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CArnAvAl DE ruA DE BElo HorIzontE 2015: uma experiência etnográfica1

Ródinei Páscoa Amélio2

rEsumo

O presente artigo objetiva compreender a singularidade do “carnaval de rua” de Belo Horizonte de 2015 a partir de referencial teórico da antropologia brasileira. A metodologia utilizada foi a etnografia através da observação participante de quatro blocos do “carnaval de rua” da cidade buscando identificar suas principais diferenças. Entre as questões pertinentes ressaltamos a construção popular através da “memória coletiva” dos grupos artísticos e culturais e os dilemas e paradoxos da sociedade brasileira presentes no processo de “inversão do carnaval”.

Palavras-chave: cultura brasileira, carnaval de rua de Belo Horizonte, diversidade cultural.

ABstrACt

This article aims to understand the uniqueness of the “street carnival” of Belo Horizonte in 2015, from theoretical framework of Brazilian anthropology. The methodology used was ethnography through participant observation of four blocks of “street carnival” in the city, seeking to identify their key differences. Among the relevant issues we highlight the popular building through of the “collective memory” of the artistic and cultural groups and the dilemmas and paradoxes of Brazilian society present in the process of “reversing the carnival.”

Keywords: Brazilian culture, Belo Horizonte street carnival, cultural diversity.

1 Nossos agradecimentos a Carine Viana e a Ester Lilian Silva pela leitura e críticas incorporadas à versão final deste artigo sem as quais esta publicação não seria possível. 2 Bacharel em ciências sociais pela PUC-Minas. Formado em 2011. Sociólogo. Registro: SRTE 1066/MG. E-mail: [email protected].

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IntroDuÇÃo

O presente artigo objetiva compreender a nova cena do “carnaval de rua” de Belo Horizonte sob a perspectiva da antropologia brasileira. Assim, através da observação participante buscamos identificar as principais diferenças presentes em cada bloco, compreendendo a cultura como um processo dinâmico e em construção. Partindo da perspectiva antropológica, nos ancoramos em bibliografia específica, considerando aspectos teóricos e conceituais a fim de aproximarmo-nos de questões como: a relação nós-eles; sujeito-objeto; o carnaval como expressão de construção da cultura local, neste caso a de Belo Horizonte, com questões que permitam direcionar o olhar antropológico sobre o “carnaval de rua” belorizontino.

Como veremos, no tocante à descrição dos blocos do “carnaval de rua” da cidade, há algumas considerações teórico-metodológicas relevantes para a construção do objeto analítico deste artigo. Em seguida, na descrição dos blocos propriamente dita, é possível constatar o ressurgimento do “carnaval de rua” de Belo Horizonte a partir de 2009 e os elementos constitutivos das especificidades de cada bloco.

As considerações finais apresentam uma síntese entre a teoria e a prática, isto é, articula os aspectos teóricos da antropologia aos encontrados em campo. Assim, partindo do objeto de análise, apresentamos as principais características dos blocos via observação participante (empiria) a fim de compreender o “carnaval de rua” de BH.

Para atingirmos nosso objetivo de análise, considerando os conceitos defendidos por Clifford Geertz (2008), entendemos que os esforços do pesquisador em campo recaem sobre a teia de significados elaborada pelos participantes:

“O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.” (GEERTZ, 2008, p.4)

Nesse sentido, perguntamos sobre o que significa cada bloco de carnaval, isto é, quais as suas especificidades no contexto do carnaval belorizontino? Geertz (2008) orienta-nos que etnografia como o método clássico da antropologia, como forma de produzir análises, interpretações a cerca da cultura estudada, é o que os seus pesquisadores fazem:

Em antropologia (...) o que os praticantes fazem é a etnografia. (...) Devemos frisar, no entanto, que essa não é uma questão de métodos. (...) praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas (...) que definem o empreendimento. O que o define

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é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição densa” (GEERTZ, 2008, p.5)

Para James Clifford (2002), a experiência etnográfica assemelha-se ao trabalho artístico, surrealista, em relação ao seu procedimento de recorte, colagem e re-contextualização, produzindo imagens e representações para compreender a dimensão simbólica da vida coletiva. Ainda, de acordo com este autor, todas as sociedades produzem cultura independentemente de suas classes sociais cabendo ao pesquisador uma postura crítica diante de suas representações coletivas.

A etnografia que compartilha com o surrealismo o abandono entre a “alta” e a “baixa” culturas, fornecia tanto uma fonte de alternativas não-ocidentais quanto uma predominante atitude de irônica observação participante entre as hierarquias e os significados da vida coletiva. ( CLIFFORD, 2002: pg. 148)

Vale lembrar que tais procedimentos dos surrealistas contribuíram decisivamente à produção da arte de vanguarda dos membros da Semana de Arte Modera de 1922 que produziu novas interpretações sobre o Brasil, mas também, os nossos artistas brasileiros influenciou os inovadores artistas europeus3. Seguindo no sentido de compreender o imaginário – as representações, os símbolos da vida coletiva –, ao percorrermos a história da antropologia é possível identificar alguns pontos importantes para a compreensão sobre a presente proposta. A busca pela compreensão da dimensão simbólica da vida coletiva pelos antropólogos privilegiou as sociedades não ocidentais em seus estudos desde a inauguração da antropologia clássica, no século XIX, passando pelos funcionalistas, pela a antropologia estrutural de Jean Claude Lévi-Strauss, até o atual paradigma estabelecido pela antropologia hermenêutica cujo principal expoente é Clifford Geertz.

Com o advento da antropologia urbana na década de 1970 esta ciência social passou a “produzir-se” nas cidades, nos centros urbanos onde seus pesquisadores vivem, e os esforços de seus trabalhos voltam-se principalmente às minorias sociais, às culturas marginalizadas. Cabe ao pesquisador frisar, por um lado, a importância metodológica da etnografia por permitir uma aproximação mais íntima com grupos e comunidades, de forma a produzir uma interpretação “de primeira mão”4 sobre suas representações.

Paula Monteiro (1997) em seu artigo “Globalização, Identidade e Diferença” percorre a história ocidental desde a antiguidade localizando quais são “os outros” e quem somos “nós”. Baseada na alteridade a autora esclarece os principais paradigmas da antropologia até a contemporaneidade explicando como as identidades designam um estatuto para a diferença no âmbito da disciplina antropológica. O artigo de Paula Monteiro (1997) colabora para este

3 Para mais informações sobre a proximidade existente entre surrealistas e modernistas da Semana de Arte de 1922 consul-tar: LAPLANTINE, François. O que é Imaginário? São Paulo, Brasiliense, 2003. (Coleção primeiros passos; 309)4 Interpretação de primeira mão é um conceito antropológico que significa que o pesquisador foi a campo e sobre ele produ-ziu o seu próprio material em diálogo íntimo com a teoria. Para mais informações, consultar as obras de Cliffort Geertz e de Renato Ortiz incluídas nas Referências Bibliográficas ao final deste artigo.

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estudo na medida em que relaciona o desenvolvimento da história da antropologia, seus paradigmas e suas implicações para a antropologia brasileira de autores como Maria Manuela Carneiro da Cunha, Roberto Cardoso de Oliveira, Carlos R. Brandão, Sylvia C. Novais, entre outros. Entre outros aspectos pertinentes aos estudos antropológicos, a autora ressalta “a representação como imagem de si e como porta-voz de um grupo (...) e o modo como essa imagem foi produzida” MONTEIRO (1997). 5

Ainda seguindo alguns aspectos sobre a história da antropologia, destaca-se o fato de que a “antropologia pós-colonial”6 esteve aliada ao processo de libertação política, econômica e simbólica dos povos colonizados pelos europeus.

Portanto, tanto a antropologia urbana quanto a antropologia pós-colonial impõem-nos o desafio de sermos, ao mesmo tempo sujeitos e objetos de análise. Uma das questões relevantes do ponto de vista metodológico está o movimento de sermos “o outro” analisado no processo de alteridade simultâneo e ao mesmo tempo sermos “nós” mesmos. Nesse sentido, pensar sobre o “carnaval de rua” de Belo horizonte, implica no questionamento sobre as nossas origens culturais, mas, também, sobre a diversidade cultural existente.7

Foi neste espaço de entendimento que nos lançamos ao exercício etnográfico sobre o “carnaval de rua” de Belo Horizonte de 2015; isto é, a partir do trabalho de campo, da observação participante, buscamos registrar os acontecimentos para produção de um conhecimento “de primeira mão”, pesquisar fontes e estabelecer relações semânticas, a fim de compreendermos nosso objeto de análise, optando pela observação e estudo de alguns blocos de rua partícipes.

Partimos da hipótese de que, para compreendermos o “carnaval de rua” de Belo Horizonte, precisamos analisá-lo em um contexto maior, ou seja, em relação às culturas brasileiras devidas às várias formas de brincar o carnaval originário de outras regiões do país que tornam o carnaval diverso, popular e humorado. Nesse ínterim, chama-nos a atenção o trabalho de Renato Ortiz (2012), intitulado “Cultura Brasileira e Identidade Nacional”, no qual o autor afirma que a cultura brasileira passa por dois tipos de elaboração: uma forjada pelo Estado em busca de “hegemonia” política e outra pela cultura popular, pela “memória coletiva”, reatualizado periodicamente, assemelhando-se mais ao mito.

Ortiz (2012) considera a cultura brasileira diversa e singular devido ao seu processo histórico e cultural específico. Ao expor seus argumentos sobre, por um lado, a construção da cultura popular e, por outro, sobre a identidade nacional, Ortiz exemplifica as diferenças existente entre

5 Para esclarecimentos sobre a dinâmica da antropologia ao longo de sua história, ver o artigo de: MONTEIRO, Paula – “Glo-balização, Identidade e Diferença” in Novos Estudos Cebrap, novembro de 1997.6 A antropologia pós-colonial é uma abordagem analítica da cultura contemporânea a exemplo da antropologia indiana de autores como Homi Bhabha e Gayatri Spivak. 7 Para mais informações sobre a história da antropologia e suas implicações, ver: Monteiro, Paula – “Globalização, Identidade e Diferença”, in, Novos Estudos Cebrap, novembro de 1997.

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a cultura popular a qual a “memória coletiva” é o seu principal conceito para se compreender a dinâmica cultural no seu processo de preservação-manutenção-sincretismo-mudanças das tradições de cultura oral. O autor exemplifica seu conceito de cultura popular elaborada mediante a “memória coletiva” através de manifestações culturais afro-brasileiras como as congadas, as folias, os reizados e o candomblé. Portanto, enquanto culturas orais, populares, transmitidas pelos seus antepassados advindos do continente africano através de gerações, o candomblé, por exemplo, nos mostra tanto a sua capacidade de sobreviver aos séculos de opressão como o seu poder de influenciar nossa maneira de ser em todo o território nacional, a despeito da história de exclusão social, marginalização cultural e de estigma sofridos pelas populações afro-brasileiras, seus costumes, suas visões de mundo. Este aspecto da teoria de Renato Ortiz é importante porque a partir dele podemos entender melhor a construção feita pelos blocos do “carnaval de rua” de Belo Horizonte enquanto um processo grupal, comunitário, popular e, em alguns casos, dissonantes ao poder político vigente na capital que ao invés de receber apoio da prefeitura da cidade, dificulta a ação dos grupos popular produtores desta festividade.

Para Roberto DaMatta (1997), o carnaval diz muito sobre a cultura brasileira. Ao analisá-lo no Rio de Janeiro durante a década de 1970, DaMatta em sua obra “Carnavais, malandros e heróis” descreve aspectos como, a “ginga”, a “malandragem”, o “jeitinho”, a indefinição que fazemos sobre “público e privado”, traduzidos também pelo binômio “a casa e a rua” que sintetiza, entre outros aspectos, o dilema vivido na sociedade brasileira onde há depredação do patrimônio público fazendo-nos questionar o que é público e o que é privado, de tornar ambientes públicos uma extensão de suas casas entre outras nuanças. Trazendo a discussão de DaMatta para o caso belorizontino, e mais especificamente sobre “a inversão do carnaval” que transforma grupos e classes sociais marginalizadas as personagens centrais desta festa popular, encontramos semelhanças entre a teoria de DaMatta e o modo como brincamos no carnaval. O autor afirma que, nesta festa, mulheres fantasiam-se de homens, homens de mulheres (homossexuais ou não), as mulheres assumem o lugar típico da cultura brasileira ou de pecado ou de pureza, por meio da figura simbólica da prostituta e da Virgem Maria, fantasias e maquiagens exageradas, e comentários moralistas de não-brincantes sobre os foliões. Partindo da interpretação de Roberto DaMatta o carnaval carioca, firma-se mediante inversões de papeis sociais previamente definidos e que devem ser desempenhados em espaços muito bem marcados socialmente, assim, estaríamos ritualizando o drama social vivido na sociedade brasileira através de seus antagonismos. O binômio “a casa e a rua” marca a sociedade brasileira baseada, por um lado, nos papeis sociais moralmente aceitos como, “coisa de homem e de mulher”, “coisa de velho e de jovem”, por outro, pelos papéis sociais não aceitos socialmente desempenhados por grupos marginais. Quando o carnaval coloca ao centro grupos marginais faz com que, por um momento, não levemos tão a sério a rigidez dos papéis sociais com que marcamos e que somos marcados socialmente, afinal, no carnaval, somos todos iguais. Livres e iguais:

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No carnaval, no seu espaço típico, o instante supera o tempo e o evento passa a ser maior do que o sistema que o classifica e lhe empresta o sentido normativo. Não é por outra coisa que a palavra mais ouvida nesse momento é loucura. Loucura porque estamos na “rua” que, subitamente, se torna um lugar seguro e humano. Loucura, finalmente, do nosso mundo social, tão preocupado com as hierarquias e as lógicas do “você deve saber o seu lugar” e do “sabe com quem está falando?” (cf. o Capítulo IV), que está oferecendo mais aberturas do que aquelas em que podemos realmente entrar. (DAMATTA, 1997, p. 118)

A intensidade do momento faz parecer superar o tempo e o evento, produzindo deslocamentos simbolizados na fala dos brincantes como loucura, conduzindo-nos a uma experiência, libertadora, mágica, possível, extraordinária. Entre vários exemplos, como ressalta DaMatta (1997), o carnaval brasileiro é uma festa a qual dramatizamos paradoxos através de inversões de papéis sociais da sociedade brasileira.

AnÁlIsE Dos BloCos Do “CArnAvAl DE ruA” DA CIDADE DE BElo HorIzon-tE Em 2015

Para compreender o “carnaval de rua” de Belo Horizonte de 2015, foi necessário observar uma questão relevante no que diz respeito à implicação metodológica do antropólogo em campo, porque ele aqui não está estudando povos distantes geograficamente, pelo contrário, estuda sobre a sua própria cultura, consequentemente, as fronteiras sujeito-objeto, nós-eles, eu-outro, diluem-se em sua análise. O estranhamento do que parecia familiar ao pesquisador, e, teoricamente, o recorte temático possibilitou a utilização de procedimentos, técnicas e conceitos durante o processo de coleta de informações para uma etnografia possível sobre o “carnaval de rua” de Belo Horizonte8.

O teor da antropologia pós-colonial presente nas obras dos autores estudados como Renato Ortiz e Roberto DaMatta é importante para análise aqui proposta na medida em que nos faz percebermo-nos como uma cultura que se derivou do processo colonizador português, impactando fortemente à formação cultural, permeada pelas especificidades da colonização, mas, sobretudo, como uma cultura híbrida, miscigenada, regionalmente diferente, pelas resistências e transformações ameríndias e afro-brasileiras.

Os blocos de “carnaval de rua” contemplados por este estudo são: (1) Então, brilha!; (2) Praia da Estação; (3) Pena de Pavão de Krishna; e, (4) Baianas Ozadas. Outros blocos, ainda, não

8 Esta é uma questão trabalhada pela antropologia urbana uma vez que seus pesquisadores vivem e estudam em suas pró-prias localidades. Os antropólogos urbanos não estudam os povos distantes (lá), mas grupos, comunidades ou culturas de sua própria sociedade (aqui). Dado que impacta diretamente na metodologia de pesquisa. Para mais explicações, ver: VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira – A Aventura Sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

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entraram na pesquisa, em função de limitações técnicas durante o desenvolvimento.

Considerando a afirmação de Renato Ortiz, a cultura brasileira constrói-se por intermédio da “memória coletiva”, pela vontade popular de sustentar, manter, reviver sua forma de fazer cultura em seu bairro, em sua cidade como um processo ano após ano, recordando canções, fantasias, e criando outras, e incorporação de linguagens de outros carnavais; o conceito do autor adequa-se ao “carnaval de rua” de Belo Horizonte.

Consideramos a teoria de Roberto Damatta, a qual as hierarquias e significados da vida coletiva manifestam-se nas “inversões do carnaval” por intermédio dos atores sociais envolvidos no “carnaval de rua” de Belo Horizonte.

Analisamos os blocos selecionados, a seguir, a partir de suas singularidades, tais como: a construção do bloco “da Guaicurus”, a dissidência política do bloco da Praia da Estação, a baianidade do bloco Baianas Ozadas, a busca pela síntese Hare Krishna e Afoxé do bloco Pena de Pavão de Krishna, e a participação de toda sorte de pessoas brincando o carnaval independentemente de idade, classe social, cor da pele, sexo, religião, orientação sexual.9

“EntÃo, BrIlHA!”, o BloCo DA GuAICurus

Sábado de carnaval, 14/02/2015. O Bloco “Então, brilha!”, um dos mais irreverentes da capital concentrou-se das 7h e 30 min. às 9h em frente ao hotel Brilhante na rua Guaicurus, centro de Belo Horizonte, por onde iniciou seu percurso, com fogos de artifício anunciando a saída do bloco. Foliões adotaram as cores do bloco, ou seja, o amarelo e o rosa, seguindo o trio-elétrico até a Praça da Estação, onde foi finalizada a apresentação, por volta das 12 horas. Embalados pelo samba e pelo axé baiano, pessoas de várias idades, fantasiadas com perucas, trajes variados, purpurina, confete, entre outros, bem como foliões sem fantasia, fizeram a alegria da capital mineira.

Artistas, intelectuais, ativistas de diferentes causas, profissionais liberais, entre uma ampla diversidade de pessoas, são frequentes nos ensaios e desfiles do “Então, Brilha!”, incluindo crianças, idosos e portadores de necessidades especiais. Neste ano, o desfile apresentou considerável crescimento de participantes.

São aspectos importantes na construção do bloco “Então, brilha”: O nome deste bloco foi inspirado na canção “Gente”, de Caetano Veloso, mais especificamente pelo trecho que afirma “gente é pra brilhar”, canção que integra o disco “Bicho” de 1977. Dessa forma, se gente é para

9 Para informações sobre o carnaval de Belo Horizonte em 2015, sugerimos matéria do jornal eletrônico “Divirta-se” sobre a programação oficial: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/especiais/2013/carnaval/2015/01/30/noticia_carnaval,164026/belotur-divulga-programacao-oficial-do-carnaval-de-bh-confira.shtml. Acesso: 10/02/2015.

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brilhar, como sugere a canção, o bloco responde, bem-humoradamente: “Então, brilha!”10; A rua dos Guaicurus, ou, simplesmente, rua Guaicurus, “zona do baixo meretrício” é conhecida, principalmente, devido a sua história boêmia cuja atração principal, há décadas, são as profissionais do sexo, que atuam em vários prédios. Hilda Furacão foi uma das mais célebres personalidades deste contexto, como profissional do sexo e como musa inspiradora, a garota do maiô dourado, homenageada por Roberto Drumond em seu romance “Hilda Furacão”, publicado em 1991, que retrata a Belo Horizonte do início dos anos 1960. Este romance foi adaptado para a TV em forma de minissérie pela autora Glória Pérez e exibida pela Rede Globo em 1998; Profissionais da música formados pela Faculdade de Música da UFMG assumem a liderança do bloco, desde sua fundação, em 2009. Os idealizadores do bloco são Rafael Gonçalves da Costa e Luna Gomides e hoje, à frente estão: Geison Almeida, Di Souza, Glauco Gonçalves, Gustavito, Rubens Aredes e Hernani Mendes.

o BloCo PrAIA DA EstAÇÃo: DA DIssIDÊnCIA PolÍtICA À AlEGrIA Do CArnAvAl

Sábado de carnaval, 14/02/2015. O bloco “Praia da Estação” contagiou a cidade, ao som de sua entusiasmada bateria através de diversos ritmos brasileiros, como as marchinhas, o frevo e o Axé. Sua formação conta com percussionistas e batuqueiros que comparecem aos sábados, ao longo do ano, na praça da Estação, centro de BH, em ato público conhecido como “Praia da Estação”. Tal movimento social protesta contra o atual prefeito Marcio Lacerda que, através de um decreto de dezembro de 2009, proibiu a realização de eventos nesta praça. Assim, os encontros semanais para banho de sol são uma resposta e resistência à política higienista de Lacerda. 11

Segundo Rafa Barros, antropólogo, ativista e líder do “movimento Praia da Estação” este bloco carnavalesco é o mais improvisado em relação aos demais que após concentração na Praça da Estação, percorreu a rua Aarão Reis, com duas paradas para banho de mangueira (a primeira na rua Aarão Reis, em frente ao teatro “Espanca!” e a segunda na avenida Afonso Pena, diante da sede da Prefeitura). Quem comandou o banho público, mais uma vez, foi Chapolin – Denise Lopes, foliã e atriz vestida a caráter do anti-herói mexicano, muito popular entre os frequentadores da Praia da Estação. Entre as personalidades do bloco estão Rafa Barros, atores de teatro do grupo “Espanca!”, Chapolin, Guto Borges, batuqueiros, músicos da UFMG, muita gente jovem, universitários para o “junta-junta” do bloco.12

10 Para ouvir a marcha-axé do “Então, brilha!: https://soundcloud.com/gustavitoamaral/ent-obrilha. Acesso: 22/02/2015.11 Ver: LACERDA, Márcio Araújo de. DECRETO Nº 13.798 DE 09 DE DEZEMBRO DE 2009, Ano XV - Edição N.: 3481, in, Diário Oficial do Município, Belo Horizonte, 09 de dezembro de 2009. Disponível em: http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1017732 . Acesso: 07/05/2015.12 Ver, também, o vídeo: PEREIRA, Tiago. História # 7 Praia da Estação – Belo Horizonte/MG, Belo Horizonte, Imagina Coletivo, 14/02/2013. Disponível através do link: https://www.youtube.com/watch?v=5354OiTR07E. Acesso: 27/06/2015.

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PENA DE PAVÃO DE KRISHNA (PPK) E SEU AFOXÉ TRANSCENDENTAL

Domingo de carnaval, 15/02/2015. O Bloco Pena de Pavão de Krishna (PPK) saiu ao ritmo ijexá, sob a coordenação de Gustavito, Flora Rajão, Tulio Nobre e Rafael Gonçalves. O bloco não tem trajeto definido como os demais, fator que causa grande expectativa nos foliões que desejam acompanhar o PPK. Neste ano o bloco concentrou-se a partir das 9 horas, na Praça 15 de maio, bairro Lagoinha e seguiu com seu trio-elétrico por ruas da região finalizando seu desfile no aglomerado Pedreira Prado Lopes.

O bloco faz diversas menções às culturas hindu e afro-brasileira, que são observadas nas músicas, danças e no afoxé. Essa combinação foi inspirada no bloco baiano, Filhos de Gandhi. O PPK conta com a presença dos “seguidores” de Krishna durante os desfiles e tem um hino carnavalesco transcendental, de autoria do compositor Gustavito, que atrai muitos foliões. As fantasias dos seus integrantes apresentam visual hindu, que em homenagem a Krishna, pintam seus rostos de azul além de usar adereços como turbantes, túnicas e colares. O bloco atrai pessoas de religiões minoritárias, principalmente, de matriz afro, orientais e kardecista, praticantes de Yoga, de capoeira, pessoas que buscam uma maneira alternativa de viver. Uma mistura musical produzida por agbês, agogôs, atabaques, violão e violino conferem a marca musical do bloco.

BAIAnAs ozADAs: o BloCo QuE AGrEGA o mAIor nÚmEro DE FOLIÕES EM BH

O grupo concentrou-se na segunda-feira de carnaval, 16/02/2015, saindo às 13 horas da Praça da Liberdade. O bloco coordenado por Geo Cardoso, Peu Cardoso, Tadeu Cardoso, Tiãozito Cardoso, Renata Chamilet, “o Chileno”, e Gilmar da Bahia apresenta-se desde 2010. Neste ano, foi recebido ao calor de cerca de 100 mil foliões13 de acordo com as estimativas da PM divulgadas pelos principais meios de comunicação (uma multidão entremeada de fotógrafos, jornalistas e de câmeras de TV). Sua concentração aconteceu na Praça da Liberdade, seguindo o trio-elétrico pelas Avenidas João Pinheiro e Afonso Pena, Rua da Bahia, Rua dos Tamoios e Avenida dos Andradas.

A multidão não se desanimou, nem mesmo com a forte chuva que caiu durante o desfile do bloco, permanecendo até o fim na Praça da Estação. Com um repertório de antigos sucessos do axé-music das décadas de 80 e 90, os membros da bateria, 100 participantes aproximadamente, desfilaram com camisetas personalizadas do bloco, saias (homens e mulheres), turbantes

13 Ver: Bloco Baianas Ozadas reúne 100 mil foliões no carnaval de Belo Horizonte, in, Divirta-se, Belo Horizonte, 16/02/2015. Disponível em: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/especiais/carnaval/2015/02/16/noticia_carnaval,164698/bloco-baianas-ozadas-desfila-no-carnaval-de-belo-horizonte.shtml. Acesso: 11/05/2015.

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e colares. À linha de frente do bloco é constituída por percussionistas que se apresentam profissionalmente em shows musicais pelo Brasil e pelo mundo.

Este bloco viveu uma polêmica neste ano: alguns de seus participantes queixaram-se do alto custo das camisetas vendidas pelos organizadores. Outra polêmica envolvendo o grupo neste ano foi que, momentos antes da lavagem simbólica da escadaria em frente ao viaduto Santa Tereza, a multidão manifestava-se em coro: “chupa Salvador, aqui é BH!”.

ENTRE OUTRAS ATRAÇÕES, O “CARNAVAL DE RUA”

Além do “carnaval de rua”, o carnaval de Belo Horizonte contou com um leque variado de opções como: o desfile das escolas de samba. Essas escolas de samba contam com a participação de compositores de sambas-enredo cujas fundações nos remontam à década de 1950; o desfile dos blocos caricatos - rei momo, rainha-da-bateria, mestre-sala e porta-bandeira; o desfile da Banda Mole, a banda de pré-carnaval mais tradicional de Belo Horizonte existente desde 1975; os clubes de carnaval que ocorrem na quadra do Cruzeiro Esporte Clube, na sede do Clube Atlético Mineiro e no Minas Tênis Clube; o Concurso Mestre Jonas de Marchinhas – em homenagem ao compositor mineiro falecido 2011 devido ao seu legado para a música local o qual vem renovando o repertório de marchinhas de carnaval a cada ano premiando os compositores das três marchinhas melhor classificadas.

Os foliões interessados puderam encontrar a festa em pontos do hipercentro da cidade (Avenida Afonso Pena, Praça da Liberdade, Praça da Estação) e em vários bairros como: Funcionários, Savassi, Floresta, Lagoinha, Santa Tereza, Serra, Mangabeiras, Barro Preto, Padre Eustáquio, Prado. A Catuçaí foi a bebida mais experimentada. Conhecida como “Catuçaí, a bebida do amor”14 é um drinque vendido por ambulantes “antenados”, composto pela mistura tropical de açaí, catuaba selvagem (alcoólica) e gelo. Servido em copos de 300 ou de 500 ml, com ou sem canudos. Seus apreciadores exaltam o poder energético, afrodisíaco e o caráter nacional da bebida, isto é, seus ingredientes simbolizam um pouco da biodiversidade encontrada no norte brasileiro, relacionada à melhora do desempenho sexual15.

14 Catuaba Selvagem. Ingredientes (informações do rótulo da garrafa): vinho tinto seco, álcool etílico potável de origem agrí-cola, açúcar, suco de maçã, xarope de maça, fermento de maçã, composto com extrato de catuaba, guaraná e marapuama, caramelo de açúcar, acidulante, estabilizantes, conservadores e água. Graduação alcóolica 14% vol. Não contém glúten. 15 Para mais informações sobre a penetração social da catuaba, ver o artigo de BALAGO, Rafael. Catuaba vira moda na noite de SP por seu apelo sexual e baixo preço. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 03 de agosto de 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2014/08/1494081-catuaba-vira-moda-na-noite-de-sp-por-seu-apelo-sexual-e-baixo-pre-co.shtml. Acesso: 27/02/2015

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nestas considerações finais, há alguns pontos importantes a serem ressaltados, como a dificuldade teórica e metodológica de definir claramente sujeito-objeto, nós-eles, eu-outro, uma vez que optamos por estudar um fenômeno de nossa própria cultura e em nossa própria cidade, assim, “eles” somos “nós” mesmos belorizontinos, “o outro” não está lá, longe de nós, mas aqui, na cidade de seu pesquisador.

Os blocos do “carnaval de rua” composto por grupos artísticos e culturais, juntos, tecem uma teia de significados específicos do momento cultural vivido em Belo Horizonte e relacionados ao contexto nacional, mediante adoções de gêneros musicais e estilos de outras regiões do país, como o axé, os sambas, as marchinhas, os frevos, entre outros, refletindo, um processo de revalorização de seu carnaval, culminando na diversidade de estilos, ritmos, de sínteses e misturas a partir de antigas referências.

Conforme assinala Roberto Damatta, as hierarquias e significados da vida coletiva manifestam-se nas “inversões do carnaval”, trazendo ao centro grupos marginalizados como a comunidade LGBTT, mulheres, “negros”, profissionais do sexo, grupos economicamente desfavorecidos, Hare Krishnas, candomblecistas, dentre outros, fazendo emergir os dilemas e os paradoxos de uma sociedade excludente através da inversão “a casa e a rua”. Também, por intermédio da privatização de praças, ruas e avenidas da cidade (colocando cercas, até mesmo cobrando entrada e beneficiando algumas empresas para comercializarem seus produtos, como cerveja, entre outros), por parte da atual gestão da prefeitura de Belo Horizonte, em uma interpretação possível mediante a antropologia de Damatta, o prefeito é acusado de tornar a “rua” pública uma extensão de seus interesses privados, de sua casa.

O bloco Praia da Estação foi construído em oposição política à atual administração da prefeitura, algo que nos chama a atenção pelo seu poder de agregar vários ativistas de lutas diversas, seja por moradia digna, melhoria do transporte público, políticas culturais mais amplas, garantia da qualidade do meio-ambiente, pela liberdade de expressão, por políticas mais inclusivas a “negros”, comunidade LGBT, mulheres, deficientes, pela garantia de direito a grupos economicamente desfavorecidos, entre outras lutas. Conferindo, assim, ao “carnaval de rua” uma construção interna que reflete o desejo dos munícipes, ou seja, por um desejo popular, politicamente de baixo para cima. Levando seus participantes a defenderem a ideia de carnaval-revolução.

Sem apoio financeiro ou institucional da prefeitura, todos os blocos arcam com as despesas de local para os ensaios, fantasias, bonecos gigantes, abadás, instrumentos musicais, trios-elétricos ou carros de som, músicos e puxadores, caminhão pipa, cartazes, faixas, confetes, fogos de artifício e lanche.

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Revista Observatório da Diversidade CulturalVolume 2 Nº1 (2015)

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Os aspectos identificados nos remetem aos conceitos defendidos por Renato Ortiz que afirma que a cultura brasileira constrói-se por intermédio da cultura brasileira mantida e transmitida por grupos comprometidos com o carnaval através da “memória coletiva”.

Em suma, neste artigo, apresentamos o “carnaval de rua” de Belo Horizonte de 2015 através de um olhar antropológico. Assim, o “carnaval de rua” desta cidade ressurge como uma nova teia de significados tecida pelos seus participantes a partir de procedimentos de recorte e colagem e de misturas de outros carnavais brasileiros, produzindo uma festa de expressão cultural híbrida. Observamos na “inversão do carnaval” a dramatização de dilemas e paradoxos sociológicos referentes a questões nacionais, perpassando o âmbito municipal, onde as expressões das culturas brasileiras são transmitidas, compartilhadas e até mesmo reinventadas por meio da “memória coletiva” dos grupos artísticos e culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CLIFFORD, James. Sobre o surrealismo etnográfico. In: CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.

DAMATTA, Roberto. A inversão do carnaval. In: Carnavais, Malandros e Heróis – Para uma sociologia do dilema Brasileiro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora Rocco LTDA, 1997.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas – 1ª ed., 13ª reimpr., Rio de Janeiro, LTC, 2008.

LAPLANTINE, François. O que é Imaginário? São Paulo, Brasiliense, 2003. (Coleção primeiros passos; 309)

MONTEIRO, Paula. Globalização, Identidade e Diferença in Novos Estudos Cebrap, novembro de 1997.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.