cicloide

3

Click here to load reader

Upload: jakson-ney

Post on 04-Aug-2015

52 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Cicloide

58 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006Experiências com a braquistócrona

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Um objeto deslizando por uma rampa inclinadaleva um certo tempo para atingir o ponto maisbaixo. Qual deve ser a forma da rampa paraque esse tempo seja mínimo? Desde os temposde Isaac Newton sabe-se que a curva de tempomínimo, a “braquistócrona”, é uma ciclóideinvertida. Nesse trabalho, descreve-se umexperimento interativo simples que ilustra essefato comparando os tempos de descida por trêsrampas, uma reta, outra na forma de umaciclóide e uma terceira seguindo uma hipérbole.O experimento pode ser feito sem dificuldadeaté em sala de aula. O tratamento teórico doproblema é discutido e o contexto histórico émencionado.

Introdução

Em Julho de 1696, na revistaActa Eruditorium, fundada emantida por Gottfried Wilhelm

Leibniz, o matemático suíço JeanBernouilli apresentou um problemaque logo despertou o interesse de seuscolegas. Tratava-se de achar qual de-veria ser a forma de uma rampa paraque uma partícula, deslizando por elaa partir do repouso e sob a ação dagravidade, gaste o menor tempo pos-sível para atingir outro ponto maisbaixo da trajetória.

Leibniz espalhou o problema en-viando-o por carta aos maiores mate-máticos da época. A solução foi rapi-damente encontrada por vários deles,inclusive o próprio Leibniz, além deIsaac Newton e os irmãos Jacques eJean Bernouilli. Todos indicaram quea curva mais rápida, ou braquistócrona(brakhisto = mais ligeiro, chronos =tempo), deveria ser uma ciclóide.

A ciclóide é uma curva muito in-teressante e já foi até chamada de Hele-na da Geometria, em alusão à famo-sa beldade que levou Tróia a seu trá-gico destino.

No século 16, vários matemáti-cos, dentre eles Galileu, estudaram aciclóide, que é a curva traçada por umponto qualquer da borda de uma rodaque rola sem deslizar por um planohorizontal (Fig. 1).

Sendo R o raio da roda, a ciclóide

Graciliano da Silveira Batista,Cleuton Freire e José EvangelistaMoreiraSeara da Ciência, Universidade Federaldo Ceará, Fortaleza

é descrita pelas equações paramétri-cas:

x = R [t - sen (t)]y = R [1 - cos(t)], (1)

ou, eliminando o parâmetro t,

. (2)

Portanto, a forma da rampa cor-respondente a uma braquistócronadeve ser um trecho da ciclóide inver-tida tendo o ponto mais alto A comtangente vertical, como mostra aFig. 2. Para qualquer outra forma derampa entre os mesmos pontos iniciale final, o tempo gasto deve ser maiordo que o tempo gasto através da ci-clóide.

Christiaan Huygens, patrono dosrelojoeiros e contemporâneo dosmatemáticos já citados, mostrou quea ciclóide também é uma tautócrona(“curva de mesmo tempo”). Isto é,partículas soltas do repouso a partirde pontos de alturas diversas (A1, A2,etc) chegam ao mesmo tempo noponto mais baixo, B, embora comvelocidades diferentes. Portanto, aciclóide ainda merece outra denomi-nação, pois é uma isócrona, já quepartículas soltas de qualquer pontooscilam em torno do ponto mais baixocom o mesmo período. Um problema

Figura 1. Traçado de uma ciclóide.Figura 2. A ciclóide invertida é uma tautó-crona.

Page 2: Cicloide

59Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 Experiências com a braquistócrona

interessante consiste em mostrar queesse período comum é dado por:

,

onde L é a “flecha” da ciclóide (Fig. 2).A demonstração formal de que a

ciclóide é a curva de tempo mínimo éum problema clássico do cálculo dasvariações e pode ser encontrado noslivros-texto de mecânica teórica [1].Historicamente, o cálculo das varia-ções foi inventado por Euler e Lagran-ge exatamente para resolver o proble-ma da tautócrona. Um problematípico de cálculo das variações carac-teriza-se pelo fato de buscar uma fun-ção (no nosso caso, a forma da ram-pa) que maximiza ou minimiza umavariável (nesse exemplo, o tempo detrajetória), levando em conta algunsvínculos (aqui, deslizamento sob aação da gravidade).

Para começar, observamos que avelocidade da partícula em um pontoqualquer da rampa é dada por:

. (3)

E, como (ds)2 = (dx)2 + (dy)2,obtemos:

. (4)

Queremos que esse tempo t sejamínimo. Observe que a variável, nocaso, é toda a curva y(x). Resolvendoesse problema com o auxílio do mé-todo de Euler e Lagrange, a solução é,como já foi dito, uma ciclóide.

É claro que as soluções fornecidaspelos pioneiros citados acima nãousavam o cálculo das variações, queainda não fora inventado. A soluçãode Jean Bernouilli, o mesmo que lan-çou o problema, tornou-se um clás-sico da literatura matemática por suaengenhosidade e por usar um resul-tado obtido anteriormente por Fermatno estudo da refração da luz.

O problema considerado por Fer-mat consistia em saber qual o cami-nho escolhido por um raio de luz en-tre dois pontos situados em meios deíndice de refração diferentes. Comonão podia deixar de ser, Fermat veri-

ficou que esse caminho era dado pelaconhecida Lei de Snell da refração:

n1 sen θ1 = n2 sen θ2. (5)

Em sua analogia com o problemada refração, Bernouilli considerou umasucessão de camadas com índices derefração decrescentes, n1 > n2 > n3,...,como visto na Fig. 3. Uma situaçãoanáloga é encontrada na explicaçãousual do fenômeno das miragens.Usando a Lei de Snell e lembrando quen = c/v, onde c e v são a velocidade daluz no vácuo e no meio transparente,respectivamente, obtemos:

. (6)

Isso deve ser válido mesmo quan-do a espessura das camadas tende azero, com variação contínua do índicede refração. Portanto, para um pe-queno trecho qualquer da trajetória,devemos ter:

.

Logo:

v2 (dL)2 = A2 (dx)2. (7)

Usando (dL)2 = (dx)2 + (dy)2,obtemos:

. (8)

No nosso caso, temos uma partí-cula que desliza sob a ação da gravi-dade. Portanto, a velocidade v em umaposição qualquer y é dada por:

. (9)

Usando esse valor de v na expres-são (8), obtemos:

. (10)

Como o lado esquerdo dessaequação deve ser positivo, devemoster:

. (11)

Esse valor corresponde ao pontomais baixo da rampa e, no caso dasmiragens, é o ponto onde a trajetóriada luz passa de descendente a ascen-dente.

Por fim, Bernouilli mostrou quea solução da Eq. (10) é exatamenteuma ciclóide. O leitor poderá, commenor trabalho, fazer o caminhoinverso e verificar que a função quedescreve a ciclóide (Eq. 1) satisfaz aequação diferencial (10).

ExperiênciaA demonstração experimental de

que a ciclóide é realmente umabraquistócrona tem os ingredientesrequeridos de um bom experimentodidático: é surpreendente, simples demontar e rápida de executar. Para usopermanente no Salão de Exposições daSeara da Ciência da UFC, montamoso equipamento visto na Fig. 4.

Consta de três rampas por ondepodem rolar pequenas esferas de açocom cerca de 1 centímetro de diâme-tro. Uma das rampas é reta, outra tema forma de uma ciclóide invertida e aterceira é uma hipérbole. Um texto co-locado ao lado do equipamentoconvida o visitante a adivinhar, antesde fazer a experiência, qual das trêsesferas cai mais ligeiro. Ele pode verque a reta é o caminho mais curto e ahipérbole é a curva mais íngreme. Vêtambém que a rampa em forma deciclóide tem uma pequena parte quefica abaixo do nível do ponto final.As esferas são colocadas nos pontosmais altos de cada rampa, seguras por

Figura 3. Trajetória de um raio de luz em um meio de índice de refração variável.

Page 3: Cicloide

60 Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006Experiências com a braquistócrona

um mecanismo simples de mola eliberadas simultaneamente por umaalavanca. A esfera que desce pela ci-clóide chega primeiro ao fim da rampae atinge uma cantoneira de alumínioem forma de L que gira ao ser atin-gida, separando a esfera mais rápidadas outras duas.

O visitante também é convidadoa soltar duas esferas de alturas dife-rentes na rampa em forma de ciclóidee comprovar que ambas chegam aomesmo tempo no ponto mais baixoda rampa, demonstrando que a ci-clóide é uma tautócrona.

O equipamento colocado no Salãode Exposições é elaborado demais parauso em sala de aula como demons-tração. Para atender a essa finalidade,fizemos uma montagem mais sim-ples, barata e portátil, vista na Fig. 5.Em uma prancha de madeira sãofixados três trilhos de alumínio, dotipo usado em molduras. Cada um é

dobrado na forma de uma das trêscurvas, reta, hipérbole e ciclóide. Aspequenas esferas são mantidas porum dispositivo de mola nos pontosmais altos das curvas e liberadas aomesmo tempo. Com o plano daprancha na vertical, o tempo de quedaé muito curto e fica difícil observarqual das esferas chega primeiro. Pode-se, então, repetir a experiência com aprancha inclinada, diluindo a acelera-ção e facilitando a observação. Essavariação possibilita que o professorchame a atenção para o fato de que oresultado independe do valor da ace-leração da gravidade. O experimento,se feito na Lua, teria o mesmo des-fecho.

Usando a expressão (4), podemoscalcular o tempo de descida da esferaem qualquer curva. No nosso equi-pamento, mostrado na Fig. 4, a alturadas rampas é de 32 cm e o compri-mento na horizontal é de 87 cm. Os

tempos teóricos de que-da para as três curvasforam obtidos inte-grando numericamentea expressão (4) para asfunções respectivas. Ostempos experimentaisforam medidos com ouso de sensores no iní-cio e no fim de cada cur-va, ligados a um cro-nômetro eletrônico.Esses valores estão lis-tados na Tabela 1. Essacomparação numéricaentre a teoria e a expe-riência é apenas ilus-

Referências[1] Herbert Goldstein, Classical Mechan-

ics (Addison-Wesley Co, Cambridge,1951).

[2] J. Supplee and F.W. Schmidt, Ameri-can J. of Physics 59, 402 (1991).

[3] M. Desaix, D. Anderson e M. Lisak,European J. of Physics 26, 857 (2005).

Tabela 1. Tempos (em segundos) de descidade uma esfera em diversas curvas.

Forma Teórico Experimentalda rampa

Reta 0,690 0,82

Hipérbole 0,650 0,74

Ciclóide 0,544 0,64

Figura 4. Rampas para demonstração da braquistócrona.

Figura 5. Prancha portátil para demonstração em sala deaula.

trativa, pois o cálculo pressupõe odeslizamento de uma partícula pun-tiforme na ausência de atrito. Na nos-sa experiência, usamos esferas rolan-tes e o atrito é inevitável. A diferençaentre a previsão teórica e a medidaexperimental, em torno de 15%, é per-feitamente justificável.

ConclusãoEmbora trate de um problema

antigo e bem conhecido [2, 3], a de-monstração experimental da braquis-tócrona ainda surpreende as pessoasque a vêem pela primeira vez. O pro-fessor pode, com facilidade, fazer essademonstração em sala de aula e cha-mar a atenção de seus estudantes paraas várias e curiosas propriedades daciclóide. Uma discussão detalhada dasolução de Jean Bernouilli remete auma interessante comparação comum problema clássico da óptica geo-métrica e seu tratamento dado porFermat.

Para alunos com gosto pela Mate-mática, o problema serve muito bempara apresentar o cálculo das varia-ções e o método de Euler-Lagrange.Por fim, deve ser salientada a impor-tância histórica do problema e a for-ma como foi solucionado pelosgrandes matemáticos do século 17,aproveitando para comentar como aforma de propor e solucionarquestões de Ciência naquela época erabastante diverso da prática nos diasatuais.