chegamos e tinha um outdoor: “sertão teatro, o grupo ...€¦ · por exemplo, já colocamos rock...

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Latino americano 5ª Edição 20 de Abril de 2013 www.mostralatinoamericana.com.br L.A. – Vocês atuaram em muitas cidades em que não havia um único teatro. Christina – Sim, já rodamos quase 80 cidades. A companhia circula muito pelo interior e essa circulação nos obrigou a pen- sar inclusive a forma da nossa dramaturgia. Veredas da Salvação era muito intimista, tradicional, intensa, realizada em espaço fe- chado e um espetáculo que teve repercussão em João Pessoa, e por isso ganhou editais de circulação. Fomos para o interior da Paraíba. Chegávamos, não tinha teatro. Então a rua não foi opção. Foi necessidade. Ou a gente não fazia ou fazia na rua. Era um espetáculo forte com cena de nudez, com todos os atores nus. E de repente estávamos no interior paraibano e do nordeste, fa- zendo na rua. Em Canudos, tínhamos um plano de fuga da cidade porque tínhamos medo de ser linchados. Pensamos: “se correrem atrás da gente, a gente larga tudo e corre”. O grupo é relativa- mente recente. Tem seis anos. Mas nossa experiência até aqui foi muito intensa. Começamos a rodar em 2007 e não paramos mais. L.A. – Vocês chegaram inclusive a se apresentar para cidades que ficam ao largo do rio São Francisco, não é? Christina – O Flor de Macambira fez trajetória pelo Rio São Francisco. O contato com o interior foi uma liga muito grande. Mordeu a gente. A gente se entendeu enquanto grupo nesses lu- gares onde praticamente ninguém vai. Deu uma identidade para o nosso grupo, “isso a gente tem em comum, a gente gosta de ir para esses lugares”. E começamos a pensar o teatro para es- ses lugares. A identidade artística do grupo foi pensada a partir desse encontro com o interior do Brasil, a partir dessa platéia com pouca possibilidade de qualquer atividade mais lúdica. Tem cidades em que a gente volta e, quando vemos, somos recebidos até com outdoors , como aconteceu em Itabaiana, no interior do Sergipe. Chegamos e tinha um outdoor: “SerTão Teatro, o grupo paraibano mais itabaianense que existe”. L.A. – Como o grupo vê a relação entre cultura popular e questões políticas? Christina – É engraçado porque a gente não tem um teatro que você relaciona com uma questão política de cara, como a gente vê com grupos de São Paulo, mas nós temos fábula, his- tória, personagens que também têm uma pegada extremamente política. Nosso teatro é político por si só. Ao mesmo tempo, a cultura popular não aparece como tradição. O nosso tratamento é contemporâneo. Por exemplo, já colocamos rock no meio da peça. O que a gente busca nos brincantes do Cavalo Marinho e de outras expressões da cultura tradicional é essa energia que é muito forte. E não é uma coisa de reproduzir a tradição, mas se apropriar dela, intervir, dialogar, modificar. L.A. – Vocês vêm agora de uma vasta experiência de rua. Como é se apresentar em um teatro fechado com Flor de Macambira? Christina – O que começou a acontecer é que, a partir do ano passado, tivemos convites de todos os lados. Essa peça parti- Chegamos e tinha um outdoor: “SerTão Teatro, o grupo paraibano mais itabaianense que existe”. Christina Streva é diretora do grupo SerTão Teatro Fernanda Pessoa cipou de 17 festivais, 7 deles internacionais. Apresentamos no Teatro Municipal de Brasília, no Teatro de Aracaju e aqui em São Paulo. A gente quer ocupar esse espaço também, o espaço do teatro. O grupo vem da universidade, eu sou uma diretora com formação tradicional... Então, a gente quer ocupar bem os dois espaços. Como somos um grupo de formação, isso gera atores nesse turbilhão de condições, oportunidades, demandas. A gente trabalha dia a dia. A rua, o fato de se apresentar em lugares os mais diversos possíveis, dão a capacidade de se adaptar. L.A. – E como vocês estão se “adaptando” na Mostra? Christina – É a primeira vez na capital paulista. É um momento super importante porque representa nossa estréia aqui. Já fomos para o Rio de Janeiro seis vezes. Mas aqui é como um sonho para a gente, ainda mais nesse contexto. É o quinto ano de uma mostra nacional de teatro que nós organizamos em João Pessoa, só que muito reduzida. A última edição juntou cinco mil pessoas. De São Paulo, levamos a Brava Companhia no ano passado. Todo mundo fica o tempo todo, tem demonstrações de trabalho também. Vocês são quem a gente quer ser amanhã. Ao longo das quatro edições anteriores, já passaram pela mostra algo em torno de 14 grupos importantes no cenário nacional. A próxima é em setembro. L.A. – Qual é a experiência de vocês na Mostra? Christina – É um momento em que a gente se enxerga, repen- sa um pouco a nossa identidade frente a esse patrimônio que é a nossa América Latina. A Mostra tem a capacidade de abrir os olhos para muita coisa tão perto da gente que acabamos por repensar circuitos internacionais. Tem tanta gente na América Latina e a gente se volta tanto para a Europa. Essa característica de ser de João Pessoa, fora de todo circuito... De uma certa forma a gente saiu de lá e ganhou o Brasil. E querer ganhar a América Latina, acho que isso é algo que a Mostra faz. Estar aqui diz para a gente “olha, vocês deram alguns passos, agora existem outros para dar”. Entrevista com Christina Streva

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Page 1: Chegamos e tinha um outdoor: “SerTão Teatro, o grupo ...€¦ · Por exemplo, já colocamos rock no meio da peça. O que a gente busca nos brincantes do Cavalo Marinho e de outras

Latinoamericano 5ª Edição

20 de Abril de 2013

www.mostralatinoamericana.com.br

L.A. – Vocês atuaram em muitas cidades em que não havia um único teatro.

Christina – Sim, já rodamos quase 80 cidades. A companhia circula muito pelo interior e essa circulação nos obrigou a pen-sar inclusive a forma da nossa dramaturgia. Veredas da Salvação era muito intimista, tradicional, intensa, realizada em espaço fe-chado e um espetáculo que teve repercussão em João Pessoa, e por isso ganhou editais de circulação. Fomos para o interior da Paraíba. Chegávamos, não tinha teatro. Então a rua não foi opção. Foi necessidade. Ou a gente não fazia ou fazia na rua. Era um espetáculo forte com cena de nudez, com todos os atores nus. E de repente estávamos no interior paraibano e do nordeste, fa-zendo na rua. Em Canudos, tínhamos um plano de fuga da cidade porque tínhamos medo de ser linchados. Pensamos: “se correrem atrás da gente, a gente larga tudo e corre”. O grupo é relativa-mente recente. Tem seis anos. Mas nossa experiência até aqui foi muito intensa. Começamos a rodar em 2007 e não paramos mais.

L.A. – Vocês chegaram inclusive a se apresentar para cidades que ficam ao largo do rio São Francisco, não é?

Christina – O Flor de Macambira fez trajetória pelo Rio São Francisco. O contato com o interior foi uma liga muito grande. Mordeu a gente. A gente se entendeu enquanto grupo nesses lu-gares onde praticamente ninguém vai. Deu uma identidade para o nosso grupo, “isso a gente tem em comum, a gente gosta de ir para esses lugares”. E começamos a pensar o teatro para es-ses lugares. A identidade artística do grupo foi pensada a partir desse encontro com o interior do Brasil, a partir dessa platéia com pouca possibilidade de qualquer atividade mais lúdica. Tem cidades em que a gente volta e, quando vemos, somos recebidos até com outdoors , como aconteceu em Itabaiana, no interior do Sergipe. Chegamos e tinha um outdoor: “SerTão Teatro, o grupo paraibano mais itabaianense que existe”.

L.A. – Como o grupo vê a relação entre cultura popular e questões políticas?

Christina – É engraçado porque a gente não tem um teatro que você relaciona com uma questão política de cara, como a gente vê com grupos de São Paulo, mas nós temos fábula, his-tória, personagens que também têm uma pegada extremamente política. Nosso teatro é político por si só. Ao mesmo tempo, a cultura popular não aparece como tradição. O nosso tratamento é contemporâneo. Por exemplo, já colocamos rock no meio da peça. O que a gente busca nos brincantes do Cavalo Marinho e de outras expressões da cultura tradicional é essa energia que é muito forte. E não é uma coisa de reproduzir a tradição, mas se apropriar dela, intervir, dialogar, modificar.

L.A. – Vocês vêm agora de uma vasta experiência de rua. Como é se apresentar em um teatro fechado com Flor de Macambira?

Christina – O que começou a acontecer é que, a partir do ano passado, tivemos convites de todos os lados. Essa peça parti-

Chegamos e tinha um outdoor: “SerTão Teatro, o grupo paraibano mais itabaianense que existe”.

Christina Streva é diretora do grupo SerTão Teatro

Fernanda Pessoa

cipou de 17 festivais, 7 deles internacionais. Apresentamos no Teatro Municipal de Brasília, no Teatro de Aracaju e aqui em São Paulo. A gente quer ocupar esse espaço também, o espaço do teatro. O grupo vem da universidade, eu sou uma diretora com formação tradicional... Então, a gente quer ocupar bem os dois espaços. Como somos um grupo de formação, isso gera atores nesse turbilhão de condições, oportunidades, demandas. A gente trabalha dia a dia. A rua, o fato de se apresentar em lugares os mais diversos possíveis, dão a capacidade de se adaptar.

L.A. – E como vocês estão se “adaptando” na Mostra?Christina – É a primeira vez na capital paulista. É um momento

super importante porque representa nossa estréia aqui. Já fomos para o Rio de Janeiro seis vezes. Mas aqui é como um sonho para a gente, ainda mais nesse contexto. É o quinto ano de uma mostra nacional de teatro que nós organizamos em João Pessoa, só que muito reduzida. A última edição juntou cinco mil pessoas. De São Paulo, levamos a Brava Companhia no ano passado. Todo mundo fica o tempo todo, tem demonstrações de trabalho também. Vocês são quem a gente quer ser amanhã. Ao longo das quatro edições anteriores, já passaram pela mostra algo em torno de 14 grupos importantes no cenário nacional. A próxima é em setembro.

L.A. – Qual é a experiência de vocês na Mostra?Christina – É um momento em que a gente se enxerga, repen-

sa um pouco a nossa identidade frente a esse patrimônio que é a nossa América Latina. A Mostra tem a capacidade de abrir os olhos para muita coisa tão perto da gente que acabamos por repensar circuitos internacionais. Tem tanta gente na América Latina e a gente se volta tanto para a Europa. Essa característica de ser de João Pessoa, fora de todo circuito... De uma certa forma a gente saiu de lá e ganhou o Brasil. E querer ganhar a América Latina, acho que isso é algo que a Mostra faz. Estar aqui diz para a gente “olha, vocês deram alguns passos, agora existem outros para dar”.

Entrevista com Christina Streva

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Aproveintando o espaço de Demonstração de Trabalho da Mostra, o grupo Teatro Invertido acabou por realizar um ver-dadeiro treino corporal de criação, já que a vinda coincidiu com a estada da diretora convidada – Gracê Passo, que dirigiu a peça exibida nessa semana – e da preparadora física, Kenia Dias, que já vinha trabalhando com o grupo há um tempo, mas agora vive em São Paulo.

O método de estudo e criação do grupo, que apresentou o espetáculo Os Ancestrais durante esta Mostra, consiste em utilizar o próprio corpo dos atores para, a partir de uma se-quência de improvisações e a alternância de posturas leves e tênues, os participantes compreendam “como funciona a pró-pria paisagem” – afirmou Kenia – e, assim passem a modular o próprio conteúdo da obra apresentada.

Com movimentos leves, o exercício começa com os atores partindo do nível do chão. A partir de então, procuram enten-der e trabalhar, por exemplo, os pontos de maior tensão e relaxamento de seus próprios corpos, fazendo assim com que focassem nos pontos mais tensos. Depois disso, houve uma indicação de Kenia para que trabalhassem a própria verticalidade. Segundo ela, esse exercício serve para que os atores entendam “como funciona a própria paisagem corporal”, disse.

No caso do ensaio aberto, Kenia fo-cou as experimentações em uma cena de Os Ancestrais: a do assalto. Ela se passa enquanto uma família que está soterrada tenta negociar a soltura de sua filha, feita de refém numa situação absurda na qual não há nenhum indício de que o assaltante vá conseguir sair de lá. Aproveitando – se desta passagem, Kenia pediu para que o grupo improvi-sasse com um espaço bem mais estreito “É muito interessante transplantar, do

DT Teatro Invertidocontexto da cena, pois o texto é revisitado de uma outra forma. É um jeito de tirar alguns vícios. Ver o mesmo material a partir de propostas físicas diferenciadas”, avalia.

Para Leonardo Lessa, ator e co-fundador, o método utili-zado por Kenia vai ao encontro do que a companhia já pen-sava quando passaram de um grupo de estudos da Univer-sidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a grupo de teatro efetivamente, há nove anos. Segundo Lessa, nessa transição até agora o foco sempre fora a pesquisa com as práticas de treinamento. “A gente mantém essa base do corporal, que é premissa do trabalho, mas já parte para a criação”, diz. Per-guntado sobre como a trupe se sustenta, ele explicou que entraram em acordo com um patrocinador – pelas vias da lei de renúncia fiscal – há três anos e, em contrapartida, ajudam a desenvolver grupos de estudos de teatro em cidades pe-quenas do interior de Minas Gerais.

Fernanda Pessoa

Exp

edie

nte latino-americano Editor Fábio Salem Daie • Editor assistente Alexandre Facciolla • Fotografia Fernanda Pessoa • Edição de arte Isabela

Jordani • Críticos Marietta Santi (Chile), Percy Encinas (Peru), José Carlos Andrade e João das Neves (Brasil)

mostra latino-americana de teatro de grupo Formatação de Projeto Ney Piacentini • Coordenação Geral Alexandre Roit • Assessoria de Projeto Marlene Salgado • Produção Geral Alexandre Kavanji • Administração Luiz Amorim • Assistente de Administração Norma-Lyds • Produção Executiva Iarlei Sena • Direção Técnica Dudu Oliveira • Técnicos Assistentes Fábio Spila, Isadora Giuntini • Logística de Transporte Géssica Arjona • Logística de Hospedagem e Alimentação Jhaíra • Produção Local e Recepção André Martins, Aurélio Prates, Eugênio La Salvia, Harley Nóbrega, Isabel WR, Maria Aparecida, Mayra Rizzo, Paula Zaneti, Tathiane Mattos, Vanessa Portugal, Wallyson Mota • Coordenação das Mesas e Demonstrações de Trabalho Camila Scudeler • Assessoria de Imprensa Quatro@evcom • Desenho Gráfico Pedro Penafiel • Vídeo e fotografia Fabiano Moreira, Fernanda Pessoa, Luiz Gustavo Cruz • Site Fabiano Moreira • Espaço da Mostra Carlos Escher • Banca da Mostra Mariana Loureiro

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DT CexesO espetáculo estreou em novembro de 1995, resultado de uma cria-ção coletiva entre Rodolfo Rodríguez, Fidel Melquiades e Ana Correa. Juntos, vinham trabalhando desde março de 1992. A diretora Ana Correa teve papel importante na “técnica básica, que é dominar o objeto cênico destramente e no seu reverso”. Para explicar a origem Halcon de Oro-Q’orihuama, Rodríguez contou a história que reprodu-zimos abaixo.

“Minha mãe era a quarta mulher de meu pai e meu pai era o quarto marido de minha mãe. Tenho 32 irmãos por parte de pai e oito irmãos por parte de mãe. Para tentar expulsar a pobreza em que vivíamos, tínhamos um restaurante com garrafas vazias, três ou quatro mesas onde os funcionários eram meus pais e irmãos. No meio disto minha mãe ficou doente, e gastamos tudo o que tí-nhamos para curá-la, mas ela ficava cada vez mais doente. Sua irmã chegou e disse que ia levá-la a um médico que lhe ia curar. A minha mãe recusou porque não tínhamos dinheiro. Mesmo assim, sua irmã a levou para Don Benito Q’orihuama. Quando esse velho viu chegar a minha mãe, disse: ‘não se preocupe que não tenha dinheiro’ – ele a viu e sabia que ela não tinha dinheiro –, ‘só vai me pagar com seu gato preto’. ‘Eu não tenho um gato preto’, respondeu a minha mãe. ‘Não se preocupe, vou sexta-feira te curar na sua casa’. E nesse dia, quando ele veio, uma das gatas pariu um gato preto. Eu tinha uma formação marxista-maoísta e sempre foi difícil entender esse mun-do. O mestre Benito estava organizando as folhas de coca para curar a minha mãe, e eu não acreditava nele, mas ele pediu para ajudar a amarrar as folhas com as sementes de coca dentro, enrolar com um fio preto. Perguntei quem lhe havia ensinado tudo aquilo. Ele me disse, em quéchua, “menino, eu sou um homem marcado”. Levantou a roupa e mostrou as marcas do corpo. Haviam caído nele três raios. Não acreditava nele. Mas minha mãe se curou .

“(...) Eu atuava na rua, comprometido com a ideia do artista popu-lar, e uma vez um homem me pagou para atuar no seu bar. Comecei a trabalhar no bar, e tomava chicha. Das quatro da tarde ate as oito da noite se toma chicha. Depois ia tomar aguardente, porque só às onze horas tinha apresentação. Chegava no bar muito bêbado e represen-tava uma pantomima de bêbado e a gente dizia: ‘muito bem! Parece que está bêbado mesmo!’. Um dia me critiquei, ‘onde está o ator po-pular marxista?’ e decidi regressar à praça. Quando regressei, marquei no chão com giz um lugar onde ia atuar. Era maio e nesse mês não chove. E os montes verdes se tornam amarelos. Antes de começar minha apresentação, olhei o relógio na torre da igreja e apareceu uma nuvem e, antes de terminar a apresentação, caiu uma chuva for-tíssima. Ainda assim, as pessoas pediram que seguisse atuando, mas eu estava chateado porque queria reiniciar minha vida ali... E havia chuva! Então tomei um táxi e voltei para a chichería.Tomei ali um pri-

meiro trago. Chegaram pessoas do cemitério, chorando, comentando como o céu não podia deixar de chorar tendo morrido Q’orihuama. Voltei a minha casa e encontrei minha mãe chorando porque a chuva tinha acabado com o milho que ela tinha plantando. Quando chove, ele apodrece. ‘Por que chora, mãe?’. ‘Por causa da chuva’, respondeu. ‘Disseram que chove porque morreu Benito Q’orihuama’. E ela disse: ‘O que? Don Benito morreu?’. E se pôs a chorar. Perguntei quem era. ‘Não se lembra?’. Então me contou e lembrei. Troquei a chicha por café.

No bar, dias depois, um homem sentou e me contou que tinha estado no manicômio. E a Virgem Maria apareceu e lhe disse, ‘você não está louco, é somente o mal que tomou conta do seu corpo e o colocou aqui, colecionando as penas que chegam à sua janela’. Então, no dia seguinte, os médicos comprovaram que ele tinha sido curado. Saiu do hospital e foi à igreja agradecer à Virgem. Quando entrou, topou com uma imagem de gesso que não era ela. Foi a todas as igrejas de Lima e não a encontrou. Quando Nossa Senhora apareceu para ele, lhe disse, ‘você tem que voltar a sua terra, porque lá te estão chamando’. Deixemos essa historia.

No dia em que o mestre mostrou o seu peito, contou que era pastor de gado e um dia não voltou para casa. Quando foram buscá- lo, estava morto. Mas deixemos essa historia.

Havia um homem mais velho, que era ‘o grande mascador de coca’, que quer dizer ‘um pensador’. Pertencia a uma casa de antigos mestres que viviam nas montanhas, mas ele sofria porque não tinha filhos. Em seu sonho lhe falou seu mestre, disse ‘não sofra, tem de sair na noite de lua cheia e vai encontrar um menino que te vai continuar’. Saiu a caminhar e encontrou um homem chorando por um menino morto de nove anos, e era um homem muito velho, ca-noso, branco, cheio de remendos, suas mãos e pés pareciam de barro, mas os olhos transparentes. E mirou as mulheres que choravam com o pai e disse: ‘estão chorando pelo menino? Eu vou ressuscitá-lo’. A mãe disse, ‘o que preciso fazer para que o ressuscite?’ Ele disse, ‘saia’. Esse era Don Benito Q’orihuama e, quando ele me contou essa his-tória, disse que a primeira memória que tinha na sua vida era a sua própria imagem refletida no espelho dos olhos desse homem velho que o havia ressuscitado. Ele era o menino. Ele deu continuidade ao velho e se tornou também um pensador, um mascador de coca.

Don Benito também envelheceu e seu filho, Vicente, não queria saber nada de seu pai, das ‘bruxarias’, dizia ele. Nada de miséria, nada de campo. Tinha juntado 300 soles e queria vir à cidade para trocar seu dinheiro. Ia para Lima. Nisso estavam acabando os latifúndios em Peru, era a década de 1970. Esse filho de Benito queria ir e ele sofreu porque não tinha quem continuá-lo. Mas um dia chegou esse louco que, buscando a Deus em Lima, tinha regressado a Cuzco e não o encontrou e estava mascando drogas. E seus amigos o le-varam a Dom Benito. Quando Benito o viu disse, ‘é você quem vai me continuar’. E quando esse viu Dom Benito disse, ‘ah, é você quem estou procurando’.

Fernanda Pessoa

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Anoche, la Compañía Nacional de Fósforos, de Argentina, de-mostró que se puede provocar la risa desde la inteligencia y que hay que manejar variados recursos para lograrlo. Duran-te poco más de una hora, su pieza Alonso y Aguirre Perdidos en el Inframundo se paseó por distintas formas de generar humor desde el escenario (clown, farsa, parodia, muñecos), con un ritmo vertiginoso y permanente.La trama es desopilante. Alonso y Aguirre, dos españoles de baja estofa obnubilados por encontrar El Dorado, la mítica ciudad latinoamericana, se embarcan en peripecias que los enfrentan a la cárcel, los indios y finalmente las profundida-des de la tierra. En cada situación entran y salen personajes como el Virrey, Francisco Carvajal y hasta el diablo. Como única escenografía hay una tela desplegada entre cua-tro soportes de metal, a lo que se suma uno que otro objeto. El desarrollo de esta jocosa aventura descansa en Juan Carlos Caputo y Cristián Palacios, grandes histriones que dejan todo en el escenario. Intensos y versátiles, ponen sus cuerpos al servicio de las peripecias de los protagonistas, sin escatimar cambio de voces, bailes (Dirty Dancing y Thalia) y hasta volte-retas. Juntos forman una dupla bufa clásica: Caputo-Alonso es el listo, que tiene todas las respuestas, y Palacios-Aguirre el poco inteligente, que plantea las preguntas. Palacios, ade-más, construye diversos personajes.El texto, escrito por ambos actores más la directora Paula Brusca, trabaja las repeticiones, el equívoco y los juegos de palabras. Su humor es adulto pero jamás vulgar, e incluso se permite ironías sobre el teatro contemporáneo.Con este material, humano y textual, la directora armó un dispositivo que no para. Los actores están siempre en acción y no hay pausas para el público, salvo una que otra transición con la luz apagada.Frente a un espectáculo como éste no queda más que aplau-dir. Y aún el que no gusta de este tipo de teatro tiene que re-conocer que Alonso y Aguirre pone en valor no sólo el difícil arte de hacer reír, sino también el verbo actuar.

Marietta Santi Zecarlos de AndradeJuan Manuel Caputo e Cristian Palacios são dois comediantes que valem por cem. Esses fabulosos atores, valendo-se de um virtuosismo interpretativo invejável, desdobram-se em vários pa-péis para contar sua saga de aventureiros, perdidos na América Latina, em pleno século 16, em busca do lendário Eldorado.

Com uma cenografia extremamente simples e funcional os dois revivem sobre o palco o inesquecível espírito das duplas, que tem sua origem na comédia latina, passando por Arlecchino e Brighella, para chegar até o Gordo e o Magro, só para citar alguns exemplos. O esquema é antigo e, nas mãos de intérpretes com-petentes, extrapola os limites dos psicologismos para adentrar o campo caricatural de figuras que parecem estar saltando dos foto-gramas do cinema mudo, ou das tiras das histórias em quadrinhos.

A narrativa se desenvolve por meio de uma sucessão de esque-tes tipicamente circenses, nas quais identificamos com facilidade os espectros de Tony e Augusto, os magníficos palhaços que, por se-rem tão diferentes, completam-se um ao outro de maneira perfeita. O tom da comédia distanciada, construída em cima de arquétipos, revela-se extremamente engenhoso. A fórmula permite inclusive a entrada da música Time of my life, tema do filme Dirty Dancing, para que um dos personagens magnetize a plateia com a mais histriôni-ca das coreografias, enquanto seu “partner”, com um tecido neutro e quatro pedestais, prepare a ambientação da próxima cena.

A sintonia entre ambos é perfeita e os tempos obedecem ao ritmo preciso imposto pela dupla, que conduz a encenação por uma contínua curva ascendente. A cena da luta de Alonso com o feroz mastim Hércules (um minúsculo cachorrinho de pelúcia) é um dos pontos altos que arrebata os espectadores. É visível o quanto os dois se empenham em buscar o riso do público que, diante de tanto talento, não se faz de rogado.

Juan Manuel e Cristian não poupam nada e nem a ninguém. Uma discreta citação a Eugênio Barba e outra, bem mais explícita, refe-rente ao metateatro, comprovam que ambos estão ali para, inclusive, rirem da cena contemporânea e de si mesmos. Ao final do espetáculo (que na verdade não se acaba, pois promete uma segunda parte), os dois comediantes estão lavados de suor, mas, certamente, o esforço não foi em vão, pois a energia vibrante da Companhia Nacional de Fósforos logo de início já havia incendiado por completo a platéia.

Fernanda Pessoa

Alonso y Aguirre ¡Perdidos en el Inframundo!Críticas

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Cara de cuero, del escritor alemán Helmut Krausser, está basada en hechos reales. Relata la relación entre un hombre al margen del mandato social y su novia: áspera y pasional como el rock que enmarca el inicio y el final de la obra. Él no trabaja, solo está su-mido en placeres intrascendentes aunque inocuos: bebe, goza de la mujer con quien vive y de la que se muestra enamorado, pero sobre todo, consume películas en casa, cuyos mundos ficcionales parecen sustituir el suyo, aliviándolo de su carga, de su imposición insoportable. Uno de aquellos personajes lo ha seducido especial-mente y él juega a imitarlo en apariencia. Pero lo hace con la enra-recida inocencia de un niño enorme y atemorizante.

La obra desemboca en la desgracia que sucedió en Münich a fines de los 80: la policía intervino la casa del joven vestido del personaje de Masacre en Texas (película de culto para los aman-tes del terror) y, en una trágica confusión entre realidad y ficción, ejecutó al joven que vestía la máscara de cuero y tenía la moto-sierra que aquel personaje instalara como símbolo de crímenes sangrientos desde Hollywood.

Qué resulta más temible y peligroso, inquiere la propuesta: ¿un ciudadano renuente a disciplinarse?, ¿un joven viviendo al margen de la productividad que impone la sociedad?, ¿un hombre demasiado adherido a un producto de consumo de la industria de la entretención? O la fuerza del control so-cial que interviene, incluso, nuestros juegos –al margen de su buen gusto—en nombre de la seguridad?, ¿acaso la misma sociedad que, como en EE.UU. ahora, rechaza renunciar a las armas y al derecho de sospecha sobre todo aquel que luzca o vista diferente? La puesta de Teatro Rabia enfoca su preocu-pación en crear el clima de encierro y auto aislamiento del es-pacio dramático. El atinado aprovechamiento del sótano don-de se montó, la música y los colores (neutros y rojos) fueron sus puntos altos. La tensión que exige una partitura orgánica precisa fue lograda por momentos. Los altibajos de la dicción –agravada por la reverberación acústica del espacio—y una actuación centrada en el enfrentamiento intenso, impidieron que los textos –algunos de ellos de materia poética—hicieran más entrañable la relación para que el final (este sí muy bien codificado) optimizara sus efectos.

Percy Encinas João das NevesUm fato de grande repercussão nos idos de 1987 abalou

a credibilidade quase cega que o povo alemão deposita em sua polícia. A perseguição e assassinato, por equívoco, do ci-dadão Werner Bloy. A partir deste acontecimento, Helmut Krauser cria o texto Cara de Cuero, encenado pela Companhia de Teatro Rabia, de Santiago do Chile. O texto nos parece atrelado a uma característica da dramaturgia européia con-temporânea da qual Helmut Kraiser e o francês Joël Pomme-rat são dignos representantes.

Confesso minha implicância, talvez até uma espécie de pre-conceito, com uma dramaturgia onde sinto que não podemos respirar, que trabalha apenas com uma tensão contínua, com a repetição exaustiva de situações que se acumulam, sempre com as mesmas ou previsíveis resoluções.

Por outro lado, se constituem em desafios para os atores e atrizes que devem neles vislumbrar uma excelente oportunida-de para performances, às vezes memoráveis.

Aqui, em Cara de Cuero, também não são desprezíveis as atuações de Mirta Traslaviña Acosta e Herman Heyne.

Mas a pergunta que me faço e que transfiro para os reali-zadores, já me desculpando de antemão por minha ignorân-cia, é: Não haverá, em um país com uma literatura e cultura tão ricas como o Chile, autores teatrais mais instigantes? Não conheço o original de Krauser, e isso pode estar afetan-do a minha avaliação. Mas não creio que ao lê-lo irei ter me-lhor impressão. O ponto de partida para a realização de um texto significativo me pareceu excelente, mas resultou em um desperdício do mesmo. Além do que, a história recente do Chile e da América Latina está recheada de acontecimentos que mereceriam dos dois intérpretes de Cara de Cuero, cuja sintonia é admirável em suas interpretações, um olhar para dentro de si mesmos. Enfim, escolhas são escolhas. E, não me cabe aqui, pretender interferir nessas. Mas que acho um desperdício de seus talentos, lá isso acho.

Cara de Cuero

Fernanda Pessoa

Críticas

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Teatro no morro: histórias de várias lutas

poderia ser o teatro. Desde o início, a preocupação com a for-mação de atores e a transmissão de conhecimentos básicos sobre a arte do teatro e a mecânica do espetáculo esteve aliada, também, à necessidade de uma formação de público, já que os moradores do morro não tinham o hábito de fre-quentar teatros por causa de sua baixa condição financeira.

Assim, o projeto se inicia com a montagem de espetácu-los que falavam de questões cotidianas locais. O grupo ia de porta em porta, convidando as pessoas e, quando elas che-gavam no teatro improvisado montado no centro social do missionário austro-alemão Hubert Leeb, se deparavam com cenas e histórias que tratavam dos seus problemas, sonhos e, também, conquistas e avanços.

O espetáculo que o grupo está trazendo para a Mostra, Bandeira de Retalhos, é um exemplo deste tipo de construção cênico dramatúrgica desenvolvida pelo Nós do Morro ao lon-go dos seus 27 anos de vida: um episódio real na história de vida dos moradores do Vidigal que, em plena ditadura militar, conseguiram resistir a um processo de remoção da favela, capitaneado pelos governantes e pelo interesse da especu-lação imobiliária sobre o espaço, situado no litoral, em plena zona sul do Rio de Janeiro.

Por meio da linguagem do musical, cerca de 30 artistas contam a história de um grupo de moradores ameaçados de remoção sumária para a periferia. Eles então se organizam e, com a ajuda de artistas, alguns políticos e representantes da igreja católica, conseguem resistir à força bruta das forças de segurança governamentais e impedem a derrubada das suas moradias, garantindo a sua permanência no local. Um exemplo de resistência popular contra um regime autoritário, que alcançou reconhecimento pleno quando a favela foi es-colhida para ser a comunidade a ser visitada pelo então papa João Paulo II, em 1980.

Desde o começo dos anos 1990, tornaram-se comuns na cida-de do Rio de Janeiro o surgimento de movimentos destinados a criar acesso à arte e à cultura nas favelas e bairros da periferia da cidade. Graças a estas iniciativas, milhares de crianças, jovens e adultos passaram a ter acesso ao conhecimento e à formação profissional em diversas áreas artísticas como teatro, canto, dan-ça e cinema. Dessa forma, milhares de pessoas que no seu dia a dia não têm acesso aos bens de produção cultural tiveram a oportunidade, através da arte, de ver seus horizontes ampliados.

O Nós do Morro, fundado em 1986, no Morro do Vidigal, é um projeto pioneiro neste setor no Rio de Janeiro, marcan-do a sua trajetória com a ideia de fazer teatro e arte com e para a comunidade. O grupo foi ampliando a sua filosofia e, ao longo dos seus 27 anos de trabalho, já passaram pelos cursos e oficinas de formação de ator e de técnicos crianças, adolescentes e adultos, moradores do bairro ou não. Parte deles, hoje, se encontra inserida no mercado profissional e consegue sobreviver através de sua arte. O fator de ser “gente de dentro” quem capitaneava esse tipo de iniciati-va garantia a legitimidade e a aceitação por parte dos mo-radores. Outro fator que pesou para o sucesso foi a busca incessante da qualidade, seriedade e profissionalização do trabalho desenvolvido.

Como a maioria dos membros do núcleo fundador do Nós do Morro são de artistas provenientes do teatro – que chega-ram ao Rio de Janeiro no começo dos anos 1970 – o caminho a oferecer para os jovens da região do Morro do Vidigal só

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20 de Abril de 2013 | 5ª edição | latino americano | 7

Quando, há quinze anos, Luzinete Barbosa entrou para o proje-to Nós no Morro, que fica no Vidigal, Rio de Janeiro, mal sabia que ali seria o local onde se curaria da depressão e reforçaria os laços com seus filhos. Já Francisca Damião da Silva, a Chi-quinha, só conseguiu “depois de velha” terminar seus estudos e conseguir enfim alcançar seu sonho de fazer teatro – entrou para o projeto há sete anos. As duas fazem parte da equipe de 30 pessoas responsáveis pelo espetáculo Bandeira de Retalhos, que encena a história da primeira remoção de barracos, ocorrida em Vidigal em 1977.

Fávari– Vocês conhecem pessoas que foram removidas nes-te momento?

Luzinete – Eu não peguei a remoção. Sou de Campina Grande, na Paraíba, e estou no Rio há 36 anos. Mas eu peguei a segunda remoção do Vidigal, conheço várias pessoas e convivi com elas. É uma história bem forte, é real; aconteceu e acontece até hoje. Eu moro em uma área que é de frente para o mar, o 314. É uma área que o que eles mais desejam é tirar para fazer hotel porque é muito próxima ao mar. Eu cheguei a pegar a segunda remoção. É bem difícil você ver pessoas sendo removidas dos barracos, de suas casas, sem ter para onde ir e aquela resistência.

Francisca – Eu não peguei nada disso porque faz 11 anos que eu estou no Rio de Janeiro. Peguei o negócio do tráfico com a polícia, as guerras, mas esse negócio de derrubar barraco eu não peguei, não estava lá ainda.

Fávari – Agora estão chegando a Copa, as Olimpíadas. Vocês acham que pode ter um terceiro movimento de remoção no Vidigal?

Luzinete – Eu acredito que vão ter melhorias. Não uma re-moção, para deixar as pessoas desabrigadas, para jogar as pes-soas no lixo. Eu sou atriz mas hoje eu sou microempreendedora. Antes eu trabalhava numa área do Vidigal que pertence à pre-feitura onde eu tinha uma barraquinha, na entrada do Vidigal, que foi removida há pouco tempo. Tinha um projeto de constru-írem um shopping e nos tiraram de lá. Isso foi mês passado, uma coisa que foi construída há quase dois anos, e fomos removidos. Eu acho que hoje já tem soluções, entendeu? Já não é bem essa resistência, essa remoção.

Francisca – Eu concordo com ela. Várias pessoas perguntam sobre esse negócio, o que vai acontecer depois da Copa e depois que terminar esse negócio de futebol. O comandante da polícia fala que não vai ter esse negócio de tráfico porque vai ser uma coisa diferente. Vamos ver, né?!

Fávari – E como é para vocês atuar?Francisca – Primeiro pegamos o texto, vamos lendo, vamos

entendendo como é que vai ser. Aí vamos fazer os exercícios e vamos descobrindo como vai ser aquele movimento da peça.

Luzinete – Para mim, atuar não é muito difícil, difícil é o diretor te dar um texto e você conviver com aquilo que nunca viveu. Isso para mim é meio pesado. Atuar, para mim, não é difícil porque eu trabalho com o público, gosto de falar mui-to, sou muito comunicativa, me meto em tudo, sou meio que fofoqueira, sou meio que mãezona, um pouco de cada coisa. É meu jeito.

Agora, na Bandeira foi bem complicado. Apesar de eu ser nordestina, eu nunca passei necessidade porque mamãe era la-vadeira de roupa e papai era guarda noturno. Eu não sei dizer o que é pobreza porque eu nunca vivi ao relento, sem um teto

“Difícil é o diretor te dar um texto e você conviver com aquilo que nunca viveu”

Paulo Fávari

– isso tudo a gente vive no Bandeira. Para mim foi, é e continua sendo difícil porque cada dia que a gente apresenta Bandeira de Retalhos é um aprendizado. Você aprende, você cresce, você amadurece. Ganha crítica, esporro do diretor e da diretora, mas sabendo que amanhã você pode fazer bem melhor.

Nessa peça não tem “O” protagonista, “O” ator. Todos nós so-mos atores e protagonistas. São mais ações do que falas. São mais olhares, mais ações, mais dinâmicas. A Chiquinha é costu-reira mas ela é tão importante quanto o outro ator. Ninguém sai do palco, é como se fosse favela mesmo, cotidiano mesmo.

Fávari – Qual a expectativa de vocês para a apresentação?Luzinete – Vendo essas apresentações, essas atividades,

essas peças que eu tenho visto desde terça-feira, eu já estou buscando a emoção do Bandeira desde agora. Estou crescendo e aprendendo com a emoção destes espetáculos. Eu já fico pen-sando na concentração, em pegar algo para buscar essa emoção mais ainda do que eu já tinha. Não que tenha que ser a melhor, não é uma competição, mas para ser uma coisa natural, que cause impacto, que seja muito mais verdadeiro.

Fávari – Como está sendo esta experiência de participar da Mostra?

Francisca – Está sendo uma experiência muito boa, a gente está aprendendo! Eu gosto de ver essa expressão diferente para a gente aprender e levar para o trabalho que a gente faz dentro do teatro. Eu acho muito bom quando uma pessoa faz um movi-mento com o corpo todo. Caraca, eu fico toda doendo. Eu sou de idade (tenho 63 anos), não posso fazer muito movimento senão me descolo toda [risos]. A minha vontade é isso aí, cara! Se eu tivesse entrado mais nova, garanto que eu estava que nem eles, assim molenga! Mas depois da idade foi que eu terminei meus estudos e agora estou no teatro. Tudo é possível, é só a pessoa querer e ter a boa vontade de fazer.

Luzinete – Esta experiência é muito especial, mas cada experiência é muito valorizada, grandiosa. Mas essa com Ban-deira de Retalhos. . . nossa, é o nosso cotidiano, o nosso dia a dia. Você vê pobreza, miséria, racismo, preconceito.. . é a nossa realidade. É algo para nós pararmos, meditarmos e fazer um Brasil melhor. Está na hora de mudar, de fazer algo. Senão, onde vamos parar?

Fernanda Pessoa

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O humano como prioridade

Quanto vale a vida de um irmão? Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo um mau negócio, disse Brecht. Que valores norteiam os atores deste espetáculo? Peço permissão para tratar de um tema que – aparentemente! – está fora do âmbito teatral: os acontecimentos re-centes na Venezuela. Existem algumas iniciativas na Venezuela e em outros países de não reconhecer os resultados das eleições nacionais.

Tal qual o mais hermético dos espetáculos teatrais, a cena ve-nezuelana e seus protagonistas, acompanhada de coadjuvantes internacionais – com desejos de serem os únicos protagonistas, é bem verdade – nos deixa boquiabertos. Vemos iguais em espécie e gênero matarem-se uns aos outros em nome de algo que mais provavelmente alguém os fez acreditar, do que em nome de suas reflexões. São dias cinzentos estes em que o inimigo não tem cara e vive nas sombras, com a certeza de que a Conspiração já deu certo. A piada de mau gosto é que há quem acredite nisso.

Não interessa a opinião dos meios de comunicação sobre os eventos recentes, mas antes, nos preocupam a que interesses essas opiniões atendem. Destas mídias de caráter duvidoso, interessam na verdade os fatos: a lei foi atropelada, da mesma forma que al-guns bolivarianos também o foram. A primeira de forma figurada, mas os segundos, infelizmente, de forma concreta. Quanto vale a vida de um irmão?

Discutir resultados é pensar a curto prazo. É ensinar aos filhos que temos o direito de escolher quais leis seguir e a quais não dar a menor atenção, e que variáveis – de humor, interesse, conveniência – influenciam essa decisão. Discutir a maneira de fazer as coisas, es-tabelecer prazos para avaliá-la e espaço para revisá-la é dar-se a pos-sibilidade de construir uma sociedade menos injusta, com um maior número de pessoas norteadas pelos mesmos valores. E que o valor da vida e do que ainda resta de humano em nós seja uma prioridade.

Alexandre Roit

(con revisión de Teresa Hernández)Fernanda Pessoa

¿Cuanto vale la vida de un hermano? A cambio de ser razonables, hagan el esfuerzo para crear un estado de cosas que conviertan la desrazón de una persona en una mala empresa, dijo Brecht. ¿Qué valores persiguen los actores de ese espectáculo? Les pido permiso para tratar de un tema que – ¡aparentemente! – está fuera del ámbito teatral: los acontecimientos recientes en Venezuela. Hay ciertas movidas en Venezuela y en otros paí-ses que no quieren reconocer los resultados de las elecciones nacionales.

Así como lo más hermético de los espectáculos teatrales, la escena venezolana y sus protagonistas, acompañados de sus secundarios inter-nacionales – con ganas de convertirse en protagonistas – nos espantan. Vemos iguales en especie y género que se matan unos a los otros, a cargo de algo, que más bien alguien les hizo creer, de lo que en nombre de sus reflexiones. Son días grises esos en que el enemigo no tiene cara y vive en las sombras, cierto de que la Conspiración es un éxito. El chiste malo es que hay quienes se lo creen.

No interesa la opinión de los medios de comunicación acerca de los eventos recientes, sin embargo, nos preocupan a quien le sirven esas opi-niones. De estos medios de carácter dudoso, nos interesan en verdad los hechos: la ley fue atropellada, igual que unos cuantos bolivarianos. La primera es una figura retórica, todavía la segunda no, lamentablemente. ¿Cuanto vale la vida de un hermano?

Debatir resultados es pensar a corto plazo. Es enseñar a los hijos que tenemos el derecho de escoger cuales leyes respetar y a cuales no hacer caso, y cuales son las variables – de humor, interes, conveniencia – que influyen en esa decision. Debatir la manera de hacer, establecer plazos por evaluarla y espacio para revisarla es darse la posibilidad de construir una sociedad menos injusta, con un número más grande de personas que siguen los mismos valores. Y que el valor de la vida y de lo que todavía nos resta de humano sea una prioridad

Alexandre Roit é coordenador geral da Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo.