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China Wladimir Pomar 1ª edição São Paulo, 2009 Desfazendo Mitos

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China

Wladimir Pomar

1ª edição

São Paulo, 2009

Desfazendo Mitos

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Desfazendo Mitos

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Copyright © Wladimir Pomar, 2009 Copyright © Publisher Brasil, 2009Copyright © Página 13 Editora, 2009

EditorRenato Rovai

Preparação do textoValter Pomar

Capa e diagramaçãoCaco Bisol

Ilustração da capaVicente Mendonça, sobre símbolo chinês do Ano do Boi

Fotolitos, impressão e acabamentoYangraf Gráfica e Editora Ltda.

Pomar, WladimirChina: desfazendo mitos / Wladimir Pomar – São Paulo : Página 13 e Publisher Brasil, 2009. 328 p.

ISBN 978-85-85938-54-3ISBN 978-85-62508-01-1

Bibliografia

1. China – aspectos culturais 2. China – aspectos econômicos 3. China – Política 4. China – século XXI 5. Socialismo I. Título

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.

1ª edição: maio de 2009

Publisher BrasilRua Bruno Simoni, 17005424-030 – Pinheiros – São Paulo/SPTel/fax: 55 11 [email protected]

Editora Página13Associação de Estudos Página13Rua Silveira Martins, 147 – conjunto 11 CEP 01019-000 – Centro – São Paulo/SPwww.pagina13.com.br

Índices para catálogo sistemático:1. China – aspectos culturais 2. China – aspectos econômicos 3. China – Política 4. China – século XXI 5. Socialismo

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Índice

Apresentação 9

Mitos e distorçõesAlguns problemas teóricos e práticos 15A China no tatame 21 O mito e o fato do dragão 31 A China, Veja e o Brasil 35O perigo China 41Estatais em falência 49 Raízes da globalização do século 21 51

A China sob Outro OlharTrês razões para conhecer a China 57A China no ano 2000 59A China em 2001 73Leis de proteção dos trabalhadores 77Relações políticas 79Civilização espiritual 83Equilíbrio instável 89

Um pouco de históriaApenas uma sinopse 9350 anos de revolução agrária 111O caminho das reformas 119Estratégias orientativas 127Metas de longo prazo 133Políticas do século 21 141A dialética chinesa 155

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Razões do crescimento Razões do crescimento 169Atualizando a memória 173Planejamento estratégico 175A inflação chinesa 179 A China e a crise norte-americana 181Perspectivas da economia chinesa 183Crescimento e distribuição da renda 185Desenvolvimento agrícola 187

Socialismo chinêsSocialismo chinês – utopia e realidade 191Igualdade e desigualdade 195Experiências socialistas 201Desigualdades chinesas 203Problemas atuais da China 205Atuais desafios da China 207Desafios rurais 209A nova questão agrária 211O fundamento da nação 213Problemas ambientais 215Metas ambientais 217Questões energéticas 219Teorias sobre o socialismo chinês 221Teorias sobre capitalismo e socialismo 223Limites do capitalismo 225Marx em Beijing 227

A China no MundoUm pouco de história 231Política internacional da China 245Papel internacional da China 253A China e os problemas do mundo 255Ofensiva em várias frentes 257Pressões sobre o yuan 259China aumenta tarifas 261A sinuca do déficit norte-americano 263As desculpas japonesas 265

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De tudo um poucoNovas perspectivas para Taiwan 269Jogos do poder 271Sobre o Tibet 273Decisões reais ou fictícias 279

Brasil e ChinaPossibilidades Brasil-China 287China, um parceiro estratégico 293 O Brasil e a experiência chinesa 297 Ainda a experiência chinesa 299

Na falta de conclusãoAfinal, quem está em Beijing? 303

Bibliografia 321

Filmografia 323

Significado dos ideogramas 325

Sobre o autor 327

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Apresentação | 9

No final dos anos 1980, quando escrevi o Enigma chinês: capitalismo ou socialismo, a China era dada como perdida para o socialismo e fadada a ser avas-salada pelo capitalismo. No Brasil e no resto do mundo, à esquerda e à direita, a possibilidade de que o partido comunista daquele país tivesse êxito em seu programa de reformas, e conseguisse fazer a China dar um salto em seu desen-volvimento econômico e social, era considerada uma quimera.

Durante muitos anos, os poucos leitores daquele ensaio, situados à esquer-da, olhavam-no com a desconfiança dos descrentes. Os livros sobre a China, aos quais davam crédito, eram os que demonstravam, por a + b, que a Nação do Meio havia se transformado em um país de capitalismo selvagem, com mão-de-obra escrava, miséria crescente e ditadura sangrenta. O ano de 1989, com os acontecimentos de Tiananmen, pareceu dar ainda mais razão aos que prognos-ticavam não só a implantação da economia capitalista, mas também da demo-cracia liberal. Com a queda da China, estaria completo o ciclo de liquidação do socialismo. Seria apenas questão de tempo.

Entre o empresariado brasileiro, com as raras exceções que só confirmam a regra, a China ainda era aquela nebulosa, situada em outra galáxia, vivendo no passado. Sabiam que grandes empresas internacionais estavam se implantando lá, mas tinham isso como uma fatalidade da expansão do capitalismo, que em nada mudaria a configuração da China como país atrasado e exótico. O que, aliás, era também a média do pensamento do empresariado de quase todo o mundo. Afinal, a globalização, pelo menos a comandada pelo Consenso de Wa-shington, não oferecia qualquer outra opção.

A China só começou a chamar a atenção do Brasil quando, durante os anos 1990, inundou o mercado mundial e o brasileiro com mercadorias R$ 1,99. O

Apresentação

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10 | China - Desfazendo Mitos

que, para o pensamento dominante, só poderia ser explicado pela existência de trabalho escravo, de baixíssima qualificação. A China conquistou, então, o status de produtora de quinquilharias de má qualidade.

Alertas de que estava em curso, naquele país, um processo profundo de mudanças econômicas e sociais, que iriam causar impacto sobre a economia mundial, eram recebidas com ironia e sarcasmo, ao mesmo tempo em que dis-torções e mitos tinham livre trânsito, sendo publicados como verdades inabalá-veis. Consultorias ocidentais de análise de risco publicavam relatórios detalha-dos sobre uma mirabolante e acirrada disputa nos níveis centrais do poder na China, o que levaria esse país a uma possível guerra civil. Apostava-se apenas em quanto tempo isso aconteceria, destruindo a estabilidade política e social chinesa, indispensável para o sucesso das reformas.

Avaliações sobre os altos níveis dos endividamentos bancários, não quita-dos, supunham corroborar a inevitável bancarrota do sistema financeiro daquele país. Eles seriam o estopim que implodiria a economia chinesa, numa crise sem volta. Todas e todos esperavam, a qualquer momento, que a “bolha” chinesa estourasse, seja pelo lado político, seja pelo lado financeiro, apenas para ficar nas mais faladas.

Ainda em 2004, quando o presidente Lula resolveu visitar a China e es-tabelecer uma parceria estratégica com aquele país, era patético escutar as con-siderações de vários empresários e autoridades que compunham a missão pre-sidencial, ao “descobrirem” uma China que supunham inexistente. Embora já houvesse se tornado evidente a falha de todas as previsões, desde 1980, sobre o iminente afundamento ou explosão da China, aquelas considerações ainda eram movidas pelas distorções e mitos predominantes no noticiário ocidental sobre aquele país asiático.

Desde então, o colapso das avaliações catastrofistas, associado ao impres-sionante desempenho econômico, social e ambiental chinês, têm forçado o aparecimento de novas abordagens. Entre 1990 e o início do novo milênio, a China havia conseguido retirar da linha abaixo da pobreza outras 200 milhões de pessoas. No curso de apenas 25 anos, elevara do patamar de pobreza, para o patamar de classe média, cerca de 800 milhões de pessoas, criando um mercado interno sem paralelo no mundo.

Entre 2003 e 2008, a China se tornou o maior foco de atração de investi-mentos externos diretos; transformou-se na segunda maior importadora mun-dial; conquistou o direito de sediar os jogos olímpicos de 2008; seu PIB pela paridade cambial superou os três trilhões de dólares, ultrapassando a Alemanha como terceira maior potência econômica; suas reservas internacionais alcança-ram mais de 1,5 trilhão de dólares; a poupança interna passou dos 2,0 trilhões de dólares; suas exportações de equipamentos, máquinas e outros manufatura-

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Apresentação | 11

dos passaram a inundar o mundo, com preços competitivos e qualidade; e suas corporações começaram um processo intenso de internacionalização, movidas por um fundo soberano de mais de 200 bilhões de dólares.

Hoje, ao contrário de 10 anos atrás, é possível encontrar uma oferta razo-ável de obras, artigos, reportagens e artigos sobre a China. Muitos deles persis-tem na difusão de distorções e mitos tipicamente anti-chineses. Mas já existe uma gama considerável que procura entender o que está realmente se passando naquele país. Mesmo assim, durante as Olimpíadas de Beijing, um batalhão de repórteres e analistas, que desconhecem o que era a China antes de 1949, e também antes de 1980, se esmeraram em “descobrir” os pobres, o atraso, as injustiças e outros males da sociedade chinesa.

Parecendo ultra-esquerdistas e anti-capitalistas radicais, afanaram-se em ex-por as mazelas do “capitalismo” na China, e em exigir que o socialismo chinês seja perfeito e igualitário. Fingindo esquecer tudo o que antes publicaram, sobre a repressão sangrenta a qualquer movimento social, deram-se conta não só da existência de lutas camponesas, de greves operárias, de manifestações de descon-tentamento, assim como de um tratamento desses conflitos sociais totalmente diferente do tratamento ditatorial que divulgavam e continuam divulgando.

Não entendem, nem querem entender, a impossibilidade de realizar um desenvolvimento econômico e social, do porte empreendido pela China, isento de erros, desigualdades, injustiças e conflitos. Não podem, portanto, compreen-der o significado, nem as conseqüências, do 11º plano qüinqüenal do governo chinês. Apenas se espantam com o fato de haverem sido retiradas todas as cargas tributárias que ainda pesavam sobre seus 300 milhões de camponeses.

Acham miragem a meta de, até 2010, universalizar os serviços púbicos de moradia, saneamento, saúde, educação, transportes, aposentadorias e pensões para todas as áreas rurais. E não acreditam, de forma alguma, que a China con-siga dar um verdadeiro salto na proteção e no tratamento do meio ambiente. Depois, como sempre, vão se espantar com o fato da China realizar coisas que supunham irrealizáveis.

Ao lado disso, também há os que procuram explicar a atual situação chine-sa como uma comprovação das teses de Adam Smith, sobre a evolução de uma economia de mercado de tipo oriental, que estaria superando a forma capita-lista ocidental de tratar a força de trabalho e o mercado. Enxergam na crise de hegemonia do capitalismo ocidental uma possibilidade de criar uma economia global de mercado, livre das mazelas do capital, tendo a China como o epicentro dessa nova economia.

Os chineses, por seu turno, não escondem que ainda convivem com cerca de 500 milhões de pobres, que seu desenvolvimento e enriquecimento é de-sigual, e que ainda se encontram no estágio primário de construção de uma

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sociedade socialista. É verdade que eles nem sempre conseguem explicar como capitalismo e socialismo podem conviver na ambigüidade paradoxal de uma “economia de mercado” socialista, com características chinesas. Ou tornar evi-dentes todos os perigos que rondam uma experiência desse tipo, além da cor-rupção e de outros fenômenos típicos das economias de mercado, em especial da “economia de mercado” capitalista.

Tendo em consideração todos esses aspectos contraditórios, a presente co-letânea reúne textos diversos, publicados nos últimos anos, em jornais e revistas, grande parte deles no Correio da Cidadania, a respeito das polêmicas geradas pela experiência chinesa de reformas no socialismo.

O primeiro capítulo inclui vários textos sobre os mitos e distorções correntes sobre a China. O segundo reúne trabalhos que apresentam informações gerais sobre o país, e são indispensáveis para começar a conhecê-lo. No terceiro, procu-ramos introduzir um outro olhar sobre a realidade chinesa. No quarto, encontra-se um pouco da história chinesa, enquanto no quinto estão textos sobre as razões do crescimento da China.

O sexto capítulo abrange alguns trabalhos que discutem as teorias sobre o socialismo chinês, enquanto o sétimo trata da China no mundo, e o oitavo tem de tudo um pouco. O nono reúne alguns poucos textos sobre o Brasil diante das experiências chinesas, enquanto o décimo, na impossibilidade de falar de uma experiência não concluída, apresenta um texto crítico sobre o recente livro de Giovani Arrighi, a respeito da China se tornar o centro de uma versão não-capi-talista da economia de mercado, assim como uma bibliografia e uma filmografia sucintas sobre aquele país.

Os textos não estão organizados por ordem cronológica, mas dentro de um mínimo de lógica temática. Alguns deles são repetitivos, apesar de escritos em anos diferentes, pelo que desde logo nos desculpamos diante dos leitores. Infelizmente, grande parte das polêmicas sobre a China continua pendente, exigindo uma volta constante a temas que poderiam estar superados.

É provável que a realização das Olimpíadas de Beijing tenham conseguido superar alguns deles, mas está suscitando outros. Diante disso, espero que o resgate de vários textos sobre a problemática chinesa contribua, de algum modo, para um novo patamar de discussões a respeito da China, de sua trajetória e de seu futuro.

30/11/2008

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Mitos e distorções

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Mitos e Distorções 15 |

Talvez nenhum país tenha tão deturpada sua realidade pela mídia mundial quanto a China. A doutrina da propaganda americana tem transformado cada fato da vida chinesa numa versão dos pontos de vista dos Estados Unidos. Para estes, a abertura econômica chinesa representaria um retorno ao capitalismo. As empresas estatais chinesas, obsoletas, representariam o principal obstáculo à eficiência da economia chinesa. E, para que a China florescesse, teria que suspender as violações dos direitos humanos, implantar a democracia liberal e derrubar o partido comunista do poder.

Análises de risco da China, feitas por renomadas instituições, como a Political & Economic Risk Consultancy Ltd. (PERC), também se subordi-nam a esses padrões da propaganda. Em dezembro de 1994, no paper Time to brace for the transition to the post-deng era, a PERC afirmava que a China entrara “num período crucial para os investidores estrangeiros”, os riscos ele-vando-se “à medida que se torna claro que a era pós-Deng chegou”. Como demonstração, o texto sublinhava “notícias negativas envolvendo quebra de contratos de empréstimo por algumas grandes empresas chinesas”, “a incapa-cidade do governo em manter o controle da inflação” e “crescentes indícios de que a liderança do presidente Jiang Zemin está sendo contestada e que, após a morte de Deng, essa contestação pode ingressar num período de dis-puta aberta”.

Nada disso aconteceu, mas a imagem da China no Ocidente continua mar-cada pela massiva difusão de notícias e análises como essas, tão pretenciosamen-te verossímeis, que costumam ser aceitas, sem avaliação crítica, por um espectro ideológico que vai da extrema direita à extrema esquerda. Mesmo porque não é difícil descobrir problemas e distorções na China atual.

Alguns problemas teóricos e práticos

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A própria imprensa chinesa está cheia de denúncias sobre o infanticídio nas regiões rurais atrasadas, a discriminação contra as mulheres, a criminalidade, a prostituição, as condições péssimas de trabalho em fábricas, o abuso de poder de chefetes locais, os privilégios auferidos por diretores de empresas estatais, o desperdício de fundos públicos e a corrupção em órgãos dirigentes. Assim, não é preciso garimpar muito para encontrar casos que, bem trabalhados, possam parecer generalidade nacional ou política governamental.

O sistema prisional de trabalho é não só descrito como uma violação dos direitos humanos, mas também como o vilão dos preços baixos dos produtos chineses. Pouca gente raciocina sobre o fato de que somente um passe de mágica poderia transformar um milhão e trezentos mil presos no exemplo de produtivi-dade de um país cujo PIB beira a um trilhão de dólares. Mas a mídia americana martela com tanta insistência aquela versão, que ela se torna real para milhões de pessoas, inclusive algumas bem informadas.

Um exame relativamente isento da China tropeça, pois, nesse emaranhado de informações manipuladas. Entretanto, tal exame não é só um problema de ética científica, mas também uma necessidade dos dias atuais, em virtude do papel estratégico que a China tende a desempenhar nos assuntos internacionais. Análises distorcidas podem ser desmentidas pelos fatos, como devem ter experi-mentado os clientes da PERC, mas isto, por si só, não esclarece o que realmente se passa naquele país.

Nesse contexto, há questões que são pontos nevrálgicos nas discussões te-óricas sobre o socialismo e que a prática chinesa tem colocado em questão. A China pode ser considerada um país socialista? O que tem a ver o socialismo com um país que se utiliza do mercado como instrumento de determinação de preços e alocação de recursos? Pode existir uma “economia de mercado” socialis-ta com peculiaridades chinesas, como se autodenomina a China?

O mercado e o socialismo

Existe uma crítica marxista que não aceita a compatibilidade entre merca-do e socialismo1. Para ela, o mercado não pode ser superior à planificação, nem pode servir ao socialismo da mesma forma que serve ao capitalismo. Os socia-listas que supõem o mercado como mecanismo econômico ideal para induzir a inovação, ao contrário do planejamento centralizado, estariam incorrendo em erro teórico ao confundirem o planejamento centralizado dos antigos países so-cialistas do Leste Europeu, com a economia planificada prevista por Marx para a transição socialista2.

1. Todas as referências citadas neste texto pertencem ao trabalho “Crítica a la teoria de la superioridade y la neutralida-de del mercado”, de Duan Zhong Qiao, em En Defensa del Marxismo, marzo/maio 99, Ediciones Rumbos, Argentina.2. Ver Wladimir Pomar: A miragem do mercado, Ed. Scritta, 1991 e A ilusão dos inocentes, Ed. Scritta, 1995.

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Mitos e Distorções 17 |

A economia planificada prevista por Marx3 teria como pressuposto o completo desenvolvimento anterior de uma economia capitalista ou de mer-cado. As forças produtivas do capitalismo teriam atingido um nível em que já não caberiam no invólucro capitalista e só encontrariam condições para continuarem se desenvolvendo na economia planificada do socialismo. Com muita razão, ela afirma que a “economia planificada prevista por Marx não pode estabelecer-se a menos que a economia de mercado tenha se desenvol-vido suficientemente e se tornado uma trava ao desenvolvimento das forças produtivas”. Somente em tais condições de desenvolvimento, a transformação da economia capitalista de mercado conduziria à propriedade comum ou so-cial dos meios de produção, à eliminação das mercadorias e do dinheiro, e à abolição das classes e do Estado.

Marx teria afirmado, ainda, que a sociedade “não pode saltar as fases na-turais de seu desenvolvimento, nem removê-las por decreto”. A raiz do fracasso do socialismo existente na União Soviética e no Leste Europeu estaria, então, no fato de que tais países “tentaram saltar a fase de desenvolvimento completo da economia de mercado e estabelecer diretamente uma economia planificada sobre as bases do que era, ainda, em alto grau, uma economia natural”. Uma economia planificada deste tipo estaria fadada ao fracasso porque obstruiria “o desenvolvimento posterior das forças produtivas”.

Ao afirmar que esse fracasso não invalida a teoria marxista a respeito da economia planificada, essa crítica salva a teoria, mas não resolve os problemas da realidade. Se Marx previu a ocorrência da economia planificada só com a trans-formação de sociedades capitalistas desenvolvidas, mas os trabalhadores viram-se obrigados a realizar a revolução social, implantar o planejamento centralizado e a propriedade comum dos meios de produção, e tentar extinguir as classes, as mercadorias e o dinheiro, antes que aquelas premissas estivessem dadas, acaban-do por obstruir o desenvolvimento posterior das forças produtivas, o que deve-riam ter feito para evitar o fracasso? Devolvido o poder, para que os capitalistas desenvolvessem as forças produtivas e o mercado, e criassem as condições para nova revolução e para o planejamento centralizado correto?

Esta é a questão básica do fracasso do planejamento centralizado na União Soviética, no Leste Europeu, na China e em outros países socialistas. O problema real da regressão capitalista da Europa do Leste. A questão cen-tral das reformas de mercado na China, Vietnam e Cuba. E a base histórica de todas as teorias sobre o socialismo de mercado. Devem os socialistas, ha-vendo alcançado o poder, estabelecer o planejamento centralizado em países pouco desenvolvidos do ponto de vista capitalista, ou devolver o poder às an-tigas classes dominantes para o pleno desenvolvimento do capitalismo? Ou,

3. Ver Karl Marx, O Capital, Ed. Abril, 1983.

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por outro lado, completar o desenvolvimento das forças produtivas permiti-das pelas relações capitalistas, combinadas com um processo de socialização dessas relações?

É verdade que algumas teorias procuram conciliar ad eternum socialismo e mercado4. No entanto, a crítica ao socialismo de mercado não pode restringir-se a essa variante. A longo prazo (e, às vezes, a curto prazo), todos estaremos mor-tos, inclusive o mercado, mas o problema que temos que resolver é sua relação com a vida presente, em que não existem apenas países capitalistas desenvolvi-dos. Ao contrário, a globalização parece aprofundar o paradoxo de países plena-mente capitalistas com base econômica pouco desenvolvida.

Nesse sentido, a crítica ao socialismo de mercado leva em conta que Marx admitia a impossibilidade de eliminar de chofre o mercado na transição ao socialismo, um processo em que a economia planificada cresceria firmemente e a economia de mercado declinaria passo-a-passo. Por que, então, não ad-mitir um processo mais longo de convivência e conflito (é disso que se trata) entre mercado e planejamento para a antes impensável transição socialista em sociedades atrasadas?

Apesar de reconhecer que, no socialismo de mercado, os meios de produ-ção (capital) pertencem aos trabalhadores de cada empresa, essa crítica supõe que a única diferença entre o capital, sob o capitalismo, e o capital, sob o so-cialismo de mercado, residiria em que, no primeiro, se acha personificado por capitalistas individuais, enquanto no segundo por associações de trabalhadores. Estes seriam, ao mesmo tempo, produtores e proprietários.

Seriam assalariados, venderiam sua força de trabalho e produziriam mais-valia, mas esta retornaria a eles por serem também proprietários. Tratar-se-ia de uma identidade dual, na qual as relações de auto-emprego e auto-explora-ção constituiriam a forma especial com que a empresa cooperada conectaria os trabalhadores aos meios de produção e, no dizer de Marx, aboliria “a oposição entre capital e trabalho”, enquanto tal conexão existisse. O problema, para essa crítica marxista, consiste em que a produção social continuará determinada pela lei do valor como uma força natural cega, conduzindo inevitavelmente à anar-quia na produção e à crise econômica.

Assim, não faria diferença que os trabalhadores cooperados determinassem tudo relacionado à produção de sua empresa. Eles não poderiam, a priori, co-nhecer as necessidades reais de uma economia de mercado, como não passaria de ilusão supor que um governo socialista pudesse formular políticas de controle do investimento social. Um governo socialista apenas poderia intervir para mi-norar os problemas da anarquia e da crise, mas não para eliminá-los, enquanto existir a economia de mercado.

4. Ver Alec Nove, A economia do socialismo possível, Ática, 1989.

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Em tais condições, o socialismo de mercado, do mesmo modo que a planificação centralizada, seria incapaz de desenvolver as forças produtivas e construir o socialismo a partir das condições herdadas de países capitalistas atrasados. Sob esse ponto de vista, aos socialistas caberia esperar ou ajudar o capitalismo a desenvolver ao máximo suas forças produtivas, e amadurecer para o socialismo.

O socialismo de mercado chinês

No caso específico da China, diante da impossibilidade teórica exposta pela crítica ao socialismo de mercado, ela talvez devesse ter deixado seu socialismo retornar pacificamente ao capitalismo. Com a revolução cultural, ela realiza-ra as mais extremadas tentativas de planificação centralizada com participação popular massiva, mas não conseguira romper o anel de aço que a impedia de desenvolver as forças produtivas. O que fazer?

Foi no contexto de fracasso dessas tentativas que ela iniciou as reformas que a levaram a conformar-se como socialismo de mercado com características chinesas5. Diferentemente do que supõe aquela crítica, essas reformas não res-gataram o mercado apenas para a atuação das formas de propriedade pública. Foram mais longe, na medida em que, agora, os meios de produção pertencem tanto ao conjunto e a parcelas da sociedade, sob a gestão estatal ou coletiva, quanto a proprietários privados capitalistas.

No socialismo de mercado chinês, o capital acha-se personificado, tanto por associações de trabalhadores (basicamente pelas assembléias de empregados e funcionários) quanto por capitalistas individuais, ou por associações cruzadas público-públicas e público-privadas. O mercado, no qual concorrem esses dife-rentes tipos de capitais, é a base para o cálculo econômico (definição de preços), enquanto o planejamento estatal realiza a regulação macroeconômica e macro-social, procurando corrigir a permanente tendência do mercado à anarquia.

No Estado socialista chinês convivem e disputam relações de produção capitalistas e socialistas. É verdade que nem sempre a intervenção do governo elimina aquelas tendências anárquicas, causadas por milhões de empresas que concorrem cegamente e tendem a criar uma superprodução ou desequilíbrios que afetam a sociedade chinesa, a exemplo da crise de 1989.

Por outro lado, as políticas macroeconômicas chinesas têm demonstrado capacidade, desde então, para evitar que os problemas do mercado desembo-quem em crise. Elas têm detectado as distorções mais graves e evitado que o mercado se desvie dos rumos planejados. Isso ficou evidente durante a crise asiática, em que a economia de mercado da China foi não só capaz de superar

5. Ver Wladimir Pomar, O enigma chinês, Ed. Alfa Omega 1987

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os gargalos impostos a suas exportações, e continuar crescendo com base em seu próprio mercado interno, como de manter a estabilidade de sua moeda, impedindo que a crise tivesse efeitos ainda mais graves e cruéis sobre os países asiáticos abatidos por ela.

Ao prender-se mecanicamente à tese de que a economia é que determina a política (pelo menos em última instância), aquela crítica marxista não consegue explicar como as políticas macroeconômicas chinesas podem regular o mercado. Ela desconsidera a estrutura sob a qual está assentada a economia socialista de mercado da China, conformada por milhões de empresas de propriedade públi-ca, cuja espinha dorsal são as estatais.

O planejamento macroeconômico chinês só tem eficácia porque não é uma simples política orientativa. É uma política que tem como instrumento de im-plementação a propriedade dos principais meios de produção. Portanto uma parcela poderosa e preponderante da própria economia. Por isso, a China per-severa na idéia de que a reforma de suas estatais não significa privatização, mas modernização no sentido de ganharem eficiência econômica, desenvolverem suas forças produtivas e continuarem servindo como instrumentos chaves para um planejamento macroeconômico capaz de dirigir e regular o mercado.

A China, há meio século vendo-se às voltas com uma economia natural e com tentativas massivas, mas impossíveis, de construir um socialismo de planejamento centralizado, deu-se conta de que a realização do socialismo e a abolição da economia de mercado não poderão ser simultâneas. Numa fase primária, os socialistas chineses ainda terão um programa de expansão, tanto da economia de mercado, quanto da economia planejada. Somente quando as forças produtivas tiverem alcançado o nível dos países capitalistas avançados, a redução gradual da economia de mercado, e a simultânea expansão da econo-mia socialista, terão viabilidade.

Até lá, a sociedade chinesa terá que conviver e lutar, tanto com os benefí-cios da existência de uma economia e de um poder socialistas, quanto com as mazelas geradas pelo mercado. E correr os riscos daí decorrentes.

13/12/1999

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Periodicamente, dependendo dos humores e interesses de círculos influen-tes norte-americanos, a China torna-se manchete na imprensa internacional. É verdade que agora não são manchetes principais, como nos períodos em que se supôs que aquele país havia entrado num processo de intensa privatização. Mas são notícias continuadas e enfáticas.

A 20/06/98, o The Washington Post dizia que na cidade de Chongqing “operários e estudantes organizaram petições, greves, demonstrações e parali-sações do tráfego mais de cem vezes no último ano”. A 11/08, o mesmo jornal noticiou que “o montante atual de empréstimos incobráveis é muito pior que as mais pessimistas estimativas oficiais” chinesas. E, a 28/10, informou que na pro-víncia de Guangdong “perderam-se 740 mil jornadas de trabalho em virtude de greves... se bem que a situação laboral seja muito pior no Sichuan e no nordeste, segundo reconheceu um importante economista chinês”.

No dia 22/11, o The Guardian Weekly assegurava que, mesmo em Pequim, “é familiar assistir a trabalhadores enfurecidos protestando (pelas dispensas, os impostos, os calotes e a falta de moradia)”. Em 30/11, o Business Week anun-ciava que o índice de preços vinha caindo por mais de 15 meses consecutivos, sofrendo deflação brutal em alguns itens como eletrônica (40%), petroquímica (30%), e automotiva (20%), estimando-se o montante dos inventários acumu-lados e invendíveis em 500 bilhões de dólares, nada menos do que o equivalente a 55% do PIB.

Segundo o International Herald Tribune, de 13/01/99, um banqueiro oci-dental acredita que o problema dos créditos podres da economia chinesa “é um potencial risco sistêmico”. Nesse mesmo dia, ao comentar a decretação da falên-cia do Gitic, uma grande corporação industrial e financeira de Guangdong, o Le

A China no tatame

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Monde registrava que isso abriu uma crise com o capital internacional porque o governo chinês negou-se a garantir o pagamento das dívidas do Gitic aos credo-res externos, para poder pagar os 25 mil correntistas prejudicados pela falência. Em represália, os banqueiros internacionais teriam cortado o crédito às grandes empresas chinesas, provocando uma asfixia financeira que levou à falência a mais de “meia dúzia delas”.

No dia 14/01, o mesmo International Herald Tribune dizia que essa onda de quebras havia se estendido às empresas mistas radicadas em Hong Kong (as red chips), que teriam “acumulado grandes perdas (mais de 40 milhões de dóla-res) em conseqüência da devastação dos preços das ações e das propriedades”.

A 21/01, o Washington Post voltava a noticiar que “por todo o país brotam greves, manifestações e paralisações de estradas e avenidas”, havendo ocorrido mais de “10 mil atos de protesto rural” durante 1998. E no dia 22/01, o Finan-cial Times informava que o mercado de ações para os investidores estrangeiros (as ações B), após “um longo declínio terminal, está finalmente morto”, enquan-to no dia 26 noticiava que no setor petroquímico e automotivo “companhias como a GM seguem adiante com investimentos de bilhões de dólares”.

A 1º/02, o Business Week conclui que “Pequim teme que a situação saia do controle... A liderança chinesa está sentada sobre o fogo. E pode não passar muito tempo antes que o fogo se expanda. A situação é explosiva”. Como se vê, um quadro tétrico.

A versão de opostos

Ao fazer, no final de fevereiro de 1999, o inventário dessas notícias da imprensa sabidamente ligada a interesses de grandes grupos econômicos in-ternacionais, o jornal trotskista Prensa Obrera, da Argentina, chancelava como verídicas todas as informações e conclusões veiculadas. Sob o sugestivo título “China: bancarrota econômica e explosão política”, Prensa Obrera reafirmava que a “China enfrenta uma situação de deflação, superprodução, queda nos lu-cros e falências em cadeia”. “Como a asfixia financeira está se agravando, a onda de falências deve continuar”, incluindo “as empresas e os bancos estatais, (cujos) créditos incobráveis equivalem a 20% de seus ativos”.

Com base nesse diagnóstico e nas decisões do último congresso do PC da China, que teria “votado a privatização, o fechamento ou a fusão das empresas estatais deficitárias”, Prensa Obrera deduz que isso “significa a dispensa de 30 milhões de operários das empresas estatais e 40% dos funcionários públicos”. Como a “China já tem 31 milhões de desempregados urbanos (20% da força de trabalho) e 120 milhões de desocupados rurais”, é fácil deduzir que a “onda de falências levará o desemprego a níveis intoleráveis”.

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Nessas condições, “incapaz de frear a onda de mobilizações e greves”, a burocracia dirigente chinesa estaria “dando marcha a ré em seus planos” e lançando “uma duríssima campanha repressiva contra os ativistas que podem converter-se em seus organizadores e chefes”, como o sindicalista Zhang Shan-guang. Assim, conclui Prensa Obrera, de “motor do crescimento econômico e ‘paraíso’ para a acumulação capitalista mundial” a China teria se convertido “num enorme peso para a economia mundial”, com a desvalorização de sua moeda subordinando-se à necessidade de “sair do marasmo econômico e de uma crise política sem precedentes”.

No dia 24/02/99, a revista Veja decidiu seguir o tom da grande imprensa internacional (e também de Prensa Obrera), numa matéria intitulada “Um país no vermelho”. Em resumo, nela se afirma que as exportações chinesas haviam caído 10,8% em janeiro de 1999, em relação a janeiro de 1998, o de-semprego chegara a 9,3% (100 milhões de desempregados urbanos), os preços internos caíram 2,8% em janeiro de 1999 em relação a janeiro de 1998, os investimentos estrangeiros, que haviam somado USD 45 bilhões em 1998, deveriam cair para USD 30 bilhões em 1999, e a falência do GITIC “na últi-ma quarta-feira”, “o quarto estabelecimento (bancário) a fechar”, aponta para uma “quebradeira generalizada”.

Desses dados Veja concluiu que 1999 será “o pior ano da década” para a China, o que seria ainda mais grave porque os anos terminados em 9, na história chinesa, “não costumam ser muito pacíficos”, a exemplo da “ultima explosão social” de 1989 e do “conflito com o Tibet”, em 1959. Deverá haver, além da “quebradeira generalizada” no sistema financeiro, um “recuo portentoso” nos investimentos estrangeiros e uma “inevitável” desvalorização do yuan ou ren-minbi, a moeda chinesa.

Para manter a economia chinesa com “algum sinal de vida”, sentencia Veja, ela precisaria “exportar mais”. Mas isto será quase impossível porque “suas 300 mil empresas estatais (...) produzem bens que ninguém compra (...), só perdem dinheiro”, e o país “vem se trancando”. Passou a controlar “a entrada e saída de capitais”, impede que os estrangeiros comprem ações classe A “das empresas mais eficientes e lucrativas”, estimula a população a comprar produtos nacionais e desistiu de “ingressar na Organização Mundial do Comércio”.

Conclusão: ao marchar “em sentido contrário à tendência mundial de abertura dos mercados e eliminação das fronteiras econômicas”, a China enca-minha-se para “ser a bola da vez” e para “desabar no tatame”.

Veja, ao contrário da mídia internacional e de Prensa Obrera, não esconde a razão da presente campanha anti-chinesa, orquestrada principalmente pelo sistema financeiro internacional e, politicamente, pelos conservadores norte-americanos. Tudo se resume, no quadro de crise mundial do sistema, a pres-

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sionar a China a marchar no mesmo sentido da “tendência mundial de abertura de mercados e eliminação das fronteiras econômicas”. Não deixa de ser um paradoxo que a China esteja sendo acusada de entrar em bancarrota justamente por marchar contra a tendência que está quebrando países como a Indonésia, México, Argentina, Equador e Brasil.

Entretanto, se Veja e Prensa Obrera têm o direito de se engajar na campa-nha que se afina com seus interesses, não podem supor que os leitores sejam um bando de idiotas desinformados, que aceitem como legítimas conclusões baseadas em dados desencontrados e incoerentes.

Que valor têm “100 paralisações de tráfego”, “10 mil atos rurais”, “em-préstimos incobráveis piores do que as mais pessimistas estimativas oficiais”, “perda de 740 mil jornadas de trabalho”, devidas a greves, uma “situação laboral muito pior no Sichuan” e protestos de “trabalhadores enfurecidos” em Pequim? Que milagre é esse que mantém em pé e crescendo um país cujos “inventários acumulados e invendíveis” equivalem a 55% do PIB, para o Guardian Weekly, e a 20% dos ativos, para Prensa Obrera?

Afinal, quando o GITIC entrou em falência? Na “última quarta-feira”, em janeiro, ou em meados de 1998? E quantos e quais são os bancos que seguiram seu exemplo: “meia dúzia”, “quatro”? Desde quando meia dúzia pode significar “quebradeira generalizada”? E, se os banqueiros internacionais decidiram asfixiar a economia chinesa, cortando-lhe o fluxo de investimentos, porque o governo pre-feriu garantir o pagamento dos correntistas e não dos credores? E como se explica que a GM e outras grandes corporações (industriais e financeiras) continuem in-vestindo na China, estimando-se tais investimentos em USD 30 bilhões em 1999?

O que significa 10,8% de queda nas exportações chinesas em janeiro de 1999, relativas a janeiro de 1998? As exportações chinesas desabaram? Qual o significado real dessa queda no conjunto da economia? Ou isto também é um número cabalístico para causar impressão nos leitores?

De onde Prensa Obrera tirou 31 milhões de desempregados urbanos, ou 20% da força de trabalho, mais 120 milhões de desocupados rurais? Ou, de onde Veja extraiu o número de 9,3% de desempregados, sendo 100 milhões de desempregados urbanos?

A China possui cerca de 700 milhões de pessoas economicamente ativas, das quais 180 milhões são trabalhadores urbanos, 380 milhões são camponeses e 140 milhões são trabalhadores de empresas rurais, aí incluídos os 30 milhões de trabalhadores autônomos nas cidades e povoados. Os 31 milhões de desem-pregados urbanos de Prensa Obrera representariam 17% da PEA urbana e 4,4% da força de trabalho total, enquanto seus 120 milhões de desocupados rurais representariam 23% de toda a PEA rural, 31% da força de trabalho agrícola e 85% da força de trabalho industrial rural.

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Os 9,3% de Veja, considerando toda a população ativa, seriam 65 milhões de trabalhadores. Como isto bate com 100 milhões de desempregados urbanos, ou seja, 14,2% da força de trabalho total, e 66% da força de trabalho urbano? Em qual número acreditar?

A China está mesmo em deflação? É isso que Veja quer dizer quando apon-ta queda de 2,8% nos preços em janeiro de 1999, em relação a janeiro de 1998? Qual o perigo real dessa deflação? Além disso, seria útil explicar aos leitores como empresas que produzem mercadorias que “ninguém compra” e “só dão prejuízo” possuem ações tipo A, “mais lucrativas e rentáveis”, que capitais estrangeiros gostariam de comprar? Transcrição apressada de informações mal verificadas?

Falando sério

Em certo sentido, 1999 será realmente “o pior ano da década” para a China. Entre 1991 e 1998, seu PIB cresceu a uma taxa média anual de 11% e, em 1999, ficará em 7%. Nesse mesmo período, as exportações cresceram a uma média de 17,3% ao ano, enquanto o crescimento de 1999 não deve ser superior a 5%. Os investimentos estrangeiros mantiveram uma média de 28 bilhões de dólares anuais entre 1991 e 1998, devendo conservar esse patamar em 1999. O desemprego, que era de 2% até o início dos anos 1990, deve chegar a 4% ou 5% da PEA em 1999, cerca de 40 milhões de trabalhadores em valores absolutos.

Deverá haver falências, fusões e privatizações de empresas estatais e coletivas deficitárias. Mas isto também deverá ocorrer com empresas privadas nacionais e estrangeiras, cujo funcionamento foi permitido a partir de 1978. Aliás, para quem não sabe, 300 mil empresas estrangeiras instalaram-se na China (atenção Veja: 300 mil são somente as empresas estrangeiras; as empresas estatais devem somar umas 6 milhões, de um total de mais de 10 milhões de médias e grandes empresas existentes no país). Daquelas 300 mil, cerca de 50 mil fecharam as portas. O GITIC é um caso, já conhecido desde meados de 1998, havendo outros estabelecimentos financeiros e industriais em processo de liquidação.

Também tem havido manifestações, greves e outros atos de camponeses, populações rurais e trabalhadores urbanos por diferentes reivindicações, embora em termos globais seus números sejam desprezíveis se comparados ao volume da população chinesa, de sua força de trabalho, e ao que ocorre em outros países do mundo, bem menores. É ridículo, num país das dimensões da China, falar em “quebradeira generalizada”, “falências em cadeia”, “recuo portentoso”, “explosão política” e “campanha repressiva”, e citar apenas 100 paralisações de tráfego em 3 ou 4 cidades, 10 mil atos rurais (de quantas pessoas cada?), a quebra de “qua-tro bancos” ou “meia-dúzia” de empresas, e a sentença contra um “sindicalista”.

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O “pior ano da década” para a China seria uma maravilha, ou “o melhor ano da década” para o Brasil: crescimento do PIB de 7%, crescimento nas exportações de 5%, superávit na balança comercial de 22 bilhões de dólares, reservas com base nos superávits comerciais de 145 bilhões de dólares, dívida externa de 130 bilhões do dólares, investimentos estrangeiros de 30 bilhões de dólares, inflação anual perto de zero, déficit fiscal de 1,7% do PIB, taxas de juros anuais de 9%.

A China continua sendo um dos poucos países do mundo a navegar con-tra a corrente recessiva, predominante nos países em desenvolvimento e atra-sados e, em certa medida, nos próprios países desenvolvidos. Apesar disso, a crise mundial, que se reflete no comércio internacional, e portanto nas expor-tações, tem um impacto negativo na economia da China, impondo-lhe uma ruptura no ritmo de crescimento e nas estratégias até então seguidas. Se os administradores chineses não enfrentarem esses fatores e a difícil conjuntura criada para 1999, é possível que as polarizações se agravem e ocorra algum tipo de desestabilização política.

Um cenário complexo

As estratégias de crescimento da China tinham por base três vertentes principais:

a) aproveitar sua experiência e sua base agrícola para garantir a auto-sufi-ciência alimentar e tornar o campo chinês um componente importante de seu mercado interno;

b) aproveitar suas indústrias intensivas em mão-de-obra, em grande parte localizadas nas áreas rurais, para atender ao mercado interno rural e urbano e ao mercado internacional de mercadorias, cuja produção fora abandonada pelos países desenvolvidos e pelos países em desenvolvimento da Ásia e da América Latina, que haviam entrado num processo de reestruturação produtiva baseada exclusivamente em altas tecnologias;

c) absorver capitais externos para desenvolver suas indústrias de alta tecno-logia e sua infra-estrutura, de modo a capacitar-se, paulatinamente, para enfren-tar com vantagens o mercado internacional desses produtos.

Baseada nessas estratégias, a China pode incrementar suas exportações a al-tas taxas. Seus produtos entravam no vácuo deixado pelas empresas dos demais países, que haviam entrado em processo de reestruturação. Os tigres asiáticos, por exemplo, haviam reajustado suas indústrias para produzir vários tipos de periféricos eletrônicos, como componentes, micro-circuitos, disquetes, impres-soras e monitores, cuja tecnologia em geral encontrava-se abaixo do nível verda-deiramente avançado do setor informático. Com isso, essas indústrias tornaram-

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se rapidamente obsoletas, levando à superprodução e à queda dos preços. Isto resultou na crise que os tigres asiáticos enfrentaram e continuam enfrentando.

Mais da metade das exportações baseadas em produtos de consumo cor-rente, de baixo preço, realizadas pela China, dirigem-se para os países desen-volvidos. Por isso, elas apresentaram um crescimento razoável e mantêm certa estabilidade, porque o consumo desses produtos, mesmo no período de crises de contração, não se reduz muito significativamente nos países cuja renda per capita gira em torno de USD 20 mil.

Entretanto, mesmo que não houvesse ocorrido a crise financeira, nem as mudanças de sentido contracionista, introduzidas no mercado mundial, a Chi-na não teria conseguido manter suas taxas elevadas de exportações por muito mais tempo. Elas já tendiam para um patamar estável, com base nos produtos de consumo de uso corrente. Para obter crescimentos maiores seria necessário que passasse a disputar também os mercados de alta tecnologia, onde só havia alcançado um desenvolvimento consistente em algumas áreas.

Não é por outro motivo que, desde 1996, a China passara a projetar um crescimento anual de 8% do PIB, bem inferior ao nível de 1992 a 1996. Isto tinha em conta tanto as limitações do mercado internacional, quanto as tensões internas que um crescimento de ritmo elevado causava, seja no fornecimento de matérias primas e energia, seja nos sistemas de transporte. A crise interna-cional só veio introduzir mais um elemento perturbador nesse processo. A ma-nutenção da taxa de câmbio do renminbi, por exemplo, afetou ainda mais as exportações chinesas, enquanto tal manutenção, por sua vez, é pressionada pelas incertezas do fluxo de capitais internacionais e pelo desempenho da economia norte-americana.

Se os capitais estrangeiros reduzirem muito significativamente seus investi-mentos na China, isto realmente pode enfraquecer a posição da moeda chinesa, apesar das sólidas reservas internacionais que tem em caixa. Se a economia nor-te-americana declinar e o dólar se desvalorizar, causando uma saída massiva de capitais dos Estados Unidos e uma crise econômica naquele país, isso sem dúvi-da afetará todo o mundo, e a China não estará isenta de sofrer suas conseqüên-cias. Numa situação dessas, quase certamente o yuan teria que ser valorizado.

Além disso, há questões internas nas reformas chinesas, que também estão sendo afetadas negativamente pela crise internacional e pela queda no ritmo de crescimento das exportações e do próprio PIB. O desemprego é certamente o mais sério deles, embora nem de longe os números desencontrados da imprensa internacional reflitam a realidade. De qualquer modo, não é uma boa sensação conviver com 20, 30 ou 40 milhões de desempregados, mesmo que isto seja uma taxa baixa para os padrões de desemprego internacional e represente so-mente 3%, 4% ou 5% da população economicamente ativa do país.

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O rápido desenvolvimento científico e tecnológico da agricultura chinesa, a reestruturação das empresas estatais no sentido de alcançarem maior produti-vidade e rentabilidade, o enxugamento da máquina estatal e a transferência de grandes contingentes de servidores públicos para os setores produtivos e comer-ciais, tudo isso pressiona os empregos, tende a elevar as taxas de desemprego e aumentar as tensões sociais.

Num quadro como esse, se a melhoria do padrão de vida da população é o objetivo central do crescimento, suas estratégias precisam ser revistas e adequa-das para fazer frente às pressões e aos fatores que incidem negativamente sobre as antigas estratégias. É isto que os administradores chineses estão perseguindo desde o ano passado.

Estratégias para a crise

O mercado interno passou a ser o alvo principal da China, para enfrentar a crise mundial, e distensionar os problemas que tal crise está causando a seus planos de desenvolvimento econômico e social. Tendo alcançado uma renda per capita de USD 733 anuais em 1997, a população chinesa representa um enorme mercado interno, com um poder aquisitivo que tem crescido a uma taxa média de mais de 5% ao ano, nos últimos 20 anos.

O consumo individual, porém, embora também tenha se incrementado, não acompanhou as taxas de crescimento produtivo. A oferta geral excede a demanda, enquanto os depósitos de poupança individual aumentaram constan-temente, apesar das reduções das taxas de juros (somente em 1998 ocorreram três reduções). O crescimento da poupança individual, cujo montante alcançou a cifra de 6 trilhões de yuans (cerca de 750 bilhões de dólares) em 1998, se deve em grande medida à perspectiva da população em construir novas moradias e planejar seu uso em planos de educação, saúde e pensões.

Os fatores negativos do alto ritmo de crescimento, manifestados nas polari-zações da distribuição de renda, nos baixos resultados econômicos de uma série de empresas geridas pelos próprios trabalhadores, e no aumento do número de desempregados, funcionaram como elementos de contenção do consumo e di-recionamento do maior poder aquisitivo para um entesouramento de garantia.

Assim, embora um crescimento de 10% na taxa de consumo individual dos chineses seja plenamente possível, e possibilite ao país manter a taxa de crescimento econômico entre 7% e 8%, para realizar esse redirecionamento es-tratégico será preciso colocar em execução uma série de medidas que eliminem as preocupações que deprimem o desejo de consumir da população chinesa, satisfazendo suas demandas psicológicas e materiais de forma ainda mais consis-tente do que nos anos anteriores.

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A adoção de medidas fiscais que estimulem o consumo é a primeira delas, mas não a única, nem a de efeito permanente. Mais importantes são a transpa-rência das reformas estruturais, demonstrando os benefícios de curto, médio e longo prazos que elas trarão para o país e para o conjunto da população, e a pas-sagem gradual da promoção do consumo, por meios financeiros, à promoção através do incremento ainda maior da renda da população.

Os aspectos negativos surgidos no processo de crescimento, principalmen-te aqueles que causam polarizações e desconfortos à população, como o desem-prego, devem ser atacados pronta e eficazmente pelos diversos níveis da admi-nistração pública. Neste sentido jogam papel fundamental a ampliação da escala dos programas de reemprego e investimento, e o reajustamento da distribuição da renda nacional, através da elevação dos salários urbanos e dos complementos salariais, da agilização dos programas de erradicação total da pobreza até o ano 2000, do estabelecimento de um sistema completo de seguridade social, e da intensificação do sistema de moradias.

Durante 1998, o governo chinês investiu 100 bilhões de yuans nessas me-didas e planeja investir 200 bilhões em 1999, o que causará um déficit fiscal de 1,7% do PIB. A maior parte desses investimentos está voltada para obras de infra-estrutura, que permitam à China atualizar e reajustar sua estrutura in-dustrial, potencializar sua qualidade econômica, e recuperar o débito fiscal em prazo relativamente curto.

Essas medidas, apesar do que dizem Veja e outras publicações, permitiram à China um crescimento na produção industrial, em janeiro e fevereiro de 1999, de 10,6% acima da produção obtida nos mesmos meses de 1998. Apesar da de-flação de vários produtos, os preços se mantêm estáveis e a inflação permanece levemente superior a zero. Estimativas da UNCTAD apontam para o cresci-mento da China em 7%, em 1999, contrastando com suas previsões de expan-são média de 1% a 2,2% para o resto do mundo, e de menos 4% para o Brasil.

Assim, se é possível que, em 1999, as exportações chinesas diminuam o ritmo de seu crescimento, que os investimentos estrangeiros sejam somente de 30 bilhões de dólares, que diversas empresas estatais e privadas quebrem em virtude da reforma econômica e empresarial, que bancos estrangeiros chiem porque o governo garante somente o direito dos correntistas, no caso de em-préstimos aplicados em empresas pouco seguras, dificilmente o cenário é de bancarrota e explosão.

A China certamente continuará às voltas com muitos problemas e dificul-dades, o maior dos quais parece ser o do emprego. Não é uma tarefa fácil elevar a produtividade e, ao mesmo tempo, garantir 12 a 14 milhões de novos pos-tos de trabalho, para os jovens que têm acesso ao mercado de trabalho, a cada ano. Mais cedo do que pareciam supor, os administradores chineses precisarão

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mesmo acelerar ainda mais a redução das jornadas de trabalho (já em 40 horas semanais) e criar sistemas completos de seguridade financeira e de reciclagem profissional. Só assim poderão garantir que os trabalhadores excedentes con-servem sua renda básica digna, elevem sua múltipla capacidade profissional, e possam participar de novos ciclos ou rodízios de trabalho produtivo.

Embora a China ainda possa, durante algum tempo, realizar um cresci-mento estável com a promoção simultânea de investimento e consumo, altas e baixas tecnologias, capital intensivo e trabalho intensivo, evitando assim um crescimento explosivo do desemprego, e fraturas incuráveis nas taxas de con-sumo, terá que levar em conta que suas tendências mais importantes, a médio prazo, são as altas tecnologias e as empresas de capital intensivo. Ou seja, ten-dências que elevam a produtividade, poupam mão-de-obra, reduzem o valor dos produtos e o lucro médio das empresas.

Nessas condições, terá que tornar, desde já, seus programas de seguridade e reemprego em programas que mudem radicalmente a própria natureza do de-semprego. O desemprego deve deixar de ter a conotação destrutiva do presente, e passar a constituir um momento de readequação educacional, tecnológica, científica e cultural, e de rodízio nos trabalhos produtivos e administrativos.

Se alguém quer saber realmente para onde vai a China, talvez devesse acom-panhar mais de perto como ela resolve a curto, médio e longo prazos, além dos problemas de crescimento do PIB, taxas de exportação e importação, reservas cambiais, taxas de juros e outros indicadores macroeconômicos, aqueles proble-mas relacionados com a redistribuição da renda e com o desemprego.

Ou seja, como ela deixa de ter qualquer parcela de sua população vivendo abaixo da linha de pobreza, consegue materializar efetivamente o enriquecimen-to social em ondas, e evolui do antigo sistema de pleno emprego e produtividade baixa, em constante queda, para um sistema de alta e crescente produtividade, emprego necessário, e vida digna para aqueles que se tornaram excedentes do processo produtivo.

07/03/1999

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Desde 1978, quando iniciou os reajustes na agricultura, devolvendo à eco-nomia familiar o papel preponderante, e abriu-se ao exterior, permitindo investi-mentos estrangeiros, a China transformou-se em mito neoliberal para o Ocidente.

É isto que permite a qualquer um descrever como privatização ou programa neoliberal a reforma do Estado e das empresas estatais chinesas. A atual extinção de ministérios, redução da folha de pagamento do funcionalismo, reforçamento financeiro dos bancos e reforma das empresas estatais, incluindo a participação privada em 3 mil delas, seria a prova provada do pragmatismo chinês, da sua assimilação dos ideais neoliberais e da globalização.

Toda esta mitificação é usada, no Brasil, para justificar o desmonte do Esta-do, o arrocho salarial e as demissões do funcionalismo, a utilização de dinheiro público no salvamento de bancos podres e a venda indiscriminada das estatais. Se para os comunistas chineses isto é o certo, por que os fundamentalistas na-tivos não reconhecem que o mundo mudou e que a globalização não é uma alternativa ideológica a combater?

Mas, além do mito há o fato. E, embora alguns prefiram o mito, é pelo menos de bom senso que se conheça o fato de que a extinção de ministérios na China, que vem sendo debatida há vários anos, não significa seu desmonte, mas a transformação deles em corporações estatais, com autonomia econômica e financeira para atuar com agilidade no mercado.

A transformação, desde 1984, de órgãos governamentais em empresas ou corporações estatais com autonomia, representa um dos aspectos mais impor-tantes da reforma do Estado. Em outras palavras, o que a China tem feito é tornar geradores de receitas e impostos os setores produtivos, científicos e tec-nológicos de sua máquina estatal. Só que vem fazendo isto de forma paulatina,

O mito e o fato do dragão

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partindo do mais simples para o mais complexo. A atual extinção de ministérios certamente não será a última.

O mesmo ocorre com a redução da folha de pagamento do funcionalis-mo. Ela está relacionada, por um lado, com a transformação dos órgãos de governo em empresas e, por outro, com a re-alocação de mão-de-obra para as atividades produtivas, comerciais ou de serviços. O que está relacionado com a política de emprego.

A China combina o desenvolvimento tecnológico e a elevação da produ-tividade (que descartam mão-de-obra) com a manutenção das tecnologias tra-dicionais, que absorvam força de trabalho. Além disso, seu crescimento econô-mico permite incorporar ao mercado de trabalho a maior parte dos 14 milhões (atenção, não é 1,4 milhão!) de jovens que afluem anualmente à PEA. Não menos importantes são os sistemas de seguro desemprego e de agências de re-alocação da força de trabalho, que têm mantido as taxas de desemprego chinesas em torno de 3% da PEA.

Também não há qualquer semelhança, entre a China e o Brasil, no caso do reforçamento financeiro dos bancos. Na China, trata-se de bancos estatais que, do mesmo modo que todas as demais empresas estatais, estão em processo de reforma e revigoramento desde 1984.

Lá, as estatais são o elemento estratégico fundamental de todo o processo de reforma econômica, o setor orientador da economia, e que permite ao go-verno realizar com segurança seu planejamento macroeconômico. Atualmente, 60% das empresas estatais chinesas já são eficientes e rentáveis. Das 40% restan-tes, uma parte está se tornando eficiente e outra deve fundir-se às eficientes ou declarar falência e ser desativada.

O que a China tornou passado, é a existência de um só tipo de propriedade, o monopólio do mercado e o controle e planejamento microeconômico estatal. Os setores estatal e cooperativo são e deverão continuar sendo predominantes, mas a propriedade privada, nacional e estrangeira, e a propriedade mista, se expandiram bastante e atuam conforme a legislação e protegidas por ela. Em virtude do estágio de desenvolvimento econômico chinês, a combinação des-ses diversos tipos de propriedade possui um papel histórico positivo. Por outro lado, todas competem no mercado chinês sem privilégios, e o planejamento é estritamente macroeconômico.

Assim, num universo de cerca de 10 milhões de empresas, existem hoje bem mais de 3 mil empresas com participação privada, e este número deve cres-cer mais. Mas, o que isto tem a ver com neoliberalismo ? E, mais precisamente, com a alienação das estatais e o sucateamento da indústria nacional do Brasil?

Se o mito neoliberal sobre o dragão chinês distorce o fato, isto não significa que as experiências chinesas de reforma sejam inúteis para o Brasil. Fazer crescer

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um país de 1,2 bilhão de habitantes, a taxas médias de 9-10% ªª, com estabili-dade monetária, altas taxas de emprego, formação de um mercado interno de massas, elevação constante da produtividade e outros indicadores positivos, já seria por si só um fato a estudar. Por outro lado, aproveitar-se pragmaticamente da globalização, desde que subordinada a seus interesses soberanos, também não é algo desprezível.

Mas, neste caso, quem deveria mudar seriam nossos fundamentalistas neo-liberais.

24/01/1999

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A revista Veja notabilizou-se, entre outras coisas, por atacar a China e suas reformas. A cada edição era possível encontrar sempre alguma nota, matéria ou artigo em que a China estaria para ruir, em que seus êxitos econômicos não passa-riam de mentiras, em que a miséria estaria se alastrando, em que seu governo seria uma ditadura “sanguinária”, e por aí afora. A revista Veja jamais deixou por menos.

Assim, era o que se esperava quando, na edição de 9/08/2006, tendo por capa um dragão vermelho, com suas garras sobre o globo terrestre, Veja dedicou à China quase 100 páginas, resultado do trabalho da equipe que enviara para “ver como os chineses estão construindo seu império global”. Por um desses mistérios que a razão desconhece, a ditadura que Veja vivia denunciando, por não permitir acesso a jornalistas estrangeiros, lhe abriu as portas e deixou sua equipe perambular pelo país por quase um mês.

Clichês e desinformações

Os textos repisam, sem criatividade, o clichê de um país, Estado e “parti-do comunista onipresente” corruptos. O guangxi significaria, necessariamente, “relações com algum filiado” ou burocrata governamental “para conseguir faci-lidades”. O que passaria pela “troca de favores” e “por corrupção”, “entranhada no país”. Veja não explica como o “foco da mais deslavada corrupção” pode ter, ao mesmo tempo, uma fiscalização “inclemente que manda prender ou fuzilar corruptos”. Seria demais pedir a ela que enxergasse na abertura ao capitalismo a fonte principal da corrupção.

As matérias também não fazem concessões ao Partido Comunista, por ha-ver recriado “as diferenças de classes”, não ligar para as “contradições” que tais diferenças geram, e ser o “promotor chefe do capitalismo-sem-democracia”. Ou

A China, Veja e o Brasil

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seja, Veja ataca o PC da China pela “esquerda”, chegando a fazer troça: “Quem é que tem nome de partido comunista, métodos de partido comunista, máquina de partido comunista, mas não é partido comunista? Claro, o Partido Comu-nista da China (PCCh)”.

Veja também caçoa dos comunistas chineses por acreditarem no socialismo, uma teoria que, segundo ela, “Karl Marx lançou a mais de um século atrás, hoje enterrada na noite dos tempos”. Nessa crença socialista residiria o fato da China, “apesar de toda a exuberância”, enviar “sinais contraditórios ao mundo”, como “ameaça”, como “uma bolha prestes a estourar”, ou ainda pelo “paradoxo de ter crescente grau de liberdade econômica debaixo do tacão de uma ditadura”.

Mao Zedong, por seu turno, seria admirador de Qin Xihuangdi, o pri-meiro imperador chinês, que teria proibido “conversas filosóficas” e mandado “enterrar vivos 460 intelectuais”. Esse é um tipo de desinformação comum entre os que “descobrem a China”, tomam a parte pelo todo, e pensam conhecer toda a sua história e sua vida numa viagem de um mês. Assim, Veja confunde livros que enalteciam os feitos feudais com “conversas filosóficas”, e senhores feudais com “intelectuais”, numa forma canhestra de insinuar semelhança entre o im-perador Qin e o fundador da República Popular da China.

Outro exemplo desse tipo de desinformação é a idéia de que, na China “sobram estepes e montanhas”, onde o “suplício de arar a terra” estaria “a cargo das minorias nacionais (55 grupos, num total de 108 milhões de pessoas, que ocupam 64% do inculto e belo território chinês)”. Na realidade, essas minorias não são as únicas que vivem nos 64% do território central e ocidental da China. Além disso, tal território não é totalmente inculto. E muitas daquelas etnias vivem no sudoeste e sul do país. Todas elas gozam de vários privilégios, seja por haverem sido oprimidas no passado, seja por não terem as mesmas obrigações legais da maioria Han, a exemplo da política de filho único.

Ainda outro exemplo. Ao conhecer uma região chinesa, na qual constatou que a “pobreza milenar continua”, e “a modernidade esvaziou as aldeias, trouxe poluição e disputas por terra”, a equipe concluiu que isso ocorre em todo o cam-po da China e que “seis em cada dez chineses” não estariam “a bordo do expresso do futuro”, a pobreza dominaria “a planície aluvial e as cadeias de montanhas”, e os camponeses seriam “cidadãos de segunda classe deliberadamente mantidos assim pelo governo, de modo a controlá-los melhor”.

Embora fosse lógico supor que camponeses sejam melhor controlados por condições de vida mais dignas, Veja credita a publicidade sobre os “87 mil dis-túrbios públicos” de 2005, não à liberdade de informação, mas a um regime “obcecado por estatísticas”. Desconheceu que os 800 ou 750 milhões de ha-bitantes rurais não são todos camponeses, e que as zonas rurais possuem cerca de 22 milhões de empresas industriais, comerciais e de serviços, que empregam mais de 140 milhões de trabalhadores não-agrícolas.

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Essa industrialização rural tem sido fator importante para a modernização do campo chinês. Há milhares de aldeias e povoados em que camponeses e trabalhadores não-agrícolas são prósperos. Bastaria viajar pelas áreas rurais da foz do Iangtsé para conhecer alguns deles. Talvez, com isso, Veja publicasse que a pobreza milenar do campo chinês havia sido extirpada, e que os camponeses haviam se tornado cidadãos de primeira classe. O que constituiria o mesmo tipo de generalização errônea anterior, ao tomar a parte como o todo. Da mesma for-ma que existem zonas rurais prósperas, também continuam a existir zonas rurais pobres e atrasadas. A tendência, porém, é transformar as pobres em prósperas.

Além disso, a modernização tem criado disparidade entre as rendas urbanas e as rurais, e levado ao avanço dos espaços urbanos sobre os espaços rurais. Isso tem causado diferentes conflitos, conforme as estatísticas e os jornais chineses. Não por acaso, o 11º Plano Qüinqüenal tem como principal meta realizar uma nova e profunda transformação no campo chinês. Para começo de conversa, vai eliminar todos os impostos que gravam os camponeses, num prazo de cinco anos. Se Veja não tivesse tanto horror a planos estatais, e reconhecesse que a maior parte dos avanços chineses se deve a seu planejamento macroeconômico e social, talvez pudesse ter evitado alguns erros primários de avaliação.

Apesar de tudo, o troféu das desinformações nessa reportagem sobre a Chi-na ficou por conta da descoberta de que “antes de procurar emprego, até 60% das universitárias fazem plástica para ocidentalizar a aparência”. Só quem não conhece razoavelmente a China, e não tenha superado as dificuldades de co-municação entre línguas tão díspares, pode ter ido com tanto afã ao pote do exotismo, deixando de checar informação tão disparatada.

O espantoso em Veja

Veja não perdeu velhos preconceitos ideológicos e políticos. Mas é espan-toso, em sua reportagem, que pela primeira vez em sua relação tão conflituo-sa com a realidade da China, tenha transmitido com certa fidelidade aspectos importantes da vida chinesa, embora sempre dando uma no cravo, outra na ferradura, é lógico. Afinal, ninguém é de ferro.

É forte a fotografia que retrata a brutalidade da decapitação de chineses, na revolta Boxer, em 1900. No entanto, só estão em tela os soldados japoneses, embora estes tenham sido apenas um dos oito exércitos estrangeiros que parti-ciparam do massacre, todos os demais sendo brancos europeus e norte-america-nos. Pode ser que Veja não haja encontrado nenhuma outra foto, com soldados ingleses, franceses, alemães, russos, holandeses, austríacos ou norte-americanos, apreciando corpos degolados. Mas fica o registro.

Veja reconhece que a China “copia tudo o que deu certo no Ocidente e investe na formação de um exército de cientistas”, consciente de que a ciência e

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a tecnologia desempenham papel fundamental no desenvolvimento econômico e social. Mas não deixa de acrescentar, como se fossem condições para o desen-volvimento científico, que “ninguém quer ouvir falar em Marx” e só pensa “em ganhar dinheiro”.

Ao admitir que “o avanço da China” criou o grande paradoxo da econo-mia mundial ser “dependente dela para continuar pujante”, Veja alerta que as conseqüências disso “poderão ser fatais para o meio ambiente”. Chega a ponderar o esforço para a descoberta de “novas fontes de energia” e a “troca de matriz energética”, mas ignora o que está sendo feito para reduzir a emissão de gases poluentes (segundo a ONU, a China está em primeiro lugar nessa redução), reflorestar solos áridos e desérticos, e proteger os mananciais. No fundo, deixa implícito que a pujança chinesa pode levar a humanidade a um desastre ambiental.

Veja reconhece que empresas brasileiras, a exemplo do restaurante Alame-da, estão tendo sucesso, ao entenderem as “oportunidades fantásticas” e abrirem fábricas na China. Na sua lista podemos, agora, incluir a Embraer, com a en-comenda bilionária de 100 aviões, dos quais 50 serão fabricados em Harbin, e 50 em São José dos Campos. No entanto, sem entender a cultura chinesa, Veja não só faz uma ironia grosseira e dispensável, ao chamar a China de “ex-país de Mao”, como confunde a “paciência”, para aprender a ganhar dinheiro, com a existência de “dificuldades iniciais” relacionadas com “mudança das regras no meio do jogo, leis que brotam do nada, exigências que surgem de repente”.

A China possui uma das mais avançadas legislações econômicas da atua-lidade. Legislação que se encontra em constante reformulação, no sentido de facilitar a atração de capitais e criar ambiente favorável para os investimentos produtivos e o desenvolvimento dos negócios. Se não fosse assim, a China não teria se tornado o primeiro país do mundo na atração de investimentos diretos estrangeiros, superando os EUA desde 2003, nem haveria a constatação de Veja sobre as “oportunidades fantásticas”.

Por outro lado, a cultura chinesa de negócios, que inclui empresários e autoridades, exige um conhecimento mais geral das partes e negociações de-talhadas sobre os projetos, que transcendem os encaminhamentos formais ou burocráticos. É isso que se transforma naquilo que Veja chamou de “mantra”, para estrangeiros desinformados que tentam fazer negócios no país. Certamente a equipe não teve tempo para verificar do que se tratava, e preferiu repetir os clichês sobre regras, leis e exigências que “brotam do nada”.

Veja também constatou que o mundo se encontra diante da “economia mais turbinada da história”. Mas, confunde isso com “uma explosão capitalista sem precedentes”, comandada por um aberrante “sistema político comunista”, o que cercaria a humanidade “de ansiedade, alto risco ou previsões catastrofis-tas”. Assim, sem entender o que realmente se passa na China, e mantendo seus

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preconceitos em relação a ela, não deixa de ser espantoso que Veja tenha visto aspectos positivos em seu desenvolvimento, e que o conjunto das matérias de sua reportagem especial apresente um panorama favorável àquele país.

Para ser franco, bastaria um parágrafo, de tudo que foi publicado nessa re-portagem (ignoro se passou desapercebido pela editoria), para refletir a realidade chinesa: “A prosperidade é impressionante, as reformas avançam e os chineses têm o principal para melhorar mais ainda: a confiança de que o futuro pertence a eles. Uma pesquisa global confirma: os chineses são o povo mais otimista do mundo no momento. Nada menos do que 81% estão satisfeitos com os rumos do país”. Se isso for capitalismo, é um capitalismo diferente de todos os outros, e um case para estudos despidos de preconceitos.

O que serve para o Brasil

As confusões a respeito da China não são, porém, privilégio de Veja e das correntes ideológicas e políticas de direita. Setores da esquerda ainda torcem o nariz para a experiência chinesa e não são capazes de tirar lições úteis do que ocorre nesse país. Mesmo os que admitem que o Brasil deveria adotar algumas das políticas praticadas na China, como juros baixos e taxa de câmbio com-petitiva, logo se apressam a compensar essa “ousadia” com a negação do que chamam de “outras vantagens comparativas”, como regime autoritário, ausência de liberdade e autonomia sindical, sistemas de proteção social modestos e desre-gulamentação das relações de trabalho.

Se o modesto desempenho econômico do Brasil, e os resultados espetacu-lares da China, têm explicação nas políticas econômicas, não há porque ficar esconjurando outras “vantagens comparativas”. Os EUA, mesmo não sendo considerados um regime político autoritário, possuem várias daquelas “vanta-gens comparativas” e, mesmo assim, não são elas que estão influenciando seu desempenho econômico sofrível.

O fato concreto é que a China tira partido da globalização e aproveita o co-mércio internacional para expandir suas exportações. Mantém sua moeda rela-tivamente desvalorizada, usando-a como instrumento de política industrial e de compensação de defasagens tecnológicas. E prioriza a atração de investimentos produtivos, que expandam a capacidade produtiva.

Transformou-se em grande plataforma de exportação, acumulou grandes reservas internacionais, e se preveniu contra as crises financeiras globais. Pratica taxas de juros baixas e realiza grandes investimentos em educação e ciência e tecnologia, para disputar os mercados com produtos de maior valor agregado. Apresenta altas taxas de investimentos, permitindo um crescimento com infla-ção baixa. Como alguns reconhecem, a China desmontou as teses neoliberais, que debitavam a estagnação econômica à presença estatal na economia.

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Apesar disso, aceitam a tese neoliberal de que aquelas políticas só foram possíveis porque foram realizadas por um governo autoritário, de partido único, onde é proibido ou limitado o direito de organização sindical e onde o modelo de relações de trabalho é referência internacional de neoliberalismo. Além, é lógico, da baixa carga tributária, só possível porque não existiria um sistema de seguridade social, compreendendo aposentadorias, pensões, benefícios previ-denciários, saúde pública, assistência social e seguro-desemprego.

Ou seja, aceitam que, na China, as teses neoliberais sobre a presença das estatais na economia foram desmontadas porque ela teria adotado as teses neoli-berais sobre a desregulamentação trabalhista e social. Bastaria, porém, que reali-zassem uma análise, mesmo superficial, das relações trabalhistas e da seguridade social na China, para verificar que ela transita de relações trabalhistas de pleno emprego e seguridade social total, bancadas pelas empresas estatais, para um sistema universal de relações trabalhistas e seguridade social, sob a ação tanto do mercado, quanto do Estado.

Aposentadorias aos 60 anos, pensões, benefícios previdenciários, saúde pública, assistência social e seguro-desemprego estão sendo paulatinamente universalizados. As empresas estatais e coletivas chinesas possuem sistemas de auto-gestão e co-gestão, nos quais os sindicatos participam. E o governo tem travado verdadeiras batalhas com várias multinacionais estrangeiras e empresas privadas, que não observam a lei do direito de sindicalização no chão da fábrica. Embora ainda existam lacunas e defeitos consideráveis, decorrentes da transição de modelos, é preciso não generalizar tais lacunas e defeitos, nem aceitar sem críticas as interpretações neoliberais a respeito do sucesso chinês.

O próprio baixo custo da mão-de-obra chinesa é uma ficção ocidental, se levarmos em conta seu poder de compra interno, e sua influência para confor-mar um forte mercado doméstico. Além disso, como muitos já reconhecem, a China vem se tornando um país vencedor porque utiliza métodos avançados de organização produtiva, que reduzem os custos, pratica uma economia de escala sem paralelo no mundo, tem obtido ganhos crescentes em produtividade, e sua logística imbatível é o resultado de grandes investimentos estatais e de parcerias público-privadas em infra-estrutura.

Ou seja, a China jogou para o espaço as teses neoliberais. Reduziu ao máxi-mo sua vulnerabilidade econômica, fazendo há muito aquilo que a UNCTAD está propondo agora. Assim, se Veja já não consegue esconder o sucesso econô-mico e social da China, apesar dos esforços para confundir a compreensão dos fatos, e reconhece a eficácia de suas políticas macroeconômicas e sociais não-neoliberais, talvez tenha chegado o momento de nos livrarmos da influência ne-oliberal e adotarmos políticas que, comprovadamente, eliminaram as principais vulnerabilidades econômicas diante da globalização.

28/08/2006

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Estão se multiplicando as teses sobre o perigo representado pela emergência da China no mercado mundial. Afirma-se, por exemplo, que esse país coloca em questão o papel da América Latina na divisão internacional do trabalho e, mais precisamente, a teoria de que o futuro da região passa pela indústria. E que esse questionamento tem por base, pelo menos, sua gigantesca mão-de-obra, sua produtividade e a intervenção de seu Estado na economia.

Para início de conversa, responsabilizar a China, ou mesmo os tigres asi-áticos, pelas dificuldades na industrialização da América Latina e do Brasil, demonstra miopia histórica. Na verdade, o questionamento à teoria de que o futuro da região passaria pela indústria deve ser buscada no século 18, quando D. Maria I, mãe de D. João VI, mandou destruir teares e tudo que parecesse maquinário existente na colônia. Nos séculos posteriores, esse questionamento foi promovido pelas oligarquias rurais e pelas potencias industriais do ocidente. Mais recentemente, a necessidade da industrialização tem sido questionada tan-to pelas teorias tradicionais do comércio internacional, quanto pelas teorias das reformas de modernização liberal.

Tais teorias não têm se voltado apenas contra a industrialização da América Latina. Elas têm colocado em questão, também, o papel da indústria na África e na Ásia, apesar do exemplo contrário do Japão e dos tigres asiáticos. De qualquer modo, nos últimos 25 anos foi justamente a China quem derrubou as teorias do comércio internacional tradicional e das reformas macro e microeconômicas, ba-seadas no receituário de “terapia de choque”, “inovação destrutiva”, “privatização plena” e “Estado mínimo”, empacotado com o rótulo de “liberalização econômica”.

Nesses anos, ao invés de olhar para o exemplo chinês e de outros países asiáticos, e extrair as lições devidas, o Brasil preferiu ater-se às recomendações

O perigo China

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do Consenso de Washington e manter-se quase estagnado por mais de 20 anos. Então, que culpa tem a China por haver superado o Brasil e outros países lati-no-americanos na “arte de fabricar produtos industrializados”? Que culpa tem a China se nossos governos, deslumbrados com tudo que vinha do “Norte”, preferiram quebrar boa parte do nosso parque produtivo, sob a alegação de que estavam realizando uma “destruição criativa”?

A questão da mão-de-obra

É evidente que a entrada, no mercado mundial, da imensa mão-de-obra chinesa - cerca de 700 milhões de trabalhadores - tem representado um cho-que de grandes proporções no mercado de trabalho. No entanto, tomar como desafios negativos o nível educacional superior e o nível salarial inferior dessa força de trabalho, em relação aos níveis da América Latina e do Brasil, significa reduzir uma questão complexa a uma questão simplória.

Em primeiro lugar deveríamos admitir, mais uma vez, que coube a nós a responsabilidade por alguns desses descompassos. Como um país que, em 1949, possuía cerca de 80% de analfabetos em sua população total já imensa (cerca de 500 milhões), pode dar um salto tão gigantesco na área educacional, enquanto o Brasil, com uma população tão menor, avançou muito menos?

Depois, precisaríamos discutir melhor a questão dos salários chineses. Eles são realmente três vezes menores do que os salários brasileiros, em termos de paridade cambial, contribuindo para dar maior competitividade aos produtos chineses no mercado internacional.

No entanto, eles são, ao mesmo tempo, 3 a 4 vezes superiores aos salários brasileiros, em termos de poder de compra, contribuindo para expandir a de-manda efetiva, a escala produtiva e o mercado interno da China. O que, em última instância, também contribui para elevar a competitividade dos produtos, tanto dos intensivos em mão-de-obra, a exemplo dos agrícolas e de muitos bens de consumo não-duráveis, quanto dos produtos de médias e alta tecnologias, intensivos em capital.

Se olharmos com menos preconceito a entrada da força de trabalho chinesa no mercado mundial, teremos que admitir que ela resultou num aumento potencial das taxas de crescimento, na redução das taxas de inflação e em modificações visíveis nos preços relativos do trabalho, capital, merca-dorias e ativos.

Ao inundar o mundo com maior quantidade de mercadorias, de preços mais baixos, a China tornou-se responsável por mais de 30% do crescimento mundial nesses primeiros anos do século 21, assim como pela manutenção de uma inflação mundial relativamente baixa. O poder de barganha dos trabalha-

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dores, tanto nas economias desenvolvidas, como nas economias em desenvol-vimento, reduziu-se, enquanto os lucros cresceram. Os preços das mercadorias exportadas pela China têm baixado, mas os preços das mercadorias que ela im-porta têm se mantido altos, ou subiram. Assim, só as fadas acreditam que o cres-cimento recorde das exportações, e a redução da inflação brasileira dos últimos anos, nada têm a ver com a China.

A redução dos custos do capital e, com ela, a manutenção de baixas taxas de juros na maior parte dos países do mundo (o Brasil é uma das exceções), se devem, em grande medida, à redução da pressão inflacionária mundial, forçada pela entrada da força de trabalho massiva chinesa no mercado mundial, e à aquisição também massiva de bônus do Tesouro americano pela China, que elevou sua reserva em moedas fortes acima dos USD 700 bilhões, em julho de 2005. Essa é uma das razões pelas quais há uma abundância relativa de liquidez internacional, e as elevações das taxas de juros do FED já não causam apertos monetários tão fortes quanto no passado.

Portanto, se olharmos para as condições gerais da demanda, do crescimen-to e da inflação mundiais, a entrada da imensa força de trabalho chinesa tem representado um choque positivo, não negativo, mesmo que isso signifique um desafio. O que se deve perguntar é: por que alguns países estão se aproveitando desse choque positivo para crescer, inclusive industrialmente, enquanto alguns pressionam o Brasil a considerá-lo é um perigo? Será por não enxergar positiva-mente esse choque positivo que nossas taxas de juros continuam tão escanda-losas, e as taxas de crescimento em vários outros países na América Latina têm sido maiores do que no Brasil?

A questão da produtividade

A questão da competitividade chinesa vem sendo enfocada como uma combinação perversa de produtividade mais baixa com salários muito mais bai-xos, o que lhe permitiria a obtenção de preços imbatíveis. O reducionismo aqui, como na questão específica dos salários, impede olhar com uma visão mais am-pla o que está acontecendo na China, e tirar as lições adequadas.

No final dos anos 1970, a produtividade chinesa era mais baixa do que a brasileira e de alguns outros países da América Latina, seja em virtude de seu atraso tecnológico, seja em virtude de sua política de pleno emprego, que tinha como lema “três em um”, isto é, três trabalhadores empregados para cada traba-lho efetivo. A partir daquele momento, a China adotou uma série de políticas combinadas, que iriam modificar radicalmente a produtividade do país. Prio-ridade para a educação, abertura para o exterior e atenção ao desenvolvimento científico e tecnológico foram certamente as principais.

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Hoje a força de trabalho chinesa tem, reconhecidamente, como já citamos, um nível educacional superior à força de trabalho da América Latina e do Brasil. Os esforços para a educação ocorrem em todos os níveis, do primário ao douto-rado, incluindo o envio de estudantes para especializar-se em áreas de alta tecno-logia no exterior. Embora a China ainda não possa ombrear-se com os padrões educacionais internacionalmente mais elevados, desde 1980 ela busca com perse-verança alcançar esses padrões num prazo de 50 anos. Se medirmos o que ela rea-lizou nesse terreno, em 25 anos, restará pouca dúvida que ela atingirá seu objetivo no prazo estipulado. O que impede o Brasil de realizar algo idêntico? A China?

Também desde 1979 a China ingressou num processo de abertura econô-mica ao exterior, cujos instrumentos preliminares foram as Zonas Econômi-cas Especiais. Essas zonas, situadas em 5 áreas geográficas determinadas, foram abertas aos investimentos estrangeiros, em condições relativamente simples. Os investimentos deveriam realizar-se sob a forma de joint ventures entre a empresa estrangeira e uma empresa chinesa, incorporar novas ou altas tecnologias, estar totalmente voltados para a exportação, e obedecer às necessidades de adensa-mento das cadeias produtivas do país, estipuladas num guia revisto anualmente pelo governo.

Em outras palavras, através da parte chinesa da joint venture, em geral al-guma estatal, a China internalizava as altas ou novas tecnologias trazidas pela parte estrangeira, aumentando a musculatura de suas empresas nacionais. Ao mesmo tempo, a China ingressava no mercado internacional através da parte estrangeira, ganhando experiência para competir no mundo globalizado. Assim, muito mais do que o capital-dinheiro, o que os investimentos estrangeiros real-mente deram como contribuição para o salto produtivo da China foi o capital-tecnologia e o mercado global, evitando que ela investisse anos de trabalho na reinvenção da roda e na abertura de mercados.

De 1979 para cá, a China foi paulatinamente abrindo sua economia à competição estrangeira, à medida que sentia que suas próprias indústrias e servi-ços tinham ganho musculatura, e podiam competir em condições de igualdade. O que tem impedido o Brasil de fazer algo idêntico? A China?

Nesse período, a China também tem feito esforços consideráveis para in-vestir em ciência e tecnologia, evitando ficar restrita à importação da tecnologia estrangeira. Ela não só tem praticado uma política intensiva de cooperação uni-versidades-empresas, como tem destinado fundos específicos para transformar em empresas produtivas as equipes universitárias que desenvolveram produtos de alta tecnologia. Além disso, por meio de planos determinados, a China vem construindo 53 centros nacionais de desenvolvimento científico e tecnológico, abrangendo alguns milhões de cientistas, engenheiros e técnicos, além dos cen-tros provinciais e regionais já existentes.

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Nessas condições, só pessoas desinformadas ficarão surpresas quando a China, nos próximos anos, atingir os padrões internacionais mais elevados de inovação tecnológica e pesquisa científica. E, falando francamente, a China não tem culpa alguma pelo fato do Brasil estar atrasado nesse setor.

A rápida elevação da produtividade chinesa nos anos 90, já constatada por muitos que enxergam nisso um grande perigo para o Brasil, tem por base a combinação desses fatores: educação, importação inteligente de novas e altas tecnologias, e atenção redobrada ao desenvolvimento de novas e altas tecnolo-gias. Nisso não há qualquer mistério. E deveria servir de exemplo.

A questão do Estado

A intervenção agressiva do Estado chinês na economia é tomado, pelos adeptos do “perigo vermelho”, como o maior desafio ao sonho de industria-lização da América Latina e do Brasil. Segundo eles, o Estado chinês interfere em todos os setores relevantes da economia, criando condições de competição desfavoráveis para os produtores do resto do mundo, ao prover os produtores locais de oferta ilimitada de crédito a juros muito baixos, subsidiar generosa-mente a pesquisa e o desenvolvimento, socializar os riscos da inovação, ignorar o direito de propriedade intelectual e facilitar tudo aos exportadores, enquanto aos importadores aplica rigorosamente as leis.

Para precaver-se da sugestão de que é possível, a qualquer país, ofertar cré-dito barato aos produtores locais e subsidiar a pesquisa e o desenvolvimento, eles sustentam o esdrúxulo argumento de que tal ação dificilmente seria tolerada pela comunidade internacional, se fosse praticada por um país do Ocidente. Isso, no entanto, torna-se falacioso e típico da mentalidade dos colonizados, se olharmos os Estados Unidos e os diversos países europeus, que não só vêm pra-ticando taxas de juros até mais baixas do que seria necessário, como subsidiam largamente a pesquisa e o desenvolvimento, a exemplo do que fazem o Pentágo-no e diversas agências européias, ao destinarem verbas bilionárias para diversos programas científicos e tecnológicos.

O problema do Brasil e da América Latina, nesse terreno, é que seus Esta-dos nacionais foram deliberadamente enfraquecidos ou desestruturados, ao in-vés de seguirem o próprio exemplo que vêm do “Norte”, onde existem Estados fortes e atuantes, capazes de defender os interesses de suas empresas, através de suas embaixadas ou de enviados diplomáticos especiais, em qualquer região do mundo. A China preferiu seguir este caminho, ao abandonar a centralização extremada da União Soviética, que engessava a economia e a sociedade.

O Estado chinês combina o planejamento macroeconômico e macro-so-cial com as demandas mercantis, utilizando-se principalmente de instrumentos

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econômicos, como as estatais, para direcionar o mercado no processo de de-senvolvimento, e evitar desvios e crises cíclicas. E, da mesma forma que o FED americano utiliza as taxas de juros e a emissão do dólar como instrumento de estímulo de investimentos e contenção da inflação interna, o BC chinês utiliza os juros e o câmbio como instrumentos de política industrial. Nada que um país como o Brasil não pudesse fazer, mesmo que segmentos da comunidade Ocidental rilhassem os dentes. Basta jogar de lado a mentalidade de colonizado e exercer um pouco de soberania.

Além disso, a informação de que o Estado chinês tem mão leve com os exportadores e mão pesada com os importadores também não suporta uma aná-lise singela das curvas de crescimento das exportações e importações chinesas. Em termos globais, elas têm mantido um crescimento paralelo muito próximo, o saldo advindo principalmente de seu balanço com os Estados Unidos e a Europa. Com países como o Brasil, a China tem mantido um déficit comercial relativamente longo. Supostas perdas brasileiras de exportações na competição comercial com aquele país podem ser armadas como exercícios virtuais, desde que não levem em conta o papel da China no crescimento global das exporta-ções brasileiras.

Possibilidades no caminho da industrialização

É verdade que as exportações latino-americanas para a China vêm sendo dominadas por produtos primários em cerca de 60%. Daí a culpar os chineses por uma desindustrialização dos fornecedores de manufaturas intensivas em re-cursos naturais, vai uma longa distância. Nossa desindustrialização teve outros patronos, que precederam a entrada da China no mercado mundial. Patronos e defensores que continuam muito ativos, procurando jogar sobre a China res-ponsabilidades que são nossas.

Durante mais de 10 anos, muitos dos que hoje acusam a China pela de-sindustrialização brasileira acusavam de dinossauros todos os que exigiam po-líticas de industrialização. Principalmente porque políticas de industrialização são políticas estatais, e eles têm horror à participação do Estado. No entanto, queiram ou não queiram, a definição da importância da indústria para o desen-volvimento brasileiro, por ser a atividade com maior potencial de crescimento da produtividade, tem como pressuposto a necessidade do papel do Estado na economia. Portanto, no caso do Brasil, não pode depender da China ou dos Estados Unidos, mas exclusivamente de nós próprios.

Cabe ao Brasil, não à China e a outros países, utilizar sua capacidade em re-cursos naturais para exigir contrapartidas industrializantes. Por exemplo, quem quer o minério de ferro de alto teor, ou o manganês e a bauxita, existentes no

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Brasil, precisa investir em processos de sinterização, refino e transformação no próprio Brasil. E assim por diante. Mas isso, quem precisa estabelecer como condição somos nós, não os outros.

A diferença é que, nessa perspectiva, a China pode desempenhar um papel positivo maior do que os Estados Unidos e do que a Europa, embora essas re-giões não devam ser subestimadas ou desprezadas. Com uma enorme poupança interna, além dos investimentos externos diretos, a China tem praticado uma taxa de investimento superior a 40% do PIB, resultando num ritmo de cresci-mento muito elevado - mais de 9% ao ano -, causador de tensões no forne-cimento de matérias primas, na infra-estrutura de energia e transportes, e nas ameaças de crescimento da inflação.

Para reduzir o ritmo de crescimento a 7% a 8% ao ano, permitindo maior equilíbrio entre o processo produtivo e sua infra-estrutura, a China precisará reduzir sua taxa de investimento anual para cerca de 30 a 35%. O que significa um excedente de capital da ordem de cerca de 50 a 100 bilhões de dólares anu-ais, que ela terá que investir fora. Para os países, como o Brasil, que apostam no futuro da indústria, deixar de olhar a China como ameaça, e vê-la como desafio de oportunidades, torna-se fundamental.

09/09/2005

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O título acima é um exemplo de como a mídia ocidental trata a reali-dade chinesa. Ele induz que se acredite que as estatais chinesas finalmente faliram. Na prática, tomam uma verdade parcial e a transformam numa ver-dade geral.

A verdade parcial é que o governo chinês estima que, nos próximos qua-tro anos, será decretada a falência ou serão fechadas mais de duas mil empresas estatais, envolvendo a realocação de mais de 3,5 milhões de trabalhadores. Essas estatais vêm apresentando consecutivos prejuízos há anos, e não há expectativa real de que se recuperem e paguem seus débitos. A saída inevitável será a falência ou o fechamento.

Outra verdade parcial é que nos dez anos anteriores a 2004, o governo chi-nês fechou ou decretou a falência de outras 3.484 empresas estatais, a um custo de 28 bilhões de dólares, envolvendo o pagamento dos créditos não-pagos e dos direitos trabalhistas de 6,6 milhões de empregados.

Se levarmos em conta que, além disso, a reestruturação das estatais chinesas fez com que o número desse tipo de empresas baixasse de 238 mil, em 1998, para 150 mil, no final de 2003, aparentemente estamos diante de um processo de liquidação das empresas de propriedade estatal na China, como procura fazer crer boa parte da mídia ocidental.

A verdade geral, porém, é que essas 150 mil estatais reestruturadas elevaram seu rendimento, no mesmo período, em 22 vezes, passando a ser lucrativas. 14 delas já estão incluídas entre as 500 maiores corporações mundiais, alcançando elevados níveis de eficiência. O atual grupo, a ter a falência decretada, é o último do processo relativamente longo de reforma e modernização do conjunto das empresas de propriedade estatal da China.

Estatais em falência

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Durante esse processo, muitas dessas empresas foram incorporadas a esta-tais maiores, ou sofreram processos de fusão com outras de tamanho idêntico. Encerrando o também longo período em que as estatais chinesas atolavam-se em prejuízos, a Comissão de Administração e Supervisão de Ativos Estatais (SASAC), responsável por sua reforma e modernização, terá que colocar-se a missão de acompanhar não mais os prejuízos, porém a melhora na eficiência e na rentabilidade das empresas que são o principal instrumento de política ma-croeconômica do Estado chinês. Para desespero dos privatistas.

14/05/2005

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A globalização iniciada no final do século 20 é diferente, em muitos aspec-tos, das globalizações anteriores. Ela resulta do processo de desenvolvimento histórico desigual do capitalismo, desde o século 18, que criou países capitalistas altamente desenvolvidos, medianamente desenvolvidos, em desenvolvimento, e países tidos como inviáveis. Processo que levou a diferentes tipos de guerras, in-clusive guerras imperialistas mundiais, e a revoluções e guerras revolucionárias. E conduziu, durante o século 20, ao surgimento de países socialistas, ao fim do colonialismo, à implantação de welfare states em países capitalistas da Europa, e à Guerra Fria.

Nos países altamente desenvolvidos, já em meados do século 20, o capi-talismo havia ingressado na utilização das ciências e das tecnologias como as principais forças produtivas de seu modo de produção. A conseqüência foi o aumento veloz do capital constante das empresas, a elevação da produtividade do trabalho, a redução do capital variável, isto é, da força humana de trabalho, e o decréscimo da taxa média de lucro, ou da margem de rentabilidade. O capita-lismo, nesses países, apesar, ou por causa de sua pujança tecnológica, começou a enfrentar crescente dificuldade para realizar sua reprodução ampliada.

Nos países medianamente desenvolvidos, seu capitalismo realizou esforços para ingressar na era das ciências e tecnologias, como principais forças produti-vas, de modo a competir com os produtos dos países altamente desenvolvidos. Com isso, também começaram a ver-se diante de problemas idênticos aos en-frentados pelos países de capitalismo avançado.

Nos países em desenvolvimento, como Brasil e Índia, o capitalismo mes-clou-se a formas historicamente anteriores de produção, gerando altas taxas de mais-valia absoluta, mas avançando pouco na utilização das ciências e tecnolo-

As raízes da globalização do século 21

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gias como forças produtivas de primeira ordem. E nos países tidos como invi-áveis, supondo-se principalmente países localizados na África, Ásia, e América Latina, o capitalismo praticamente só estava presente, a exemplo do século 19 e princípios do século 20, como importador de matérias primas e exportador de manufaturados.

Entre os países socialistas havia a União Soviética, medianamente desenvol-vida, os países do Leste Europeu e a China, em desenvolvimento, e a Mongólia, Vietnã, Cuba e Coréia do Norte, considerados inviáveis. Sem contar com os mecanismos capitalistas de desenvolvimento das forças produtivas, esses países encontraram crescente dificuldade para gerar riqueza ampliada. Passaram a re-baixar a riqueza existente e a redistribuir pobreza.

Assim, a partir dos anos 1980, tomando como parâmetro o capitalismo avançado, muitos acreditaram que a nova globalização consistiria na destrui-ção de tudo que não fosse gerado pelas ciências e tecnologias. A indústria seria suplantada pelos serviços e os trabalhadores pelas máquinas. Para os ideólogos capitalistas, era a glória. Para os anti-capitalistas, o caos. A realidade está se mos-trando mais complexa.

A globalização do século 21

A nova globalização capitalista parecia fadada a implantar o mundo pós-industrial, da informação e da pax americana, particularmente após a União Soviética sucumbir a seus defeitos. A industrialização estaria com os dias contados. Quem não ingressasse no mercado mundial dos serviços es-taria condenado a afundar sob o peso do atraso. E, quem não obedecesse aos centros financeiros globais não teria créditos para realizar o comércio internacional. O mercado seria comandado pela potência unipolar e pelas corporações transnacionais.

No entanto, o que ocorreu estava mais de acordo com as previsões de Karl Marx do que com os delírios neoliberais. Marx previra que a natureza da reprodução ampliada do capitalismo o levaria a expandir-se por todo o planeta. Antes de esgotar seu papel histórico, de elevar as forças produtivas a um estágio capaz de atender às necessidades de toda a sociedade humana, embora negando à maioria o acesso à riqueza produzida, o capitalismo ainda encontraria condi-ções de desenvolver-se, expandir-se e reproduzir-se.

O capitalismo encontrou na fragmentação, segmentação ou re-alocação de suas plantas industriais, na especulação financeira, na re-utilização do trabalho escravo e no tráfico de drogas, as principais condições para aumentar sua taxa média de lucro e expandir-se. Por outro lado, cada uma dessas condições trouxe embutidas algumas conseqüências aparentemente inesperadas.

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A fragmentação, ao transferir setores industriais inteiros dos países desen-volvidos para as regiões periféricas, inverteu a relação que foi predominante durante a globalização imperialista dos séculos 19 e 20. Nesta, o capitalismo transferia elementos de seu modo de produção para países periféricos, mas estes não fabricavam produtos tecnologicamente avançados, nem os exportavam para os países desenvolvidos. Continuavam como exportadores de matérias primas e mercados importadores de produtos industriais.

Na globalização atual, vários países periféricos ingressaram na industria-lização, combinando os métodos fordistas, tayloristas e toyotistas, com os novos métodos científicos de processos e produtos. Tornaram-se as fábricas do mundo, exportadoras de bens de capital e de outros bens industriais para os países desenvolvidos.

Com isso, mesmo com a participação de capitais estrangeiros e corpora-ções transnacionais, elevaram suas forças produtivas científicas e tecnológicas a novo nível. Incorporaram mais de um bilhão de pessoas ao mercado mundial, e recriaram a classe operária industrial em suas fronteiras nacionais. Deram nova musculatura a seus Estados, transferiram o centro dinâmico da economia mun-dial para a Ásia, aceleraram a multipolaridade mundial e já disputam a pauta da globalização. Convenhamos, não era bem isso que o capitalismo das grandes corporações desejava ou esperava, embora ainda haja quem pense que tudo isso faz parte da conspiração mundial capitalista.

A crise norte-americana e o resto do mundo

A presente globalização, em certa medida, deu sobrevida ao capitalismo. O progresso tecnológico nos países em desenvolvimento cresceu de 40% a 60% mais rapidamente do que nos países desenvolvidos, entre o final de 1990 e o início dos anos 2000, expandindo o modo capitalista de produção para áreas até então consideradas inviáveis.

Contrariamente ao que muitos pensavam, esse progresso capitalista não aumentou o número de pessoas vivendo em miséria absoluta nos países em desenvolvimento. Esse número foi reduzido de 29%, em 1980, para 18%, em 2004, em grande parte porque a industrialização dos países emergentes absor-veu grandes contingentes de trabalhadores rurais, cuja renda estava abaixo da linha da pobreza.

Por outro lado, isto não significa que as contradições capitalistas estejam sendo resolvidas. Ao contrário, ao disseminar ainda mais seu modo de produ-ção ao redor do mundo, o capitalismo agrava mais fortemente as contradições presentes nos países desenvolvidos. E, no mundo em desenvolvimento, pre-para o terreno para que tais contradições comecem a convergir, globalmen-

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te, para um ponto em que se tornará patente a incapacidade capitalista de, ao mesmo tempo, gerar riqueza, distribuí-la segundo as necessidades de cada membro da sociedade, e preservar a natureza que fornece aos seres vivos as condições de sua existência.

Se compararmos a atual crise financeira norte-americana a crises idênticas, de um passado não muito distante, não será difícil notar que existe uma nova situação global. A crise está abalando principalmente os países desenvolvidos, enquanto o mundo em desenvolvimento está sendo afetado relativamente mui-to pouco. O exemplo da China é emblemático.

Muitos analistas previam que esse país deveria crescer 10%, em 2008, con-tra 11,4%, em 2007, se a economia mundial não sofresse abalos. Eles também acreditavam que, caso a crise norte-americana descambasse para a recessão, isto deveria causar um estrago significativo na economia chinesa, fazendo com que sua taxa de crescimento caísse para 8%.

Porém, essas previsões “pessimistas” sobre a economia chinesa são o sonho otimista dos planejadores chineses. Desde a crise financeira de 1999, eles têm feito esforços para reduzir o ritmo de crescimento de sua economia para 7% a 8% ao ano. O fato deles terem que continuar redobrando seus esforços para diminuir aquele ritmo, independentemente da crise americana, apenas mostra que uma parte do mundo está eventualmente blindada contra as ondas de cho-que das crises do capitalismo desenvolvido. O que não é pouco.

13/01/2008

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A China sob Outro Olhar

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Apesar da multiplicidade dos meios de comunicação e transportes, e da ra-pidez com que eles funcionam no mundo contemporâneo, a China ainda é um país muito distante do Brasil. Parece haver uma série de barreiras ou muralhas que nos impediram de voltarmos nossos olhos para aquele país e que, agora, devem ser derrubadas, permitindo que aquele país nos seja apresentado. Mesmo assim, ainda haverá os que se perguntarão: por que motivo a China nos deve ser apresentada?

Há pelo menos três motivos para que isso aconteça. Em primeiro lugar, nos anos mais recentes, a China explodiu diante do

mundo como uma grande potência econômica. Ela inundou o mundo todo com uma série enorme de produtos de consumo de uso corrente, de baixo custo, e se tornou o principal atrator de investimentos estrangeiros do mundo, depois dos Estados Unidos. Além disso, aos poucos ela foi mostrando que não era ape-nas produtora de bens de consumo corrente, mas também de tecnologias e de produtos tecnologicamente avançados.

E, ao lado disso tudo, durante mais de 20 anos ela tem apresentado taxas de crescimento inigualáveis. Em 1978, seu Produto Interno Bruto era de USD 45,28 bilhões, havendo alcançado USD 1,26 trilhões em 2001. E, se naquele ano seu comércio externo somava USD 12,34 bilhões, neste último se elevou a mais USD 500 bilhões. Nenhum outro país do mundo apresentou tal perfor-mance na época atual.

Em segundo lugar, há o fenômeno chamado globalização. Isto é, há uma crescente tendência mundial para aumentar a interdependência entre os países e suas economias. Hoje em dia, com o avanço da revolução tecnológica e cien-tífica, e a rápida circulação de capitais e mercadorias, nenhum país que queira

Três razões para conhecer a China

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crescer pode fechar-se. Ele tem que participar do mercado global. Evidente-mente, essa participação apresenta riscos, já que aumentou consideravelmente a concorrência ou competição. Mas ela também pode apresentar novas vantagens, com a conquista de novos parceiros.

Para qualquer país, e para o Brasil em particular, a globalização nos empurra para a China, tanto como concorrente, quanto como parceira. O Brasil enfren-tou, e ainda enfrenta, forte competição chinesa nas áreas de calçados, tecidos e brinquedos, só para ficar em três exemplos bem conhecidos. Por outro lado, ela tem cada vez mais se tornado um parceiro importante na importação de miné-rios, soja e aviões brasileiros, e na cooperação para o desenvolvimento de nossa indústria aeroespacial, também para só ficar nos exemplos mais conhecidos.

Em terceiro lugar, o Brasil em geral desconhece a China. Mesmo recebendo os flashes do crescimento explosivo chinês, a maior parte dos brasileiros ainda acredita nas versões que falam em trabalho escravo e em povo miserável, pas-sando fome. As antigas imagens de um país atrasado, com costumes bárbaros, disseminadas através do mundo pelos antigos colonizadores, e por reportagens que tomam o exótico como o geral, ainda permanecem vivas diante da maioria das pessoas no Brasil.

Haveria outros motivos para apresentar a China aos brasileiros, mas os três acima já são suficientemente fortes para despertar o interesse, principalmente daqueles que começam a enxergar na China um mercado promissor, em qual-quer dos sentidos que se possa entender o termo mercado.

Sem ter uma noção básica de onde a China se encontra geograficamen-te situada, quais suas potencialidades físicas e humanas, quais os costumes, tradições e comportamentos que sua longa história gerou, quais os principais indicadores de sua economia atual, quais as políticas econômicas e as metas de desenvolvimento programadas, será difícil até mesmo realizar uma primeira abordagem da China.

O que nos remete para a necessidade de conhecer alguma coisa mais con-sistente sobre o caminho de reformas que adotaram deste 1980 e as metas de longo prazo daí decorrentes. O que inclui, ainda, o conhecimento das raízes históricas daquelas reformas e do atual crescimento chinês, e dos ajustes que introduziram nas políticas econômicas, desde 1999, para manter seu cresci-mento e sua situação de estabilidade social e política, diante do quadro mun-dial de instabilidade.

16/02/2004

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Os dados a seguir são apenas um panorama sintético do nível de desenvol-vimento alcançado pela China no ano 2000. Eles visam mostrar suas potencia-lidades em termos de crescimento econômico e social, a médio e longo prazo e, ao mesmo tempo, permitir uma abordagem do que a China representa e deve representar, nos anos vindouros.

Agricultura

A China possui apenas 107 a 115 milhões de hectares de terras agricultá-veis, dos quais cerca de 50 milhões irrigados. Os principais cultivos são o arroz, trigo, milho, soja e batata. A produção de arroz representa 2/5 da produção de cereais do país, a de trigo 1/5 e a de milho 1/4. O arroz é plantado principal-mente nas bacias irrigadas dos grandes rios e, em parte, nas planícies do Norte. O trigo é cultivado principalmente nas planícies do Norte, enquanto o milho é plantado no Nordeste, Norte e Noroeste e, a soja, nas planícies do Nordeste. A batata é produzida em maior escala nas regiões Sul e Central do país.

Os principais cultivos industriais são algodão, amendoim, colza, gergelim, cana de açúcar, beterraba, chá, fumo, amoras (bicho-da-seda) e frutas, relativa-mente dispersos por todo o país.

Quanto à pecuária, a China possui 300 milhões de hectares de pastagens naturais, situadas principalmente nos planaltos da Mongólia Interior, Xinjiang e Qinghai-Tibet. A China é uma grande criadora e consumidora de suínos (441 milhões de cabeças), carneiros, galinhas, patos, gansos, coelhos e produtos aquáticos. Embora tenham um rebanho razoável (159 milhões de bovinos), os chineses ainda não têm o hábito, nem a produção suficiente, para o consumo intensivo de carne, leite e derivados bovinos.

A China no ano 2000

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Quadro sintético da evolução da produção agropecuária da China

Milhões de toneladasProduto 1949 1978 2000

Grãos 113,2 304,7 492 Algodão 0,444 2,16 4,41 Oleaginosas 2,56 5,21 29,54 Cana-de-açúcar 2,64 5,21 7,79 Beterraba 0,191 2,70 8,07Carnes 2,20 8,56 61,24Carne bovina - - 5,32 Produtos aquáticos 0,45 4,66 42,78 Leite - 6,6 9,19

Indústria

A indústria chinesa em 1949 podia ser avaliada pela produção de fios de algodão (327 mil toneladas) e de carvão (32 milhões de toneladas). Mesmo em 1952, após o processo de recuperação pós-guerra, a produção de carvão tinha se elevado a apenas 66 milhões de toneladas e a de fios de algodão a 656 mil toneladas. É verdade que haviam surgido novas indústrias, como a de aço (1,35 milhão de toneladas), cimento (2,86 milhões de toneladas), petróleo (440 mil toneladas) e fertilizantes (39 mil toneladas), mas isso representava uma indústria ainda débil.

Em 1978, a China já possuía indústrias pesadas, de bens intermediários e de bens de consumo de massa relativamente desenvolvidas, formadas pela mineração, siderurgia, petróleo, hidrelétrica, tratores, aviões, cimento, têxteis, automóveis, aparelhos de TV, fibras sintéticas, agroindústrias, fertilizantes, in-seticidas e outros. Entretanto, sua produção mal dava para atender a demanda interna, e a China estava ausente das áreas de novas tecnologias eletrônicas, informáticas, de telecomunicações e de novos materiais.

Entre os anos 1978 e 2000, a China deu um verdadeiro salto em sua pro-dução industrial, como ser visto no quadro abaixo.

Quadro sintético da evolução da produção industrial anual da China

Produto Unidade 1978 2000Carvão milhões de ton 618 10.000Petróleo milhões de ton 104 163Eletricidade milhões de kwh 256.600 1.355.600Aço milhões de ton 31,7 128,5Cimento milhões de ton 65,2 597

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Produto Unidade 1978 2000Tratores mil unidades 11,3 65,4Automóveis mil unidades 149 2070TV a cores milhões unidades 3,8 39,3Fibras sintéticas mil ton 284,6 6.940,0Tecidos milhões de m 11.030 277.000Açúcar milhões de ton 2,27 7,0Fertilizantes milhões ton 8,69 31,86Circuitos integrados milhões unidades 0 14Comutadores progr. milhões linhas 0 26,6 Telecomunicação móvil milhões unidades 0 32,03Microcomputadores milhões unidades 0 6,72

Infra-estrutura

A infra-estrutura energética, de transportes e comunicações da China, em 1949, era formada por uma rede pouco diversificada. Suas usinas elétricas eram a carvão e atendiam apenas as grandes cidades. Suas ferrovias se estendiam por 21.800 km, mas apenas 11.000 km eram trafegáveis. Suas estradas rodoviárias mal alcançavam os 80 mil km. Seus aeroportos existiam apenas nas grandes cidades e com pistas de terra. Os correios também só funcionavam entre as grandes cidades, e o número de telefones e linhas era proporcionalmente insig-nificante para o tamanho do país e de sua população.

Entre 1949 e 1978 a China ampliou e diversificou suas fontes de produção elétrica, com a construção de novas termoelétricas e hidrelétricas, alcançando uma capacidade instalada de mais de 50 milhões de kw. As ferrovias se esten-deram a mais de 41 mil km, dos quais 11.176 eletrificados. As rodovias alcan-çaram mais de 400 mil km, enquanto as principais municipalidades e capitais provinciais foram dotadas de aeroportos pavimentados, e foram ampliados os serviços de correios e telecomunicações. Apesar dos avanços registrados, porém a China permanecia com uma infra-estrutura insuficiente para fazer frente a um crescimento agrícola, industrial e comercial de porte.

No ano 2000, a infra-estrutura da China alcançou os seguintes patamares: Energia elétrica

- Capacidade instalada: 221 GW (milhões de kw)- Hidrelétricas com capacidade instalada superior a 1 milhão de kw: 19- Número de grandes hidrelétricas: 58- Número de centrais nucleares: 5- Rede distribuidora: todas as cidades e a maior parte das zonas rurais.

Dutos- Oleodutos: 9.630 km - Gasodutos: 9.383 km

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Ferrovias- Extensão em serviço: 68.000 km- Extensão eletrificada: 13.000 km- Extensão de duplo track: 20.000 km

Rodovias- Extensão total em tráfego não-pavimentado: 1.300.000 km- Auto-estradas pavimentadas: 271 mil km

Aviação- Aeroportos com pistas pavimentadas: 4.899- Aeroportos para grandes aeronaves: 80- Linhas aéreas domésticas: 991- Linhas aéreas internacionais: 131

Aquavias- Trechos fluviais navegáveis: 138 mil km- Portos fluviais: 70- Volume de carga fluvial: 1.940.000 milhões ton/km- Transporte de passageiros por via fluvial: 12.000 milhões pax/km- Portos marítimos de grande capacidade: 40- Frota de navios de alto-mar: 1.745 navios/ 24 milhões tdw

Correios e telecomunicações- Comutadores telefônicos: 150 milhões de linhas- Usuários de telefones fixos: 135 milhões- Usuários de telefones móveis (celulares): 65 milhões- Agências de correios: 102.000- Trechos postais: 6.500.000 km- Estações de TV: 3.240 - Aparelhos de TV: 400 milhões - Estações de rádio: 673 - Aparelhos de rádio: 417 milhões - Provedores de internet: 3 - Assinantes de internet: 22 milhões

Educação

É preciso levar em conta que, em 1949, cerca de 80% da população chi-nesa era analfabeta, a maior parte do território não possuía escolas, a taxa de matrícula de jovens nas escolas primárias era baixíssima, e as taxas de abandono escolar eram elevadas. Em 1995, a percentagem de analfabetos na população total havia caído para 12%.

Atualmente, o ensino na China é constituído por jardins de infância pú-blicos e estatais, escolas primárias, escolas secundárias de primeiro e segundo

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ciclo, escolas de educação especial para deficientes, escolas profissionais e escolas superiores. O ensino primário e secundário de primeiro ciclo, num total de 9 anos, é obrigatório para todas as crianças a partir dos seis anos de idade.

Para ingressar nas escolas secundárias de segundo grau, os que terminam o período obrigatório de 9 anos devem submeter-se a exames de classificação. As escolas de educação especial estão voltadas para garantir vagas para todos os deficientes. Quanto às escolas profissionais, elas são integradas por escolas de nível primário, médio e superior.

Jardins de Infância- Número de escolas: 181.136- Número de professores: 872.000- Número de alunos: 23.263.000

Escolas especiais- Número de escolas: 1.520- Número de professores: 31.000- Número de alunos: 372.000- Número médio anual de graduados: 38.000

Escolas primárias- Número de escolas: 582.291- Número de professores: 5.861.000- Número de alunos: 139.530.000 (98% das crianças em idade escolar)- Número médio anual de graduados: 23.137.000- Taxa de abandono escolar: 0,93%

Escolas secundárias- Número de escolas secundárias regulares (1º e 2º ciclos): 77.268- Número de professores das escolas secundárias regulares: 3.841.000- Número de alunos das escolas secundárias regulares: 63.880.000- Número de escolas secundárias vocacionais: 9.636- Número de professores das escolas vocacionais: 336.000- Número de alunos das escolas profissionais: 5.040.000- Número de escolas secundárias profissionais: 7.924- Número de professores das escolas profissionais: 548.000- Número de alunos nas escolas profissionais: 11.260.000- Total de escolas secundárias: 95.255- Total de professores das escolas secundárias: 4.725.000- Total de alunos das escolas secundárias: 80.180.000- Taxa de abandono escolar: 3,23%

Escolas superiores- Número de centros de ensino superior: 1.071- Número de instituições de pós-graduação: 736

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- Número de professores dos centros superiores: 426.000- Número de alunos nos centros de ensino superior: 5.561.000- Número de alunos na pós-graduação: 199.000

Escolas para adultos- Adultos alfabetizados: 3.200.000/ano- Número de alunos nos centros profissionais para adultos: 2.510.000 - Número de centros superiores para adultos: 962- Número de alunos nos centros superiores para adultos: 2.820.000

Equipamentos educacionais e culturais:- Bibliotecas: 2.690- Museus: 1.218- Transmissoras e repetidoras de TV: 1.085- Rádios: 2.039- Cinemas: 69.000

Ciência e Tecnologia

Em 1949, a China contava com 40 instituições de pesquisa científica e menos de 50 mil cientistas, dos quais apenas 500 estavam relacionados com as instituições de pesquisa. Nos 25 anos posteriores, foram fundadas 840 institui-ções de pesquisa científica, nas quais trabalhavam 400 mil cientistas e técnicos.

Isso permitiu ao país: a) desenvolver as pesquisas geológicas que levaram ao descobrimento dos campos petrolíferos e de gás natural de Daqing, em 1953; b) desenvolver a construção do primeiro reator atômico chinês, em 1958; c) construir e explodir o primeiro artefato atômico chinês, em 1964; d) realizar a síntese artifi-cial da insulina bovina cristalina, em 1965; e) construir o primeiro colecionador de positrons e megatrons, para a realização de pesquisas físicas, energéticas, biológicas, químicas e de materiais; f ) construir a primeira central nuclear do país, em 1970.

No ano 2000, a China possuía mais de 24 milhões de cientistas, técnicos e pessoal administrativo e de apoio, envolvidos em ciência e tecnologia, dos quais 2,77 milhões eram cientistas e engenheiros. Esse pessoal trabalhava em 5.856 ins-talações científicas estatais, 2.550 instituições científicas filiadas a universidades, e 14.400 instituições científicas filiadas a empresas. Com investimentos superiores a USD 12 bilhões anuais, essas instituições estão voltadas para alguns planos de desenvolvimento científico e tecnológico, dos quais os mais importantes são:

Plano 863 de pesquisa de alta tecnologia Direcionado para tecnologia biológica, navegação aeroespacial (foguetes

portadores e lançamento de satélites, principalmente), informática, raios laser, automação, energéticos, novos materiais e oceanografia.

Plano ChispaDirecionado para introduzir a ciência e a tecnologia na economia rural,

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difundindo na agricultura as ciências agronômicas, e nas indústrias rurais os avanços tecnológicos.

Plano Tocha Orientado para a formação de incubadoras industriais, para acelerar a intro-

dução das novas e altas tecnologias na indústria nacional. Um desdobramento des-se plano é a constituição de zonas industriais de novas e altas tecnologias, que hoje abrangem mais de 20.000 empresas, com 1,5 milhão de trabalhadores e técnicos.

Plano de Pesquisa BásicaVoltado para desenvolver estudos e pesquisas relacionados com os setores

científicos e tecnológicos básicos. Esse plano tem permitido avanços significati-vos nas áreas do cálculo geométrico, mecânica celeste, dinâmica molecular, física atmosférica e outros setores.

Saúde

O salto empreendido pelo sistema de saúde da China pode ser medido pelo número de centros de saúde, leitos e técnicos existentes em 1949, 1978 e 2000.

1949 1978 2000Centros de Saúde 3.670 169.732 310.996Leitos 85.000 2.042.000 3.140.000Técnicos em Saúde 505.000 2.464.000 5.591.000

Esse sistema tem sua base primária nas zonas rurais, onde se localizam as re-des de assistência médica, profilaxia e serviços de saúde a nível distrital, cantonal e de aldeia, cobrindo mais de 90% das 730.000 aldeias administrativas do país. Os serviços mais especializados encontram-se nas cidades médias e grandes.

A grande maioria dos médicos chineses (cerca de 4 milhões) são alopatas, que se utilizam apenas da medicina ocidental ou a combinam com a medicina tradicional chinesa, enquanto o número de médicos dedicados exclusivamente à medicina tradicional chinesa soma cerca de 400 mil.

Outros exemplos dos avanços chineses na área da saúde são a redução nas taxas de mortalidade para 6,51 por 1000 habitantes, de mortalidade infantil para 28 por 1000 nascituros vivos (2,8%), e o aumento da expectativa de vida para mais de 71 anos. Apesar disso, a China ainda não alcançou os padrões internacionais do número de médicos por habitante, havendo chegado ao pata-mar de 1,7 médicos por mil habitantes.

Criminalidade

A campanha contra a criminalidade é um aspecto importante da política da China para manter um ambiente estável e favorável para o desenvolvimento

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econômico e social. Essa campanha enfoca fundamentalmente a criminalidade econômica, tendo como alvos a corrupção, o narcotráfico, o tráfico humano, os assaltos a mão armada e os crimes hediondos.

Apesar das notícias dos meios de comunicação, e da própria divulgação educativa que as autoridades chinesas promovem, as taxas médias anuais da cri-minalidade na China são relativamente baixas, se comparadas com as taxas dos EUA e outros países ocidentais, conforme mostram os números do ano 2000:

Descrição China EUATaxa média de crimes 0,06% 2%Pessoas assassinadas 4,8 mil 24 milViolações contra mulheres 27 mil 500 milPessoas cumprindo penas 1,28 milhão 1,5 milhão

Dados macro-econômicos

Os principais dados macroeconômicos de um país estão relacionados com as taxas de crescimento do PIB, inflação, desemprego, câmbio, comércio ex-terno, reservas internacionais, relação entre oferta e demanda, investimentos e renda da população. Atualmente, os investimentos em melhoria ecológica ten-dem a ser incorporados aos dados macroeconômicos como importante setor do desenvolvimento.

Taxas de crescimento

As taxas de crescimento pós 1949 sempre foram relativamente elevadas na China, permitindo que ela resolvesse parte considerável da herança histórica de atraso e pobreza da população. Entre 1966 e 1976, em virtude dos distúrbios políticos da revolução cultural, o crescimento da economia chinesa tendeu à estagnação. Somente após 1978, as taxas de crescimento voltaram a elevar-se. Entre 1980 e 1990 o Produto Interno Bruto foi duplicado, tendo por base o PIB de 1980. Alcançou o patamar de 1 trilhão e 854 bilhões de yuans ou cerca de USD 231 bilhões. Ou seja, entre 1980 e 1990, a taxa média de crescimento do PIB situou-se próxima dos 10% ao ano.

Em 1990 e 1991, as taxas de crescimento situaram-se abaixo de 5%, em virtude de descontroles macroeconômicos, relacionados com atrasos na cons-trução infra-estrutural e com o aumento da inflação, e dos distúrbios políticos de 1989. Porém, a partir de 1992, as taxas de crescimento voltaram a elevar-se, como relacionadas abaixo:

1992: 13,6%1993: 13,4%

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1994: 11,8%1995: 10,9%1996: 11,0%1997: 8,8%1998: 7,6%1999: 7,8%2000: 8,0%

A média geral de crescimento do PIB entre 1980 e 2000 situou-se entre 8% a 9%. Em 1995 a China havia quadruplicado seu PIB, em relação a 1980, e no ano 2000 alcançou o PIB de USD 1,27 trilhão, pelo método de paridade cam-bial, ou de USD 4,5 trilhões, pelo método de paridade de poder de compra.

Em termos de PIB per capita, os números chineses continuam baixos, em virtude de sua extensa população. Em 2000, o PIB per capita pelo método da paridade cambial era de USD 1.047,00 e pelo método da paridade do poder de compra de USD 3.600,00.

Inflação

As taxas de inflação chinesa pós-1949 têm se mantido estáveis e baixas. Entre 1988 e 1989 elas cresceram abruptamente para 23% ao ano, mas foram controladas, e durante toda a década de 90 situaram-se sempre em patamares abaixo de 2% ao ano. No ano 2000 elas ficaram em 0,4%.

Desemprego

As taxas de desemprego chinesas eram residuais até 1978, tendo em vista a política de pleno emprego adotada até então pelo governo, política que se expressava na idéia de “três pessoas para um mesmo trabalho”. A partir espe-cialmente de 1984, quando tiveram início as reformas urbanas, visando elevar a produtividade da indústria, do comércio e dos serviços, as taxas de desemprego começaram a subir, apesar das medidas do governo para criar novos postos de trabalho, reciclar os trabalhadores, reduzir a jornada de trabalho para 40 horas semanais, financiar a criação de novas empresas, instituir um sistema universal de seguro desemprego, e um sistema universal de aposentadoria aos 60 anos.

Deve-se levar em conta que a China, apenas para assimilar o número de pessoas que anualmente acessam ao mercado de trabalho, deve criar entre 12 milhões e 14 milhões de novos postos de trabalho. Com a reestruturação em-presarial, essa pressão sobre o mercado de trabalho elevou-se, fazendo com que a taxa de desemprego alcançasse 4% no ano 2000.

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Câmbio

A taxa de câmbio na China tem se mantido historicamente estável, com uma leve desvalorização do yuan ou renminbi, a moeda nacional chinesa. Um yuan se divide em 10 jiao e um jiao em 10 fin.

Em 1980 a paridade cambial entre o dólar norte-americano e o renminbi era de 1 para 8. No ano 2000 USD 1,00 valia RMB 8,26.

Comércio externo

Em 1950, as exportações chinesas somaram 550 milhões de dólares e as importações 580 milhões de dólares, representando um comércio total de 1,13 bilhão de dólares, com um déficit na balança comercial de 30 milhões.

Em 1978, quando teve início a política de abertura ao exterior, as exporta-ções chinesas foram de 9,75 bilhões de dólares, as importações de 10,89 bilhões, somando 20,64 bilhões e apresentando um déficit na balança de 1,14 bilhão de dólares. Em 1985, as exportações chegaram a 27,35 bilhões de dólares, as importações a 42,25 bilhões, num total de 69,60 bilhões, ainda apresentando um déficit elevado de 14,90 bilhões de dólares.

Em 1990 as exportações haviam saltado para USD 62,09 bilhões, as im-portações para USD 53,35 bilhões, num total de USD 115,44 bilhões de dó-lares e um saldo positivo de USD 8,74 bilhões. No ano 2000, as exportações alcançaram o valor de USD 232 bilhões, as importações de USD 197 bilhões, somando USD 429 bilhões, com um saldo positivo de USD 35 bilhões. Duran-te toda a década de 1990, a balança comercial chinesa apresentou saldos positi-vos, permitindo ao país manter altas reservas internacionais. O crescimento das exportações situou-se numa média anual de 7% ao ano, enquanto as importa-ções mantiveram-se em 5% ao ano.

Reservas internacionais

As reservas em moedas internacionais da China têm crescido de forma consistente desde o início dos anos 1990, alcançando USD 210 bilhões no ano 2000.

Relação entre oferta e demanda

Até o final dos anos 1980 a relação entre oferta e demanda na China ca-racterizava-se pela escassez de artigos de gêneros alimentícios e artigos de uso doméstico. Para fazer frente a isso, o governo utilizava um sistema de cupons de racionamento, para realizar uma distribuição razoavelmente equilibrada ante uma demanda altamente reprimida.

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Do final dos anos 1980 em diante essa situação mudou radicalmente, sendo possível extinguir o sistema de cupons de racionamento. Foi possível elevar a ofer-ta de gêneros alimentícios e artigos de uso doméstico ao mercado, equilibrando-a com a demanda, e realizar uma mudança radical no próprio consumo da população. O peso dos gastos da população urbana com alimentos caiu de 57,5%, em 1978, para 44,5% em 1998, enquanto o da população rural caiu de 67,7% para 53,4%.

Paralelamente, elevou-se o gasto com educação e cultura recreativa, de 6,7% para 10,7%, na população urbana, e de 1% para 9,2%, na população rural. E na cesta de consumo da população urbana e rural aumentou o peso das roupas, ao mesmo tempo em que ingressaram novos tipos de bens de consumo duráveis, como televisores, lavadoras, gravadores, geladeiras, ventiladores e má-quinas fotográficas, além das “quatro velhas peças”, constituídas pelas bicicletas, relógios, máquinas de costura e rádios.

Em termos de unidades de televisores a cor, geladeiras e lavadoras, no ano 2000, o consumo desses artigos de consumo duráveis na China, para cada 100 famílias urbanas e rurais, era:

Urbanas RuraisTelevisores a cor 105,43 32,59Geladeiras 76,08 9,25Lavadoras 90,57 22,81

Taxas de Investimento

Em 1998, o total da poupança depositada nas organizações financeiras da China atingiu 9,6 trilhões de yuans, ou USD 1,162 trilhão (dólar cotado a RMB 8,26), quase o volume do produto interno bruto do país. Esse é o prin-cipal componente dos investimentos para a construção econômica chinesa, que têm constituído 30% a 40% do PIB entre 1980 e 2000.

Uma parte substantiva na composição desses investimentos na produção tem sido representada pelos investimentos diretos e empréstimos estrangeiros. Entre 1979 e 1998, tais investimentos diretos somaram USD 265,6 bilhões. A maior parte deles concentrou-se nos anos 1990, com uma média anual de USD 30 a USD 40 bilhões. Os empréstimos externos, nesse mesmo período, somaram USD 162 bilhões.

Renda da população

Entre 1949 e 1978, a renda média da população das zonas rurais chinesas au-mentou 2,9% ao ano. De 1978 a 1998, descontados os fatores da alta dos preços, essa

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renda cresceu 3,6 vezes, numa média anual superior a 5%. A renda média da popu-lação urbana também tem crescido, desde 1984, numa média anual superior a 6%.

Desde 1999, tendo em vista a instabilidade do mercado internacional, as autoridades chinesas decidiram incrementar ainda mais a renda de sua própria população, com vistas a reforçar o papel do mercado e do consumo doméstico no desenvolvimento econômico. Nessas condições, a renda per capita real da população tende a crescer, nos próximos anos, a taxas maiores dos que as expe-rimentadas nos recentes vinte anos.

Proteção ambiental

- Pessoal ocupado: 136 mil; - Estações de monitoramento: 2.170;- Reservas naturais: 932 com 76,71 milhões ha.

Metas até 2010

O governo chinês estabeleceu a meta de construir uma estrutura de eco-nomia de mercado socialista relativamente completa até 2010 e, entre 2010 e 2020, alcançar uma estrutura econômica relativamente madura.

Tendo em vista essas metas de longo alcance, no primeiro decênio a China deve aplicar as seguintes políticas macroeconômicas:

Zonas transregionais

Com base na experiência das zonas econômicas especiais, e com o fito de estender o desenvolvimento para todo o país, o processo de crescimento tomará como base o desenvolvimento das 7 zonas transregionais compreendidas pelo 1) Delta do rio Iangtsé; 2) Mar de Bohai; 3) Litoral Sudeste; 4) Litoral Sul-Sudoeste; 5) Nordeste; 6) Cinco Províncias Centrais; 7) Noroeste, e a articulação entre elas.

Ritmo de crescimento

Manter uma taxa moderadamente rápida de crescimento de 7% a 8%, com vistas a não pressionar a infra-estrutura econômica nem criar tensões inflacionárias.

Equilíbrio entre oferta e demanda

Manter um equilíbrio adequado entre a oferta e a demanda através da ele-vação do consumo doméstico e da manutenção de taxas adequadas de exporta-ções e importações.

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Controle macroeconômico

- Inflação: manter dentro da taxa de um dígito;- Investimentos produtivos: sustentar em 30 a 35% do PIB;- Investimentos sociais: aplicar 13 trilhões de yuans no decênio para erra-

dicar os bolsões de pobreza, estabelecer os sistemas universais de aposentadoria, seguro desemprego e seguro de saúde, e o sistema universal de ensino básico de 9 anos;

- Estabilidade monetária: manter o renminbi numa paridade adequada com o dólar norte-americano e torná-lo conversível internacionalmente;

- Exportações e importações: manter o equilíbrio entre ambas, de acordo com as necessidades da economia nacional;

- Reservas internacionais: continuar elevando-as para a segurança do co-mércio externo, captação de investimentos e empréstimos internacionais, e es-tabilidade da moeda;

- Taxa de desemprego: evitar que ela ultrapasse o patamar de 4%, com a sustentação do seguro desemprego e o auxílio das políticas de re-alocação e reciclagem dos trabalhadores;

- Criação de postos de trabalho: criar 40 milhões de novos postos.

Padrão de vida

- Renda média per capita: elevar no mínimo para 5.500 yuans;- Salário médio: elevar para 3.236 yuans;- Seguro velhice: ultrapassar os 87,7 milhões de segurados atuais;- Fundos sociais: unificar os fundos sociais como base para a universaliza-

ção das garantias sociais aos aposentados, velhos e acidentados;- Padrão geral de vida de toda a população: classe média baixa

06/03/2003

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As exportações chinesas, nos quatro primeiros meses de 2001, haviam cres-cido 11,3%. Porém, nos meses seguintes, em virtude da desaceleração da eco-nomia americana e da recessão mundial posterior ao 11 de setembro, tiverem queda acentuada, e devem fechar o ano com um crescimento de 7%. Já o cres-cimento das importações será maior, fazendo com que o superávit da balança comercial caia dos USD 6,3 bilhões, de 2000, para USD 5,1 bilhões.

A queda nas exportações terá reflexo na diminuição de pelo menos 1% no ritmo de crescimento global da economia chinesa. Dos esperados 8,6%, o crescimento do PIB provavelmente não passará de 7,5% a 7,6%. Por outro lado, os investimentos externos diretos cresceram 20% no primeiro semestre de 2001 (chegaram a USD 20,1 bilhões), e as previsões são de que cheguem a USD 41 bilhões até o final do ano, e continuem crescendo nos próximos anos (estima-se que se elevarão a USD 65 bilhões em 2005).

Além disso, como o governo chinês tomou uma série de medidas para ex-pandir seu próprio mercado doméstico, projeta-se um crescimento do seu PIB de 7,8%, em 2002, e 8%, em 2003, num brutal contraste com o resto do mun-do. As reservas internacionais da China, por seu turno, alcançaram USD 200 bilhões, a inflação manteve-se em níveis muito baixos (o perigo enfrentado foi de deflação) e o yuan ou renminbi mantém-se estável (USD 1 = RBM 8,26).

Medidas para enfrentar a recessão mundial

Desde 1998, na esteira da crise financeira asiática, o governo chinês vem adotando uma série de medidas preventivas, cujo objetivo principal consiste em manter seu ritmo “moderadamente rápido” de crescimento - 7% a 8% - nos próximos dez anos, pelo menos:

A China em 2001

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- Elevar a renda da população- Estimular o consumo doméstico- Continuar competindo no mercado internacional- Continuar aprofundando suas reformas- Manter as políticas fiscais ativas- Manter os investimentos estatais no nível corrente- Encorajar os investimentos não-estataisPara a elevação da renda da população, o governo chinês aumentou as pen-

sões dos aposentados e o seguro desemprego em 80 yuans por mês, elevou os rendimentos dos funcionários públicos (em geral inferiores aos salários das es-tatais e empresas coletivas e privadas), instituiu o 13º salário, reduziu as taxas e impostos sobre os produtores agrícolas, estendeu os benefícios dos trabalhadores urbanos para os rurais, reduziu ou isentou de IR os rendimentos anuais de 50 mil yuans a 100 mil yuans, universalizou o seguro-desemprego, ampliou o siste-ma de renda mínima para os que ainda vivem abaixo da linha da pobreza (umas 30 milhões de pessoas), e adotou uma política geral de elevação mais rápida das rendas mais baixas.

Para a elevação do consumo, o governo ampliou os feriados nacionais (ano novo lunar, 1º de maio e 1º de outubro) para uma semana (mantendo, porém, o comércio funcionando), estimulou o turismo interno, através da multiplicação de eventos de todos os tipos (festivais artísticos, exposições, feiras etc), intensi-ficou os estímulos à educação (ofertas de cursos de reciclagem, pós-graduação, doutorado etc), incrementou a construção de moradias e as ofertas de aquisição da casa própria à prestação, com juros baixos e estáveis, e elevou os investimen-tos em infra-estrutura e ativos fixos.

Para a competição no mercado internacional, o governo chinês ampliou a política de atração de capitais externos, em especial para o Centro e o Oeste do país, com oferta de maiores facilidades e incentivos, acelerou as negociações para o ingresso na OMC, com a possibilidade de aproveitar as vantagens compara-tivas e evitar as atuais retaliações protecionistas, levantou certas barreiras ainda existentes para a entrada de capitais externos e privados em áreas de monopólios estatais (ferrovias, aviação civil, mercado de ações etc), e aumentou os incentivos para a elevação da produtividade e qualidade dos produtos chineses.

Para o aprofundamento das reformas, o governo chinês decidiu implan-tar nas empresas estatais um sistema empresarial moderno, com funciona-mento de acordo com os requerimentos do mercado e produção em escala, definição dos direitos de propriedade das estatais, definição dos direitos e responsabilidades das empresas diante da sociedade, separação da adminis-tração governamental da gestão empresarial, e adoção da gestão científica. As siderúrgicas Baoshan e Handan, assim como o Grupo Farmacêutico do

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Nordeste, passaram a ser dados como exemplos de estatais com um sistema empresarial moderno.

Paralelamente a isso, o governo também decidiu realizar uma reforma fis-cal, para eliminar as taxas extra-orçamentárias, inclusive transformando algumas em impostos, redistribuir a participação dos governos central e locais na arreca-dação, e estabelecer um sistema fiscal que cubra todas as atividades econômicas, assim como realizar uma reforma financeira, que tenha como escopo reforçar o mercado de capitais, estabelecer uma estrutura regulatória racional, e melhorar a governança das empresas financeiras.

Para manter as políticas fiscais ativas, foi decidido aumentar os créditos para as pequenas e médias empresas, manter o lançamento moderado de títulos do Tesouro para as obras estratégicas de infra-estrutura e de reforma tecnológi-ca, reforçar o controle do Banco Central sobre os bancos comerciais e sobre os créditos de consumo, para evitar riscos financeiros, e manter a estabilidade da taxa de juros. Para manter o nível dos investimentos estatais, decidiu-se manter os investimentos estatais nas obras estratégicas.

O Complexo Hidrelétrico e Tecnológico das Três Gargantas deverá consu-mir USD 12 bilhões, entre 1993 e 2009; o desvio de 38 a 40 bilhões de m3/ano, das águas do rio Iangtsé para as terras secas do norte, deverá consumir USD 4,8 bilhões; as obras de preservação e melhoria do meio ambiente consumirão USD 84,3 bilhões, entre 2001 e 2005; a preparação de Beijing para os Jogos Olímpi-cos de 2008, levarão USD 13 bilhões, enquanto a importação de equipamentos e produtos de alta tecnologia consumirá USD 1,4 trilhão, entre 2001 e 2005.

Por outro lado, para encorajar os investimentos não-estatais, a China pro-cura eliminar os encargos considerados irracionais, quebrar os monopólios ad-ministrativos, abrir os monopólios comerciais, como ferrovias e aviação civil, apoiar as pequenas e médias empresas, e estimular as construções civis. Só na preparação de Beijing para os Jogos Olímpicos, o novo boom de construções civis deve mobilizar investimentos adicionais, não-estatais, de USD 22 bilhões.

Relações China-USA

Durante a campanha eleitoral norte-americana e logo após a posse, o presi-dente Bush manteve um discurso e medidas que apontavam para um contencio-so crescente com a China. George Bush considerava a China um “competidor estratégico”. O ponto máximo dessa escalada contenciosa foi o incidente entre um caça chinês e um avião-espião dos EUA no Mar da China.

Porém, o crescente declínio da economia americana no rumo da recessão, desde o primeiro semestre de 2001, atingindo a maior parte dos países do mun-do, enquanto a China mantinha seu ritmo de crescimento, já provocara mu-

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danças práticas naquela política contenciosa, embora o discurso se mantivesse. Demonstração disso foi a visita do secretário de Estado, Collin Powell, a Beijing, em julho, quando ocorreu uma sensível redução na tensão entre os dois países.

Os atentados de 11 de setembro, e as flexões estratégicas que os EUA viram-se obrigados a realizar para combater o terrorismo, fizeram com que também o discurso do \ norte-americano mudasse. Na cúpula da APEC, em Shanghai, nos dias 19 e 20 de outubro de 2001, o presidente Bush declarou ao presidente chinês Jiang Zemin, que os EUA não consideravam a China como inimiga, mas uma amiga, e que desejavam desenvolver entre ambos os países uma relação “construtiva e cooperativa”, através de “diálogos estratégicos de alto nível” entre seus presidentes, ou representantes diretos destes.

Como disse a diretora da Agência de Desenvolvimento e Comércio dos EUA, Thelma Askey, “afetados por fatores econômicos e recentes tragédias... os Estados Unidos necessitam do mercado chinês para incrementar suas ex-portações”. Apesar disso, permanecem diversos pontos de divergência entre os EUA e a China. Bush, por exemplo, considera a questão de Taiwan “regional”, enquanto a China a considera “interna” ou “doméstica”. Além disso, há a dis-cussão em torno de direitos humanos, políticas étnicas, proliferação de armas e Escudo de Mísseis de Defesa. Porém, enquanto os Estados Unidos necessitarem do marcado chinês, a tendência é que as relações “construtivas e cooperativas” se mantenham.

25/11/2001

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Uma das conseqüências da transformação da economia socialista central-mente planificada chinesa numa economia socialista de mercado foi a diver-sificação dos tipos de propriedade (estatal, coletiva, privada e individual), e a criação de um mercado onde a força de trabalho é adquirida pelas empresas de qualquer um daqueles tipos.

Por outro lado, o rápido crescimento da indústria urbana, em especial da construção civil, tem atraído um crescente número de trabalhadores rurais. Sur-giu assim uma nova categoria de trabalhadores na China, a dos “migrantes”. Apenas na Província de Guangdong, com mais de 170 milhões de habitantes, os migrantes somam 16 milhões, cerca de 10% da população.

O surgimento dessa categoria trouxe consigo uma série de abusos pratica-dos pelos empregadores privados. Pagamentos atrasados, deduções ilegais dos salários e cárcere privado são denúncias constantes na imprensa chinesa, ge-rando disputas trabalhistas, que muitas vezes levam a conflitos e depredações. A intervenção do governo chinês nem sempre tem sido efetiva, em vista da ausência de uma legislação específica a respeito dos direitos desse novo tipo de trabalhador.

O governo provincial de Guangdong partiu na frente para dar um emba-samento jurídico à defesa dos trabalhadores migrantes, elaborando uma série de regulamentos e propostas de lei. Submetidos à aprovação da Assembléia Popular Provincial, esses regulamentos estipulam os procedimentos salariais, quando e como pode haver deduções, e as responsabilidades penais dos empregadores, no caso de transgressão das normas estabelecidas.

Os empregadores ficam obrigados a pagar aos trabalhadores, inclusive com a venda de seus bens pessoais, mesmo no caso em que sua empresa falir. Em-

Leis de proteção dos trabalhadores

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presas que atrasarem o pagamento dos salários deixam de usufruir, desde o mo-mento em que a investigação a respeito tiver início, qualquer direito de uso da terra, e quaisquer políticas preferenciais sobre empréstimos e taxas. Os nomes das empresas recalcitrantes serão publicados amplamente na imprensa.

Como seria de esperar, muitos empregadores privados alegam que as novas leis e regulamentos vão erodir sua competitividade. No entanto, apesar disso, o exemplo de Guangdong começa a ser seguido por outras províncias onde o fe-nômeno dos migrantes está presente. E existe a expectativa de que o Congresso Nacional chinês elabore regulamentos e leis que tenham validade nacional, e ampliem a proteção dos trabalhadores.

05/06/2005

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As relações políticas da sociedade chinesa são reguladas pela Constituição, tendo por base a aplicação dos direitos humanos, as organizações políticas e sociais, o sistema de assembléias populares e a organização do Estado.

A Constituição atualmente vigente na China é a de 1982, que sofreu emen-das em 1988, 1993 e 1999. Segundo essa Constituição, a China é um país socia-lista. Ela se encontra na etapa primária de construção desse sistema social. Nessas condições, a tarefa principal de seu Estado consiste em realizar a modernização econômica, social, política e cultural, de acordo com as características chinesas.

Na Constituição, estão garantidos os direitos fundamentais dos cidadãos e as cláusulas sobre a administração democrática das entidades básicas. Aqui estão entendidas as empresas estatais e as organizações econômicas coletivas, os comi-tês de moradores e comitês de camponeses, e os governos populares de cantões e povoados. Na Constituição também estão estipuladas as formas de estruturação do Estado, dos partidos políticos, das organizações sociais, e da participação social nos assuntos do Estado.

Direitos humanos

O governo chinês considera a Declaração Universal dos Direitos do Ho-mem como o primeiro documento internacional que expressa sistematicamente os direitos humanos fundamentais e as formas sob as quais eles devem ser respei-tados e protegidos, tendo assentado as bases sobre as quais devem ser praticados os direitos humanos em escala internacional.

Ao mesmo tempo, considera que a aplicação dos princípios gerais dos di-reitos humanos deve ser adequada à situação nacional de cada país, já que os sistemas sociais, os níveis de desenvolvimento econômico, assim como as tradi-

Relações políticas

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ções históricas e culturais, são diferentes. Desse modo, os métodos de colocar em prática os direitos humanos devem variar de país para país.

No seu caso, a China considera que os direitos do povo à subsistência e ao desenvolvimento são a base de promoção e proteção de todos os demais direitos humanos. Em função disso, tomou a solução do problema da alimentação e do vestuário como preocupação principal durante os trinta primeiros anos da Re-pública Popular. De 1979 em diante, tendo resolvido aqueles problemas básicos, transferiu sua preocupação principal para o programa geral de desenvolvimento econômico, de modo que a vida do povo alcance um nível de vida modestamen-te confortável, e tenha condições de exercer plenamente seus direitos.

Nesse sentido, a China formulou leis e políticas, que considera apropriadas para aplicar os princípios gerais dos direitos humanos em concordância com seu sistema social, seu desenvolvimento econômico e suas tradições históricas e culturais. Tais leis e políticas têm as seguintes características:

Caráter amploOs direitos humanos devem ser desfrutados pelo conjunto do povo e não

apenas por uma parte. Em tais condições, não admitem que os direitos básicos à subsistência, ao trabalho, à moradia, à educação e à saúde sejam negados a uma parte das pessoas, dos estratos e das classes sociais. Tais direitos individuais e coletivos devem ser garantidos pelo Estado a todos.

Caráter justoTodos os direitos humanos à subsistência, ao trabalho, à moradia, à educa-

ção, à saúde, à liberdade e à política devem estar legalmente garantidos a todos os cidadãos na Constituição, sem que ninguém seja restringido a tomar como norma as diferenças de posses, situação econômica, etnia, raça, sexo, profissão, origem familiar, crença religiosa, grau de instrução ou tempo de residência. Em outras palavras, todos os cidadãos devem ser iguais perante a lei.

Caráter realCabe ao Estado garantir o sistema de aplicação dos direitos humanos, de

modo que os direitos gozados por todos, coletiva e individualmente, sejam iguais aos diversos direitos estabelecidos na Constituição.

Como demonstração de sua disposição de aplicar os princípios gerais dos direitos humanos, a China incorporou-se às 17 convenções internacionais que regulam o assunto, mantendo informados os órgãos de supervisão e execução dessas convenções sobre a aplicação das normas convencionadas.

Relações políticas: organizações sociais e partidos

A China possui uma gama considerável de organizações sociais, incluindo sindicatos, ligas juvenis, associações femininas, federações de empresários, associa-

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ções religiosas, e outras organizações não-governamentais dedicadas ao meio am-biente, deficientes físicos, esportes, comércio etc. Nos anos mais recentes, ganhou vulto a organização de comunidades específicas, de zonas residenciais e bairros, que assumem a supervisão de seus próprios assuntos e estabelecem relações de parceria com as organizações estatais para a solução dos problemas locais.

Além disso, funcionam nove partidos políticos, sendo o Partido Comunista da China - PCC o maior deles (mais de 60 milhões de membros) e o que detém a direção do Estado chinês. Os outros oito partidos são: Comitê Revolucionário do Guomindang, Liga Democrática da China, Associação de Construção De-mocrática da China, Associação Chinesa para a Democracia, Partido Democrá-tico dos Camponeses e Operários da China, Zhigongdang da China, Sociedade 3 de Setembro, e Liga para a Democracia e a Autonomia de Taiwan.

O órgão superior dirigente do PCC é seu Congresso, realizado a cada cinco anos, que elege um Comitê Central. Este dirige o partido entre os congressos e se reúne em sessão plenária pelo menos uma vez por ano. A sessão plenária do Comitê Central elege, por sua vez, seu birô político, o comitê permanente do birô político, o secretário geral e o secretariado do Comitê Central. Entre uma e outra sessão do Comitê Central é o birô político que exerce as funções do Comi-tê Central. O secretário geral e o secretariado são os organismos executivos.

O PCC e os demais partidos participam dos órgãos de poder através das eleições para as assembléias populares (nos níveis de cantão e povoado, muni-cipal, distrito, municipalidade, província e nacional). Além disso, participam do sistema de cooperação e consulta interpartidária, institucionalizado através da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, e das reuniões e colóquios interpartidários promovidos pelo PCC.

A Conferência Consultiva Política é uma organização de frente única da qual participam os representantes dos partidos políticos, personalidades sem partido, organizações sociais diversas, representantes das minorias étnicas, dos chineses retornados de Hong Kong, Macau e Taiwan, e de setores sociais di-versos. Organizada nacionalmente, a Conferência Consultiva Política funciona como um grande fórum de consulta permanente sobre os diferentes assuntos da política do país.

Relações políticas: assembléias populares

As assembléias populares são os órgãos supremos e legislativos do Estado. A Assembléia Popular Nacional (APN) é a mais elevada instância do Estado, composta por deputados eleitos, a cada cinco anos, pelas assembléias populares provinciais e de regiões autônomas, municipalidades, regiões administrativas especiais e exército.

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As assembléias populares provinciais e de regiões autônomas, municipali-dades, regiões administrativas especiais e exército são compostas por deputados eleitos pelas assembléias populares de distritos. Os deputados destas, por seu turno, são eleitos pelas assembléias populares dos municípios, bairros, cantões e povoados, cujos deputados são escolhidos em eleições diretas.

Como uma república parlamentarista, cabe às assembléias populares dos diversos níveis designar os órgãos executivos do Estado, como comitês perma-nentes, prefeitos, governadores e, no caso da APN, o presidente da república, o conselho de Estado, o primeiro-ministro, os ministros e diretores dos órgãos administrativos do Estado, o presidente da comissão militar central, o presiden-te do Supremo Tribunal e o procurador geral do Estado.

06/08/2007

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Como civilização espiritual os chineses compreendem um povo altamente educado e culturalmente elevado, relações e estruturas políticas estáveis a serviço do povo, e um sistema democrático que compreenda as relações econômicas, sociais e políticas.

Educação

A China considera a educação como prioridade de governo e da sociedade. Ela é a base para elevar a cultura e os conhecimentos científicos e permitir um desenvolvimento sustentado do país, especialmente numa época em que a hu-manidade ingressa no processo de informatização.

O sistema de ensino da China procura, em primeiro lugar, garantir a edu-cação infantil, primária e secundária de primeiro nível, obrigatória, combinando puericultura e educação, e ensino teórico, com as demandas da vida prática. Nas escolas infantis a educação compreende fundamentalmente os jogos, de modo que as crianças desenvolvam-se física, intelectual, moral e artisticamente. Nas escolas primárias e secundárias de primeiro nível, além do ensino das matérias básicas e de técnicas de trabalho, é praticado o sistema de educação extra-escolar e moral, visando estimular a capacidade de raciocínio dos jovens e adolescentes, e elevar seu nível para enfrentar os problemas da vida corrente.

Em segundo lugar, a China procura ampliar constantemente a educação se-cundária de segundo nível e o ensino especial e profissional. Ela pretende aumen-tar a base necessária à formação educacional de nível superior, garantir os direitos à educação dos deficientes, e elevar o nível técnico e científico da força de traba-lho do país, e de boa parte daqueles que pretendem fazer um curso superior.

Civilização espiritual

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Em terceiro lugar, a China também procura ampliar o sistema de ensino superior, conformando uma estrutura educacional de múltiplos estratos, for-mas e disciplinas, que correspondam às necessidades de desenvolvimento da economia e da sociedade. Nesse sentido, os centros de ensino superior, que compreendem graduação, pós-graduação e doutorado, são estimulados a criar empresas, tendo como foco principal produtos de alto conteúdo tecnológico, que permitam elevar a pesquisa científica e tecnológica, e o próprio conteúdo do ensino.

Em quarto lugar, especial atenção é dada à educação de adultos, de modo a melhorar o conteúdo técnico da força de trabalho em todos os níveis. Isto é, a educação de adultos compreende tanto o ensino para analfabetos e trabalha-dores de pequena qualificação técnica, quanto o ensino para trabalhadores de qualificação técnica média, e para técnicos e adultos em condição de cursar o ensino superior.

Cultura

A China entende como cultura todos os produtos espirituais criados por sua civilização e pelas demais civilizações humanas, assim como os sistemas de informação e difusão cultural, e a infra-estrutura necessária para o funciona-mento desses sistemas. Desse modo, o conceito de cultura engloba os meios de comunicação de massa (imprensa, rádio, televisão, editoras), literatura, ópera, teatro, música, canto, dança, cinema, pintura, caligrafia, acrobacia, artesanato, bibliotecas, museus, e proteção dos objetos históricos.

A cultura também engloba, como base de seu desenvolvimento, a liberdade de criação e de crítica cultural. Desse modo, a elevação cultural tem por base a educação, a assimilação dos conhecimentos e a produção de novos conhecimen-tos, nas diversas formas em que estes podem ser manifestados. A cultura é, pois, elemento essencial para elevar a própria educação e o conhecimento geral da so-ciedade a novos patamares, aumentando o grau de civilização cultural e fazendo com que este rebata positivamente sobre a própria civilização material.

A China tem realizado esforços para avançar em todos os aspectos aponta-dos acima. Ela ampliou consideravelmente a quantidade e a qualidade de seus meios de comunicação de massa, ao mesmo tempo em que se abriu para a trans-missão de emissoras estrangeiras. No final de 1998 circulavam na China mais de 2 mil jornais, com uma tiragem diária média de 71 milhões de exemplares, dedicados tanto a notícias gerais, como especializados em economia, ciência, tecnologia, esportes etc.

As revistas também se multiplicaram rapidamente nos anos mais recentes. Dedicadas a assuntos gerais, ciências sociais, ciências naturais, tecnologia, litera-

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tura, arte e direito, em 1998 elas totalizavam mais de 7 mil títulos, com tiragem média mensal de 200 milhões de exemplares.

Quanto à televisão, expandida a partir dos anos 1980, existem hoje na China 300 milhões de televisores, com mais de um bilhão de telespectadores. Tendo por base sistemas de satélite e redes terrestres com sistemas de microon-da e a cabo, a rede chinesa de televisão compreende uma emissora central - a CCTV, ou Central de TV da China - com 9 canais, e mais de 3 mil estações locais com programas próprios e conjuntos. Essa rede atinge mais de 90% da população do país.

A indústria editorial chinesa de livros também tomou impulso nos anos mais recentes, saltando da publicação de 15 mil títulos em 1978 (3,7 bilhões de exemplares), para mais de 120 mil títulos em 1998 (7,3 bilhões de exemplares). Os principais títulos estão relacionados com literatura, ciências sociais, ciências naturais, tecnologias, divulgação popular, literatura e divulgação infantil.

A literatura chinesa tem uma larga tradição, tendo surgido no século VI an-tes de Cristo, com o Livro de Ode, uma compilação de 305 poemas produzidos entre a dinastia Zhou e o Período de Primavera e Outono. As dinastias poste-riores viram surgir a literatura histórica, a literatura política, a literatura ética, os dramas e as novelas. Nas primeiras décadas do século XX veio à luz uma lite-ratura de conotação social, representada por Lu Xun, Guo Moruo, Mao Dun, Bao Jin, Lao Che e Cao Yu. Mais tarde, essa literatura foi continuada por Luo Guangbin, Yang Yiyan, Yang Mo, Zhou Libo e Liu Qing. No período aberto pelas reformas de 1978 surgiu uma literatura relacionada principalmente com a crítica à “ revolução cultural” (1966-1976) e com as mudanças ora em curso.

A operística chinesa possui mais de 300 variedades locais e tradicionais, mas a Ópera de Beijing é a mais conhecida e influente. Ela mistura teatro, can-ção, música, dança e artes marciais, possuindo uma estrutura cênica, modelos musicais e fórmulas representativas muito próprios e diferentes das óperas oci-dentais. Isso não tem impedido que os chineses sejam apresentados à operística ocidental, ato que começou com a encenação da ópera Turandot, de Puccini, em pleno espaço do antigo Palácio Imperial da Cidade Proibida.

O teatro e a música vêm sendo incentivados através da construção de no-vos teatros, da formação de novas companhias teatrais e da encenação de peças nacionais e estrangeiras, assim como de grupos musicais e orquestras sinfônicas. Mas é certamente o cinema chinês que está se desenvolvendo com mais rapidez e conquistando fama mundial. Diretores como Zhang Yimou, Chen Kaige, Xie Jin, Ruan Linyu e filmes como Lanternas Vermelhas, Adeus à minha concubina, Sorgo Vermelho, Terra amarela, Nenhum a menos, Banhos, Caminho para casa, e vários outros, receberam consagração internacional e podem ser encontrados nas lojas de vídeo da maioria dos países.

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Assim, através da criação de um sistema aberto de produção e distribuição independente, hoje na China não só é possível produzir filmes dos mais diferen-tes temas, custeados de diferentes modos, como é possível assistir a uma variada gama de filmes estrangeiros.

A acrobacia chinesa, surgida há mais de 2.500 anos, também é cultivada como arte. Existem na China milhares de conjuntos amadores de acrobatas, e cerca de 100 alcançaram categoria técnica e profissional sofisticada, apresen-tando-se na própria China e no exterior. O exemplo mais significativo desses grupos são os acrobatas de Wuqiao, da província de Hebei, onde é celebrado, a cada dois anos, o Festival Internacional de Acrobacia.

A arte pictórica e a caligrafia chinesa surgiram há mais de seis mil anos. Figuras de peixes, animais, pássaros e flores foram as primeiras manifestações da arte pictórica, em geral compostas por pequenos desenhos com linhas. O desen-volvimento desses desenhos levou à sua conversão em caracteres para a escrita. Desse modo, a arte pictórica chinesa desdobrou-se, com o tempo, na pintura e na escrita. Esta, por sua vez, transformou-se na caligrafia, uma arte apreciada internacionalmente, com vários estilos e estruturas variadas.

O artesanato, por sua vez, também possui uma longa tradição, caracteri-zando-se pela variedade e pela técnica apurada. Ao longo do tempo o artesanato chinês, em grande medida baseado em temas e materiais folclóricos, evoluiu para um tipo especial. Ele inclui entalhes em marfim, objetos de jade, cloisonné, esculturas de pedra, gravuras de laca e objetos de porcelana. Com a elevação do padrão de vida da população e o desenvolvimento do turismo externo, o artesa-nato chinês ganhou impulso e está resgatando técnicas e tradições artísticas que pareciam perdidas no passado.

Como parte da infra-estrutura cultural, a China possui uma rede de bi-bliotecas públicas e bibliotecas dos centros de ensino superior, instituições cien-tíficas, organizações sindicais e populares, unidades militares, escolas primá-rias e secundárias, cantões e povoados, empresas e bairros residenciais. Apenas contando aquelas relacionadas com os centros de ensino superior, instituições científicas e públicas de nível distrital, elas são mais de 13 mil. A Biblioteca Na-cional, sediada em Beijing, é considerada a maior da Ásia.

À rede de bibliotecas agrega-se a de museus, com cerca de 2 mil em todo o país. Num processo constante de ampliação, tais museus estão dedicados à his-tória, artes, recursos naturais, etnias, costumes, ciências e tecnologias, e outros temas. Ainda em relação com a preservação e proteção dos objetos históricos, artísticos e culturais da China, a administração pública tem se empenhado em recuperar e salvar as relíquias do passado, que estavam à beira da destruição. Pa-lácios como o Potala, no Tibet, grutas com as da montanha Chumbe e Yungang, templos como o Taer, e cerca de 750 outras relíquias do mesmo porte, foram reconstruídas e colocadas sob proteção nacional.

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Os esportes também constituem um importante aspecto do fortalecimento da saúde, do desenvolvimento cultural e do esforço para construir uma nova civilização espiritual. Isso tem incluído a submissão a exames físicos, pelo menos uma vez ao ano, e a disseminação das diferentes práticas de ginástica e de espor-tes por todo o país. Paulatinamente, ao lado dos esportes tradicionais e étnicos, estão sendo introduzidas na China as modalidades internacionais não praticadas por eles, como o alpinismo, hipismo, tobogã, boxe feminino e golfe.

Nos anos mais recentes, a China transformou-se numa potência olímpica, tendo conquistado um considerável número de títulos mundiais em diversas modalidades esportivas. Pela primeira vez na curta história do futebol chinês, sua equipe também conseguiu classificar-se para a Copa do Mundo de 2002. Esse desenvolvimento dos esportes chineses deu-lhe as condições para disputar a realização das Olimpíadas de 2008, em Beijing.

29/07/2007

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As mudanças de regime, no Leste Europeu, cujos principais símbolos foram a derrubada do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, apenas firmaram a radical mudança de tendências, que levou o socialismo a entrar em defensiva estratégica, e o capitalismo em ofensiva estratégica, do ponto de vista econômico, social, político e ideológico.

A confusão ideológica desbaratou a maior parte dos antigos partidos comu-nistas e socialistas, embaralhou a visão teórica das principais correntes de esquer-da, aparentemente enterrou o marxismo, a luta de classes e a revolução, e levou grande número de pensadores a supor que a unipolaridade e a pax americana seriam eternas.

Diante da ofensiva neoliberal, que acompanhou o surgimento das corporações transnacionais como elementos chaves da nova etapa de desenvolvimento do capital, muitos sucumbiram à idéia de que não haveria outro caminho, a não ser subordinar-se ao mercado capitalista. A China, sob essa ótica, passou a ser, para um sem-número de socialistas, o exemplo mais evidente do que o capital era capaz de fazer para destruir uma nação, e desenvolver a si próprio.

A nova expansão capitalista era vista, por muitos, apenas em seu aspecto destrutivo. A suposição de que a China estava sendo estraçalhada, assim como as marcas profundas deixadas pelo furor neoliberal na América Latina, pareciam dar-lhes razão. Nessas condições, foram poucos os que viram, ao mesmo tempo, que o capital se via obrigado, em sua nova etapa de desenvolvimento global, a recriar fábricas e operários, em países até então tidos como inviáveis.

Em outras palavras, para barrar a inexorável tendência de queda da taxa média de lucro, o capital se viu constrangido a buscar a extração de mais-valia em países agrários, com força de trabalho abundante e barata. Desse modo, não

Equilíbrio instável

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mais que de repente, a crença de que a revolução científica e tecnológica teria vindo para implantar uma sociedade pós-industrial e de serviços eletrônicos, desmanchou como uma bolha no ar. E as previsões de Marx voltaram a tornar-se uma incômoda realidade.

Na Ásia oriental e do sudeste, assim como na Índia, o processo de industria-lização deu um salto gigantesco. Colocou quase um bilhão de pessoas no chão de milhões de fábricas, e fez com que o eixo de desenvolvimento econômico se deslocasse, dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, para a Ásia do Pacífico, mesmo com o Japão vivendo a agonia de uma crise.

Ao mesmo tempo, começou a desmanchar-se a teoria da invencibilidade do poderio bélico norte-americano, assim como as teorias de que as guerras eram bons negócios, tanto para os fabricantes de armas, quanto para as nações em que tais armas eram produzidas. Com o ataque ao Iraque, o poderio bélico americano entrou num atoleiro, e os Estados Unidos ingressaram numa crise, que só vem se agravando e cuja solução não parece estar à vista.

E a China, que parecia condenada à mesma destruição experimentada pelos países da América Latina e da África, não apenas se transformou na principal fábrica do mundo, como começou a mostrar um caminho de desenvolvimento diferente dos caminhos históricos anteriores das economias de mercado.

O mundo ingressou, assim, num equilíbrio altamente instável, em que o socialismo continua na defensiva estratégica, mas o capitalismo vê sua ofensiva ser minada por fatores sobre os quais seus teóricos não têm qualquer idéia clara.

24/09/2008

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Um pouco de história

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As raízes históricas da China perdem-se no tempo. Restos do Homo erec-tus, encontrados no território chinês, datam de 500 mil a um milhão de anos. As primeiras aglomerações agrárias datam de 10 mil anos. Até há pouco, acre-ditava-se que a escrita havia surgido no século 21 AC, mas novas descobertas arqueológicas estão indo além.

Entre os séculos 6 e 4 AC, os reinos chineses já estavam transitando do es-cravismo para o feudalismo, e deram surgimento à filosofia clássica, à estratégia e à historia militar, tendo Laotse, Mêncio, Confúcio e Sun Zu como expoentes. O feudalismo ainda combinava escravismo e servidão, mas não eliminou os camponeses livres, que se transformaram numa força social e militar marcante em todas as mudanças dinásticas e sociais da história chinesa, paralelamente às constantes guerras envolvendo os senhores feudais.

Em 221 AC, surgiu o primeiro Estado centralizado chinês. E, a partir de então, a história da China feudal foi marcada por uma luta constante entre a centralização e a descentralização monárquica, fazendo-a viver praticamente em torno de suas relações internas e com os vizinhos mais próximos. Somente a partir da dinastia Tang, no século 10 DC, a China iniciou a expansão de suas relações com os mundos árabe e europeu, a tal ponto que no século 14, com os avanços técnicos de suas embarcações (leme, velas triangulares, grandes estrutu-ras, permitindo grandes navegações através do Pacífico Sul e do Índico), a dinas-tia Ming (1368 - 1644) parecia destinada a realizar sua expansão mercantilista.

No entanto, a intensa disputa entre mercadores e feudais chineses, com a vitória dos últimos, conduziu à proibição da navegação e do comércio, e à destruição da frota. Conduziu também ao enfraquecimento e à cisão dinástica, à aliança de parte da nobreza Ming com o reino feudal manchu, à invasão da

Apenas uma sinopse

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China pelas tropas manchus, e ao estabelecimento da monarquia absolutista Qing, com alto grau de autarquia produtiva. Fechada sobre si mesmo, a China não participou nem acompanhou as mudanças técnicas, econômicas, sociais e políticas que ocorriam no resto do mundo, perdeu muitas de suas conquistas tecnológicas do passado, e ficou despreparada para enfrentar a onda de expansão colonial do século 19.

Assim, quando a Grã-Bretanha iniciou a primeira Guerra do Ópio, em 1840, a dinastia Qing não resistiu, e viu-se obrigada a pagar pesadas indeniza-ções e a fazer concessões territoriais e econômicas. Nos setenta anos seguintes, a China foi assolada por constantes agressões de outros imperialismos, sendo obrigada a assinar tratados desiguais e a realizar progressivas concessões, que a transformaram numa semi-colônia.

Dependente das potências imperialistas, a China foi retalhada em zonas de influências, concessões territoriais e alfândegas administradas por estrangeiros, sendo inclusive proibida de julgar os crimes de estrangeiros em seu território (extra-territorialidade).

Tornou-se fonte de matérias-primas e mercado cativo das potências indus-triais. Embora as potências imperiais se esforçassem por manter a dinastia Qing, a humilhação a que submeteram a China, e a exploração que impuseram aos camponeses, fez brotar formas de resistência, tanto ao duplo domínio estran-geiro, quanto à exploração dos feudais. Os camponeses realizaram inúmeras insurreições e duas grandes sublevações (Taiping e Boxers), derrotadas pelos exércitos particulares dos feudais (senhores de guerra), com o auxílio de tropas estrangeiras. Mas a monarquia, tendo perdido o apoio de importantes senhores de guerra, não suportou as revoltas que conduziram à proclamação da Repú-blica, em 1911-12, com base nos três princípios do povo – fim do domínio manchu, democracia e bem-estar para o povo – proclamados por Sun Iatsen, fundador do Goumindang (Partido Nacionalista Chinês).

A República

Mas Sun Iatsen, eleito presidente pela assembléia republicana, em feverei-ro de 1912, teve que renunciar sob pressão dos senhores de guerra, dirigidos por Yuan Shikai, comandante do Novo Exército do Norte. A República não resolveu a crise agrária, e manteve as concessões às potências imperialistas. Durante a I Guerra Mundial, aliou-se às potências anti-germânicas, o que incluía o Japão, e suscitou a expectativa de que a vitória sobre os alemães re-vogaria os tratados desiguais.

Porém, em 1919, durante a Conferência de Versalhes, o Japão apresentou o acordo secreto assinado com Yuan Shikai, que lhe dava o direito de apossar-se

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das concessões alemães na China, frustrando as expectativas de revogação dos tratados desiguais. Essas notícias desencadearam imensa onda de protestos, o Movimento 4 de Maio, que representou uma inflexão na história chinesa. Mar-caram presença, na cena política, fortes correntes urbanas, estudantis e operá-rias, e ocorreram a reorganização do Guomintang, a fundação da República de Cantão, a organização do Partido Comunista e a disseminação de movimentos camponeses espontâneos pela China.

Em 1924, o Partido Comunista foi convidado a ingressar no Guomin-dang. Sun Iatsen havia estabelecido relações com a União Soviética, reformulara os três princípios do povo, incluindo neles o socialismo, e abrira condições para o PCC participar na expedição militar destinada a derrotar os senhores de guerra do Norte.

No curso dessa expedição, entre 1924 e 1927, ocorreram outras duas mu-danças importantes. Uma série de senhores de guerra do Sul uniu-se à Expedi-ção do Norte, aliou-se a Chiang Kaishek, que havia assumido sua chefia, após a morte de Sun Iatsen, em 1925, e conquistou a hegemonia sobre o Guomin-dang. E os camponeses de Hunan. Jiangxi, Fujian e Zhejiang organizaram mo-vimentos independentes, para lutar pela reforma agrária e contra o domínio feudal, estimulados pela passagem da Expedição do Norte.

O apoio dos comunistas a esses movimentos acirrou suas divergências com o Guomindang, desembocando no golpe militar de Chiang, em 1927. Para salvar-se, parte da direção do PC refugiou-se nas bases rurais, fundando o Exér-cito Vermelho, para resistir à primeira campanha de cerco e aniquilamento do Guomindang, o que deu início à Segunda Guerra Civil Revolucionária.

Em 1931, como parte dos planos de expansão, o Japão ocupou a Manchú-ria, levando o PCC a propor a suspensão da guerra civil e o estabelecimento de uma frente única nacional, proposta não aceita pelo Guomindang. Apesar da insistência comunista pela unidade, as tropas brancas levaram a cabo mais quatro campanhas de cerco e aniquilamento. Por erros de estratégia militar do comando do PC e do Exército Vermelho, obtiveram uma vitória decisiva em 1935.

Para preservar seus efetivos, o PC e o Exército Vermelho iniciaram uma retirada estratégica para as bases do norte (Shaanxi e Shanxi), no curso da qual foram mudados o comando do PC (Mao Zedong passou a secretário-geral), o comando do Exército (Zhu De passou a comandante), e a estratégia da retirada (de retirada pela derrota, a marcha passou a ter como meta colocar o Exército Vermelho na frente da resistência ao avanço japonês).

Assim, embora tenha perdido cerca de 90% de seus efetivos durante a Longa Marcha, ao atingir as bases do norte o Exército Vermelho transformou a derrota militar em vitória política. Em 1936, os comunistas participaram na solução do Incidente de Xian, no qual Chiang Kaishek foi preso e ameaçado de fuzilamento

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por generais de seu exército. Os comunistas agiram para evitar o fuzilamento de Chiang, já que isso poderia prejudicar a unidade contra o Japão.

Essa frente única, porém, só se concretizou em 1937, quando as tropas nipônicas iniciaram sua ofensiva geral, ocupando mais de 900 cidades e for-çando a transferência da capital chinesa de Nanjing para Chongqing. A guerra civil foi suspensa, o Exército Vermelho passou a ser parte do Exército Nacional, agrupado como 8º Exército da Rota e 4º Novo Exército, e o PC foi aceito como participante ativo da vida nacional.

Apesar disso, as estratégias eram diferentes. Chiang Kaishek aceitou os atos de capitulação de suas tropas, conservou seus principais exércitos na retaguarda, colocou os exércitos dirigidos pelo PC nas linhas frontais, provocou incidentes contra eles, buscou a paz em separado com o Japão, manteve um governo dita-torial e procurou evitar a participação popular na guerra.

O PC, ao contrário, assumiu as linhas de frente, não aceitou a paz em se-parado, realizou alianças com outros imperialismos contra o Japão, estabeleceu aliança firme com a URSS, ampliou a frente social contra o Japão, incluindo parte dos latifundiários, ampliou os mecanismos democráticos nas bases rurais, estimulou a participação popular na guerra, instituiu os 8 pontos de disciplina do exército, contra qualquer agressão aos direitos e à vida do povo, e instituiu regras de tratamento dos prisioneiros japoneses, de modo a tratá-los com huma-nidade e quebrar a moral arrogante do exército nipônico.

O resultado foi o fortalecimento do PC, a identificação dos comunistas como força motriz da resistência, a vitória nacional contra o Japão e a derrota da tentativa de Chiang Kaishek de vencer uma nova guerra civil, mesmo com a cooperação dos EUA. Em 1947, os exércitos do Guomindang lançaram-se em ofensiva. Os comunistas denominaram seu exército de Exército Popular de Libertação (EPL), passaram à contra-ofensiva e, no final de 1949, derrotaram as tropas do Guomindang e proclamaram a República Popular.

A República Popular

Em 1949, a China saiu de 23 anos de guerras, que a deixaram destruída. Nessas condições, o novo regime tinha que se dedicar, primeiro, à reconstrução. Expropriou os setores proprietários, rurais e urbanos, ligados aos invasores japo-neses e às demais potências estrangeiras, mas não a burguesia nacional chinesa.

Em três anos, a economia atingiu os níveis de antes da guerra. A partir de 1953, com o primeiro plano qüinqüenal, teve início a instalação de grandes complexos industriais. A China investiu alto na construção de infra-estruturas e indústrias. Em 1957, já produzia aço, metal-ligas, aviões, automóveis, equipa-mentos de geração de eletricidade e de minas, máquinas pesadas e de precisão.

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Mais de 100 grandes empresas industriais foram colocadas em operação, e ou-tras 600 grandes obras tiveram início.

Os recursos para esses investimentos - cerca de USD 32 bilhões - foram arrancados da agricultura, através de impostos, fundos de acumulação das coo-perativas, e emprego de jornadas voluntárias de trabalho. Os camponeses con-tribuíram com 25% de sua produção para o aumento da capacidade produtiva do país. Como resultado, sua renda familiar caiu mais de 20%. Embora a fome endêmica tenha sido eliminada, o conjunto da população permanecia pobre e o padrão de vida dos camponeses e operários foi afetado.

Esse tipo de industrialização, financiada pelo trabalho excedente dos cam-poneses e operários, apresentava limites na queda da renda camponesa, na com-pressão salarial e na escassez de bens de consumo. Com os cereais monopoliza-dos para evitar a especulação, os camponeses transformaram a monopolização no alvo de suas críticas. Para minorá-las, o Estado revendeu aos lavradores uma parte do que havia adquirido deles, prejudicando as exportações agrícolas, das quais dependia a importação de equipamentos. Além disso, ocorreram desequi-líbrios entre a indústria, a agricultura e o consumo, agravados pela disparidade entre a indústria pesada e a indústria leve. A escassez de produtos de consumo de massa pressionou os preços e obrigou o Estado a instituir o racionamento, para assegurar uma distribuição eqüitativa.

Quanto maiores as dificuldades, maiores os esforços para superá-las através da transformação socialista. Acreditava-se que a causa das dificuldades residia nas formas privadas de propriedade e de relações de trabalho e distribuição. Até 1957, a participação da economia capitalista foi reduzida de 7% para zero, e a da economia individual de 72% para 7%. Em contraste, a participação estatal foi elevada de 19% para 32%, a coletiva ou cooperativa de 1,5% para 53%, e a mista estatal-privada de 0,7% para 8%.

Apesar disso, não ocorreu a criação de novos postos de trabalho. Para al-cançar o pleno emprego, foi então adotada a política 1:3 (um trabalho para três pessoas), com danos para a produtividade. Mesmo assim, a insatisfação cresceu, sendo o estopim para uma ampla discussão sobre os rumos da construção socia-lista. Como elevar a capacidade produtiva do país e, ao mesmo tempo, garantir o bem-estar da população? Ou, como industrializar a China e, ao mesmo tem-po, atender às novas necessidades sociais que a superação inicial do atraso e da miséria haviam gerado?

Surgiram discrepâncias, as principais residindo no papel que as formas pri-vadas e as formas públicas e estatais de propriedade poderiam desempenhar. Mui-tos atacavam as formas privadas como entraves, enquanto outros as consideravam uma necessidade histórica não superada. Mao Zedong discutiu essas questões em As 10 grandes relações e Tratamento correto das contradições no seio do povo.

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No primeiro, criticou o modelo soviético, propôs equilibrar a indústria pesada, a agricultura e a indústria leve, sugeriu o desenvolvimento das pequenas indústrias rurais, e defendeu maior descentralização administrativa. Também sugeriu maior autonomia para as empresas e localidades, e aconselhou aprovei-tar a experiência dos outros países, inclusive capitalistas, na ciência, tecnologia e administração.

No Tratamento correto das contradições no seio do povo, advogou cuidado no trato das contradições. Considerava não antagônica a contradição com a bur-guesia chinesa, apesar de seus representantes receberem dividendos das empre-sas mistas, e defendia a idéia de que a contradição básica da sociedade chinesa residia no fato das relações de produção ou de propriedade não estarem em correspondência com as forças produtivas.

Mas, ao considerar as forças produtivas do país mais avançadas do que suas relações de propriedade, trabalho e distribuição, Mao viu-se constrangido a atacar os que criticavam a pressa na coletivização, acusando-os de “tentar parar a revolução”. Desse modo, para “não parar a revolução“, o 8º congresso do PC, em 1956, escolheu o caminho de construir o socialismo estritamente através das formas públicas de propriedade.

Com o Movimento das Cem Flores, em 1957, os comunistas queriam que os intelectuais colocassem toda sua capacidade a serviço da construção socialista. No entanto, a queda do padrão de vida das camadas populares, e o férreo controle do Estado sobre as manifestações políticas e culturais, fize-ram com que o Movimento das Cem Flores escancarasse as comportas para as queixas e insatisfações. As críticas aos defeitos da construção socialista e os ataques ao próprio socialismo foram muito além do previsível. Abriram espaço para a ação de sabotadores e elementos anti-socialistas, e obrigaram os comunistas a contra-atacar, com um movimento de retificação interna de seu partido.

O movimento de retificação levou a grande descentralização. As empresas sob controle central foram reduzidas de 9300 para 1200. Os itens controlados caíram de 532 para 132, e o peso dos recursos orçamentários destinados a obras locais subiu de 10% para 50%. A ampliação dos poderes locais criou ambiente favorável ao aumento da produção. Com isso, em 1958, a direção do PC pla-nejou grande mobilização social para duplicar a produção de aço e unificar as cooperativas agrícolas em comunas populares.

Houve disposição popular para atender a esses apelos, mas as metas apre-sentavam direções opostas. À medida que as autoridades locais realizavam obras de infra-estrutura, a escala destas exigia a coordenação de diversas localidades, apressando a unificação em comunas. A descentralização transformou-se numa nova centralização.

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Além disso, descobriu-se que as estatísticas estavam infladas. O aço dos fornos de quintal era imprestável, e as demandas dispersas de carvão e minério haviam levado caos aos transportes. Sem uma base produtiva adequada, quanto mais acelerada a socialização das relações de trabalho e de distribuição, maior a centralização para compensar aquela ausência. Houve desgaste e dispersão de força de trabalho e de recursos, agravadas pelas calamidades naturais de 1959 e 1960. Neste último ano, a produção agrícola sofreu um colapso, caindo para 150 milhões de toneladas.

A Revolução Cultural

Nessas condições, a discussão sobre a construção socialista na China retor-nou com força. Vários responsabilizavam não apenas as calamidades naturais, mas também as “forças espontâneas capitalistas” pelo insucesso do “grande sal-to”. Outros criticavam a socialização rápida das relações de produção, manifes-tada nas propriedades estatal e coletiva, e nas relações de trabalho e distribuição das comunas e empresas.

Tudo isso ocorria no quadro de um mundo conturbado pela Guerra Fria, e pelas divergências com a União Soviética, a respeito da coexistência pacífica com o imperialismo, e do apoio aos movimentos de libertação. Entre 1959 e 1964 a China enfrentou a insurreição dos feudais do Tibet, conflitos fronteiriços com a Índia, e ameaças de guerra nuclear, com a crise dos mísseis em Cuba. Os norte-americanos mantinham sua política de bloqueio e de “duas Chinas”, intensifica-vam o cinturão anti-chinês, promovendo golpes de Estado e ditaduras em vários países da Ásia, e impedindo a China de estender suas relações diplomáticas.

Nesse contexto, aquela discussão ganhou vários contornos. Mao afirmava que a maior parte da literatura e arte havia abandonado o socialismo e deslizado no revisionismo. Zhu Enlai conclamava os intelectuais a “florir e revitalizar“ e preparava a proposta de “quatro modernizações”, assumindo o desenvolvimento das forças produtivas como eixo da transição socialista. Lin Biao defendia que a tomada do poder dependia de “barris de pólvora e tinteiro”, substituindo co-mandantes e comissários políticos por homens de sua confiança, lançando cam-panhas ideológicas que tomavam a cartilha das Citações de Mao Zedong como bíblia, e dando início a um culto sem precedentes de Mao.

A partir de 1966, essa discussão extrapolou os limites teóricos e ganhou as ruas como “revolução política proletária, continuação da guerra civil e continu-ação da luta de classes entre o Guomindang e o PC”. Os responsáveis da propa-ganda do PC e os dirigentes de Beijing foram destituídos. Em maio, o Comitê Central do PC publicou 16 pontos sobre a Revolução Cultural, colocando a revolução permanente como conceito básico da construção do socialismo.

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Os 16 pontos apelaram às massas para “fazer a revolução”, “transformar os pensamentos, cultura, hábitos e costumes antigos”, “derrubar os que ocupavam postos de direção, mas seguiam o caminho capitalista”, “opor-se aos ataques da burguesia no domínio ideológico”, “criticar as autoridades acadêmicas reacioná-rias”, e “reformar a estrutura de ensino, a literatura, a arte e todos os demais ra-mos da superestrutura”. Ao mesmo tempo, proibiam “que os representantes da burguesia infiltrados no Partido fossem citados nominalmente na imprensa sem a aprovação do comitê ao qual pertenciam”, “que os quadros técnicos e científi-cos dedicados a atividades estratégicas fossem incomodados”, e que a Revolução Cultural “fosse levada às fileiras do Exército Popular de Libertação”.

Milhões se organizaram na “guarda vermelha” e nos “comitês de rebeldes revolucionários”. Aplicavam a democracia direta, cada um interpretando a seu modo as instruções de Mao, para o qual as “massas não deveriam ser tuteladas“. Em 1969, esse movimento já causara prejuízos à produção, pelas paralisações para discussões políticas, pelas arbitrariedades, injustiças e crimes contra os que se opunham às idéias e práticas dos “guardas vermelhos” e dos “rebeldes revolu-cionários”. E quase se materializara em guerra civil, após choques envolvendo unidades do EPL.

Diante disso, a direção do PC e do governo ordenou o desarmamento e a dissolução da Guarda Vermelha. Os organismos estatais foram reorganiza-dos com a representação dos comitês do PC, dos comitês revolucionários e do EPL, e passaram a dar atenção à ordem de “fazer a revolução e aumentar a produção”. A partir de então, a Revolução Cultural refluiu de suas grandes mobilizações, entrando numa fase de disputa quase exclusivamente palacia-na e partidária.

Havia três grupos principais. O primeiro, de Jiang Qing e mais três diri-gentes que haviam se destacado nas discussões ideológicas de 1963. O segundo, de Lin Biao, ministro da defesa, cuja base principal eram oficiais do EPL. E o terceiro, informal, tinha Zhu Enlai, primeiro-ministro, como referência. Sobre eles pairava Mao.

Zhu era o alvo principal dos ataques de Jiang Qing e Lin Biao, mas Mao se opunha a qualquer redução dos poderes de Zhu. Para por em prática sua teoria sobre golpes de Estado no socialismo e derrubar Zhu, Lin Biao teria que chocar-se contra Mao. Lin Biao foi empurrado à aventura golpista quando Mao e Zhu flexibilizaram a política exterior da China, enxergando na situação de derrota dos Estados Unidos no Vietnã uma oportunidade para reduzir as tensões com as superpotências, e sair do isolamento internacional.

Assim, foi no próprio curso da Revolução Cultural que a China retomou suas relações com os Estados Unidos, sob a condição do governo da República Popular ser reconhecido como único governo da China. O plano sedicioso de

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Lin Biao, em 1971, falhou, desbaratando seu grupo e assestando um golpe na corrente aliada de Jiang Qing e na Revolução Cultural.

A partir de 1972, Mao chamou para postos dirigentes muitos dos vetera-nos afastados. Contra a resistência do grupo de Jiang Qing, Mao indicou Deng Xiaoping para vice-primeiro-ministro e chefe do estado-maior do EPL. Mesmo assim, o 10º Congresso do PC, em 1975, reafirmou as idéias centrais sobre a continuação da luta de classes no socialismo, e elegeu alguns dos membros do grupo de Jiang Qing para os órgãos máximos do partido e do governo. Por um lado, Mao estimulava as retificações de Zhu Enlai, Deng Xiaoping e outros. Por outro, permitia ao grupo de Jiang Qing, chamado por ele de “bando dos qua-tro”, atacar essas retificações e denunciar a reabilitação dos veteranos.

Em abril de 1976, Mao responsabilizou Deng Xiaoping pelas manifesta-ções populares contra o “bando dos quatro”. Porém, definiu seu sucessor, ao colocar Hua Kuofeng na vice-presidência do PC. Essa sucessão de poder só poderia ser desfeita por meio de um processo democrático dentro do PC, ou por um golpe palaciano. Foi por este caminho que o grupo de Jiang Qing enve-redou, falhando e sendo preso. O carnaval popular que se seguiu ao anúncio do fato foi a demonstração de que a Revolução Cultural se esgotara.

Apesar disso, Hua Kuofeng queria ater-se às “duas todas”, isto é, a “todas as diretivas” e a “todas as orientações” de Mao. O que estava em contradição com a situação da economia, que necessitava reajustamentos urgentes, e com as pressões pela reabilitação dos veteranos.

Em julho de 1977, Deng Xiaoping e outros veteranos foram reabilitados. O 11º Congresso do PC, em agosto, encerrou a Revolução Cultural, mas não revogou as “duas todas”. Foi preciso jogar Mao contra Mao, reafirmando sua linha de massas (tomar as massas como o centro) e seu estilo de trabalho (pro-curar a verdade nos fatos, ou tomar a prática como critério da verdade), para mudar o foco do trabalho partidário e do governo, da luta de classes para as “quatro modernizações“.

Deng Xiaoping, Chen Yun, Li Xiannian e outros quadros defendiam essa mudança de foco, tomando a democracia como condição maior. Seus argu-mentos tinham como referência as teses de Mao sobre combinar em alto grau democracia e centralismo, distinguir as contradições dentro do povo das contra-dições entre o povo e o inimigo, e manejar cada uma delas com correção. Além disso, aplicar a fórmula unidade-crítica-unidade no tratamento das contradições dentro do povo e aprender dos erros do passado para evitar erros no futuro. A doença deveria ser curada para salvar o paciente.

A 3ª sessão plenária do Comitê Central do Partido Comunista, de dezem-bro de 1978, revogou as “duas todas”. Em 1979, foi formada uma Comissão Econômica e Financeira, dirigida por Chen Yun e Li Xiannian, para organizar

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o processo de reajustamento e preparar o plano de reformas. Sua atenção inicial concentrou-se no “sistema de responsabilidade” agrícola e nas Zonas Econômicas Especiais, destinadas a atrair investimentos estrangeiros e acelerar a abertura eco-nômica ao exterior. Em junho de 1981, o Comitê Central aprovou a resolução sobre a história do PC, na qual os erros de Mao foram relativizados, os erros de outros dirigentes, inclusive de Deng Xiaoping, também foram tomados em con-ta, e as linhas mestras do pensamento de Mao, de integrar a teoria com a prática, forjar fortes laços com as grandes massas e praticar a autocrítica, foram validadas.

Linhas Gerais das Reformas

Como modernizar a China e, ao mesmo tempo, dar trabalho e bem-estar à sua enorme população? Como evitar que as “quatro modernizações” criassem uma imensa população excedente e pobre? As experiências de desenvolvimento do mundo capitalista apontavam para uma crescente massa de desempregados, o que ia contra os princípios socialistas. Essas preocupações, que permearam as discussões realizadas por milhares de quadros do PC e do governo, entre 1977 e 1980, os levaram a reiterar como princípios cardeais de suas reformas o caminho socialista, o fortalecimento do regime democrático popular e da direção do PC, e os guias teóricos do marxismo e do pensamento Mao Zedong.

Consideraram que a China só se recuperara como nação ao ater-se a esses princípios. Como as reformas representavam um recuo estratégico, elas só pode-riam transformar-se em ofensiva, se os membros do PC mantivessem uma firme adesão a eles. A jovem geração não poderia ser educada para dirigir o povo, na construção socialista, se estivesse desarmada ideologicamente, e se os comunis-tas não dessem o exemplo.

Por isso, desde o início das reformas, o combate aos crimes econômicos tornou-se questão vital. Teriam, ainda, que mudar o sistema de liderança, aca-bando com a concentração de poderes e distinguindo entre as responsabilidades do partido e do governo, para evitar que o primeiro substituísse o segundo. O que exigia o fim da vitaliciedade em postos de direção e a melhoria da seleção e do rodízio de dirigentes. Mais do que tudo, os membros e dirigentes do PC deveriam ser iguais a quaisquer outros cidadãos, fazendo com que a democracia e a legalidade socialistas fossem institucionalmente inseparáveis.

O PC se empenhou inicialmente em reajustar a economia, realizando cortes nos grandes projetos e concentrando recursos na agricultura, produção de bens de consumo de massa, fontes energéticas, transportes, educação, saúde pública, cultura e ciências. As primeiras reformas limitaram-se à agricultura e à abertura ao exterior, enquanto a Comissão de Economia e Finanças definia as linhas gerais das demais.

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As reformas rurais devolveram às unidades familiares camponesas o direito de operar sobre a terra nacionalizada, por meio de contratos de responsabilidade, segundo os quais elas produzem conforme sua própria organização, mas se com-prometem a vender ao Estado, através das cooperativas, um determinado volu-me por um preço pré-estabelecido. Tudo que produzirem a mais podem vender, a preço de mercado, ao Estado ou diretamente ao próprio mercado. A terra con-tinua propriedade pública, mas seu usufruto, e a organização camponesa, são privadas, e a circulação e a distribuição são tanto publicas, quanto privadas.

A abertura econômica ao exterior limitou, durante mais de uma década, os investimentos estrangeiros às Zonas Econômicas Especiais (ZEE). Nelas, os estrangeiros deveriam associar-se a uma empresa chinesa, estatal ou coletiva, aportarem novas tecnologias, e exportarem toda a sua produção. O mercado doméstico estava aberto às novas tecnologias das ZEE, mas não aos produtos de suas empresas. Desse modo, a China praticou abertura e protecionismo. O mercado doméstico só foi sendo aberto à medida que as empresas chinesas ga-nhavam competitividade para disputar com as empresas estrangeiras.

O programa de reformas optou por um processo gradual, de longa duração, tendo por base experimentos variados, antes de disseminar cada reforma, e por meta, para o ano 2020, uma economia moderadamente desenvolvida. A par-tir de 1984, começaram as reformas urbanas na indústria, comércio, finanças, serviços, educação, cultura, política, estrutura estatal, salários, preços etc, numa perspectiva de 30 a 50 anos. Elas utilizam várias combinações estratégicas. Re-lacionam planejamento e mercado, propriedade social e propriedade privada, trabalho intensivo e capital intensivo, baixas e altas tecnologias, protecionismo e livre comércio, regulação e desregulação.

Mercado e Planejamento

O mercado voltou a ser a base para o cálculo econômico e regulador dos preços e das demandas produtivas. Mas o Estado, através do planejamento, re-tifica os desvios do mercado e o orienta de acordo com as estratégias da cons-trução econômica. As empresas estatais, cerca de 25% do total, continuaram propriedade social. Elas não têm mais poder monopolista (a não ser em alguns casos), nem estão subordinadas a planos obrigatórios, mas têm autonomia para atuar no mercado, com contratos de responsabilidade entre as assembléias de empregados e o governo.

Para serem rentáveis e realizar a acumulação ampliada, as estatais tinham que modernizar-se. Isso exigia uma reforma paulatina. Primeiro, concedendo mais poderes e lucros às empresas. Depois, separando o direito de propriedade do poder de gestão, com a adoção de diferentes tipos de gerenciamento e en-

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xugando seus corpos operativos, administrativos e diretivos. Ao mesmo tempo, era preciso criar projetos de re-emprego e instituir o sistema de seguridade para manter o padrão de vida dos trabalhadores dispensados. O número de funcio-nários caiu de 74 milhões, em 1978, para perto de 25 milhões, em 1995. Mas isso também representou a criação de milhões de novas empresas, que não te-riam surgido se as estatais não financiassem o reemprego e a realocação.

O mercado de trabalho acompanhou a reforma das estatais, passando a ser regido pelas leis da oferta e da procura. Desde o final dos anos 1990, nenhum trabalhador está atrelado às unidades de trabalho. Sua danwei, ou carteira de trabalho, apenas indica onde ele está trabalhando. As empresas podem despedir um empregado, da mesma forma que este pode se demitir e procurar outro emprego. O Estado atua na re-alocação dos demitidos, através de programas das estatais e das agências de fomento.

No mercado de moradias, o Estado procura impedir o inchamento das cidades, só permitindo a troca de moradias com a comprovação de trabalho permanente. As famílias são estimuladas a comprar suas moradias através de sistemas de crédito, gerenciados por imobiliárias estatais e privadas. Com isso, caíram em desuso os tickets para o acesso a habitações e/ou alojamentos.

A legislação permite a existência de empresas privadas, nacionais e estran-geiras, e inúmeros tipos de empresas mistas. Em 2000, a China possuía 30 mi-lhões de empresas privadas, empregando mais de 70 milhões de pessoas. Outras 250 mil empresas sino-estrangeiras e exclusivamente estrangeiras, somadas a 680 mil empresas cooperativas por ações, respondiam por uma parcela pequena do emprego, mas produziam mais de 10% do PIB e mais de 40% das exportações. Dez milhões de empresas eram de propriedade pública (estatais e coletivas), respondendo por 80 milhões de empregos e 70% do PIB.

Na agricultura, o usufruto do solo pelas unidades familiares, os contratos de responsabilidade e o direito de comercializar os excedentes, permitiram um salto. A produção anual de grãos passou de 304 para 450 milhões de tonela-das. Algodão, oleaginosas, cana e frutas apresentaram aumentos significativos. O cultivo de produtos aquáticos atingiu 46 milhões de toneladas em 2005. Entretanto, a terra arável compreende apenas 11% de seu território, onde ainda se concentra cerca de 70% da população.

A modernização elevou o poder de compra da população e fez crescer a procura por alimentos, ao mesmo tempo em que as periferias das cidades, as novas estradas, avenidas, fábricas e zonas habitacionais avançavam sobre as ter-ras e reduziam as áreas de cultivo, colocando as zonas e populações rurais diante de novos desafios.

As tecnologias tradicionais não são mais capazes de fazer a produção agríco-la crescer a uma taxa mínima de 1% ao ano. Será preciso elevar a produtividade

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do solo e do trabalho, acarretando uma mão-de-obra excedente. Essa força de trabalho tem sido aproveitada na expansão das indústrias de cantão e povoados, dedicadas à produção de confecções, motores, implementos agrícolas, materiais de construção etc, muitas deles para exportação. Elas já são responsáveis por mais de 50% do valor da produção das zonas rurais e pelo emprego de mais de 130 milhões de trabalhadores.

As reformas têm causado mudanças na estrutura social. O uso de várias formas de propriedade produz rendas maiores em alguns setores e causa de-sequilíbrios sociais. Tendo em conta isso, a China tenta conformar estratos sociais que ascendam constantemente a níveis superiores, num “enriqueci-mento em ondas“.

Para que isso ocorra, tem havido reformas constantes na distribuição das receitas, nos sistemas de moradia e seguridade médica e social e, principalmen-te, nos sistemas educacionais e culturais. A melhoria da renda pode ser medida pelas mudanças na estrutura de consumo. Diminuiu o consumo de cereais, e cresceu o de carnes, ovos, leite, verduras e frutas. O consumo de roupas passou dos modelos simples para modelos variados.

Das “quatro velhas peças” de consumo (bicicleta, relógio, máquina de cos-tura e rádio), os chineses passaram para as “seis novas peças” (televisor, geladeira, lavadora, gravador, ventilador e máquina fotográfica). A partir do final dos anos 1990, aumentou a aquisição de telefones, computadores pessoais e moradias. Em 1978, os gastos alimentares representavam 57,5% dos gastos dos habitantes das cidades e 67,7% dos gastos dos habitantes rurais. Já os gastos com educa-ção e cultura representavam 6,7% dos gastos dos habitantes urbanos e 1% dos gastos dos habitantes rurais. No ano 2000, os gastos com alimentos haviam baixado para 44,5% nas cidades e 53,4% nas zonas rurais. Mas os gastos com educação e cultura haviam subido para mais de 13% nas cidades e mais de 10% nas zonas rurais.

Na história da China, ritmos muito rápidos de crescimento, assim como ritmos lentos, têm causado instabilidade social. Para sustentar um crescimento populacional anual de 14 milhões de pessoas, a China precisa um crescimento econômico anual de 2%. Se for levado em conta o aumento do padrão de vida da população, são necessários mais 2% anuais de crescimento. Se forem con-siderados, ainda, os excedentes de trabalhadores, em virtude do aumento da produtividade urbana e rural e outros fatores, será preciso acrescentar mais 2% a 3% no crescimento anual. Ou seja, é necessária uma meta mínima de 6% a 7% anuais de crescimento econômico.

Por outro lado, o crescimento médio de 9% a 10%, entre 1980 e 2005, se permitiu melhorar o padrão de vida do povo chinês e tornar mais sólidos os fundamentos econômicos do país, colocou em tensão a infra-estrutura, pres-

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sionou os preços das matérias primas, energia e transportes, causou pressões inflacionárias, e criou condições para o surgimento de surtos de instabilidade política, como o de 1989.

Reformas políticas e culturais

O foco das reformas está voltado para a construção de uma forte base ma-terial, ou para o desenvolvimento sustentado das forças produtivas materiais. Mas as reformas políticas também vêm sendo introduzidas como condição para o desenvolvimento suave das reformas econômicas.

O programa de reformas teve início com reformas ideológicas e políticas, sintetizadas na emancipação das mentes, e em tomar a prática como critério da verdade. Elas buscaram criar um ambiente global de estabilidade, revendo casos históricos injustos, reajustando as relações sociais, intensificando o combate à corrupção e estabelecendo mecanismos institucionais de rodízio das gerações no poder político. Também foram removidos quase todos os preceitos legais que estimulavam as diferenciações e os conflitos sociais.

A reforma política visa reduzir o burocratismo e a ineficiência, e estimular a iniciativa das unidades de base, como condição para avançar na expansão de-mocrática. As votações e eleições nos órgãos legislativos passaram a ser secretas. E foram regulamentados os procedimentos democráticos para as eleições diretas e secretas das assembléias e comitês populares de aldeias, cantões, povoados e municípios, que constituem o nível básico da sociedade chinesa. Para candida-tar-se, basta ser apontado por três eleitores, independentemente de ser membro de algum partido ou associação.

As assembléias de base e as assembléias das organizações sociais de massa (populares, sindicais, juvenis e femininas) e do EPL, elegem seus representan-tes às assembléias populares de distrito, conforme a proporcionalidade popula-cional. As assembléias populares de distrito elegem seus representantes para as assembléias populares provinciais que, por sua vez, elegem seus representantes para a Assembléia Popular Nacional.

As reformas políticas, do mesmo modo que as reformas econômicas, têm observado o método gradual. Em termos gerais, fazem experimentos variados para descobrir as reformas mais adequadas, não adotam medidas de choque, nem copiam os sistemas políticos de outros países. O critério para a adoção de um tipo ou outro de reforma política é, basicamente, o fato dessa reforma contribuir para a estabilidade social e política, a unidade nacional, a elevação do padrão de vida do povo e o desenvolvimento das forças produtivas de forma sustentável.

Um dos mecanismos com crescente importância na democratização políti-ca chinesa é a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), onde

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têm assento os representantes indicados pelos partidos políticos (o PC e os ou-tros oito partidos democráticos), além de personalidades públicas sem-partido.

Os chineses englobam em seu universo cultural os produtos espirituais cria-dos por sua civilização e pelas demais civilizações, os equipamentos e meios ne-cessários para tal produção e sua proteção, e os sistemas de informação e comuni-cação para sua difusão. Seu conceito de cultura engloba literatura, ópera, teatro, música, canto, dança, cinema, rádio, televisão, pintura, caligrafia, acrobacia, arte-sanato e esportes, e os equipamentos ou meios de sua produção e difusão (escolas, editoras, teatros, auditórios, imprensa, rádio, televisão, ateliês, oficinas, circos, bi-bliotecas, museus, ginásios esportivos). E, como condição para a plena utilização desses equipamentos e meios, a liberdade de criação e de crítica cultural.

Para eles, a elevação cultural engloba a educação, a assimilação dos conhe-cimentos e a produção de novos conhecimentos. A cultura é, pois, elemento essencial para incrementar a própria educação e o conhecimento geral de sua sociedade, elevando seu grau de civilização espiritual, e fazendo-o influenciar a própria civilização material.

Procurando corresponder a esses conceitos, as reformas chinesas amplia-ram consideravelmente o número, a quantidade e a qualidade de seus meios de comunicação de massa, ao mesmo tempo em que abriram o país para a trans-missão de emissoras estrangeiras. As expressões culturais experimentam uma ex-pansão rápida. Ao lado da ópera chinesa, com suas 300 variedades, misturando teatro, canção, música, dança e artes marciais e possuindo uma estrutura cênica, modelos musicais e fórmulas representativas próprios e diferentes das óperas ocidentais, os chineses têm sido apresentados à ópera ocidental, como a encena-ção de Turandot, de Puccini, no antigo Palácio Imperial, em 1998.

Embora o teatro e a música também sejam incentivados, é certamente o cinema que está conquistando mais fama. Através da criação de um sistema aberto de produção e distribuição independente, na China é possível produzir filmes sobre os mais diferentes temas, custeados de diferentes modos, e assistir a uma variada gama de filmes estrangeiros.

O turismo é um dos setores que melhor expressa a abertura econômica, política e cultural da China. Esse país sempre teve recursos turísticos muito variados. Faltava-lhe, no entanto, não apenas uma infra-estrutura diversificada para aproveitar tais atrativos, mas uma política que facilitasse as viagens inter-nas dos estrangeiros, de chineses de ultramar e de sua própria população. Esses obstáculos foram removidos já no início dos anos 80. Ao entrar no século 21, a China possuía uma variada gama de transportes aéreos, terrestres, marítimos e fluviais, internacionais e domésticos, mais de 4 mil hotéis classificados por es-trelas, uma imensa e uma diversificada variedade de restaurantes e de comércios de peças artísticas e de artesanato.

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Relações Internacionais

Desde 1954 a China proclamou a intenção de manter relações com todos os países do mundo, tendo por base as cinco regras de coexistência pacífica: respeito mútuo à soberania e integridade territorial, não-agressão, não-ingerên-cia nos assuntos internos de um país por parte do outro, igualdade e benefício recíprocos, e coexistência pacífica. Condição essencial para o estabelecimento de relações estatais com a República Popular da China era seu reconhecimento como um só país. Isto é, o reconhecimento de Hong Kong, Macau e Taiwan como partes inalienáveis da China.

Entre 1950 e fins de 1969, apenas cinqüenta países haviam reconhecido a RPC. Na década de 1970, o princípio de uma só China passou a ser aceito por um número crescente de países, a partir da normalização de suas relações com os Estados Unidos e da restituição de seu posto na ONU e no Conselho de Segurança. Em 1984, a China estabeleceu a fórmula “um país (China), dois sistemas (socialismo e capitalismo)” para a reunificação pacífica dos enclaves co-loniais de Hong Kong e Macau e da província de Taiwan. Por essa fórmula, esses territórios receberiam o status de Regiões Administrativas Especiais, e manteriam seu sistema capitalista por mais cinqüenta anos. Os processos de incorporação de Hong Kong, em 1997, e Macau, em 1999, marcaram novo ponto de inflexão da diplomacia chinesa.

As relações com os EUA sempre tiveram papel estratégico na política in-ternacional da China. Com suas reformas, a China passou a considerar os EUA um dos maiores mercados para suas exportações, enquanto se tornava um mer-cado para os investimentos norte-americanos. Diante disso, os governos dos EUA estabeleceram diferentes estratégias diante da China, desde a contenção pura e simples, até a colaboração estratégica.

Mas a política exterior chinesa não se restringe às relações estratégicas com os EUA. A China resolveu praticamente todos os seus problemas fronteiriços, firmou acordos de cooperação e segurança mútua com a Rússia, Mongólia, Ca-saquistão, Quirguistão e Tajiquistão, tem desempenhado papel apaziguador na península coreana e nas disputas entre Índia e Paquistão pela Caxemira, e tem tido papel importante nas relações com os demais países asiáticos, principal-mente na transformação do sudeste da Ásia numa área de livre comércio.

Embora continuem as pendências com o Japão, em torno dos crimes japo-neses durante a Segunda Guerra Mundial, ambos ampliaram e distenderam suas relações. O principal eixo estratégico das relações diplomáticas da China con-tinua voltado para as nações em desenvolvimento. A própria China, apesar de todos os avanços econômicos dos últimos anos, continua considerando-se uma nação em desenvolvimento. Ela trabalha na perspectiva de que a ação conjuga-

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da dessas nações, em aliança com as nações que se opõem ao hegemonismo e à unipolaridade, consigam ampliar a multipolaridade, mudar a ordem econômica mundial, e manter um ambiente de paz e desenvolvimento.

Conclusões

O programa chinês de reformas tem duas grandes metas: construir uma nova civilização material e construir uma nova civilização espiritual. A civili-zação material, ou o desenvolvimento das forças produtivas materiais, confor-mando uma forte estrutura econômica (medida em termos de produto interno bruto), que permita a toda a sua população usufruir um nível de vida media-namente abastado (medido em termos de distribuição da renda), concentra os principais esforços até 2020.

Em termos concretos, as reformas tinham como meta dobrar o PIB entre 1980 e 1990, e dobrá-lo novamente entre 1990 e 2000, tendo por base 1980. Entre 2000 e 2010, o PIB deveria ser dobrado novamente, desta vez tendo por base 2000. A distribuição da renda, relacionada à renda camponesa e aos salários urbanos, deveria acompanhar o crescimento da economia, de tal modo que em 2000 não houvesse ninguém abaixo da linha da pobreza e, em 2020, as camadas inferiores da população estivessem vivendo um padrão comparável aos belgas.

Em 1995, a China tinha quadruplicado seu PIB. Em 2000, seu PIB foi de 1,2 trilhão de dólares, pela paridade cambial. Em 2005, o PIB chinês dobrou em relação a 2000, atingindo 2,4, trilhões de dólares, a meta de 2010. Em ter-mos de paridade de poder de compra, isto representa cerca de 10 trilhões de dó-lares. Enquanto o crescimento econômico cresceu a uma média de 9% a 10%, durante 25 anos, a renda da população urbana e rural cresceu a uma média de 6% a 7%. Das 250 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza em 1990, restaram menos de 26 milhões nessa condição em 2005. Em 2010, a China terá 520 milhões no nível de classe média alta, mais de 500 milhões no nível de classe média baixa, e cerca de 400 milhões de pobres.

É evidente, com os dados acima, que o desenvolvimento chinês ainda tem um longo caminho a percorrer, apesar dos avanços. Seu ponto de partida estava historicamente muito atrasado, e a imensidão de sua população dilui qualquer produção bruta. Além disso, a paz de que tanto necessitam para levar a bom termo seu programa não depende só deles. Nessas condições, para saber se a revolução chinesa alcançou seus objetivos estratégicos, será necessário acompa-nhar por mais tempo a presente transição do estágio inferior do socialismo para um estágio mais elevado.

20/02/2005

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A 1º de outubro de 1999 a China comemora 50 anos da vitória da revolu-ção nacional e democrática e de início da construção socialista nas condições de uma sociedade econômica e socialmente muito atrasada. A rigor, são 50 anos da vitória de uma revolução camponesa, dirigida por uma intelectualidade revolu-cionária, tendo como teoria guia o marxismo.

A revolução nacional-democrática

A revolução chinesa, tendo como meta a libertação do domínio imperia-lista sobre a nação e do jugo feudal sobre os camponeses, foi iniciada pelo Dr. Sun Iatsen, fundador do Guomindang nos primórdios deste século. Em 1911, o Guomindang derrubou a monarquia, mas deixou que o Dr. Sun Iatsen fosse destituído da presidência da nova república, e substituído por um caudilho mi-litar. Só os grandes movimentos populares por uma nova democracia, em 1919, permitiram que ele voltasse ao poder.

Paralelamente, em 1921 foi fundado o Partido Comunista, sob o impacto do surgimento de um pequeno, mas combativo, núcleo operário na China, e sob a influência do marxismo, da revolução russa e dos movimentos demo-cráticos de 1919. A simpatia ativa do Dr. Sun Iatsen pelos comunistas e pela revolução russa, e sua disposição de derrotar os caudilhos militares e feudais propiciou uma estreita colaboração dos comunistas com os nacionalistas. Em 1924, o Partido Comunista ingressou no Guomindang e participou ativamente da Expedição Militar do Norte contra os caudilhos militares.

Entretanto, a influência latifundiária sobre o Guomindang aumentou as resistências contra essa colaboração. Com a morte do Dr. Sun Iatsen, elas se

50 anos de revolução agrária

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aguçaram e desembocam no golpe militar de 1927, quando foram assassinados mais de 100 mil comunistas. Esse processo coincidiu com um intenso debate interno no Partido Comunista sobre os rumos da revolução chinesa, seu caráter (socialista ou nacional e democrática), sua força fundamental (os operários ou os camponeses), sua concentração de esforços (nas cidades ou nas zonas rurais) e sua política de alianças (incluindo ou não parte da burguesia).

O golpe militar de 1927 resolveu na prática algumas dessas questões. Para salvar-se, os comunistas foram obrigados a refugiar-se nas bases guerrilheiras rurais já existentes e a exercitar a autodefesa armada. A primeira guerra civil re-volucionária, confrontando o exército vermelho, dirigido pelo PC, e o exército branco, dirigido pelo Guomindang, estendeu-se até 1935.

A direção socialista da revolução

A traição do Guomindang colocou o Partido Comunista à frente da re-volução democrática e nacional, obrigou-o a apoiar-se fundamentalmente nos camponeses e a travar a guerra de guerrilhas e a guerra de movimento, para acu-mular forças e criar as condições de derrotar seus inimigos. Mas essas condições, impostas à revolução pela força econômica, política e militar dos latifundiários, da burguesia compradora e do imperialismo na China, não foram entendidas de imediato pela maioria dos dirigentes do PC, nem pela Internacional Comunis-ta. Eles consideravam que a guerra poderia ser de curta duração, que o exército vermelho deveria conservar o terreno conquistado, que era possível tomar as cidades, e assim por diante. Ou seja, não havia uma linha hegemônica sobre a condução da revolução, nem da guerra civil revolucionária.

Esse fato causou sérias perdas, a principal das quais ocorreu em 1935, du-rante a quinta campanha de cerco e aniquilamento do Guomindang contra as bases guerrilheiras do exército vermelho, obrigando-o a realizar uma retirada estratégica, que resultou na Grande Marcha para Yan’nan. Dos 300 mil homens que iniciaram a retirada, somente 30 mil chegaram à nova base central.

Essa dura experiência, no entanto, resultou numa virada estratégica. Con-tra a opinião predominante na Internacional Comunista, o Partido Comunista da China adotou a guerra de guerrilhas como a via principal da revolução, tendo em conta a situação concreta da China, onde predominavam os latifundiários feudais, com seus exércitos próprios, e uma vasta tradição histórica de rebeliões e lutas camponesas. Contra as diretivas e tentativas de realizar a revolução a cur-to prazo, e conquistar as cidades mais rapidamente, adotou uma estratégia de guerra de acumulação de forças de longa duração, construindo primeiro bases de apoio revolucionárias, que deveriam transformar-se paulatinamente em áreas libertadas, num processo de cerco das cidades pelo campo.

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Nessa estratégia o importante não era a defesa do terreno conquistado, mas a construção das forças revolucionárias - associações camponesas, sindicatos operários, organizações dos partidos comunista e aliados, forças guerrilheiras e exército popular - através de uma linha de massas e de um estilo de trabalho que garantissem o apoio e a participação de massas de milhões na revolução da nova democracia.

A percepção da mudança do inimigo principal, em virtude da agressão japonesa no início dos anos 1930, e a proposta da união com o antigo inimi-go mortal, para enfrentar o agressor externo, é um exemplo clássico de aliança entre forças sociais e políticas antagônicas contra um inimigo comum, tendo o povo e a nação como referências principais. A visão de isolar e golpear sempre o inimigo principal, tratando os inimigos secundários de forma diferenciada, mesmo sem deixar de lutar contra eles, permitiu à revolução chinesa, em diver-sos momentos, neutralizar setores sociais intermediárias ou mesmo contar com seu apoio, como foi o caso da burguesia nacional chinesa.

O PC conseguiu levar o Guomindang a aceitar a aliança para travarem a guerra de resistência contra o Japão, entre 1937 e 1945. O exército vermelho transformou-se no Novo 4º Exército e no 8º Corpo de Exército do Exército Nacional da China, e sustentou o principal fardo da guerra anti-japonesa. Fez isso sem abandonar sua política de apoiar-se nos camponeses como força fun-damental, e de aplicar as guerras de guerrilha e de movimento como as formas principais da luta armada.

Resultado: no final da guerra o PC contava com inúmeras áreas libertadas sob seu poder, bases de apoio nas áreas sob o poder do Guomindang, forças ar-madas experientes, um forte apoio de massas, e um prestígio nacional consisten-te. Quando o Guomindang rompeu as negociações de paz, em 1947, e atacou de surpresa as bases comunistas com o apoio logístico dos Estados Unidos, o PC pôde responder primeiro com medidas políticas e, depois, com ações militares. Publicou o decreto provisório de reforma agrária, chamando os camponeses para organizar-se em associações e comitês e realizar a reforma agrária nas áreas libertadas, e apelou a toda a nação para instaurar uma nova democracia, livrar-se do domínio estrangeiro e alcançar a paz.

A nova guerra civil revolucionária culminou na proclamação da República Popular da China, em 1º de outubro de 1949. O novo regime, além de uma China atrasada econômica e socialmente, teve ainda que confrontar-se com a devastação da guerra, o bloqueio econômico e militar das potências capitalistas e a presença da 7ª Frota dos EUA e das tropas do Guomindang em Taiwan.

Foi nessas condições que o PC decidiu empreender a tarefa de construir uma sociedade socialista. Para ele não existia nenhuma muralha chinesa, se-parando em etapas completamente distintas, a revolução democrática e a re-

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volução socialista. A direção da revolução nacional e democrática pelas forças socialistas permitiria ao país completar as tarefas não realizadas pela burguesia, como a democratização da terra e do poder, e ingressar na construção socialista sem necessidade de uma nova revolução.

Entretanto, a industrialização necessária para a China desenvolver-se econô-mica e socialmente era uma tarefa socialista ou nacional-democrática? A socia-lização das relações sociais, isto é, das relações de propriedade, podia realizar-se através de mecanismos políticos e ideológicos, ou deveria ser uma conseqüência do desenvolvimento das forças produtivas, isto é, da própria industrialização? Es-sas questões estiveram no centro dos debates e das experimentações econômicas, sociais e políticas que marcaram esses 50 anos de edificação da China socialista.

Os movimentos das Cem Flores, do Grande Salto Adiante, das Quatro Modernizações, da Revolução Cultural, e das Reformas de 1978-80 têm como pano de fundo a procura de respostas àquelas perguntas. E a história desses 50 anos na realidade agrária da China é, provavelmente, a que melhor pode exem-plificar as tentativas para encontrar o caminho socialista.

Socialismo por meios políticos

A lei da reforma agrária, de 1952, consolida a reforma agrária iniciada e re-alizada pelas associações e comitês camponeses, que distribuíram 46 milhões de hectares entre 300 milhões de lavradores. Ela nacionalizou a terra e determinou o direito dos antigos camponeses ricos e latifundiários não criminosos recebe-rem lotes para trabalhar e viver como os demais lavradores.

A agricultura chinesa passou a ser dominada pela pequena economia camponesa, embora contando também com algumas fazendas estatais. A extin-ção dos encargos feudais e o direito à posse da terra fizeram a produção crescer mais 60 milhões de toneladas em dois anos e elevaram a renda dos camponeses. Mas essas condições eram limitadas pela incapacidade da indústria em produzir equipamentos agrícolas, pela transferência de renda agrícola para a industrializa-ção, e pela ação dos antigos camponeses ricos e latifundiários, que procuravam retomar a terra e colocar os camponeses pobres a seu serviço.

Dentre as diversas formas de luta de classe no campo chinês nessa oca-sião, ganharam destaque os movimentos de ajuda mútua. As famílias aju-davam-se nos trabalhos que exigiam maior quantidade de trabalho, como aração, plantio, colheita e obras hidráulicas, trocando dias de trabalho e uso de ferramentas. Em 1953 cerca de 58% das famílias rurais haviam aderido a algum tipo de ajuda mútua.

Essa experiência estimulou as autoridades chinesas a transformar a ajuda mútua eventual em grupos organizados e depois em cooperativas de base ou

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de tipo inferior. Nestas, as parcelas, animais, equipamentos e ferramentas con-tinuavam propriedade privada dos camponeses, mas as parcelas dos cooperados eram trabalhadas como se fossem uma unidade produtiva. Com isso, era possí-vel utilizar equipamentos maiores e utilizar melhor a força de trabalho.

Em 1955 existiam 650 mil cooperativas de base, cerca de 14% das famílias rurais, enquanto o número de famílias organizadas em grupos de ajuda mútua caíra para 50% do total. Esse processo refletiu-se positivamente na produção agrícola, fazendo-a elevar-se para 185 milhões de toneladas.

Isso estimulou Mao Zedong a sugerir a aceleração do processo de organi-zação em cooperativas. Ele se convenceu de que a cooperação ou socialização agrícola poderia ocorrer antes da industrialização da agricultura, através de es-tímulos ideológicos e políticos. A organização coletiva dos camponeses poderia superar as deficiências do trabalho manual predominante e alcançar níveis ele-vados de produção e produtividade.

Essa decisão política causou uma virada completa no campo chinês. Em 1956, organizaram-se em cooperativas 97,2% das famílias rurais, 87,8% de-las nas novas cooperativas de tipo superior. As terras e a maioria dos meios de produção, com exceção de uma pequena parcela ligada à moradia, passaram à propriedade efetiva das cooperativas.

O trabalho passou a ser realizado através de equipes de produção, que tra-balhavam coletivamente segundo as necessidades permanentes e eventuais da cooperativa. Os camponeses eram remunerados numa proporção da produção obtida coletivamente, segundo sua cota-parte na constituição do capital da co-operativa e segundo o seu trabalho efetivo, este computado por pontos relacio-nados à jornada e à qualidade do trabalho.

Entre 1957 e 1978 esse sistema teve momentos de afrouxamento ou inten-sificação, mas não sofreu mudanças essenciais. Os afrouxamentos deveram-se às reclamações e protestos contra a queda da renda camponesa (1957, 1962-64, 1969-71, 1974-75). As intensificações resultaram dos grandes movimentos po-líticos e ideológicos de socialização, que deram origem às Comunas Populares ou as extremaram, como o Grande Salto (1958-61), e os surtos da Revolução Cultural (1966-67, 1972-73 e 1975-76).

Ao findar a Revolução Cultural, evidenciou-se que a socialização por vias ideológicas e políticas não permitira uma elevação consistente da produ-ção e muito menos da produtividade. A produção crescera para 304 milhões de toneladas em 1976, mas muitas comunas não conseguiam alcançar suas cotas. A população também se elevara para 1,0 bilhão de habitantes, conser-vando uma produção per capita muito baixa. Assim, o resultado evidente da socialização do trabalho agrícola com técnicas manuais era o igualitarismo na pobreza.

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Contra essa situação, equipes de diferentes comunas populares já vinham experimentando novas formas de trabalho para elevar a produção, tendo por base as unidades familiares. Estas voltavam a ter o usufruto de suas antigas parcelas e a propriedade de seus meios de produção, comprometendo-se, sob contrato, a pagar à equipe seus impostos, e a produzir pelo menos a cota a ser vendida ao Estado.

Reformas, “privatização” e socialismo

Quando, em 1978, o governo decidiu estender a todo o campo a experiên-cia dessas equipes, a imprensa do mundo capitalista deu um grande destaque à “privatização” da agricultura chinesa, em virtude do retorno do usufruto do solo às famílias camponesas. Mas nada se falou das terras continuarem propriedade nacional, gerenciadas pelas cooperativas. E pouco se disse que aquele usufruto, com vigência de trinta anos, era regido por um contrato de responsabilidade entre as famílias e as cooperativas.

Os contratos permitiram o retorno do modo de produção camponês, man-tendo a propriedade jurídica da terra em mãos do Estado. As famílias puderam organizar-se do modo que consideravam mais adequado para a produção, de-vendo alcançar uma cota mínima para venda ao Estado. A produção excedente, incluindo os produtos domésticos, podia ser vendida no mercado.

Como, além disso, o Estado manteve preços compensadores para a compra das cotas, essa reforma permitiu um verdadeiro boom na produção rural, che-gando a 497 milhões de toneladas de cereais em 1997. Esse aumento da produ-ção foi responsável pela elevação da renda do campesinato e a conformação de um mercado rural relativamente forte. Sua demanda por produtos industriais, pelo menos até o início das reformas urbanas, em 1984, foi atendida pelas ofici-nas e indústrias implantadas nos anos anteriores e pertencentes às cooperativas e fazendas estatais.

Assim, se a reforma na agricultura chinesa expandiu, por um lado, o tradi-cional modo de produção camponês de milhões de famílias rurais proprietárias de diferentes meios de produção, por outro ela manteve e ampliou as cooperati-vas de propriedade coletiva e as fazendas de propriedade estatal, que se tornaram a ponta de lança de um processo original de industrialização rural.

Durante os recentes vinte anos foi se gestando uma dinâmica de in-teração econômica, através da qual a cooperação agrícola volta a ocorrer, mas agora por meios eminentemente econômicos, a partir da introdução de equipamentos modernos e técnicas científicas na agricultura. Cooperativas e fazendas estatais transformam-se paulatinamente em corporações rurais, que coordenam agricultura, indústria, comércio e serviços, associando-se entre si

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e com famílias camponesas especializadas, instituições científicas e empresas rurais e urbanas, de diferentes formas.

Em vez do modo de produção camponês evoluir de uma espécie de capita-lismo democrático para uma concentração e centralização econômica comanda-da por corporações capitalistas, ele evolui sob o comando de corporações rurais públicas, tanto estatais quanto cooperativas. Isto não significa, entretanto, que a socialização seja algo consolidado, nem que esse processo possa ser acelerado por vontade política.

Apesar de todos os avanços, a sociedade chinesa apresenta extensas áreas atrasadas e as forças produtivas no campo são em grande parte ainda baseadas no trabalho manual. Em 1978 ainda existiam 250 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. As reformas na agricultura e as medidas de trans-formação das zonas rurais fizeram com que o número de pobres caísse para 58 milhões em 1997.

Para romper com a linha da pobreza, as famílias pobres foram isentas de impostos agrícolas entre 1980 e 1990, têm recebido informações sobre o cultivo científico, o uso de sementes melhoradas e inseticidas, a fertilização, a rotação de espécies, as obras hidráulicas e a fertilização, e são beneficiadas pelo sistema de seguridade social, cujo mecanismo básico consiste em garantir um nível de vida digno em alimentos e vestuário.

Mais importantes, porém, têm sido os investimentos em infra-estrutura e educação. As práticas assistencialistas, através das quais os pobres recebiam subsídios para sustentar-se, estão mudando. Os recursos são aplicados priori-tariamente em vias de transporte e meios de comunicação, obras hidráulicas, equipamentos, máquinas, fertilizantes, sementes, animais, assistência técnica e outros meios, que permitem aos camponeses produzir e elevar-se pelo próprio esforço. Ao mesmo tempo, o governo tem investido na construção de escolas nas zonas rurais mais pobres, formado professores, e melhorado seus salários. Sem educação não é possível aproveitar plenamente a infra-estrutura fornecida pelo Estado.

A chance real de eliminar a pobreza por volta do ano 2000 não implanta, porém, o igualitarismo nem elimina as disparidades econômicas e sociais exis-tentes entre as diferentes regiões, entre as zonas urbanas e as zonas rurais e entre unidades com diferentes tipos de propriedade, disparidades cuja base são os diferentes sistemas de remuneração ainda presentes no socialismo chinês.

A diferença entre a renda do grupo mais rico e o grupo mais pobre na China rural era de 6,2 vezes em 1992. É verdade que na maioria dos países do mundo essa diferença é muitas vezes maior, mas num país que pretende estar construindo o socialismo essa situação é problemática. Pode gerar conflitos de interesses, polarizações sociais e instabilidade política. Por isso, mesmo admi-

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tindo que uns enriqueçam primeiro do que os demais, a China tem adotado políticas de enriquecimento em ondas. Isto é, atrás da onda dos que enriquecem primeiro devem seguir ondas de enriquecimento dos demais.

A extensão do desenvolvimento para o Centro e o Oeste do país (onde vivem mais de 60% da população), a continuidade da reforma da estrutura salarial urbana, os investimentos para o desenvolvimento agrícola e industrial das áreas rurais, os cuidados com os preços pagos aos produtores rurais e com os preços dos produtos industriais, em especial com os de consumo de massa, além das medidas no campo da educação, saúde, seguridade social, moradia e transporte, compõem um conjunto de políticas para evitar que as disparidades regionais e sociais se polarizem, e para fazer com que a China, por volta do ano 2010, tenha por base um padrão de vida modestamente abastado.

Com isso, ela poderá ter alcançado a fase primária de construção do socia-lismo e propor-se a ingressar numa fase intermediária, na qual a cooperação so-cialista na indústria e na agricultura tenham uma base material consistente para firmar-se. É evidente que isso dependerá, em grande medida, da capacidade da China atravessar incólume os distúrbios da crise econômica e financeira do mundo capitalista, ao qual tem que se manter ligada por inúmeros laços. Nesse sentido, os próximos dez a quinze anos podem não ser nada para os 6 mil anos de história da China, mas podem ser muito importantes para a demonstração das possibilidades históricas do socialismo.

30/03/99

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Ao contrário do senso comum, que prevalece em grande parte do mun-do, e embora as reformas chinesas representem um grandioso recuo estraté-gico, elas até agora não abandonaram os princípios básicos em que se baseou a proclamação da República Popular.

A China continua se proclamando fiel a seus quatro princípios: ser um país socialista, de democracia popular, dirigido pelo Partido Comunista, e tendo como guia filosófico o marxismo e o pensamento maozedong. Sob o enquadramento desses princípios, as reformas pretendem realizar três tare-fas estratégicas (modernização, reunificação do país e manutenção da paz, e resistência ao hegemonismo), quatro modernizações (da indústria, agri-cultura, defesa nacional e ciência e tecnologia), e quatro trabalhos refor-madores (da administração e dos quadros, da construção de uma civilização espiritual, do combate aos delitos, e da retificação do estilo de trabalho).

Com base nesse conjunto de princípios e estratégias, a China estabe-leceu as linhas mestras de sua construção econômica: aplicação da ciência para o desenvolvimento da agricultura, combinação da indústria leve com a indústria pesada, desenvolvimento consistente da energia e dos transpor-tes, continuada transformação técnica da economia, paulatina formação de grupos de empresas, constituição de fundos financeiros para a construção econômica, combinação da abertura para o exterior com a auto-sustentação, continuada reforma da estrutura econômica, elevação do nível cultural e científico dos trabalhadores, e colocação de seu próprio povo como principal beneficiário de todo o processo de reformas.

O caminho das reformas

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As principais combinações estratégicas

A rigor, as reformas tiveram início em 1980. O período de 1978 a 1980 é considerado de reajustamentos na agricultura e início da abertura ao exterior, uma preparação para o processo seguinte de reformas.

Cronologicamente, as reformas não foram todas implantadas de uma só vez. Embora suas linhas gerais estivessem delineadas já em 1978, elas tiveram início real, em 1980, com as reformas apenas na agricultura e a abertura ao exterior. Em 1984 começaram as reformas urbanas, num processo sucessivo de reformas na indústria, comércio, finanças, serviços, educação, cultura, política, estrutura estatal, salários, preços etc.

Aspecto importante desse processo é que as reformas ocorrem através de uma série de combinações estratégicas que permitam, ao mesmo tempo, um desenvol-vimento relativamente rápido e a manutenção da estabilidade econômica, social e política. As principais combinações são: planejamento e mercado; propriedade social e propriedade privada; trabalho intensivo e capital intensivo; baixas e altas tecnologias; protecionismo e livre comércio; regulação e desregulação.

Planejamento e mercado

Ao contrário do período anterior, em que o planejamento centralizado des-cia a minúcias e determinava todo o processo produtivo, sem levar em conta o mercado, a partir de 1978 a China passou a adotar o planejamento macro-eco-nômico e macro-social, e a combiná-lo com o mercado.

O mercado é o principal regulador dos preços e das demandas produtivas, mas o Estado, através do planejamento macro, retifica os desvios do mercado e age sobre ele no sentido de orientá-lo de acordo com as estratégias da construção econômica e com os princípios, tarefas e trabalhos das reformas. Desse modo, pode-se dizer que há, por um lado, cooperação entre o planejamento e o merca-do e, por outro, tensão e conflito entre ambos.

Isso ocorre tanto em virtude das heranças históricas, quanto devido aos novos problemas decorrentes da modernização. Por exemplo, ainda subsistem monopólios estatais em áreas sensíveis do abastecimento, e ainda existem preços administrados para uma série de produtos básicos, como alimentos populares, transportes etc. No entanto, a tendência é que, à medida que a escassez seja su-perada e os rendimentos elevados, os monopólios sejam quebrados e o mercado vá paulatinamente determinando todos os preços, conforme a relação entre a oferta e a procura.

Por outro lado, o governo mantém estoques estratégicos e estoques re-guladores, assim como sistemas de acompanhamento de ofertas e preços, de

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modo a evitar migrações erráticas de capitais para uns produtos em detri-mento de outros. Além disso, o Estado possui uma visão clara das potencia-lidades do país, das suas cadeias produtivas e do processo geral de desenvol-vimento técnico-científico, atuando no sentido de completar as cadeias pro-dutivas, instalar novas cadeias produtivas decorrentes no desenvolvimento tecnológico, evitar a instalação de novas unidades produtivas em mercados já saturados, e assim por diante.

Ou seja, procurando conhecer os movimentos do próprio mercado, o pla-nejamento macro o orienta e lhe dá o rumo desejado para aproveitar suas poten-cialidades e evitar seus defeitos e seus males.

Propriedade social e propriedade privada

Em 1978, quando começaram as experiências para a implantação das re-formas no socialismo chinês, existiam apenas duas formas de propriedade social: a propriedade estatal e a propriedade coletiva. A propriedade estatal era tida como propriedade pública sob gestão do governo. A propriedade coletiva, as-semelhada à propriedade cooperada no Brasil, era uma mistura de propriedade social e propriedade privada, na medida em que pertencia coletivamente, mas apenas a uma parcela da sociedade.

Durante o período do planejamento centralizado chegou um momento em que ambos os tipos de propriedade eram confundidos como propriedade es-tatal, visto que deveriam seguir os planos microeconômicos determinados pelo Estado. As reformas modificaram totalmente esse cenário.

Em primeiro lugar, as empresas estatais continuam como propriedade de toda a sociedade, gerida pelo Estado. No entanto, as estatais não têm mais poder monopolista (a não ser em alguns raros casos). Também não estão mais subordi-nadas a planos obrigatórios. Elas têm autonomia para atuar no mercado como qualquer outro tipo de empresa. São geridas através de contratos de responsa-bilidade assinados entre as assembléias de empregados e o governo, e devem ter rentabilidade suficiente para realizar sua própria acumulação para investimento e expansão. E, como qualquer empresa que não consegue modernizar-se e aten-der ao mercado, podem declarar falência e serem fechadas, de acordo com a legislação.

Por outro lado, a legislação chinesa separou a propriedade e gestão. Uma estatal, dependendo de sua importância estratégica, pode ter uma gestão eleita pelos empregados e funcionários, uma gestão escolhida por acordo entre os em-pregados e o governo, ou uma gestão profissional contratada fora dos quadros dos empregados e do governo. As empresas estatais representam cerca de 30% do total das empresas da China.

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Em segundo lugar, as empresas coletivas são propriedade de seus empre-gados e funcionários, que escolhem seus diretores, gerentes e técnicos, seja em seus próprios quadros, seja fora deles. Como qualquer cooperativa, as empresas coletivas respondem por seus lucros e perdas, atuando livremente no mercado. As empresas coletivas representam cerca de 45% das empresas chinesas.

Em terceiro lugar, a legislação chinesa permite a existência de empresas privadas, nacionais e estrangeiras. Elas pertencem tanto a indivíduos, quanto a famílias ou grupos privados. Essas empresas, que hoje representam cerca de 25% do total da China, atuam no mercado com a mesma liberdade e os mes-mos direitos das empresas estatais e coletivas.

Em quarto lugar, existem as unidades familiares camponesas, um tipo es-pecial de propriedade privada. Elas operam sobre a terra nacionalizada por meio de contratos de responsabilidade assinados com uma cooperativa, que gerencia o uso do solo para o governo, e à qual os produtores agrícolas estão associados. Pelo contrato de responsabilidade, o lavrador se compromete a produzir e ven-der ao Estado, através da cooperativa, um determinado volume de cereais ou outro produto acordado, por um preço pré-estabelecido. Tudo que produzir a mais poderá vender, ao preço do mercado, tanto ao Estado, quanto diretamente ao próprio mercado.

A propriedade camponesa é, assim, um tipo de propriedade mista. Há também inúmeros outros tipos de propriedades mistas entre empresas estatais e empresas coletivas, entre empresas estatais e empresas privadas nacionais ou empresas privadas estrangeiras, entre empresas coletivas e empresas privadas (nacionais e/ou estrangeiras) e de empresas privadas nacionais com empresas privadas estrangeiras.

Na agricultura já é comum um certo processo de verticalização, com o estabelecimento de contratos entre granjas estatais ou coletivas e unidades fa-miliares, para a produção de certos plantios ou criações que exigem o uso da ciência agronômica. Essa é, inclusive, uma das formas através das quais a ciência e a tecnologia agronômicas são transmitidas aos produtores agrícolas individuais e familiares.

Trabalho intensivo e capital intensivo

A força de trabalho chinesa soma mais de 700 milhões de pessoas. A cada ano, a China precisa criar entre 12 a 14 milhões de vagas de trabalho para atender a população jovem que ascende ao mercado de trabalho. Nessas condições, a modernização pode transformar-se num problema social sério, se o desemprego ultrapassar um certo patamar da população economica-mente ativa.

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Em vista disso, além de haver estabelecido a idade limite de 60 anos para aposentadoria, e ter reduzido a jornada de trabalho para 40 horas semanais, a China tem se empenhado em combinar a utilização do capital intensivo (ampla utilização da ciência e das novas tecnologias para a construção de máquinas, equipamentos e unidades produtivas de alta produtividade e pouco emprego de mão-de-obra) com a utilização do trabalho intensivo (unidades produtivas tra-dicionais, manufaturas e linhas de produção e montagem, com ampla e massiva utilização de mão-de-obra).

Isso levou à criação de um amplo setor industrial nas zonas rurais, que hoje já é responsável por mais de 50% do valor da produção dessas áreas, e que já emprega mais de 130 milhões de trabalhadores. São empresas industriais que produzem confecções, pequenos motores, implementos agrícolas, materiais de construção, artesanatos e uma série considerável de outras mercadorias, muitas delas inclusive para exportação. Desse modo, a força excedente da agricultura é absorvida na indústria, comércio e serviços das próprias zonas rurais, evitando o inchaço ainda maior das cidades.

Mas nas zonas urbanas também existem grandes plantas industriais de trabalho intensivo, principalmente na produção de artesanatos, brinquedos, materiais de construção e outros produtos de baixa e média tecnologia. Com isso, o desemprego tem se mantido relativamente estabilizado em cerca de 3-4% da população economicamente ativa. A médio prazo, a pressão para a modernização tenderá a atingir todos os setores da economia. A China acredita, porém, que quando isso acontecer ela já terá uma capacidade de geração de riqueza que lhe permitirá reduzir ainda mais a jornada de traba-lho e o tempo para aposentadoria, mantendo também reduzidas as taxas de desemprego.

Baixas e altas tecnologias

A combinação do uso das tecnologias tradicionais e das novas tecnologias está relacionada tanto ao problema do emprego, quanto aos problemas histó-ricos. Ainda hoje, a maior parte das empresas chinesas é constituída de plantas que se utilizam de tecnologias tradicionais. Na agricultura, em particular, essa situação envolve algumas centenas de milhões de camponeses, embora com tais técnicas antigas sua produtividade seja relativamente alta.

Uma transformação abrupta das unidades industriais e agrícolas de bai-xa tecnologia poderia criar um caos econômico e social na China. Em tais condições, durante um tempo relativamente longo, será possível encontrar nesse país ramos, setores e unidades de altíssima tecnologia, como já ocorre nas indústrias espacial, aeronáutica, farmacêutica, de biotecnologia e outras.

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Por outro lado, em alguns desses ramos e setores, e em muitos outros, será possível encontrar unidades funcionando com tecnologias bastante atrasadas e superadas.

Assim, a China se empenha para assimilar a adaptar as altas e novas tecnologias, possuindo vários programas estatais, com fundos especiais, para estimular as pesquisas e o desenvolvimento nessas áreas. A condição princi-pal, embora não a única, para a aceitação de investimentos estrangeiros na China é o aporte de novas e/ou altas tecnologias. Em todo o país estão sendo construídas zonas econômicas de desenvolvimento tecnológico, de modo a facilitar a interação entre as diversas empresas que trabalham com tecnolo-gias avançadas.

Por outro lado, as empresas que operam com tecnologias atrasadas são aju-dadas a mudar paulatinamente, no sentido geral da modernização tecnológica, através da constante difusão das novas tecnologias, do trabalho de incubadoras de empresas, e de outras formas que permitam a transformação tecnológica, a médio e longo prazos.

Protecionismo e abertura

Desde 1978, a China iniciou um amplo processo de abertura ao exterior, com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEE) e portos abertos, para a recepção de investimentos estrangeiros e novas tecnologias. Isso permitiu à Chi-na tornar-se um dos grandes receptores mundiais de capitais externos.

No entanto, essa abertura não foi geral nem indiscriminada. Durante cerca de uma década, os investimentos estrangeiros na China limitaram-se às ZEE. À medida que suas próprias empresas foram ganhando musculatura, experiência e competitividade, para disputar com as empresas estrangeiras, a China foi abrindo paulatinamente seu mercado interno, processo que conti-nua até hoje. Nos últimos vinte anos é possível tanto acompanhar a abertura de portas para diversos tipos de produtos externos, quanto assistir a grande parte das empresas chinesas se jogando no mercado internacional, e conquis-tando importantes fatias desse mercado.

Assim, ao mesmo tempo em que solicitava seu ingresso na Organização Mundial do Comércio (OMC), de modo a evitar retaliações que não podia contestar por estar fora daquela organização, a China preparava-se internamente para enfrentar a concorrência dos produtos estrangeiros. Atualmente a China começa a abrir áreas como seguros, bancos e comércio interno à participação es-trangeira, mas ainda deve continuar algum tipo de protecionismo sobre aqueles setores em que suas empresas nacionais não estão suficientemente preparadas para suportar a concorrência externa.

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Regulação e desregulação

Nos recentes 20 anos, a China fez um esforço considerável para elaborar e aprovar uma série considerável de leis que dessem cobertura e segurança ju-rídica às atividades econômicas. A respeito das empresas de capital misto sino-estrangeiro aprovou leis sobre investimento e funcionamento, registro e admi-nistração, administração trabalhista, contabilidade e imposto de renda. Foram também aprovadas leis sobre o imposto de renda, sobre a redução ou isenção do imposto de renda e do imposto comercial e industrial para as empresas instala-das nas ZEE, sobre investimento e funcionamento de empresas de capital pura-mente estrangeiro, sobre a reestruturação das empresas estatais, sobre a falência das empresas estatais, e assim por diante.

Hoje a China possui uma legislação considerável que dá segurança e estí-mulo às atividades econômicas, com canais abertos para o fluxo interno e ex-terno de capitais, para a compra e venda de mercadorias, para a contratação e demissão de trabalhadores, para financiamento de créditos bancários, para ar-rendamento de equipamentos e/ou empresas e para a participação em licitações públicas. Em certo sentido, a regulação macroeconômica permitiu uma ampla desregulamentação microeconômica.

Por outro lado, a China possui uma série de válvulas de segurança que lhe permite evitar e coibir abusos de diferentes naturezas. Por exemplo, os lucros das empresas estrangeiras podem ser repatriados e não há nenhuma lei regulando tal ato. No entanto, as exigências sobre os dados contábeis, sobre o cálculo dos lucros e sobre os porcentuais que devem ser reinvestidos e exportados estão claramente definidos em contrato. Fraudes nesse terreno podem ser duramente punidas pela legislação geral. O mesmo ocorre em relação às demissões de traba-lhadores, aos cuidados ambientais e outros pontos da atividade empresarial.

Desse modo, regulação macro, desregulação micro, e certa regulação mi-cro, se combinam para criar um ambiente econômico favorável.

25/07/2006

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Nos diversos documentos chineses, que conformam os planos de longo prazo, e as ações de curto e médio prazo, é possível notar a persistência de diver-sas estratégias que se poderia chamar de orientativas. Elas estão basicamente rela-cionadas com a prioridade da agricultura, com o desenvolvimento das empresas estatais como principais instrumentos da política econômica, com a necessidade de quebrar os monopólios e evitar seu ressurgimento, com a construção de ca-deias produtivas completas, e com o desenvolvimento da educação como instru-mento fundamental para a construção material e espiritual do país.

A prioridade da agricultura

Com quase um bilhão e trezentos milhões de habitantes (ano 2002), cerca de 22% da população do globo, a China não pode dar-se ao luxo de considerar a agricultura como algo secundário ou de menor importância. Além disso, em seus seis mil anos de história escrita, foi quase sempre a agricultura a fonte das instabilidades, distúrbios, insurreições, guerras civís, trocas de dinastias e mudanças de regimes políticos. Mesmo após a procla-mação da República Popular, foram em geral problemas relacionados com a agricultura (e, portanto, com os camponeses) a fonte de muitas das dificul-dades governamentais.

Outro aspecto importante a considerar é que a China possui apenas 7% da superfície agrícola do globo, ou cerca de 110 milhões de hectares agricultáveis (embora haja quem estenda essa área para 130 milhões de hectares). No entan-to, mesmo que este último número seja verdadeiro, existem três tendências no desenvolvimento chinês que pressionam essa superfície.

Estratégias orientativas

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Por um lado, o processo acelerado de construções urbanas nas zonas rurais tendem a reduzir ainda mais a área agricultável. Viajando pela periferia das gran-des cidades chinesas é possível verificar como as estradas, novas fábricas e novas zonas habitacionais avançam sobre as áreas agrícolas suburbanas, que sempre desempenharam um papel importante no abastecimento urbano.

Por outro, a elevação da renda da população, de seu poder de compra e de seu padrão de vida, aumentam a procura por alimentos, sejam os antigos, sejam novos. Há, portanto, uma pressão crescente pelo aumento da produção agrícola. Por fim, como a China não têm áreas novas para estender sua superfície agrícola, só lhe resta aumentar a produtividade do solo e do trabalho. E as tec-nologias agrícolas tradicionais, em grande parte responsáveis pela China haver alcançado uma produção anual de 500 milhões de toneladas de grãos, não são mais capazes de permitir que a produção agrícola chinesa continue crescendo a uma taxa mínima de 1% ao ano.

Nessas condições, as orientações governamentais reiteram constantemente a necessidade de considerar a agricultura como prioritária. Embora esteja dis-posta a considerar a possibilidade de importar alimentos - ela está importando soja e açúcar do Brasil, trigo da Argentina, e diversos outros alimentos de outras partes do mundo - a China não pretende perder sua condição de auto-suficiente em alimentos, com pelo menos uma safra estocada como reserva estratégica, e quase outra como reserva reguladora.

Para manter os avanços que obteve e continuar tomando a agricultura como prioritária, os governos chineses não só estabelecem preços adequados para a parte da produção vendida ao Estado pelos camponeses, como garantem o fornecimento de insumos essenciais através das cooperativas. Eles também acodem os camponeses nas situações emergenciais, e realizam um esforço cons-tante de pesquisa, desenvolvimento e difusão agronômicas, através de milhares de centros tecnológicos e das granjas estatais, espalhados por todo o território. A introdução da ciência e tecnologia na agricultura chinesa tornou-se a questão essencial para mantê-la como prioridade.

Empresas estatais

As empresas estatais são consideradas na China um dos principais instru-mentos de efetivação das políticas econômicas do Estado. Como responsáveis pela parte mais considerável da produção do país, foram elas que sustentaram as cargas maiores dos primeiros anos da reformas. Eis porque elas continuam sendo consideradas instrumentos imprescindíveis para a modernização chinesa. Sua importância não reside apenas em serem propriedade pública, mas princi-palmente em haverem demonstrado capacidade impar para garantir o sucesso das políticas estratégicas do Estado.

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Nos anos mais recentes as empresas estatais ingressaram num programa mais intensivo de modernização. Devem se tornar altamente rentáveis e exem-plos de utilização de sistemas gerenciais e técnico-produtivos, científica e tecno-logicamente avançados. Várias delas, como as siderúrgicas Baoshan e Anshan, são exemplos de modernização e capacidade competitiva internacional.

Essa reforma estrutural das estatais não é, porém, simples. Historicamente elas aplicavam a política de emprego 3:1 (três trabalhadores para uma função), adotada anteriormente para manter o pleno emprego no país. Isso, por si só, era um empecilho para o desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtivi-dade. Elas também não possuíam autonomia para atuar no mercado, restrin-gindo-se a cumprir as metas quantitativas estabelecidas pelo plano estatal. Os antigos dirigentes das empresas, apontados pelas autoridades superiores, forma-ram-se assim num processo em que as inovações, os novos métodos gerenciais e administrativos, a contratação e dispensa de trabalhadores, e a contabilidade de custos e rentabilidade, eram estranhos à sua atividade.

Assim, a primeira reforma referente às estatais consistiu em dar autonomia a elas para atuarem no mercado. Desse modo, tiveram que aprender com uma situ-ação completamente nova, e adaptar-se a ela. Tiveram que articular-se com o Es-tado para efetivar políticas de re-alocação de excedentes de trabalho, introdução da contabilidade de custos, pesquisas de mercado, controle de qualidade, oferta de novos produtos etc. Hoje, mais de 50% das empresas estatais já são rentáveis e algumas delas alcançaram os padrões internacionais de competitividade.

De qualquer modo, há muitas que ainda lutam para alcançar os novos pa-drões, enquanto outras tornaram-se incapazes disso porque seus equipamentos e produtos perderam a razão de ser, exigindo um alto custo para sua moderniza-ção. Nestes casos, tais empresas podem ser arrendadas a proprietários coletivos ou privados, interessados em modernizá-las ou transformá-las, ou simplesmente serem fechadas por falência.

No caso de falência, não só das estatais, como de qualquer outro tipo de empresa chinesa, os primeiros direitos a serem contemplados são os dos traba-lhadores, inclusive o de re-alocação para outras atividades produtivas. Depois, no correr do processo de falência, vão sendo atendidos os demais.

Com a entrada da China na OMC, a modernização das empresas estatais chinesas deve ser acelerada, supondo-se que entre 2005 e 2010 todas hajam alcançado o padrão científico e tecnológico básico.

Quebra dos monopólios

A China chegou à conclusão, depois de cerca de trinta anos de mono-polização estatal de vários setores de sua economia, que os monopólios, suas

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decisões unilaterais e seus preços administrados são um empecilho para o desen-volvimento econômico e social.

A partir dessa conclusão básica a China vem paulatinamente quebrando todos os seus monopólios, seja desdobrando os monopólios estatais em várias empresas estatais que concorrem entre si e com autonomia no mercado, seja permitindo a entrada de empresas coletivas e privadas nacionais e estrangeiras em diversos ramos e setores da economia.

Desse modo, as empresas são obrigadas a tornar-se competitivas, moder-nizando-se e aumentando sua produtividade e rentabilidade. O que só pode ser feito rebaixando custos e preços finais.

Cadeias produtivas completas

A China é um país continental, com mais de 9 milhões e 500 mil qui-lômetros quadrados (portanto, mais extenso do que o Brasil), com inúmeros recursos minerais, hidráulicos e de flora e fauna. Embora seus solos aráveis sejam relativamente limitados, suas pastagens naturais estejam geralmente acima de mil metros de altitude, assim como a maior parte de sua superfície, suas poten-cialidades naturais permitem que a China empreenda a política de dominar e instalar praticamente todas as cadeias produtivas possíveis em seu território.

Tal política, perseguida com persistência, transformou a China numa po-derosa exportadora de produtos manufaturados. Em outras palavras, a China só exporta matérias primas em certas condições especiais, preocupando-se princi-palmente em agregar valor a seus produtos primários e intermediários. Isso lhe dá um poder competitivo de primeira ordem no mercado internacional.

Educação, instrumento indispensável

A China já entendeu que sem um povo educado não pode alcançar um alto nível de desenvolvimento material e de desenvolvimento espiritual. Entretanto, a herança deixada pelo passado era extremamente perversa. Em 1949, cerca de 80% de sua população era analfabeta. Em 2000 esse número havia baixado para menos de 15%, mas isso ainda representava cerca de 150 milhões de analfabetos.

A reforma educacional introduzida na China após 1980 pretende liquidar a chaga do analfabetismo pelas pontas. Isto é, por um lado, através da educa-ção infantil, primária e secundária, sendo a educação primária e secundária de primeiro ciclo, num total de nove anos, obrigatória para todas as crianças em idade escolar. Pelo outro lado, através das escolas para adultos, que combinam alfabetização, profissionalização, ensino técnico secundário e universidades de período noturno, por TV e rádio, e por correspondência.

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As escolas primárias têm a duração de seis anos, as secundárias de primeiro ciclo de três anos e as secundárias de segundo ciclo também de três anos. Após esses doze anos de estudo os alunos podem candidatar-se a fazer um curso num dos diversos centros de ensino superior e universidades do país. Além disso, a China conta com um sistema de escolas vocacionais e de educação para de-ficientes, e com uma ampla rede de escolas profissionais e técnicas, médias e superiores.

A reforma educacional tem sido direcionada, em primeiro lugar, não só para garantir vagas para todas as crianças do período obrigatório de nove anos (mais de 150 milhões em 2000) e para todos os adultos ainda analfabetos, mas também para ampliar o número de vagas em oferta nos níveis intermediários e superiores da educação.

Em segundo lugar, a formação dos professores num sistema educacional mais aberto, voltado para ensinar os alunos a raciocinar criticamente, e a re-solver os problemas de ordem prática colocados pela vida econômica e social, tornou-se um ponto nodal no processo da reforma educacional. Além disso, tendo em vista essa perspectiva, as escolas médias e superiores estão sendo orga-nizadas em sistemas de múltiplos estratos, formas e disciplinas, correspondentes às necessidades do desenvolvimento nacional e da sociedade.

Nesse sentido, através do “Projeto 21”, voltado para este século, a reforma educacional da China está concentrando esforços em cem importantes univer-sidades e grupos de departamentos e especialidades, de modo que melhorem em grande escala sua qualidade educativa, a pesquisa científica e tecnológica, o nível administrativo, e o rendimento econômico e social, atingindo os padrões internacionais mais elevados.

Através desse experimento concentrado, seus resultados devem ser genera-lizados para os demais centros de ensino, a partir do ensino superior, atingindo todos os demais níveis, de modo a estabelecer um padrão educativo geral de alta qualidade de saber e realização prática.

06/03/2003

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Em seu programa de reformas, que deve durar de 50 a 100 anos, as au-toridades chinesas pretendem conformar uma economia saudável. Isto é, uma economia que tenha por base uma forte estrutura econômica e social, e relações sociais equilibradas e harmoniosas, permitindo à sua população usufruir um nível de vida medianamente abastado ou confortável.

Formas de Propriedade

Para formar uma estrutura de mercado socialista relativamente comple-ta, a China pretende continuar perseverando na construção de uma estru-tura econômica em que convivam diversas formas de propriedade, e em que os diversos setores da economia mantenham um ritmo seguro e equilibrado de desenvolvimento.

Na economia urbana, a China possui atualmente cerca de 30 milhões de empresas individuais e privadas, tanto industriais quanto comerciais e de servi-ços, empregando cerca de 70 milhões de pessoas. Há perto de 250 mil empresas sino-estrangeiras e exclusivamente estrangeiras, e 680 mil empresas cooperativas por ações, que respondem por uma parcela relativamente pequena do emprego, mas já produzem mais de 10% do PIB, e mais de 40% das exportações. Cerca de 10 milhões de empresas de propriedade pública, estatais e coletivas, respon-dem por cerca de 80 milhões de empregos e 70% do PIB.

Nas zonas rurais, as atividades agrícolas são desenvolvidas tanto por uni-dades familiares, de propriedade camponesa, quanto por unidades individuais, de propriedade privada, e granjas estatais e coletivas, de propriedade pública. As unidades familiares englobam mais de 250 milhões de camponeses, enquanto

Metas de longo prazo

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as unidades individuais e as granjas públicas abarcam cerca de 20 milhões de trabalhadores rurais.

Ao lado disso, operam as empresas de cantões e povoados, ligadas à in-dústria, construção civil, transportes, comunicações, comércio e agroindústria. Somam mais de 20 milhões de unidades, que empregam cerca de 130 milhões de trabalhadores.

A linha mestra da estrutura de propriedade chinesa consiste em que o se-tor público seja o corpo principal da economia, mas as empresas individuais e privadas, nacionais e estrangeiras, possam desenvolver-se, assim como diversos tipos de empresas mistas, resultantes da cooperação entre aqueles tipos básicos. O direito à propriedade privada foi introduzido na Constituição do país, de modo a assegurar que esse setor da economia se desenvolva sem discriminações, ao lado do setor público, estatal e coletivo.

Setores Econômicos

Entre 1978 e 2000, o desenvolvimento preferencial da economia chinesa esteve voltado para a indústria leve, importação de artigos de consumo de alta qualidade e construção infra-estrutural de energia, transportes e telecomunica-ções. Em vista disso, a proporção entre os setores primário, secundário e terciá-rio da economia se modificou. O incremento do valor global da economia, an-tes baseado nos setores primário e secundário, passou a ser impulsionado pelos setores secundário e terciário, com o setor secundário constituindo o principal meio de crescimento econômico.

No setor agrícola, a participação das lavouras no valor total da produção primária baixou, enquanto subiu a participação da silvicultura, pecuária e pesca. Nas lavouras, o peso dos cultivos industriais tornou-se maior do que o dos culti-vos de cereais. Por outro lado, nas zonas rurais, os setores secundário e terciário tornaram sua participação maior do que a do setor agrícola. Desde 1987 o valor total da produção das empresas industriais de cantões e povoados tornou-se superior ao valor total da produção agrícola, eliminando paulatinamente as di-ferenças entre o campo e a cidade.

No setor industrial, a composição de tipo leve das indústrias de bens de consumo de massa está evoluindo para uma composição de tipo pesado, cuja principal característica são os investimentos. Hoje, a China tem em funciona-mento cadeias completas de produtos industriais dos mais diferentes ramos. Elas compreendem os ramos básicos (siderurgia, energia, química e mecânica) e suas diversas derivações (como as indústrias de máquinas e equipamentos pesados), os de alta tecnologia (informática eletrônica, aeronáutica, aeroespacial, biotecno-logia etc) e os leves, compreendendo os mais de 40 ramos (dos utensílios de uso doméstico e alimentos aos eletrodomésticos e confecções).

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No setor terciário, a proporção dos setores de transportes, comércio e ra-mos tradicionais, está diminuindo em relação aos setores de bens imóveis, finan-ças, seguros, serviços de telecomunicações e turismo. Em todos esses setores, os monopólios foram quebrados, com a formação de diversas companhias, a maior parte estatais, que competem entre si. Os setores de transportes ferroviário, ro-doviário, aqüaviário e aéreo possuem hoje uma rede global superior a 3 milhões de quilômetros, capaz de transportar mais de 4 trilhões de toneladas/km e 1 trilhão de pessoas/km.

Os serviços de telecomunicações foram o setor que deu um dos saltos mais impressionantes no processo de crescimento chinês. Partiram de quase zero, em 1978, para um sistema integrado de redes analógicas digitalizadas, redes de dados e internet, conectadas através de sistemas de satélites e cabos de fibras ópticas, estes últimos atingindo cerca de 200 mil quilômetros de extensão. Os comutadores de telefonia móvel fornecem mais de 150 milhões de linhas, co-brindo mais de 80% de todo o território.

O setor financeiro é constituído por um banco central (Banco Popular da China), encarregado de regular e supervisionar todo o sistema, bancos co-merciais de propriedade estatal, bancos comerciais por ações, bancos privados de propriedade estrangeira e organizações financeiras de diversos tipos, tanto estatais quanto privadas. O volume dos recursos depositados no sistema ban-cário como poupança atingiu, em 2000, mais de 10 trilhões de yuans (cerca de 1,2 trilhão de dólares), enquanto o volume de empréstimos chegou a mais de 9 trilhões de yuans (cerca de 1,1 trilhão de dólares).

Desde 1994, a China unificou as taxas de câmbio e o sistema de compra e vendas de divisas estrangeiras por meio de um mercado interbancário. Desde 1996, consolidou-se a conversibilidade do RMB (reminbi ou yuan) nas con-tas correntes, criando as condições para a conversibilidade completa da moeda chinesa nos mercados internacionais. Em termos de reservas internacionais de divisas, a China possuía, em 2001, cerca de 200 bilhões de dólares.

Já o setor de seguros é formado por um Comitê de Administração e Super-visão de Seguros, e por mais de trinta companhias de seguro estatais, mistas por ações, mistas sino-estrangeiras e privadas estrangeiras, além das representações de mais de uma centena de organismos de seguros estrangeiros. Atualmente aquelas companhias operam com cerca de 300 itens, que incluem seguros de vida, saúde, acidentes, bens etc.

Reforma das estatais

Na linha de enfrentamento dos novos desafios da atualidade, a reforma das estatais chinesas joga um papel chave. Essa reforma, na realidade, vem desde

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1978. Ela passou pela fase de concessão de mais poder e lucros às empresas, até 1984, e pela fase de separação entre o direito de propriedade e o poder de gestão, entre 1984 e 1993, ingressando então na presente fase de estabelecimento de um moderno sistema empresarial.

As estatais chinesas são as principais contribuintes do Estado (70% da ar-recadação), controlam um enorme montante de ativos e sua presença tem sido indispensável para o desenvolvimento dos setores não-estatais. Em seu processo de reforma, elas enfrentam dificuldades para re-alocar seus trabalhadores exce-dentes, e para resolver uma série de problemas de ordem ideológica, política e de segurança do Estado.

Ao conquistar autonomia e participar do mercado, tendo que elevar sua eficácia e obter lucros, as estatais precisaram enxugar os corpos operativos, ad-ministrativos e diretivos das empresas, criar projetos de re-emprego e estabelecer o sistema de seguridade social para manter o padrão de vida dos trabalhadores dispensados. Em 1995, o número de funcionários das estatais havia caído de 74 milhões, em 1978, para perto de 25 milhões, mantendo esse mesmo patamar nos anos seguintes.

Mas, apesar do avanço na eficiência e rentabilidade das estatais - até setem-bro de 2001 seus lucros haviam se elevado em 13,7%, chegando a USD 18,7 bi-lhões - ainda persistem deficiências de toda ordem. Muitas delas se encontram em setores de baixo conteúdo tecnológico e pouco peso na economia nacional, sendo necessário racionalizar sua distribuição e composição. Persiste a demora em reformar o direito de propriedade, separar a administração governamental da gestão empresarial, e estabelecer um sistema gerencial dos ativos, no qual os direitos e responsabilidades estejam claramente definidos. E não são poucas as que têm dificuldade em alcançar estabilidade num ambiente de mercado.

A atual fase da reforma inclui a reestruturação e elevação técnica e geren-cial, e a implantação progressiva do sistema empresarial moderno, que funcione de acordo com os requerimentos da economia de mercado e de uma produção de massa. Inclui, ainda, a definição dos direitos de propriedade dentro da em-presa e dos direitos e responsabilidades da empresa na sociedade, a separação da administração governamental da gestão empresarial, e a adoção da gestão científica na produção e nos negócios.

Algumas estatais, como as Siderúrgicas Baoshan e Handan e o Grupo Farmacêutico do Nordeste, já implantaram esse sistema e estão servindo como referência para as demais. São essas empresas, na verdade, os principais instru-mentos que a China tem para, após seu ingresso na OMC, realizar uma disputa competitiva tanto no mercado doméstico, quanto no mercado internacional. Aliás, a Baoshan já se encontra no mercado brasileiro, através de um acordo com a Vale do Rio Doce.

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As empresas estatais devem continuar desempenhando o papel de princi-pais indutoras do desenvolvimento chinês e instrumentos importantes para a realização das políticas macroeconômicas. Ao mesmo tempo, tendo os mesmos direitos e deveres dos demais tipos de empresas, elas devem competir no merca-do, ter eficácia, eficiência e rentabilidade, o que é garantido pela gestão científica e pelo sistema de responsabilidade. As estatais incapazes de atingir essas metas podem ter sua falência legalmente decretada, o que evita que se tornem um peso inútil para a sociedade.

Reforma dos mercados

O mercado nacional deve realizar a integração entre os mercados urbano e rural, e a conexão entre os mercados nacional e internacional, estimulando a otimização dos recursos internos. O mercado doméstico deve estar em condi-ções de suportar os ritmos de crescimento da economia nacional, mesmo no caso de turbulências internacionais e, ao mesmo tempo, deve aproveitar todas as condições para ampliar sua presença no mercado internacional.

A administração da economia pelo Estado deve basear-se em mecanis-mos de regulação e controle macroeconômicos, separando as funções gover-namentais das empresariais. Atualmente, apenas algumas poucas mercado-rias, cuja demanda supera a oferta, encontram-se controladas por monopó-lios estatais de comercialização. Todas as demais mercadorias têm livre curso no mercado e seus preços estão, em geral, subordinados à lei da oferta e da procura.

Paralelamente desenvolve-se o mercado de capitais, incluindo o crédito, as ações, os bônus do tesouro e os diversos mecanismos de fluxo de capitais, a exemplo das taxas de juros, rolagem de empréstimos, redescontos e fundos de poupança. As bolsas de valores de Shanghai e Shenzhen são os símbolos mais evidentes da dimensão do mercado de capitais da China.

Reforma dos sistemas fiscal e financeiro

A reforma dos sistemas financeiro, de investimentos e dos impostos, tem em vista diversificar a política financeira, alterar o sistema orçamentário do Esta-do, aumentar a segurança financeira e estabelecer uma divisão racional dos im-postos. A divisão dos impostos compreende a cobrança dos impostos centrais, locais e os conjuntos cobrados pelas coletorias locais. Essa divisão tem por base o sistema de impostos de circulação e o imposto sobre a renda. Os impostos de circulação compreendem o imposto de valor agregado (IVA) como base, e os impostos de consumo e de comércio, como complementares.

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No cálculo orçamentário, substitui-se a estrutura unificada de receitas e despesas pelo sistema de partidas dobradas, que compreende um orçamento constante e um orçamento construtivo. Desse modo, para realizar a regulação e o controle macroeconômicos, necessários para equilibrar o volume total da eco-nomia e otimizar a estrutura econômica, a administração pública pode valer-se das medidas orçamentárias, da arrecadação, da emissão de bônus do Tesouro, de subvenções, créditos e outras medidas de caráter financeiro.

Reformas sociais

Com essas reformas na estrutura econômica, a China pretende estabele-cer uma estrutura social de múltiplos estratos e de ascensão permanente desses estratos. Tal estrutura deve ser melhorada através das reformas nos sistemas de moradia, seguridade médica e social, e distribuição das receitas.

Os investimentos em moradia representaram, entre 1979 e 2000, cerca de 23% dos investimentos em ativos fixos sociais do país, ampliando a su-perfície de construção de moradias em mais de 18 bilhões de metros quadra-dos. Nas cidades, a superfície habitacional per capita passou de 3,8 m2, em 1978, para 9,3 m2, em 1998, enquanto nas zonas rurais passou de 8,1 m2 para 23,7 m2. As metas de moradia para 2010 prevêem que os programas de construção habitacional proporcionarão a todas as famílias urbanas do país moradias com funções completas, constituídas de 15 a 18 m2 de superfície de uso por pessoa.

Os bens imóveis podem ser comercializados e as famílias são estimuladas a comprar suas moradias através de sistemas especiais de crédito, gerenciados por companhias imobiliárias estatais e privadas. Além disso, a administração pública também promove o uso compensatório dos terrenos, de modo a multiplicar os investimentos individuais, familiares e privados nos programas de moradias.

O sistema de seguridade médica, que garantia o tratamento médico gra-tuito para todos, está sendo paulatinamente substituído por sistemas em que os segurados em melhores condições de renda pagam em comum os gastos médi-cos. Assim, formam-se fundos de assistência médica cooperativa, que provêm em parte das famílias beneficiadas, e em parte do Estado. Para o caso de doenças graves, há um fundo específico formado nas mesmas condições. Nas regiões mais pobres o Estado mantém o sistema de seguridade médica, de forma que nenhum setor da população deixe de ser atendido.

O sistema de seguridade social compreende, além disso, os seguros, o bem-estar, o socorro e os serviços sociais. Os seguros mais importantes são o seguro-desemprego, o seguro-velhice e o seguro-acidente. Todos são constituídos de fundos que combinam recursos sociais com contas individuais, unificadas em

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sistemas específicos. Os serviços de bem-estar, socorro e sociais contam também com fundos unificados.

A mudança dos antigos sistemas para os novos é realizada paulatinamente e conforme o ritmo de crescimento da renda da população. Com uma distri-buição de renda baseada no lema “a cada um de acordo com seu trabalho”, no qual a eficácia desempenha o fator principal, mas a eqüidade é garantida através dos sistemas de garantia social e educacional, assim como de outras formas de qualificação que universalizem as oportunidades, a China pretende passar da estrutura de garantia de subsistência elementar para uma nova estrutura de con-sumo. Desse modo, a China acredita estar estabelecendo a base material sobre a qual pode construir uma nova civilização espiritual.

05/08/2005

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Na primeira metade dos anos 1990, o governo chinês convencera-se de que um incremento de 10% ao ano no PIB exercia pressão demasiada sobre as matérias primas e a infra-estrutura, alimentando tensões inflacionárias, polarizações de renda e outros fenômenos negativos. Foi isso que o levou a tentar mudar aquele ritmo de alto crescimento, para um crescimento de 7% a 8% ao ano, moderadamente rápido, dando mais atenção à qualidade e à eficiência, e tendo como forças motrizes as indústrias eletromecânica e de tecnologia de informação.

Foi também isso que o levou a transferir o centro do desenvolvimento das zonas litorâneas para o centro e o oeste do país, que compreende cerca de 80% do território, e onde vivem 64% da população. E a adotar estratégias que trouxessem para primeiro plano a economia de recursos, sistemas com-pensatórios de utilização dos recursos naturais, e medidas ativas de proteção e recuperação ambiental.

Mas as crises financeiras de 1997 a 1999 apanharam os chineses em plena mudança de foco. Além de abalarem a maioria dos países asiáticos e terem efei-tos devastadores sobre a maior parte dos países em desenvolvimento e atrasados, elas respingaram sobre a China, obrigando-a a adotar medidas complementares para manter o fluxo de investimentos externos, o crescimento de suas exporta-ções e a ampliação do mercado doméstico.

O programa de modernização do centro e do oeste do país ampliou as facilidades ofertadas aos empresários estrangeiros e domésticos que investissem na região, e aos técnicos e trabalhadores especializados que aceitassem deslocar-se para lá. Ao lado disso, o governo central também adotou uma política fiscal ativa, lançando, na segunda metade de 1998, 100 bilhões de yuans (USD 12,2

Políticas do século 21

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bilhões) em títulos do Tesouro, e estimulando os bancos a ofertarem outros 100 bilhões de yuans em créditos para investimentos em infra-estrutura e na construção de moradias.

Essas medidas não foram, porém, suficientes. No segundo trimestre de 1999, o consumo e os preços voltaram a cair e as exportações se enfraqueceram, enquanto os depósitos nas instituições financeiras aumentaram. Como resposta a essa tendência de deflação, o governo lançou mais 60 bilhões de yuans em títulos do Tesouro, redirecionando os investimentos para ciência, tecnologia e educação, e para setores, empresas e produtos chaves, ao mesmo tempo em que passava a encorajar os investimentos não-governamentais e o consumo.

Com isso, foi possível dissipar momentaneamente os sinais de deflação, manter a estabilidade do renminbi, aumentar a demanda e obter taxas de crescimento superiores a 7%, em 1999 e 2000. No entanto, a situação crítica do mundo, mais evidente nos primeiros meses de 2001, com a renitente es-tagnação japonesa e a desaceleração da economia norte-americana, agravou-se no segundo semestre.

As previsões sobre o comércio mundial e o crescimento do PIB dos diversos países do mundo já eram nebulosas desde meados do ano. Mas os atentados ao World Trade Center, em Nova York, a reação inicialmente descontrolada do governo norte-americano e, depois, os bombardeios contra o Afeganistão, as tornaram ainda mais sombrias. No final de 2001, o comércio mundial apresen-tou um crescimento de 1%, contra 13% em 2000, a demanda por exportados dos países mais pobres teve uma queda de 10%, e o PIB mundial cresceu apenas 1,3%, contra 3,8% em 2000.

Houve tanto retração nos investimentos de capitais de risco, quanto em operações de crédito e emissão de títulos. O Conselho de Cooperação Econô-mica do Pacífico, pertencente à APEC, calculou que o fluxo de capitais para os “mercados emergentes” teve uma queda de 36,5% - de USD 167 bilhões, em 2000, para USD 106 bilhões em 2001, enquanto o crescimento da região, con-siderada a de maior dinamismo econômico do mundo, ficou em torno de 1%.

Esses cenários mundiais e regionais negativos refletiram-se nos contratos de exportação da sessão de Outono, em outubro, da maior feira de commodities da China, a Feira de Cantão. As ordens de compra das oito nações do Golfo Pérsi-co tiveram uma queda de 55%, somando apenas USD 680 milhões, enquanto os contratos com os EUA declinaram 22%, totalizando USD 1,4 bilhão. Essas reduções representaram um peso importante na queda de 15,4% no total das vendas (USD 13,4 bilhões), em comparação com a sessão de Primavera, em abril, que havia alcançado USD 15,8 bilhões.

Desse modo, o crescimento das exportações chinesas que, apesar de tudo, havia chegado a 11,3% no primeiro semestre de 2001, ficaram em 7% no ano.

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Embora isso fosse superior a tudo que se conhece no resto do mundo, não dei-xou de ter um impacto negativo sobre os programas e o ritmo de crescimento geral da China, que ficou em 7,5%, cerca de 1% a menos do que estava projeta-do. Esta queda elevou o número de desempregados em 2 milhões, e a taxa geral de desemprego no país a mais de 4% da PEA.

O crescimento das importações foi maior do que o das exportações, fazen-do com que o superávit da balança comercial caísse dos USD 6,3 bilhões de 2000 para USD 5,1 bilhões em 2001. É evidente que, comparada às recessões de Taiwan e Cingapura, agravadas pelo naufrágio tecnológico dos EUA e Japão, ou às dificuldades da Indonésia, Coréia e Malásia, cujas economias cresceram a ritmos bem mais lentos, a situação da China ainda era confortável.

Apesar de tudo, os investimentos externos diretos na economia chinesa haviam crescido 20% no primeiro semestre de 2001 (USD 20,1 bilhões) e che-garam a USD 41 bilhões até o final do ano. E as estimativas eram que conti-nuariam crescendo nos próximos anos, estimando-se que se elevarão a USD 65 bilhões em 2005. As reservas internacionais da China alcançaram USD 200 bilhões, a inflação manteve-se em níveis muito baixos, e a paridade entre o yuan ou renminbi e o dólar manteve-se estável (USD 1 = RBM 8,26). Entretanto, os chineses tinham consciência de que sua economia podia ser contaminada pelos distúrbios internacionais, principalmente porque ainda apresenta muitos pontos débeis.

Políticas anti-crise

Para manter o crescimento do seu PIB a taxas de 7,8%, em 2002, e 8%, em 2003, num brutal contraste com o ritmo de crescimento do resto do mundo, o governo chinês teria que tomar uma série de medidas estratégicas para expandir seu próprio mercado doméstico e tomá-lo como suporte principal de seu desen-volvimento, até que a economia mundial superasse suas dificuldades.

Além disso, tendo em conta a importância de um ambiente pacífico para continuar tendo sucesso em seu processo de crescimento, o governo chinês também operou silenciosa, mas eficazmente, no sentido de levar os EUA a modificarem sua estratégia política e militar após os atentados terro-ristas. O núcleo da política chinesa consistiu em condenar todas as formas de terrorismo, clamar pela observação da Carta da ONU e das leis interna-cionais, pressionar por um papel chave para o Conselho de Segurança da ONU, exigir a clara definição dos alvos, no caso do combate concreto ao terrorismo, de modo a evitar a morte de inocentes e prejuízos à população civil, e considerar o caminho do desenvolvimento como o instrumento mais eficaz para esvaziar as fontes de apoio ao terrorismo.

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Foi nesse quadro conturbado que o governo chinês adotou, desde o fi-nal de setembro de 2001, um conjunto de medidas para enfrentar os perigos representados pela recessão mundial. Elas abrangeram a elevação da renda da população urbana e rural, o estímulo ao consumo doméstico, a continuidade da competição chinesa no mercado internacional, o aprofundamento das re-formas, especialmente as que dizem respeito às empresas estatais e aos sistemas fiscal e financeiro, a perseverança nas políticas fiscais ativas, a manutenção dos investimentos governamentais nos níveis correntes e o encorajamento aos inves-timentos não-estatais.

Elevação da renda da população

Pesquisa realizada em outubro de 2001, pela Chat Magazine, entre tra-balhadores de Shanghai, Guangzhou e Shenyang, mostrou que 57,6% deles recebe entre 500 e 1500 yuans/mês (USD 60 e USD 181). Em Shenyang, 20% ganham menos do que aquele mínimo, enquanto em Shanghai e Guan-gzhou cerca de 60% recebem mais de 1000 yuans. As estatísticas, por outro lado, apontam que a renda anual média urbana chinesa situa-se em 6.280 yuans (USD 756), enquanto a renda rural é de 2.253 yuans (USD 271).

64% dos pesquisados garantiram ter alimentação e roupa adequadas, 27% sustentaram ter um melhor padrão de vida, e 80% disseram estar satisfeitos com suas condições de vida. As autoridades chinesas, porém, não têm dúvidas de que só elevarão a demanda doméstica se realizarem um consistente aumento dos rendimentos da população. Assim, com seu método passo-a-passo, o governo voltou a dar um novo aumento aos funcionários públicos, cujos salários conti-nuam, em geral, inferiores aos dos empregados nas estatais e empresas coletivas e privadas. Ao mesmo tempo, elevou em 80 yuans/mês as pensões e subsídios aos aposentados e desempregados e instituiu o 13º salário anual.

Além de estender aos trabalhadores rurais os mesmos benefícios dados aos trabalhadores urbanos e reduzir gradualmente os impostos agrícolas, o governo está garantindo, aos cerca de 30 milhões que ainda vivem abaixo da linha da pobreza, o fornecimento de cupons para sua subsistência. O impos-to de renda dos que ganham entre 50 mil e 100 mil yuans/ano (USD 6 mil e USD 12 mil/ano) também está sendo reduzido ou sofrendo isenção, ao mesmo tempo que as barreiras que impediam a adoção do imposto de renda progressivo estão sendo removidas.

Os governos locais e departamentos estatais têm sido pressionados a elevar o padrão de vida dos aposentados e desempregados. Aumenta o número de em-presas estatais com centros de re-emprego e há um esforço redobrado para que o sistema de seguridade social, que nos últimos três anos gastou USD 8,7 bilhões

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com 90% dos desempregados, abranja todo o país. Atualmente, 100 milhões de trabalhadores participam do seguro desemprego e 4 milhões de residentes urbanos participam do sistema de renda mínima, enquanto 106 milhões são atendidos pelo sistema de seguro da velhice.

Elevando principalmente a renda dos níveis inferiores, o governo chinês pretende fazer com que essas camadas desempenhem um papel importante no crescimento do consumo doméstico. Em termos gerais, o poder aquisitivo da população chinesa subiu mais de 9%, de julho de 1999 a dezembro de 2001, contribuindo para aumentar a demanda efetiva em 247 bilhões de yuans (USD 29 bilhões) desde então.

Estímulo ao consumo doméstico

Para transformar o aumento da renda em consumo, e dinamizar a econo-mia, o governo chinês ampliou os principais feriados nacionais, criou estímulos ao turismo interno e à educação, aumentou os programas de construção de moradias e intensificou os investimentos em infra-estrutura e ativos fixos.

Através da ampliação dos feriados nacionais de 1º de maio (Dia do Traba-lhador), 1º de outubro (Dia Nacional), Ano Novo e Ano Novo Lunar (Festival da Primavera) para uma semana inteira, o governo deu um importante impulso às vendas e ao turismo doméstico. Pesquisa realizada nas 100 maiores lojas de departamento da China, no feriado da primeira semana de outubro de 2001, mostrou que as vendas totais tiveram um crescimento de 17% em relação ao mesmo período de 2000.

Ao mesmo tempo, tem crescido consideravelmente a quantidade de even-tos e outras formas de atração turística. Embora muitos deles estejam concen-trados nos períodos dos quatro grandes feriados, é possível encontrar programa-ções de festivais artísticos, exposições, feiras de negócios, seminários científicos e culturais, festas folclóricas etc, em todas as estações do ano, atraindo milhares de turistas dos mais diversos pontos da China.

As ofertas de cursos de reciclagem, especialização, pós-graduação, dou-torado e de outros tipos, em períodos diurnos e noturnos, têm crescido consideravelmente, de modo que o aumento da renda reverta no sentido de criar condições ainda mais favoráveis para o acesso a rendas maiores no futuro. Por outro lado, as novas facilidades de crédito a juros baixos para a aquisição de moradias modernas e mais amplas transformaram-se numa po-derosa alavanca para elevar o nível habitacional da população e impulsionar a construção civil.

Os investimentos em infra-estrutura e ativos fixos, por sua vez, sempre representaram um importante estímulo ao emprego e ao crescimento da renda.

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A novidade agora é que o crescimento da renda servirá como estímulo aos in-vestimentos não-estatais.

Continuidade da competição no mercado internacional

Para continuar como parte atuante no mercado internacional, num quadro de crise, a China adotou medidas para ampliar a política de atração de capitais externos, aproveitar as vantagens comparativas de seu ingresso na OMC, levan-tar as barreiras, ainda existentes, para a entrada de capitais externos e privados em áreas de monopólios estatais (ferrovias, aviação civil, mercado de ações etc), e elevar a produtividade e a qualidade dos produtos chineses para aumentar sua competitividade.

Apesar do baque nas exportações, a China não pretende encolher-se nas relações internacionais. Ela acredita que, diante da recessão mundial, seu cres-cimento será um atrativo imperdível para capitais em busca de aplicação. Seus economistas consideravam possível, antes da cúpula da APEC, que os investi-mentos diretos em sua economia chegassem a USD 41 bilhões em 2001, mas tinham dúvidas sobre os anos seguintes. O Acordo de Shanghai, porém, refor-çou as expectativas positivas.

Sua proposta de nova rodada multilateral de comércio na OMC - apro-vada em Doha, logo depois - e a decisão de concretizar as Metas de Bo-gor (livre comércio dos membros da APEC, entre 2010 e 2020), levaram o Conselho de Cooperação Econômica da APEC a estimar que essas medidas podem gerar USD 600 bilhões adicionais no comércio mundial, e elevar os investimentos externos na China durante os próximos anos. A previsão para 2005 é de USD 65 bilhões.

A China também acredita que sua entrada na OMC pode contribuir para aumentar sua inserção no mercado mundial de capitais e mercadorias, intensi-ficar sua integração com os países do leste asiático, ajudando sua recuperação econômica à medida que mantém sua estabilidade e seu crescimento, e evitar as retaliações que têm sofrido por não ser membro daquele organismo. Os chineses prepararam-se, durante quinze anos, para esse momento, e sabem que alguns se-tores de sua economia vão sofrer uma concorrência feroz. Consideram, porém, que possuem vantagens comparativas em muitos outros setores, e estão seguros que o risco terá mais vantagens do que desvantagens.

A China não tem qualquer ilusão na OMC. Avalia que esta, até agora, tem sido um clube dominado pelas nações desenvolvidas. Mas, ao contrário dos que querem evitar esses aspectos negativos, tentando eliminar a OMC, propõe-se a lutar por reformas nesse organismo multilateral, através da ação das nações atrasadas e em desenvolvimento, com vistas a estabelecer uma nova ordem eco-

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nômica mundial. Ela está convencida de que somente integrando-se ao processo de globalização, os países em desenvolvimento podem obter oportunidades para o seu próprio desenvolvimento, contrapondo-se às suas desvantagens e aspectos negativos.

Os vinte anos de desenvolvimento econômico e social da China e a con-quista da nova rodada multilateral de comércio, na reunião de Doha, parecem dar alguma razão aos chineses, que ainda se aproveitam da crise do mundo de-senvolvido para prometer que a China investirá, até 2005, USD 1,4 trilhão em equipamentos e produtos de alta tecnologia.

Reforma dos sistemas fiscal e financeiro

Ao invés de arrefecer o processo de reformas em sua estrutura econômica, a China considera que é necessário aprofundá-las para enfrentar com sucesso a crise mundial. Em especial, considera que é necessário avançar na reforma das estatais, assim como realizar a reforma fiscal e a reforma financeira.

Nas áreas fiscal e financeira, a China enfrentava pelo menos quatro gran-des problemas, ainda em 2002: a participação do governo central na arre-cadação global do país era relativamente baixa; as taxas extra-orçamentárias concorriam com os impostos; havia cerca de USD 580 bilhões de créditos irrecuperáveis dos bancos comerciais estatais; e o mercado de capitais preci-sava de uma estrutura regulatória.

A participação do Estado no produto do país se contraíra nos últimos anos. Ela foi de 40% durante os anos da economia de comando, baixou para 31,8% em 1978, para 22,4% em 1985, e para 10,7% em 1995, cabendo ao governo central apenas metade desse total. Em termos internacionais, essa participação é muito reduzida, contribuindo para enfraquecer a capacidade do Estado de implementar o macro-controle sobre o desenvolvimento do país.

Por outro lado, as tentativas de incrementar os investimentos públicos através dos governos provinciais e locais têm falhado. Esses governos tendem a alocar recursos apenas em setores que tragam retornos econômicos rápidos, o que não é o caso de setores estratégicos como a agricultura, a educação e a saú-de. Nessas condições, para fazer frente à escassez de fundos, o governo central tem lançado títulos para sustentar o desenvolvimento, o que pode colocá-lo em situação difícil quando tiver que saldar seus débitos.

Além disso, o governo central tem tido pouco controle sobre as taxas extra-orçamentárias estipuladas pelos departamentos governamentais. Atu-almente existem mais de mil taxas estipuladas por governos de diferentes níveis. Em algumas regiões, como em Guangzhou, em 1996, o valor dessas taxas era o dobro do valor dos impostos. Esses recursos extra-orçamentários,

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por sua vez, sem gerenciamento estrito e supervisão eficiente, transforma-vam-se em alimento para a corrupção.

Nessas condições, as atuais reformas fiscais direcionam-se no sentido de eliminar a maior parte das taxas, transformar algumas em impostos, redistri-buir a participação dos governos central e locais na arrecadação, e estabelecer um sistema fiscal que cubra todas as atividades econômicas. Com isso, o go-verno chinês pretende realizar uma política fiscal ativa, no sentido de ampliar a demanda doméstica, sustentar um crescimento moderado em créditos mo-netários, e monitorar as flutuações nas condições fiscais e econômicas internas e internacionais.

Para solucionar o problema dos créditos irrecuperáveis, um evidente ris-co financeiro, tido como custo inevitável na transformação de uma economia centralmente planificada numa economia de mercado, o governo não só está reduzindo seus gigantescos ativos não realizáveis (NPL’s), pertencentes aos qua-tro maiores bancos comerciais chineses, a uma média de 2% a 3% ao ano, como transferiu para companhias de administração de ativos o tratamento dos empréstimos irrecuperáveis, que representam 7% de todos os empréstimos em moeda local e estrangeira.

Essas companhias absorveram 1,4 trilhão de yuans (USD 169,1 bilhões) em créditos podres daqueles bancos, conseguindo recuperar 40,13 bilhões de yuans até setembro de 2001. Paralelamente a isso, o governo está estimulando o estabelecimento de empresas de avaliação de risco para supervisionar o sistema de crédito, que atualmente não é padronizado, tem uma legislação ultrapassada, não trabalha com informações confiáveis, e não utiliza os resultados das avalia-ções de risco para fornecer os empréstimos.

Quanto ao mercado de capitais, os fundos de investimentos ainda são con-siderados a parte mais débil do sistema financeiro chinês. Após a falência da Guangdong International Trust & Investment Co. (GITIC), em 1998, incapaz de pagar débitos no valor de USD 3,38 bilhões no mercado internacional, se-guida da quebra de fundos semelhantes em Hainan, Dalian, Tianjin e em outras 116 companhias de investimentos (metade do total existente), o setor pareceu haver ingressado numa crise sem retorno. Esses fundos haviam se envolvido em atividades não relacionadas com investimentos, aceitaram ilegalmente depósitos de pessoas físicas, e lançaram bônus internacionais sem aprovação das autorida-des monetárias centrais.

Apesar da profundidade da crise, em grande parte decorrente da ausên-cia de leis que regulassem esse mercado, o Banco Central chinês lançou uma campanha para reestruturar o setor, tomando como base os 120 fundos que não haviam sucumbido, e a nova Lei sobre Fundos de Investimento. Regras estipulando as condições para o lançamento de novos produtos somente após avaliação de risco por um grupo de especialistas do Banco Central, e a separação

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entre as empresas de seguros e os fundos de investimento, fazem parte de um conjunto de medidas para tirar lições daquela crise, e montar um forte mercado de capitais na China, considerado um instrumento indispensável para enfrentar os desafios do ingresso na OMC.

Manutenção dos investimentos estatais

Apesar dos problemas fiscais e financeiros, a China não diminuiu em nada seu gigantesco ritmo de investimentos em infra-estrutura. É possível ver algu-mas obras paralisadas, tanto em Beijing, Shanghai, Guangzhou, quanto em outras grandes cidades da faixa litorânea de maior desenvolvimento, mas elas certamente não passam de episódios momentaneamente mal sucedidos.

O ritmo febril na construção de prédios, moradias, avenidas, viadutos e ou-tras utilidades públicas, com um planejamento voltado para criar amplos espa-ços urbanos, com volume proporcional de construções, áreas verdes e distâncias entre construções, está transformando as cidades chinesas em sítios modernos e arejados, a tal ponto que criou uma polêmica em torno da conservação de algumas áreas de hutongs, bairros com construções antigas típicas.

A construção de rodovias, ferrovias, pontes, portos, aeroportos, usinas hidro e termo-elétricas, linhas de transmissão, sistemas de telecomunicações e novas plantas industriais, está se estendendo agora ao centro e ao oeste do país. A construção do complexo hidráulico das Três Gargantas, no rio Iang-tsé, iniciada em 1993, é provavelmente a mais emblemática do país. Com investimentos de USD 12 bilhões, incluindo USD 4,8 bilhões apenas para o reassentamento de 1,13 milhão de pessoas, estará concluída em 2009. No entanto, não menos significativos são os projetos de desvio de 38 a 40 bi-lhões de metros cúbicos por ano de águas do rio Iangtsé, para as terras secas da região norte, e a chegada dos trilhos da moderna ferrovia que liga o leste da China a Lhasa, no Tibet, a 5.200 m de altitude.

A conquista de Beijing, como sede dos Jogos Olímpicos em 2008, tornou-se outro pretexto para modernizar ainda mais essa cidade já moderna. Estão projetados USD 13,9 bilhões de investimentos para preparar a cidade até 2007, podendo chegar a USD 22 bilhões os investimentos adicionais em projetos de desenvolvimento urbano e utilidades públicas no mesmo período. Apenas para os Jogos, a cidade deve preparar 22 ginásios, estádios e piscinas, 15 outros locais para competições, além dos alojamentos da Vila Olímpica, num boom de cons-truções superior ao que já transformou Beijing nos últimos anos.

O aeroporto da capital, atualmente capaz de atender a 35 milhões de pas-sageiros/ano, terá que ser expandido para atender a 50 milhões. O metrô, por onde trafegam atualmente 480 milhões de passageiros por ano, em 2008 deverá ser capaz de conduzir 1,7 bilhão de passageiros, atingindo 100 km de extensão.

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Apenas os projetos do aeroporto, metrô, metropolitano de superfície, e avenidas expressas, devem absorver USD 10,8 bilhões.

Enquanto o distrito central de Beijing deve receber investimentos de USD 2,5 bilhões, o meio ambiente da capital receberá USD 5,4 bilhões para reajustar a matriz energética, melhorar a qualidade do ar, reconstruir o sistema de coleta e tratamento do lixo, e ampliar a área verde per capita para 10 m2, o que significa cerca de 100 milhões de metros quadrados reflorestados.

Encorajamento aos investimentos não-estatais

O governo chinês está ainda realizando esforços para ampliar os investi-mentos não-estatais nesses e em outros projetos de seu interesse. Está elimi-nando encargos irracionais, quebrando monopólios administrativos, abrindo alguns monopólios comerciais, como ferrovias e aviação civil, à participação de capitais privados domésticos e estrangeiros, intensificando seu apoio às peque-nas e médias empresas, e ampliando suas ofertas para investimentos no Centro e Oeste do país, onde existem ricos recursos naturais, uma política tributária mais favorável e uma mão-de-obra relativamente mais barata do que no leste.

O Centro e Oeste da China compreendem 55% do território total do país, e 18 províncias e regiões autônomas. Detêm 71% das pastagens naturais, 38,5% das terras adequadas a reflorestamento, 80% dos recursos hidroelétricos, 80% das reservas de lítio, níquel, platina e asbesto e 40% das reservas de gás natural de toda a China.

As possibilidades de desenvolvimento e participação estrangeira no Centro e Oeste da China estendem-se à exploração dos recursos naturais (hidroelétricos, petróleo, gás etc), construção de infra-estrutura (energia, transporte, telecomunicações, urbanização, sistemas de metropolitanos), es-tabelecimento de empresas agrícolas e pecuárias avançadas, processamento de produtos agrícolas e animais, desenvolvimento agrícola integral, trans-formação técnica e melhoria das empresas antigas (maquinaria, eletrônica, indústria automotriz, materiais de construção, química, têxteis) e desenvol-vimento cooperativo dos recursos de turismo.

No setor imobiliário, cujos programas de construção e reformas de mo-radias urbanas e rurais estão sendo intensificados, apenas em 2000, a taxa de inversão imobiliária foi 5% do PIB. Entre 1995 e 2000, ocorreu um cresci-mento de 15% ao ano na construção de moradias, com a elevação do nível de urbanização de 28%, em 1995, para 35%, representando a construção de 230 novas cidades e 5 mil novos povoados.

Embora a construção de vilas de luxo, edifícios de escritórios e outros pro-jetos de alto custo tenham passado a ter controle restritivo, para dar prioridade

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à construção de moradias, as taxas médias de retorno no mercado imobiliário chinês continuam bastante elevadas. São de 30%, contra 6% a 8% no mercado internacional. Não por acaso as empresas estrangeiras, atuando no mercado de construção, somam mais de 1.200, e as provenientes de Hong Kong, Macau e Taiwan sejam 3.400.

Estabilidade social e política

Para realizar seu ambicioso programa de reformas e desenvolvimento, as autoridades chinesas consideram fundamental manter a estabilidade social e po-lítica da sociedade chinesa. Para tanto eles se baseiam naquilo que chamam de “as três condições favoráveis”, isto é, “promover o crescimento das forças produ-tivas”, “realizar o desenvolvimento social e cultural” e “incrementar o padrão de vida de todo o povo”.

Tomando as três condições favoráveis como um sistema integrado, e critério básico para medir a viabilidade das reformas em curso, a China pretende con-duzir as reformas através de um processo gradual, realizar uma relação adequada entre reforma, desenvolvimento e estabilidade, tomando as reformas como for-ça motriz, o desenvolvimento como foco, e a estabilidade como garantia.

Desse modo, a estabilidade social e política é considerada como garantia indispensável para alcançar as metas estipuladas para suas reformas e alcançar o nível de desenvolvimento programado.

Estabilidade global para ter estabilidade social

Para criar um ambiente global de estabilidade, a China adotou uma série considerável de medidas legais no sentido de rever casos históricos considerados injustos, tanto anteriores à Revolução Cultural, quanto nos dez anos de dura-ção desta, e de reajustamento das relações sociais. Por exemplo, os rótulos de latifundiários e camponeses ricos foram retirados. O status de classe dos anti-gos industriais e homens de negócios, foi modificado, sem exceção, para o de quadros e trabalhadores. E os intelectuais passaram a ser considerados parte da classe trabalhadora. Com isso, foi removida a maioria dos preceitos legais que estimulavam as diferenciações e os conflitos sociais.

Por outro lado, ganhou importância fundamental o combate à corrup-ção, especialmente a corrupção no seio dos altos funcionários do Estado e do Partido Comunista, sem o qual toda a política de reforma e desenvolvi-mento poderia sucumbir. Desde 1980, e particularmente após 1993, a luta contra a corrupção tornou-se uma constante, na perspectiva de manter a estabilidade social e política.

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Ainda na visão de manter a estabilidade global como base para a estabili-dade social, a China realizou uma apreciação histórica do papel desempenhado pelo seu maior líder, Mao Zedong. Reafirmou que ele cometeu erros no final de sua vida, que resultaram na Revolução Cultural, mas que sua posição histórica e as linhas gerais de seu pensamento foram corretos e fundamentais, para a China sair do estado de vassalagem que se encontrava, e empreender um novo caminho de desenvolvimento. Nesse sentido, a China continua reafirmando sua adesão ao socialismo como sistema social, e considerando importante realizar de forma adequada a passagem das gerações mais velhas para as gerações mais novas.

Como decorrência, a China aboliu o sistema de liderança vitalícia, esta-belecendo a obrigatoriedade de mudança a cada dois mandatos, no máximo, e de aposentadoria dos quadros de liderança após 60-65 anos de idade. Hoje a maioria dos quadros dirigentes do Estado e das mais diversas instituições da sociedade chinesa é composta por pessoas de idade intermediária, e jovens.

Manejo entre reforma econômica e reforma política

Embora o foco principal da reforma esteja voltado para o sistema econô-mico, a reforma política está sendo conduzida paralelamente, inclusive como condição para o desenvolvimento suave das reformas econômicas e sociais. En-tretanto, como no próprio processo de reforma econômica, o método de refor-ma gradual deve ser observado como condição importante para a manutenção da estabilidade.

Na verdade, o início do processo de reformas teve início com uma im-portante reforma ideológica e política, que consistiu na chamada emancipação das mentes, tomando a prática como critério da verdade, e de redirecionar o foco da ação política da luta de classes para a construção econômica. Desse modo, entre 1978 e 1986, o foco da reforma política esteve voltado para a reforma dos sistemas de liderança partidária e estatal. A partir de 1986, a reforma da estru-tura política voltou-se para três grandes metas: consolidar o sistema socialista, desenvolver as forças produtivas socialistas e expandir a democracia socialista para desenvolver ao máximo a iniciativa e participação popular.

Isso significava que a reforma da estrutura política deveria voltar-se contra o burocratismo e a ineficiência, e estimular a iniciativa das unidades de base, como condição para avançar na expansão democrática. Nessa perspectiva foram realizadas reformas constitucionais e legais que reforçaram o poder da Assem-bléia Popular Nacional como o mais alto órgão de poder do Estado, abrindo um vasto campo para outras reformas legais indispensáveis. Entre 1980 e 2000, a APN discutiu e aprovou 339 leis, incluindo leis econômicas, leis civis, leis penais e leis de procedimento administrativo, construindo a base para o ordenamento da sociedade de acordo com as leis. Esse sistema legal foi complementado por

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mais de 6 mil decretos e regulamentos estipulados pelas assembléias populares locais, em conformidade com a Constituição.

Em termos gerais, a China tem seguido os seguintes princípios na reforma de sua estrutura política:

a) proceder de acordo com a realidade chinesa, ao invés de copiar os siste-mas políticos ocidentais e instaurar o sistema de eleições multipartidárias;

b) avançar a reforma da estrutura política em ordem e passo-a-passo;c) tomar como critério, para a adoção de um tipo ou outro de reforma polí-

tica, se tal reforma reforça a situação de estabilidade, se contribui para reforçar a unidade nacional e o padrão de vida do povo, e se intensifica o desenvolvimento das forças produtivas de forma sustentável.

Equilíbrio entre crescimento, reforma e estabilidade social A experiência da China na manutenção do equilíbrio entre crescimento,

reforma e estabilidade social tem tomado por base os seguintes parâmetros:a) as medidas de reforma são adotadas de acordo com a situação e os pos-

síveis impactos nos diferentes aspectos da sociedade. Se as condições não estão dadas, elas são criadas e aguarda-se o tempo certo para efetivá-las, de modo que avance suavemente, e com apoio social.

b) coloca-se ênfase em evitar campanhas globais, que afetem múltiplos in-teresses e criem reações em cadeia, mesmo que as reformas não sejam muito potentes.

c) cada reforma é acompanhada de mecanismos compensatórios em re-lação ao sistema de baixos salários e baixas rendas ainda prevalecente em áreas urbanas e rurais, de modo que tais salários, e os preços dos produtos dos agricul-tores, sejam elevados e acompanhem a evolução geral dos preços.

d) o processo geral de modernização empresarial, que produz desemprego, é seguido do estabelecimento de um novo sistema de seguridade social, que in-clui um sistema básico de seguro de vida para os trabalhadores das estatais, um sistema geral de seguro contra o desemprego, e um sistema de seguro de vida para a população rural, de modo que os segmentos de menor renda tenham garantias sociais bem definidas.

e) a extensão da abertura externa é acompanhada de modo adequado por salvaguardas relacionadas com a segurança da economia nacional, de modo que sejam fortalecidos seu desenvolvimento sustentado e sua competitividade glo-bal. Esta é a chave para potencializar as vantagens comparativas do país, partici-par da divisão internacional do trabalho e do comércio, e fazer uso dos mercados doméstico e internacional.

05/07/2005

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A China ainda ostenta o título de país mais populoso do mundo, com 1,3 bilhão de habitantes. Porém, embora tenha 9,6 milhões de km2, a população concentra-se nas zonas litorâneas e nas bacias dos grandes rios (Huanghe ou Amarelo, Chanjiang ou Yantse ou Grande, e Zhujiang ou Pérolas). Coinciden-temente, é aí que se encontram os 110 milhões de hectares de terras agricul-táveis. Uma superfície agricultável menor do que a da Índia (150 milhões de hectares) e do Brasil (360 milhões de hectares), constituindo apenas 7% do total mundial, para alimentar 22% da população global.

A província de Jiangsu (73 milhões de habitantes) e as municipalidades de Beijing, Tianjin e Shanghai (todas com mais de 10 milhões de habitantes) possuem uma densidade demográfica de dois mil habitantes por km2. A mu-nicipalidade de Chongqing e as províncias de Hebei, Shandong, Zhejiang, Guangdong, Hubei, Henan, Anhui e Hunan, possuem densidade de até 900 habitantes por km2.

Por outro lado, Heilonjiang, Mongólia Interior, Ninxia, Gansu, Qinghai, Xinjiang e Tibet, que ocupam mais de 60% do território, possuem 22% da po-pulação total e uma densidade inferior a 100 habitantes por km2. Como é nessas regiões, topograficamente difíceis, que se encontram as principais reservas mine-rais e energéticas, há desequilíbrio entre as potencialidades de oferta do oeste e norte, e as demandas de energia e matérias primas do leste industrial.

Em termos de desenvolvimento econômico, a China tinha um Produto Interno Bruto (PIB) de 45 bilhões de dólares, em 1978. Mas, em 2004, chegou a 1,6 trilhão de dólares, pela paridade cambial. Segundo cálculos do The Econo-mist Intelligence Unit, pela paridade de poder de compra, esse PIB já é superior a 7 trilhões de dólares.

A dialética chinesa

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Tal salto é resultado das reformas introduzidas pelo Partido Comunista, a partir de 1978, na agricultura, nas relações econômicas com o exterior, e nas zonas urbanas da China.

Reformas Agrícolas

As reformas na agricultura chinesa tiveram os contratos de responsabilida-de como base. Substituíram o sistema dos grupos e brigadas de produção e as comunas populares, aparentemente mais avançadas, e tornaram predominantes as unidades familiares rurais, com mais de 350 milhões de camponeses.

Pelos contratos de responsabilidade, as unidades familiares ficaram livres para organizar sua atividade produtiva. Por outro lado, obrigaram-se a vender ao Estado, através das cooperativas, uma parte da produção, por preço pré-acer-tado. O que produzem a mais é vendido no mercado, ou ao próprio Estado, por preços de mercado. O Estado, por seu turno, obriga-se a fornecer os insumos necessários à produção agrícola.

Esse retorno à agricultura familiar, em novas bases, permitiu à China elevar, nos quatro anos seguintes, sua produção de grãos de 340 para 407 milhões de toneladas, mesmo sem aumento da superfície plantada. Depois de um pico de 502 milhões de toneladas, em 1998, a produção de cereais tem se mantido entre 430 e 470 milhões de toneladas, nos anos recentes, ao mesmo tempo em que a produção de oleaginosas, algodão, cana-de-açúcar, beterraba, carnes, leite e produtos aquáticos cresceu substancialmente.

Por outro lado, seguindo a tendência mundial dos países que se industriali-zam, a agricultura chinesa perdeu importância na formação do PIB. Segundo o Banco Mundial, caiu de 33%, em 1982, para 15% do PIB, em 2002, enquanto a indústria passou a 51,7%, e os serviços a 33,7%. Seu ritmo de crescimento tem se mantido entre 3% e 5%, bem inferior ao ritmo anual de mais de 9% da indústria e de 8% dos serviços. Caiu também a participação relativa dos traba-lhadores na agricultura. Em 1978, eles representavam 70,5% da PEA total, mas caíram para menos de 50% em 2004.

Para fazer frente a esses movimentos contraditórios, o governo chinês tem estimulado a industrialização rural, através das empresas de cantões e povoados, e a multiplicação de pequenas e médias empresas privadas nas zonas urbanas. Em 2004, as indústrias rurais de confecções, motores, equipamentos, constru-ção civil, agroindústrias e outras, somavam mais de 22 milhões de unidades, com cerca de 140 milhões de trabalhadores, contribuindo para evitar êxodos massivos e urbanizar de forma crescente as zonas rurais chinesas. E, nas zonas urbanas, as fábricas privadas de pequeno e médio porte são responsáveis por mais de 50% dos empregos totais.

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Reformas Industriais

Em 1978, a China possuía indústrias pesadas, de bens intermediários e de consumo de massas relativamente desenvolvidas. Sua produção, porém, mal dava para atender a demanda interna. Muitos produtos eram racionados. E, já em meio à nova revolução tecnológica mundial, ramos como a eletrônica, informática, telecomunicações e novos materiais estavam ausentes das cadeias produtivas chinesas.

As questões chaves da China, desde 1950, têm consistido em garantir ali-mentos para sua enorme população e desenvolver as forças produtivas indus-triais, científicas e tecnológicas, de modo a criar as condições materiais para elevar o padrão de vida e construir uma moderna civilização espiritual. A estra-tégia escolhida, a partir de 1978, para resolver tais questões, tem consistido em combinar o planejamento macroeconômico com os mecanismos de mercado, atrair capitais externos e, principalmente, novas e altas tecnologias para adensar as cadeias produtivas, e manter as empresas estatais, assim como o câmbio e os juros, como instrumentos de política econômica.

Seguindo essa estratégia, a partir de 1979 a China construiu 5 Zonas Eco-nômicas Especiais (ZEE) e 7 Zonas de Desenvolvimento Econômico e Tecnoló-gico (ZDET), e abriu 14 portos. Nessas áreas geográficas, permitiu investimen-tos estrangeiros, dentro de certas condições. As empresas estrangeiras precisavam associar-se a empresas chinesas, transferir novas ou altas tecnologias, e vender sua produção no mercado externo. Em outras palavras, a China agregava pou-panças externas a suas taxas de investimentos e, através da sócia chinesa, interna-lizava tecnologias, aumentando a musculatura técnica das empresas nacionais, e ingressava no mercado internacional junto com a empresa estrangeira.

Em 1984, já com a demanda expressiva de um novo mercado rural e de novas tecnologias internalizadas, tiveram início as reformas urbanas. Sua meta básica era modernizar tanto os diferentes setores da economia, quanto os diver-sos aspectos sociais e políticos da sociedade. Com base num trabalho preliminar de revisão legislativa, teve início o desmembramento dos monopólios, as estatais ganharam autonomia para atuar no mercado, e foram abertas as portas para a atuação de diferentes formas de propriedade, inclusive privadas estrangeiras, ao lado das empresas estatais e coletivas.

Em termos de resultados concretos, entre 1984 e 2004, a produção chinesa anual de aço passou de 31 para 272 milhões de toneladas; a de cimento saltou de 65 para mais de 900 milhões de toneladas; a de automóveis passou de 149 mil para mais de 4 milhões de unidades; a de TV a cores saltou de 3,8 milhões para 63 milhões de unidades; a de açúcar passou de 2 para 10 milhões de tone-ladas. A produção de telefones celulares, que era zero em 1978, superou a marca

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de 230 milhões de aparelhos. E a de microcomputadores, também zero em 1978, já superou 10 milhões de unidades por ano.

Em grande medida, essa explosão produtiva se deve ao dinamismo induzi-do pelas zonas econômicas especiais e zonas de desenvolvimento, localizadas nas regiões litorâneas, que funcionam como locomotivas da econômica do país. Ao todo, até o ano 2004, tinham sido estabelecidas 15 zonas alfandegadas, 49 zonas de desenvolvimento econômico e tecnológico e 53 zonas de desenvolvimento de novas e altas tecnologias, nas quais foram utilizados cerca de 560 bilhões de dólares em investimentos diretos estrangeiros.

A China tornou-se, após os anos 1980, uma grande receptora de capi-tais estrangeiros, seja na forma de empréstimos externos (governamentais, de instituições financeiras internacionais, de bancos privados, créditos para exportações e lançamento de títulos no mercado externo), de investimentos diretos (joint ventures, cooperativas, totalmente estrangeiros ou projetos coo-perativos de desenvolvimento), ou na forma de outros tipos (leasing interna-cional, comércio compensatório, comércio de processamento e montagem, e aquisição de títulos externos).

Em 2002, ela tornou-se o principal destino dos investimentos estrangeiros, superando os Estados Unidos, ao receber 55 bilhões de dólares. Em 2003 e 2004, esse montante subiu para mais de 63 bilhões de dólares ao ano. Ao todo, entre 1979 e 2004, a China utilizou 743 bilhões de dólares em capitais estran-geiros, de 170 países, resultando na instalação de 509 mil empresas estrangeiras em território chinês.

Apesar do grande volume de investimentos diretos e das empresas estran-geiras instaladas, eles representam menos de 15% dos investimentos diretos to-tais e menos de 5% das empresas urbanas da China. As estatais reduziram sua participação no número das empresas do país, mas geram 42,4% do valor agre-gado total, representam 74% das 500 maiores empresas da China. Além disso, 14 delas já estão as 500 maiores mundiais.

Marcha para o oeste e norte

O sucesso das zonas litorâneas teve um duplo efeito. Por um lado, ampliou a disparidade regional entre o leste e o oeste do país. Por outro, demonstrou que a estratégia adotada tinha um alto poder de desenvolvimento. Com base nisso, o governo chinês decidiu, a partir de 2000, transferir o eixo do desenvolvimento para as regiões centrais e norocidentais do país.

Proporcionando acesso mais amplo a políticas preferências de investimen-tos, taxas, exportações, importações, apoio científico e educacional e recursos humanos, intensificou a atração de capitais domésticos e estrangeiros para

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aquelas regiões. Hoje existem 60 projetos chaves sendo implantados nessas re-giões, com um volume de investimentos de 100 bilhões de dólares. Um deles, o cinturão de novas e altas tecnologias de Shaanxi, chamado de Vale do Silício do Ocidente da China, abrange a produção de informação eletrônica, software, biomedicina, aeronáutica, astronáutica e novos materiais.

As províncias de Gansu, Guizhou, Qinghai, Shaanxi, Shanxi, Sichuan e Yunnan, e as regiões autônomas de Ningxia, Tibet, Mongólia Interior, Guangxi Xinjiang, assim como a municipalidade de Chongqing, apresentam agora a mes-ma atividade febril de construções e produção que caracterizou as zonas litorâneas nestes últimos 25 anos. O mesmo vem ocorrendo na mais antiga base industrial da China, a Mandchuria ou região nordeste, onde hoje estão localizadas as pro-víncias de Liaoning, Jilin e Heilongjiang. Com isso, está em curso a redução das diferenças regionais e a busca do equilíbrio entre o leste e o oeste da China.

Comércio Exterior

O comércio internacional da China saltou de 14,8 bilhões de dólares, em 1977, para 57,6 bilhões de dólares em 1984, 851 bilhões de dólares em 2003, e 1,16 trilhão de dólares, em 2004. A exportação de produtos primários, como agrícolas e minerais, baixou de 53,5%, em 1958, para 11,2% em 1998, enquan-to a dos produtos industriais subiu de 46,5% para 88,8%. Entre os produtos industriais exportados destacam-se os elétricos e os mecânicos, com incidência cada vez maior de eletroeletrônicos.

Desde 1990, as exportações chinesas superaram as importações, alcançando superávits anuais que variam entre 20 e 40 bilhões de dólares. Em 2002, as ex-portações atingiram 320 bilhões de dólares, contra 300 bilhões de importações. Em 2004, as exportações totalizaram 526 bilhões de dólares, e as importações 490 bilhões de dólares. Assim, apesar do mito de que a China apenas exporta, evitando ao máximo importar, é possível verificar que a curva de crescimento das importações chinesas tem acompanhado a curva das exportações. A estru-tura das importações chinesas, por outro lado, continua tendo uma grande par-ticipação de bens de capitais e tecnologias, mas a presença das matérias primas minerais, petróleo e alimentos vem crescendo nos anos mais recentes.

Em 1978, a China situava-se em 27º lugar no comércio mundial. Passou para o 15º em 1989, 10º em 1997, 6º em 2001 e 3º lugar em 2004. Os dez maiores parceiros comerciais da China são, em ordem de importância, a União Européia, Estados Unidos, Japão, Região Administrativa Especial de Hong Kong, Associação dos Países do Sudeste da Ásia (ASEAN), Coréia, Província de Taiwan, Austrália, Rússia e Canadá. O comércio entre o Brasil e a China representa apenas 1% do comércio externo chinês.

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A taxa média das tarifas de importação da China era de 43,2%. Acom-panhando sua maior presença no mercado mundial e as negociações com a OMC, suas tarifas de importação para 4.971 produtos foram reduzidas de 35% para 23%, em abril de 1996, de 23% para 17%, em outubro de 1997, e para 15,3%, em janeiro de 2001. No ano de acesso da China à OMC, em 2002, essas tarifas haviam baixado para 12%, em relação a 4.315 mercado-rias, cerca de 50% do total de suas importações. Em 2004 elas atingiram o patamar de 10,1%, sendo de 9,3% para produtos industrializados, 15,6% para produtos agrícolas, e zero para os produtos de tecnologia de informação incluídos no Acordo sobre IT, da OMC.

Ao mesmo tempo, a China cancelou uma série de barreiras não tarifárias, introduziu novas leis e regulamentos sobre a abertura do comércio de serviços, fi-nanciamentos externos e direitos de propriedade intelectual, introduziu emendas nas leis sobre investimentos estrangeiros diretos e revisou o Guia de Investimen-tos Estrangeiros na Indústria. Ao todo, o governo chinês revisou cerca de 2.300 leis e regulamentos referentes à cooperação econômica e ao comércio externo.

Muitos consideraram que a China, ao dar esses passos, tiraria as condições de suas empresas enfrentarem a concorrência das corporações estrangeiras nos mercados doméstico e internacional. No entanto, embora alguns setores tenham se ressentido, o que se assistiu foi um salto na participação da China no mercado mundial, entre 2002 e 2004. E o caso dos têxteis, cuja política mundial de cotas foi banida no final de 2004, é significativo da competitividade chinesa.

Desigualdades sociais

Em 1978, a China era tida como país igualitário, de pobreza digna. En-tão com 1,1 bilhão de pessoas, 700 milhões encontravam-se acima da linha da pobreza e 400 milhões abaixo. Embora isso representasse avanço marcante em relação ao período histórico anterior a 1949, com garantia de moradia, alimen-tação, educação e saúde básicas a toda a população, era uma situação insusten-tável no longo prazo.

Os diversos movimentos realizados entre 1953 e 1976, visando desenvol-ver a China econômica e socialmente, em especial a Revolução Cultural, não conseguiram realizar o desenvolvimento das forças produtivas do país. Os três bens indicativos da riqueza dos que se encontravam acima da linha da pobreza – a bicicleta, a máquina de costura e o rádio – assim como os cartões de ra-cionamento, eram sinais de que a China era uma sociedade de escassez, com igualdade social por baixo.

As reformas iniciadas em 1980 romperam essa visão de igualdade por baixo. Adotaram a estratégia de desenvolvimento das forças produtivas, pela ação de

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diferentes tipos de propriedade ou de relações de produção, com a consciência de que isso gera desigualdades. Pressupõem, porém, que a ação do Estado pode conter as desigualdades dentro de certos limites, utilizando-se de mecanismos de desenvolvimento da infra-estrutura física e educacional e de redistribuição de renda, e realizar um “enriquecimento social em ondas”.

Nos primeiros dez anos de reformas, esse processo reduziu para 250 mi-lhões a população vivendo abaixo da linha da pobreza. E, entre 1990 e 2004, segundo dados da Unesco, esse número foi reduzido para 26 milhões, numa população de 1,3 bilhão de pessoas. Nesse mesmo ano, o número de pobres ainda era de 500 milhões. Mas havia surgido uma camada média inferior de 500 milhões, e uma camada média alta de 250 a 300 milhões de pessoas.

Em 1979 a poupança popular em bancos era inferior a 30 bilhões de dóla-res, subindo para 1,3 trilhão de dólares em 2004. Com um crescimento médio na renda de 5% a 6% ao ano, o PIB per capita chinês alcançou, em 2002, pela paridade cambial, 1 mil dólares. O que significava, pela paridade de poder de compra, um patamar superior a 7 mil dólares.

O coeficiente de Engel, (proporção entre os gastos com alimentos e os gas-tos totais), por sua vez, baixou de 57,5%, em 1978, para 37,7%, em 2004. Nas áreas rurais, no mesmo período, esse coeficiente baixou de 67,7% para 47,2%. Isso indica que os gastos com alimentação são proporcionalmente menores, e que os três bens de riqueza, anteriores a 1978, passaram a ser substituídos por moradias, aparelhos eletrônicos, carros, cultura, educação, lazer, entretenimento e turismo.

Não por acaso, em 2004, mais de 50% das famílias já eram proprietárias de suas moradias. O número de telefones fixos aumentou para mais de 230 mi-lhões, o de telefones celulares para mais de 220 milhões, e o de computadores pessoais e de internautas chegou a 100 milhões, com um crescimento anual de 10%. Mais de 250 milhões de chineses possuíam os níveis primário e secun-dário completos, 55 milhões são cientistas e técnicos, 700 mil estão cursando diferentes níveis educacionais em 103 países do mundo, 900 milhões fizeram turismo doméstico, e 25 milhões fizeram turismo internacional.

Reformas na Política Externa

A grande virada na política externa da China ocorreu no início dos anos 1970, em plena vigência da Revolução Cultural, quando estabeleceu relações diplomáticas com os Estados Unidos e com a maioria dos países que até então participavam do bloqueio econômico, político e militar contra ela. A República Popular da China foi reconhecida como única China e retomou seu lugar na ONU e no Conselho de Segurança.

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Essa virada ocorreu sem que houvesse concessões quanto aos cinco prin-cípios – respeito à integridade territorial e soberania, não agressão, não in-terferência nos assuntos internos, igualdade e benefício mútuo, e coexistên-cia pacífica – que guiam sua política internacional desde 1954. A China não admitia, como continua não admitindo, manter relações diplomáticas com qualquer nação que considere Taiwan como país, e não como província chi-nesa. O reconhecimento de uma só China, e do governo popular como seu representante, relacionado ao princípio de integridade territorial e soberania, é inegociável na política externa chinesa.

Por outro lado, a questão da paz tornou-se crucial para a China. O governo chinês a considera fundamental para seus planos de desenvolvimento, e sua diplomacia tem sido ativa na resolução dos problemas e conflitos por meio do diálogo e negociações. Em consonância com isso, em 1984, a China adotou a política de “um país, dois sistemas”, tendo em vista a reintegração de Hong Kong, Macau e Taiwan à soberania chinesa.

A China admite que esses territórios mantenham o sistema capitalista por mais 50 anos, e sejam administrados por seus próprios habitantes. Cabe ao governo central apenas tratar da política externa e da defesa. Hong Kong e Macau retornaram à China, o primeiro em 1997, e o segundo em 1999, como regiões administrativas especiais (RAE). As negociações com Taiwan, apesar da interferência dos Estados Unidos e do Japão, em apoio a forças separatistas internas, têm avançado. Em 2005, os presidentes dos dois principais partidos de Taiwan visitaram o continente e mantiveram conversações com o PC e o governo central. Além disso, a China tem incentivado a inauguração da pri-meira linha aérea, ligando Taipé a Fujian e a Beijing, e estimulado o turismo entre os dois lados do estreito. E Taiwan está entre os dez principais parceiros comerciais do continente.

A China também resolveu, através de negociações, problemas históricos de fronteiras com a Rússia, Casaquistão, Quirguistão, Usbequistão, Tadjiquistão, Paquistão, Índia e Vietnã, alguns dos quais haviam resultado em choques mi-litares. Formou com a Rússia, Casaquistão, Quirguistão, Usbequistão e Tadji-quistão a Organização de Cooperação de Shanghai, para implementar e reforçar a cooperação na área da segurança internacional. Com a Índia e o Paquistão, mantém congelados os problemas resultantes da linha Mac Mahon. E, com o Vietnã, está solucionando, através de diálogos e acordos para a exploração conjunta dos recursos petrolíferos e minerais, as disputas em torno das ilhas Spratley, no Mar Meridional da China.

Mesmo com os Estados Unidos e com o Japão, que continuam estimu-lando a venda de armas a Taiwan, e incentivando movimentos separatistas no Tibet, e com os quais também tem divergências em relação ao Iraque, papel da

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ONU, Irã e interpretação histórica das atrocidades na Segunda Guerra Mun-dial, a China vem mantendo uma ação diplomática positiva, no sentido de re-duzir as tensões e evitar conflitos.

Reformas Políticas

É recorrente a idéia da China como ditadura. Alguns a consideram uma ditadura sanguinária, em virtude dos acontecimentos de Tien’anmen (Praça da Paz Celestial), em 1989. E há um certo consenso de que as reformas econômicas não estariam sendo acompanhadas de reformas políticas, especialmente aquelas que visem suplantar o poder do Partido Comunista.

No entanto, as reformas econômicas foram precedidas de algumas impor-tantes reformas políticas. Entre 1978 e 1980, o PC da China baniu a vitali-ciedade dos dirigentes e instituiu sua aposentadoria obrigatória, introduziu a rotatividade nos órgãos do PC e do poder a cada dois mandatos, assim como a eleição secreta para tais órgãos, e instituiu medidas para separar o Estado do partido e banir quaisquer privilégios dos membros do PC em relação aos demais cidadãos.

Nos 25 anos posteriores, tem havido experimentações variadas para a im-plementação do sistema eleitoral direto para a escolha dos dirigentes dos comi-tês populares de povoados, vilas e cantões, e para a escolha dos deputados às as-sembléias populares de cantões, cidades prefeituras e distritos. Tem havido uma constante discussão para melhorar os mecanismos democráticos internos no PC e para elevar a participação das assembléias populares na elaboração das leis e na fiscalização dos atos do poder executivo. E o Conselho Consultivo Político do Povo Chinês, que reúne os diferentes partidos políticos e personalidades de dife-rentes campos da sociedade chinesa, voltou a ter papel importante na elaboração dos planos estratégicos do país, e na fiscalização de sua implementação.

Além disso, tem havido um trabalho árduo para construir um arcabouço jurídico e uma legislação avançada nos campos econômico, social, cultural, am-biental e político. Como na maioria dos países do mundo, também na China ocorrem discrepâncias entre os direitos em lei e sua aplicação prática. Mas a au-tonomia conquistada pelo judiciário tornou-o um instrumento importante para a construção e observância da legalidade, de forma a contemplar os direitos in-dividuais e sociais, reduzir as injustiças e manter a estabilidade social e política.

Excetuando-se os períodos conturbados da revolução cultural, entre 1966 e 1976, e do descontrole inflacionário e de leniência com a corrupção, que levaram às manifestações estudantis e aos choques de Tien’anmen, em 1989, a China tem realizado as reformas sem a adoção de choques bruscos e com experi-mentações e implementações passo-a-passo, que permitam recuos toda vez que

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houver algum prejuízo à população. As liberdades civis foram consideravelmen-te ampliadas e a China tem discutido abertamente seus conceitos e suas práticas de direitos humanos.

Mas supor que a China adotará o sistema político liberal do Ocidente, e que o partido comunista pode ser banido do poder da mesma forma que acon-teceu nos países do Leste Europeu, não condiz com a realidade chinesa. O PC da China não conquistou o poder através de golpe de estado ou manobra pala-ciana de uma minoria. Nem através do suporte de tropas estrangeiras. Goste-se ou não, sua legitimidade política e seu poder residem no fato histórico de que ele conquistou o apoio da maioria do povo chinês num processo de 28 anos de guerras civis e de libertação. E por haver colocado a China de pé, após mais de cem anos de humilhações colonialistas.

Não há dúvidas de que os comunistas enfrentaram dificuldades e comete-ram erros em suas tentativas de tirar a China do subdesenvolvimento e colocá-la na trilha do desenvolvimento. Porém, também não há dúvidas de que souberam tirar lições de seus erros e têm sido os grandes indutores de todas as mudanças atuais. Deng Xiaoping, o principal idealizador das reformas, afirmou que estas consistiam numa grande e perigosa retirada estratégica, uma nova Grande Mar-cha. Da mesma forma que a primeira, realizada em 1936, eles pretendem trans-formar a derrota de tentar uma socialização rápida numa vitória de construção socialista mais vagarosa e complexa.

Problemas

A retirada estratégica e a conceituação de que a China se encontra na fase preliminar de construção do socialismo resultam da constatação de que, ape-sar dos avanços no desenvolvimento, os problemas que ela enfrenta ainda são inúmeros e, grande parte deles, pré-capitalistas. Alguns são herdados de uma história de 5 mil anos, que atravessou a dispersão escravista e feudal, a domina-ção e as agressões militares imperialistas, e o longo período de guerras civis e de libertação. Outros são decorrentes do presente surto de desenvolvimento, ou da combinação destes com os velhos.

A poluição do meio ambiente resulta de problemas antigos, como o des-florestamento e a ausência de saneamento básico, e de novos, como os gases poluentes das usinas térmicas a carvão. A escassez no suprimento de energia elé-trica vem do descompasso entre o rápido crescimento do uso de energia e a mais lenta produção de suas fontes de energia e implantação de usinas geradoras. A necessidade de diversificar a produção agrícola e importar alimentos cresce não apenas com o aumento da população, mas também com o aumento da renda dessa população.

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As disparidades regionais e sociais são fruto de heranças históricas, de con-dições naturais desfavoráveis e de estratégias diferenciadas de desenvolvimento. A disparidade entre a renda urbana e rural aumentou com a modernização. O desemprego é herança das condições passadas, mas também do atual aumento da produtividade. A incapacidade do Estado em atender à demanda por educa-ção, saúde e aposentadorias resulta tanto do atraso histórico, quanto do próprio estímulo das reformas e da melhoria do padrão de vida.

A China enfrenta ainda os problemas relacionados com o desequilíbrio populacional, resultante da política de filho único, a necessidade de reduzir seu ritmo de crescimento, causador de tensões infra-estruturais e inflacioná-rias, as pressões para valorizar sua moeda e abrir mais rapidamente seu sistema financeiro, as possíveis repercussões de uma crise recessiva dos Estados Uni-dos, e por aí afora.

Se fizermos um inventário dos problemas enfrentados pela China, deixan-do de lado suas tendências principais e as medidas em curso para solucioná-los, podemos ter a impressão que a China avança para um colapso. Foi o que fize-ram muitos analistas, ao longo dos últimos 50 anos. Para seu espanto, a China vem resolvendo a maioria desses problemas, de acordo com as suas condições e peculiaridades. Ela determina seu ritmo. Às vezes, recua fortemente, parado-xalmente avançando no curso da própria retirada, criando problemas novos, e gerando uma espiral de soluções e problemas. Essa é a dialética chinesa.

20/09/2005

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Razões do crescimento

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Qual o interesse, para os brasileiros, em saber as razões do crescimento chinês? Já vimos que as condições chinesas são muito diferentes das nossas, têm suas próprias peculiaridades e, portanto, não podem ser copiadas.

No entanto, o crescimento chinês, como o de qualquer outro país, pode comportar algum tipo de ensinamento útil. Historicamente, a China tem se aproveitado das lições do desenvolvimento dos países mais avançados e adapta-do tais lições a suas próprias condições, conseguindo bons resultados numa série de terrenos, desde indústria espacial até gestão ou administração científica.

Além disso, se queremos negociar com a China, precisamos saber quais as tendências principais de seu crescimento e aproveitá-las convenientemente, seja para descobrir nichos de mercado para os produtos brasileiros, seja para impor-tar equipamentos, máquinas e outras mercadorias de boa qualidade, em termos mais competitivos. Ou, ainda, para investir na China e/ou atrair investimentos chineses para o Brasil.

Em busca do crescimento

Entre 1950 e 1978, a República Popular da China, proclamada a 1 de outubro de 1949, transitou por várias experiências que lhe permitissem crescer e, ao mesmo tempo, realizar uma redistribuição menos desigual da riqueza. Isso era muito complicado, não só porque a China tivera sua infra-estrutura e sua base econômicas destruídas durante a guerra, como porque uma e outra eram muito fracas, pouco desenvolvidas e desequilibradas.

Afora algumas ferrovias instaladas por capitais estrangeiros para facilitar as exportações de matérias primas agrícolas e minerais, e algumas fábricas de

Razões do crescimento

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tecidos e de alguns outros produtos de consumo da população, a China desco-nhecia outros tipos de indústrias. Sua siderurgia era insignificante e concentrada na Manchúria. Não possuía qualquer indústria de produção de bens de capital, química, de equipamentos de transportes e de geração de energia. Ou seja, do ponto de vista industrial, era extremamente atrasada.

Os primeiros passos da República Popular, entre 1950 e 1953, consisti-ram em recuperar a economia destruída e colocá-la no patamar de antes da guerra. A partir de 1953, com o primeiro plano qüinqüenal, a China ingressou numa fase de industrialização rápida, instalando grandes complexos industriais de siderurgia, metalurgia, construção de veículos motorizados para ferrovias e rodovias, máquinas operatrizes, tratores e produtos químicos. Sob o bloqueio econômico das principais potências industriais e com pouco crédito externo, essa industrialização só poderia se dar financiada com parte dos excedentes ge-rados pelo trabalho na agricultura e na própria indústria, o que tinha limites sociais e políticos.

Esses limites apareceram fortemente nas insatisfações sociais e críticas sur-gidas em 1957, que conduziram a ajustamentos nos planos de desenvolvimen-to. Foram introduzidas medidas para equilibrar as taxas de crescimento entre a agricultura e a indústria e, dentro desta, entre a indústria pesada e a indústria leve ou de bens de consumo de massa. As cargas sobre os camponeses e os operários também foram reduzidas. Entretanto, continuavam pendentes várias discrepâncias sobre os caminhos mais adequados para um crescimento susten-tado de largo prazo.

A rigor, foram se formando duas tendências ou correntes principais. A pri-meira, tendo à frente o premier Zhu Enlai, que defendia o ponto de vista de que era preciso aproveitar todo o potencial das diversas formas de propriedade possíveis, tanto privadas, quanto públicas ou sociais, para desenvolver a capa-cidade produtiva do país e modernizá-lo. A segunda, tendo à frente o próprio presidente Mao Zedong, que defendia a idéia de que as formas privadas de propriedade eram um entrave ao desenvolvimento da capacidade produtiva do país, devendo ser substituídas pelas formas públicas ou sociais.

Durante os vinte anos que vão de 1958 a 1976, a corrente representada por Mao Zedong predominou, embora o premier Zhu Enlai tenha continu-ado à frente do governo até falecer, em janeiro de 1976. Pode-se dizer que as tentativas de implantar as formas sociais de propriedade e, através delas, elevar a capacidade produtiva do país, foram levadas a seu extremo. Nesse processo, a China sofreu convulsões sociais e políticas de diferentes tipos, como o Grande Salto Adiante, entre 1958 e 1960, e a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, embora surpreendentemente tenha conservado sua uni-dade nacional básica.

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Razões do Crescimento 171 |

A incapacidade das formas sociais de propriedade desenvolverem sozinhas a capacidade produtiva do país, no estágio ainda atrasado em que se encontrava, tornou-se paulatinamente patente, Assim, quando o presidente Mao morreu, em dezembro de 1976, a corrente que ainda defendia aquelas idéias já não tinha qualquer apoio popular.

Nessas condições, estava aberto o caminho para seguir o projeto das quatro modernizações, inicialmente preconizado pelo premier Zhu Enlai. Entre 1977 e 1978, um amplo debate na sociedade chinesa sedimentou as idéias então de-senvolvidas por Deng Xiaoping, a partir das experiências das próprias tentativas anteriores, e transformou-as num grande e prolongado programa de reformas.

29/07/2007

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Razões do Crescimento 173 |

A cada sessão do Comitê Central do PC, ou da Assembléia Popular Na-cional-APN da China, certos comentaristas parecem descobrir o ovo, mesmo às vezes confundindo o congresso do PC com o Congresso ou Assembléia Popular Nacional. O mesmo está ocorrendo agora, com a sessão da APN, que está dis-cutindo treze emendas à Constituição chinesa.

O que para alguns parece uma enorme novidade, não passa do processo continuado de reformas que os chineses vêm colocando em prática desde 1980. Só para refrescar a memória, vale a pena rememorar as decisões de setembro de 1998. Nessa ocasião, o governo e os congressistas chineses estipularam a meta de crescer seu PIB, no máximo, em 8% a.a., e direcionar seus investimentos para potencializar a qualidade do sistema econômico.

Já naquela ocasião, suas construções deveriam concentrar-se na infra-es-trutura de transportes, energia, telecomunicações, proteção ambiental, obras hidráulicas e instalações agrícolas e armazenamento. As obras duplicadas, em virtude de facilidades de crédito e verbas para investimentos, deveriam ser eliminadas, em especial aquelas de baixo nível e baixa eficiência econômica, como a importação de linhas de produção de TVs a cor, a construção de plantas de laminação de aço, e a construção de projetos de “lixo moderno” de baixa tecnologia.

A China iniciou, então, uma mudança substancial em sua política de investimentos. O Estado deveria deixar de ser a fonte unitária de investimen-tos, sendo substituído, progressivamente, por uma série de canais que teriam que incluir as empresas de capital estrangeiro e chinês, os bancos, e as verbas estatais. A forma de inversão deixaria de ser o financiamento exclusivamente estatal, passando a englobar investimentos conjuntos do governo central e

Atualizando a memória

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174 China - Desfazendo Mitos|

governos locais, dos governos e empresas, das cooperativas e mistos. Desse modo, os chineses pretendiam avançar ainda mais na transformação do mer-cado como elemento básico e dirigente na alocação dos recursos, e na defini-ção da viabilidade econômica.

Nessa perspectiva, as empresas tinham que assumir cada vez mais o papel de principal fonte de investimentos, com o Estado realizando o controle e a regulação indiretos sobre a estrutura dos investimentos, e garantindo que os serviços e mercados financeiros direcionados para os investimentos compitam em pé de igualdade.

O governo mantém o controle macroeconômico, fixando as políticas e me-tas gerais e regulando a economia através das políticas financeiras e monetárias, administrando os investimentos por meio da avaliação dos resultados econômi-cos e benefícios sociais de cada projeto e de controles indiretos sobre os fundos de investimentos, coordenando a implementação das políticas industriais com a arrecadação tributária, o crédito e a evolução industrial e comercial, de modo a estabelecer critérios mais exigentes para as atividades cujos mercados estejam saturados ou próximos da saturação.

Para realizar essas funções, o governo deve publicar informações regula-res confiáveis sobre os investimentos e estabelecer agências de consultoria para orientar os investimentos das empresas, para tanto criando uma nova lista de categorias para os projetos de construção. Os competitivos devem possuir res-ponsabilidade legal e sistema de capitalização próprios; os das indústrias básicas monopolistas devem ser avaliados por especialistas; e os projetos chaves estatais, provinciais e municipais, devem ser licitados publicamente.

Para o desenvolvimento de novas atividades industriais, o governo esta-beleceu, então, uma série de políticas. Os setores monopolizados passaram a ter permissão para realizar investimentos mistos e cooperativos com capitais estrangeiros; os setores débeis das indústrias básicas e da infra-estrutura urbana tiveram ampliadas as responsabilidades e o poder de decisão nas unidades encarregadas do exame e aprovação dos projetos, podendo diversificar as fontes de capitais (privados, coletivos e externos), e abrir novos canais de financiamento pelo governo.

Além disso, foi fixado em lei o conceito de que “os que tomam a decisão assumem a responsabilidade por ela”, de modo a intensificar a responsabilidade das entidades com poder de decisão e evitar investimentos duplicados. Os pro-jetos devem ser examinados e aprovados pelo governo, através de consultorias qualificadas, enquanto os estudos para a concessão de créditos pelos bancos não podem ser substituídos por avaliações governamentais.

14/03/2004

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Razões do Crescimento 175 |

A Assembléia Nacional Popular da China aprovou o 11º Plano Qüinqüe-nal, para o período 2006-2010. Seu principal objetivo: garantir que a China dobre, até 2010, seu PIB em relação a 2000. Ou seja, levá-la a ser a segunda ou terceira economia mundial, participando com cerca de 10% ou mais do comércio mundial.

Diante disso, qualquer empresa brasileira com um mínimo de planejamen-to estratégico terá que considerar, em seus cenários, a presença da China, seja como concorrente, seja como parceira, seja ainda como um player que combina ambos os aspectos. É imprescindível, então, ter em vista a situação da economia chinesa e as linhas gerais do novo plano.

O principal problema atual da economia chinesa reside na superprodução de sua indústria, em contraste com uma demanda interna insuficiente. Os in-vestimentos acima de 40% do PIB ao ano, em capitais e tecnologias, têm im-primido um ritmo exagerado ao crescimento (9% a 10% ao ano). A demanda, por seu turno, tem crescido mais lentamente, em virtude da dificuldade em gerar milhões de novos empregos, e das disparidades de renda entre agricultura e indústria, populações rurais e urbanas, e diferentes regiões (em especial entre o leste e o oeste do país).

Por isso, o novo plano pretende conter os investimentos e aumentar a de-manda. Trata-se, portanto, de um plano de ajustamento, de modo a preparar o país para outro crescimento rápido, a partir de 2010. Os investimentos serão reduzidos para 30% a 35% do PIB e, ao invés de serem direcionados para a implantação de novas indústrias, serão concentrados na infra-estrutura rural e urbana. Devem criar uma nova situação no campo, reduzir as disparidades re-gionais, impor um salto na conservação e recuperação do meio ambiente, elevar

Planejamento estratégico

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176 China - Desfazendo Mitos|

a um novo nível a estrutura científica e educacional, desenvolver os recursos humanos, e reformar as estruturas industriais obsoletas.

Nas áreas rurais, um dos principais focos para a elevação da demanda, os investimentos darão condições para desenvolver os recursos humanos, sendo orientados para saneamento, moradia, educação e saúde, assim como para a in-fra-estrutura científica e tecnológica da agricultura e da pecuária. Tudo de modo a elevar a produtividade da terra, garantindo-a para o trabalho das famílias, im-plantar em bases sólidas e avançadas a pecuária leiteira e de corte, e intensificar os programas de reflorestamento e conservação das águas.

Quanto à demanda geral, o plano procura elevá-la através do corte dos impostos e taxas (como já vem sendo realizado na agricultura desde 2005) e da revitalização do consumo. Esta revitalização abrange tanto o aumento do em-prego urbano e rural e a elevação da renda individual e familiar, quanto a diver-sificação dos produtos, de modo a atender aos diferentes interesses de consumo dos diversos segmentos sociais, e proteger os direitos dos consumidores.

Essas diretivas apresentam uma situação mais favorável para investimentos em construção civil pesada, meios de transporte, combustíveis renováveis, mo-tores limpos, técnicas de economia de energia, silvicultura, pecuária de leite e corte, técnicas de conservação e recuperação do meio ambiente, técnicas e equi-pamentos para upgrades de instalações industriais, exploração racional e conser-vação de recursos naturais, e desenvolvimento científico e tecnológico.

Por outro lado, elas podem ter certo impacto negativo sobre as importações chinesas de alguns produtos primários, como aquelas destinadas a setores indus-triais cujo ritmo de crescimento será freado, a exemplo dos têxteis e certos tipos de aço. Em relação aos produtos agrícolas, a China continuará tentando achar uma solução para superar a contradição entre seus limites físicos para ampliar a produção e a crescente demanda de grãos e alimentos.

Assim, embora seja possível que ela aumente a pressão para associar a compra de produtos primários agrícolas à instalação de unidades de proces-samento desses produtos na China, ela não poderá fechar a porta à venda de alimentos industrializados, carnes, sucos, frutas frescas e secas, café e al-gumas outras bebidas, cuja demanda cresce com o acesso de novas camadas com poder aquisitivo maior.

Além disso, a China precisa urgentemente redirecionar parte de seus exce-dentes de capitais (estimados em mais de 150 bilhões de dólares por ano) para investimentos no exterior. Se ela não fizer isso, ela talvez incorra no mesmo erro do Japão, que pensou ser possível ancorar seus excedentes nos bônus do Tesouro dos EUA, e permanece numa crise de superprodução há vários anos.

Frente a tudo isso, os empresários brasileiros poderiam contemplar em seus planejamentos estratégicos a exportação de produtos para segmentos do

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Razões do Crescimento 177 |

mercado chinês com fortes sinais de demanda, a importação de equipamen-tos e máquinas que não produzimos e, principalmente, a atração de investi-mentos chineses para adensar nossas cadeias produtivas e elevar a capacidade produtiva do Brasil.

Por exemplo, ao invés de gritar contra uma suposta ameaça de desmon-tar e levar para a China a fábrica da Tritec (uma associação entre empresas es-trangeiras, desinteressadas em mantê-la no Brasil), seria melhor articular com o governo uma negociação com a parte chinesa, para vender a ela a tecnologia pretendida, através de uma joint venture na China (a exemplo da Embraer e da Embraco), e outra no Brasil, para manter a desenvolver a fábrica. Essa postura estaria mais em consonância com os interesse do Brasil e com as vantagens de consolidar a parceria estratégica com a China.

18/03/2006

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Além de acusada pela pretensa ocupação do Tibet, a China também come-ça a ser apontada como possível causadora do retorno da inflação mundial. Há quem tente colocar para debaixo do tapete o fato de que a China manteve sua inflação abaixo de 3%, desde meados dos anos 1990. Isso, ao mesmo tempo em que mantinha sua economia crescendo a mais de 10% ao ano, combinação que contribuiu para a queda da inflação em nível mundial.

Por outro lado, não se pode negar que são exageradas, para os padrões chineses, taxas inflacionárias de 6,9% e 8,7%, e média anual de 4,8%. Esse surto desdisse os que supunham que a China completaria, em 2007, cinco anos seguidos de crescimento de dois dígitos, com inflação baixa.

A grande elevação das reservas internacionais sobre a base monetária chine-sa, assim como a elevação dos preços da carne de porco, em virtude do aumento dos preços de insumos internacionais, da pandemia da doença de “orelha azul”, e das fortes nevascas sobre as províncias sulinas, empurraram os preços dos de-mais alimentos para cima, levaram as pessoas a investirem sua poupança em imóveis, e causaram uma bolha no mercado imobiliário.

Com isso, a economia chinesa ingressou num cenário inquietante de taxas de inflação em elevação, coexistindo com altos preços de imóveis. Para debelar essa tendência e chegar, ao fim de 2008, com uma taxa de 4,8%, o governo chinês elevou as taxas de juros (que permaneceram em torno de 1% ao ano, durante os últimos cinco anos), aumentou as reservas bancárias, e apertou as exigências para o crédito geral, ao mesmo tempo em que retirou os impostos e elevou os créditos e subsídios para a produção dos 350 milhões de agricultores.

Além disso, porém, o governo chinês se deparou com o fato de que, comparado ao crescimento da produção atual e potencial do país, o cres-

A inflação chinesa

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180 China - Desfazendo Mitos|

cimento da demanda doméstica estava comprimida, ao invés de aquecida. Desde 2001, a proporção da poupança nos rendimentos dos cidadãos tem crescido, ao invés de cair.

Nessas condições, o grande desafio com o qual a economia chinesa se de-fronta, apesar da crise setorial de oferta, é a limitada demanda efetiva. Sua maior questão, em 2008 e nos anos posteriores, não consiste em manter seu rápido crescimento, mas comprovar se ela pode substituir a produção de exportações e de energia intensiva, pela produção voltada para o consumo doméstico e para a economia de energia. É isso que vai dizer se ela, embora crescendo com rapidez, voltará a ter baixas taxas de inflação, e continuará contribuindo para tanto, em termos internacionais.

19/01/2008

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Razões do Crescimento 181 |

As previsões “pessimistas”, sobre a capacidade da China de sair ilesa da crise norte-americana, não estão relacionadas apenas a seus problemas econômicos. Estão relacionadas, principalmente, com sua nova dimensão internacional, ten-do as Olimpíadas de Beijing, em 2008, como fulcro de uma campanha de boi-cote. Esta envolve “direitos humanos”, “liberdades democráticas”, “autonomia nacional” e outras pretensas questões negativas que, bem manejadas, podem empanar as Olimpíadas como símbolo do sucesso das reformas chinesas.

Os recentes acontecimentos na Índia e no Tibet, desencadeados por segui-dores do Dalai Lama, caracterizados por atos de vandalismo contra instalações comerciais e cidadãos comuns, e não por movimentos massivos, de protesto ou pela independência da região autônoma, foram mais um passo na escalada internacional, de atos programados por forças interessadas em ofuscar o novo papel da China no contexto mundial. Assim, vale a pena um retrospecto.

Começando pela economia, em 2007, a moeda chinesa (o yuan ou renmin-bi) teve uma valorização superior a 6% contra o dólar americano. E o superávit na conta corrente chinesa foi superior a 370 bilhões de dólares, representando 11,9% de seu PIB, enquanto em 2004 havia sido apenas de 69 bilhões de dó-lares, ou 3,6% do PIB. Com um superávit dessa ordem, causado pela balança comercial positiva e pelo investimento direto estrangeiro, a China acumulou mais de 1,5 trilhão de dólares em reservas internacionais. Estas representam 25% das reservas mundiais e 44% do PIB chinês.

Em outras palavras, ao mesmo tempo em que se tornou a terceira ou se-gunda economia mundial, a China ingressou na zona de risco de alta liquidez e inflação, alargando a base monetária do país. Para estabilizar a taxa de câmbio, o banco central chinês foi obrigado a comprar moedas estrangeiras e emitir mais

A China e a crise norte-americana

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182 China - Desfazendo Mitos|

yuans. O que, por sua vez, introduziu ainda mais liquidez em seu mercado, levando o banco central a adotar outras medidas de segurança, para esfriar a circulação monetária e manter o crescimento da moeda em proporção à taxa de crescimento da economia. Apesar disso, o setor financeiro chinês ainda apresen-ta alta liquidez, empurrando para cima os preços de muitos produtos.

Para muitos, esse é o caminho do desastre. No entanto, embora a situação econômica chinesa deva ser vista no bojo dos desequilíbrios macroeconômicos globais, que não podem ser resolvidos unilateral ou bilateralmente, as previsões a respeito do desempenho econômico da China, em 2008 e nos próximos anos, permanecem positivas.

11/03/2008

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Razões do Crescimento 183 |

Os pessimistas e críticos das reformas chinesas, à direita e à esquerda, não acreditam que as economias da China e de outras nações asiáticas possam ter o mercado interno como foco central, e “descolar-se” das crises dos países centrais. Para eles, isso não passaria de um mito.

Em parte, têm razão. No atual estágio da globalização, nenhum país tem condições de se “descolar” do resto do mundo. Porém, é fraco seu argumento de que, se a inflação nos países centrais recrudescer, não haverá como sustentar os preços das commodities, levando muitos emergentes ao desastre. No caso da China, o “desastre” seria crescimento de seu PIB cair de 11% para 8% ao ano.

Tal “desastre” será um alívio para a China. Desde 1999, ela busca reduzir seu ritmo de crescimento, justamente para 8% a 6% ao ano, de modo a re-duzir a pressão sobre seus recursos e sobre sua infra-estrutura, e evitar tensões inflacionárias e sociais. Com um crescimento desses, a China poderá continuar contribuindo para o crescimento global.

Em 2007, essa contribuição foi de 17% do crescimento global, quase o mesmo que os Estados Unidos. Se mantiver um ritmo de crescimento de 8%, a China pode tornar-se a maior economia exportadora do mundo, em 2009 ou 2010. Portanto, o que aqueles críticos precisariam explicar são os motivos pelos quais a China, e diversos países emergentes, estão reagindo à atual crise de forma muito diferente do que ocorria no passado, quando um simples espirro especu-lativo nos países centrais os levava à desordem econômica e financeira.

Com descolamento ou sem descolamento em relação aos países centrais, a tendência mais forte parece ser a de manutenção do crescimento da China e dos países em desenvolvimento, mesmo que num ritmo levemente menor. E o crescimento industrial da China deverá manter seu efeito de onda sobre os

Perspectivas da economia chinesa

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184 China - Desfazendo Mitos|

demais países emergentes, contribuindo diretamente para o excepcionalmente forte crescimento deles nos anos mais recentes.

Os planos chineses, para 2008 até 2010, mantêm os investimentos em ativos fixos, principalmente em economia energética e recuperação ambiental, como as locomotivas do crescimento. Além de já haver extinto os impostos agrícolas, a China deve elevar todos os salários, e tornar universais os serviços públicos nas zonas rurais e urbanas, reduzindo o atual desequilíbrio de rendas e as tensões sociais. O que fortalecerá o consumo da população que, em 2006 e 2007, foi relativamente fraco em comparação a outros componentes do PIB.

Em tais condições, ao invés de levar a China ao desastre, a queda do ritmo do crescimento de seu PIB, para 8%, pode servir para equilibrar seus diversos setores econômicos, e ampliar seu mercado interno. Estamos diante de novos parâmetros, mesmo que isso não agrade a muitos.

16/03/2008

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Razões do Crescimento 185 |

Hoje, a China parece, para muitos, um rinoceronte entrando numa loja de louças. Sinólogos de última hora apresentam as mais diversas teorias para expli-car como um país que, no início da década de 1980, era apenas medianamente industrializado, com mais de 80% da população concentrada na agricultura, e que possuía cerca de 700 milhões de pobres e 400 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, se tornou, em menos de trinta anos, a segunda maior potência econômica mundial, pela paridade de poder de compra, e a terceira ou quarta, pela paridade cambial.

Para alguns, que preferiam ver prevalecer o igualitarismo por baixo (todos pobres e supostamente dignos), a China teria ingressado no capitalismo selva-gem, com brutais distorções e desigualdades regionais e de renda. Virou moda dizer que o socialismo de mercado da China é o de maior desigualdade mun-dial. Tendo 200 milhões de habitantes a mais do que em 1980, a China possui hoje cerca de 350 milhões de pessoas na classe média alta (umas 10 milhões milionárias), 500 milhões nas classes médias baixa e média, uns 500 milhões de pobres e, segundo dados da UNCTAD, uns 20 a 30 milhões ainda vivendo abaixo da linha da pobreza.

Se compararmos a renda dos 10 milhões de milionários com os 20 a 30 milhões que vivem abaixo da linha da pobreza, teremos uma desigualdade gritante. No entanto, se avaliarmos que a China colocou no patamar de clas-se média cerca de 850 milhões de pessoas, no curto espaço de trinta anos, e numa época em que a hegemonia do pensamento neoliberal considerava inevitável a disseminação da pobreza e da miséria, em virtude da prevalência do desemprego estrutural, será necessário medir as desigualdades chinesas com outros parâmetros.

Crescimento e distribuição de renda

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186 China - Desfazendo Mitos|

Por um lado, a economia da China tem crescido a um ritmo muito alto. Em 2007, seu PIB foi de 3,5 trilhões de dólares (66% superior ao de 2002), suas reservas internacionais atingiram 1,52 trilhões de dólares, seu comércio exter-no foi de 2,17 trilhões de dólares, e seu superávit comercial de 356 bilhões de dólares. Por outro lado, as políticas de redistribuição de renda do Estado chinês têm conseguido fazer com que a renda pessoal acompanhe, em certa medida, o crescimento do PIB. Entre 2002 e 2007, essa renda cresceu cerca de 100%.

Apesar disso, não se pode negar uma forte concentração de renda. No enri-quecimento em ondas da sociedade chinesa, que prevê um piso de vida media-namente abastada para todos os seus habitantes, em 2020, alguns estão surfando mais rápido, e se esquecendo dos que vêm atrás. O que nos leva a pelo menos três perguntas: a) num país de crescimento tão rápido, seja socialista ou capita-lista, é possível evitar o surgimento desse e de outros tipos de desigualdade? b) para evitar essas desigualdades, seria melhor para os países socialistas adotar o caminho do igualitarismo por baixo? c) constatadas as desigualdades, o socialis-mo de mercado chinês será capaz de reduzi-las, e evitar as polarizações sociais e a desestabilização política?

16/04/2008

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Razões do Crescimento 187 |

Apesar dos ajustes agrários e sociais em curso, a agricultura chinesa con-fronta-se com algumas limitações difíceis de superar. Mesmo que não estivesse sendo pressionada pelo desenvolvimento urbano, sua área de plantio não tem possibilidade de ir muito além dos 130 milhões de hectares, por problemas de relevo físico e fertilidade do solo.

É verdade que, mesmo diante de tais limitações, e fazendo uso de tecnologias tradicionais, os camponeses chineses conseguem produtividades relativamente altas por unidade de área. Em 2007, produziram 501 milhões de toneladas de grãos (arroz, trigo, milho, soja, sorgo etc), 6 milhões de toneladas de algodão, 30 milhões de toneladas de oleaginosas, 99 milhões de toneladas de cana de açúcar e 52 milhões de toneladas de produtos da aqüicultura. No entanto, uma produção portentosa como essa ainda é relativamente baixa, em termos per capita.

Outro dado importante é que, naqueles 130 milhões de hectares, traba-lham 350 milhões de lavradores. Algo em torno de 0,37 hectares por lavrador. Num quadro como esse, introduzir técnicas agronômicas científicas na agri-cultura chinesa, elevando a produtividade por área e por trabalhador, pode significar o aumento do excedente de mão-de-obra, um problema que já afeta a China, como um todo. Atualmente, para manter a taxa de desemprego em 4%, ela precisará criar, em 2008, 10 milhões de empregos urbanos e 8 milhões de empregos rurais.

Apesar dessas dificuldades, a única forma da China manter sua agricultu-ra como “fundamento da nação”, na expressão do seu atual governo, consiste em elevar, de modo sustentável, sua produção de grãos, carnes, leite e óleos, de modo a atender ao crescente poder de compra de sua população. O que implica acelerar o desenvolvimento científico e tecnológico da agricultura,

Desenvolvimento agrícola

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melhorar as variedades de grãos, desenvolver a pecuária e a aqüicultura, me-lhorar as práticas agronômicas, e desenvolver a infra-estrutura agrícola, em termos de suprimento de água, irrigação, energia elétrica, telecomunicações, rodovias, proteção ambiental e cultura.

Mas nada disso será possível se as rendas rurais não forem elevadas, se as empresas industriais e comerciais de cantão e povoado não forem capazes de absorver os excedentes da força de trabalho agrícola, se a educação vocacional e técnica das populações rurais não for elevada, se as ações de alívio da pobreza rural não forem intensificadas, e se os serviços públicos de seguridade social não forem capazes de atender aos desafios do aumento da produtividade es-trutural de sua agricultura.

Assim, não é por acaso que o atual movimento de ajustes na agricultura chinesa esteja tomando, como ponto de partida, não as medidas de caráter estri-tamente econômico, mas principalmente as medidas de caráter social. Somente com uma base social mais sólida, a agricultura chinesa poderá dar um novo salto. 26/04/2008

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Socialismo chinês

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Socialismo chinêsutopia e realidade

O socialismo com características chinesas é fruto de um prolongado pro-cesso revolucionário. Suas raízes se encontram na revolução nacional (contra o domínio da dinastia manchú e das potências imperiais capitalistas) e democrá-tica burguesa (contra o domínio dos senhores de guerra feudais, pela reforma agrária e por liberdades políticas), empreendida por Sun Yatsen, no final do século 19, unindo a burguesia nacional, os camponeses, os operários e outras camadas urbanas.

Essa aliança e as metas nacionais e democráticas foram mantidas na re-volução dirigida pelos comunistas. Ainda em 1946, em seu programa de uma Nova Democracia, eles negaram a existência de uma Muralha da China entre a revolução nacional e democrática e a revolução socialista, e reiteraram que a burguesia nacional participaria, por longo tempo, na construção econômica da China. Em outras palavras, a propriedade capitalista nacional teria papel positi-vo no desenvolvimento das forças produtivas do país.

Isto se mostrou utópico, porque os interesses das classes da sociedade chi-nesa impuseram dificuldades. A burguesia lançou-se em movimentos especu-lativos, que levaram à falência suas empresas, transformadas então em estatais, para continuarem funcionando. Paralelamente, as disputas dos camponeses po-bres contra os camponeses abastados, conduziram a um movimento de ajuda mútua, seguido de um intenso processo de cooperativização. Os camponeses pobres venceram a disputa e impuseram aos camponeses abastados e médios seu tradicional igualitarismo por baixo.

Confrontados com o bloqueio econômico, político e militar das potências capitalistas, e com as políticas errantes soviéticas, os chineses procuraram apro-veitar suas mobilizações sociais para tentar a construção socialista com o auto-

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esforço massivo dos camponeses e operários. Todas as políticas e mobilizações sociais entre 1953 e 1976 - Cooperação Agrícola, Cem Flores, Grande Salto, Comunas Populares e Revolução Cultural - tiveram como cimento ideológico e bandeira política o igualitarismo por baixo camponês.

Essas mobilizações garantiram os direitos humanos básicos de alimentação, moradia, educação e saúde para a maioria do povo chinês. Ser pobre era digno, desde que todos fossem igualmente pobres. Embora essa concepção de socialis-mo da pobreza tenha se tornado predominante, havia a utopia de que o imenso esforço, de mais de um bilhão de chineses, permitisse um salto na produção e na distribuição da riqueza social.

No entanto, no início dos anos 1970 já era evidente que essas mobiliza-ções não reduziram o atraso relativo da China. A abertura diplomática para o ocidente, promovida nesse período, apontava que o país se atrasara ainda mais, diante da revolução científica e tecnológica e da reestruturação capitalista em curso. Era também evidente, para as lideranças chinesas, que a União Soviética e os países socialistas do Leste Europeu não mais conseguiam desenvolver suas forças produtivas, e marchavam para uma crise.

Além disso, havia a percepção de que a grande ascensão revolucionária, ocorrida durante o século 20, chegara a seu auge, com a vitória vietnamita. A partir daí se iniciava um longo período de descenso. E o esgotamento da pró-pria revolução cultural demonstrava que o igualitarismo, mesmo quando esti-mulado por fortes apelos ideológicos e políticos, e espontaneamente praticado por grandes massas, era incapaz de resolver o problema do desenvolvimento das forças produtivas.

Foi frente a essa situação que o PC chinês decidiu-se por uma retirada estratégica, tão grande e perigosa quanto a Longa Marcha, entre 1935 e 1936. Além de reconhecer o fracasso das tentativas feitas, o PC levou em conta que a propriedade privada e o mercado são instrumentos históricos da necessidade humana de desenvolver as forças produtivas.

Segundo essa descoberta de Marx, tais instrumentos só seriam superados quando o alto nível de produção social, em contradição com a alta concen-tração da apropriação privada, chegasse a um grau em que os capitalistas se vissem na necessidade de prover a subsistência dos produtores que deveriam produzir sua riqueza. Essa contradição levaria à revolução social nos países ca-pitalistas avançados. A sociedade resultante ainda seria de transição, socialista, com restos capitalistas, antes que fosse erigida uma sociedade sem classes, sem exploração, e sem Estado.

Marx não podia prever que as revoluções dirigidas por partidos comunis-tas e socialistas iriam ocorrer em países atrasados do ponto de vista capitalista. O que levou muita gente a supor que Marx estava errado e que seria possível

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evitar o capitalismo no desenvolvimento das forças produtivas no socialismo. A experiência dos países socialistas do século 20 mostrou que Marx se enganou no acessório, mas tinha razão no fundamental.

A China recuou para a previsão de Marx, e para a proposta da Nova De-mocracia. Retomou a propriedade capitalista e o mercado como instrumentos de desenvolvimento das forças produtivas, e a aliança com a burguesia nacional como política de longo prazo. Além disso, aproveitou as dificuldades de re-estruturação do capitalismo desenvolvido, que não mais conseguia manter as altas taxas médias de lucro, ou margens de rentabilidade, necessárias para sua reprodução ampliada em seus países de origem. O que o levou a criar novas corporações empresariais, de cadeias produtivas complexas, com indústria, fi-nanças, comércio e logística, a utilizar amplamente a especulação financeira e o trabalho escravo, e a realizar uma profunda fragmentação ou segmentação da produção industrial, transferindo para países da periferia as plantas industriais dos países desenvolvidos.

Os chineses resolveram aproveitar, de forma calculada, essas necessidades das grandes corporações, e do capitalismo em geral. Abriram sua economia, apresentando como atração o baixo custo relativo de sua mão-de-obra, a boa infra-estrutura de energia, transportes e comunicação, a pouca burocracia nos processos de investimentos, e a estabilidade social e política. Mas o fizeram de modo paulatino, condicionando os investimentos externos à associação com empresas chinesas, à transferência de novas e altas tecnologias, e à participação no comércio internacional.

Ao contrário das prédicas neoliberais, não abandonaram os planejamentos macros, nem as empresas estatais. Utilizam ambos como instrumentos para cor-rigir desvios do mercado e orientar a industrialização. Ao invés de privatizarem, modernizaram as estatais. Em lugar de elevarem os juros para atrair capitais de curto prazo, os rebaixaram para disseminar o crédito, e estabeleceram controles sobre o movimento de capitais. E, em vez de câmbio desregulado, o utilizaram como ferramenta de política industrial, desvalorizando sua moeda para elevar a competitividade dos produtos chineses e participar da globalização.

Foi desse modo que a China se transformou, em 25 anos, na principal fábri-ca do mundo, invertendo a antiga prática dos países periféricos serem exportado-res de matérias primas e semi-manufaturados, enquanto os países desenvolvidos eram os exportadores de produtos industrializados e bens de capital. Ao mesmo tempo, ao contrário da maioria dos países capitalistas, nos quais o desenvolvi-mento capitalista tende a descartar a força de trabalho e colocá-la à margem dos mercados, a China vem praticando uma política ativa de redistribuição de renda, através do aumento constante dos salários, da universalização das aposentadorias, pensões e seguros-desemprego, e da abolição dos impostos agrícolas.

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Em 1978, a China igualitária possuía 700 milhões de pobres e 400 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Em 2007, possuía, dependendo da fonte, de 150 a 350 milhões de pessoas com padrão de classe média alta, cer-ca de 500 milhões com padrão de classe média baixa e média, e 500 milhões de pobres. Os que ainda vivem abaixo da linha da pobreza giram em torno de 20 milhões. Seguindo a política de “enriquecimento em ondas”, o padrão base de seus 1,4 bilhão de habitantes deve ser o de classe média-média, em 2020.

Mudanças dessa envergadura trazem problemas de toda ordem, em especial quando a propriedade privada capitalista está presente. A nova burguesia está contente com sua situação. O mesmo ocorre com os milhões que ascenderam socialmente. E os pobres têm a perspectiva de ascensão. Porém, quando a taxa média de lucro cair, a burguesia chinesa vai exigir a revogação do “enriqueci-mento em ondas”, do mesmo modo que a burguesia européia deu fim ao Estado de Bem-Estar Social.

Esse será o momento de saber se o Estado e o PC chinês mantiveram-se firmes no caminho de passar da transição socialista para uma sociedade superior, e ficarão do lado dos trabalhadores. Esse é o risco que a China passa. Sem corrê-lo, talvez houvesse submergido no pântano em que a União Soviética afundou. E, como ignoramos se esse risco é uma utopia, ou uma realidade, convém ob-servar com cautela e aproveitar todas as suas lições.

09/02/2008

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A China está na pauta de amigos ou inimigos. Tudo pelo fato de, a toda hora, nos depararmos com produtos chineses. E porque seu PIB qua-druplicou entre 1980 e 2000, e deve quadruplicar, outra vez, entre 2000 e 2010. Em 2006, alcançou a cifra de 2 trilhões e 700 bilhões de dólares, pela paridade cambial, e cerca de 10 trilhões de dólares, pela paridade do poder de compra.

Mas a China ainda parece um mistério. Setores da esquerda, da mesma forma que setores da direita, dizem que o socialismo também teria fracassado lá. Isso porque ela não teria proporcionado igualdade a toda a sua população. E porque o capitalismo, inclusive o capitalismo internacional, teria renascido, tornando-se o setor predominante da economia e da sociedade chinesa.

Os comunistas e socialistas chineses percorreram um longo caminho, de quase meio século de guerras civis, e de uma guerra de resistência contra o Japão, até conseguirem implantar um governo democrático e popular, e iniciar a construção socialista. Depois, por outros quinze anos, esforçaram-se, para in-dustrializar o país e desenvolver suas forças produtivas, através de suas empresas estatais, e das empresas coletivas (cooperativas) urbanas e rurais.

Descontentes com o ritmo de seu desenvolvimento econômico e social, e sob pressão do sentimento igualitário do campesinato e das camadas pobres urbanas, acharam que os problemas da construção socialista eram devidos aos restos da propriedade privada na sociedade chinesa. A partir daí, ingressaram numa das maiores tentativas históricas de implantar uma igualdade massiva, a chamada Revolução Cultural Proletária, por outros dez anos.

Após isso, avaliaram suas experiências e suas tentativas de construção socialista e, para realizar o desenvolvimento das forças produtivas, decidiram

Igualdade e desigualdade

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realizar uma grande retirada estratégica, admitindo a desigualdade social e diferentes formas de propriedade, entre as quais a propriedade privada capi-talista nacional e estrangeira.

Para muitos comunistas e socialistas, assim como liberais, espalhados pelo mundo, esse é um caminho de retorno total ao capitalismo. Para os comunistas chineses, porém, a China se encontra na fase inicial de construção socialista.

Em quem acreditar? Para onde realmente está marchando a China? Para responder a essas perguntas, mesmo de forma simplificada, talvez seja indis-pensável voltar um pouco na história, comparando a China de 50 anos atrás com a China de hoje, para tentar descobrir as tendências predominantes de sua evolução.

Igualdade

Ao proclamar sua República Popular, em outubro de 1949, a China possuía cerca de 500 milhões de habitantes. A maioria estava nas áreas ru-rais, vivendo em regime de subordinação quase feudal. A indústria era rudi-mentar, grande parte dos trabalhadores urbanos dedicando-se ao artesanato. A economia e a sociedade eram dominadas pela associação do capitalismo estrangeiro com a burguesia comercial e com os senhores de terras e de guer-ra chineses. Havia uma imensa igualdade na pobreza e na miséria, entre os camponeses e os trabalhadores urbanos, e uma brutal desigualdade entre estes e as burguesias estrangeira e chinesa.

A reforma agrária, e a reorganização da economia, com a expropriação das propriedades estrangeiras e o estabelecimento de empresas estatais e co-letivas, entre 1950 e 1953, melhorou a situação dos pobres e miseráveis, e reduziu as desigualdades. Mas elas persistiam, porque havia os setores ricos, como os camponeses abastados, nas zonas rurais, e os industriais e comer-ciantes, nas zonas urbanas.

Também persistiam no território chinês focos de resistência e sabotagem do antigo regime. A reforma agrária limitara-se aos han, enquanto se mantinham formas de exploração servil e escravista sobre os camponeses de outras etnias, como no Tibet. E o Exército Popular de Libertação fora impedido de tomar a ilha de Taiwan, em virtude da proteção da 7ª Frota americana aos exércitos do antigo regime, em retirada.

Os Estados Unidos também haviam conseguido impor um vasto bloqueio econômico, político, diplomático e militar à nova China. E depois, com a guer-ra da Coréia, obrigou-a a mobilizar recursos materiais, e mais de um milhão de voluntários, para lutar ao lado dos coreanos do norte, contra as tropas norte americanas e de outros quatorze países.

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Numa situação como essa, os camponeses abastados e os burgueses chi-neses tentaram tirar vantagens. Como reação, nas zonas rurais desenvolveu-se uma intensa luta de classes, que desembocou no processo de cooperativi-zação agrícola e, mais tarde, na formação dos grupos e brigadas de produção, e das comunas populares. Através deles, os camponeses pobres subordinaram os camponeses abastados e médios, e estabeleceram a igualdade no trabalho e nos ganhos.

Nas zonas urbanas, os burgueses perderam a queda de braço com o go-verno em suas tentativas especulativas, foram à bancarrota, tiveram que vender suas empresas para o Estado, ou para coletivos de trabalhadores, e passaram a ser trabalhadores. Assim, estabeleceu-se também uma certa igualdade nas zonas urbanas chinesas.

O problema é que essa igualdade era por baixo, igualdade na pobreza. Toda tentativa posterior, para desenvolver as forças produtivas, intensificar a geração de riqueza e redistribuir tal riqueza entre a população, não conseguiu mudar estruturalmente a situação de igualdade por baixo. O Grande Salto Adiante, en-tre 1958 e 1962 e, depois, a Revolução Cultural Proletária, entre 1966 e 1976, conseguiram alguns avanços produtivos, mas inferiores às necessidades do atraso histórico da China e de seu crescimento populacional.

Assim, em 1978, já com mais de um bilhão de habitantes, a China tinha 70% de pobres, e 30% vivendo abaixo da linha da pobreza. A persistência desse tipo de igualdade acabaria degradando a legitimidade da revolução e das pro-messas de construção socialista. Não por acaso, a Revolução Cultural Proletária, e sua perspectiva de alcançar a riqueza social através de uma massiva mobiliza-ção ideológica e política, e redistribuí-la igualmente a todos, se esgotara. Além de haver fraturado profundamente a sociedade, o governo, o partido comunista, e os partidos democráticos, não conseguira realizar o esperado desenvolvimento econômico e social.

Desigualdade

Que outros caminhos a China poderia ou deveria seguir? Como desenvol-ver suas forças produtivas e, ao mesmo tempo, redistribuir proporcionalmente a riqueza gerada por aquele desenvolvimento, nas condições de atraso econômico e social ainda existentes?

Os comunistas e socialistas chineses decidiram retomar as previsões de Marx, de que a transição do capitalismo ao comunismo só poderia ocorrer em sociedades onde as forças produtivas já tivessem um alto grau de desenvolvi-mento. E retomar, também, as propostas de Mao, em seus trabalhos sobre a Nova Democracia, em que apontava a necessidade de convivência e luta, por

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um largo período, de diferentes formas de propriedade, inclusive privadas, para a construção socialista na China.

Em outras palavras, decidiram realizar uma grande retirada estratégica, para resguardar as forças que restavam, e acumular novas forças, com vistas aos embates futuros. Em termos gerais, fizeram como na Longa Marcha, que se seguiu à sua derrota militar, em 1935, frente à quinta campanha de cerco e ani-quilamento dos exércitos do Guomindang, que os obrigou a abandonar sua base guerrilheira central, no sul do país. Transformaram a marcha de salvamento de suas tropas, em marcha de deslocamento para as regiões do norte do país, com o objetivo de enfrentar a iminente ofensiva geral japonesa contra a China.

Com isso, transformaram a retirada militar em ofensiva política, levaram o Guomindang a aceitar a aliança nacional para a guerra de resistência contra o Japão, tornaram o exército derrotado de 30 mil homens maltrapilhos num exér-cito de 3 milhões de homens vitoriosos, foram reconhecidos pelo povo chinês como o principal combatente contra o invasor estrangeiro e, na guerra civil que se seguiu, conquistaram a vitória contra o exército de 8 milhões de homens do Guomindang, apoiado pelos norte-americanos.

Na atual retirada estratégica, os comunistas e socialistas chineses têm ado-tado combinações estratégicas e táticas que lhes permitam desenvolver as forças produtivas, aí incluídas as ciências e as tecnologias, gerar riqueza, redistribuir tal riqueza de forma menos desigual, e elevar o nível educacional e cultural de toda a população.

Ao mesmo tempo em que dão grande importância ao papel do mercado para o cálculo econômico e a determinação dos preços, dedicam papel impor-tante ao Estado e ao planejamento macroeconômico e social, de modo a orien-tar o processo de desenvolvimento e corrigir os desvios do mercado. Ao mesmo tempo em que desenvolvem as ciências, as tecnologias e a inovação tecnológica, permitem e estimulam o uso das tecnologias atrasadas e tradicionais, de modo a manter grande número de empregos.

Ao mesmo tempo em que atraem capitais privados estrangeiros, e permi-tem a expansão dos capitais privados nacionais, modernizam e tornam compe-titivas e rentáveis suas empresas e corporações estatais, e as utilizam como ins-trumentos de política industrial. Ao mesmo tempo em que eliminaram o pleno emprego e o emprego vitalício, criando o mercado de trabalho, universalizam paulatinamente o seguro desemprego, a aposentadoria e as pensões, e criam uma série de mecanismos estimuladores de novos negócios e novos empregos.

Essas e outras combinações estratégicas e táticas permitiram à China gerar, no espaço de 26 anos, o terceiro maior PIB do mundo, pela paridade cambial, e o segundo maior PIB do mundo, pela paridade de poder de compra. E trans-formar a estrutura social de 700 milhões de pobres, e 400 milhões de pessoas

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vivendo abaixo da linha da pobreza, existente em 1980, numa estrutura social, em 2006, de 16 milhões de pessoas ainda vivendo abaixo da linha da pobreza, 500 milhões de pobres, 500 milhões vivendo num patamar de classe média bai-xa, e cerca de 350 milhões vivendo em nível de classe média, média e alta.

A China implantou, assim, um processo de desigualdade social. Porém, ao contrário do que ocorre na maioria dos países capitalistas do mundo, um proces-so em que existe um acesso constante dos níveis inferiores aos níveis superiores de riqueza. É evidente que esse é um processo de alto risco, no qual o Estado terá que manter um constante monitoramento para que o enriquecimento ocorra realmente em ondas, e seja evitada uma grande polarização na desigualdade econômica e social. Pergunta-se: para um país que saiu de um profundo atraso econômico e social, seria possível estabelecer a igualdade, a curto prazo, e evitar um caminho desse tipo?

Perspectivas

Entre 2006 e 2010, a China terá que resolver o principal problema atual da sua economia, que reside na superprodução de sua indústria, em contraste com uma demanda interna efetiva insuficiente. As taxas de investimento acima de 40% do PIB ao ano, em capitais e tecnologias, têm imprimido um ritmo exage-rado ao crescimento chinês, de 9% a 10% ao ano. O consumo, por seu turno, embora tenha aumentado muito, tem crescido mais lentamente, pela dificulda-de em gerar cerca de 10 milhões de novos empregos anuais, e pelas disparidades de renda entre agricultura e indústria, entre as populações rurais e as urbanas, e entre as diferentes regiões, em especial entre o leste e o oeste do país.

Por isso, ao invés de utilizar a grande quantidade de capitais excedentes, hoje existentes na China, apenas para ampliar a produção e o lucro, o novo pla-no qüinqüenal do governo chinês pretende direcionar grande parte deles para aumentar o padrão de vida das populações de menor renda e, portanto, elevar o consumo interno. Os investimentos anuais serão reduzidos para cerca de 30% do PIB, e destinados prioritariamente a aumentar a infra-estrutura rural e ur-bana, universalizar os serviços públicos nas áreas rurais, reduzir as disparidades regionais, impor um salto na conservação e recuperação do meio ambiente, ele-var a um novo nível a estrutura científica e educacional, desenvolver os recursos humanos, e reformar as estruturas industriais obsoletas.

Os investimentos nas áreas rurais pretendem desenvolver os recursos hu-manos, sendo orientados para saneamento, moradia, educação e saúde, assim como para a infra-estrutura científica e tecnológica da agricultura e da pecuária. Tudo de modo a elevar a produtividade da terra, garantindo uma renda mais elevada às famílias, implantando em bases sólidas e avançadas a pecuária leiteira

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e de corte, intensificando os programas de reflorestamento e conservação das águas e, portanto, elevando o consumo no campo.

O plano também tem em vista elevar o consumo geral, através do corte dos impostos e taxas (o que vem sendo realizado na agricultura desde 2005), da re-vitalização do emprego, da elevação da renda individual e familiar, da diversifi-cação dos produtos, e da proteção aos direitos dos consumidores. O atual plano chinês é, pois, um plano de ajustamento. Procura reforçar o mercado domés-tico, para enfrentar qualquer turbulência no capitalismo global. No final, deve ampliar a classe média e alta, para algo em torno de 520 milhões de pessoas, e a classe média inferior para alguma coisa em torno de 550 milhões de pessoas, enquanto deve reduzir o número de pobres para menos de 300 milhões.

Dizendo de outro modo, não há qualquer intenção imediata de implantar o igualitarismo na distribuição das riquezas. Mas existe o objetivo de elevar o pa-drão de vida das grandes camadas da população chinesa, evitando disparidades que rompam a atual estabilidade social e política, e criem distúrbios no desen-volvimento de longo prazo. Realizar isso não é uma tarefa fácil, tendo em conta o passivo histórico de distorções econômicas, sociais e ambientais acumuladas pela China, em seus mais de 6 mil anos de existência.

Esse país ainda tem muito a fazer em termos de construção civil, meios de transporte, combustíveis renováveis, motores limpos, técnicas de economia de energia, silvicultura, pecuária de leite e corte, técnicas de conservação e re-cuperação do meio ambiente, técnicas e equipamentos para melhoria de suas instalações industriais, exploração racional e conservação de recursos naturais, e desenvolvimento científico e tecnológico.

Ela continuará tentando achar uma solução para superar a contradição en-tre seus limites físicos para ampliar a produção agrícola, e a crescente demanda de grãos e alimentos naturais e industrializados, carnes, sucos, frutas frescas e secas, café e outras bebidas, cujo consumo cresce com o acesso de novas camadas com poder aquisitivo maior.

Assim, enquanto persistirem lacunas sérias no desenvolvimento de suas forças produtivas, a China deve se aproveitar de todas as combinações possíveis de formas de propriedade, e portanto, de desigualdades relativas. Esse pode não ser o socialismo utópico sonhado por alguns. Mas talvez possa ser uma das for-mas de socialismo real de transição para uma sociedade igualitária. A conferir.

18/03/2006

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Socialismo Chinês 201 |

Já que falamos da experiência chinesa, não custa nada aproveitar a ocasião para voltar a discutir a questão do socialismo. Os chineses continuam dizendo que estão na fase preliminar da construção socialista. Parte da esquerda considera que essa experiência nada tem de socialista, porque não implantou a igualdade.

Outra parte da esquerda, por seu turno, ignora a experiência chinesa, e continua afirmando ser necessário superar o socialismo de tipo soviético, como se este fosse o único conhecido. Assim, queiramos ou não, a discussão sobre o socialismo continua, ainda hoje, tendo por parâmetro o naufragado socialismo soviético, enrolando o conceito num emaranhado de confusões.

A começar pelo fato de que o tipo de socialismo tomado como parâme-tro, ou seja, aquele implantado a partir dos anos 1930, na União Soviética, não era o sistema econômico-social preconizado por Marx. Este afirmava que, para realizar a transição socialista, era necessário que a sociedade con-tasse com forças produtivas avançadas. Durante algum tempo, pensou-se que a experiência soviética de desenvolvimento rápido, entre os anos 30 e 50 (apesar da segunda guerra mundial), demonstrara o contrário, e que Marx estava errado.

Por outro lado, muitos esquecem que o próprio Lênin, após o “comunismo de guerra”, dos primeiros anos de enfrentamento do jovem poder soviético con-tra a intervenção das tropas estrangeiras, viu-se constrangido a reconhecer que Marx tinha razão. Propôs um forte recuo, e buscou outros caminhos, através da Nova Política Econômica (NEP), entre 1922 e 1928, que combinava formas capitalistas com novas formas sociais de propriedade. Essa foi a primeira ten-tativa consistente de resolver o problema da construção socialista, em um país capitalista atrasado, que havia realizado uma revolução operária.

Experiências socialistas

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Portanto, bem vistas as coisas, há dois socialismos soviéticos a considerar. Ignorá-los, e considerar como concepção “tradicional” apenas o tipo de socia-lismo predominante entre 1930 e 1990, no Leste Europeu, é um erro histórico. Que se agrava, quando se relaciona o conceito de socialismo “como ponto de chegada definitivo”, e “modelo fechado”, com o conceito de ruptura. Esta rela-ção pode estar na cabeça de alguns, inclusive dos que a combatem, da mesma forma que os moinhos de vento, transformados em máquinas de guerra, esta-vam na cabeça de Dom Quixote. Não passa de visão delirante.

27/02/2007

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Não deixa de ser irônico que uma crítica recorrente sobre as desigualdades na China atual apresente como contraponto o igualitarismo por baixo, pre-sente em sua sociedade entre 1950 e 1980. Essa crítica procura reafirmar que aquilo sim é que era socialismo. Agora, haveria um capitalismo selvagem, com a agravante de um “governo autoritário”. Em outras palavras, fingindo elogiar, ela passa a mensagem de que o verdadeiro socialismo não seria capaz de tirar ninguém da pobreza, e de que a China seria menos desigual se o seu capitalismo já houvesse transitado para uma democracia liberal.

Essa crítica é também maliciosa ao omitir que, na história da humanida-de, não há exemplo de surtos de crescimento rápido dos meios de produção, sem causar desigualdades econômicas e sociais. Mesmo países com populações muito menores que as chinesas, como a Inglaterra e os Estados Unidos, tiveram processos econômicos de crescimento com intensas desigualdades. Tivemos ex-periência idêntica no Brasil. Dessa forma, exigir perfeição da China não passa de ação de propaganda negativa.

Mesmo durante o “socialismo igualitário” da revolução cultural na China, houve desigualdade entre os pobres e os que se encontravam abaixo da linha da pobreza. Por outro lado, é certo que aquelas desigualdades aumentaram com o retorno da economia de mercado. Nesse sentido, a diferença entre o socialismo chinês e o capitalismo em geral é que, na China, o Estado tem papel explícito de instrumento de correção dos desequilíbrios e desigualdades decorrentes do mercado. Ele não apenas reconhece e monitora os problemas que surgem, como adota medidas para corrigi-los, e as executa.

Desde o início do programa de reforma e abertura da China, em 1980, o Estado teve que realizar três grandes intervenções no mercado, para corrigir

Desigualdades chinesas

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desequilíbrios e polarizações, e evitar a desestabilização política. A primeira, em 1989, quando o governo de então foi incapaz de evitar uma forte desigualdade de rendas, um pico de inflação (embora baixo, se comparado aos padrões brasi-leiros da época), a multiplicação de casos de corrupção, além de não conseguir adotar medidas para superar tais problemas e evitar a desestabilização política.

A segunda, em 1994-95, quando ocorreram novas desigualdades de renda, novo surto inflacionário e os desequilíbrios regionais começaram a incomodar. E a terceira, em 1999, durante a crise financeira internacional, quando houve grande pressão para a desvalorização cambial e forte queda nas exportações. Em todas essas intervenções, o Estado do socialismo de mercado chinês se mostrou capaz de corrigir as distorções do mercado, criar um novo ambiente social e político, e manter o desenvolvimento econômico e social.

No entanto, essas correções não tiveram, como não têm, a pretensão de liquidar o mercado. Este ainda é considerado indispensável para desenvolver as forças produtivas e gerar novas riquezas materiais. Com isso, é inevitável que sur-jam, e continuem surgindo, novos desequilíbrios. Não por acaso, volta e meia se levantam novas dúvidas sobre a capacidade do Estado chinês resolvê-los.

20/04/2008

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Desde o início do século 21, o programa de reforma e abertura da China está sendo confrontado, principalmente, por problemas de ordem macroeco-nômica, social e ambiental. O ritmo de crescimento econômico estava muito acima do desejado, e as medidas para reduzi-lo de 10-11% para 6-8% ainda não haviam surtido efeito, apesar de estarem sendo tentadas desde 1999.

Os preços agrícolas domésticos na China mantiveram-se, em geral, inalte-rados, mas cresceram as pressões inflacionárias, decorrentes do ritmo de cresci-mento, sobre as matérias primas, infra-estrutura e commodities internacionais. A inflação chegou a 8,7%, no último trimestre de 2007. Além disso, a agricultura persistiu nas dificuldades para manter um desenvolvimento sustentável. E as relações entre exportações e importações, investimentos e consumo, e entre os setores primário, secundário e terciário da indústria, apresentaram sérios dese-quilíbrios. A poluição do ar e das águas, assim como dos solos, chegou a um patamar que pôs em evidência o alto custo do crescimento, em termos de recursos e tensão ambiental.

O desemprego atingiu a marca de 4,5%, embora tenham sido criados 51 milhões de novos postos de trabalho, entre 2002 e 2007. Problemas relacio-nados com a distribuição da renda, segurança social, segurança no trabalho, educação, saúde, habitação, qualidade e segurança pública foram agravados, em particular nas vastas áreas rurais chinesas. Vieram à luz, com muita ênfase, as desigualdades campo-cidade e regionais, em termos de renda, investimen-tos e desenvolvimento.

Além disso, a administração pública chinesa continuou se vendo às vol-tas com formalismo e comportamento burocráticos exagerados, e com casos de fraudes, extravagâncias, desperdícios e corrupção. Esse quadro coincidiu

Problemas atuais da China

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com o fato, mensurável, de que a economia de mercado chinesa atingiu um razoável grau de desenvolvimento. As empresas privadas, nacionais e estran-geiras, são hoje responsáveis por mais de 50% do valor total da produção industrial do país.

Para complicar ainda mais essa situação, pioraram as incertezas interna-cionais e os riscos potenciais que podem afetar a economia e a sociedade chi-nesas. Aumentaram os desequilíbrios da economia global, com a redução do crescimento mundial, expansão da crise norte-americana, queda continuada do dólar, maior competição internacional, crise nos mercados financeiros, altas dos preços das commodities agrícolas e minerais, aumento do protecionismo e dos atritos comerciais, e ocorrência de fatores políticos desestabilizadores.

Na história de quase trinta anos do programa de reformas e abertura da China, a correção e superação desse conjunto de problemas atuais talvez seja o teste mais crucial pelo qual o Estado chinês deverá passar, para demonstrar sua capacidade de interferir e evitar que as leis de ferro do mercado se imponham totalmente.

22/04/2008

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As principais questões macroeconômicas, com as quais a China se defronta, consistem em evitar que o ritmo do crescimento econômico torne sua economia superaquecida, e que o aumento estrutural dos preços se transforme em infla-ção. Em outras palavras, trata-se de reduzir realmente o ritmo de crescimento para 8%, manter a inflação no patamar máximo de 4,8%, e o desemprego no nível de 4,5%, criando, em 2008, 10 milhões de postos urbanos de trabalho e 8 milhões de postos de trabalho nas zonas rurais.

As autoridades chinesas reconhecem que, para alcançar tais metas, será ne-cessário fortalecer a agricultura, como fundamento da nação, mudar o padrão de desenvolvimento, conservar energia, reduzir as emissões de gases, proteger o meio ambiente, assegurar o desenvolvimento social e o bem-estar do povo, aprofundar o desenvolvimento cultural, desenvolver a democracia e o sistema legal socialistas, e acelerar a reforma do sistema governamental, sem esmorecer na realização das reformas e na abertura externa.

Isto exige, de imediato, uma forte intensificação da regulação sobre o mer-cado. Será necessário controlar o suprimento de terras e créditos, aumentar as exigências de acesso ao mercado, reajustar as políticas monetária e fiscal, e reduzir tanto o ritmo de investimentos em ativos fixos, quanto os superávits comerciais externos. Isso tudo num contexto em que o mercado não deve ser desestimulado a continuar desenvolvendo os meios de produção, mas deve ser contido em sua tendência anárquica de produção de lucros, independentemente das conseqüências.

As medidas de regulação macroeconômica chinesa podem contribuir, de diferentes maneiras, para o desenvolvimento das economias dos países emergen-tes, como o Brasil. Em primeiro lugar, a redução dos investimentos na economia

Atuais desafios da China

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doméstica obrigará a China a exportar seus excedentes de capitais, como já vem fazendo, embora com certo atraso. Depois, a redução dos superávits comerciais levará a China a importar mais, em especial aqueles bens de consumo que estão escassos em seu mercado doméstico.

Desse modo, atrair investimentos chineses e elevar as exportações para a China podem ser dois itens importantes que o Brasil e os demais países emer-gentes precisam considerar seriamente. Além disso, os projetos chineses, rela-cionados com o fortalecimento da agricultura, novo padrão de desenvolvimen-to, economia de energia, redução das emissões, proteção ambiental, bem-estar social e desenvolvimento cultural, abrem inúmeras oportunidades que todos os países, especialmente os países em desenvolvimento, podem aproveitar com vantagens. O que os obriga a conhecer melhor o que a China pretende de fato realizar nos próximos anos.

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O desenvolvimento mais rápido da indústria e dos centros urbanos chi-neses, a partir de 1984, acelerou o tradicional desequilíbrio entre o valor dos produtos industriais e o valor dos produtos agrícolas, entre as rendas urbanas e rurais, e entre as regiões predominantemente agrícolas e as regiões predominan-temente urbanas, além de pressionar as áreas agrícolas por mais terras, requeri-das pelas novas zonas de desenvolvimento econômico.

Num país em que a terra agricultável não chega a 12% da superfície total, e em que mais de 60% da população ativa ainda é composta por camponeses, a continuidade desses desequilíbrios tende a criar um ambiente perigoso para o desenvolvimento do país. Na década de 1990, as medidas adotadas para corrigir aquelas distorções foram insuficientes. Multiplicaram-se os conflitos rurais lo-calizados, sejam relacionados com o uso do solo e das águas, sejam relacionados com os impostos e taxas rurais.

A questão agrária tornou-se, talvez, a mais séria. A expansão urbana fez as terras rurais convidativas, levando muitos governos locais a expropriá-las, para resolver seus problemas orçamentários e promover o desenvolvimento urbano. Porém, ao aproveitar-se do sistema coletivo de aldeia, que proíbe aos lavradores possuírem, comprarem ou venderem o solo que lavram, esses governos pagaram aos camponeses compensações miseráveis, excluíram parcelas camponesas dos ganhos do desenvolvimento, e causaram danos à produção agrícola.

Uma série de camponeses se organizou para contrapor-se às expropriações, em alguns casos resultando em verdadeiras batalhas campais com os funcioná-rios locais. Vários procuraram atalhos no mercado, transformando-se em “al-deões urbanos”. Passaram a arrendar o solo, para evitar perdas e obter lucros nas transações com as terras. Outros foram mais longe, tomando a liberdade de

Desafios rurais

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vender a terra diretamente aos construtores. Desse modo, trocaram o solo por uma renda supostamente superior à que obteriam, se a terra fosse requisitada pelo governo.

Esses procedimentos têm causado constrangimento aos governos locais, ao mesmo tempo em que encontram oposição dos governos provinciais e central. Eles estão gerando caos no mercado imobiliário, criando uma situação amea-çadora sobre o uso do solo na China, e espraiando um desequilíbrio social pro-fundo. Enquanto algumas aldeias procuram resolver a situação estabelecendo contratos de aluguel em uso perpétuo com os camponeses, muitos destes se em-pobrecem, ao transformar-se em comerciantes de terras, e acabam engrossando o êxodo para as áreas urbanas.

Nessas condições, o desenvolvimento global do país, espraiando a urba-nização às zonas rurais, acompanhada de um desenvolvimento mais lento da agricultura, num sistema que combina planejamento e propriedade estatal com mecanismos de mercado e propriedade privada, fez surgir uma nova questão agrária e uma nova questão camponesa na China.

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A questão agrária na China assumiu proporções que passaram a afetar não apenas os funcionários locais, agentes imobiliários, e camponeses que utilizam sua força de trabalho para retirar da terra seu sustento, mas também o conjunto do país.

É verdade que, inicialmente, os governos locais desempenharam papel im-portante nos casos de disputas fundiárias. Funcionários de diferentes níveis se envolveram nas transações de compra e venda de terras, muitos deles aproprian-do-se ilegalmente de fazendas coletivas, distribuindo seu solo para uso não-agrí-cola, e realizando negociatas com companhias imobiliárias.

Em muitos casos, havia apenas a ânsia dos governos locais em realizarem o crescimento econômico e elevarem a renda fiscal. Para estimular o crescimento, acharam que o caminho mais facial seria arrancar as parcelas dos camponeses, de modo a atrair investimentos para a construção civil das cidades e para a im-plantação de novas zonas ou áreas industriais. E, para elevar a renda fiscal, como resposta às exigências da reforma tributária dos anos 1990, consideraram que o re-direcionamento das terras agrícolas, para projetos que gerassem mais taxas e receitas, seria o caminho mais adequado.

Essa obsessão dos governos locais abriu as comportas para a ação dos cons-trutores civis, muitos dos quais receberam delegação para construírem moradias e prédios industriais e comerciais. É verdade que, com isso, criaram empregos e estimularam a economia, canalizando recursos para os cofres das prefeituras. Entretanto, ao entrar em parceria com os construtores civis, muitos funcioná-rios corruptos enriqueceram a si próprios.

Esse ataque sobre as terras agrícolas ocorreu, em grande parte, porque os direitos de propriedade da terra na China tornaram-se obscuros, com a adoção

A nova questão agrária

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da economia de mercado. Legalmente, a terra pertence à nação, sendo gerencia-da pelo governo central, através de seus funcionários. Porém, não existe qual-quer regulamentação legal a respeito, e não é fácil aos funcionários do governo central responderem prontamente, quando alertados de práticas suspeitas.

Desse modo, no início do século 21, os governos locais haviam se tornado beneficiários, em larga escala, da apropriação de terras para a construção de pré-dios e de fábricas. Por outro lado, alguns milhões de camponeses se tornaram sem-terra, sendo esta a causa principal dos distúrbios que se espraiaram pelas zonas rurais e deixaram alarmado o governo central.

Alem disso, cresceu a preocupação sobre a habilidade da China alimentar a si própria, se suas escassas terras aráveis forem reduzidas ainda mais. Nessas condições, um novo e forte ajuste, ou mesmo uma reforma agrária, voltada para aumentar os direitos camponeses e garantir a segurança alimentar da China, tornou-se um dos principais itens da agenda do governo.

10/01/2008

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O governo chinês se deu conta, em 2002, de que estava diante de um qua-dro ameaçador, num grande número de áreas rurais. Não podia ignorar que o campesinato ainda possui grande peso demográfico, social e político. Cerca de 700 milhões de pessoas ainda estão envolvidas com a agricultura na China.

Também não podia esquecer que esse segmento social sempre desempe-nhou papel ativo em todas as mudanças ocorridas na história da China, desde as dinásticas, até a revolução dirigida pelo Partido Comunista. Uma agricultura fraca e um campesinato descontente representariam, certamente, um forte fator de desequilíbrio e uma ameaça à estabilidade social e política.

Diante disso, o governo vem se empenhando, desde 2002, em desatar os diversos nós que o desenvolvimento da economia socialista de mercado impôs ao campesinato e às zonas rurais, especialmente após 1984. Começou esse mo-vimento impondo limites aos governos locais, quanto ao suprimento de terras.

Estipulou leis e políticas severas sobre os direitos de propriedade do solo, estabelecendo uma clara linha de demarcação entre os governos central e local, e instituindo um mecanismo de supervisão que torna mais difícil, a qualquer um que desafie a lei, escapar dela. Como resultado, uma série de funcionários, inclusive graduados, foram punidos. No período de outubro de 2006 a início de 2007, foram 1.500 os punidos por conduta ilegal rela-cionada a acordos sobre terras.

Porém, o Estado chinês não ficou restrito a isso. A decisão de abolir, num prazo de cinco anos, todos os impostos agrícolas, foi executada em três anos. Entre 2002 e 2007, também reduziu, em cerca de 18 bilhões de dólares anuais, os demais encargos que pesavam sobre os camponeses, enquanto elevou os sub-sídios rurais em 225 bilhões de dólares. Nas zonas rurais, está em curso uma

O fundamento da nação

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profunda reforma dos corpos governamentais, e os sistemas de educação, saúde, cultura e infra-estrutura estão sendo universalizados.

Os 150 milhões de estudantes rurais, subordinados à educação obrigatória de nove anos, ficaram isentos de qualquer pagamento, além de receberem gra-tuitamente textos e materiais escolares. E 88 bilhões de dólares foram emprega-dos para implantar os sistemas de Serviço de Saúde Pública, Serviço Médico e de Segurança Médica, Serviço de Controle e Prevenção de Doenças, e Serviço de Atendimento Médico de Urgência, através de um novo sistema cooperativo de cuidado médico rural, que já abrange 86% dos residentes de todos os can-tões, somando 730 milhões de pessoas.

O governo suspendeu, ainda, o controle governamental sobre a com-pra de grãos, e reformou o sistema de direitos das cooperativas e empresas estatais rurais sobre as florestas. Em outras palavras, o que o atual governo está realizando é um poderoso ajuste nas áreas rurais, com prioridade para as questões sociais, na compreensão de que o campesinato e a agricultura são “o fundamento da nação”.

26/04/2008

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Socialismo Chinês 215 |

Alguns dos problemas ambientais da China são de muitos séculos atrás, como as enchentes, secas, derrubada de florestas, desertificação de solos e ausên-cia de saneamento. Outros, como a poluição atmosférica por gases de enxofre e carbono, provenientes da queima de carvão, são de dois séculos, pelo menos. E, desde meados do século 20, quando intensificou sua industrialização, a China também passou a conviver com a poluição das indústrias metalúrgicas, quími-cas, de materiais de construção, de eletricidade, farmacêuticas e de mineração.

Todos esses problemas foram agravados pelo desenvolvimento industrial acelerado do país, durante os recentes 24 anos. Fenômenos como as chuvas áci-das, eclosão de algas, doenças respiratórias, esterilização de solos e águas, mon-tanhas de resíduos sem reciclagem e outros, tornaram-se um tormento para as populações de muitas cidades e regiões. O fato de que mais de 70% da matriz energética tinha como fonte o carvão, criou uma situação ecológica que parecia insuperável.

Para tentar reverter esse quadro, desde 2003 as autoridades chinesas inten-sificaram a pressão para que as províncias, municipalidades, distritos, cantões e povoados se tornassem “ecologicamente saudáveis”. Estabeleceram metas, que abrangiam indicadores como cobertura florestal, proteção de espécies, qualida-de do ar, qualidade da água, emissão de poluentes, reabilitação de solos degra-dados, PIB per capita, renda dos camponeses, e desenvolvimento da agricultura e das zonas rurais

Apesar disso, até 2007, nenhuma província, municipalidade e região autônoma havia alcançado aquelas metas. De todas as províncias, apenas seis haviam elaborado uma lista preparatória de medidas para execução. E so-mente alguns cantões, incluindo Zhanjiangang, um novo porto em Jiangsu,

Problemas ambientais

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e Minhang, um distrito suburbano industrial de Shanghai, haviam atendido a todos os critérios.

Por outro lado, esses esforços levaram as autoridades chinesas a fechar, nes-se período, usinas térmicas obsoletas com capacidade de 21 GW (algo em torno de um quinto da potência instalada do Brasil), usinas siderúrgicas altamente poluidoras, com capacidade de 37 milhões de toneladas (a mesma capacidade total instalada do Brasil), mais de 11 mil pequenas minas de carvão, que produ-ziam 46 milhões de toneladas, e fábricas de cimento, produtoras de 87 milhões de toneladas.

A China também ampliou a participação das hidrelétricas, das usinas eó-licas e da energia solar em sua matriz da energia elétrica, criou a tecnologia do carvão líquido e gaseificado, livre de enxofre, recuperou 34 milhões de hectares de pastos degradados, e reflorestou 31 milhões de hectares.

Ou seja, embora tenha realizado um esforço considerável para superar seus problemas ambientais, tal esforço mostrou que a meta de transformar a China num país “ecologicamente saudável” demanda muito mais.

20/04/2008

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No curso da elaboração do seu 11º Plano Qüinqüenal, que vai de 2006 a 2010, a China decidiu não só realizar um censo ambiental mais completo, mas também estabelecer novos critérios para a definição das localidades “ecologica-mente saudáveis”.

O censo ambiental tem como foco principal os ramos industriais, agrí-colas e de serviços mais poluidores, a exemplo da metalurgia, química, mine-ração, eletricidade, cimento, papel, suinocultura, pecuária bovina, hotelaria e restaurantes, pretendendo ter dados mais precisos sobre os pontos que devem ser atacados, para preservar o meio ambiente e recuperar as áreas e setores degradados.

Paralelamente, o governo chinês determinou mudanças nas metas ambien-tais, para todos os níveis político-administrativos, das províncias aos povoados e aldeias. A economia de energia e a redução da emissão de gases passaram a ser metas obrigatórias. As instalações obsoletas de geração elétrica, produção de aço, cimento, mineração, principalmente de carvão, e de papel e celulose, continuarão sendo fechadas. Os novos projetos industriais devem ter como foco principal a conservação de energia e a emissão zero de gases poluentes. As 36 principais cidades do país devem ter uma taxa de 100% de tratamento de águas e esgotos, até 2010.

Enquanto continua elevando a participação de usinas hidrelétricas, nucle-ares, eólicas e solares na matriz energética, a China também projeta substituir paulatinamente suas antigas usinas térmicas a carvão por novas usinas, cuja fon-te seja o carvão líquido e gaseificado limpo e, em parte, por usinas movidas a gás metano. A busca de fontes alternativas e limpas de energia ocupa posição de destaque nas pesquisas científicas e tecnológicas.

Metas ambientais

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Além disso, o novo Ministério de Meio Ambiente, que substituiu a Ad-ministração Nacional de Proteção Ambiental, introduziu modificações nos cri-térios que permitiam às localidades serem consideradas “ecologicamente sau-dáveis”. Manteve como indicadores a cobertura florestal, proteção de espécies, qualidade do ar, qualidade da água, emissão de poluentes, reabilitação de solos degradados, renda dos camponeses e desenvolvimento da agricultura e das zonas rurais. Mas retirou o PIB per capita, procurando dar maior ênfase ao equilíbrio entre o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável.

É lógico que ainda é cedo para dizer se a China conseguirá compatibili-zar seus limites ambientais com seu forte desenvolvimento econômico e social. Mas, como praticamente ninguém acreditava, nos anos 1980, que suas reformas a fizessem crescer como cresceu, o mais sensato será aguardar, antes de dizer que tais planos e orientações ambientais não passam de um sonho de verão.

26/04/2008

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A questão energética é, fora de dúvida, uma das mais complexas enfrenta-das pelo desenvolvimento chinês. Primeiro, porque o crescimento econômico e social acelerado requer uma infra-estrutura energética compatível. Segundo, porque a principal fonte de energia da China é o carvão. Terceiro, porque a construção de instalações de geração elétrica de fontes mais limpas, como a hi-dráulica, a eólica e a nuclear, exigem altos investimentos e têm maturação lenta. Quarto, porque a China ainda não é auto-suficiente em petróleo e gás. Quinto, porque o país possui condições de solo que não lhe permitem desenvolver a plantação de espécies próprias para a produção de biocombustíveis sem afetar, de algum modo, a produção agrícola de alimentos.

O crescimento econômico, mais rápido do que o crescimento da infra-es-trutura energética de eletricidade, fez com que a China sofresse racionamentos e apagões elétricos, entre 1999 e 2003. Isto levou muitos governos locais a apela-rem para o uso de grupos geradores a óleo cru, ou a diesel, criando um mercado, paralelo e ilegal, de energia elétrica, altamente poluidor.

Após 2002, começaram a entrar em operação os projetos hidrelétricos, em construção desde meados dos anos 1990. Entre aquele ano e 2007, a China adicionou 350 GW de energia a seu potencial elétrico, somando 710 GW de potencia instalada, com um excedente momentâneo de energia.

Isso lhe permitiu retirar de circulação, no mesmo período, 21 GW de usi-nas geradoras obsoletas e poluentes, reduzir de 74% para 63% a participação do carvão na matriz da energia elétrica, e elevar de 2% para 20% a participação dos recursos hídricos, de 1% para 6% a participação da energia nuclear, de 1% para 4% a participação das eólicas, e de 1% para 3% a participação da energia solar. Até 2015, a China deve acrescentar outros 300 a 500 GW em sua matriz

Questões energéticas

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de energia elétrica, com base em novas hidrelétricas, usinas nucleares, fazendas eólicas e usinas térmicas com carvão líquido.

De qualquer modo, se a China quiser combinar seu desenvolvimento de energia elétrica com a conservação ambiental, ela terá não só que racionalizar e economizar o uso da eletricidade, mas também reduzir radicalmente o número das usinas térmicas a carvão que utilizam tecnologias antigas e poluidoras. Neste caso, estamos falando na remodelação de cerca de 450 GW de potencia instala-da, o que não poderá ser realizado em curto prazo.

Além disso, a participação do petróleo, do gás e do carvão na matriz ener-gética chinesa leva em conta as necessidades de outros setores econômicos al-tamente poluentes, como os meios de transporte, siderúrgicas e fábricas de ci-mento, para ficar apenas nas principais. A China produz, anualmente, mais de 8 milhões de veículos automotores, 6 milhões de tratores, 422 milhões de toneladas de aço e 1,2 bilhão de toneladas de cimento.

Nessas condições, os esforços para reduzir a emissão de gases poluentes demandarão inovações e mudanças tecnológicas profundas nos sistemas produ-tivos e na busca de novas fontes energéticas limpas.

28/04/2008

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Hoje não há praticamente ninguém que duvide que a China deu um salto em seu desenvolvimento econômico. Isto é evidente demais para ser ignorado. Mas há muita gente que ainda ignora o salto social dado por esse país, em ter-mos de acesso à renda, bens, educação, saúde e cultura.

Além disso, há uma imensa nebulosidade sobre o aprofundamento da de-mocracia econômica, social e política entre os chineses. Só como exemplo, não são poucas as pessoas bem informadas que continuam dizendo que a China é um país de partido único, apesar da existência legal e real de outros oito parti-dos, além do Partido Comunista.

Mais nebulosa ainda, para muitos, é a natureza do sistema econômico, social e político chinês. Há os que, na direita e na esquerda, afirmem categorica-mente que a China adotou o capitalismo selvagem. Como há os que classificam a sociedade chinesa como capitalismo de Estado. Há, ainda, os que, como os próprios chineses, acreditam que na China vigora um socialismo de mercado, com características nacionais.

Por outro lado, entre os que se proclamam marxistas, há muitos que su-põem que a primazia das forças produtivas, como elemento fundamental para a transformação das relações de propriedade ou produção, é uma teoria que dis-torce o marxismo. Para eles, a primazia deveria ser a construção de um homem novo e de uma sociedade civil socialista, através do processo de luta, como base material de todas as transformações. Nesse sentido, a experiência chinesa não pode sequer ser considerada.

Há também aqueles que consideram a experiência chinesa no contexto das necessidades do capitalismo mundial, e seu socialismo como um apên-dice dessas necessidades. Sonham, então, com a resistência dos camponeses chineses, para evitar que a China caia totalmente sob a tutela capitalista.

Teorias sobre o socialismo chinês

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E há os que consideram a experiência chinesa como parte do movimento oriental de desenvolvimento capitalista, sob uma forma diferente do desenvolvi-mento capitalista ocidental. Ao contrário deste, que tomaria as máquinas, ou o capital constante, como aspecto fundamental, desprezando a força de trabalho, o capitalismo oriental focaria com mais atenção os recursos humanos. A China, da mesma forma que o Japão e outros países asiáticos, estaria seguindo esse novo modelo de capitalismo, mais de acordo com as teses de Adam Smith do que com as teses liberais e neoliberais, e marxistas.

Assim, não faltam teorias sobre os motivos que levaram a China a tor-nar-se, em pouco tempo, uma das principais potências mundiais. O problema consiste em destrinchá-las.

06/07/2008

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Qual das teorias sobre a China se aproxima da verdade? Capitalismo selva-gem? Capitalismo de Estado? Socialismo de mercado? Apêndice das necessida-des do capitalismo global? Modelo capitalista oriental? E o que tem a primazia das forças produtivas a ver com a China e o socialismo? Nenhuma dessas ques-tões pode ser respondida sem uma compreensão razoável sobre a história e sobre o processo interno de desenvolvimento do capital.

Do ponto de vista histórico, está em voga a teoria de que o capital existe desde o momento em que ocorreu uma forte acumulação financeira, em algu-mas regiões do mundo. O capital seria dinheiro em processo de acumulação, pouco interessando saber se a forma utilizada foi o comércio, as pilhagens, a especulação, a indústria etc.

Tal acumulação financeira ocorreu durante o mercantilismo, em algu-mas regiões da Europa e na China, a partir do século 11. A luta entre os mercadores e os feudais tornou-se intensa nessas regiões. Nos reinos em que a monarquia se aliou aos mercadores, estes submeteram os feudais e se joga-ram nas conquistas marítimas.

Na China, os mercadores haviam alcançado a Índia e a África antes dos eu-ropeus, com navios maiores e mais modernos. Porém, ao invés de submeterem os feudais, por meio da aliança com a monarquia, viram os Ming dividir-se em meio às disputas internas, e serem derrotados pelos feudais manchús, que impu-seram seu domínio e impediram a China de participar do mercantilismo.

Do ponto de vista histórico, o dinheiro poderia dar surgimento ao capital em qualquer lugar onde tivesse sido acumulado pelo mercantilismo. Mas a condição para isso era a existência de grandes massas desprovidas de meios de produção e de vida. O capital só se desenvolve onde é possível unir o di-

Teorias sobre capitalismo e socialismo

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nheiro ao trabalho assalariado. Não é por acaso que isso ocorreu primeiro na Inglaterra, onde houve uma intensa expropriação das terras e demais meios de produção dos camponeses, deixando-os livres para serem explorados pelo dinheiro, através do salário.

Marx descobriu que essa transformação se dá no processo da produção.É aí que a força de trabalho se une ao dinheiro para gerar um valor a mais,

ou lucro. Mas essa é uma unidade de opostos, inclusive entre os capitalistas. Estes, para sobreviver, têm que elevar a participação das máquinas e técnicas na produção, e reduzir a participação dos trabalhadores.

Deixado ao arbítrio de seu desenvolvimento interno (o que muitos cha-mam mercado), o capital tende a desenvolver-se até ao ponto em que não pre-cise mais do trabalho humano. Do ponto de vista econômico, isto seria seu suicídio, pois não teria como gerar lucros e acumular. Do ponto de vista social, seria uma tragédia completa.

Mas o desenvolvimento do capital não se dá isento das injunções histó-ricas. Ele surgiu primeiro num país, e sua evolução nos demais é muito de-sigual, só aos poucos impondo suas características essenciais. A dialética da história é diferente da dialética do desenvolvimento interno, com inúmeros momentos em que uma espera a outra para realizar-se, causando transtornos à interpretação dos fatos.

Sem compreendermos isso, fica difícil não só explicar os caminhos dis-torcidos do capitalismo, como os caminhos, talvez ainda mais tortuosos, do socialismo.

13/07/2008

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No estudo do Capital, Marx usou o método dialético como instrumento de dissecação da mercadoria, a célula mais comum, mais simples e universal desse modo de produzir. Descobriu seus pólos contraditórios (valor de uso e valor de troca) e, partindo destas contradições básicas e de seus desdobramen-tos, acabou por descobrir a mais-valia, como a proteína responsável pela vida e reprodução do próprio capital.

Analisando esse processo de reprodução, Marx deduziu que o Capital, à medida que se desenvolve e acumula, tende a gerar uma contradição antagônica entre a apropriação privada dos meios de produção e da riqueza gerada, e as necessidades sociais.

Por um lado, o Capital tende a elevar a um alto grau a capacidade produ-tiva da humanidade. Esta, para chegar ao capitalismo, teve que passar por um longo processo histórico. Criou a propriedade privada dos meios de produção (relações de produção) ao saltar da caça e da coleta para a agricultura. Com isso, transformou os valores de uso em valores de troca (mercadorias) e, aos trancos e barrancos, gerou um vasto conjunto de instrumentos de cálculo desses valores de troca (mercado), implantou a divisão social do trabalho (classes sociais), e criou o Estado (regulador da luta entre as classes).

Deu surgimento ao Capital, saltando da agricultura para a indústria, e al-cançando um alto nível de desenvolvimento. Pela primeira vez, numa história de milênios, a humanidade pode contar com uma capacidade científica, tecno-lógica e produtiva, que satisfaça às necessidades de seus membros.

Porém, ao mesmo tempo, o Capital tende a reduzir sua taxa média de lucro e a aumentar a massa humana desprovida de meios de produção e de condições de trabalho. Concentra e centraliza, num pólo, uma imensa massa de riqueza

Limites do capitalismo

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e poder e, no outro, uma imensa massa pobre e miserável. Do ponto de vista social, cria um absurdo de difícil legitimação. Do ponto de vista econômico, gera uma situação em que não mais haverá condições de reproduzir e acumular novas riquezas. Com isso, o Capital se verá na contingência, ainda por cima, de manter aqueles que antes eram a fonte de produção de sua riqueza, ou a deixá-los morrer na miserabilidade.

Para Marx, seguindo essa dialética de desenvolvimento do Capital, a forma de resolver aquela contradição consiste em transformar a propriedade privada dos meios de produção em propriedade social, reorganizando o trabalho e a dis-tribuição da riqueza, de acordo com as necessidades humanas. Os bens seriam apropriados por seu valor de uso, e o mercado, assim como as classes e o Estado, deixariam de ser uma necessidade.

Em outras palavras, segundo a teoria de Marx, é o Capital que cria seus próprios limites e as condições de sua transformação numa sociedade comunis-ta. Mas Marx não considerava que tal transformação pudesse ocorrer esponta-neamente. Com base na história das sociedades humanas, desde que surgiram no palco da história, Marx também deduziu que a transformação de um tipo de sociedade, ou de uma formação econômico-social em outra, só se dava através da luta entre as classes que a compunham.

Desse modo, a transformação do capitalismo em comunismo também só poderia ocorrer através da luta, econômica, social e política, entre as classes que compõem a sociedade capitalista. Não por acaso, ele deduziu que revoluções comunistas só poderiam acontecer em países capitalistas desenvolvidos.

13/07/2008

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Marx afirmou que a sociedade socialista, que nasce do capitalismo, surge marcada “tanto economicamente, quanto moral e intelectualmente, pela velha sociedade”. Há, então, quem interprete isso como uma lei geral. Toda nova sociedade nasceria, necessariamente, “defeituosa”. Algo como dizer que uma criança, geneticamente marcada pelos pais, nasceu “defeituosa” por apresentar traços dos dois, ou de pelo menos um deles.

Esse conceito de “sociedade defeituosa” é uma aberração. Procura demonstrar que o socialismo só se desenvolve quando se livra, antecipadamente, dos “defeitos” do capitalismo. Esquece que, sem os “defeitos” da propriedade privada, do mercado, do Estado, da guerra, da exploração do homem pelo ho-mem, da predação da natureza etc etc, o capitalismo não teria se desenvolvido e criado as condições para o surgimento do socialismo.

Na verdade, alguns desses “defeitos” surgiram como qualidades, no alvorecer da sociedade humana. Foram tais contradições que levaram à superação de um tipo de sociedade por outro tipo, com novos “defeitos” e qualidades, até chegar ao capitalismo. Este, ao desenvolver ao máximo as forças produtivas sociais, apresenta a possibilidade de superar os principais “defeitos” que conduziram a humanidade a seu presente estágio. Porém, a nova sociedade daí surgida, caso se efetive, não só não será o ponto final de todos os “defeitos”, como dará sur-gimento a novos.

A história das sociedades humanas mostra que uma nova sociedade, capaz de superar a anterior, só se desenvolve como contradição dessa mesma sociedade. Ela só desabrocha se a sociedade que lhe deu origem criou, ao mesmo tempo, as condições materiais para ser superada. Em outras palavras, a nova sociedade é fruto das qualidades e “defeitos” da anterior, nasce com

Marx em Beijing

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228 China - Desfazendo Mitos|

boa parte deles, e se desenvolve depois, criando novos “defeitos”, a serem historicamente superados.

O escravismo só surgiu quando a sociedade comunitária sem classes criou a agricultura e o artesanato, produziu excedentes e iniciou as trocas, necessitando de mais força de trabalho do que possuía. O feudalismo só surgiu quando o escravismo atingiu seu auge, e as disputas pelas riquezas geradas conduziram os homens a sistemas de proteção das terras e da força de trabalho.

E o capitalismo só desabrochou quando algumas sociedades feudais tiveram que buscar riquezas fora de suas fronteiras e, ao mesmo tempo, expropriar os camponeses de seus meios de produção, em especial a terra, “libertando-os” para vender sua força de trabalho a quem tivesse dinheiro para pagar. Cada uma dessas sociedades criou as classes e os homens capazes de transformá-las. Mas essas classes e homens foram superados pelas novas classes e novos homens que a nova sociedade forjou.

Portanto, a sociedade socialista só pode desenvolver-se se a sociedade capitalista tiver desenvolvido suas forças produtivas materiais a um ponto tal, que seja possível eliminar a necessidade de empregar cada um segundo suas habilidades e pagar, a cada um, segundo seu trabalho, substituindo-a pela possibilidade de aproveitar de cada um segundo suas habilidades, e fornecer, a cada um, os meios de vida necessitados.

Quem não entender isso, certamente não poderá enxergar Marx em Bei-jing, com todas as contradições que vislumbrou no desenvolvimento do capita-lismo e do socialismo.

19/08/2008

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A China no Mundo

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Entre os séculos 21 AC e 10 DC a China viveu praticamente em torno de suas relações internas e com os vizinhos mais próximos, em especial os reinos nômades do norte, considerados bárbaros. Foi a partir do domínio mongol (di-nastia Yuan, até 1368) que a China iniciou um lento processo de expansão de suas relações internacionais, especialmente através de suas rotas terrestres, com o mundo árabe e europeu.

A dinastia Ming (1368/1644) parecia destinada a levar essa expansão muito além dos limites anteriores. Os avanços técnicos de suas embarcações (leme, ve-las triangulares, grandes estruturas) permitiram que suas frotas iniciassem gran-des navegações no rumo oeste, através do Pacífico Sul e do Índico, ampliando o comércio com a Índia, a costa ocidental africana e a península arábica. É no curso dessa expansão que a dinastia Ming procura se apossar mais uma vez da península vietnamita, vendo, porém, frustrada sua tentativa.

Essa expansão é acompanhada de uma intensa e crescente disputa entre a nascente classe dos mercadores e os senhores feudais, que leva a uma forte cisão dinástica, à proibição das grandes navegações, à destruição da frota ma-rítima e ao progressivo enfraquecimento da dinastia reinante. Além de não participar da expansão marítima que ocorre nesse período, embora estivesse melhor aparelhada para fazê-lo, a dinastia Ming vê-se acossada pela invasão do pequeno reino feudal manchu, aliado a uma parte de sua própria nobre-za. A derrota Ming e o domínio manchu resultam na instalação da dinastia Qing (1644/1911).

O sucesso Qing é o sucesso dos senhores feudais chineses, com o estabe-lecimento de uma monarquia absolutista, de alto grau de autarquia produti-va. O único porto que permanece aberto para contatos com os estrangeiros

Um pouco de história

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232 China - Desfazendo Mitos|

é o de Cantão (Guangzhou). Os imperadores Qing se recusam permanen-temente a receber os enviados “bárbaros” do oeste, e a manter relações com outros países.

Fechada sobre si mesmo, a China não participa nem acompanha as mu-danças técnicas, econômicas, sociais e políticas que ocorrem no resto do mun-do, perde muitas de suas próprias conquistas tecnológicas do passado, e fica despreparada para enfrentar a segunda onda de expansão colonial, no século 19, comandado pelas potências industriais.

A China diante do imperialismo europeu

Assim, quando a Grã-Bretanha aproveita-se da proibição do comércio do ópio em Cantão e inicia a sua primeira Guerra do Ópio, em 1840, a dinas-tia Qing não consegue resistir às tropas britânicas e indianas, se vê obrigada a pagar pesadas indenizações e fazer concessões territoriais e econômicas ao império inglês.

Nos setenta anos seguintes, a China foi abalada por constantes agressões de outras potências imperialistas, sendo sempre obrigada a assinar tratados desi-guais e a realizar progressivas concessões econômicas, territoriais e políticas, que a transformaram numa semi-colônia.

Aparentemente soberana, mas com uma dinastia reinante totalmente depen-dente das potências imperialistas, além de pagar as indenizações exigidas por essas potências, a China foi retalhada em zonas de influência, concessões territoriais e alfândegas administradas por outros países, e foi proibida de julgar os crimes praticados por estrangeiros em seu território (direito de extra-territorialidade).

Transformou-se, assim, numa fonte de matérias-primas agrícolas e mi-nerais para as potências industriais e um mercado cativo para produtos dessas potências.

Embora fosse vantajosa para as potências imperialistas a manutenção da di-nastia Qing subalterna, a situação humilhante a que elas submeteram a China, e o aumento da carga de exploração que impuseram aos camponeses, fez brotar diferentes formas de resistência, tanto ao duplo domínio estrangeiro sobre o país (o domínio manchu, da dinastia Qing, e o domínio imperialista), quanto ao domínio e à exploração dos feudais sobre os camponeses.

Os camponeses foram responsáveis por inúmeras insurreições e por duas grandes sublevações (Taiping e Boxers), enquanto outros atores sociais apareci-dos com a implantação de elementos capitalistas na China (estudantes, operá-rios, assalariados diversos) desenvolveram o nacionalismo.

Os Taiping (1864) representaram a ruptura do contrato celestial dinástico. E a dinastia Qing só se manteve ainda por quase meio século, porque foi ampa-

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A China no Mundo 233 |

rada pelos países imperialistas, e pelo direito dado aos senhores feudais chineses, para armarem exércitos próprios, capazes de sufocar as rebeliões camponesas e o banditismo que se espalhou pelas zonas rurais. Em outras palavras, amparada pelas tropas imperiais e estrangeiras, e pelas tropas dos que ficaram conhecidos como senhores de guerra.

Apesar disso, a monarquia estava com seus dias contados e não suportou as revoltas que conduziram à proclamação da república, em 1911.

As vicissitudes da República China

Com base em seus três princípios do povo - fim do domínio manchu, democracia e bem estar para o povo - o Dr. Sun Iatsen fundara o Goumintang (Partido Nacionalista Chinês) e conseguira dirigir a luta contra a dinastia im-perial, em grande parte porque esta perdera o apoio de importantes senhores de guerra.

O Dr. Sun Iatsen foi eleito presidente pela nova assembléia nacional, mas teve que renunciar logo depois, em 1912, em virtude das pressões dos senho-res de guerra, principalmente de Yuan Shikai, comandante do Novo Exército do Norte.

A república dos senhores de guerra não resolveu a crise agrária e, na política internacional, manteve a prática das concessões diante das potências imperia-listas. No processo de preparação e desencadeamento da I Guerra Mundial, o governo chinês aliou-se às potências anti-germânicas, o que incluía o Japão, e permitiu que este se assenhoreasse das antigas possessões alemãs (Qingdao e ferrovias da Manchúria).

A aliança chinesa com os ingleses, franceses, e japoneses, incluiu a remessa de operários para os países da Europa, de modo a substituir aqueles que ha-viam sido enviados para as frentes de combate. Além disso, para motivar esses acordos, as potências ocidentais e o governo que substituiu Yuan Shikai, após sua morte, em 1916, levantaram expectativas de que a vitória sobre os alemães possibilitaria a suspensão dos tratados desiguais impostos pelas potências impe-rialistas à China.

Em 1919, durante a Conferência de Versalhes, a delegação chinesa recla-mou o fim dos tratados desiguais, como havia sido prometido pelas potências ocidentais. O Japão, porém, trouxe a público um acordo secreto assinado pelo governo Yuan Shikai, que lhe dava o direito de apossar-se permanentemente das concessões alemães na China. As potências ocidentais, inclusive os Estados Unidos que se batiam por uma China de portas abertas para todos, aceitaram a posição do Japão e frustraram as esperanças da China. Sua delegação retirou-se da Conferência, em protesto.

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234 China - Desfazendo Mitos|

As notícias sobre os resultados da Conferência de Versalhes tiveram uma profunda repercussão em toda a China, desencadeando uma imensa onda de protestos em todas as cidades, a partir do dia 4 de maio de 1919. Conhecida his-toricamente como Movimento 4 de Maio, essa onda de mobilizações populares representou uma inflexão de grandes conseqüências na história chinesa.

Pela primeira vez, marcaram presença na cena política fortes correntes urbanas, estudantis e operárias. O Guomindang foi reorganizado e fundou a República de Cantão. Os grupos marxistas chineses organizaram o Partido Co-munista. E disseminaram-se movimentos camponeses espontâneos pela China.

Ainda como resultado do impulso do Movimento 4 de Maio, o Partido Comunista foi convidado pelo Dr. Sun Iatsen para ingressar no Guomin-dang, participar na organização da Expedição Militar destinada a derrotar os senhores de guerra do Norte, e implantar o poder republicano em todo o país. Na política exterior, nesse momento, o Guomindang estabelece re-lações com o novo poder soviético e proclama sua decisão de se livrar dos tratados desiguais.

A Expedição do Norte, durante a qual morre o Dr. Sun Iatsen, tem como resultado não só a derrota dos principais exércitos do Norte e a implantação do governo do Guomindang em Nanjing. Há também uma profunda reorganiza-ção interna das forças sociais do Guomindang, com o rápido predomínio dos senhores de guerra do sul, tendo à frente Chiang Kaishek. Este redireciona a luta do Guomindang contra os comunistas e os camponeses.

As principais expressões dessas mudanças são o golpe militar de 1927, a perseguição aos comunistas e aos camponeses, assim como a continuidade da política de concessões às potências imperialistas. Isto, num momento mundial em que os tratados da Conferência de Versalhes, e os posteriores acordos re-gendo as relações internacionais, ingressam em processo de esgarçamento, já delineando novos conflitos inter-imperialistas pela redivisão do mundo.

A ascensão do fascismo na Itália, no Japão e na Alemanha são os sinais de um novo ordenamento nas alianças imperialistas, embora elas se apresentem como contrárias à União Soviética e ao bolchevismo. E o toque de ataque do novo conflito mundial foi anunciado justamente com a ocupação japonesa da Manchúria, em 1931, e a instalação do governo títere Manchuquo.

A passividade do Guomindang diante da agressão nipônica representou não só a evidência de que Chiang Kaishek estava disposto a manter a política de colaboração e concessões frente às potências imperialistas, como sua decisão de tomar como inimigo principal os comunistas.

Apesar disso, o Partido Comunista propôs ao Guomindang uma alian-ça contra a invasão japonesa, alertando que a ocupação da Manchúria era apenas o primeiro passo para a invasão e ocupação de toda a China. Frente

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a isso, o PC insistia que os dois partidos deveriam colocar de lado suas di-vergências, suspender a guerra civil e estabelecer uma frente única contra a invasão japonesa.

A proposta do PC foi rechaçada e acompanhada, entre 1931 e 1935, de cinco campanhas das tropas do exército nacional chinês, de cerco e aniquila-mento contra as bases centrais e o Exército Vermelho dos comunistas. Na quin-ta campanha, as tropas do Guomindang infligiram uma séria derrota ao Exér-cito Vermelho, obrigando-o a iniciar uma retirada de suas bases no sul, para as bases no norte. Durante essa retirada ocorreu a troca de comando no PC e no Exército Vermelho, com Mao Zedong assumindo a direção do PC, e Zhu De assumindo o comando do exército.

No entanto, tanto do ponto de vista da política nacional, quanto da políti-ca internacional, o aspecto mais importante dessa retirada foi sua transformação em Grande Marcha para enfrentar os invasores japoneses nas linhas de frente do norte. Essa transformação de uma retirada militar em uma ofensiva política teve grande influência nas divergências presentes no próprio Guomindang, a respeito do que fazer com as ameaças japonesas.

Desde 1931, desenvolviam-se dentro do Gomindang quatro linhas dife-rentes de como tratar o Japão. Uma delas, pró-japonesa, propunha que o go-verno chinês fizesse um acordo com o Japão, entregando-lhe definitivamente a Manchúria, em troca de um acordo de não-agressão. Uma segunda propunha que a China realizasse uma resistência passiva aos ataques japoneses. Outra pro-pugnava uma resistência ativa, sem os comunistas. E a quarta queria um acordo com os comunistas, para uma resistência ativa conjunta.

Os exércitos da frente norte, que enfrentavam diretamente as incursões ja-poneses, negavam-se a ter os comunistas como principais inimigos e, por várias ocasiões, concertaram ações conjuntas contra as tropas nipônicas. Em 1935-36, elas negaram-se a realizar ações firmes para impedir que as tropas do exército vermelho, em retirada, alcançassem as bases de Shaanxi e Shanxi, onde preten-diam estabelecer sua nova base central.

Diante disso, Chiang Kaishek decidiu deslocar-se a Xian, capital de Sha-anxi, para disciplinar os comandantes de suas tropas, e forçá-los a tomar os co-munistas como inimigos principais. No que ficou conhecido na história chinesa como Incidente de Xian, ao invés de disciplinar aqueles comandantes, Chiang Kaishek é quem foi preso por eles.

A corrente mais decidida a enfrentar o Japão estava disposta a fuzilar Chiang sob a acusação de traição nacional. A corrente pró-japonesa tam-bém alimentava essa tendência, na certeza de que a morte de Chiang criaria obstáculos intransponíveis para a aliança nacional contra o Japão. Os co-munistas eram de opinião que a morte de Chiang seria um fator negativo

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para o estabelecimento de uma frente única anti-nipônica e trabalharam ativamente, embora de forma secreta, para obter um acordo de Chiang com seus comandantes.

O Acordo de Resistência para a Guerra contra o Japão

Apesar de relutar, Chiang acabou aceitando fazer o acordo de resistência ativa com os comunistas. Por esse acordo, a guerra civil seria suspensa e todos os esforços seriam dirigidos para resistir à agressão japonesa. Os destacamentos do exército vermelho passariam a ser parte do exército nacional chinês, agrupados como 8º Exército da Rota e 4º Novo Exército, obedecendo à estratégia geral emanada do estado-maior do exército nacional, mas com comando próprio e certa autonomia. O Partido Comunista seria aceito como participante ativo da vida nacional, tendo um Escritório de Representação na capital.

A execução desse acordo, porém, foi protelada ao máximo. Chiang ainda tinha esperanças de que os japoneses não invadiriam a China, e procurava che-gar a um acordo com eles. Essas manobras foram frustradas pela ofensiva geral das forças nipônicas, em 1937. Chiang teve que transferir a capital chinesa de Nanjing, no centro-leste, para Chongqing, no sudoeste, e dar efeito prático ao acordo de resistência.

A ofensiva japonesa contra a China ocupou rapidamente a maior parte da região litorânea a leste, e chegou a Hong Kong, onde derrotou os britânicos. O avanço das tropas japonesas mostrou que os exércitos do Guomindang não estavam preparados para enfrentar o Japão, e que a ocupação da China era, na verdade, parte da preparação nipônica para sua disputa pelo domínio mundial.

Em certa medida, a invasão da China inaugurou a Segunda Guerra Mun-dial. Internamente, a ocupação japonesa aguçou a contradição entre colabora-cionistas e resistentes dentro do Guomintang, o que ficou evidenciado com a adesão de uma parcela significativa dos membros do Comitê Central daquele partido ao governo títere organizado pelos japoneses, e a passagem, para o lado dos japoneses, de mais de cem generais, com suas tropas.

Além disso, o governo Chiang Kaishek estabeleceu uma estratégia de resistência contra o Japão que incluía aceitar os atos de capitulação das tropas chinesas, conservar os exércitos nacionais na retaguarda, colocar os exércitos dirigidos pelo PC nas linhas frontais, buscar uma paz em separado com o Ja-pão, provocar incidentes contra os exércitos dirigidos pelos comunistas, man-ter o governo ditatorial, e evitar, por todos os modos, a participação popular na guerra de resistência.

A estratégia do Partido Comunista, ao contrário, incluía assumir resolu-tamente as linhas de frente, não aceitar a paz em separado com o Japão, reali-

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zar alianças com outros imperialismos contra o Japão, estabelecer uma aliança firme com a URSS, ampliar a frente social contra o Japão, incluindo até os latifundiários, ampliar os mecanismos democráticos nas bases rurais, estimular a participação popular na guerra, instituir os 8 pontos de disciplina do exército, contra qualquer agressão aos direitos e à vida do povo, e instituir pontos claros de tratamento dos prisioneiros de guerra japonesas, de modo a tratá-los com humanidade e quebrar a moral arrogante do exército nipônico.

O resultado dessas estratégias tão dispares foi o fortalecimento do Partido Comunista durante a guerra (ao invés do que pretendia Chiang), a identificação dos comunistas como a força motriz da resistência nacional (inclusive pelos oficiais norte-americanos de ligação com o teatro de guerra chinês), a vitória nacional contra o Japão, e a derrota da tentativa de Chiang Kaishek de vencer uma nova guerra civil. Isto, mesmo com certa neutralidade da União Soviética e com a cooperação estratégica das forças militares dos EUA ao Guomindang.

Em 1947, as conversações de paz entre as forças políticas internas da China são rompidas, e os exércitos do Guomindang lançam-se em ofensiva contra os exércitos comunistas, que passa a ser chamado de EPL – Exército Popular de Libertação. No final de 1949, as tropas do Guomindang são completamente derrotadas. A vitória do PC e de seus aliados é declarada em outubro da 1949, com o surgimento da República Popular da China.

A China e a Guerra Fria

Quando a República Popular da China foi fundada, em 1949, a Guerra Fria opondo Estados Unidos e União Soviética já estava em curso, impondo sua bipolaridade mundial. Isso teve como conseqüência, para o novo governo chinês, um bloqueio geral, diplomático, econômico, político e militar das po-tências ocidentais, comandadas pelos Estados Unidos, contra a China.

A maior parte dos países europeus e latino-americanos, assim como um razoável número de países asiáticos e africanos, recusou-se a reconhecer o novo governo chinês, a manter relações diplomáticas com a China continental e, mesmo, a negociar comercialmente com ela. Para muitos desses países, o go-verno de Chiang Kaishek, refugiado em Taiwan, sob a proteção da 7ª Frota dos EUA, continuava representando a China, inclusive na ONU e em seu Conselho de Segurança.

Por seu turno, desde então, o novo governo dirigido pelo Partido Co-munista negou-se a estabelecer relações diplomáticas com qualquer país que continuasse mantendo relações diplomáticas com Taiwan. O reconhecimen-to da China como um só país, com sua capital em Beijing, tornou-se a pe-dra-de-toque das relações internacionais da República Popular. Nessas con-

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dições, as relações diplomáticas da China Popular ficaram restritas aos países socialistas da Europa Oriental e a uma série de novos países independentes da Ásia e da África.

É nesse contexto, de princípio da Guerra Fria, bloqueio político, econô-mico e militar dos EUA, e disposição do Guomindang de retomar a contra-ofensiva militar, com suas tropas aquarteladas em Taiwan, que deve ser visto o desencadeamento da guerra da Coréia, já em 1950.

A Coréia do Norte respondeu às provocações de fronteira, realizadas por tropas da Coréia do Sul logo após a visita do secretário de Estado norte-ame-ricano Foster Dulles, e passou à ofensiva, procurando realizar a unificação por meios militares. Diante do perigo da derrota das tropas sul-coreanas, os EUA decidiram intervir, aprovando uma decisão na ONU para o envio de forças militares, sob seu comando. Quatorze países enviaram tropas, mas o grosso do poderio norte-americano foi jogado no conflito, conseguindo empurrar as tro-pas norte-coreanas no rumo do rio Yalu, que marca a fronteira com a China.

O novo governo chinês enxergou nessa ofensiva um perigo de invasão do território chinês e organizou rapidamente um corpo de voluntários, sob o co-mando do general Peng Dehuai. Os dois anos posteriores da guerra da Coréia foram de ofensivas e contra-ofensivas dos dois lados em conflito, sem que ne-nhum conseguisse a supremacia decisiva.

Embora a guerra estivesse representando um enorme ônus econômico, fi-nanceiro e militar para o novo regime chinês, nada indicava que ele estivesse sendo enfraquecido politicamente, o que tornou inviável qualquer contra-ata-que das tropas a partir de Taiwan. Nessas condições, os EUA aceitaram sentar à mesa das negociações, em Panmunjon, que selou a paz, e restabeleceu a antiga fronteira do paralelo 38 entre as duas Coréias.

A nova China realizou, então, um triplo movimento em sua política inter-nacional, tendo ainda por base o princípio de um só país. Por um lado, reforçou seus laços de colaboração com os países socialistas da Europa, estabelecendo vários acordos de cooperação econômica, comercial e militar. Por outro, realizou uma política ativa de aproximação com os novos países independentes da Ásia e da África. Finalmente, manteve abertas as janelas de negociação com os países ocidentais, ao se negar a atacar e tomar Hong Kong e Macau militarmente.

Esta triplo movimento tinha como eixo de ação os cinco princípios de coexistência pacífica, elaborados em conjunto com a Índia, e aprovados na Con-ferência dos Países Não-Alinhados, em Bandung, na Indonésia, em 1954. Os cinco princípios de coexistência pacífica - respeito mútuo pela integridade e soberania, não-agressão, não-interferência nos assuntos internos, igualdade e benefício mútuo, e solução pacífica das controvérsias - tornaram-se a espinha dorsal da política exterior chinesa.

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Eles desempenharam um importante papel, nesse primeiro momento, para abrir frestas no bloqueio norte-americano, assegurar pontos de cooperação em quase todos os continentes, e consolidar paulatinamente a presença da China no cenário internacional. Essa política tinha, como ainda tem, como pressuposto, a necessidade da China conviver, por um longo período, com um ambiente de paz para superar seus problemas históricos internos.

Apesar disso, a China não conseguiu escapar completamente de conflitos externos. Nos anos 1950, foi levada a participar da guerra da Coréia, e mante-ve-se permanentemente tensa com os canhoneios no estreito de Taiwan. Nos anos 1960, teve conflitos de fronteira com a Índia, na região da Caxemira, e foi acusada constantemente de apoiar movimentos guerrilheiros e de libertação nacional na Ásia, África, Oceania e América Latina.

Além disso, teve sempre que responder aos ataques internacionais por sua ação no Tibet. Embora esta região faça parte da China desde o século 13, por acordo matrimonial entre as dinastias reinantes, as potências ocidentais mostraram-se indignadas quando as tropas do Exército Popular chegaram a Lhasa, em 1950, completando sua soberania sobre todo o território chinês, exceto Taiwan.

Divulgaram que o Tibet era uma nação soberana, que havia sido invadida, e tornaram isso um dogma. Assim, quando parte dos feudais tibetanos revol-tou-se, em 1959, contra o início da reforma agrária nessa região, e foi derrotada, retirando-se para a Índia com o Dalai Lama, a questão tibetana tornou-se um dos focos da disputa dos EUA e potencias européias com a China.

O final dos anos 1950 e o início dos anos 1960 assistem também à eclo-são das controvérsias sino-soviéticas, tendo como pontos nodais o apoio aos movimentos de libertação nacional, a transferência da tecnologia nuclear, e as políticas de enfrentamento contra o imperialismo no processo da Guerra Fria. Os soviéticos acusavam os chineses de imporem sua própria política e seus in-teresses estatais aos movimentos de libertação nacional, negaram-se a transferir a tecnologia nuclear para os chineses, e reiteraram que a disputa pacífica com o imperialismo deveria ser a linha geral da luta anti-imperialista.

Os chineses, por seu turno, retrucaram que eram os soviéticos que impu-nham suas políticas aos movimentos de libertação. Relembraram as pressões sovi-éticas para que os próprios comunistas chineses aceitassem as condições impostas por Chiang Kaishek e obtivessem a paz a qualquer custo, entre 1945-47.

Acusaram os soviéticos de responsáveis pelo assassinato de Patrice Lumum-ba, no Congo, ao retirarem seu apoio a ele num momento crítico. E referiram-se a uma série de outros casos em que os movimentos de libertação fracassaram por seguirem a orientação de conselheiros soviéticos. Reiteraram que cada país e cada movimento deveriam seguir sua própria política, sem interferência externa,

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ou ação de conselheiros, o apoio devendo restringir-se a aspectos materiais, sem imposições políticas.

Os chineses também afirmaram que os soviéticos simplesmente romperam o acordo de cooperação nuclear entre os dois países, na pretensão de manterem o monopólio nuclear no campo socialista. E os acusaram de uma dupla face na luta anti-imperialista, por um lado difundindo pelo mundo a possibilidade de todos os países chegarem à libertação pelo caminho pacífico e, por outro, fazendo a corrida armamentista com os EUA, e realizando ações aventureiras e temerárias, que colocavam em risco a paz mundial.

Em consonância com isso, embora tendo os levantes contra os regimes socialistas do Leste Europeu, no final dos anos 1950, como reacionários e in-centivados pelos EUA e outras potências imperialistas, os chineses colocaram-se contra as intervenções militares soviéticas para sufocá-las. Mas adiante, os chi-neses consideram uma aventura injustificável a tentativa de posicionar foguetes balísticos em Cuba.

Mas é durante os anos 1960, quando internamente se encaminha para as turbulências da Revolução Cultural, com os sentimentos e as ações anti-impe-rialistas assumindo o formato de xenofobia, a exemplo dos ataques a embaixa-das estrangeiras em Beijing, que a China introduz mudanças em sua política internacional.

Ela o faz no sentindo de ampliar suas relações diplomáticas e políticas, romper o cordão sanitário anti-comunista imposto pelos EUA, e escapar de qualquer dependência em relação à URSS. Essas mudanças têm por base o diag-nóstico de que o mundo encontrava-se dividido em três: o primeiro mundo, compreendendo as duas superpotências (Estados Unidos e União Soviética), o segundo mundo, compreendendo as potências secundárias da Europa, e o terceiro mundo, englobando os países em desenvolvimento.

A estratégia internacional da China pós 1960

A nova estratégia internacional da China manteve o princípio da China como um só país, assim como os cinco princípios de coexistência pacífica. Po-rém, tendo em conta o novo diagnóstico da divisão do mundo em três, a polí-tica internacional da China passa a ter como eixos a oposição à hegemonia das duas superpotências, as alianças pontuais com as potências do segundo mundo, a aliança fundamental com os países do terceiro mundo, e sua preparação para a eventualidade de uma guerra popular defensiva, incluindo sua transformação em potência atômica.

Essa estratégia é, em parte, corroborada pelos movimentos da URSS em relação à China. Ela rompe os acordos de cooperação industrial, retirando seus

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10 mil técnicos, que se encontravam na China para a construção de mais de 600 projetos industriais. Ela concentra mais de um milhão de soldados soviéticos na fronteira siberiana, e provoca uma série de choques fronteiriços no rio Ussuri. E passa a tratar a China como inimiga. Esta, por sua vez, passa a acusar a União Soviética de país social-imperialista.

Por outro lado, a China é beneficiada pelo atoleiro em que os EUA haviam afundado no Vietnã. Em virtude de suas contradições com a União Soviética, a China se torna um intermediário valioso para facilitar as negociações de uma saída relativamente honrosa dos EUA daquele país do sudeste asiático.

No início dos anos 1970, a China pratica com flexibilidade e ativamente aquilo que ficou conhecido como diplomacia do ping-pong, por ter sido inicia-da com um convite a uma equipe de tênis de mesa norte-americana para realizar uma série de disputas amistosas na China. Através desse canal, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Kissinger, realizou uma visita secreta à China. Isso foi seguido por uma visita oficial do presidente Nixon, a assinatura dos comu-nicados de Shanghai e, em 1975, o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países.

Em todas as negociações entre os EUA e a China, esta manteve inalterado seu princípio de uma só China, assim como seus cinco princípios de coexis-tência pacífica. Para estabelecer as relações diplomáticas com a China, os EUA tiveram que reconhecer o governo de Beijing como único governo da China, romper suas relações diplomáticas com Taiwan, aceitar que a China voltasse a ocupar seu lugar na ONU e no Conselho de Segurança, e negar-se a enviar armas ofensivas para Taiwan.

Isso foi um passo decisivo para que a China rompesse o bloqueio até en-tão mantido pela maioria dos países ocidentais. Em 1974, portanto ainda no curso da Revolução Cultural, Deng Xiaoping discursou em nome do primeiro-ministro Zhu Enlai na Assembléia Geral da ONU, explicitando a teoria dos três mundos e a política internacional chinesa decorrente dela. E entre 1971 e 1975, a China estabeleceu relações com mais de setenta novos países, saiu do isolamento, regularizou suas relações com a Iugoslávia e iniciou negociações de distensão com a União Soviética.

O final da Revolução Cultural, em 1976, e as medidas de reajustamento ideológico, político, econômico e social que se seguiram a esse fim, reforça-ram as linhas gerais da estratégia internacional chinesa. Em 1979, a China acrescentou àquela estratégia a abertura econômica aos investimentos es-trangeiros nas zonas econômicas especiais e nos portos abertos, indicando claramente que a China estava disposta a enfrentar os desafios da globali-zação capitalista sem fugir deles. O que apontava para novas inflexões nos anos posteriores.

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A manutenção da paz se tornou, ainda mais, a pedra de toque da política externa chinesa, tendo em vista que seu programa de reformas e desenvolvimen-to dependia fundamentalmente de um ambiente internacional relativamente pacífico. A diplomacia chinesa tem mantido um ativismo intenso, embora de pouco alarde, tendo como fulcro a ONU, na busca de soluções negociadas em praticamente todas as ameaças de conflitos e em todos os conflitos reais ocorri-dos desde então.

Dentro desse espírito, no início dos anos 1980 a China elaborou uma nova política para chegar a uma reunificação pacífica dos territórios ainda coloniza-dos por potências estrangeiras (Hong Kong e Macau), ou separados do país por interferência estrangeira (Taiwan).

Chamada de política de “Um País, Dois Sistemas”, ela sugeria a negociação com a Inglaterra, para a devolução de Hong Kong, com Portugal, para a devo-lução de Macau, e com os governantes de Taiwan, sem interferência dos Estados Unidos ou do Japão, para a reincorporação desses territórios à soberania chinesa como Regiões Administrativas Especiais (RAE).

Nestas RAEs, pelo período de cinqüenta anos, o governo central da China apenas cuidaria das relações externas e da defesa, enquanto os governos locais teriam plena autonomia para tratar dos assuntos internos, mantendo o sistema capitalista e suas regras políticas próprias. Hong Kong foi re-incorporado em 1997 e Macau em 1999. O processo de re-incorporação de Taiwan tem sido mais lento, mas tem avançado paulatinamente.

Durante os anos 1980 e 1990 a China deu passos seguros para regularizar todas as suas pendências fronteiriças, ou rescaldos dos embates ideológicos, po-líticos e militares. Por sua iniciativa, foi formado o Grupo de Shanghai, englo-bando a Rússia, Casaquistão, Quirguistão, Usbesquistão, Tadjiquistão e China, não só para regularizar as questões de fronteiras, como para articular a segurança regional e ampliar as relações econômicas e comerciais.

As disputas com o Vietnã, em torno das ilhas Spratley, foram aplainadas. E os problemas com a Índia e o Paquistão foram reduzidos sensivelmente. Ao mesmo tempo, a China passou a ter uma participação de primeira ordem na ASEAN, que deixou de ser um apêndice da política internacional dos Estados Unidos, tornando-se uma associação dos países asiáticos para tratar da solução dos conflitos regionais, e na APEC – Associação de Cooperação Econômica do Pacífico, que tende a se transformar, pelo menos na sua parcela mais importan-te, num novo bloco econômico de livre comércio.

Assim, na atualidade (2006), a China mantém relações diplomáticas com 165 países e um grande número de regiões, participa dos principais fóruns e as-sociações internacionais, e tem uma participação ativa, mas discreta, na ONU, OMC e demais organizações multilaterais.

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Problemas internacionais remanescentes

Pode-se dizer que a China ainda possui problemas internos que interferem nas suas relações internacionais, como Taiwan, Tibet, Xinjiang, Hong Kong, Macau, e problemas estritamente internacionais que podem interferir forte-mente em sua situação interna, como as ilhas do Mar Meridional da China, o Japão e os Estados Unidos.

No caso de Taiwan, tem havido uma constante pressão de círculos inter-nos da ilha, apoiados pelos EUA e pelo Japão, pela independência. A China continua reiterando que Taiwan é um problema interno chinês, opondo-se a qualquer interferência externa, ao mesmo tempo em que trabalha pela solução negociada em torno da política de “um país, dois sistemas”. Mas a China está disposta a uma situação de guerra, se a ameaça de separatismo se concretizar.

O Tibet, uma Região Autônoma da China (isto é, com status idêntico à Província, mas com alguns privilégios, como o de ser dirigido exclusivamente por quadros da etnia tibetana, e por ter regulamentos próprios em relação às diretivas do governo central), também é tratado como problema interno chinês, e não é admitida qualquer interferência externa.

O presente desenvolvimento econômico do Tibet, na esteira do desenvol-vimento geral da China, tende a arrefecer as pressões externas. O próprio Dalai Lama está reexaminando a proposta do governo chinês para que retorne ao país e ocupe seu lugar no governo local.

O Xinjiang, outra Região Autônoma, onde vive majoritariamente a etnia uigur, de maioria muçulmana, tem sofrido também movimentos separatistas, sob influência do islamismo fundamentalista.

Hong Kong e Macau vivem uma transição relativamente tranqüila, mas sua condição especial as torna centros de movimentos anti-socialistas que po-dem resultar em problemas futuros. Isso dependerá, porém do próprio desen-volvimento da China e de como ela resolverá as novas contradições que tal desenvolvimento gera.

As disputas com o Vietnã. em torno das ilhas Spratley, no mar Meridional da China, relativamente solucionadas através da proposta de exploração conjun-ta das reservas de petróleo e gás natural dessa bacia, podem ser consolidadas se essa exploração conjunta resultar em benefícios mútuos duradouros.

Com o Japão permanecem pendências em torno do não reconhecimento, por parte do Japão, das atrocidades e crimes de guerra cometidos pelas tropas nipônicas contra os chineses e demais povos asiáticos, em torno das tentativas de rearmamento japonês, e em torno da aderência total do Japão às políticas externas norte-americanas.

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Embora o Japão seja hoje o maior parceiro comercial da China, esses pro-blemas tendem a cristalizar-se e azedar constantemente as relações entre os dois países. Esse é um dos motivos pelos quais a China não apoiou a formação do grupo dos quatro (Brasil, Alemanha, Índia e Japão) para a ampliação do Conse-lho de Segurança da ONU. A China (e a maioria dos países asiáticos) vai sempre se opor, enquanto o Japão não mudar radicalmente sua atitude, a dar-lhe qual-quer posto de relevo nas questões internacionais.

Com os Estados Unidos, as relações chinesas têm se mantido num patamar relativamente estável, embora com discrepâncias em vários itens que, eventual-mente, podem se tornar bastante tensos. Os EUA têm violado, constantemente, os três comunicados sino-americanos sobre Taiwan, que determinam a cessação das relações diplomáticas, a anulação do tratado de defesa comum e a retirada do pessoal militar americano de Taiwan, e do pessoal militar taiwanês dos Es-tados Unidos.

Os EUA também continuam interferindo, a todo momento, nos assuntos internos chineses, seja a pretexto dos direitos humanos, seja a pretexto da sobe-rania nacional das minorias étnicas, seja ainda a pretexto da falta de liberdades na China. Os Estados Unidos também continuam defendendo seu direito de espionar a China, através de aviões, satélites e outros meios.

A China, por seu turno, tem não só se oposto a todas essas interferências norte-americanas, como tem se posicionado contra as tendências hegemonistas dos EUA, no Iraque, no Irã e em outros países. Todos esse pontos são de grande sensibilidade para as duas partes, e podem transformar-se em conflitos.

11/03/2006

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Segundo a Constituição da China, esta realiza uma política externa pacífi-ca, tendo como princípios a independência e a auto-decisão. Isso significa que a China decide com independência suas posições diante dos problemas interna-cionais, levando em conta o que considera correto ou errado, e não as pressões de um ou outro país.

Além disso, a China não forma aliança com qualquer país ou grupo de países, não participa de qualquer tipo de corrida armamentista, não pratica o ex-pansionismo militar, e se opõe ao hegemonismo, às políticas de força, à agressão territorial, e às intervenções nos assuntos internos dos demais países, de acordo com os 5 princípios de coexistência pacífica, estabelecidos na conferência de Bandung, Indonésia, em 1954.

Com base nesses princípios, a China desenvolve suas relações diplomáticas e sua abertura econômica ao exterior.

Relações diplomáticas

A China pretende manter relações diplomáticas amistosas e cooperativas com todos os países do mundo, tendo por base o respeito mútuo à soberania e à integridade territorial, a não-agressão, a não-ingerência nos assuntos internos de um país por parte de outro, a igualdade e o benefício recíprocos, e a coexis-tência pacífica. Isso significa que, para a China, as relações diplomáticas podem realizar-se independentemente das diferenças de sistema social e de ideologia de qualquer país.

Nesse sentido, a China considera que os demais países devem considerar a China como um só país, o que incluía e permanece incluindo o reconhecimento

Política internacional da China

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de que Hong Kong, Macau e Taiwan são partes inalienáveis da China, e que o governo da República Popular da China é o único governo legítimo da China. A China não tolera, desse modo, principalmente agora que Hong Kong e Macau retornaram à soberania chinesa sob o lema de “um país, dois sistemas”, que os países que com ela estabeleceram relações diplomáticas, tenham relações oficiais de qualquer tipo com as autoridades de Taiwan.

Entre 1949 e fins de 1969, a China mantinha relações diplomáticas com 50 países. A partir da década de 1970, em virtude da normalização das relações diplomáticas com os Estados Unidos e da restituição de seu posto no Conselho de Segurança da ONU, a China ampliou rapidamente suas relações diplomáti-cas, totalizando 121 países em 1979, e mais de 160 países no ano 2000.

Além do Ministério de Relações Exteriores, encarregado de realizar as re-lações oficiais com os demais Estados do mundo, a China possui várias orga-nizações sociais que se dedicam à promoção das relações do povo chinês com os povos de outros países. As principais dessas organizações são a Associação de Amizade com o Exterior e o Instituto do Povo Chinês para as Relações Inter-nacionais.

Abertura econômica ao exterior

A abertura diplomática em relação ao mundo exterior foi acompanhada, a partir dos anos 1980, de uma ampla e gradual política de abertura econômica, compreendendo a instalação de zonas econômicas especiais e cidades abertas, comércio internacional, utilização de fundos internacionais, turismo e coopera-ção econômica e tecnológica.

a) Zonas Econômicas Especiais e Cidades AbertasA partir de 1979 foram implantadas 5 zonas econômicas especiais em Shen-

zhen, Zhuhai e Shantou, na província de Guangdong, Xiamen, antiga Amoy, na província de Fujian, e Hainan, uma província inteira no mar Meridional da China.

Em 1984, foram abertas ao exterior 14 cidades e portos litorâneos: Dalian, Qinhuangdao, Tianjin, Yantai, Qingdao, Lianyungang, Nantong, Shanghai, Ningbo, Wenzhou, Fuzhou, Guangzhou, Zhanjiang e Beihai. Em 1985 foram abertos os deltas dos rios Changjiang (Iangtsé) e Zhujiang (Pérolas), a região triangular ao sul de Fujian, as penínsulas de Shandong e Liaodong, a província de Hebei e a região autônoma da etnia Zhuang de Guangxi. Desse modo, prati-camente todo o litoral chinês constituiu uma faixa econômica aberta ao exterior.

Nos anos 1990, o governo chinês decidiu abrir e explorar um grupo de cidades da bacia do rio Changjiang, tomando como “ cabeça do dragão” a nova

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zona de Pudong, em Shanghai, um grupo de cidades de fronteira, e todas as capitais provinciais do interior. Ao todo, foram instaladas 15 zonas livres de di-reitos aduaneiros, 32 zonas de desenvolvimento econômico e tecnológico, e 53 zonas de desenvolvimento industrial de altas e novas tecnologias.

Esse conjunto de zonas, abertas ao exterior, executa diversas políticas pre-ferenciais, visando desenvolver a economia orientada para as exportações, e as-similar tecnologias avançadas do exterior. As cinco zonas econômicas especiais, tendo por base o processamento de produtos e as exportações, combinam in-dústria, comércio e ciências e tecnologias, servindo como laboratórios na absor-ção de investimentos e tecnologias, na criação de novas estruturas industriais e na disputa do comércio internacional.

Shenzhen e Pudong, por exemplo, realizam experimentos relacionados com a gestão em moeda chinesa (renminbi ou yuan), nas operações bancárias dos bancos estrangeiros, com os investimentos estrangeiros não só na indústria, mas também no comércio e serviços, e com o funcionamento de bolsas de valores. Tiveram, pois, ampliadas as políticas preferenciais de atração de investimentos externos, que em geral consistem na redução e isenção de impostos aduaneiros e impostos sobre a renda.

b) Comércio internacionalCom a política de abertura ao exterior, o comércio internacional da China

saltou do 1,13 bilhão de dólares em 1950, para quase 400 bilhões de dólares em 2000, passando para o nono lugar mundial.

Além do aumento de mais de 300 vezes o valor de 1950, o comércio ex-terior da China mudou radicalmente sua pauta. A exportação de produtos pri-mários, como agrícolas e minerais, baixou de 53,5% em 1958, para 11,2% em 1998, enquanto a dos produtos industriais subiu de 46,5% para 88,8%. Entre os produtos industriais atualmente exportados destacam-se os elétricos e os me-cânicos, com incidência cada vez maior dos eletro-eletrônicos.

A China também diversificou suas relações comerciais e suas formas de intercâmbio. Em 1998 eram 228 os países e regiões com os quais comercia-va. Além disso, a China também ampliou consideravelmente o comércio de processamento, e montagem com materiais fornecidos pelos clientes, e o comércio de processamento com matérias primas importadas, combinando essas diferentes formas para o desenvolvimento do comércio geral.

Atualmente, o comércio exterior da China deixou de ser realizado apenas por empresas monopolistas do Estado, estabelecendo-se um sistema através do qual o comércio exterior é regulado pelos métodos econômicos de impostos al-fandegários, taxas de divisas, créditos, cotas etc. A grande maioria das empresas pode exportar diretamente, sem grandes entraves burocráticos, aumentando a

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confiança da China de que elas serão capazes de enfrentar os desafios represen-tados pela entrada do país na OMC.

A China acredita que sua entrada na Organização Mundial do Comércio pode contribuir para aumentar sua inserção no mercado mundial de capitais e mercadorias, intensificar sua integração com os países do leste asiático, aju-dando sua recuperação econômica, à medida que mantém sua estabilidade e seu crescimento, e evitar as retaliações que têm sofrido por não ser membro daquele organismo. Os chineses prepararam-se, durante quinze anos, para esse momento, e sabem que alguns setores de sua economia vão sofrer uma con-corrência feroz. Consideram, porém, que possuem vantagens comparativas em muitos outros setores, e estão seguros de que o risco trará mais vantagens do que desvantagens.

A China não tem qualquer ilusão na Organização Mundial do Comércio. Avalia que esta, até agora, tem sido um clube dominado pelas nações desen-volvidas. Mas, ao contrário dos que querem evitar esses aspectos negativos, tentando eliminar a Organização Mundial do Comércio, propõe-se a lutar por reformas nesse organismo multilateral, através da ação das nações atrasadas e em desenvolvimento, com vistas a estabelecer uma nova ordem econômica mundial. Ela está convencida de que, somente integrando-se ao processo de globalização, os países em desenvolvimento podem obter oportunidades para o seu próprio desenvolvimento, contrapondo-se às suas desvantagens e aspec-tos negativos.

Os 20 anos de desenvolvimento econômico e social da China, e a conquis-ta de uma nova rodada multilateral de comércio, parecem dar alguma razão aos chineses, que ainda se aproveitam da crise do mundo desenvolvido para prometer que a China investirá, até 2005, USD 1,4 trilhão em equipamentos e produtos de alta tecnologia.

c) Utilização de fundos externosDesde 1980 a China transformou-se num agressivo atrativo para o empre-

go de fundos externos no país. Ela procura obter empréstimos, investimentos externos diretos e créditos internacionais. Até 1998, a China havia aprovado mais de 300 mil projetos, com a participação de fundos externos.

O critério para a utilização de fundos externos na China tem por base a construção da economia chinesa, sendo os investimentos diretos seu principal instrumento. No início, esses investimentos concentraram-se nas indústrias de processamento para as exportações. Com o tempo, eles ampliaram suas áreas para as indústrias básicas, comércio, finanças, informática, consultoria e bens imóveis. Nos anos mais recentes, os investimentos diretos na China têm alcan-çado o patamar de mais de 40 bilhões de dólares anuais.

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A China também tem se utilizado de créditos internacionais para facilitar seus aluguéis de equipamentos, e seu comércio externo de compensações, pro-cessamento e montagens. Os empréstimos, embora bem inferiores ao volume dos investimentos e créditos internacionais, têm se voltado prioritariamente para projetos educacionais, científicos e tecnológicos e ambientais, e para a er-radicação da pobreza. A dívida externa da China não chega a 150 bilhões de dólares, uma soma inferior às reservas internacionais de mais de 200 bilhões de dólares, em 2001.

d) TurismoO setor de turismo representa hoje uma das cadeias mais importantes da

economia chinesa. Com recursos turísticos muito variados, incluindo atrativos naturais (montanhas, rios, lagos, locais pitorescos etc), históricos (cidades, mu-seus, monumentos, sítios, ruínas, tumbas, palácios, templos, estátuas etc), eco-nômicos (negócios, zonas de desenvolvimento, feiras, exposições etc), culturais (seminários, simpósios, universidades, festivais, festas das etnias etc), entre os quais se encontram alguns mundialmente famosos, como a Grande Muralha, a Cidade Proibida e o Exército de Terracota, a China pode oferecer roteiros bas-tante diversificados pelas várias regiões do país.

Para aproveitar ao máximo esses atrativos, a China construiu uma diver-sificada infra-estrutura de turismo. Esta inclui uma variada gama de meios de transportes turísticos aéreos, terrestres, marítimos e fluviais, internacionais e do-mésticos, mais de 4 mil hotéis classificados por estrelas, uma imensa e diversifi-cada gama de restaurantes de todos os tipos, e um comércio de peças artísticas e de artesanato capaz de atender aos diferentes gostos. Por outro lado, com a multiplicação das agências de turismo, estatais, coletivas e privadas, tem sido possível ofertar um receptivo capaz de atender tanto ao crescimento do turismo proveniente do exterior (mais de 70 milhões anuais), quanto ao crescimento do turismo interno (mais de 600 milhões anuais).

O crescimento do turismo emissor chinês tem crescido com a elevação do poder aquisitivo da população. Sudeste da Ásia, Europa e Estados Unidos são os principais destinos turísticos dos chineses, abrindo perspectivas para a instalação de agências estrangeiras na China.

e) Cooperação internacionalA China tem ampliado paulatinamente sua participação econômica em

outros países do mundo, através de projetos de cooperação econômica e tecno-lógica e de investimentos diretos. Tais projetos e investimentos têm sido dire-cionados para a agricultura, silvicultura, aproveitamento de recursos hídricos, indústrias alimentares, indústrias têxteis, indústrias elétricas, indústrias mecâ-

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nicas, indústrias metalúrgicas e químicas, transportes, comunicações, cultura, educação, saúde e obras públicas. Em 2000, a participação da China envolvia 136 países e regiões, em mais de 1.700 projetos.

A contratação de empresas chinesas para obras e serviços no exterior tam-bém representa um importante item da cooperação internacional da China. Em 2000, as empresas chinesas possuíam contratos de obras e prestação de serviços em 187 países e regiões, envolvendo um volume superior a 11 bilhões de dóla-res, e mais de 350 mil pessoas.

No ano 2000, mais de 6 mil empresas chinesas já possuíam investimentos no exterior, nas áreas de comércio internacional, construção de moradias, informática, consultorias, finanças, seguros e outras, envolvendo mais de 7 bilhões de dólares.

f ) Intercâmbio com a América LatinaA China mantém relações comerciais com 46 países da América Latina, e

seu comércio exterior com essa região vem crescendo, nos últimos anos, à taxa de 30% a.a. Em 1995, as importações e exportações chegaram a USD 6,114 bilhões, em 1996 a USD 7,9 bilhões, e em 1997 a cerca de USD 10 bilhões. Entretanto, isso ainda representa um comércio muito restrito, se considerarmos o potencial econômico dos dois lados.

A partir de 1996, a China vem adotando uma nova orientação em seu co-mércio com a América Latina, orientação que pode ser sintetizada nos seguintes pontos:

- Não limitar o comércio bilateral às importações e exportações;- Combinar esse comércio com a cooperação bilateral nos setores industrial

e agrícola, e na transferência tecnológica;- Realizar investimentos para estabelecer fábricas de montagem (televisores,

rádios, ventiladores, motocicletas e tratores) e processamento (materiais farma-cêuticos e vestuário), e para exportar serviços;

- Investir fundos e tecnologias em projetos de exploração de recursos mi-nerais, florestais, agropecuários e pesqueiros, que a China necessita, para incre-mentar a importação desses recursos pela China, e a exportação de produtos chineses para a América Latina;

- Estabelecer centros de distribuição de mercadorias em cidades portuárias chinesas, para o transporte para a América Latina, e oferecer serviços financeiros aos exportadores e importadores, através do Banco da China, de modo a facili-tar, inclusive, a compra de pequenas quantidades de mercadorias chinesas.

- Incrementar o conhecimento da China pelos países latino-americanos.

f ) Intercâmbios com o BrasilDentro do comércio com a América Latina, o comércio bilateral Brasil-

China tem um peso importante. Em 1997 alcançou cerca de USD 2,0 bilhões,

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chegando a USD 2,85 bilhões, em 2001. O Brasil exportou USD 1,62 bilhão em aviões, minério de ferro, aços, soja em grãos e alguns outros poucos produ-tos. A China exportou para o Brasil USD 1,23 bilhão em carvão coque, produ-tos químicos, e algumas outras mercadorias.

Apesar do crescimento no comércio bilateral, seu volume é extremamente modesto para o potencial econômico dos dois países. Há muitos canais através dos quais o Brasil pode acessar o mercado chinês e se beneficiar de sua dinâmica de crescimento. Os empresários brasileiros deveriam programar-se com estraté-gias de longo prazo, que combinassem a realização de investimentos na China com a exportação de produtos de demanda crescente. Ao mesmo tempo, deve-riam preparar-se para a inevitável tendência de empresas chinesas investirem no Brasil, e exportarem para o mercado brasileiro.

Nesse processo, é preciso levar em conta a crescente descentralização do desenvolvimento econômico e do comércio internacional da China. O controle macroeconômico dos investimentos e das exportações e importações, inclusive de capitais, se encontra em mãos do governo central, mas as empresas, povo-ados, cantões, bairros, distritos e províncias ganharam grande autonomia de decisão. Podem entabular negociações diretas com investidores, exportadores e importadores, embora em vários casos a última palavra seja dada por Beijing. Por outro lado, como esse comércio bilateral é ascendente, e o mercado chinês apresenta um potencial inigualável na atual conjuntura internacional, o Brasil tem um vasto campo de complementaridades a desenvolver com aquele país.

g) Relações China - Estados UnidosAs relações com os Estados Unidos representam um papel estratégico na

política internacional da China. E, na medida em que a China se torna um país de crescente peso internacional, tanto no terreno econômico, quanto tecnoló-gico e militar, ela tende a conquistar cada vez maior importância na política externa dos Estados Unidos.

Na atualidade, os Estados Unidos têm funcionado como um dos maiores mercados para as exportações chinesas, enquanto a China tornou-se um dos principais mercados para os investimentos de capitais norte-americanos, con-tribuindo favoravelmente para um certo equilíbrio nas relações entre ambos os países. Apesar disso, tais relações sofrem interferências de interesses econômicos, comerciais, políticos, culturais e ideológicos diferentes.

Durante a campanha eleitoral norte-americana e logo após a posse, o presi-dente Bush manteve um discurso e medidas que apontavam para um contencio-so crescente com a China. George Bush considerava a China um “competidor estratégico”. O ponto máximo dessa escalada contenciosa foi o incidente, entre um caça chinês e um avião-espião norte-americano, no Mar da China.

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No entanto, o crescente declínio da economia americana no rumo da reces-são, desde o primeiro semestre de 2001, atingindo a maior parte dos países do mundo, enquanto a China mantinha seu ritmo de crescimento, provocou mu-danças naquela política de agravar o contencioso. Embora o discurso se manti-vesse, em julho de 2001 o secretário de Estado, Collin Powell, visitou Beijing e promoveu uma sensível redução na tensão entre os dois países.

Depois disso, os atentados de 11 de setembro e as flexões estratégicas que os EUA viram-se obrigados a realizar para combater o terrorismo fizeram com que também o discurso do staff norte-americano mudasse. Na cúpula da APEC, em Shanghai, nos dias 19 e 20 de outubro, o presidente Bush declarou ao presiden-te chinês Jiang Zemin, que os EUA não consideravam a China como inimiga, mas uma amiga, e que desejavam desenvolver entre ambos os países uma relação “construtiva e cooperativa”, através de “diálogos estratégicos de alto nível” entre seus presidentes ou representantes diretos destes.

Como disse a diretora da Agência de Desenvolvimento e Comércio dos EUA, Thelma Askey, “afetados por fatores econômicos e recentes tragédias... os Estados Unidos necessitam do mercado chinês para incrementar suas exporta-ções”. Apesar disso, permanecem diversos pontos de divergência entre os EUA e a China: Taiwan (Bush considera a questão de Taiwan “regional”, enquanto a China a considera “interna” ou “doméstica”), direitos humanos, políticas étni-cas, proliferação de armas e Escudo de Mísseis de Defesa e, no final de 2002, as ameaças de invasão do Iraque.

Porém, a não ser que os Estados Unidos, sob o comando do presidente Bush, se envolva num conflito sério que ameace os interesses nacionais e inter-nacionais chineses, é provável que as relações “construtivas e cooperativas” se mantenham enquanto os Estados Unidos necessitarem do mercado chinês e a China necessitar dos capitais norte-americanos.

29/08/2003

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A demanda chinesa por matérias primas, especialmente minerais, vem sus-tentando os preços das commodities, que têm peso importante nas exportações de diversos países em desenvolvimento. O exemplo do minério de ferro brasilei-ro, exportado principalmente pela Vale, é significativo, com as importações da China tendo crescido mais do que 40%, apenas em 2007.

A China também desempenha papel importante nas relações econômicas e comerciais entre os países em desenvolvimento, através de acordos de comér-cio e investimentos. Atualmente, o governo chinês tem encorajado as empresas chinesas a investirem nos países asiáticos, africanos e sul-americanos, através de créditos a juros baixos. Além de um fundo soberano de 200 bilhões de dólares, a China criou um fundo de desenvolvimento especialmente para a África, e per-doou as dividas de países mais pobres, no valor de quase 1,5 bilhão de dólares.

No caso da África e América do Sul, a China tem se voltado prioritaria-mente para o desenvolvimento de áreas como energia, telecomunicações e trans-portes, que são vitais para o desenvolvimento dos sistemas produtivos dos países daqueles continentes. Mas os países centrais acusam a China de concentrar seus esforços apenas em áreas de seu próprio interesse. Ela estaria dando atenção prioritária ao financiamento da exploração mineral e de petróleo e gás natural, além amarrar tais financiamentos ao fornecimento de equipamentos e mão-de-obra chineses.

A China, por seu lado, reconhece que demonstra especial interesse nessas áreas, mas que isso não é exclusividade sua. E acentua que os percentuais de equipamentos, embutidos em seus financiamentos, têm sido muito inferiores aos praticados pelos países desenvolvidos, o que tem funcionado como forte atrativo para países que pretendem industrializar-se.

Papel internacional da China

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A China também reconhece que tem feito contratos de serviços de mão-de-obra com países que passaram décadas em guerra civil e não possuem força de trabalho com qualificação mínima para implantar grandes projetos de infra-estrutura. Fora isso, os chineses afirmam não haver casos em que esse fator tenha sido impedimento para seus financiamentos externos.

Nos últimos dois anos, a China sofreu um forte desequilíbrio em sua ba-lança comercial, com superávits superiores a 300 bilhões de dólares, em cada um dos anos. O que a está conduzindo a adotar políticas mais ativas de impor-tação, ao mesmo tempo em que eleva o poder de compra de suas populações rurais e urbanas, e universaliza os serviços públicos de seguridade social, saúde e educação, em especial nas áreas rurais.

Num quadro de crise internacional de crescimento, essas medidas de for-talecimento do mercado interno podem contribuir para ampliar as demandas chinesas não só por commodities, mas também por produtos industrializados dos diversos países. Se ela conseguir isso, reforçará as tendências de crescimento industrial, principalmente dos países asiáticos, africanos e sul-americanos, res-tando pouca dúvida de que seu papel global crescerá.

19/01/2008

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O mundo dominado pelo sistema capitalista de produção tinha problemas diversos, mas até o final do século 20, a questão de sua “sustentabilidade” ener-gética e alimentar não se tornara evidente. Seu processo desigual de desenvol-vimento permitia que algumas nações mais desenvolvidas, com apenas 5% da população mundial, pudessem consumir, sem concorrência, 25% ou mais da produção do planeta.

O fato de milhões de pobres morrerem de fome, a cada ano, e de inú-meros países, principalmente africanos, serem considerados inviáveis, parecia algo inevitável, decorrente da própria natureza desses países. Mesmo porque isso parecia não criar qualquer problema para o crescimento sustentável das potências desenvolvidas.

Porém, o desenvolvimento da China e, no seu rastro, da Índia, Brasil e de outros países asiáticos, africanos e latino-americanos, transformou em cacos aquela suposição, e fez o mundo ver-se frente a novas questões. Ante a crescente necessidade energética e alimentar, muitos analistas norte-americanos e europeus passaram a afirmar que será insustentável para o mundo conviver com um a dois bilhões de pessoas com capacidade de comer e adquirir veículos próprios.

Expressam, dessa forma, a idéia de que o mundo só será “sustentável” se apenas alguns poucos países permitirem que suas populações tenham cerca de 700 carros por mil habitantes, e comam à vontade. Para eles, o mundo será in-viável se um terço do conjunto das populações dos países em desenvolvimento e atrasados elevar seu padrão de vida.

Eles não pretendem discutir mudanças nos padrões de desenvolvimento e consumo implantados pelo sistema capitalista de produção. Preferem culpar a China por estar forçando os limites da “sustentabilidade” capitalista, ao colocar

A China e os problemas do mundo

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no mercado mundial, no curto espaço de trinta anos, cerca de 800 milhões de pessoas com poder de compra, e por prometer colocar mais outras 500 milhões, nos próximos dez a quinze anos.

De qualquer modo, a questão do uso dos recursos e do meio ambiente foi colocada com muita força na ordem do dia. Primeiro porque os povos dos paí-ses mais atrasados têm pleno direito de acesso eqüitativo a tais recursos, e de desenvolver-se econômica e socialmente. Segundo, porque isso significa não só retirar os atuais privilégios dos países capitalistas desenvolvidos, de desper-dício irresponsável, mas também adotar um modo de organização econômica e social da vida que permita o uso racional e sustentável desses recursos e do meio ambiente.

Em outras palavras, ao praticar uma retirada estratégica, para desenvolver suas forças produtivas, utilizando mecanismos de mercado e diversas formas de propriedade, inclusive capitalistas, a China colocou o mundo, e a si própria, diante da questão da “sustentabilidade” do sistema capitalista e da própria hu-manidade, e também da necessidade de outra ordem econômica e social.

06/07/2008

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Os chineses parecem estar em ofensiva em várias frentes. Na frente oriental, a política de convidar os líderes dos principais partidos oposicionis-tas de Taiwan para visitarem a parte continental foi ampliada com a chegada a Xian do presidente James Soong, do Primeiro Partido do Povo, o segundo maior partido da ilha.

Com isso, Beijing procura unificar as forças oposicionistas de Taiwan em torno de três pontos: do Consenso de 1992, que havia assinado com o Guomin-dang, para reduzir as tensões entre a província e o governo central; da idéia de “uma só China”; e da oposição aos que advogam a “independência de Taiwan”.

Na frente ocidental do comércio internacional, a China procura desfazer os temores que cercam as exportações de seus têxteis, após o fim global das cotas de importação. O ministro do Comércio da China, Bo Xilai, ao mesmo tempo em que afirmava que seu país precisa vender 800 milhões de camisas para comprar um único Airbus A-380 (só a China Southern Airlines está adquirindo cinco desses novos jumbos), reiterou que a China é um ator responsável no comércio internacional, e pretende evitar qualquer onda de choque com exportações mas-sivas de roupas. Referia-se, sem dúvida, ao aumento das alíquotas de exportação sobre os têxteis produzidos por seu país.

Paralelamente a isso, a China continua ampliando o número de países que a reconhecem como economia de mercado. A União Européia deve juntar-se brevemente a esse grupo, principalmente tendo em conta os recentes passos chineses na regulamentação das fusões e aquisições, e do controle dos preços praticados por empresas dominantes.

Em sua frente central macroeconômica, a China voltou a reafirmar que não mudará a política cambial antes de ter completado as reformas de seu setor fi-

Ofensiva em várias frentes

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nanceiro. O que não se deve esperar para breve, já que essa reforma envolve não apenas a melhoria do padrão de funcionamento de suas próprias instituições financeiras, mas também a abertura paulatina de seu mercado para instituições financeiras estrangeiras.

Nessa frente específica, a China desagrada países como os Estados Unidos, que gostariam de ver reduzido seu déficit comercial com o dragão asiático, mas agrada e muito a comunidade dos países asiáticos, que têm na estável política cambial chinesa uma referência de estabilidade econômica regional.

08/05/2005

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Após haver decidido retaliar as exportações chinesas, impondo cotas às confecções de algodão importadas pelos Estados Unidos, a Administração Bush e a mídia norte-americana aumentaram a pressão sobre a China para mudar sua política cambial, valorizando o renminbi (yuan).

Os Estados Unidos responsabilizam a China pela desvalorização do dó-lar e pela perda do poder competitivo da indústria norte-americana. A Chi-na, por seu lado, considera que as pressões americanas são uma intromissão indevida na reforma cambial chinesa e que tal interferência, além de piorar o ambiente necessário a tal reforma, incentiva o protecionismo que os EUA combatem nos outros.

A China, como boa parte dos países do mundo, considera que as dificulda-des comerciais dos EUA se devem à própria expansão comercial descontrolada desse país, e a seus déficits orçamentários. O déficit comercial norte-americano, em 2004, atingiu 618 bilhões de dólares, o equivalente a 6% de seu produto interno bruto. E o déficit orçamentário foi superior a 400 bilhões de dólares.

Nessas condições, não será a valorização do yuan que resolverá os proble-mas estruturais dos déficits gêmeos norte-americanos. Na verdade, os setores protecionistas dos EUA tentam aproveitar-se do alto déficit comercial com a China, para justificar seu completo despreparo diante do fim das cotas sobre têxteis, e desviar a atenção sobre sua própria responsabilidade na criação de uma situação que coloca em risco o equilíbrio de todo o comércio internacional.

A China já declarou que fará a reforma de sua política cambial. Mas não está disposta a realizá-la sob pressão especulativa de um fluxo massivo de hot mo-ney, nem a pretexto de salvar os EUA dos problemas criados por eles mesmos. Como todas as reformas que vem realizando desde 1980, a China valorizará sua

Pressões sobre o yuan

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moeda em função de seus interesses nacionais e, como declarou, levando em conta as conseqüências dessa medida sobre seus parceiros principais, os paises em desenvolvimento.

Nessa mesma linha de ação, a China elevou em 400% as tarifas sobre mais de 70 itens de sua pauta de exportação de têxteis, no sentido de evitar que es-ses produtos altamente competitivos causem danos às indústrias dos paises em desenvolvimento. Não deixa de ser irônico que o pretenso campeão do livre comércio esteja colocando seu protecionismo real totalmente à mostra.

22/05/2005

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A China no Mundo 261 |

A China anunciou novas medidas no sentido de evitar as retaliações norte-americanas e européias contra seus têxteis. Dez dias após haver anunciado eleva-ções de até 400%, em suas tarifas de exportação sobre 74 categorias de produtos têxteis, o ministério do Comércio daquele pais voltou a elevar as tarifas de outras sete categorias de têxteis, entrando em vigor a partir de 1º de junho.

Essa foi a forma imediata que a China encontrou para responder às novas restrições impostas pelos Estados Unidos e pela União Européia às suas exporta-ções. Os Estados Unidos impuseram medidas contra as calças, camisas e cuecas de algodão, enquanto a União Européia anunciou restrições sobre as camisetas e outros produtos sintéticos.

Os chineses reclamam que essas restrições representam mais de 2 bilhões de dólares de prejuízos, e o corte de mais de 160 mil empregos. E anunciaram que a elevação das tarifas, que se auto-impuseram, atingirá cerca de 6 mil empresas. Apesar disso, a China declara-se disposta a continuar se esforçando, para resol-ver as pendências através do diálogo, evitando retaliações.

Ela teme, principalmente, atingir os paises em desenvolvimento, com os quais, além de manter um crescente relacionamento comercial, pretende incre-mentar as parcerias políticas no âmbito dos organismos multilaterais interna-cionais. No entanto, os chineses também reafirmaram sua decisão de recorrer à OMC, se os Estados Unidos e a União Européia continuarem desconsiderando as medidas adotadas para tornar os têxteis chineses mais caros no mercado in-ternacional e, portanto, menos competitivos.

Os chineses não aceitam como corretas ou justas as medidas restritivas ado-tadas contra seus têxteis. Reclamam que o fim das cotas foi acordado, há mais de dez anos, durante a Rodada Uruguai, e que todos os países tiveram tempo suficiente para adequar-se às novas condições de livre comércio internacional.

China aumenta tarifas

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Suas medidas não representam, portanto, qualquer reconhecimento de es-tarem agindo contra as regras do livre comércio. Apenas querem evitar uma guerra comercial que pode ser prejudicial a todas as partes envolvidas. Porém, dificilmente a China ficará indiferente se as restrições a seus têxteis começarem a atingir não centenas de milhares, mas milhões de empregos.

31/05/2005

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Um dos argumentos utilizados pelas autoridades norte-americanas para justificar a retaliação contra os têxteis chineses é a enorme parcela que a China detém no crescente déficit comercial dos EUA. Segundo dados da imprensa, um terço a um quarto dos 617 bilhões de dólares do déficit comercial norte-ameri-cano de 2004, estão relacionados ao comércio com a China.

Especialistas americanos sugerem que nisso está a causa da desvalorização do dólar e, portanto, da necessidade de elevar a taxa de juros. Para evitar o sofrimento dos consumidores estadunidenses seria necessário que a China, e também o Japão e a União Européia, valorizassem suas moedas. As mercadorias chinesas ficariam mais caras, reduzindo sua competitividade nos EUA, e as mer-cadorias norte-americanas mais competitivas na China. Ao mesmo tempo, isso evitaria que os EUA exportassem postos de trabalho para a China.

Em tese, isso reduziria o déficit comercial dos EUA, permitindo a este re-solver seu grave desequilíbrio externo, e elevar sua taxa de emprego. No entanto, há aspectos da questão que tais especialistas parecem ignorar. Se é verdade que as multinacionais norte-americanas têm exportado empregos para a China, tam-bém é verdade que isso tem criado vantagens competitivas para tais companhias. Como seus lucros fluem para os investidores nos EUA, os postos de trabalho criados na China contribuem para os investimentos nos EUA.

Se as empresas americanas forem desencorajadas de acessar o mercado chinês, outras multinacionais ocuparão seus lugares. A globalização fez crescer consideravelmente a terceirização na fabricação de produtos de vários tipos. Cerca de 48% das exportações chinesas para a América são provenientes de multinacionais norte-americanas, contribuindo para tornar os produtos acaba-dos dos EUA mais competitivos. Se os Estados Unidos apertarem demais os

A sinuca do déficit norte-americano

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produtos chineses, estarão apertando muitas de suas multinacionais e abrindo as portas para multinacionais de outros países fabricarem peças na China, com a competitividade chinesa, para serem montados nos Estados Unidos.

Com a globalização, o déficit comercial com a China é apenas uma das sinucas em que se meteu o capitalismo americano.

12/06/2005

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A China no Mundo 265 |

As manifestações na China, contra as mudanças nos livros de história do Japão, que negam as atrocidades cometidas por suas tropas durante a II Guerra Mundial, continuam gerando controvérsias. Embora a imprensa chinesa tenha dado destaque às manifestações, e o governo tenha assistido passivamente ao ocorrido, ambos têm reiterado que são contra qualquer campanha anti-nipôni-ca, e que é preciso distinguir o povo japonês de seus governos.

O recente pedido de desculpas do primeiro-ministro japonês, durante o encontro de cúpula afro-asiática, em Jacarta, por outro lado, não atendeu aos reclamos dos países asiáticos que foram vítimas da agressão militar japonesa. A atitude de Koizumi, pedindo desculpas num fórum internacional, embora tenha sido vista como um passo, foi considerada insuficiente.

Pior: ela está sendo vista como uma repetição. O Japão faz isso toda vez que enfrenta problemas com os demais países asiáticos. No momento, quer evitar que cresça a resistência contra seu ingresso como membro permanente no Conselho de Segurança da ONU, e tem pela frente as disputas com a China em torno da soberania sobre as ilhas do Mar Oriental, dos direitos de exploração de gás, e do delineamento do Japão como zona econômica exclusiva. Nesse con-texto, as lembranças da II Guerra Mundial continuam a desempenhar um papel crucial nas relações asiáticas do Japão.

Os governantes japoneses têm se negado a admitir a responsabilidade do país diante de suas vitimas. No máximo, como fez agora Koizumi, reconhecem os danos e sofrimentos destrutivos causados por sua guerra de conquista. Mas até hoje não atenderam ao clamor asiático de emitirem um comunicado oficial de desculpas, em nome do governo, com o apoio e a aprovação parlamentar.

Ou seja, o governo japonês não fez o que é realmente necessário para rom-

As desculpas japonesas

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per com seu passado militarista. Ao contrário, todos os anos, os primeiros-minis-tros, inclusive Koizumi, e boa parte dos membros do parlamento, comparecem ao panteão Yasukuni, para prantear os mortos de guerra japoneses, incluindo os militaristas que planejaram e executaram a agressão dos anos 1930 e 1940.

Para completar, uma corte judicial de Tóquio rejeitou uma apelação de so-breviventes e parentes das vitimas da guerra biológica e do massacre de Nanjing, onde morreram mais de 150 mil pessoas, sob a alegação de que o prazo para tal apelação havia expirado.

22/04/2005

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De tudo um pouco

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O encontro do secretário geral do PC Chinês, Hu Jintao, com o presidente do Guomindang de Taiwan, Lien Chan, no Palácio do Povo, em Beijing, repre-senta um grande passo para for fim às hostilidades entre os dois partidos, quase 60 anos depois do rompimento das negociações de paz de 1946, que conduzi-ram à guerra civil, à vitória do Exército Popular de Libertação, e à proclamação da República Popular da China.

Tão importante quanto isso talvez seja, porém, a reafirmação do Guomin-dang e do PCC em manterem sua adesão ao princípio de “uma só China”, e sua oposição às pretensões seccionistas das correntes que hoje governam aque-la província chinesa. O comunicado que assinaram prevê a construção de um mecanismo de prevenção de conflitos armados, a abertura de discussões para permitir que Taiwan participe de atividades internacionais, tão logo o diálogo entre a ilha e o continente seja retomado, e a realização de conversações regula-res entre os dois partidos.

Embora os dirigentes do Partido Progressista Democrático, de Taiwan, atu-almente no governo, após uma vitória eleitoral contestada como fraudulenta, ameacem ações legais contra os acordos assinados por Lien Chan e Hu Jintao, do ponto de vista prático a visita do presidente do Guomindang ao continente promete grandes repercussões políticas no futuro das relações entre a província e o governo central.

Do ponto de vista histórico isso não será novidade. Foi a aliança do PC com o Guomintang, então dirigido pelo Dr. Sun Yatsen, em 1924, que pro-piciou a Expedição do Norte contra os senhores de guerra, e estimulou os camponeses a organizarem as bases guerrilheiras, que tiveram papel funda-mental no futuro da revolução chinesa. Foi o golpe militar do Guomindang,

Novas perspectivas para Taiwan

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então dirigido por Chiang Kaishek, contra o PC, em 1927, que empurrou as lideranças desse partido para as zonas rurais, e lhes permitiu sobreviver às campanhas de cerco e aniquilamento.

Foi a aliança do PC com o Guomindang, ainda sob a direção de Chiang, em 1936, que unificou o país na guerra de resistência contra o Japão. E foi o rompimento entre os dois, após a vitória sobre as tropas nipônicas, que cau-sou a reviravolta histórica representada pela fundação da república popular. A nova aliança poderá não só levar Taiwan a reintegrar-se pacificamente à China, como eliminar um importante foco de tensão na Ásia. Para desgosto de alguns falcões de Washington.

03/05/2005

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Quem assistiu, pela televisão, a visita da presidenta do Congresso dos EUA ao Dalai Lama, logo após as turbulências no Tibet, não pode deixar de associar tais cenas ao filme Jogos de Poder. Este conta uma história real, de congressistas americanos, CIA, serviços secretos, e governos de Israel, Egito, Arábia Saudita e Paquistão, financiando e armando os talibans contra os inva-sores soviéticos no Afeganistão.

Por outro lado, quem ouve personalidades, pretensamente bem informa-das, justificarem uma investigação internacional sobre a situação Tibet, porque este teria sido anexado pelo governo da China, em 1950, e porque os tibetanos foram às ruas lembrar os 49 anos da revolta “contra o domínio chinês”, não pode deixar de lembrar o quanto a ignorância é causadora de tragédias.

O Tibet foi anexado à China no século 13, durante a dinastia Yuan, por contrato matrimonial entre as casas reais, mongol e tibetana. Comparada a anexações como as do Texas, Hawai e Porto Rico, aos Estados Unidos, a do Acre, ao Brasil, e a da Escócia, à Inglaterra, a incorporação do Tibet à China até que foi pacífica.

Excluindo o momento em que o Império Britânico tentou ocupar o Tibet, durante seu domínio sobre a Índia, nos setecentos anos restantes a soberania da China sobre o Tibet só começou a ser questionada em 1950, quando as tropas do Exército Popular de Libertação chegaram ao Tibet, no final da guerra civil contra Chiang Kaishek, completando a libertação da China.

Nessa ocasião, o Tibet ainda era governado por uma teocracia. Os lamas, além de sacerdotes, exerciam o poder político, econômico e social. O regime de trabalho era o da servidão feudal, ainda havendo restos de escravismo na sociedade. O novo governo da China reconheceu o Tibet como uma região

Jogos do poder

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autônoma e, apenas em 1957, começou a discutir, com os lamas, mudanças no sistema agrário e de trabalho. Uma parte dos lamas não aceitou a perda de seus servos, inevitável com a reforma agrária, e realizou uma insurreição, em 1959. Sua derrota representou o fim da servidão no Tibet, e a separação entre Estado e religião.

Naquela ocasião, os Estados Unidos, que haviam apoiado Chiang Kaishek na guerra civil, e implantado um forte bloqueio militar, econômico e diplomá-tico, à China, estimularam os insurretos tibetanos e, depois, os aconselharam a mudar os “motivos” de sua revolta. Desde então, a propaganda anti-China subverteu a história e só apresenta a questão Tibet como um assunto de indepen-dência, pretensamente perdida em 1950.

Assim, embora os atuais acontecimentos no Tibet sejam lamentáveis, eles são um assunto interno da China. Além disso, ao evidenciarem um forte in-suflamento ao ódio étnico, com a maioria dos mortos sendo de chineses que moravam em regiões tibetanas, eles apontam para uma ação estimulada e coor-denada por forças que pretendem desequilibrar a China.

Se alguém tem dúvida a respeito dos reais objetivos, e de quem está por trás, da coincidência da “comemoração de 49 anos” da revolta de 1959, no mo-mento em que Beijing se prepara para as Olimpíadas, e em que as eleições pre-sidenciais em Taiwan podem conduzir a ilha de retorno à China, deve ir assistir a Jogos de Poder.

22/03/2008

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O Tibet, de repente, deixou de ser o assunto do dia da mídia. Mas, não há dúvida de que os acontecimentos naquela região continuam despertando inda-gações e interesse. Em muitos casos, alimentados pelo desconhecimento sobre sua história e sua situação atual.

Um pouco da história antiga

Na antiguidade, o “teto do mundo” era habitado por tribos, que guerrea-vam entre si por terras e escravos. Só no século 7, coincidindo com a centraliza-ção dinástica Tang (618-907), a tribo Spurgyal se impôs, fundou o reino Tubo, e iniciou um longo relacionamento com o império chinês.

Já o budismo penetrou no Tibet através do casamento do rei Songtsan Gam-bo, de Tubo, com as princesas Wencheng, da dinastia Tang, e Bhributi, do Nepal. Elas o presentearam com estátuas de Buda, levaram artesãos para construírem os mosteiros Jokhang e Ramoche, e foram acompanhadas de monges budistas.

Mas o budismo só se firmou após séculos de disputa com as antigas reli-giões Bon e xamanista, e após tornar-se religião da nobreza Tubo. Para isso, ab-sorveu prédicas e conteúdos daquelas religiões, elaborou suas próprias escrituras, criou um sistema monástico, de estudo e de meditação próprio, e tornou-se um ramo especial do budismo, o lamaismo.

Em 1271, quando os mongóis de Kublai Khan estabeleceram a dinastia Yuan sobre a China, o Tibet já era governado por uma teocracia, embora tutela-da. A nobreza lama, além de exercer o poder religioso, também detinha o poder político, econômico e social. A servidão feudal era predominante, havendo áreas onde persistia o escravismo.

Sobre o Tibet

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As dinastias Ming e Qing, sucessoras da Yuan mantiveram a tutela sobre a teocracia tibetana. Por outro lado, a nobreza lamaista dividiu-se em disputas por terras e servos, e pelo predomínio monárquico, resultando na formação de diferentes seitas, formalizada na reforma religiosa do século 15.

A partir de então, as seitas Nyingma, Sagya, Gagyu e Gelug se revezaram no poder teocrático. A Gelug, a mais poderosa, criou o sistema de reencarnação do Buda Vivo, através do Dalai Lama e do Panchen Erdeni, como tentativa de evitar conflitos sectários. Para permitir sua perpetuação, o lamaismo obrigou as famílias tibetanas a prover, a partir do século 16, um de seus filhos para tornar-se monge ou monja. A parcela de monges e monjas na população chegou, no início do século 20, ao auge de 25%.

Após a Revolução de 1911, que derrubou a monarquia Qing e fundou a República, o Tibet passou a ser uma das 22 províncias da China, tutelada por um Conselho para os Assuntos Mongóis e Tibetanos. Porém, o domínio local teocrático e a servidão não foram tocados.

Uma pitada de história contemporânea

Os ingleses, que haviam tentado uma concessão em Lhasa, no século 19, também não obtiveram apoio quando voltaram a propor a separação do Tibet, durante a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos, num documentário cinematográfico de seu Departamento de Guerra, intitulado “A Batalha da Chi-na”, reconheceram o Tibet como parte inalienável da China. O que só mudou em 1951, no final da guerra civil chinesa, quando as tropas do Exército Popular de Libertação chegaram ao Tibet.

Nessa época, a região ainda vivia da criação de gado, de pequenas planta-ções, e do artesanato. A nobreza lamaista mantinha os poderes econômico, reli-gioso e político. Um estamento de 100 mil monges e monjas, ou 10% da popu-lação, servia à nobreza na difusão religiosa e na observância da ordem pública. A produção econômica provinha do trabalho dos servos da terra, que constituíam a maioria da população. Nas áreas mais afastadas, a escravidão resistia.

O novo governo chinês reconheceu o Tibet como região autônoma, evitan-do, porém, realizar reformas sociais imediatas. Apenas em 1957, em concordân-cia com o 10º Panchen Erdeni, começou a discutir reformas democráticas na agricultura, na vida social e no Estado.

A inevitável perda dos servos, com a reforma agrária, e do poder político, com a separação entre o Estado e a religião, levou parte da nobreza lamaista, in-suflada por agentes estrangeiros, à insurreição. Sua derrota, em 1959, marcou o fim da servidão, separou o exercício do Estado do exercício da religião, e abriu a possibilidade dos tibetanos escolherem entre ser lamas, ou ter uma vida secular.

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O Ocidente subverteu a história, já que seria incompreensível para seus povos a defesa da servidão e de uma teocracia. Desde então, a propaganda anti-China apresenta a questão tibetana como de independência nacional e preser-vação cultural, pretensamente perdidas pela “invasão” chinesa. Em vários mo-mentos, essa propaganda fabricou notícias de que o governo chinês destruía os mosteiros e monumentos religiosos tibetanos, inclusive o Palácio Potala.

Situação pós-1951

O Tibet passou a reverter o declínio populacional dos séculos anteriores, em virtude das calamidades naturais, doenças e condições sociais precárias. En-tre os séculos 18 e 20, tinha havido um decréscimo de 800 mil almas. De 1951 a 2006, porém, a taxa de crescimento populacional foi sempre mais alta do que a taxa média da China, como um todo.

Em 2006, o Tibet alcançou 2,81 milhões de habitantes, com uma taxa natural de crescimento de 11,7%. A expectativa de vida passou de 35,5 anos, em 1951, para 67 anos. Da população total, 92% eram tibetanos, e 8% eram de outras etnias, como a Han, Hui, Moinba, Lhoba, Naxi, Nu, Derung, Deng e Sherpa.

A agricultura, a pecuária, e as atividades florestais, realizadas por campone-ses independentes, aumentaram sua produção. Pela primeira vez na história, a região tibetana abriu-se para a instalação de indústrias, e para a implantação de serviços de transporte e de telecomunicações modernos. Entre 1999 e 2006, o PIB do Tibet cresceu a uma taxa média superior a 12% ao ano, uma das mais elevadas da China, enquanto o PIB per capita alcançou 10 mil yuans (1.485 dólares). E, em 2006, a região começou a fazer pleno uso da ferrovia Qinghai-Tibet, ampliando a ligação entre suas localidades.

No Tibet existem 1.700 mosteiros lamaistas, com 47 mil monges e monjas residentes. Há 88 mosteiros Bon, com 3 mil monges residentes, e 93 Budas Vivos, com 130 mil seguidores. O islamismo e o cristianismo são pequenos em número de seguidores e em influência. Há quatro mesquitas, com 3 mil crentes, e uma igreja cristã, com 700 seguidores. Já o xamanismo, sem corpo teórico, nem locais especiais para rituais e organização, se restringe às áreas remotas.

Assim, embora suas condições de relevo sejam extremamente difíceis, e ain-da permaneçam áreas sem os benefícios da civilização, o Tibet tem se transfor-mado, com a melhoria das condições de vida de grande parte de sua população. E suas tradições culturais e seus monumentos têm sido conservados, conforme o crescente número de turistas estrangeiros tem podido testemunhar e relatar.

O governo chinês mantém, há muito, uma política de abertura para con-versações com o 14º Dalai Lama, incluindo seu possível retorno à terra natal.

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Desde 1960, foram inúmeras as conversações entre os dois lados. De 2001 a 2006, ocorreram seis encontros, com o governo da China jamais tendo deixado de reconhecer o Dalai como líder religioso do lamaismo.

O que o governo chinês não reconhece é a existência de um “governo tibe-tano no exílio”, nem aceita que tal “governo” pretenda separar o Tibet da China, ou que o assunto tibetano seja transformado em questão internacional. Para a China, o Tibet, assim como Taiwan, é parte inalienável do país, portanto um assunto interno.

Em 2006, ante o desenvolvimento da região, o Dalai declarou-se disposto a abandonar as pretensões de independência e retornar ao Tibet. Ao que pa-rece, no entanto, os compromissos com seus sustentáculos materiais, nos Es-tados Unidos e na Europa, o fizeram voltar atrás. Havia a suposição de que as Olimpíadas de Beijing apresentariam, ao Dalai e seus seguidores exilados, a oportunidade de uma nova insurreição, que colocaria o governo chinês frente à necessidade de fazer concessões radicais.

Os movimentos dos exilados tibetanos, articulados com organizações es-trangeiras anti-chinesas, passaram todo o ano de 2007 preparando um levante no Tibet, na comemoração dos 49 anos da revolta de 1959. Porém, os distúrbios em Lhasa e em outras cidades de maioria tibetana, em março de 2008, não con-taram com qualquer apoio massivo.

Longe de serem comparados aos conflitos populares de Los Angeles, ou dos arredores de Paris, contra a brutalidade policial, os acontecimentos no Ti-bet assemelharam-se apenas aos distúrbios de skinheads, após jogos de futebol. Apresentaram fortes componentes racistas, causaram incêndios em 7 escolas, 5 hospitais, 120 casas e 908 lojas, mataram 18 civis e um oficial de polícia, e feriram 382 civis e 241 policiais, a maioria dos civis sendo de outras etnias e religiões presentes no Tibet.

As manifestações, em várias cidades pelo mundo, insufladas fortemente pela mídia, visando deter a marcha da tocha olímpica, foram minguando à me-dida que os fatos se esclareciam, e que imigrantes e estudantes chineses passaram a organizar manifestações massivas de apoio às Olimpíadas de Beijing, e contra as atividades de secessão do Tibet. O próprio Dalai Lama viu-se obrigado a con-denar os atos de violência e o boicote às Olimpíadas, e solicitar contatos com o governo chinês, o que ocorreu, no início de maio, em Shenzhen.

A China continua se opondo a qualquer atividade que procure dividir o país, incitar a violência entre as etnias, e sabotar os Jogos Olímpicos. Ela declara que continuará se esforçando para desenvolver o Tibet, do ponto de vista econô-mico e social, manter a estabilidade política, e garantir a liberdade de culto para as religiões presentes lá e no restante do país. Ao mesmo tempo, continua aberta ao diálogo com o 14º Dalai Lama, e a seu retorno ao Tibet.

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Desde que, é lógico, ele pare de incitar a secessão. Afinal, a Região Autôno-ma do Tibet, no sudoeste da China, tem 1,22 milhões de quilômetros quadra-dos, um oitavo da superfície do país. O que equivale à soma das áreas da Grã-Bretanha, França, Alemanha, Holanda e Luxemburgo. Além disso, os 3.842 km de fronteiras da China com Miamar, Caxemira, Índia, Butão e Nepal estão localizados no Tibet.

05/05/2008

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A respeito do 17º Congresso do Partido Comunista chinês, têm surgido notícias e opiniões de que, da mesma forma que na antiga União Soviética, tais congressos não tomam decisões reais, mas apenas sacramentam fórmulas, a ascensão de novos dirigentes, e as tendências, preocupações e conflitos internos de sua burocracia.

Alguns contrapontos

Se isso fosse verdade, as resoluções dos congressos do PC da China não teriam modificado aquele país. Mas é difícil negar que, até 1978, eles promove-ram esforços imensos para elevar a capacidade produtiva e o padrão de vida do povo chinês. Levaram a China a construir uma razoável indústria de base, e pro-duzir mais de 300 milhões de toneladas de grãos. Garantiram teto, alimentação e vestuário para toda a população, erradicaram as endemias, e reduziram para 15% o analfabetismo que, em 1949, afetava 80% da população.

Em termos gerais, tiraram a China da miséria abjeta, construindo uma sociedade quase igualitária, com 700 milhões de pobres e 400 milhões vivendo abaixo da linha da pobreza. Porém, com um PIB de 48 bilhões de dólares, a ca-pacidade produtiva do país era inferior a 1% da produção industrial do mundo, e seu PIB per capita era insignificante. Continuava atrasada e pobre.

No esforço para desenvolver as forças produtivas, haviam contado, em cer-tos momentos, com a participação de múltiplos tipos de propriedade. Porém, contaram mais com as mobilizações da sociedade pobre que, apesar de massivas, se mostraram incapazes de gerar riqueza no volume e na velocidade necessárias para implantar uma dinâmica sustentada de desenvolvimento.

Decisões reais ou fictícias?

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Assim, foi no rescaldo da revolução cultural, a maior e última das tentativas de desenvolver as forças produtivas e, ao mesmo tempo, construir uma socieda-de igualitária e de democracia direta, que o Partido Comunista chinês abando-nou esse caminho e decidiu realizar uma grande retirada estratégica. Elaborou um programa de reformas, de 30 a 50 anos, que admitia o mercado e as formas de propriedade privada como importantes instrumentos de desenvolvimento da capacidade produtiva de sua sociedade socialista.

Nos últimos 27 anos, o PC e o Estado chineses implementaram esse programa, com um êxito que só os ignorantes ousam negar. A China res-ponde, hoje, por 7% da produção industrial do mundo. Em 2007, seu PIB pela paridade cambial será acima de 3 trilhões de dólares, superando o da Alemanha. Pela paridade de poder de compra, o PIB chinês ultrapassará os 12 trilhões de dólares, enquanto seu comércio exterior já é superior a 2 trilhões de dólares.

A China conseguiu a proeza de fazer sua economia crescer, entre 1980 e 2007, a uma taxa média de 9%, enquanto a renda per capita subia a uma taxa média de 6%. Embora ainda continuasse convivendo, em 2006, com cerca de 20 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, e 500 milhões de pobres, a China havia elevado 500 milhões de pessoas para um patamar de classe média baixa e média, e 300 milhões de pessoas para um patamar de classe média alta. Ou seja, em 27 anos, a China retirou da pobreza cerca de 800 milhões de pessoas.

Além disso, o crescimento chinês introduziu na economia mundial uma nova configuração produtiva e novos paradigmas industriais. Desmentindo as teorias neoliberais sobre o absolutismo do novo mundo informacional e da sociedade pós-industrial, a China tem jogado papel importante em co-locar no mercado mundial cerca de 40% da população do planeta, da Ásia, África e América Latina, e contribuir decisivamente para o controle mundial da inflação.

Foram os congressos do PC que traçaram os padrões desse desenvolvi-mento chinês. São padrões baseados em economias de escala, para obter bai-xos custos unitários; infra-estrutura desenvolvida, para evitar custos elevados na distribuição e circulação; quebra dos monopólios, inclusive estatais, para esti-mular a concorrência; juros financeiros baixos, para estimular os investimentos produtivos; altos investimentos em educação e em centros de desenvolvimento científico e tecnológico, para ter uma força de trabalho qualificada e à altura da nova revolução científica; incentivos à inovação, para elevar a competitividade; e incentivo ao consumo e ao mercado de massa, para ter o mercado interno como núcleo do desenvolvimento econômico, e capaz de enfrentar as crises externas de realização da produção.

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Críticas e perigos

Alguns dos que criticam o PC da China, pela utilização do mercado e das formas privadas de propriedade para o desenvolvimento das forças produtivas, consideram que isso representa uma ruptura brutal com sua teoria de defesa dos interesses dos operários e camponeses. E acham risível que esse partido, em todos os seus congressos, reitere seu compromisso com o marxismo, assim como com o pensamento maozedong.

Esses críticos talvez ignorem que Marx também considerava que nenhuma formação social poderia ser substituída, enquanto não esgotasse todas as suas potencialidades de reprodução. O que o levou a prever que as revoluções so-cialistas se dariam nos países capitalistas avançados. Por seu lado, Mao Zedong defendia que a revolução chinesa era democrática, não socialista, e que o fato de ser dirigida pelo Partido Comunista apenas impedia que fosse erigida uma muralha da China entre essa revolução democrática e a revolução socialista.

Apesar disso, ele e o Partido Comunista da China acreditaram, como ou-tros, que seria possível evitar as dores do capitalismo na construção da sociedade socialista. Seus fracassos, como os dos outros, apenas demonstraram que as pre-missas descobertas por Marx estavam corretas.

Nesse sentido, o que diferencia o PC da China dos partidos comunistas da União Soviética e do Leste Europeu, é que ele levou a sério o fracasso das tenta-tivas de construir o socialismo sem completar o desenvolvimento das forças pro-dutivas, que cabia ao capitalismo realizar. Por outro lado, embora utilizando o mercado e formas de propriedade privada, o PC chinês não concorda que o mer-cado e a propriedade privada subordinem o Estado a seus interesses. Na China, a economia é de mercado, mas o mercado e a propriedade privada encontram-se sob a direção do Estado, com a propriedade social tendo um peso relevante.

Não por acaso, os principais “críticos” ocidentais do modelo chinês se vol-tam contra o que chamam de “Estado do sistema de partido único”. Segundo eles, tal Estado impediria a China de construir um arcabouço jurídico de con-corrência, o que limitaria sua competitividade, e de construir um regime demo-crático e uma sociedade civil ativa, o que a impediria de ocupar uma posição de liderança global. Na verdade, para esses críticos, com partido único ou multi-partidarismo, o problema é a existência de um Estado que direciona e regula a ação do mercado e das formas de propriedade. E, ao contrário do que afirmam, tem capacidade de estimular a competitividade, a democracia e a sociedade civil, e ocupar posição importante no cenário mundial.

É evidente que há, sempre, a possibilidade da situação se inverter, e o Esta-do chinês subordinar-se ao mercado e à propriedade privada. Este parece ser um dos riscos inerentes aos países em desenvolvimento, que buscam realizar proces-

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sos mais profundos de transformação social. Assim, talvez por se dedicarem com afinco ao ajuste dos desequilíbrios, disparidades e desvios de rumo, inevitáveis num processo de reformas tão vasto e complexo, os congressos do Partido Co-munista chinês tenham conquistado tanta importância.

Os desafios do 17º Congresso

Desde seu 16º Congresso, em 2002, o PC da China havia detectado pelo menos cinco desafios prementes: os ambientais, as disparidades regionais, as disparidades entre pobres e ricos, os riscos financeiros, e a corrupção.

Os problemas ambientais, numa combinação perversa entre passivo his-tórico e industrialização muito rápida, espraiaram-se. A posse de reservas de carvão, possibilitando produzir energia termelétrica e produtos siderúrgicos ba-ratos, transformou a China num dos países que mais poluem o ar, e que mais gastam energia. Em sentido contrário, a posse de uma área agrícola correspon-dente a 7% do total mundial, para alimentar 22% da população do planeta, conduziu-a ao uso intensivo e à degradação das águas e solos.

A desproporção de 3,26 para 1,09 e 1,00, respectivamente, entre o produto interno bruto das regiões leste, central e oeste, e a disparidade da renda per capita urbana, de mais de 5 mil yuans, em relação à renda das zonas rurais, de 2,3 mil yuans, mostravam a lenta modernização do centro e do oeste do país.

A distância entre a renda per capita dos mais ricos e dos mais pobres au-mentou. Agravaram-se os problemas relacionados com o trabalho e a segurança no trabalho, desemprego, seguridade social, educação, saúde, abastecimento, justiça e segurança pública. A falta de regularização dos trabalhadores migrantes permitia a exploração abusiva e os acidentes. A ausência de serviços públicos influía diretamente sobre a renda dos trabalhadores das zonas rurais, impondo-lhes cargas para a educação, saúde e justiça. Um desemprego de 4% não impe-diu que algumas regiões da China tivessem falta de mão-de-obra qualificada.

Os riscos financeiros e da globalização haviam se tornado mais evidentes, à medida que as operações financeiras passavam a ser o coração da economia moderna, determinando a estabilidade ou a instabilidade de todo o sistema eco-nômico. O sistema financeiro chinês ainda mantinha estruturas fracas, com go-vernança deficiente. Os desequilíbrios na balança de comércio internacional da China, com altos superávits, e níveis muito elevados de reservas internacionais, podiam tornar-se perigosos para o desenvolvimento equilibrado do país.

E a corrupção, embora fosse um problema atacado desde o início das re-formas, como uma das questões chaves para manter a legitimidade do PC e do Estado socialista, passara a exigir medidas mais amplas e seguras de supervisão, de modo que não lhe fosse dada qualquer trégua.

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Se tais desafios continuassem crescendo, a suposição de desenvolver o so-cialismo com características chinesas, tomando o desenvolvimento econômico como tarefa central, e as políticas de reforma e abertura ao exterior como esforço principal, corria o risco de fracassar. Diante disso, cabia ao 17º Congresso do PC da China não só avaliar as experiências levadas a cabo, desde 2002, mas também realizar um ajuste mais vigoroso.

Não é por acaso, pois, que as decisões desse recente congresso do PC da China, além de colocar a “construção verde” como preocupação central dos projetos de crescimento econômico, apontem para medidas rigorosas de fis-calização, conservação e recuperação do meio ambiente. Os poderes da Admi-nistração de Proteção Ambiental foram ampliados, permitindo-lhe fechar mais de 3 mil empresas e minas poluidoras, tornar mais rígida a obrigatoriedade dos estudos de impacto ambiental, implantar taxações para desenvolver métodos científicos de monitoramento, conservação e recuperação ambiental, e impor compensações pelo uso de recursos naturais e danos causados ao meio ambien-te. O programa de economia de energia tem meta de redução do consumo em 20%, até 2010.

A preocupação com os desequilíbrios regionais e entre as zonas urbanas e rurais resultou na adoção de medidas para extinguir todos os impostos agrícolas e acelerar a universalização do sistema de segurança social e de serviços públicos nas zonas rurais. Estão sendo, prioritariamente, corrigidas as lacunas existentes nos transportes, abastecimento de água, educação e atendimento médico.

As 20 milhões de pessoas que ainda vivem abaixo da linha da pobreza de-vem ter elevado seu padrão de vida até 2010. A situação dos trabalhadores mi-grantes está sendo regularizada, para garantir seus direitos. E as classes sociais de renda mais alta passam a contribuir com maiores taxas para a extensão e barate-amento dos serviços públicos. O Estado também se tornará mais atuante frente às empresas estrangeiras que se neguem a aceitar a organização sindical.

Para reduzir os riscos globais, o PC pretende que a China aprofunde as reformas de seu sistema financeiro, fortalecendo sua supervisão e controle, e melhorando sua governança. Também quer que a China diminua o desequilí-brio no comércio internacional, através do aumento de suas importações, e da constituição de fundos financeiros, que chegam a 200 bilhões de dólares, para projetos no exterior.

O 17º Congresso do PC da China também reiterou a decisão de assegurar a constante extensão dos direitos democráticos, intensificando a obediência às leis, reforçando o sistema de congressos populares, ampliando o sistema de coo-peração multipartidária e consulta política, e o sistema de auto-gestão nos níveis primários da sociedade, como as aldeias, povoados, cantões e empresas estatais. O sistema de congressos do PC deve passar a ser anual.

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Com isso, o PC espera completar a fase primária de construção do socia-lismo com características chinesas, realizar o desenvolvimento das forças produ-tivas materiais e desenvolver, paralelamente, uma sociedade harmônica, como base de uma civilização política e cultural avançada.

É lógico que a China pode, hoje, realizar todas essas medidas e sonhos, que envolvem investimentos de algumas centenas de bilhões de dólares. Em 27 anos de reformas, ela acumulou reservas internacionais superiores a 1,5 trilhão de dólares, e uma poupança pública doméstica de cerca de 2 trilhões de dólares, depositados em seus bancos. Nos próximos dez anos, tem condições de duplicar essa riqueza.

Se vai conseguir reequilibrar a sociedade no prazo estipulado, é algo que só a história pode comprovar. De qualquer modo, como a própria história já mos-trou, seria um erro considerar que os congressos do PC da China não adotam decisões reais. Portanto, é melhor levá-los a sério, mesmo não gostando deles.

02/11/2007

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Brasil e China

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Na aparência, a China continua apresentando-se como um vasto canteiro de obras, com uma produção massiva de produtos de consumo de massa, inclu-sive duráveis, ampla oferta de produtos agrícolas e bens de todos os tipos, e uma população afluente com crescente acesso ao mercado.

Na prática, um país com um crescimento econômico sustentado de cerca de 10% a.a., durante dezoito anos, e que pretende crescer a um ritmo médio de 8% a.a. entre 1997 e 2010 (quatorze anos). Um país que está se trans-formando rapidamente numa vasta sociedade de consumo de massa e numa potência industrial de primeira grandeza, com uma escala de produção desco-nhecida dos padrões ocidentais.

Panorama da China em 1997

Em 1997, o PIB chinês atingiu a cifra de 7,5 trilhões de yuans (cerca de 1 trilhão de dólares, pelo método de paridade cambial), empregando 696 milhões de trabalhadores em todos os setores da economia, e mantendo uma taxa de desemprego de 3,1% da população economicamente ativa.

Para realizar esse feito, a China iniciou em 1978 um planejado processo de reformas que deve durar de 50 a 100 anos. Começou pela reforma agrícola e pela abertura ao exterior, e continuou pelas reformas legal, urbana e industrial, financeira, comercial, tributária e fiscal, de preços e salários, educacional, polí-tica e outras.

As metas dessas reformas, tomando por base o ano de 1980, consistiam em quadruplicar o PIB até o ano 2000 e dobrar novamente este PIB até o ano 2010. Isto permitiria eliminar totalmente os bolsões de pobreza (60 milhões de pesso-

Possibilidades Brasil - China

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as, em 1996) até o ano 2000, e fazer com que o 1,2 bilhão de chineses alcancem um padrão de vida medianamente abastado em 2010. A meta de quadruplicar o PIB em vinte anos foi alcançada em dezoito.

A reforma agrícola permitiu quase duplicar a produção de grãos (cerca de 500 milhões de toneladas anuais na atualidade), elevar a produtividade da terra e do trabalho rural, e transformar as zonas rurais num vasto mercado interno para as indústrias urbanas. A partir de 1984, quando tiveram início as reformas na indústria, esta possuía uma demanda reprimida considerável a atender.

Paralelamente, a abertura ao exterior e a reforma urbana, combinadas à elevação da produtividade do trabalho agrícola, estimularam o surgimento de uma diversificada indústria rural, que se encarregou de grande parte do boom da construção civil, de boa parte da produção do vestuário para exportação e, prin-cipalmente, evitou o êxodo massivo de agricultores para as cidades. As indústrias rurais ocupam hoje mais de 130 milhões de trabalhadores e são responsáveis por mais de 60% do valor da produção das zonas rurais.

A abertura ao exterior permitiu à China captar até hoje mais de 200 bilhões de dólares em investimentos diretos, tanto com aporte de novas tecnologias, quanto com tecnologias intermediárias de uso intensivo de mão-de-obra, volta-das na maior parte para as exportações. Utilizando-se principalmente do sistema de joint-ventures entre empresas estatais ou públicas e empresas estrangeiras, es-ses investimentos combinam produção em escala com salários nominais, incen-tivos fiscais e impostos relativamente baixos.

Desse modo, a China transformou-se numa agressiva nação exportadora, com preços competitivos, cujo comércio exterior se elevou a 325 bilhões de dólares em 1997, e cuja balança apresentou um saldo de 40 bilhões de dólares. Deve-se aos constantes superávits na balança comercial o montante de 139 bi-lhões de dólares de reservas internacionais da China.

Nos doze anos de duração da reforma urbana, as cidades chinesas moder-nizaram-se rapidamente, suas indústrias enfrentaram um acelerado processo de reciclagem, ocorreu um aporte considerável de novas tecnologias e as indústrias espacial, aeronáutica, eletrônica, de telecomunicações e de novos materiais con-quistaram um lugar de ponta.

O crescimento acelerado, dai decorrente, causou o surgimento de um surto inflacionário, cujo pico chegou a 23% a.a. em 1993. Para debelá-lo, o governo chinês adotou medidas de ajuste nos investimentos não produtivos, permitindo levar a inflação a um declínio paulatino, mas permanente e seguro. Ela deve che-gar a 4% a.a. em 1998, e continuar caindo nos anos seguintes, sem prejudicar o crescimento.

O aspecto mais significativo desse processo chinês de industrialização e revolução tecnológica tardia parece ser não a exportação massiva de produtos

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de consumo de massa, mas sim a criação de um mercado interno de massa sem precedentes por sua escala. Segundo informações e cálculos estimativos, mesmo a parcela de trabalhadores de menores salários consegue dispor de 50 a 60% de sua renda para a aquisição de vestuário e bens duráveis e para turismo interno.

Em 1997, a renda per capita dos habitantes urbanos foi de 5.160 yuans (3,4% acima de 1996), enquanto a dos habitantes rurais foi de 2.090 yuans (4,6% acima de 1996). Como esse padrão de elevação da renda tem se mantido ao longo dos últimos vinte anos, acompanhando as taxas de crescimento econô-mico, é razoável prever uma afluência crescente de novos segmentos populacio-nais ao mercado de consumo. Em termos mundiais, isto deve ter um impacto muito maior, a prazo menor, do que normalmente se considera.

A crise financeira internacional, com possíveis desdobramentos recessivos sobre a produção de inúmeros países e sobre o comércio mundial, provavelmente acelerará esse impacto do mercado interno chinês, em lugar de restringi-lo. Pri-meiro porque o comércio externo, apesar de tudo, representa somente cerca de 1/3 do PIB chinês. Segundo porque, para compensar possíveis restrições às ex-portações, o governo está adotando medidas que estimulem ainda mais o consu-mo interno, de modo a manter a taxa de crescimento do PIB próxima de 8%.

Possibilidades do intercâmbio com a China

Os chineses são muito claros em seus objetivos. Eles pretendem basicamen-te exportar produtos para todo o mundo e captar investimentos estrangeiros.

Seus produtos exportáveis incluem uma gama bastante diversificada que vai da microeletrônica e indústria espacial à confecções e brinquedos de pelú-cia. Embora boa parte desses produtos tenha qualidade inferior aos padrões internacionais, a China está aprendendo rapidamente a combinar preços bai-xos à qualidade elevada, e já é possível encontrar empresas fabricando produ-tos de primeira linha.

Os investimentos que procuram também cobrem uma gama variada de itens, que varia de região para região. O governo chinês mantém um Guia para Investimentos Estrangeiros, revisto periodicamente, no qual estão lis-tadas todas as áreas e tipos de produtos em que são aceitos investimentos estimulados, ou em que os investimentos são simplesmente permitidos, ou nos quais eles são proibidos.

Os investimentos estimulados referem-se àqueles considerados prioritários para a estratégia de desenvolvimento econômico e social. Relacionam-se com projetos de altas e novas tecnologias, com lacunas da estrutura econômica chi-nesa, com os desequilíbrios regionais ou outros aspectos estratégicos. Atualmen-te, por exemplo, todos os investimentos direcionados para o Centro e o Oeste

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do país, ainda atrasados em relação ao Leste litorâneo, enquadram-se na rubrica de investimentos estimulados, a não ser que se relacionem com os proibidos. Esses investimentos estimulados podem receber diferentes tipos de benefícios, como isenções fiscais, e direito a créditos bancários internos.

Os investimentos permitidos são aqueles relacionados com projetos que a China já desenvolveu em escala considerável, representando perigo de excesso de produção. No entanto, podem ser permitidos se apresentarem alguma van-tagem comparativa, como algum tipo de tecnologia avançada, ou uma grande capacidade de absorção de força de trabalho, ou outro aspecto importante. En-tretanto, não recebem qualquer tipo de benefício.

Os investimentos proibidos são aqueles que se dirigem à indústria bélica e plantas industriais e produtos poluentes.

Apesar de sua agressividade empresarial nas exportações e na captação de investimentos, os chineses importam diferentes tipos de matérias primas e pro-dutos industriais, como minério de ferro, café solúvel, borracha, farinha de pei-xe, aços de diferentes tipos, fibras químicas etc. Embora tenha grandes recursos naturais, a China não pode nem quer depender somente deles, o que amplia as possibilidades de exportar para lá.

Orientação para o intercâmbio com a América Latina

A China mantém relações comerciais com 46 países da América Latina e Caribe (conforme dados da chancelaria chinesa), e seu comércio exterior com essa região vem crescendo, nos últimos anos, à taxa de 30% a.a. Em 1995, as importa-ções e exportações chegaram a USD 6,114 bilhões, em 1996 a USD 7,9 bilhões e em 1997 a cerca de USD 10 bilhões. Entretanto, isso ainda representa um comér-cio muito restrito, se considerarmos o potencial econômico dos dois lados.

A partir de 1996, a China vem adotando uma nova orientação em seu co-mércio com a América Latina, orientação que pode ser sintetizada nos seguintes pontos:

a. Não limitar o comércio bilateral às importações e exportações;b. Combinar esse comércio com a cooperação bilateral nos setores indus-

trial e agrícola e na transferência tecnológica;c. Realizar investimentos para estabelecer fábricas de montagem (televi-

sores, rádios, ventiladores, motocicletas e tratores) e processamento (materiais farmacêuticos e vestuário) e para exportar serviços;

d. Investir fundos e tecnologias em projetos de exploração de recursos mi-nerais, florestais, agropecuários e pesqueiros que a China necessita, para incre-mentar a importação desses recursos pela China e a exportação de produtos chineses para a América Latina;

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e. Estabelecer centros de distribuição de mercadorias em cidades portuárias chinesas, para o transporte para a América Latina, e oferecer serviços financei-ros aos exportadores e importadores, através do Banco da China, na Cidade do Panamá e em nova sucursal a ser instalada na região, de modo a facilitar inclusi-ve a compra de pequenas quantidades de mercadorias chinesas.

f. Incrementar o conhecimento da China pelos países latino-americanos.Há, desse modo, muitos canais através dos quais o Brasil pode acessar o

mercado chinês e se beneficiar de sua dinâmica de crescimento. Os empresários brasileiros deveriam programar-se com estratégias de longo prazo, que combi-nassem a realização de investimentos na China com a exportação de produtos de demanda crescente. Ao mesmo tempo, deveriam preparar-se para a inevitável tendência de empresas chinesas investirem no Brasil.

Nesse processo, é preciso levar em conta a crescente descentralização do desenvolvimento econômico e do comércio internacional da China. O controle macroeconômico dos investimentos e das exportações e importações, inclusive de capitais, se encontra em mãos do governo central, mas as empresas, povo-ados, cantões, bairros, distritos e províncias ganharam grande autonomia de decisão. Podem entabular negociações diretas com investidores, exportadores e importadores, embora em vários casos a última palavra seja dada por Beijing. Eis porque o estabelecimento de laços formais de relações entre cidades brasilei-ras e cidades chinesas pode contribuir para agilizar as relações entre empresas.

Finalmente, deve-se levar em conta que o comércio bilateral Brasil-China alcançou cerca de USD 2,0 bilhões em 1997, um volume ainda extremamente modesto para o potencial econômico dos dois países. Além disso, a China tem importado mais do Brasil, do que exportado para cá. Essa pequena magnitude do intercâmbio e o desequilíbrio nas contas bilaterais são desfavoráveis.

Por outro lado, como esse comércio bilateral é ascendente e o mercado chinês apresenta um potencial inigualável na atual conjuntura internacional, o Brasil tem um vasto campo de complementariedades a desenvolver com aquele país. O momento é este.

15/11/1998

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A viagem de Lula à China, em maio, volta a envolver o PT num debate que parece deslocado no tempo. Alguns apressaram-se a declarar que Lula deveria evitar a visita àquele país, onde vigoraria um regime sem democracia, pior do que qualquer país capitalista.

No trato das relações internacionais não vale a pena, neste momento, discutir a visão distorcida que alguns possuem do regime chinês. Nem o fato de que, para serem coerentes, essas pessoas deveriam exigir que o PT se abstivesse de visitar países que, embora dizendo-se democratas e defensores dos direitos humanos, praticam a discriminação contra os imigrantes, au-mentam o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e decidem, a seu talante, bombardear países indefesos, como fazem os EUA e membros da OTAN.

Interessa, no momento, discutir se o PT e o Brasil devem ter uma visão estratégica sobre as relações internacionais e o papel que novas parcerias estra-tégicas podem desempenhar para estimular a multipolaridade global e retirar o Brasil de sua subordinação ao hegemonismo norte-americano. É nesse sentido que as relações com a China ganham relevo. A alegação de que as relações entre países não pode ser turbada por diferenças ideológicas deve ser verdadeira tanto para a França de Jospin, quanto para a China de Jiang Zemin.

Desde 1978, a China realiza uma política de desenvolvimento, cujas ta-xas de crescimento têm se mantido entre 8% e 9% ao ano, para o PIB, e entre 4% e 6% para a renda real da população. Em 20 anos, a China quadruplicou seu produto bruto e, nos próximos vinte anos, mantendo a taxa de crescimen-to de 6% a 7% ao ano, ela deve ombrear-se com os Estados Unidos em termos de produto global.

China: um parceiro estratégico

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Ao mesmo tempo que se abre para investimentos externos no país, em que pratica a solução negociada dos problemas com os vizinhos e em que participa ativamente dos fóruns internacionais onde pode negociar a solução pacífica dos conflitos, a China também mantém uma política de independência nacional. Com isso, ao tempo que se oferece como mercado promissor, ela se torna um ator ativo na manutenção da paz mundial, contraria as regras de subordinação que a potência hegemônica tenta impor ao mundo e demonstra que é possível integrar-se ao processo globalizante sem subordinar-se ao consenso hegemôni-co, nem renunciar à independência e soberania nacionais.

Combinando abertura externa com independência nacional, a China nega-se a firmar alianças militares com qualquer outro país e procura estabelecer parcerias estratégicas com todos os países que desempenham papel fundamental nos rumos da política internacional, aí incluídos os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Índia, Austrália, África do Sul e Brasil. Através de acordos no terreno do desenvolvimento econômico e das relações bilaterais, a China estimula a multipolaridade e um clima internacional que permita aos países em desenvolvimento e aos países pobres, entre os quais ainda se inclui, alcançar suas metas de crescimento e resolver seus problemas sociais.

As políticas internacionais da China coincidem, pois, com os interesses do Brasil. É, então, estratégico para o Brasil e para os brasileiros, estabelecer relações estreitas com a China, tendo por base os interesses mútuos no contexto interna-cional e as oportunidades complementares que o desenvolvimento chinês pode oferecer para o desenvolvimento brasileiro. Se esta visão dos interesses nacionais brasileiros já era acertada quando Lula foi convidado pela primeira vez a visitar a China, em 1984, ela é ainda mais correta na atualidade, seja porque esse país desenvolveu-se e integrou-se no contexto internacional com independência, seja porque o novo governo dos EUA introduz mudanças trogloditas na sua políti-ca externa, com sérias e implacáveis conseqüências tanto para seus “inimigos”, quanto para seus “aliados” pouco firmes.

Em pouco tempo, Bush bombardeou o Iraque, determinou a implantação do escudo antimísseis (guerra nas estrelas), criou um conflito diplomático com a Rússia, interfere negativamente na distensão entre as duas Coréias e entre a Palestina e Israel, quer vender armas a Taiwan, ameaça a Venezuela por “expor-tar a revolução”, nega-se a assinar o acordo de Kioto e reduzir a emissão de gases tóxicos, provocou um sério incidente aéreo com a China e faz pressões inimagi-náveis sobre o Brasil e os demais países da América Latina para aceitar os termos norte-americanos de criação da Alca e de isolamento de Cuba.

Representando os interesses das grandes corporações norte-americanas de petróleo e de armas, Bush revive com arrogância a ideologia da segurança nacio-nal e reedita o clima da guerra fria. Num contexto desses, é fundamental para

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o Brasil ampliar suas parcerias estratégicas com os países da América do Sul e do Caribe, da África, da Europa Ocidental, da Europa Oriental, da Oceania e da Ásia. Neste caso, a região de maior dinamismo econômico do mundo, em particular com a Índia e com a China.

Reviver preconceitos ideológicos de qualquer tipo, pela direita ou pela es-querda, para atrapalhar ou impedir essas parcerias estratégicas, representa não só continuar aceitando o velho jogo hegemônico anglo-saxão, mas também subor-dinar-se ao novo jogo de hegemonia belicosa de Bush, que colide frontalmente contra os interesses do Brasil como nação e como povo. O PT e Lula deveriam levar tudo isso em conta ao tratar das relações com a China.

15/04/2004

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Apesar dos neoliberais serem ignorantes sobre as estratégias chinesas de crescimento, eles têm certa razão quando afirmam que alguns aspectos dessas estratégias não são adaptáveis às condições brasileiras. Por exemplo, quando as reformas chinesas tiveram início, em 1980, havia uma poupança popular in-calculável naquele país, fruto de trinta anos de uma combinação de pleno em-prego, escassez de oferta, preços baixos, subsídios à educação, saúde e moradia, inflação perto de zero, e baixo endividamento público.

Esta combinação, alavanca importante para o desenvolvimento chinês, está ausente da situação brasileira. No Brasil, serão necessários mecanismos não ape-nas para redistribuir a renda, mas também para desconcentrá-la fortemente, e democratizar a propriedade capitalista, de modo que a desconcentração não seja revertida rapidamente. Nesse sentido, reforçar o papel do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica, como bancos de desenvolvimento, voltados for-temente para o financiamento de pequenos e médios projetos industriais e agrí-colas, com mecanismos ágeis, como os das cooperativas de crédito e do banco popular, é essencial. Algo que não passa nem perto do pensamento neoliberal.

Outro aspecto da estratégia chinesa, desconhecido dos neoliberais, é o pa-pel das estatais na reforma pós-1980. Com uma estrutura industrial e comercial constituída apenas por empresas de propriedade estatal e coletiva, os chineses não tinham experiência na transferência de tecnologias para o setor privado, e no adensamento dos segmentos nacionais de suas cadeias produtivas. Isso eles aprenderam com a Petrobras, a Vale do Rio Doce e outras estatais brasileiras.

Assim, enquanto no Brasil as estatais eram privatizadas na forma escusa que se conhece, na China elas foram elevadas a um novo papel estratégico, ganhan-do autonomia para atuar no mercado, e fazer associações de diferentes tipos

O Brasil e a experiência chinesa

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com empresas privadas, nacionais e estrangeiras, tanto para expandir o capital privado nacional, quanto para internalizar altas e novas tecnologias, levadas por empresas estrangeiras.

Retomando sua antiga experiência, o Brasil poderia dar, a suas estatais res-tantes, autonomia para atuar no mercado e adensar suas cadeias produtivas, através de associações com o capital privado nacional, atração de capitais estran-geiros, e internalização de novas e altas tecnologias. Mesmo que não seja possível reverter as privatizações fraudulentas, a transformação das estatais em instru-mentos de política econômica pode fortalecer o papel do Estado na economia, e dar-lhe capacidade para orientar o seu rumo futuro. Sabendo-se, de antemão, que a grita neoliberal será intensa.

06/01/2007

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Outro exemplo que pode ser útil aos atuais desafios do Brasil é o uso que a China faz do câmbio como instrumento de política econômica. Os chineses também copiaram em boa medida o sistema de câmbio administrado flexível, que já foi praticado no Brasil. A diferença é que, enquanto eles desvalorizavam sua moeda para dar competitividade a seus produtos, os neoliberais brasileiros valorizaram artificialmente o câmbio, para depois deixá-lo flutuar com baixo nível de controle. Retomar o câmbio administrado, como já propõem alguns economistas brasileiros, pode dar competitividade aos produtos brasileiros no mercado internacional e auxiliar o crescimento.

Os chineses também têm mantido em nível muito baixo as taxas de juros, de modo a estimular os investimentos privados e públicos e, ao contrário do que dizem os neoliberais, têm realizado um controle muito firme sobre os capitais de curto prazo. Só admitem a entrada de capitais de longo prazo, voltados para investimentos em setores constantes do seu Guia de Investimentos Estrangeiros, para adensar suas cadeias produtivas, e introduzir novas e altas tecnologias na economia do país.

A China é supostamente tida como não observadora de contratos, sem agências reguladoras, com regulação fraca, e um dos países mais corruptos do mundo. Ou seja, tudo que os neoliberais consideram incompatível para a atra-ção de capitais. Então, como é possível que hoje a China seja o maior foco de investimentos diretos estrangeiros do mundo? Porque, ao contrário do que supõem os neoliberais, além de haver avançando na regulação e no combate à corrupção, e praticar inflação baixa e câmbio administrado, a China tem, prin-cipalmente, operado políticas econômicas que apontam claramente para um crescimento sustentado, o verdadeiro interesse dos capitais externos.

Ainda a experiência chinesa

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Essas políticas comportam uma série de combinações estratégicas, que in-cluem, entre outras coisas, os quatro grandes feriados de uma semana a dez dias, para estimular o turismo interno e o consumo; a redução das jornadas legais de trabalho a 40 horas semanais, e da aposentadoria aos 60 anos, para evitar o cres-cimento do desemprego; e o crescimento constante das rendas, acompanhando o crescimento do PIB, para reforçar o mercado interno e evitar polarizações so-ciais. As altas taxas de poupança, os salários nominais baixos e a grande atenção à educação são apenas aspectos de um conjunto muito amplo de políticas de desenvolvimento econômico e social.

Em outras palavras, os neoliberais não entendem nada de China, não são sérios no tratamento daquela experiência, e apenas brandem espantalhos, pro-curando impedir que o Brasil aproveite alguns aspectos úteis da experiência chinesa. De qualquer modo, o que nos interessa é mostrar que os problemas reais de concentração de renda e de propriedade estão na raiz das travas do cres-cimento brasileiro. O resto é conseqüência.

6/01/2007

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Na falta de conclusão

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Na Falta de Conclusão 303 |

A Editora Boitempo lançou, em português, uma alentada obra de Gio-vanni Arrighi, Adam Smith em Pequim. Esbanjando erudição, Arrighi, segundo Theotonio dos Santos, deixa “um rastro de inquietação intelectual no Brasil”, em virtude do “abismo que vem se cavando entre a intelectualidade brasileira e o pensamento da esquerda mundial”.

Não há forma segura de comprovar essas assertivas, mas não deve haver dúvidas de que é preciso tê-las como probabilidade. O que obriga, quem quer que pretenda analisar a atual situação mundial, a ler e a debater a obra de Arrighi. Ao rastrear o que chama de “turbulência global”, aquele pensador coloca em cena uma possível “nova época asiática”, e a discussão da atualidade ou não das teorias de Adam Smith, Marx, Schumpeter, e dos cientistas sociais dos Estados Unidos.

Arrighi parte do pressuposto de que a política, a economia e a sociedade mundial vêm sendo configuradas por dois fatos incontestáveis: a ascensão e o abandono do neo-conservador Projeto para o Novo Século Norte-Ameri-cano, e o surgimento da China como líder do renascimento da Ásia orien-tal. A análise da transferência do epicentro da economia política global, da América do Norte para a Ásia oriental, feita à luz das teorias de Adam Smith sobre os mercados, apontaria para a conformação de um “mercado global não-capitalista”.

Para demonstrar esta tese central, Arrighi argumenta que Adam Smith teria razão ao afirmar que a potência econômica da China, no século 18, chegara a um equilíbrio entre oferta e mercado, sacrificando a acumulação capitalista. No século 19, a China teria um padrão de vida semelhante ao da Europa. Seu avanço teria sido solapado pelo poderio militar europeu.

Afinal, quem está em Beijing?

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Nos diversos capítulos da obra, Arrighi vai e volta nas tentativas de evi-denciar as causas que levaram a “dinâmica smithiana comum à Europa e à Ásia oriental” à Grande Divergência, com “efeitos opostos”: na Europa, a Revolução Industrial; na Ásia oriental, o fracasso da Revolução Industriosa.

O “caminho capitalista ocidental”, de “uso intensivo de capital e de recur-sos energéticos”, teria sido fruto da Revolução Industrial. Esta teria permitido ao caminho ocidental suplantar ” a Revolução Industriosa do “caminho de mer-cado da Ásia oriental”. Agora, porém, havendo o caminho ocidental atingido seus limites, as condições para a dinâmica smithiana retomar seu curso estariam dadas, permitindo o “renascimento” da Ásia oriental, caracterizado pelo uso intensivo de mão-de-obra e baixo consumo de energia.

Problemas históricos

Esses argumentos sofrem de problemas históricos graves. Desdenham a luta de classes, entre mercadores e feudais, que se desenrolou durante todo o pe-ríodo que vai, aproximadamente, do século 7 ao século 17. Essa luta levou, em alguns reinos, à vitória dos mercadores burgueses contra os feudais. Em outros, à vitória dos feudais sobre os mercadores.

Arrighi despreza os resultados particulares daquela luta de classes. Primei-ro em Portugal e na Espanha e, depois, na Holanda, Inglaterra e França, que levaram ao mercantilismo. Finalmente, na China, que saíra quase um século à frente dos europeus na expansão do comércio marítimo, mas sofreu, a partir da dinastia Ming, aquilo que alguns autores chamam de “involução”.

No início do século 15, as frotas marítimas chinesas, utilizando avanços técnicos que os europeus só incorporaram depois, como embarcações de grande porte, já haviam criado uma rota de transporte marítimo intenso. Ela ia até a costa oriental e o chifre da África. Os mercadores chineses negociavam com os reinos do sudeste da Ásia, do subcontinente indiano, da África oriental e da Arábia, tanto os produtos de suas manufaturas, quanto os produtos artesanais e agrícolas desses reinos.

Da mesma forma que, um século depois, esse mesmo tipo de comércio enriqueceu alguns reinos europeus, no caso chinês ele carreou imensas riquezas para a dinastia Ming. Porém, do mesmo modo que o mercantilismo europeu foi o centro da luta entre burgueses e feudais, o mercantilismo chinês acirrou a disputa entre os feudais e os mercadores, estes considerados por aqueles como classe de segunda categoria.

Enquanto na Europa, várias monarquias subjugaram os feudais e se aliaram aos mercadores na exploração marítima e de outras terras, na China ocorreu o contrário. Os setores da nobreza Ming, favoráveis aos mercadores, foram inca-

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pazes de apoderar-se da monarquia, como fez João de Avis, em Portugal, estabe-lecer a aliança com os mercadores, e enquadrar os feudais.

Enfraquecida pelas disputas internas, a dinastia Ming ainda enfrentou bem a primeira globalização colonial das novas potências européias, iniciada no final do século 15, e continuada durante os séculos 16 e 17. Mas, ao proi-bir as viagens marítimas, com a conseqüente destruição da frota, abandonou qualquer pretensão de participar na onda de descobertas marítimas, que trans-formaram o mundo.

Portanto, quando uma parte da nobreza Ming aliou-se ao reino militaris-ta manchu, e patrocinou tanto sua invasão sobre a “nação do meio”, quanto sua instalação, como dinastia Qing, em meados do século 17, os Ming já tinham fechado a China no autarquismo feudal, recolocado os mercadores no lugar que supunha lhes caber na hierarquia social, e impedido o desenvolvi-mento do mercantilismo.

A dinastia Qing apenas consolidou essa situação. Realizou uma reforma agrária, que substituiu uma grande parte dos senhores feudais hans por senhores feudais manchus, manteve o escravismo em muitas de suas regiões, e abando-nou os avanços técnicos herdados das dinastias Yuan e Ming, que poderiam ter levado a China a uma revolução industrial.

A monarquia Qing montou sobre a riqueza acumulada entre os séculos 14 e 16, mas a utilizou unicamente para seu luxo “asiático”. É difícil enxergar um “mercado” em desenvolvimento na China, durante os séculos 17 e 18, quando suas “janelas abertas” para o resto do mundo se restringiam ao entreposto por-tuguês de Macau e ao porto de Cantão. Nessas condições, a dinastia manchu estava despreparada para enfrentar a nova onda de re-divisão do mundo, no século 19, realizada pelas potências européias que haviam emergido com a Re-volução Industrial.

No caso da China e de outras regiões da Ásia oriental, Marx confun-diu a transição do sistema feudal para o capitalismo com a existência de um modo de produção asiático. Nada muito diferente de Adam Smith, que confundiu a riqueza acumulada pelo período mercantilista chinês, com um equilíbrio entre oferta e mercado. Havia uma riqueza acumulada, mas não um mercado pujante. E o que se seguiu, a partir da Primeira Guerra do Ópio, em 1840, foi apenas a pilhagem daquela riqueza pelas potências eu-ropéias e pelo Japão.

Arrighi é induzido em erro ao desprezar as lutas de classes, que desembo-caram no mercantilismo, na Europa, e na involução feudal, na China. E a não enxergar no mercantilismo o instrumento que levaria à acumulação primitiva do Capital, antes da Revolução Industrial. Em todos os capítulos de sua obra, ele ignora o papel histórico do cercamento das terras e da expropriação dos meios

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de produção dos camponeses, na Inglaterra, que criaram uma imensa massa da população, cuja única propriedade era sua força de trabalho.

Não cogita, em qualquer momento, que o Capital só tenha surgido histo-ricamente a partir da junção da riqueza monetária, acumulada no mercantilis-mo, com o trabalhador, expropriado de seus meios de produção, mas livre para vender sua força de trabalho. De cabo a rabo, confunde dinheiro com Capital. Assim, não explica porque o Capital surgiu primeiro na Inglaterra, ainda nos séculos 17 e 18, inicialmente com um brutal uso intensivo de mão-de-obra e baixo uso de energia. Nem porque, só depois, com o aumento da concorrência, e o uso das ciências e da técnica, deu um salto, superando as manufaturas, e ingressando na era das fábricas mecanizadas e no uso intensivo de energia.

Sem entender isso, não dá valor às lutas de classes que se desenvolveram em outros países europeus, nos Estados Unidos e no Japão, que conduziram, entre os séculos 18 e 19, seja à independência americana e à revolução francesa, seja às reformas conservadoras na Alemanha, Rússia e Japão, todas tendo como resultado a libertação da força de trabalho, amarrada aos feudos, ou aos eitos, para o trabalho na indústria.

Tudo pelo simples fato de que a força de trabalho, comprada pelo dinheiro como uma mercadoria qualquer, é o fator essencial que acrescenta um valor a mais às matérias primas, ao transformá-las em novas mercadorias. É esse valor a mais, ou mais valia, a principal forma de acumulação e reprodução do Capital. Sem força de trabalho livre da propriedade dos meios de produção, de qualquer tipo, o Capital simplesmente não teria surgido, nem se desenvolvido, por mais que houvesse uma riqueza acumulada por processos históricos anteriores.

A China e muitas outras regiões e países da Ásia oriental, África e América Latina, por uma série de razões históricas, não conseguiram libertar o estoque de trabalho preso aos latifúndios ou aos eitos escravocratas, durante o século 19, e até bem avançado o século 20. Os Estados Unidos, para dar seu salto capitalista, foram obrigados a realizar uma guerra civil destrutiva, na segunda metade do século 19, para transformar os escravos das regiões sulistas em seres humanos livres de qualquer propriedade.

As teses sobre o ressurgimento da Ásia

Para explicar o “renascimento” da Ásia oriental, Arrighi salta do século 19 para o final do século 20. A competição financeira mundial teria esgotado, nos anos 1980, de repente, a oferta de recursos aos países do terceiro e do segundo mundos, provocando uma forte retração da demanda mundial de seus produtos. Nesta situação, o “poder coletivo” do que chama “arquipélago asiático”, teria se torna-do a “oficina” do mundo, e obrigado os centros capitalistas a se reestruturarem.

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Na Falta de Conclusão 307 |

O mais importante, ainda segundo Arrighi, é que a China estaria substi-tuindo os Estados Unidos como principal motor da expansão comercial e eco-nômica da Ásia oriental. Portanto, o fracasso do projeto norte-americano, e o sucesso do desenvolvimento econômico chinês, teriam tornado mais provável a concretização da idéia de Smith, de uma sociedade mundial de mercado, basea-da em uma “maior igualdade entre as civilizações”.

Referindo-se ao marxismo, Arrighi admite que, entre os anos 1960 e 1970, ele teria tido relação com a vida cotidiana do primeiro mundo, ao des-cer ao “chão de fábrica” em Detroit. Além disso, O Capital teria apresentado idéias importantes sobre a luta de classes. Porém, o problema da obra de Marx estaria em seus pressupostos sobre o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, que não teriam resistido ao exame empírico. As previsões do desenvolvimento capitalista generalizado do Manifesto Comunista não teriam se concretizado.

Fincando pé na distinção entre economia de mercado e economia capi-talista propriamente dita, Arrighi sustenta que, se tal distinção for observada, e se o princípio de acesso igual à terra continuar a ser reconhecido na China, esta poderia evoluir num sentido não-capitalista. O que não significaria que o socialismo vá bem na China. Apenas que o capitalismo ainda não venceu. Em tais condições, para ele, as noções de socialismo e capitalismo podem não ser as mais úteis para entender a evolução da China e da Ásia oriental.

Partindo desse pressuposto, Arrighi reconhece, em apenas um momen-to de seu texto, que o capitalismo atual se parece muito mais com o capita-lismo retratado em O Capital, do que o capitalismo inglês que Marx tomou como referência. Porém, preocupado em demonstrar sua tese central sobre a concretização de uma sociedade mundial de mercado, desconsidera aquele fato, e continua afirmando a existência de um descompasso entre a realidade dos países em que ocorreu a “difusão do marxismo” e a realidade teorizada em O Capital.

Desse modo, o autor de Adam Smith em Beijing tem dificuldade em re-conhecer a comprovação da análise científica do capital, feita por Marx, isenta das interferências externas, da mesma forma que os biólogos estudam as células, bactérias e vírus em laboratório. E, pior, confunde aquela análise com a história do Capital, submetido às injunções econômicas, sociais, culturais e políticas de cada sociedade concreta, e da cada época histórica.

Por isso, dá-se ao luxo de deixar de lado a história do capitalismo, nos primeiros três quartos do século 20. Não dá valor ao fato de que o Capital dos países avançados, no processo previsto por Marx, se viu obrigado a transpor suas fronteiras nacionais, e realizar uma segunda onda de expansão colonial. Também ignora que o Capital, mal ou bem, espalhou pelo mundo elementos de

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seu modo de produção “ocidental”, criando as condições para a posterior indus-trialização de regiões predominantemente agrárias, e para a criação de diversos mercados locais ou regionais, predominantemente capitalistas.

Sequer considera que, no século 20, o Capital levou o mundo a duas guer-ras mundiais, e teve que fazer manobras e concessões diante da luta de classes, em seus países e nos países que colonizara. Desdenha que, durante e após a segunda guerra mundial, o Capital acelerou a exportação de meios de produção para países da periferia, primeiro com vistas ao esforço bélico, depois em virtude dos capitais excedentes acumulados pelos Estados Unidos, e da necessidade de conter a “expansão comunista”.

Arrighi tem consciência de que o Japão foi beneficiado pela Guerra da Coréia, na década de 1950, assim como os Tigres Asiáticos se desenvolveram com recursos e meios de produção transferidos pelos Estados Unidos, em seu afã de construir um cordão sanitário para isolar a China. Mas não acha im-portante que os Estados Unidos tenham imposto a reforma agrária tanto ao Japão, quanto a Taiwan, Filipinas e Malásia. Nestes casos, não só para esvaziar a base social das guerrilhas, mas também para criar a força de trabalho indis-pensável à industrialização.

Arrighi sequer dá valor ao fato de que o Capital mudou, a partir da segun-da metade do século 20, seu padrão de expansão, passando a instalar fábricas e sistemas produtivos nos mais diferentes países e regiões do mundo, para apro-veitar a força de trabalho, as matérias primas e outras condições mais baratas, indispensáveis para manter sua taxa média de lucro num nível razoável para sua reprodução ampliada.

Entre os anos 1950 e 1970, os países europeus ocidentais recuperaram sua economia. O Brasil e os Tigres Asiáticos emergiram como novos países industria-lizados. No leste da Europa e na Ásia oriental conformou-se um vasto mercado, isolado do mercado mundial, mas concorrente dos países capitalistas nas regiões do terceiro mundo. Os paises produtores de petróleo impuseram mudanças na distribuição das riquezas geradas em sua exploração. Nos diversos continentes, foi forte a presença de uma luta de classes ainda ascendente. E eram evidentes os sinais de que estava em curso uma nova revolução científica e tecnológica.

Desse modo, já antes dos anos 1980, estavam sendo introduzidas mudan-ças estruturais no capitalismo. Convergiram, primeiramente, para a constituição de grandes corporações e para a expansão da economia capitalista na América do Sul e na Ásia oriental. Nestes casos, economias intensivas em mão-de-obra e poupadoras de energia, mas com forte tendência de se transformarem em inten-sivas no uso de capitais e energia.

Nos anos 1980 e 1990, as grandes corporações aceleram seu processo de centralização, e alçaram o neoliberalismo como ideologia e política do capita-

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lismo global. Na sua ânsia de reduzir a concorrência, e elevar sua taxa média de lucro, lançaram-se na destruição de parques produtivos e na financeirização global, sob o argumento de que a revolução científica e tecnológica impunha uma ordem pós-industrial e pós-emprego, na qual os serviços, principalmente financeiros, seriam capazes de governar um mundo sem fronteiras.

Nesse mesmo período, jogando perigosamente com a busca de maiores lucros pelo Capital, desde 1978-79 a China passou a introduzir mecanismos de mercado em sua economia, e a atrair investimentos para suas zonas econômicas especiais. Nestas, fazia três exigências simples aos capitais estrangeiros, mas fun-damentais para o curso futuro: joint ventures com empresas chinesas, em geral estatais; transferência de altas ou novas tecnologias; e produção para o mercado externo. Ou seja, proteção da indústria doméstica contra competidores estran-geiros mais fortes; absorção de tecnologias para dar musculatura à indústria do-méstica; e ingresso no mercado mundial na garupa das empresas estrangeiras.

Em outras palavras, é no contexto da reestruturação do Capital em seus centros, e da adoção do Consenso de Washington como cartilha, que a China decide iniciar suas reformas, tendo como objetivo desenvolver suas forças pro-dutivas. Fazendo a mesma distinção de Arrighi, entre economia de mercado e economia capitalista, a China decide adotar a economia de mercado como instrumento histórico de desenvolvimento econômico, mesmo sabendo que isso significaria também adotar mecanismos de mercado próprios do capi-talismo. Não se pode esquecer que o capitalismo é a economia de mercado historicamente mais desenvolvida.

Portanto, a China começa sua transformação em principal fábrica, tanto do “arquipélago asiático”, quanto do mundo, num contexto em que o Capital, por um lado, com sua teoria neoliberal, destrói parques industriais numa série considerável de países, mas por outro lado, com suas necessidades objetivas de elevação da taxa média de lucro, segmenta suas cadeias produtivas por países onde encontra melhores condições de mão-de-obra, matérias primas, energia e logística.

A China procurou aproveitar-se ao máximo dessas necessidades objetivas do Capital, mas não adotou a cartilha neoliberal. Ao contrário dos demais paí-ses da Ásia oriental, a China jamais abandonou suas empresas estatais, nem as privatizou, ou deixou de considerá-las como instrumentos estratégicos de orientação do mercado. Nesse sentido, não se pode confundir a “economia de mercado socialista chinesa” com a economia capitalista dos demais países do “arquipélago asiático”.

Na prática, Arrighi realiza um “aplainamento” invertido da teoria de Fri edman, sobre a expansão internacional do capital. Sem haver entendido a teoria de Marx a respeito do desenvolvimento e da expansão desigual do capi-

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talismo pelo mundo, ele não vê que é Marx quem está em Beijing, E que suas opiniões sobre o ressurgimento da Ásia, com base numa “economia de mercado não-capitalista”, não resistem ao exame empírico.

Economia de Mercado e Economia Capitalista

O mercado nasce no alvorecer da humanidade, como conseqüência da re-volução agrícola, que começou com a domesticação das plantas e animais (não necessariamente nessa ordem), com a organização da agricultura, a criação de excedentes alimentares, e a intensificação das trocas. Surgem, a partir daí, as aglomerações agrárias, os corpos administrativos para o armazenamento e redis-tribuição das colheitas, as moedas de troca, e os cativos das guerras passam a ser transformados em escravos.

À medida que o mercado se expandiu, com base na expansão da produção, e também acicatado por esta, a escravidão tornou-se o esteio fundamental de todo o processo. Os seres humanos passaram a correr o risco de se tornarem es-cravos não só por meio das guerras (ver Tucidides), mas também por dívidas (ver o Código de Hamurabi). No mercado escravista, cuja existência se prolongou, em algumas regiões do globo, até o século 20, o ser humano foi transformado numa mercadoria, como outra qualquer.

Essa situação histórica só começou a se embaralhar quando a produtividade dos escravos já não conseguia elevar a riqueza dos senhores. Estes se viram diante da contingência de ter que sustentar seus escravos, ou achar outras formas de exploração da força de trabalho. O processo de declínio do escravismo e sua complexa transição para a servidão feudal, nas sociedades mais antigas, como a indiana e a chinesa, prolongou-se por bem mais de um milênio. No ocidente, essa transição marcou o ocaso de império romano, também por cerca de um mi-lênio. A consolidação dos reinos feudais, com a transformação tanto de escravos, quanto de populações livres, à servidão, conduziu a uma involução da economia de mercado, até quase sua extinção, em várias regiões da Terra.

Na Ásia, o período que vai do século 2, antes de nossa era, ao século 7, assiste ao crescimento da produção agrícola e do artesanato, inclusive de bronze e de ferro, ao aumento das populações, ao deslocamento migratório de grandes massas, em busca de novas terras de plantio, a guerras de saque e conquistas territoriais, promovidas por nobrezas ávidas de riquezas, e ao ressurgimento das trocas mercantis. Na Europa, esse processo ocorre a partir do século 4.

Foi esse ressurgimento que permitiu aos mundos asiático e europeu, em grande parte com a intermediação árabe, estabelecerem os primeiros vínculos entre si, embora eles tenham se desenvolvido quase sob a mesma dinâmica, sem se conhecerem ou trocarem experiências. A partir do século 7, as primei-

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ras caravanas de mercadores percorrem o caminho terrestre, que mais tarde veio a ser conhecido como “rota da seda”, ligando Chang’an (atual Xian) à Ásia central e à Arábia.

Assim, quando as primeiras Cruzadas, no século 11, se dirigiram ao Orien-te Médio, elas apenas deram continuidade de um impulso expansionista, que vinha de antes, seja dos normandos, germanos, eslavos e povos estepários, para o ocidente, seja dos persas, gregos, árabes e turcos, para o oriente, dos mongóis, para o sul, e dos han, tanto para o nordeste, quanto para o sudeste e sudoeste.

A expansão comercial, do século 7 em diante, comandada pelos merca-dores, se deu entre as malhas dos sistemas feudais, que predominavam sobre o mundo antigo, da China e Japão à Península Ibérica, passando pela Ásia Central e Oriente Médio. Mas essa expansão, com o beneplácito ou não de seus reinos de origem, colocava em xeque a organização feudal, fazendo com que o período posterior fosse tanto de expansão mercantil, quanto de intensificação da luta de classes entre mercadores e feudais, e entre os diversos reinos.

A economia de mercado de então se desenvolveu sob tutela e monopólio monárquico, naqueles reinos europeus onde as monarquias enxergaram nos mer-cadores uma grande fonte de riquezas, especialmente a partir do momento em que se lançaram nas conquistas marítimas, a partir do século 15. Mas, foi uma economia de mercado que conservou, nos reinos europeus, os aspectos principais do feudalismo, enquanto disseminou o escravismo em diversas outras regiões.

Para desenvolver a nova economia de mercado, os reinos europeus trans-formaram, primeiramente, a África, Ásia e Américas, em zonas de pilhagem de marfim, peles, madeiras, especiarias, ouro, prata e pedras preciosas. De-pois, tomaram as Américas como base da nova geração de riquezas, através da produção agrícola escravista, tendo a África como principal campo de caça de peças escravas. E, do começo ao fim, a pirataria e o contrabando generalizados foram aspectos importantes da “concorrência” mercantil entre mercadores e nobres de diferentes reinos.

Numa parte da Ásia, essa economia de mercado funcionava por meio da troca dos mercadores europeus com os reinos feudais e escravistas. A China e o Japão foram exceções, relativamente fechados em seu autarquismo, após a derrota de seus mercadores frente aos feudais. Portanto, a economia de mercado global, que se desenvolveu do século 15 ao 18, constituía um mosaico de eco-nomias diferenciadas. O mercantilismo apenas se aproveitou das diferentes for-mações sociais e modos de produção existentes no mundo, para carrear riquezas para a Europa, apoiado nos avanços técnicos e militares que lhe permitiam im-por, aos reinos e povos de outras regiões, seus interesses e sua vontade.

Não era uma “economia de mercado capitalista”. Porém, o mercantilismo constituiu, historicamente, a condição para o surgimento do Capital na Ingla-

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terra, pela conjunção da riqueza monetária acumulada pelo comércio externo, com a existência de uma imensa massa, expulsa dos campos, totalmente despro-vida de meios de produção. Representou, assim, a transição do feudalismo para o capitalismo, pelo menos na Europa.

O que caracterizou essa nova economia de mercado, e a diferenciou do mercantilismo que a criou, foi justamente o fato de que sua existência e sua reprodução dependiam da existência de duas condições: um mercado de riqueza monetária e um mercado de trabalho livre. Foi a unidade contraditória entre essas duas condições que formou o Capital.

É inegável que a “economia de mercado capitalista”, ao desenvolver-se his-toricamente, também foi suficientemente flexível para aproveitar-se das diferen-tes formações sociais e modos de produção existentes no mundo. No entanto, sua tendência intrínseca não residiu apenas em subordinar tais formações sociais e modos de produção a seus interesses. Ela operou, quase sempre inconsciente-mente, para transformá-los à sua imagem e semelhança. Se olharmos a difusão do capitalismo pelo mundo, podemos comprovar que ele teve um desenvolvi-mento extremamente desigual, mas avançou paulatina e firmemente por todos os rincões da Terra.

É um engano achar que “o chão de fábrica” marxiano se encontrava, no século 20, apenas em Detroit. No final do século 19, já era possível en-contrá-lo na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, assim como em várias regiões da Europa Oriental, Rússia, e Japão. Nos primeiros trinta anos do século 20, em grande parte como conseqüência da primeira grande guerra, o “chão de fábrica” já estava fincado não só naquelas regiões, mas também na China, Brasil, Argentina e Índia. A segunda grande guerra mundial, e as revoluções nacionais, ao invés de conterem a expansão da economia capita-lista, a expandiram, sempre de forma desigual, pelas Américas, Ásia, e por algumas poucas regiões africanas.

Ao contrário da idéia de Smith, de uma sociedade mundial de mercado, ba-seada em uma maior igualdade entre as civilizações, o que se pode observar é uma constante expansão da economia capitalista, nos termos previstos por Marx. Não um desenvolvimento estilo “mundo plano”, mas um desenvolvimento de-sigual, com características formais próprias a cada região ou país, cujo motor consistiu sempre na combinação contraditória entre riqueza monetária e força de trabalho livre, na busca da maior taxa de lucro.

Por isso, do mesmo modo que o capitalismo impôs a reforma agrária ao Japão e Taiwan, ao Brasil impôs a modernização do latifúndio e sua transfor-mação em latifúndio capitalista. É esse motor que obriga os países mais de-senvolvidos, do ponto de vista capitalista, para compensar a queda de sua taxa média de lucro, por serem mais intensivos em Capital (o que inclui energia),

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a exportarem seu modo de produção para regiões agrárias, onde o mercado de trabalho é amplo e barato.

O capital se vê, então, obrigado a voltar sobre os próprios passos, instalan-do plantas fabris intensivas em mão-de-obra e, de certo modo, poupadoras de energia, na periferia subdesenvolvida. Porém, no momento seguinte, diante da concorrência sempre presente, tem que avançar no rumo do uso intensivo de capital, e da expansão desenfreada da centralização financeira e da criação de di-nheiro fictício, capaz de assolar o mundo com crises devastadoras. É desse modo que o Capital se expande pelo mundo todo, como Marx previra. Considerar que não existe evidência empírica quanto a isso é beirar a cegueira.

A “economia de mercado socialista”

As dificuldades de Arrighi, para entender o que realmente está acontecendo na China, em particular, e na Ásia, em geral, estão fincadas em algumas confu-sões teóricas e em alguns desprezos históricos. Teoricamente, ele confunde a di-nâmica interna de desenvolvimento do modo de produção e da formação social capitalista, cujas leis principais foram descobertas por Marx, com a dinâmica de desenvolvimento histórico desigual da economia capitalista, que Marx teve pouca oportunidade de acompanhar.

Assim, ao invés de tomar as ilustrações históricas de O Capital apenas como exemplos parciais e datados, Arrighi as toma como parte inseparável do estudo analítico da célula-tronco do capital, a mercadoria. Nessas condições, sua leitura da obra de Marx é mecânica, desconsiderando seu método dialético de pesquisa, que permite depois considerar adequadamente o desenvolvimento da mercado-ria em sua relação com os ambientes exteriores concretos que encontra.

É verdade que Marx se enganou sobre o estágio de desenvolvimento capi-talista em sua época, crendo na possibilidade da revolução nos países capitalistas desenvolvidos. Mas Arrighi também se engana ao ignorar a transferência do epicentro da luta de classes, como decorrência da expansão desigual do capita-lismo, dos países centrais para os periféricos, na segunda onda de colonização, no século 19, e no curso das disputas imperialistas pela re-divisão do mundo, no século 20.

Em conseqüência, não entende em que medida a realidade dos países em que ocorreu a “difusão do marxismo” estava em sintonia com a realidade teori-zada em O Capital e nos Grundisse. Nem como a teoria descrita em O Capital se encaixa no atual desenvolvimento da China. Esse desentendimento se torna ainda maior porque Arrighi desconsidera a história da revolução chinesa, as pro-postas de Nova Democracia, de 1946, como forma de transição da China para o socialismo, e as entranhas da luta de classes no período posterior a 1949.

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Ele despreza o fato de que a revolução chinesa só foi possível num quadro de intensa disputa capitalista pela China, incluindo a incorporação de elemen-tos do modo de produção capitalista numa sociedade ainda marcadamente feu-dal. Não considera que, a esses fatores objetivos, agregou-se uma intensa luta de classes entre camponeses e latifundiários, com revoltas camponesas de vulto, como a dos Taiping e dos Boxers, e com a organização dos feudais como senhores de guerra, com exércitos próprios.

Nem dá valor à ocorrência de uma luta secular contra o domínio manchu, e uma luta moderna contra a espoliação e a humilhação das potências imperia-listas, resultando em movimentos sociais e políticos intensos, como as revoltas pela república. E simplesmente ignora a crescente incorporação das novas teo-rias ocidentais, principalmente nacionalistas e liberais, sobre a organização da sociedade e a soberania nacional, ao pensamento chinês.

Os resultados da primeira grande guerra, pela re-divisão do mundo entre as grandes potências capitalistas, aí já incluindo o Japão, agravaram todos aque-les fatores objetivos, e incorporaram novos fatores subjetivos, como os ideais da Revolução Russa, o marxismo e o socialismo. Com a vantagem de que os setores marxistas chineses, que se tornaram hegemônicos no Patido Comunista em meados dos anos 1930, perceberam, do mesmo modo que Marx, que o materialismo dialético e o materialismo histórico eram instrumentos de análise de situações concretas, e não doutrinas fechadas.

Com isso, puderam, não sem dificuldades e revezes, construir uma estra-tégia revolucionária que tomava os camponeses como força fundamental, e a guerra de guerrilhas e a guerra de movimento como as formas principais de luta para enfrentar os senhores de guerra e, depois, construir uma frente única, para derrotar a invasão japonesa, durante a segunda grande guerra.

O mais interessante, porém, é que em seu programa de uma Nova De-mocracia, estabeleceram a necessidade de uma aliança de longo prazo, com a burguesia nacional, para desenvolver as forças produtivas e evitar que fosse le-vantada uma Muralha da China entre a revolução democrático-burguesa e a construção socialista. Traduzindo esse jargão político marxista para termos da economia política, tínhamos um programa prevendo a utilização de formas de propriedade, tanto socialistas, quanto privadas capitalistas, para completar as ta-refas não realizadas pela “economia de mercado capitalista”, e realizar a transição para uma sociedade pós-capitalista.

Em outras palavras, aqueles mesmos setores marxistas chineses percebiam, do mesmo modo que Marx, que nenhuma formação social sai da história antes de esgotar todas as suas possibilidades. E que as sociedades, que surgem sem que tal processo esteja completo, terão que conviver durante certo tempo, longo ou curto, em harmonia e conflito, com os restos, não totalmente desenvolvidos, da

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antiga sociedade. Não por acaso, Marx considerava que o socialismo deveria ser uma sociedade de transição, na qual os elementos capitalistas teriam ainda papel no desenvolvimento das forças produtivas, enquanto se constituíam e fortale-ciam os elementos de natureza social.

Mas, como acontece muitas vezes, a teoria precisa aguardar as voltas da história para demonstrar sua validade. Na China pós-revolução de 1949, a luta de classes lhe impôs um caminho diferente do previsto na teoria da Nova De-mocracia. A luta entre camponeses pobres e camponeses abastados, assim como a forte tradição igualitarista do campesinato chinês, levaram a uma cooperativi-zação agrícola prematura, e à suposição de que seria possível socializar, o campo e o país, através de mobilizações sociais massivas. As aventuras da burguesia nacional, na especulação com os grãos, levaram a uma estatização também pre-matura. Tudo isso coadjuvado pela presença do bloqueio econômico, político e militar das potências capitalistas, e pela experiência aparentemente exitosa do processo de industrialização soviética.

O que deveriam ser movimentos táticos de consolidação do regime, trans-formaram-se em movimentos estratégicos de estatização da economia e da so-ciedade. Essa situação não conseguiu resolver, porém, a questão chave do desen-volvimento das forças produtivas sociais.

Os movimentos de retificação, ocorridos em 1957, 1958, 1960 e 1964, foram apenas momentos de intensificação de um tipo de luta de classes extrema-mente complexa, sem a presença física de uma burguesia, mas com forte presen-ça de diferenciações sociais entre os camponeses, entre estes e os trabalhadores urbanos e, dentro destes, entre os trabalhadores manuais e intelectuais. A não resolução da questão das forças produtivas desembocou na revolução cultural, que voltou a cindir profundamente a sociedade, o Estado e o Patido Comunista, quase desembocando em nova guerra civil.

Ainda é historicamente cedo para uma avaliação menos carregada de pre-conceitos e rancores sobre essa revolução e seus principais atores. No entanto, resta pouca dúvida de que ela esgotou, na prática da luta social, algumas das principais teorias em voga na esquerda a respeito da construção socialista. Pri-meiro, de que seria possível realizar tal construção apenas com a participação de formas de propriedade estatais e coletivas. Segundo, que seria possível desenvol-ver as forças produtivas sem a necessidade do mercado.

A discussão que se seguiu ao fim da revolução cultural chinesa teve como centro, justamente, a necessidade de realizar uma retirada estratégica, no rumo das indicações de Marx sobre a impossibilidade de construir o socia-lismo num só país, e sobre a impossibilidade de superar o capitalismo antes de esgotar seu papel no desenvolvimento das forças produtivas. A teoria de uma “economia de mercado socialista”, com características chinesas, tem por

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base essa situação extremamente peculiar, e de alto risco, de construção do socialismo num país que era extremamente pobre e atrasado, ainda em me-ados do século 20.

Essa retirada estratégica inclui a adoção de diferentes formas de proprie-dade, e a utilização do mercado para a realização do calculo econômico e para a promoção da circulação e distribuição da produção e da renda. A força de trabalho é assalariada, e o lucro das empresas é obtido através da apropriação do valor excedente produzido pelos trabalhadores no processo da produção, aquilo que Marx chamava de mais-valia. Além disso, a economia de mercado chinesa, assim como a economia de mercado dos demais países da Ásia orien-tal, embora ainda seja intensiva em mão-de-obra, é crescentemente intensiva em Capital e energia.

Nesse sentido, a China possui uma economia de mercado. No entanto, ao contrário do que supõem Arrighi e outros pensadores, ela não é idêntica às economias de mercado dos demais países da Ásia oriental, nem às dos países ca-pitalistas ocidentais, em virtude de uma série de características muito próprias, que a diferenciam delas.

Em primeiro lugar, o papel do Estado na China tem se mostrado diferente do papel do Estado nas demais economias de mercado existentes no mundo. Esse papel não ocorre apenas na circulação e distribuição das mercadorias e da renda, mas fundamentalmente na distribuição da propriedade dos meios de produção. O Estado chinês continua mantendo como propriedade social a esmagadora maioria do sistema financeiro e do sistema de desenvolvimento científico e tecnológico, e assim como os ramos estratégicos da indústria e da infra-estrutura.

Além disso, o Estado chinês interfere com firmeza na economia de mercado, seja através de seus bancos, indústrias e fazendas estatais, seja administrativa-mente, através dos órgãos de governo, tanto para direcioná-la para um desenvol-vimento menos caótico e mais equilibrado das forças produtivas, quanto para corrigir os desvarios do mercado, em relação a preços e propriedades.

Em segundo lugar, o Estado chinês explicita claramente seus programas sociais e ambientais, e os executa praticamente, em particular aqueles relaciona-dos com a redistribuição da renda e com a universalização da educação, saúde, seguridade social, moradia, transporte público e informação, de modo a evitar que o enriquecimento desigual crie polarizações sociais.

Haver retirado mais de 800 milhões de pessoas das linhas da pobreza e abaixo da pobreza, e tê-las elevado ao nível de classe média, mesmo de forma desigual, no curto espaço de 28 anos, não é algo que qualquer “economia de mercado capitalista” tenha conseguido, mesmo nos tempos áureos do Estado de Bem-estar europeu.

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E ter como perspectiva programática, por volta do ano 2020, colocar o conjunto de sua população vivendo num piso medianamente abastado, não é algo que qualquer outra “economia de mercado” atual possa realizar, pela ten-dência intrínseca do Capital descartar a participação da força de trabalho, à medida que se torna intensiva em capital. Em outras palavras, à medida que o Capital constante aumenta, em detrimento do capital variável.

São essas diferenças que podem caracterizar a “economia de mercado” chi-nesa como socialista, em contraposição às “economias de mercado capitalistas”. Nestas últimas, em geral, o Estado só interfere eventualmente para implantar a infra-estrutura física necessária para o funcionamento do Capital, para apoiar um ou outro setor do Capital em suas constantes disputas nacionais e interna-cionais, ou para salvar o Capital das crises constantes em que se debate.

O foco do Estado no capitalismo é sempre o Capital. Apenas aleato-riamente, quando a luta de classes esmurra o fígado do Capital e o próprio Estado, este se volta para compensar alguns dos desequilíbrios sociais. Mas sempre a contra-gosto.

As possibilidades da economia de mercado socialista

Se levarmos em conta os estudos de Marx sobre o Capital, podemos afir-mar, por um lado, que “economias de mercado socialistas” são experiências de transição para criar e desenvolver aquelas forças produtivas que o Capital não tem condições históricas de implantar e, por outro, são experiências de alto risco para o futuro socialista.

Ao permitir a existência de diferentes tipos de propriedade, a “economia de mercado socialista” permite que a propriedade capitalista conviva com as formas de propriedade social, e dispute com elas a hegemonia sobre a economia. Em termos sociais, a “economia de mercado socialista” permite o ressurgimento da burguesia e da pequena burguesia, tanto urbana quanto rural, que pressionarão cada vez mais por maior participação no poder de Estado e por sua transforma-ção num Estado a serviço do Capital.

A China já tem alguns milhares de bilionários, e alguns milhões de milioná-rios, e ainda está relativamente longe de haver desenvolvido plenamente as forças produtivas de sua sociedade. Além disso, o ressurgimento da propriedade privada e da exploração capitalista, assim como das classes sociais que lhe correspondem, traz consigo a potenciação de alguns velhos males sociais, como a corrupção, prostituição, tráficos de drogas e humano, contrabando, e outros tipos de crimes.

Num quadro como o acima, quais as possibilidades da “economia de mer-cado socialista” não mudar de natureza, transformando-se numa “economia de mercado capitalista”, ainda mais tendo que esperar, por um tempo indefinido,

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que a luta de classes retome seu caminho ascendente, e volte a colocar o socialis-mo como questão premente numa série considerável de países?

Arrighi acredita, junto com Samir Amin, que uma das principais possibi-lidades da economia de mercado na China não evoluir no sentido capitalista reside na resistência do campesinato contra a perda de suas terras. Esquecem que uma das tendências fortes do campesinato, na história contemporânea, em qualquer país do mundo, consiste em evoluir para uma situação burguesa.

É verdade que os camponeses pobres têm sido, por um longo tempo, cam-peões das lutas por um igualitarismo por baixo, como ocorreu antes e durante a revolução cultural chinesa. Poreém, nas atuais condições da China, onde ca-madas crescentes do campesinato têm acesso amplo ao mercado, e tornam-se abastadas, é muito difícil supor que a resistência do campesinato à perda de suas terras signifique alguma resistência à transformação da economia de mercado socialista em capitalista.

Arrighi e Amin passam batidos pelo fato de que as reformas chinesas for-jaram uma classe operária industrial, nas zonas urbanas e também nas zonas rurais, superior a 300 milhões de pessoas. Mantidas as tendências atuais du-rante os próximos dez anos, é provável que essa classe operária industrial passe a englobar mais de 500 milhões de pessoas, reduzindo o campesinato a algo em torno de 200 milhões. Se as teses de Marx sobre a luta de classes tiverem alguma validade, consiste na existência dessa classe operária a possibilidade social da economia de mercado da China não evoluir para uma “economia de mercado capitalista”.

Afora isso, é preciso considerar a possibilidade do Estado chinês manter sua natureza socialista. Embora esta não seja uma missão fácil, no ambiente de múltiplas formas de propriedades, inclusive capitalistas, de enriquecimento desigual, e constante pressão para a adoção de privatizações e maiores aberturas ao mercado, não é algo impossível. Vai depender, em grande medida, do Estado se manter na linha de dar prioridade às necessidades e aspirações das grandes camadas populares da população chinesa, de incorporar à educação e à partici-pação política democrática setores cada vez amplos dessas camadas, e continuar utilizando com firmeza as empresas estatais estratégicas como instrumentos de política econômica.

O que depende, em última instância, do Partido Comunista manter fi-delidade a seus princípios e a seu estilo de trabalho, e continuar conservando a legitimidade de dirigir o povo chinês. A adesão a tais princípios e estilo de trabalho nada quer dizer para quem ignora, ou despreza, o papel que a utili-zação do marxismo e do pensamento elaborado por Mao e outros intelectuais comunistas desempenhou no processo da revolução chinesa, incluindo o pe-ríodo posterior a 1949.

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No entanto, para os que levam na devida conta o papel determinante de tais princípios e estilo de trabalho na libertação da China, tanto do feudalismo quanto da espoliação estrangeira, é a adesão prática a eles, firme ou não, que pode indicar se o Partido Comunista chinês mantém sua natureza, ou mudou.

É lógico que esse partido, como qualquer outro, não deve ser medido pelo que diz de si próprio, mas sim pelo que pratica. Por outro lado, se compararmos os resultados das reformas implantadas na China a partir de 1978-80, aos pa-râmetros estabelecidos por aqueles princípios e estilo de trabalho, não será tão difícil comprovar que o Partido Comunista continua aderindo a eles.

De qualquer modo, a caminhada não se completou, e os perigos de uma regressão capitalista continuam presentes. Só a prática poderá ser o critério a in-dicar se a “economia de mercado socialista” com características chinesas vai evo-luir no caminho de uma sociedade que supere o capitalismo, como propugnam os comunistas chineses, ou se vai transformar-se numa “economia de mercado capitalista”, mesmo com características chinesas.

Embora tudo indique para a primeira possibilidade, o que levou Arrighi a tentar reviver Adam Smith, o perigo da segunda não está afastado. Só nos resta torcer para que, apesar das aparências, Marx realmente esteja em Beijing.

30/09/2008

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Significado dos ideogramas

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Sobre o Autor

Wladimir Pomar nasceu em Belém do Pará, a 14 de julho de 1936, filho de Pedro Pomar e Catarina Torres. Desde os cinco anos, conheceu a vida da clandestinidade, pela perseguição que a polícia do Estado Novo de Vargas mo-via às atividades do Partido Comunista do Brasil (PCB), do qual seu pai era membro.

Começou a trabalhar aos doze anos, como aprendiz de linotipista, ao mes-mo tempo em que fazia o ginásio. Depois trabalhou como repórter e redator nos jornais Tribuna Popular e Classe Operária. Foi colaborador do jornal Movimento, diretor do Correio Agropecuário, além de repórter e diretor editorial de Brasil Extra.

Adquiriu formação técnica e trabalhou como técnico de planejamento e manutenção de máquinas pesadas da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ) e Conselheiro Lafaiete (MG). Foi engenheiro de ser-viços da General Eletric, no setor de locomotivas, tendo trabalhado junto às estradas de ferro Leopoldina (RJ) e Leste-Brasileira (BA). Também trabalhou como engenheiro de manutenção da Cerâmica do Cariri.

Militante político desde 1949, quando ingressou no PCB, Wladimir Pomar atuou inicialmente no movimento estudantil secundarista. Em 1951, estudou ajustagem mecânica no SENAI, trabalhou na Arno e participou no movimento sindical metalúrgico.

Em 1962, fez parte do movimento que deu origem ao PCdoB. Em 1964, foi preso na Bahia, por ação de resistência ao golpe militar. Solto no final deste ano, devido a habeas corpus, foi julgado e condenado à revelia.

Depois de 1964, colaborou com a imprensa partidária e desenvolveu suas atividades políticas principalmente no interior de Goiás e do Ceará, aqui entre os sindicatos de trabalhadores rurais.

Viveu na clandestinamente até 1976, quando foi preso novamente. Desta vez, durante uma ação militar que assassinou três dirigentes do PCdoB, no bair-ro da Lapa (SP), um dos quais seu pai.

Foi libertado pouco antes da Anistia, em 1979. Neste mesmo ano, desli-gou-se da direção do PCdoB e ingressou no Partido dos Trabalhadores.

Entre 1984 e 1990, integrou a executiva nacional do PT, onde foi respon-sável pela secretaria nacional de formação política, atividade que acumulou com a coordenação do Instituto Cajamar. Em 1986, participou da coordenação da

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campanha de Lula a deputado federal constituinte. Durante as eleições presi-denciais de 1989, foi coordenador-geral da campanha Lula.

Wladimir Pomar é autor de diversos estudos e livros sobre a China, entre os quais O enigma chinês: capitalismo ou socialismo (Alfa-ômega); China, o dragão do século XXI (Ática); A revolução chinesa (Unesp).

É autor, também, de uma trilogia sobre a teoria e a prática das tentativas de construção do socialismo, ao longo do século 20: Rasgando a cortina (Brasil Urgente), Miragem do mercado (Brasil urgente) e A ilusão dos inocentes (Scritta).

Outra vertente de suas obras aborda a história do Brasil e da esquerda bra-sileira. É o caso de Araguaia, o partido e a guerrilha (Brasil Debates) e de Pedro Pomar: uma vida em vermelho (Xamã); Quase lá, Lula e o susto das elites (Brasil urgente) e Um mundo a ganhar (Viramundo); O Brasil em 1990 e Era Vargas: a modernização conservadora (Ática).

Nos últimos trinta anos, publicou e deu entrevistas para diversos jornais e revistas, colaborando regularmente com o Correio da Cidadania e com a revista Teoria e Debate.

Grande parte de seus textos ainda não foi organizado para consultas, nem publicado em formato de livro. É o caso do romance inédito O nome da vida. No prelo, uma coletânea de seus textos políticos. Nos planos de médio prazo, um estudo sobre o método da história e da dialética.

Casado com Rachel, é pai de três filhos, avô de 11 netos e 2 bisnetos.

Livros de Wladimir Pomar

Araguaia, o partido e a guerrilha. São Paulo: Brasil Debates, 1980.O enigma chinês: capitalismo ou socialismo. São Paulo: Alfa-ômega, 1987.Quase lá, Lula o susto das elites. São Paulo: Brasil Urgente, 1990.Rasgando a cortina. São Paulo: Brasil Urgente, 1991.A miragem do mercado. São Paulo: Brasil Urgente, 1991.A ilusão dos inocentes. São Paulo: Scritta, 1994.O Brasil em 1990. São Paulo: Editora Ática, 1996.China, o dragão do século XXI. São Paulo: Editora Ática, 1996.Um mundo a ganhar: revolução democrática e socialista. São Paulo: Viramundo, 2002.Pedro Pomar: uma vida em vermelho. São Paulo: Xamã, 2003.Era Vargas: a modernização conservadora. São Paulo: Editora Ática, 2004.A revolução chinesa. São Paulo: Unesp, 2004.Pedro Pomar: um comunista militante. São Paulo: Expressão Popular, 2007.China: desfazendo mitos. São Paulo: Publisher Brasil/Editora Página 13, 2009.