j que em vez de fomentar uma reflexo crtica sobre os tpicos explorados procurainfluenciar seu pblico alvo no sentido de impor uma determinada perspectiva. o caso, por exemplo, decentros de estudo de defesa para os quais os militares so inerentemente nocivos ao desenvolvimentodemocrtico. Para aprofundar essa discusso, veja Gray, C. Strategic Studies: A Critical Assessment.Westport, Conn: Greenwood Press, 1982.

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    pertinente, portanto, afirmar que tal e qual diciplinas so mais ou menos importantesporque elas definem o fenmeno. o contnuo conhecimento do fenmeno que irinstruir o (re)recorte das disciplinas, e esse processo evolui conforme o conhecimentosobre o fenmeno defesa constantemente acumulado e reformulado.

    Um mapeamento12 proposto para essas reas temticas pode ser visto na figura 1.

    Nessa figura, duas reas temticas completam-se no ncleo central, que conforma adisciplina dos Estudos Estratgicos. Uma dedicada aos estudos do uso da fora para ospropsitos da poltica, denominada de estudos blicos ou estudos da guerra e outradedicada aos estudos sobre os meios que instrumentalizam e possibilitan o uso da fora,denominada projeto de fora13.

    Estudos

    Blicos

    Projeto de

    Fora

    Estudos Estratgicos

    Economia de

    Defesa

    Formulao

    de Polticas

    de Defesa

    Logstica e

    Gesto da

    Defesa

    Sociologia

    Militar

    E s t u d o s d e D e f e s a

    Histria

    Militar

    Figura 1: Mapa das reas temticas da defesa e de seu ambiente.

    ESTUDOSBLICOS

    Dentro da disciplina estudos estratgicos, os estudos blicos conformam aprimeira rea temtica fundada sob as teorias que explicam o uso ou ameaa do uso da

    12 Para um outro mapeamento veja por exemplo Bouthoul, G. Tratado de Polemologia. Madri: Servicio dePublicaciones del E.M.E. 1984. Outros exemplos podem ser apresentados; entretanto, o importante aqui reconhecer que a cincia de defesa encontra-se, simultaneamente, na esfera de influncia das trs partiesacadmicas das cincias - humanas, exatas e naturais as quais oferecem outro critrio para o mapeamentodos relacionamentos da cincia de defesa com as outras cincias, recohecendo nesse critrio uma hierarquiadefinida pela especificidade do objeto de anlise.13

    Essa partio analtica e mtua complementaridade entre o projeto de fora e os estudos blicos refletem,tambm, o entendimento de Proena, D. Jr. e Diniz, E.. Segurana e Estudos Estratgicos. in Brigago C.(ed.) Estratgia das Relaes Internacionais. Rio de Janeiro: Universidade Cndido Mendes. Para uma

    perspectiva alternativa, veja Kugler, R. "Non standard contingencies for defense planning". in: NewChallenges for Defense Planning. California, EUA: RAND Corporation, 1994. e Haffa, Robert Jr.

    Planning U.S. Forces. USA: NDU, 1988. pp.4. Kugler integra o planejamento para a conduta da guerra e oprojeto de fora sob a denominao de Postura de Defesa. Haffa considera a associao do planejamentopara a conduta da guerra e o planejamento dos meios como sendo desenvolvimento de fora (forcedevelopment), deixando ao projeto de fora somente as atividades referentes a determinao e obteno dasforas.

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    fora (de forma violenta) para os propsitos da poltica14. Atualmente, uma teoria queapresenta suficiente consistncia interna para tratar sozinha dessa rea temtica a teoriaelaborada por Carl von Clausewitz em seu livro Da Guerra, que vai fazer a distino eestabelecer os relacionamentos entre os domnios da ttica, da estratgia e da poltica eexplicar conceitualmente a subordinao da guerra poltica (dois conceitos

    fundamentais na cincia de defesa). Outras teorias15

    (isoladamente ou combinadas)procuram atender aos mesmos requisitos; mas essas, ainda, no apresentaram evidnciasde que atendem plenamente aos requisitos de consistncia interna (ausncia de erroslgicos). De fato, muitas dessas teorias propostas so apenas definies operacionais(evidncias de causalidade sem critrios de avaliao explicitados), que carecem de rigorna conceituao terica necessria para o tratamento do fenmeno blico.

    Clausewitz define a ttica como sendo o uso da fora nos engajamentos (quepodem variar em um espectro de possibilidades) e a estratgia como sendo o uso doscombates (o efeito resultante dos engajamentos) para os propsitos da guerra. Os

    14 Note-se que a definio da rea temtica dos estudos blicos enquanto parte da cincia de defesa norestringe o entendimento da prtica blica como um atributo de qualificaes humanas definidas enquantoarte. Tal como a academia de belas artes estuda obras de grandes mestres, a cincia de defesa tambmestuda obras de grandes mestres da estratgia para delas tirar ensinamentos que levem a reviso deconceitos e procedimentos ensinados pelos estudos blicos. Para aprofundar essa discusso, veja Munford,L.Arte e Cincia. So Paulo: Martins Fontes, 1986.15 Hanna Arendt, por exemplo, no compartilha o entendimento clausewitziano que toma a guerra como acontinuao da poltica com a introduo de meios violentos. Segundo ela, esse entendimento restringiria aliberdade humana - cuja manuteno o propsito essencial da poltica - de optar por no ter que ir aguerra a fim de proteger a vida. Essa uma opo tica sobre os fins da poltica que no se articula com aformulao terica da cincia de defesa. Arendt, H. Que es la poltica? Trad. Rosa Sala Carbo. Barcelona,Espanha: Universidade Autnoma de Barcelona, 1997. pg. 93.

    Outros autores que apresentam crticas ao entendimento clausewitziando so Keegan, J. A History ofWarfare. Londres: Hutchinson, 1993. e Creveld, M.van. The Transformation of WarNew York, USA: TheFree Press, 1991b. Ambos postulam a prevalncia dos aspectos eminentemente culturais nas causas dasguerras, em si um amlgama de elementos morais, intelectuais e tecnolgicos, enquanto que,simultaneamente, procuram negar a teseda prevalncia da poltica na determinao do incio, conduo etrmino deste fenmeno. Keegan, por exemplo, trata a guerra como fenmenos individuais cuja teorizaono faz sentido seno no contexto do comportamento humano e de suas realizaes, negando que a guerra eapoltica pertenam a um mesmo continuum, ao mesmo tempo que afirma ser a cultura o determinante

    primrio da natureza da guerra.

    No entanto, suas formulaes no se sustentam nos seus prprios termos, tendo sido refutada por Kagan, D.On the Origins of War. Londres: Pimlico, 1995, segundo o qual necessrio, algumas vezes, auxiliar aocorrncia de mudanas polticas, algumas das quais no so apreciadas, orientando seu atingimento pormeios pacficos, mas estando preparado para usar a fora se necessrio. Com isso, Kagan filia-se corrente

    que entende a erupo da guerra a partir de certas condies como um processo orientado ao atendimentode determinadas funes poltico-sociais.

    Esta interpretao associa a natureza da guerra aos fatores inerentes a natureza da sociedade,principalmente as foras sociais que empregam a guerra para o atendimento de demandas temporal eespacialmente contingenciadas, sendo portanto de carter transitrio. Desta forma, a natureza da guerraestaria relacionada estrutura e distribuio de poder. Segundo esta viso, para se antecipar a ocorrncia daguerra, onde se insere o projeto de fora, bastaria reconhecer determinados padres recorrentes de relaesde poder, j que este o fator causal das demandas de segurana. Ao assim argumentar, Kagan sustenta oconstructo clausewitziano, enquanto que referenda o entendimento da relao entre a natureza da guerra objeto dos estudos blicos e o projeto de fora.

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    engajamentos, so portanto, os blocos lgicos16 com as quais as estratgias soconstrudas, tornando-se os fins, para os quais as foras so projetadas e meios, pelosquais o planejamento17 do emprego busca atender o propsito poltico da guerra. 18

    Para demonstrar a funo mediadora da poltica, Clausewitz apresenta a relaoassimtrica entre o ataque e a defesa para explicar o aparente paradoxo da "suspenso das

    aes" (as pausas na guerra), quando, logicamente, esta deveria ser um "continuum" deviolncia e mtua destruio.19 Segundo Clausewitz, quando no houver maisexpectativas de obteno do propsito poltico originalmente considerado, seriaracionalmente determinante que o atacante alterasse seus objetivos polticos(eventualmente recuando), coerentemente com o novo equilbrio de foras, procurandorecuperar capacidades que lhe permitam consolidar os ganhos j obtidos, no sentido deobter uma paz vantajosa.

    A evoluo da dinmica de superioridade relativa do atacante sobre o defensor aolongo da guerra em funo de aes polticas, possibilidades estratgicas e resultadostticos, alm de todo o complexo de criao e disponibilizao dos meios de fora. Essa

    "verdadeira relao entre ttica e estratgia, ambas traduzidas como individualidades emuma relao dialtica na totalidade da guerra". 20A ttica diz respeito ao uso da fora nosengajamentos, enquanto que a estratgia trata da ordenao dos resultados dessesengajamentos, o combate, para a consecuo dos propsitos da guerra. Na ttica, osmeios so as foras combatentes treinadas para o combate, sendo a vitria o fim, mas, amais esplndida das vitrias, nada significa se no puder ser traduzida em termospolticos. , portanto, a natureza da poltica que determina a natureza da guerra e os fins aserem atingidos.

    PROJETODEFORA

    A segunda rea temtica integrante da disciplina dos Estudos Estratgicos estfundada no sistema conceitual que explica a concepo dos meios que possibilitam o usoou ameaa do uso da fora nesse caso, o projeto de fora.

    O projeto de fora definido como sendo o conjunto de procedimentos e prticas,instrudo por um sistema conceitual prprio, orientado para a concepo e justificaoracional e lgica da foraque reflita os enquadramentos dos esforos blicos requeridos

    16 A noo de combate como building blocs foi formulada por Howard, M. Clausewitz. Oxford, Inglaterra:Oxford U.P., 1983. pg. 36.17Existem inmeras definies de planejamento. Aqui entendemos planejamento conforme a conceituaodesenvolvida por Henry Mintzberg: um processo formal de produzir um resultado articulado na forma deum sistema integrado de decises. Mintzberg, H. The Rise and Fall of Strategic Planning. New York, EUA:

    The Free Press, 1994. pp.12.No propsito deste artigo discorrer sobre a definio de planejamento.Cabe apenas citar que esta a definio mais consistente de planejamento encontrada, estando sustentadaem elaborado desenvolvimento do objeto do planejamento, evidenciando as alternativas entre osentendimentos do planejar como "pensar o futuro", "controlar o futuro" e "decidir o futuro".18 Para uma apresentao mais detalhada do constructo clausewitiziano, veja Proena Jr., D. Diniz, E. eRaza. S. Guia de Estudos de Estratgia. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.19 Clausewitz, von C. On War. trad. Michael Howard e Peter Paret. New York: Alfred A. Knopf, 1993.Livro 7, cap. 6.20 Howard, M. The Franco-Prussian War. Londres: Methuen, 1961. pg. 37.

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    para a obteno de um estado de segurana desejado. Nesse contexto, fora deve serentendida como sendo o nexo de capacidades sistemicamente integradas e dotadas deidentidade no Estado e na Lei, requeridas para o combate, nas vrias formas que ocombate pode assumir, variando desde as simples ameaa do uso da fora, a observaoarmada at a guerra total.

    Dentro do projeto de fora, o planejamento do reaparelhamento militar possuiuma importante funo na definio dos meios requeridos para o recompletamento ousubstituio dos arsenais militares, em conjunto com a programao da produo (ofaseamento temporal da consecuo desse planejamento. Lloyd21 explica o planejamentodo reaparelhamento militar como sendo o processo de estabelecer os requisitos militaresbaseado em uma avaliao das necessidades de segurana da nao e a seleo dos meiosmilitares que atendam a esses requisitos dentro das limitaes financeiras. Bartlett22eBuider23 apresentam entendimentos semelhantes: o processo de avaliar as demandas desegurana da nao, estabelecer os requisitos militares que resultantes dessa avaliao eselecionar, sob constries de recursos, os meios militares que atendam quelesrequisitos". Kent24 apresenta esse propsito como sendo organizar, equipar, treinar,

    aperfeioar e apoiar os meios militares, a fim de prover capacidades operacionais(operational capabilities) que sustentem estratgias militares nacionais selecionadas.

    O projeto de fora antecede e dirige o planejamento do reaparelhamento e aprogramao da produo, com o que prope um encadeamento lgico de processos pormeio dos quais alternativas de fora possam ser concebidas no presente como opes deao no futuro, sob uma ponderao de custos e riscos, para o que demanda odesenvolvimento de consideraes hipotticas sobre como as cadeias dedesenvolvimentos de eventos pode condicionar cenrios25 futuros aonde as capacidadesprojetadas podem ser empregadas segundo as naturezas diferenciadas dos conflitosantecipados. Em suma, o projeto de fora oferece um guia de planejamento, execuo eavaliao das capacidades que o reaparelhamento e a programao da produo iromaterializar.26

    21 Lhoyd, R. Strategy and Force Planning Framework, in Strategy and Force Planning. Newport, EUA:Naval War College Press, 1996.22 Bartlett, et. al. The Art of Strategy and Force Planning. Fundamentals of Force Planning. Vol. 1.

    Newport, EUA: Naval War College Press, 1995.23 Builder, Carl H.Military Planning today: calculus or charade? California, EUA: RAND, 1993.24 Kent, G. A.A framework for defense planning. California, EUA: RAND Corporation, 1989.25 Cenrios devem ser entendidos como interpretao hipottica da combinao de um conjunto desuposies e de cadeias de desenvolvimentos futuros que permitem estabelecer um quadro geral dereferncia para o desenvolvimento de uma investigao ou estudo. Para uma anlise sobre possibilidades elimitaes de cenrios enquanto ferramenta de apoio a deciso veja Raza, S. . Sistemtica Geral de Projetode Fora: Segurana, Relaes Internacionais e Tecnologia. Tese Doutoral. COPPE/UFRJ. 2000. Paratcnicas de construo de cenrios veja Godet, M. Lanticipations laction. Manuel de prospective et de

    stratgie. Paris, Frana: Godet, 1991. Heijden, van der Kees. Scenarios. New York, EUA: John Wiley &Sons, 1996. Schwartz, P. The Art of the Long View. Londres, Inglaterra: Cunerry, 1991.26 Na literatura dos estudos estratgicos, o projeto de fora - force design tem como responsabilidadefuncional expor de forma sistemtica e crtica alternativas de defesa estruturas em termos de um projetointegrado de defesa, traduzido em termos de diretrizes integradas fiscais e de planejamento (fiscal and

    planning guidances).

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    Essa conceituao dos Estudos Blicos e do Projeto de Fora evidencia a mtuacomplementariedade dessas duas reas temticas. Mas evidencia, tambm, que acoerncia interna da defesa (enquanto manifestao prtica dos diversos fenmenossegundo as demandas particulares de cada Estado) demanda que os sistemas conceituais eas metodologias de ambas as reas temticas sejam compatibilizadas. Quando isso no

    ocorre, o resultado materializa-se em programas de defesa desarticulados entre si e comos objetivos polticos que instruem sua concepo. Note-se, aqui, uma primeira evidnciados dividendos da cincia de defesa em explicar porque determinadas distores ocorrem,indepentemente de personalidades ou vontades pessoais dos decisores.27 Por exemplo,distores na alocao de recursos e desarticulaes entre estratgias e meios de forapodem ter origem para alm dos procedimentos metodolgico-burocrticos utilizadospara a definio de prioridades para alojar-se em algo mais profundo naincompatibilidade das formas de pensar a natureza dos fenmenos blicos e de definir osmeios necessrios para instrumentalizar os meios de fora em atendimento varincia namanifestao desses fenmenos.

    ESTUDOSESTRATGICOS

    J a respeito dos relacionamentos que a defesa estabelece com o ambiente aondeela se aloja, as duas reas temticas centrais so orbitadas por cinco reas deconhecimento cujos domnios esto cada vez mais entrelaados dentro da disciplina dosEstudos de Defesa. A primeira rea temtica, denominada sociologia militar, estuda asrelaes civil-militar (ou poltico-militar, segundo alguns autores), o comportamentopoltico-burocrtico nas instituies e entre instituies (dinmica inter-agncias), e osaspectos de liderana, nos seus mais variados aspectos e matizes.28

    A segunda rea temtica est voltada para os aspectos de formulao de polticasde defesa, de segurana, militares, etc. (policy formulation), e dos aspectos relativos aocontrole e superviso das aes que essas polticas desencadeiam, para assegurar que seus

    propsitos sejam alcanados dentro dos critrios que essas mesmas polticasestabelecem.29

    A terceira rea temtica a de economia de defesa, dedicada ao estudo dosprocessos e procedimentos que explicam a formulao e gerncia de opes para aalocao de recursos escassos entre alternativas competitivas incluindo-se, a, o

    27 Para outros desdobramentos e aplicaes, veja-se Raza, S.Projeto de Fora: O elo ausente em reformasde defesa. Paper apresentado no Seminrio Internacional REDES, Agosto de 2002. Brasilia, D.F. Para umanlise exaustiva do projeto de fora, com a evidenciao de sua fundamentao teria e metodologia, vejaRaza, S. Sistemtica Geral de Projeto de Fora: Segurana, Relaes Internacionais e Tecnologia. Op.Cit.Para uma aplicao prtica dos conceitos, veja, por exemplo, Unterseher, L. Europe's Armed Forces atthe Millenium: A case Study of Change in France, the United Kingdom and Germany. Project on Defense

    Alternatives. http://www.comw.org/pda/9911eur.html.28 Para uma perspectiva dos temas objeto dessa rea de conhecimento veja, por exemplo, Caforio, G. (ed.)andbook of the Sociology of the Military. New York: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 2003.29 Para uma perspectiva dos temas objeto dessa rea de conhecimento veja, por exemplo, Murray, D. eViotti, P. (ed.) The Defense Policies of Nations:A Comparative Study. (3 ed.). Baltimore, MD: The JohnsHopkins University Press, 1994. A listagem apresentada nas pginas xxi a xxiii da introduo

    particularmente ilustrativa dos temas que conformam a formulao de polticas de defesa. A essa listagem,deve-se, ainda, incluir os aspectos relativos ao processo de tomada de deciso, com nfase as influnciasorganizacionais e poltico-burocrticas.

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    http://www.comw.org/pda/9911eur.htmlhttp://www.comw.org/pda/9911eur.htmlhttp://www.comw.org/pda/9911eur.html
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    oramento de defesa, enquanto ferramentas de anlise e gesto de alternativascompetitivas.30

    A quarta rea temtica refere-se logstica e gesto da defesa, dedicada aodesenvolvimento de produtos de defesa e ao gerenciamento dos processos requeridospara que o desenvolvimento dos produtos seja revestido de eficincia, eficcia e

    economia. Nesse sentido, essa rea lida com organizaes e tecnologia, definidas paraalm da mera especificao de meios dedicados a um fim predeterminado, para alojar oentendimento de que tanto organizaes como tecnologias no so neutras, que seuscontedos substantivos afetam o ambiente que as comportam independentemente dospropsitos finais que elas servem. Nesse sentido, essa rea abarca os processosnecessrios para o projeto, planejamento, programao, oramentao, desenvolvimento,e avaliao de produtos de defesa de acordo com as demandas contingenciadas poranlises de riscos e custos de oportunidades.31

    A quinta rea temtica refere-se a histria militar, dedicada a evidenciar padresrecorrentes na conduta da guerra e o projeto de fora em associao com alteraes nodomnio das demais reas temticas e com o entorno aonde todas elas se colocam. Paraisso, dentre outras questes, a histria militar estar sempre perguntando:

    Qual o entendimento de defesa que determinou as alternativas defora consideradas? Qual a estrutura e relao de causalidade entre as variveisdependentes e independentes e qual foi o processo de tomada de deciso?

    Quais critrios instruram a determinao das necessidades decapacidades militares? Como isso pode ser verificado?

    Como o uso dos recursos alterou o provimento de defesa?

    Por vezes, as respostas encontradas mostram-se mais como justificativas postfacto das decises tomadas, sem explicitarem os critrios e valores que instruram asdecises. Nesse caso, a histria militar vai alertar para a possibiliade de que as lies dopassado possam ser meras generalizaes empricas, cuja insuficincia pode sersintetizada na formulao: so elas que se explicam, e por elas que se explica,gerando um crculo sem fim. Outras vezes, as respostas oferecidas s perguntasformuladas se prendem a aspectos especficos e marginais do processo de tomada dedeciso. Entretanto, outras vezes, (e cada vez mais) a histria militar oferece subsdiospara identificar padres no passado que instruem novas possibilidades no futuro,inclusive em termos do desenvolvimento de conceitos.

    30 Para uma perspectiva dos temas objeto dessa rea de conhecimento veja, por exemplo, Sandler, T. EHartley. K. The Economics of Defense. Cambridge, MA: Cambridge University Press, 1995.31 Esse o entendimento de Heidegger sobre as consequncias da tecnologia. Para essa discusso, verFeenberg, A. Subsersive Rationalization: Technology, Power and Democracy in Feenberg A. e Hannay A.(eds). Technology: The Politics of Knowledge. Indianapolis: Indiana University Press, 1995. p.17. Para uma

    perspectiva dos fundamentos dessa rea de conhecimento veja, Mansfield. E. (ed.).Defense, Science, andPublic Policy.New York: W.W. Norton&Company.Inc.1968. pag. 114-131. Para uma perspectiva atual eseus desdobramentos, veja Johnson, S. et.al.New Challenges New Tools for Defense Decisionmakin. SantaMonica, CA: RAND Corporation, 2003. Part III. Veja, ainda, Habermas, J. Tcnica e cincia comoideologia. (trad. Arthur Moro). Lisboa, Portugal: Edies 70, 1968. Bunge, M. Cincia e

    Desenvolvimento. trad. Cludia Regis Junqueira. So Paulo:Editora Universidade de So Paulo, 1980.

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    ENTORNO E DIFUSO

    Essas sete reas duas nucleares e cinco orbitais estabelecem o domnio decompetncia da cincia de defesa. Essas reas existem imersas em uma enorme trama deconceitos e prticas orientados para aplicar, apoiar e avaliar a concepo, emprego ouameaa do emprego da fora. Alguns componentes dessa trama so emprestados de

    outras disciplinas, tais como conceitos derivados da teoria da administrao, da teoria dainformao, da ciberntica, da teoria dos sistemas, das teorias de administrao, dasteorias do processo de tomada de deciso, etc.

    Outros componentes dessa trama so inicialmente concebidos dentro do domniode competncias da defesa, tais como a a pesquisa operacional, a teoria da dissuaso,alguns elementos da teoria dos jogos, etc. Esses conceitos e prticas, sejam elesemprestados de outras disciplinas, ou sejam nascidos dentro do domnio de competnciada cincia de defesa, so amarrados como propsitos funcionais em torno das reastemticas, tais como a gesto de defesa; a sistemtica de planejamento, programao eoramentao para a defesa; desenvolvimento de doutrina e tticas.

    Em torno da cincia de defesa encontram-se as demais disciplinas em contnuainterao entre si e com a cincia de defesa. Sendo que esse relacionamento estabelecido pelo compartilhamento de teorias e conceitos que cada rea temticamanipula. Assim, as teorias e conceitos atuam como fator interveniente no processo deestabelecer articulaes e relacionamentos funcionais entre as diversas reas deconhecimento.32

    Circundando todas essas reas acham-se as disciplinas fundacionais: a filosolia, amatemtica e a geometria, cujos axiomas, teorias e conceitos orientam osrelacionamentos vlidos, complementam os vnculos necessrios e preenchem os vazioscriados pela incapacidade das disciplinas especificar proverem explicaes adequadas.Um desenho abrangendo o entorno da cincia de defesa poderia ser concebido como nafigura 2.

    32 Para uma evidenciao dos mecanismos de difuso, veja Raza, S. Para Alm dos Livros Brancos daDefesa. Paper apresentado no Seminrio Internacional sobre Misses de Paz, Segurana e Defesa. Rio deJaneiro, 27 de novembro de 2002. A ser includo em livro decorrente do Seminrio.

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    Estudos

    Blicos

    Projetode

    Fora

    Estudos Estratgicos

    Eco n o miad eDefesa

    Formulao

    de Pol t icas

    de Defesa

    Lo gstic ae e

    Gestoda Defesa

    Socio logia

    Mili tar

    E s t u d o s d e D e f e s a

    Administra o

    Economia

    Sociologia

    Cincia

    Poltica

    Antropologia

    Gesto do

    Conhecimento

    Anlise de

    Sistema

    Relaes

    Internacionais

    Direito

    Estatstica

    Psicologia

    Engenharias

    Contabil idade

    Filosofia

    MatemticaGeometria

    Pedagogia

    Cincia daComputao

    HistriaMili tar

    Histria

    Figura 2: Definio do Entorno da cincia de defesa.

    Note-se, nessa figura, que as reas temticas apresentadas circunscrevendo odomnio da cincia de defesa refletem apenas um segmento arbitrrio das demais reas deconhecimento (obviamente sem a pretenso de registrar todas as reas temticas oudisciplinas atualmente existentes). Seu carter , portanto, apenas ilustrativo, com o queprocura demonstrar o relacionamento da cincia de defesa com o entorno aonde ela sealoja. Nesse sentido, poderamos, ainda, definir um outro crculo exterior aos estudos dedefesa como sendo o domnio dos estudos de segurana, no necessariamente vinculadoao instrumentos de fora militar. Tal possibilidade ilumina a varincia no domnio de

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    competncia da defesa no provimento da segurana que pode, ou no, incluir os meios defora para a consecuo dos propsitos polticos.33

    O modelo apresentado nas figuras 1 e 2, deve ser reconhecido, so apenasnocionais e, como tal, imperfeitos, pelas razes expostas a seguir. Eles representam acincia de defesa no centro dos modelos, o que poderia dar a impresso de que todas as

    demais cincias gravitam em torno dela. Isso incorreto. Tal arranjo apresentadoapenas por sua utilidade em apresentar os relacionamentos entre as diversas reas doconhecimento como uma rede funcional, sem implicar em nenhum tipo de hierarquia,exceto de todas as cincias para com as disciplinas fundacionais.

    Outro fator de impreciso a representao das reas de conhecimento comocrculos conjunto fechados. De fato, uma representao melhor seria fazer cadadisciplina ser ilustrada como um foco de luz, cada uma com uma cor diferente, todosesses focos em contnuo movimento alterando suas posies relativas conforme asnfases especficas e relacionamentos que se pretende evidenciar. O conjunto delasdefiniria o espectro do conhecimento atual. Outra razo de inadequao do modelo estem sua incapacidade de evidenciar o espectro do conhecimento atual enquanto umvolume multidimensional em contnua expanso multidirecional.

    Entretanto, o modelo til. Primeiro, ele evidencia um nmero finito de reas deconhecimento como necessrias e suficientes para, atualmente, descrever o fenmenoobjeto da cincia de defesa, o que oferece critrios claros de incluso e excluso naformulao, por exemplo, de currculos visando a difuso do conhecimento que elacomporta. Alm disso, o modelo evidencia a diferena entre os fundamentos queinstruem a educao de civis para a defesa e de militares.

    EDUCAO

    Com relao a educao de civis para a defesa, a origem do processo aloja-se na

    periferia do modelo em outras disciplinas ou reas de conhecimento - progredindo emdireo s especificidades dos estudos estratgicos no centro do modelo; enquanto que aeducao dos militares tem origem no conhecimento dos estudos blicos e do projeto defora progredindo para a periferia aonde ganha cada vez mais diversidade e abrangncia(ver figura 3 para uma representao esquemtica). Uma, portanto, progride em direo especificidades, outra em direo generalidades. Enquanto uma ganha tecnicidade aoutra avana em direo as disciplinas fundacionais.

    33Para uma discusso das relaes entre segurana e defesa, veja Raza, S. Force Design: EstablishingCapability-based Defense Planning. 2003. No prelo. Esse trabalho elabora um modelo lgico de

    possibilidades de relacionamentos de defesa e de segurana, com o que define suas mtuascondicionalidades de acordo com os critrios utilizados para a definio de seus domnios de competnciae funcionalidade. O modelo ento utilizado para categorizar os conceitos de defesa e segurana de 15

    pases do Hemisfrio Ocidental em dois momentos distintos (1970 e 2002), de onde so derivadasconcluses sobre as tendncias atuais na definio da defesa e sua implicas para a formulao de

    polticas e do correspondente conjunto de capacidades requeridas para o provimento da defesa.

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    Estudos

    Blicos

    Projeto de

    Fora

    Estudos Estratgicos

    Economia de

    Defesa

    Formulao

    de Polticas

    de Defesa

    Tecnologia de

    Defesa

    Sociologia

    Militar

    Estudos de Defesa

    Administrao

    Economia

    Sociologia

    Cincia

    Poltica

    Antropologia

    Engenharia deProduo

    Anlise de

    Sistema

    Relaes

    Internacionais

    Direito

    Estatstica

    Psicologia

    Sociologia

    Sociologia

    Filosofia

    MatemticaGeometria

    Educao

    de

    civispara

    a

    defesa

    Educ

    aod

    e

    milita

    res

    Figura 3: Fluxos convergentes e divergentes da educao de civis e militares.

    Desdobram-se, dai, trs aspectos importantes - normalmente mal interpretadosdevido a sua aparente complexidade (normalmente porque suas apresentaes soefetuadas sem considerao com os aspectos terico conceituais fundados na cincia dedefesa o que outra evidncia de seus dividendos prticos):

    (1) Na definio do objeto fenomenolgico da cincia de defesa, a teoria da guerrasustenta a subordinao da dinmica blica ao comando poltico. Essasubordinao no uma premissa de partida e pode ser demonstrada teoricamente[ver seo sobre os estudos blicos]. a poltica que vai dizer quando lutar equando parar de lutar.

    (2) Outra coisa completamente diferente a imposio do controle da gesto dadefesa em tempo de paz por civis ( um ministro da defesa civil) a fim de evitargolpes de estado o que apesar de, aparentemente, correto ainda necessita demelhores evidncias empricas e um aporte conceitual mais especfico. Ou seja,trata-se de uma postura de precauo politicamente orientada e ideologicamentesustentada que no tem nada a ver com o fenmeno blico mas sim com padresque a cincia poltica busca identificar e alertar quanto aos riscos e consequncias(deve-se ter ateno para o fato de que evitar tal situao domnio decompetncia da deciso poltica, e no da cincia poltica enquanto tal).

    (3) Outra coisa, ainda, a necessidade de criar competncias civis para a defesa, oque tem a ver com a definio do currculo para a educao de civis, mas que notem nenhuma relao seja com a subordinao da guerra a poltica seja com a

    estruturas e formas do processo de tomada de deciso poltica para a defesa. erro procurar justificar esse terceiro aspecto a partir de um ou dos dois aspectosanteriores.

    A educao de civis para a defesa atende ao requerimento de criar competncias[complementares] em reas especficas seja por economia de recursos (sob a premissade que a formao de um militar mais cara que a de um civil), seja por dinmicas detempo (sob a premissa de a formao de um militar demorada, enquanto que osconhecimentos especficos para algumas atividades podem ser atendidos por civis

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    mediante treinamentos especficos por curtos perodos de tempo). Nesse sentido, adeciso sobre currculos uma deciso de recorte da rede de relacionamentos que oespectro de conhecimento em defesa (representado na figura 1) apresenta. O quedemanda critrios vinculados ao propsito funcional dos civis nas atividades de defesa sem nada a ver com justificativas de controle e subordinao funcional.

    Outro fator prtico que impe a necessidade de uma cincia de defesa est noscritrios que definem a alocao de recursos financeiros para as atividades de pesquisapara a defesa. Como muitas instituies oficiais de fomento a pesquisa, tal como oConselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), no Brasil,ainda no reconhece, formalmente, a cincia de defesa como rea especfica deconhecimento. Como decorrncia, a obteno de recursos para pesquisas e investigaessobre temas de defesa enfrentam enormes dificuldades para aprovao, obrigando quetais pesquisas sejam imbutidas, inadequadamente, sob outras reas, principalmente a dasRelaes Internacionais ou da Cincia Poltica.

    Tal condio repercute negativamente nos pases que apresentam essa

    situao - o Brasil, por exemplo - que deixam de explorar o capitalintelectual nacional nessa rea, j que pesquisadores nacionais

    qualificados vem-se obrigados a buscar fontes de recursos no exterior,muitas vezes constrangido pela necessidade de impor uma matizao

    inadequada na orientao do objeto da pesquisa para atender s

    especificidades dos propsitos desses rgos de fomento a pesquisa. Emltima anlise, o pas perde a oportunidade de construir um acervo de

    conhecimentos sobre a defesa, obrigando, quando necessrio, que

    decises crticas sobre polticas pblicas para a defesa, e seusdesdobramentos vinculados a alocao de recursos sejam instrudos

    por conceitos que no necessriamente refletem as particularidadesnacionais.

    Tal situao pode trazer como consequncia, por exemplo, a induo dealternativas de defesa como mecanismo auto-sustentador dos conceitos

    estratgicos militares, o que tende a inercializar as possibilidades dereformas nos sistemas de defesa, ao mesmo tempo que inibe a

    transparncia dos processos de planejamento que assegurem a

    necessria coerncia externa das foras armadas, isso , a correlaoinstrumental entre as capacidades de defesa nacionais com os objetivos

    nacionais da poltica exterior. Ou ento que mascarem os critrios quepermitam verificar o grau de interoperabilidade entre as parcelas esegmentos das foras armadas. Ou, ainda, que limitem a anlise da

    suficincia das capacidades de defesa, em termos de uma adequada

    avaliao da dimenso qualitativa e qualitativa das foras disponveis eprojetadas. Sem uma cincia de defesa, sem mecanismos cientficos de

    investigao, o risco acaba sendo a validao da importncia e

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    necessidade das foras armadas, pelas prprias foras armadas,segundo seus prprios critrios e valores.

    Atualmente, deve ser mencionado, a reao formalizao da cincia de defesaenquanto disciplina acadmica no mesmo nvel da cincia poltica, antropologia, relaesinternacionais, etc., vem diminuindo. Embora que, por vezes, encontrando fortesinteressses corporativos das disciplinas tradicionais, que vem na emergncia dacincia de defesa uma ameaa aos seus domnios de competncias: a possibilidade deoutras hipteses e explicaes que contestam a normalidade dos conceitos existentes. Defato, nada melhor do que o simples reconhecimento dessa ameaa para justificar aexistncia da cincia de defesa. Afinal, esse o papel da cincia. De qualquer cinciadefinida como tal - negar isso a uma das cincias negar a existncia de todas elas.

    INTERAO E EVOLUO

    As sete reas centrais que conforma o domnio da cincia de defesa, descritas naseo anterior, esto em contnua interao com outras disciplinas e reas de

    conhecimento, enquanto definem a si mesmo como um conjunto nico por meio daespecificidade de seu objeto de anlise e sua metodologia. O que explica que, embora acincia de defesa tenha um objeto especfico de anlise, ela no se encontra isolada dasdemais cincias. Ao contrrio, a cincia de defesa estabelece um relacionamento demutua complementaridade com outras reas do conhecimento, estabelecendo uma relaode permuta dentro de um contnuo processo de co-evoluo.

    Essa continua interao entre essas reas de conhecimento gera e aperfeioa olxico necessrio para dar conta das caractersticas e particularidades dos fenmenos quea cincia de defesa desvenda, com o que novas hipteses so formuladas abrindopossibilidades para que novas explicaes do passado e novas expectativas de futuro

    sejam concebidas. Trata-se, portanto, do processo por meio do qual o conjunto deconceitos necessrios para descrever e explicar o fenmeno de defesa estudado pelasdisciplinas e suas reas componentes conforme descrito na seo anterior formulado.O que traduz o necessrio processo de conceitualizao (concept formulation) - requisitoessencial de qualquer cincia.

    Veja-se, por exemplo, quando da longa crise que tomou a segunda metade doSculo XX, a chamada Guerra Fria, novos conceitos foram incorporados cincia dedefesa.34 Naquele perodo, a credibilidade das ameaas e a plausibilidade da hiptese dasua escalada evidenciavam, quando combinadas, dois fenmenos. O primeiro era o efeitoinercializador da intencionalidade do uso da fora, denominado dissuaso (deterrncia),instrumentalizado de duas maneiras. Por negao (denial), quando visava impedir o

    incio da escalada da violncia por meio da demonstrao de que um eventual ataqueseria contraposto por uma defesa substantivamente forte para gerar danos inaceitveis ao

    34 Ver Raza, S. As Crises e Manobra de Crises. Aerospace Power Journal. Maxwell, AFB. 2o Trimestre2002. pag. 40-74. O exemplo apresentado tem o propsito de evidenciar a necessidade da concepo deconceitos para dar conta da descrio de um fenmeno. Nesse sentido, a conceituao de deterrncia ecompelncia devem ser vistas como, apenas, um dos diversos entendimentos que permeiam a literaturasobre esse tema especfico. Em outros termos, esse trabalho no tem a inteno de firmar doutrina, apenas ode evidenciar como, eventualmente, as doutrinas so formuladas a partir de determinados entendimentos.

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    atacante, sujeitando-o a um contra-ataque com expectativas plausveis de destruir suascapacidades combatentes e impondo-lhe a paz que seu adversrio considerava desejvel.Ou por retaliao (retaliation), quando visava impedir o incio da ao adversria pelaevidenciao de que o atacado ainda reteria capacidade para revidar, e que esse revideasseguraria um nvel de destruio tambm inaceitvel ao atacante. O segundo fenmeno,

    denominado coao (compelncia35

    ), era um efeito indutor da reverso de uma ao jiniciada para a situao inicial, ou para outra situao ainda aceitvel dentro do equilbriode credibilidade/plausibilidade.

    Deterrncia e compelncia mostravam-se, do ponto de vista conceitual, como duasfaces de uma moeda, unidas por uma igual lgica interna que sustentava necessidadescrescentes de recursos militares, a fim de assegurar uma capacidade de destruioresidual dos arsenais aps um primeiro enfrentamento. Dois efeitos que se auto-sustentavam derivavam dessa lgica. Por um lado, tornava-se complexo, senoimpossvel, estabelecer uma distino pragmtica entre prevenir a guerra e preparar-separa a guerra. Por outro, criava-se um mecanismo de autovalidao das estruturas defora e do seu conceito de emprego, j que a referncia para a medida de sua adequao

    deslocava-se dos propsitos polticos para a suficincia dos meios frente ao arsenaladversrio.

    Teoricamente, a estrutura de fora e seu conceito de emprego se vinculaminstrumentalmente poltica exterior. Entretanto, o que se teorizava como causalidade, sepragmatizava como causa. Os resultados dessa inverso se externalizavam, no casoamericano, na limitao das possibilidades polticas impostas pelas alternativas militaresque, por sua vez, derivavam de uma determinada estrutura de fora. Uma dascaractersticas particulares do perodo da Guerra Fria foi o reconhecimento dessasexternalidades em seu prprio tempo. A chamada Estratgia de Retaliao Macia, porexemplo, iria mostrar-se uma camisa de fora, levando Kennedy a propor, em seu lugar, aEstratgia da Resposta Flexvel.

    Esse reconhecimento foi propiciado pela recorrncia de eventos onde a barganhapoltica era entremeada pela ameaa do emprego, ou pelo emprego limitado, dos meiosmilitares. Alternadamente, soviticos e americanos procuravam fazer o outro perceberque os ganhos previstos de uma guerra no compensavam seus possveis custos, tornandoprticos os conceitos de deterrncia e compelncia. Embora a intencionalidade do uso dafora fosse sempre objeto de avaliao contextualizada, supostamente racional, a ameaase fazia sempre crvel, j que ambos os lados possuam suficiente informaes sobre oarsenal adversrio, sustentando a premissa de que a violncia armada podia escalar parapatamares onde todo o esforo nacional seria consumido na defesa dos objetivos polticos

    35 A compelncia compelence um termo cunhado por Thomas C. Sheeling em seu livro Arms andInfluence. EUA: Yale University Press, 1966. Esse um excelente exemplo da criao de um conceitonecessrio para explicar um novo fenmeno, no caso, diretamente vinculado com a ameaa nuclear. Outrostermos foram ainda criados, como por exemplo Suasion, desenvolvido por E. Luttwak. Esses e outrosexemplos, todos eles sobre a criao de termos para expressar novos conceitos, evidenciam o fato dacincia de defesa ser, ainda uma cincia em seus primeiros movimentos. Nesse sentido, ainda h muitaconfuso criada com a necessidade de utilizar-se os mesmos termos para representar diferentes conceitos.Com o desenvolvimento da cincia de defesa essa confuso deve dar lugar a uma maior preciso, inclusiveno planejamento e na gesto da defesa.

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    dos Estados, com o risco da prpria continuidade de suas existncias em um armagedomnuclear.

    Esse um exemplo da amplitude crescente dos termos que a cincia de defesanecessita para dar conta dos fenmenos e suas manifestaes enquanto objetos de seuestudo. Nesse sentido, deve ficar claro que o conjunto desses conceitos conformam uma

    linguagem cientfica necessria para explicar esses fenmenos e antecipar outrasocorrncias, com o que possibilitam a construo de modelos sob a premissa deisomorfismo que diz respeito a expectativa (a condio de suficincia) de que oselementos utilizados no modelo e as relaes que eles estabelecem entre si correspondam realidade abstrada de forma suficiente para derivar concluses teis.

    FLUXOS E PROCESSOS

    A existncia de uma cincia de defesa no significa que todas as esferas deconhecimento que a integram estejam completamente mapeadas, explicadas erelacionadas. Ao contrrio, exatamente por ser uma cincia, o conhecimento e padres demedida que ela usa esto em contnuo processo de destruio e renovao para permitirque ela molde e seja moldada pelo dinmico ambiente aonde aloja-se. Esse movimentogera, acumula, processa, dissemina, destri e gera novamente conhecimentos em umprocesso expansivo contnuo de conceitos que buscam explicar uma realidade observadatambm em expanso; sendo essa expanso atualmente propulsada pela globalizao dosfatores de produo e pela tecnologia da informao (com essas duas causasrealimentando-se continuamente).

    Nesse processo de co-expanso o grau de interao e competitividade da defesacom o ambiente aonde ela se aloja transformado pela necessidade de satisfazerobjetivos prprios da defesa e de outras esferas de ao tambm alojadas no mesmoambiente, aonde a defesa e essas outras esferas competem por recursos escassos (pessoal,

    material e de informao). Essa situao cria simultaneamente oportunidades eobstculos para cooperao.

    As oportunidades exploradas parecem fazer os conhecimentos fluir rapidamente,tais como quando da existncia de lderes militares que reconhecem a necessidade deavanar o desenvolvimento intelectual de seus subordinados e fomentam o processo deeducao para criar um perfil de oficialidade voltado para dar conta das demandasfuturas. Por vezes, entretanto, parece que os obstculos tais como militares de altoescalo que se aferram a uma doutrina ultrapassada e reagem a esforos de renovao,minando ou mesmo ostensivamente impedindo movimentos de reforma - fazem com queo avano no conhecimento parea recuar. Mas isso no verdade. O que parece um recuo apenas um dimininuio no rtimo de progresso, um refluxo momentneo que no

    impede o avano do conhecimento apenas retarda um pouco ou torna mais difcil suaemergncia.

    As decises e aes de defesa alojam-se nesse fluxo e refluxo, fazendo com osconceitos que sustentem o processo de tomada de deciso e os processos quetransformam essas decises em aes prticas sejam continuamente reconsiderados, demuitas maneiras diferentes, para evitar que as solues oferecidas para os problemaspercebidos no resolvam nada, mas sejam dadas como solues assim mesmo.

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    A histria est repleta de exemplos de refluxo, para evidenciar que em seguida asresistncias so removidas e o conhecimento avana seja por meio de novosprocedimentos, novas tecnologias, novas estruturas de pessoal, novos sistemas de armas,ou pela combinao de todos esses fatores que, no final, impactam diretamente no perfilprofissional militar ou, mais especificamente, em como educar o pessoal de defesa civis

    e militares.Munida desses atributos, a cincia de defesa permite ofecer educao a seus

    futuros investigadores e analistas, orientaes aos responsveis por elaborar alternativasde fora (projeto de fora), recomendaes aos decisores polticos, alerta sobre asconsequncias de seus atos para os utilizadores da fora para os propsitos da poltica, eelucidao aos responsveis por controlar e supervisionar o escopo e amplitude das aesresultantes das decises polticas que instruem o provimento da defesa requerida. Taisatividades definem os processos envolvidos na transmisso de conhecimentos e suaaplicao visando fins prticos. por meio desses processos que os conceitos da cinciade defesa integram-se aos mtodos para gerar conhecimento til.

    DESDOBRAMENTOSApesar das evidncias que sustentam e justificam a individualidade da cincia de

    defesa, tal individualidade foi contestada, at recentemente, sob a alegao de que ela nopossuia um domnio especfico de competncia em outras palavras, que defesa noconstituia um objeto de anlise legitimo enquanto tal.

    Entretanto, conforme os conceitos de Thomaz Kuhn ganharam aceitao [com oreconhecimento de que a concepo de paradigmas leva possibilidade de reasespecficas do conhecimento emularem a noo de cincia e tornarem-se cientficas em simesmo, independente das relaes que mantm com outras reas do conhecimento36] osestudos de defesa ganharam o status de cincia, abrindo um novo universo de

    possibilidades tanto para a descrio de seus sistemas e subsistemas enquanto parte deum fenmeno geral como para a elaborao de hipteses de explicao para os resultadosantecipados.

    O reconhecimento da cincia militar enquanto tal pode contribuir paraincrementar o desenvolvimento de estudos aprofundados sobre os temas de defesa naAmrica Latina, capazes de instruir um diagnstico cientfico, tecnicamente embasado,das alternativas de defesa, das relaes civil-militar, do projeto de fora, etc, que faz comque, quando da demanda por uma soluo imediata sobre aspectos inseridos sob essatemtica, as decises no sejam tomadas sem a necessria reflexo. Ausente essascapacidades, o risco o estabelecimento de metas inatingveis para a defesa,desconectadas da realidade, levando a um fatalismo diante da complexidade dos

    fenmenos que no pode ser seno pernicioso e deletrio primeiro, para a democracia e,secundariamente, para a qualidade e quantidade de pessoas qualificadas para oprovimento da defesa nacional.

    36 Ver Sandar, Z. Thomaz Kuhn and the Science Wars. New York: Totem Books, 2000. pg. 40. Sandarexemplifica a aplicao desse conceito na sociologia, dizendo que com a criao de seus prprios

    paradigmas, a sociologia tornou-se uma cincia tal como a fsica.

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    Esse reconhecimento cumpre, ainda, um papel fundamental. Ela qualifica civispara a discusso de defesa, por meio do qual oferece a possibilidade de que capacidadesprofissionais constitudas no mundo civil, politicamente autorizadas, possamlegitimamente e competentemente supervisionar o projeto de fora e a gesto dosassuntos de defesa visando o atendimento dos objetivos que essa mesma poltica

    determina para a defesa, sem que isso constitua uma intromisso. Tal natureza no-intrusiva somente pode ser entendida a partir de um modelo (tentativamente desenhadona figura 1) que no oferece uma compartimentao entre dois mundos civil e militar mas sim que os veja como um contnuo de competncias interligadas.

    Nesse sentido, e, finalmente, deve ser lembrado que a qualificao de civis nopode prescindir de um adequado conhecimento dos estudos estratgicos, com nfase nosfundamentos do projeto de fora e da concepo estratgica de emprego dos meios, assimcomo a educao de militares no pode prescindir de uma humanizao que aporteconhecimentos necessrios para a gesto eficiente e eficaz dos recursos de defesa que socolocados a sua disposio para fins polticos.

    Quando os fundamentos dos estudos estratgicos no fazem parte da educao decivis para a defesa, a consequncia natural uma reduo da defesa a um mero conjuntode atividades autnomas, removendo dela sua natureza combatente. Quando os militaresso educados sem a incluso de outras perspectiva derivadas de outras disciplinas, o risco produzir deformaes na prpria natureza da defesa, com riscos para a prpriasegurana do Estado.

    O desafio, ao contrrio da viso comum, no est na identificao de limites entreuma e outra formao, mas sim em definir quais qualificaes especficas civis emilitares devem possuir para, juntos, darem conta das demandas de eficincia e eficciano provimento de um estado de segurana percebido. Sem uma cincia de defesa queoferea uma moldura de referncia, tal desafio s tem resposta em percepes individuais

    em ideologias, ou, pior, em achologias. Nesses casos, ento, realmente, uma cinciade defesa no faria falta.