charles dickens - loja de antiguidades

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CHARLES DICKENS LOJA DE ANTIGUIDADES Traduo Ana Macedo e Sousa

CAPITULO I

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de noite que mais gosto de passear. Muitas vezes, no Vero, saio de casa logo de m anh e vagueio o dia todo por ruas e azinhagas, ou desapareo durante dias ou mesmo semanas, mas, a no ser quando estou no campo, raramente saio antes do anoit ecer, embora, louvado seja Deus, como qualquer outra criatura, eu goste da luz e sinta a alegria que ela espalha sobre a terra. Adquiri este hbito quase sem dar por isso: em primeiro lugar, porque me ajuda um pouco na minha doena e, depois, porque favorece a minha tendncia natural para especular sobre os temperamentos e ocupaes daqueles que se cruzam comigo pelas rua s. A luz e a agitao do meio-dia no se adaptam ao meu deambular ocioso. A observao momentnea de rostos iluminados por um candeeiro de rua ou uma montra iluminada se rvem melhor os meus intuitos do que a sua plena revelao luz do dia, e, a falar a verdade, a noite mais favorvel neste aspecto do que o dia, que muitas vezes, se m cerimnia nem remorso, destri o castelo no ar que acabmos de construir. O constante movimento, o eterno bulcio, o constante bater dos ps, alisando as pedr as speras... no espantoso como as pessoas que vivem em ruelas estreitas conseguem suporta-

-lo? Imaginem um homem doente num local como St. Martin's Court, a ouvir os pass os, que no meio da dor e sofrimento, fosse obrigado, como se se tratasse de uma sua obrigao, que tivesse de cumprir, a distinguir os passos da criana dos passos do adu lto, o rudo das chinelas do mendigo do das botas do elegante, o taco arrastado do indolente do rpido pisar do homem ocupado na busca do prazer. Pensem nos rudos e barulhos sempre presentes aos seus sentidos, e na corrente da vida que no pra de correr, correr, correr atravs dos seus sonhos agitados, como se ele estives se condenado a estar ali, morto, mas consciente, num cemitrio barulhento, sem esperana de repouso ao longo dos sculos. Depois, observo as multides a passar vezes sem conta pelas pontes (pelo menos por aquelas onde no se paga portagem) onde nas noites de calmaria muitos param a olhar calmamente para a gua, pensando vagamente que ela mais adiante corre por en tre socalcos verdes que vo alargando at se juntarem ao mar sem fim, onde outros param para descansar, pousando os seus pesados fardos e, olhando por cima do par apeito, pensam que fumar e preguiar a vida toda, e dormir deitados ao Sol, deitad os sobre a coberta de oleado de um barco vagaroso, certamente a maior das felicidad es, e onde outros ainda, de uma classe muito diferente, fazem uma breve paragem, carregados com fardos maiores ainda, lembrando-se de ter ouvido ou lido em qualq uer stio que morrer afogado no uma morte terrvel, mas sim o mais fcil e o melhor dos suicdios. Tambm gosto do mercado de Covent Garden, ao amanhecer, na Primavera e no Vero, qua

ndo a doce fragrncia das flores paira no ar, sobrepondo-se aos odores doentios das orgias da noite anterior, e pondo o pobre tordo, cuja gaiola ficou toda a no ite pendurada janela de um sto, meio louco de felicidade! Pobre pssaro! A nica coisa ali, semelhante s flores, tambm elas prisioneiras! Algumas, cadas das mos quen tes de compradores embriagados, jazem cadas por terra, enquanto outras, murchas pelo contacto umas com as outras, esperam o momento em que viro reg-las e refresc-las de forma a agrad arem a compradores mais sbrios, e darem a velhos empregados de escritrio que por ali passam a iluso de uma viso campestre. Mas a minha inteno neste momento no divagar acerca dos meus passeios. A histria que pretendo contar nasceu de uma dessas minhas caminhadas, e foi isso que me levou a referi-las, guisa de prefcio. Uma noite, tinha-me dirigido cidade, ia caminhando lentamente, como meu hbito, de ixando que o meu pensamento corresse veloz, rdea solta, quando fui surpreendido por uma pergunta cujo sentido no entendi imediatamente, mas que parecia ser-me di rigida, numa voz doce e suave que me deixou agradavelmente surpreendido. Volteime bruscamente e vi ento a meu lado uma bonita rapariguinha que me pediu que lhe dissesse o caminho para uma rua bastante distante, noutro bairro da cidade. - Fica muito longe daqui, minha filha - respondi-lhe. - Eu sei - disse ela timidamente. - Eu sei que muito longe, foi de l que vim esta noite. - Sozinha? - perguntei com alguma surpresa. - Sim, no faz mal, mas agora estou com um bocadinho de medo, porque me perdi pelo caminho. - E porque que me perguntaste a mim? E se eu te enganasse? - Eu sei que o senhor no me fazia isso - disse a criaturinha. -J to velho, e tambm a nda to devagar... No saberei descrever a forma como este pedido me impressionou, a energia com que me foi dirigido, a lgrima que brilhava nos seus olhos claros e o seu rosto trmulo que me fitava. - Vem comigo - disse-lhe eu. - Eu vou-te l levar. Ela deu-me a mo to confiante como se me conhecesse desde o bero, e pusemo-nos junto s ao caminho. A criana acertou o seu passo pelo meu, e mais parecia ser ela quem me conduzia e tomava conta de mim do que eu quem a

protegia. Reparei que de vez em quando me deitava um olhar curioso, como para se certificar de que eu no a estava a enganar, e cada um desses olhares, rpidos e furtivos, parecia aumentar a sua confiana em mim. Pela minha parte, a minha curiosidade e o meu interesse por ela eram no mnimo equ ivalentes ao interesse da criana por mim, porque de uma criana se tratava, embora me tivesse parecido que o seu aspecto infantil se devia em parte sua constituio de licada. No estava muito agasalhada, mas estava limpa e no dava mostras de pobreza ou desmazelo.

- Quem que te mandou to longe sozinha? - perguntei. - Uma pessoa que muito boa para mim. - E que foste tu fazer? - Isso eu no posso dizer - disse a pequena com firmeza. Houve nesta sua resposta qualquer coisa que me fez olhar para a pequena criatura com uma involuntria expresso de surpresa. Perguntava-me a mim prprio que espcie de recado poderia ser para que ela tivesse de antemo uma resposta preparada para o caso de lhe fazerem perguntas. Pareceu ler-me os p ensamentos, pois ao cruzar os seus olhos com os meus acrescentou que no tinha ido fazer nada de mal, mas que era um grande segredo, um segredo que nem ela prpria c onhecia. Enquanto dizia isto, no parecia esconder astcia nem falsidade, mas sim uma franque za confiante que trazia a marca da verdade. Ela continuava a andar como h pouco, medida que prosseguamos o nosso caminho tornava-se-me mais familiar, conversando alegremente, mas sem adiantar mais nada sobre a sua casa para alm de comentar que estvamos seguindo por outro caminho e perguntar se era mais curto. Entretanto, eu ia revolvendo na minha cabea uma centena de possveis explicaes para o enigma e ia-as rejeitando uma a uma. Sentia-me envergonhado de me estar a aproveitar da ingenuidade e do sentimento de gratido da criana com o intuito de satisfazer a minha curiosidade. Eu gosto de crianas, e quando elas, ainda to cheias da graa de Deus, nos amam, isso uma coisa e xtraordinria. A confiana que esta criana depositara em mim tinha-me agradado e decidi-me a merec-la, prestando assim homenagem natureza que a levara a confiar em mim. No havia, no entanto, razo para que me abstivesse de ver a pessoa que a tinha envi ado a uma distncia to grande, sozinha e de noite, com tanta falta de considerao e, como podia suceder que ela, quando se visse perto de casa, se despedisse de m im privando-me assim dessa oportunidade, evitei as ruas mais frequentadas e tome i o caminho mais complicado, pelo que foi s quando chegmos rua onde morava que a min ha amiguinha percebeu onde estava. Bateu palmas de contentamento, correu um pouco minha frente, em seguida parou junto a uma porta e, ficando junto ao degra u, esperou que eu chegasse at junto dela, e s ento bateu porta. Uma parte desta porta era de vidro e no estava protegida por gelosias, mas esse d etalhe no dei por ele imediatamente, uma vez que estava tudo muito escuro e silen cioso, e eu estava ansioso, como a criana estava tambm, por uma resposta nossa chamada. B ateu duas ou trs vezes, em seguida ouviu-se um rudo de algum que se movia l dentro e, aps um bocado, uma plida luz surgiu atravs do vidro, aproximando-se lent amente, como se a pessoa que a segurava tivesse de abrir caminho por entre uma grande quantidade de objectos espalhados, e assim compreendi que tipo de pes soa era que avanava e qual o tipo de lugar por onde avanava. Era um velhinho de cabelos compridos grisalhos, e medida que se aproximava, segu rando a luz acima da cabea e olhando em frente, eu conseguia ver perfeitamente o seu rosto e o seu vulto. Apesar de muito enrugado, pareceu-me reconhecer nos s eus traos secos e magros alguma coisa dos traos delicados que notara na pequena.

Os seus olhos azuis, brilhantes, certamente se assemelhavam, mas o rosto dele es tava to marcado pela velhice e pelas preocupaes que toda a parecena cessava a.

O lugar atravs do qual ele tinha lentamente aberto caminho era um daqueles depsito s de velharias e curiosidades que parecem encafuados nos mais inesperados cantos desta cidade, escondendo os seus tesouros poeirentos dos olhos do pblico com sofr eguido e desconfiana. Havia armaduras de ferro pelos cantos, erectas como fantasma s, esculturas fantsticas trazidas de claustros de conventos, armas ferrugentas de vri os tipos, estranhas estatuetas de porcelana, madeira, ferro e marfim, tapearias e estranhas peas de mobilirio que mais pareciam ter sido desenhadas em sonhos. O v elhinho tinha um aspecto doentio que condizia perfeitamente com o local. Ele parecia o tipo de pessoa capaz de ter andado a rebuscar entre velhas igrejas, tmu los e casas abandonadas. No havia em toda a coleco nada que no estivesse a condizer com ele. Nada que parecesse mais velho ou mais gasto do que ele. Deu a volta chave, olhando-me com uma surpresa que no diminuiu quando olhou a peq uena. Quando a porta se abriu, a garota, tratando-o por av, contou-lhe a forma como nos tnhamos conhecido. - Valha-te Deus, filha! - disse-lhe o velho, acariciando-lhe a cabea. - Como que te foste perder? E se eu tivesse ficado sem ti, Nell? - Eu havia de encontrar o caminho para casa, av - disse a garota corajosamente. No tenha medo. O velho beijou-a e, em seguida, voltou-se para mim e convidou-me a entrar, e eu assim fiz. Fechou a porta chave, passou minha frente com a luz e conduziu-me atravs do aposento que eu j tinha visto atravs do vidro. Chegmos a uma saleta nas tr aseiras onde havia uma porta que estava aberta, deixando ver uma espcie de cubculo com uma cama to pequenina e to bem arranjada que podia ser o quartinho d e uma fada. A pequena pegou numa vela e entrou no quartinho, deixando-me a ss com o velho. - O senhor deve estar cansado - disse ele enquanto puxava uma cadeira para junto da lareira. - Como lhe posso agradecer? - Tendo mais cuidado com a sua neta para a prxima vez, meu bom amigo - respondi-l he. - Mais cuidado? - disse o velho numa voz aguda. - Mais cuidado com Nelly? Mas se r que algum no mundo j amou uma criana como eu amo Nelly? Disse estas palavras com uma surpresa to evidente que eu fiquei perplexo, sem sab er o que lhe responder, tanto mais que, para alm de qualquer coisa de vago e de irresoluto que havia nos seus modos, o seu rosto estava to profundamente marcado pela ansiedade que percebi que, ao contrrio do que no primeiro momento me tinha parecido, ele no estava esclerosado ou caqutico. - Pareceu-me que o senhor no pensou... - comecei. - No pensei? - exclamou o velho interrompendo-me. - No pensei nela? Ah, bem se v que o senhor no conhece a verdade! Minha pequena Nel ly! Minha pequena Nelly!

Seria impossvel a qualquer homem, fosse qual fosse a sua linguagem, expressar mai or afecto do que o antiqurio expressava naquelas poucas palavras. Esperei que dissesse mais qualquer coisa, mas ele apoiou o queixo sobre a mo, abanou a cabea p or duas ou trs vezes e fixou o olhar na lareira. Enquanto assim estvamos sentados em silncio a porta do cubculo voltou a abrir-se e voltou a aparecer a pequena, com os seus cabelos castanhos-claros caindo soltos em volta do pescoo, e as faces coradas da pressa de regressar para junto de ns. Fo i logo preparar a ceia, e enquanto ela se atarefava reparei que o velho me obser vava agora com mais interesse. Notei com alguma surpresa que era ela quem fazia tudo, e que parecia no haver mais ningum em casa para alm de ns. Aproveitei um momento em que ela no estava ao p de ns para esclarecer esse ponto, ao que o velho me respo ndeu que poucas pessoas adultas eram mais dignas de confiana ou mais cuidadosas do que ela. - Faz-me sempre pena - observei eu, irritado com o que me parecia ser o egosmo de le. - Faz-me sempre pena ver as

crianas serem obrigadas a contemplar a face spera da vida, quando so ainda muito pe quenas. No bom para a sua confiana e para a sua simplicidade, duas das melhores qualidades que Deus lhes d, e faz com que conheam as nossas tristezas ant es de conhecerem as nossas alegrias. - Nunca prejudicar Nelly - disse o velho, olhando fixamente para mim. - Esto demas iado enraizadas para isso. Para alm disso, os filhos dos pobres conhecem poucas alegrias. At as pequenas alegrias da infncia tm de ser compradas e pagas. - Mas... perdoe que lhe diga isto, o senhor no com certeza assim to pobre - disse eu. - Ela no minha filha - retorquiu o velho. - A me dela que era. E era muito pobre. Eu no poupo nada, nem um centavo, e vivo desta maneira - pousou a sua mo sobre o meu brao, e disse num sussurro: - Mas um dia ela ainda vai ser rica, h-de ser uma grande senhora. No pense mal de mim, por eu aceitar a ajuda dela. Ela d-ma alegremente como o senhor est a ver, e ia ficar muito triste se eu aceitasse que outra pessoa fizesse para mim aquilo que as suas pequenas mos conseguem fazer. Eu no penso nela? - exclamou ele com sbita irritao. - Deus bem sabe que esta criana a minha razo de viver e, no entanto, no me concede a prosperidade. Ah, no! Por esta altura, o objecto da nossa conversa regressou, o velho fez-me sinal que me aproximasse da mesa, calou-se e no disse mais nada. Mal tnhamos comeado a nossa refeio quando bateram porta por onde eu havia entrado. N ell comeou a rir com prazer, um riso infantil e alegre que dava gosto ouvir, e disse que era com certeza o bom Kit que estava de volta. - Tola! - disse ele acariciando-lhe os cabelos. - Ela est sempre a rir do pobre K it. A criana riu de novo, com mais entusiasmo ainda do que da primeira vez, e eu no pu de deixar de sorrir, enternecido. O velhinho pegou numa vela e foi abrir a porta . Regressou seguido por Kit.

Kit era um rapaz de cabeleira desgrenhada, tosco e desajeitado, com uma boca inv ulgarmente grande, bochechas muito coradas, nariz arrebitado e uma expresso no ro sto que era a mais cmica que j vi na minha vida. Ao ver um estranho parou bruscamente, junto porta, fazendo girar na mo um velho chapu redondo e sem vestgios de aba e, ora apoiando-se numa perna, ora mudando rapidamente para a outra, deix ou-se ficar entrada da porta a olhar para dentro da saleta com o ar mais malandr o que j vi na minha vida. A partir da nutri um sentimento de gratido em relao a ele, po is compreendi que ele representava a comdia na vida da garotinha. - Foi uma boa caminhada, no foi, Kit? - perguntou o velhinho. - verdade, patro, ainda foi um estico - respondeu Kit. - Encontraste a casa facilmente? - No senhor, foi um bocado difcil, patro - disse Kit. - Agora deves estar com fome... - Pois estou, parece-me que sim, patro - respondeu ele. O rapaz tinha uma maneira estranha de falar. Punha-se de lado, e esticava a cabea para a frente, por cima do ombro, como se de outra forma no conseguisse que a voz lhe sasse. Penso que o t eria achado engraado em qualquer lugar, mas o facto de a criana apreciar tanto o seu lado cmico, e o facto de, naquele lugar que parecia to pouco apropriado para ela, surgir um pouco de alegria, era verdadeiramente irresistvel. Era tambm muito bom que o prprio Kit se sentisse lisonjeado pela impresso que causava. Aps al guns esforos para manter o seu ar grave, estalou a rir ruidosamente, e ali ficou com a boca muito aberta e os olhos semicerrados a rir gargalhada. O velho estava de novo absorto nos seus pensamentos, parecendo no notar o que se passava sua volta, mas observei que, no momento em que a criana parou de rir, os olhos dela, brilhantes, estavam cheios de lgrimas, provocadas pela alegria com que recebera o seu desajeitado amiguinho,

depois do susto daquela noite. Quanto a Kit, cujo riso, todo ele, no estivera mui to longe do choro, levou uma grande fatia de po com carne e uma caneca de cerveja para um canto, e comeou a comer vorazmente. - Ah! - disse o velho dirigindo-se-me com um suspiro como se tivssemos acabado na quele momento de ter a nossa conversa de h pouco. - O senhor no tem ideia do que est a dizer. Eu no penso nela? - Voc tambm no deve dar tanta importncia a uma observao que fiz baseado numa primeira impresso, meu amigo - disse eu. - No - respondeu o velho pensativamente. - Vem c, Nell! - A garota saltou da cadeira e foi colocar os seus braos volta do pescoo do velho. - Eu gosto de ti, Nell? - perguntou ele. - Diz l, Nell, Eu gosto de ti ou no?

A criana respondeu acarciando-o e encostando a cabea ao peito dele. - Porque ests a chorar? Ser porque sabes que te amo e ficas triste porque eu pareo estar a duvidar? Ora, ora, digamos ento que te amo ternamente. - Claro que sim! Claro que sim! - disse a pequena com grande sinceridade. - O Ki t tambm sabe que verdade. Kit, que enquanto devorava o seu po com carne, a cada dentada parecia engolir doi s teros da lmina da sua faca com a mestria de um saltimbanco, ao ver-se chamado para a conversa parou de comer e exclamou: - Ningum to tolo que diga o contrrio - em seguida engoliu um grande bocado de uma d entada s, ficando incapaz de dizer mais o que quer que fosse. - Ela agora pobre - disse o velho afagando o rosto da pequena. - Mas volto a diz er que h-de vir um dia em que ela h-de ser rica. Esse tempo demora, mas vai chegar . Chegou para outros que no fazem mais nada seno gastar e desbaratar, quando chegar p ara mim? - Eu sinto-me feliz assim, av - disse a criana. - Ora, ora - respondeu o velho. - Tu no sabes. Como que podias saber? - em seguid a murmurou entre dentes. Esse tempo vai chegar, eu sei que vai, e se demorar, tanto melhor. - depois suspirou e de novo pareceu absorto nos seus pensamentos, com a criana nos joelhos. Por essa altura faltavam poucos minutos para a meia-noi te, levantei-me para sair, e isso pareceu cham-lo de novo a si. - Um momento, senhor - disse ele. - Vamos, Kit, quase meia-noite, e tu ainda aqu i ests. Vai para casa, vai para casa e v se amanh chegas a horas, que h trabalho para fazer. Boa noite! Pronto, Nell, diz-lhe boa noite e deixa-o ir embora! - Boa noite, Kit - disse a criana com os olhos a brilhar de alegria e afecto. - Boa noite, menina Nell - respondeu o rapaz. - E agradece a este senhor - interps o velho. - Se no fosse ele, esta noite eu pod ia bem ter perdido a minha menina. - No, no, patro - disse Kit. - Isso no acontecia. - O que que tu queres dizer com isso? - exclamou o velho. - Eu havia de a encontrar, patro - disse Kit. - Havia de a encontrar. Aposto que a encontrava, se ela estivesse ao de cima da terra, encontrava, e num instante, patro. Ha, ha, ha! Abrindo de novo a boca, e fechando os olhos, rindo com toda a sua energia, Kit f oi recuando at porta e foi saindo, ainda a rir. Saiu, desapareceu rapidamente, e enquanto a pequena levantava a mesa, o velho di sse-me: - Creio que ainda no lhe agradeci o bastante, senhor, por aquilo que fez esta noi te, mas quero agradecer-lhe humildemente e de todo o corao, e ela tambm, e os

agradecimentos dela valem mais do que os meus. Eu no queria que o senhor se fosse embora a pensar que no lhe estou agradecido, ou que no sei tomar conta dela, porque no verdade. - Com certeza - disse eu, acrescentando em seguida.

- Mas... posso fazer-lhe uma pergunta? - Sim, senhor - respondeu o velho. - E o que ? - Esta criana delicada... - disse eu. - Cheia de beleza e inteligncia, no tem mais ningum que tome conta dela para alm de si? No tem outra companhia, outra pessoa que a aconselhe? - No - respondeu ele, olhando-me com ansiedade. - No tem, nem quereria ter. - Mas o senhor no tem medo... - disse eu. - De no ser capaz de lidar com a fragili dade dela? Tenho a certeza que s quer o bem dela, mas tem a certeza de ser capaz de executar uma tarefa como esta? Eu sou um velho, como o senhor, e o que me faz falar a minha preocupao de velho por tudo aquilo que jovem e promissor. No lhe parece natural que o que esta noite fiquei a conhecer de si e desta pequena criatura me tenha interessado, mas tambm deixado apreensivo? Aps um momento de silncio, o velho disse: - No tenho o direito de me sentir ofendid o com o que o senhor acaba de me dizer. Em muitos aspectos verdade que a criana sou eu e ela a pessoa adulta, isso j o senhor percebeu. Mas acordado ou a d ormir, de noite ou de dia, doente ou de boa sade que eu esteja, ela o nico objecto dos meus cuidados, e se o senhor soubesse como cuido dela, havia de olha r para mim com outros olhos, havia, sim. Ah, a vida triste para os velhos... mui to, muito triste, mas h uma grande recompensa no fim, e eu no me esqueo disso! Vendo que estava excitado e impaciente, virei-me para vestir o sobretudo que des pira ao entrar na sala. Fiquei surpreendido por ver a criana, pacientemente, espe ra, com um casaco no brao e um chapu e uma bengala na mo. - Essas coisas no so minhas, minha querida - disse eu. - Pois no, so do av - respondeu calmamente a criana. - Mas ele no vai sair agora de noite. - Vai, sim - disse a criana com um sorriso. - E tu, minha linda? - Eu? Fico aqui, claro. Fico sempre. Olhei com surpresa para o velho, mas este estava, ou fingia estar, ocupado a com por o seu fato. Em seguida voltei a olhar para a figura frgil da pequena. Sozinha ! Naquele stio to triste, toda a longa e horrvel noite. Ela no parecia notar a minha surpresa. Ajudava alegremente o velho a vestir o cas aco, e quando acabou pegou numa vela para nos alumiar. Reparando que no a seguamos

como ela esperava, olhou para trs, sorriu e esperou por ns. O velho mostrava, pela expresso do rosto, que compreendia perfeitamente a causa da minha hesitao, mas limitou-se a ficar silencioso e a fazer-me um aceno com a cabea para que o pr ecedesse. Eu no podia fazer outra coisa. Quando chegmos junto da porta, a criana levava a vela, virou-se para dizer boa noi te e levantou o rosto para me beijar. Em seguida correu para o velho que a acolh eu nos seus braos e lhe deu a bno. - Dorme bem, Nell - disse ele em voz baixa. - Que os anjos guardem o teu leito. E no te esqueas de f azer as tuas oraes, meu amor. - No, no esqueo - respondeu a criana com fervor. - Fazem-me sentir to feliz! - Muito bem. Eu sei. Assim que deve ser - disse o velho. - Deus te abenoe cem vezes. De manh cedo estou de volta. - No vai tocar duas vezes - disse a criana. - Acordo com a campainha, mesmo quando estou a meio de um sonho. Com isto se separaram. A criana abriu a porta, protegida agora por uma gelosia qu e eu ouvira o rapaz colocar antes de sair e, despedindo-se outra vez de uma form a doce e terna que mil vezes recordei, segurou a porta at ns passarmos. O velho espe rou um momento que Nell fechasse a porta devagarinho e se trancasse por dentro, e quando se assegurou de que isto estava feito afastou-se com o seu passo lento. Chegou esquina, parou, olhando-me preocupado, disse

que os nossos caminhos eram opostos, e que tinha de ir andando. Eu gostaria de t er falado com ele ainda um pouco, mas ele, com uma vivacidade inesperada numa pe ssoa com a aparncia dele, afastou-se rapidamente. Ainda o vi olhar para trs por duas ou trs vezes, como para verificar se eu ainda o observava, ou talvez para se certif icar de que o no seguia distncia. A escurido da noite favoreceu o seu desaparecimento, e depressa o perdi de vista. Deixei-me ficar no stio onde ele me havia deixado, sem vontade de me ir embora, e sem saber por que motivo me deixava ficar. Olhei pensativo para a rua de onde viramos, e da a nada dirigi os meus passos para l. Passei e voltei a passar defront e da casa, parei, escutei porta. Tudo estava escuro e silencioso como um tmulo. No entanto, ainda me demorei por ali. No conseguia afastar-me, pensando em todo o mal que podia acontecer criana... um fogo, um roubo ou at a morte, e sentindo que algum mal poderia acontecer-lhe se eu me afastasse dali. O rudo de uma porta ou de uma janela que se fechava trouxe-me de novo diante da loja de curiosidades . Atravessei a rua e olhei para a casa a fim de verificar se o barulho no teria vin do dali. No. Tudo estava to negro, frio e morto como dantes. Havia, pouca gente por ali. A rua, triste e sombria, era praticamente toda minha

. Alguns retardatrios dos teatros passavam apressados, e de vez em quando eu afas tava-me de um bbado barulhento que seguia para casa a cambalear, mas estas interrupes eram raras, e depressa cessaram completamente. Os relgios bateram uma hora. Eu continuava a passear para trs e para a frente, de cada vez prometendo a mim prprio que essa seria a ltima vez, e quebrando de cada vez a minha palavra, dando a mim prprio uma nova desculpa de cada vez que o fazia. Quanto mais pensava no que o velho tinha dito, no seu aspecto e nos seus modos, menos compreendia aquilo que tinha acabado de ver e ouvir. Tinha um forte presse ntimento de que ele se ausentava para ir fazer qualquer coisa de mal. S soubera do facto d evido inocncia da criana, e embora o velho ali estivesse naquele momento, e assistisse minha surpresa, que no disfarcei, tinha mantido um estranho mistrio sob re o assunto, e no tinha dado uma nica palavra de explicao. Estas reflexes tornavam mais clara para mim a lembrana do seu rosto crispado, dos seus modos agi tados, do seu olhar inquieto e preocupado. O seu afecto pela garota no era prova de que no pudesse cometer crimes da pior espcie. At essa afeio era uma espantosa cont radio, pois de outro modo como ser capaz de a abandonar assim? Embora estivesse tentado a pensar mal dele, eu nunca duvidara da verdade do seu amor po r ela, lembrando-me de tudo o que se passara, e do tom de voz com que pronunciara o seu nome. "Eu fico aqui, claro." Tinha dito a pequena em resposta minha pergunta. "Fico se mpre." O que poderia faz-lo sair de casa de noite, todas as noites? Tentei record ar-me de todas as histrias que alguma vez tinha ouvido sobre a noite e sobre secretos c rimes cometidos em grandes cidades, cujos autores durante longos anos haviam con seguido fugir justia. Algumas dessas histrias eram verdadeiramente extraordinrias e, no ent anto, eu no conseguia adaptar nenhuma delas a este mistrio que eu teimava em resolver e se adensava cada vez mais. Ocupado com estes pensamentos, e muitos outros, dirigidos todos eles na mesma di reco, continuei a deambular por aquela rua ao longo de mais duas horas. Depois comeou a chover fortemente e ento, ainda vivamente interessado em tudo aquilo, mas vencido pela fatiga, tomei a carruagem mais prxima e fui para casa. O lume ardia alegremente na lareira, a luz do candeeiro brilhava, o meu relgio deu-me as boas-vindas com o seu rudo familiar. Tudo estava calmo, quente e acolhedor, num feliz contraste com a tristeza e a escurido do local de onde eu viera. Sentei-me na minha poltrona, enterrei-me nas suas gran-

ds almofadas, imaginei a criana deitada na sua cama, sozinha, sem ningum que a prot egesse, que cuidasse dela, excepo dos anjos, e no entanto imersa num sono profundo. Uma criaturinha to jovem, to pura, to delicada como uma fada, a passar a interminvel noite num lugar to desagradvel! No conseguia afast-la dos meus pensamentos. Estamos muito habituados a permitir que objectos exteriores determinem em ns impr esses que deveriam ser antes o resultado das nossas reflexes, impresses que sem essas ajudas exteriores dificilmente experimentaramos. Por isso, no estou cert o se teria ficado to impressionado com toda a cena se no fosse a quantidade de objectos extraordinrios que vira na loja de antiguidades. Estes objectos, cruz

ando-se na minha mente juntamente com a criana, rodeando-a, traziam perante mim, de forma palpvel, a sua situao. Via sem grande esforo a sua imagem cercada de object os estranhos sua natureza, estranhos ao seu sexo e sua idade. Se a minha imaginao no tivesse recebido estes estmulos, e eu tivesse podido apenas imagin-la num quarto de cama vulgar, sem nada de estranho ou extravagante no seu aspecto, provvel que tivesse ficado menos impressionado com a sua estranha e solitria situao. Assim, a pequena parecia existir numa espcie de alegoria e, rodeada por estes objectos, atraa to fortemente a minha ateno que, como j referi, no conseguia, po r mais que quisesse, afast-la do meu pensamento. Seria um tema interessante de meditao - disse eu depois de atravessar a passos rpid os o quarto de um lado para o outro. - Imagin-la na sua vida futura, percorrendo o seu caminho solitrio por entre uma multido de boais e grotescos companheiros. A ni ca coisa pura, fresca, jovem, no meio da turba. Seria interessante de observar. Aqui refreei-me, pois estes pensamentos estavam a levar-me a passos muito rpidos, e eu j antevia na minha frente um domnio onde no me interessava penetrar. Concorde i comigo prprio que tudo isto eram pensamentos inteis, e 20 decidi ento ir para a cama procurar o esquecimento. Mas ao longo de toda aquela noite, estivesse eu acordado ou a dormir, os mesmos pensamentos regressaram e as mesmas imagens voltaram a tomar posse da minha ment e. Continuava a ver na minha frente as velhas salas escuras e poeirentas, as armadu ras esguias com o seu ar de fantasmas silenciosos, os rostos retorcidos, a rir n a madeira e na pedra, o p, a ferrugem, o caruncho, e no meio de todos estes trastes , destes pedaos de lixo e destas feias velharias, a linda criana dormindo suavemen te, sorrindo de dentro dos seus sonhos leves e luminosos. CAPTULO II Aps uma luta, que durou quase uma semana, contra o sentimento que me impelia a vi sitar de novo o lugar que havia deixado nas condies que j descrevi, cedi finalmente . Tendo decidido apresentar-me desta vez luz do dia, encaminhei uma tarde os meus passos nessa direco. Passei defronte da casa, caminhei um pouco pela rua, hesitando, como natural num homem que sabe que a sua visita no esperada, e talvez no seja muito desejada. Entretanto, como a porta da loja estava fechada, e no era provvel que, continuando a passear para trs e para diante, as pessoas l dentro me reconhecessem, rapidamen te venci a minha hesitao e me encontrei dentro da loja de antiguidades. O velho estava nos fundos da loja, com outra pessoa, e pareciam ter altercado, p orque no momento em que entrei, as suas vozes, que se ouviam muito alto, se cala ram bruscamente, o velho precipitou-se para mim e disse, trmulo, que estava muito con tente por eu ter vindo. - O senhor apareceu no meio de um momento crtico

- disse ele apontando para o homem em cuja companhia eu o tinha encontrado. - Es te rapaz um dia destes ainda capaz de me assassinar. H muito tempo j que o teria feito, se se atrevesse. - Ora, e voc, se pudesse, havia de me rogar uma praga disse o rapaz depois de me deitar um olhar insolente e carrancudo. - Toda a gente sabe. - Quase que era capaz de o fazer, sim - respondeu o velho sem se virar para ele. - Se com pragas, ou rezas, ou palavras, me conseguisse ver livre de ti, no hesit ava. Via-me livre de ti. Seria um alvio para mim, se tu morresses. - Eu sei - replicou o outro. - No foi o que eu disse? Mas no vo ser as suas pragas, nem as suas rezas, nem as suas palavras, que me vo matar, e por isso eu estou vivo, e tenciono continuar vivo. - E a me dele morreu! - exclamou o velho, juntando as mos emocionado e erguendo os olhos. - E isto, a justia divina! O outro deixou-se ficar com um p sobre uma cadeira, com um sorriso de desprezo. E ra um jovem de vinte e um anos, ou por a, de boa figura e certamente bem parecido , embora o seu rosto estivesse longe de ser simptico, e os seus modos, e at a sua ro upa, tivessem um ar atrevido e insolente que tornava a sua presena desagradvel. - Com ou sem justia - disse o rapaz. - Estou aqui e aqui hei-de ficar enquanto me apetecer, a no ser que resolva chamar por ajuda para me porem fora, e eu sei que no far isso. J lhe disse que quero ver a minha irm. - A tua irm! - disse o velho com amargura. - Ah! Voc no nos pode mudar o parentesco - replicou o outro. - Se pudesse, h muito que o teria feito. Quero ver a minha irm, que voc mantm aqui fechada, envenenando-l he o esprito com os seus segredos cheios de manha, e fingindo ter-lhe um afecto que s um pretexto para a matar com trabalho e juntar uns centavos mais ao dinheiro que tem, e que mal consegue contar. Quero v-la, e hei-de v-la. - Ora vejam o moralista a falar de pensamentos envenenados! Ora vejam o rapaz ge neroso, a desprezar os centavos economizados! - exclamou o velho, virando-se ago ra para mim. - Ele um malvado, senhor, que perdeu todos os direitos no s em relao queles que tm a infelicidade de pertencer ao seu sangue, mas em relao a toda a sociedade, que bem conhece os seus crimes. E tambm um mentiroso - acrescentou, aproximando-se de mim e baixando o tom de voz. - Que sabe como el a me querida e at nesse ponto me tenta ferir, na presena de um estranho. - Eu no quero saber de estranhos para nada, av - disse o rapaz pegando-lhe na pala vra. - Nem eles querem saber de mim, espero eu. O melhor que tm a fazer meterem-s e no que lhes diz respeito e deixarem-me a mim em paz. Est um amigo meu espera l for a, e como parece que ainda me vou demorar um bocado, vou cham-lo, se no se importa. Dizendo isto, foi at porta, olhou para a rua, acenou repetidamente para uma pesso a invisvel para ns, pessoa que, a avaliar pelo ar impaciente com que o rapaz

acompanhava os seus gestos, no era fcil de persuadir a entrar. Depois, do outro la do da rua, fingindo passar por ali por acaso, surgiu uma figura notvel pela sua elegncia enxovalhada que, aps uma quantidade de caretas e de sinais de recusa, l atravessou a rua e entrou na loja. - Pronto. Este o Dick Swiveller - disse o rapaz empurrando-o para dentro. - Sent a-te, Swiveller. - Mas o velho no se importa? - disse Mr. Swiveller em voz baixa. - Senta-te - repetiu-lhe o amigo. Mr. Swiveller obedeceu, e olhando em volta com um sorriso cmplice, observou que a semana anterior tinha sido uma semana boa para os patos, e que esta tinha sido uma boa semana para a poeira. Comentou ainda que, enquanto estivera espera, esqu ina da rua, tinha estado a reparar num porco com uma palha na boca a sair da tabacaria, de onde conclua que se aproximava outra boa semana para os patos, e qu e a seguir

certamente choveria. Depois aproveitou para pedir desculpa por qualquer neglignci a que fosse perceptvel na sua roupa, explicando que na noite anterior o Sol lhe tinha dado nos olhos com muita fora, o que era uma forma delicada de explicar a q uem o ouvia que estivera completamente embriagado. - E ento? - disse Mr. Swiveller ama da felicidade for ardendo na nenhuma pena. Que diferena faz, elho, e o momento presente for o com um suspiro. - Que importncia tem isso, se a ch vela da alegria, e a asa da amizade no perder se o esprito se mantiver alegre graas ao vinho verm menos feliz da nossa vida?

- Aqui no precisas de fazer o papel de presidente! - disse-lhe o amigo um pouco agastado. - Fred! - exclamou Mr. Swiveller batendo no nariz. - A bom entendedor, meia pala vra basta. Podemos ser bondosos e felizes sem riquezas, Fred. Sei bem como devo agir. Compreendo bem as coisas. S uma coisa, Fred: O velhote est de bom humor? - No te importes com isso - respondeu-lhe o amigo. - Tens razo, tens toda a razo - disse Mr. Swiveller. Cuidado com as palavras, cuid ado com os actos. Dito isto, piscou um olho, como que disposto a guardar um gran de segredo, cruzou os braos, recostou-se na cadeira, fez um ar de profunda gravidade e olhou para o tecto. Talvez no se andasse muito longe da verdade se se suspeitasse que Mr. Swiveller no estava ainda completamente recuperado do sol que apanhara, e se no fosse o seu discurso a levantar esta suspeita, o seu cabelo escorrido, os seus olhos emb aciados e a sua tez doentia teriam testemunhado fortemente contra ele. A sua rou pa, como ele prprio comentara, no primava pelo bom aspecto. Estava num tal estado de d esalinho que certamente se deitara vestido. Consistia de um casaco castanho com muitos botes de lato frente e apenas um atrs, uma gravata de quadrados berrantes, u m colete de fazenda escocesa, unias calas brancas muito amarrotadas e um chapu amachucado com a parte de trs

virada para a frente, para disfarar um buraco na aba. O casaco era enfeitado fren te com uma grande algibeira, da qual pendia o canto menos sujo de um leno muito grande e muito enxovalhado. Os punhos sujos da sua camisa estavam puxados e oste nsivamente revirados por cima das mangas do casaco. No trazia luvas. Trazia uma bengala amarela com um casto de osso que era uma mo a segurar uma bola preta com u m anel fingido no dedo pequenino. Com este magnfico aspecto, ao qual podemos acrescentar um forte odor a tabaco e qualquer coisa de gorduroso na aparncia gera l, Mr. Swiveller deitou-se para trs na cadeira e, com os olhos fixos no tecto, afinava a voz, oferecia aos presentes algumas notas de uma cano melanclica, e de re pente parava e voltava a ficar silencioso. O velho sentou-se numa cadeira, cruzou os braos, olhando para o neto e para o seu estranho amigo, como se no tivesse maneira de se impor, nem tivesse outro remdio seno deix-los fazer o que quisessem. O rapaz encostou-se a uma mesa, perto do amigo, parecendo indiferente a tudo o q ue se passara. Quanto a mim, sentindo alguma dificuldade em interferir, apesar d e o velho ter apelado para a minha ajuda, atravs de olhares e de palavras, fingia, o melhor que podia estar ocupado a observar os objectos minha volta, e no estar a prestar ateno s pessoas que tinha na minha frente. O silncio no foi muito duradouro, porque Mr. Swiveller, depois de melodiosamente n os garantir que o seu corao estava nas montanhas e que s precisava do seu cavalo rabe para realizar grandes feitos de cavalaria, desviou os olhos do tecto e recomeou a conversa. - Fred! - disse Mr. Swiveller bruscamente como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer, e falando no mesmo tom de sussurro de h momentos atrs. - O velhote est bem disposto? - O que que isso interessa? - respondeu o amigo irritado. - Nada, mas est? - Sim, claro, mas eu quero l saber que ele esteja ou no. Parecendo animado por est a resposta e interessado em

estender a conversa a temas mais gerais, Mr. Swiveller fazia agora tudo para cha mar a nossa ateno. Comeou por observar que a gua gaseificada, embora em abstracto pudesse ser conside rada uma boa coisa, fazia muito frio no estmago, a menos que fosse temperada com um pouco de gim ou de usque, dos quais ele preferia o segundo, excepto no que dizia respeito ao preo. Ningum punha em causa estas opinies, e assim ele prossegui u observando que o cabelo humano era um bom retentor do cheiro do fumo de tabaco, e que os rapazes de Westminster e Eton, que consumiam grandes quantidades de mas para que os seus companheiros no notassem o cheiro, eram facilmente descobertos p orque este lhes ficava entranhado no cabelo. Assim, ele conclua que se a Royal Society se debruasse sobre o fenmeno, e tentasse descobrir atravs da cincia um meio de impedir que fossem denunciados, poderiam vir a ser considerados benfeitores da humanidade. Uma vez que, semelhana das outras, tambm estas opinies eram incontro versas, continuou, explicando agora que o rum da Jamaica, embora fosse inquestio navelmente uma bebida agradvel e com urna grande riqueza de paladar, tinha a desvantagem de o seu gosto vir constantemente boca no dia seguinte. Como esta teoria tambm

no foi contrariada por ningum, ele pareceu ganhar mais cofiana em si mesmo e tornou -se ainda mais bem disposto e comunicativo. - um problema dos diabos, cavalheiros... - disse Mr. Swiveller. - Quando numa fa mlia as pessoas no se do bem, ou no esto de acordo. Se a asa da amizade no deve nunca perder uma nica pena, a asa das relaes familiares no deve nunca ser corta da, mas deve manter-se sempre estendida e serena. Por que motivo um av e um neto ho-de estar to zangados um com o outro, quando podiam viver em paz e concrd ia? Porque no ho-de dar as mos e esquecer o passado? - Cala-te - disse-lhe o amigo. - O senhor... - respondeu Mr. Swiveller. - No interrompa a presidncia. Cavalheiros , que temos ns na nossa frente? Temos aqui um bom e velho av, digo-o com todo o respeito, e temos um neto um tant o estouvado. O bom av diz para o seu neto estouvado: "Criei-te e eduquei-te, Fred . Dei-te uma enxada para a vida. Fizeste algumas asneiras, como os jovens sempre f azem, e no vais ter outra oportunidade, nem sombra disso.- O neto estouvado respo nde ento: "O av to rico... nunca teve grandes despesas por minha causa, anda a poupar m ontes de dinheiro para a minha irm que vive consigo uma vida de segredo e mistrio, uma vida sem divertimentos. Porque no h-de dar alguma coisa tambm ao seu neto mais velho?" A isto, o bom av responde no s que se recusa a dar seja o que for com a alegria sempre to simptica e to agradvel num cavalheiro da sua idade , como ainda por cima se zanga, chama-lhe nomes e ralha com ele de cada vez que se encontram. Ento, eu fao uma pergunta muito simples: No uma pena que este estado de coisas continue? No seria muito melhor se o cavalheiro de idade largasse uma boa quantia, resolvendo as coisas de uma vez por todas? Aps pronunciar este discurso, fazendo com as mos muitos gestos e muitos floreados, Mr. Swiveller tapou a boca bruscamente com o casto da sua bengala, como para se impedir de dizer uma palavra mais que fosse, estragando assim o efeito do seu discurso. - Valha-me Deus, porque me persegues e me aborreces? - disse o velho virando-se para o neto. - Porque trazes para aqui os teus amigos devassos? Quantas vezes tenho de te dizer que sou pobre e levo uma vida de priv aes? - E quantas vezes tenho eu de lhe dizer... - respondeu o outro, olhando para ele com frieza. - Que sei muito bem que isso no verdade? - Escolheste o teu prprio caminho - disse o velho. - Segue-o e deixa-nos em paz, a Nell e a mim, com a nossa vida de penas e de tra balhos. - Em breve Nell ser uma mulher - retorquiu o outro. - Educada por si, em breve esquecer o irmo, se este no se for mostrando uma vez por outra.

- Tem cuidado... - disse o velho com os olhos a brilhar muito.- Que ela no se esq

uea de ti quando tu mais gostarias que se lembrasse. Tem cuidado que ela no se esquea de ti quando passar na sua prpria carruagem e tu fores descalo pelas ruas. - Quer dizer, quando ela tiver o seu dinheiro? - respondeu o outro. - Isso que f alar como um pobre! - E, no entanto... - disse o velho baixando o tom de voz e falando como algum que est pensando em voz alta. - Como ns somos pobres, e a vida que levamos! Est em causa a felicidade de uma cri ana, pura e inocente, e no entanto a nossa vida muito dura. Temos de ter esperana e pacincia, esperana e pacincia! Estas palavras foram pronunciadas num tom demasiado baixo para que o jovem as pu desse ouvir. Mr. Swiveller parecia pensar que elas eram o resultado de uma luta mental, fruto do poderoso efeito do seu discurso, pois tocou o amigo com a ponta da sua bengala e segredou-lhe que entendia que tinha utilizado um argumento indiscutvel, e que esperava uma comisso sobre os lucros. Tendo em seguida verificado que se en ganara, pareceu ficar sonolento e descontente, e mais de uma vez sugeriu que dev eriam partir imediatamente, quando a porta se abriu e a criana apareceu. CAPTULO III A criana era seguida de perto por um homem de idade, de expresso muito dura e aspe cto desagradvel, to baixo que parecia um ano, embora a sua cabea e o seu rosto fossem do tamanho das de um gigante. Os seus olhos negros eram inquietos, matreiros e velhacos. A sua boca e queixo eram cerdosos, devido a uma barba spera e irregular, e a sua pele era daquelas que nunca parecem limpas nem saudveis. Mas o que mais tornava a sua expresso grotesca era um sorriso horrendo, que parecia s er apenas o resultado de um hbito adquirido, sem nenhuma relao com qualquer sentimento bondoso ou complacente, e mostrava permanentemente os poucos dentes e negrecidos que tinha espalhados pela boca, e lhe davam um ar de co ofegante. O se u vesturio consistia de um grande chapu alto, um fato escuro pudo, um grande par de s apatos e um leno de pescoo branco, enxovalhado, e to torcido que deixava mostra a maior parte do seu pescoo ressequido. O seu pouco cabelo era grisalho, c ortado curto e a direito nas fontes, e caa-lhe em madeixas desgrenhadas por cima das orelhas. As suas mos, speras e grosseiras, estavam muito sujas. As unhas eram tortas, compridas e amarelas Tive bastante tempo para reparar nestes pormen ores, porque, por um lado, eram to bvios que no requeriam um exame de muito perto, e para alm disso decorreram alguns momentos at que o silncio fosse quebrado. A criana avanou timidamente para o irmo e deu-lhe a mo. O ano, se assim lhe podemos cha mar, olhou atentamente para todos os presentes, e o antiqurio, que claramente no esperava a visita desta personagem desagradvel, pare cia desconcertado e embaraado. - Ah! - disse o ano que, com a mo em pala sobre os olhos, observara atentamente o jovem. - Este deve ser o seu neto, vizinho. - Diga antes que no devia ser - respondeu o velho. - Mas .

- E aquele? - perguntou o ano, apontando para Dick Swiveller. - um amigo dele, to desejado nesta casa como ele - disse o velho. - E aquele? - perguntou o ano voltando-se e apontando para mim. - um cavalheiro que noutro dia noite teve a bondade de trazer Nell para casa qua ndo vinha de sua casa e se perdeu. O homenzinho voltou-se para a criana, como se fosse

repreend-la ou manifestar a sua surpresa, mas, como ela estava a falar com o jove m, calou-se e inclinou a cabea para escutar. - Ento, Nelly - disse o jovem em voz alta. - Eles ensinam-te a odiar-me, no ? - No, no, que horror, oh, no! - exclamou a criana. - A amar-me, talvez? - continuou o irmo com um sorriso maldoso. - Nem uma coisa nem outra - respondeu ela. - Nunca me falam de ti. Acredita que no. - No me custa nada acreditar - disse ele lanando ao av um olhar amargo. - No me cust a nada acreditar, Nell. Ah, eu sei que isso verdade! - Mas eu gosto muito de ti, Fred. - disse a garota. - Claro! - Gosto, sim, e hei-de gostar sempre - repetiu a criana com grande emoo. - Mas... s e parasses de afligir o av e de o fazer infeliz, gostaria mais ainda. - Pois sim! - disse o rapaz debruando-se sem grande interesse sobre a criana, beij ando-a e afastando-a de si. - Bom, agora j te podes ir embora, j recitaste a tua lio. No precisas de ficar para a a choramingar. Ficamos amigos, est bem? Deixou-se ficar silencioso, seguindo-a com os olhos at que ela entrou no seu pequ eno quarto e fechou a porta. Ento, voltando-se para o ano, disse abruptamente. - Oia l, oh cavalheiro... - Est a falar comigo? - respondeu o ano. - Chamo-me Quilp. um nome curto, fcil de l embrar. Daniel Quilp. - Ento oia l, Mr. Quilp - prosseguiu o outro. - O senhor parece ter alguma influncia sobre o meu av. - Alguma - respondeu ele enfaticamente. - E est dentro de alguns dos seus mistrios e segredos. - Alguns - respondeu Quilp no mesmo tom seco.

- Ento deixe-me, atravs de si, dizer ao meu av que tenciono entrar e sair desta cas a as vezes todas que me apetecer, enquanto Nell aqui estiver. E que se ele se quiser ver livre de mim, ter p rimeiro de se ver livre dela. Que mal fiz eu para fazerem de mim um papo, e para causar medo e horror como se trouxesse comigo a peste? Ele vai-lhe dizer que eu sou incapaz de um afecto. Que me interesso tanto por Nell como me interesso por ele prprio. Deixe-o falar. Deve ser por capricho que ando de c para l, s para lhe lembra r que existo. Hei-de v-la todas as vezes que me aprouver. a que quero chegar. Vim hoje aqui para manter aquilo que disse e hei-de vir cinquenta vezes com o mesmo objectivo e sempre com o mesmo sucesso. Disse que me deixaria ficar at conseguir o que pretendia. Consegui-o e por isso dou a minha visita por terminad a. - Espera! - gritou Mr. Swiveller quando o seu companheiro se dirigia para a port a. - Senhor! - Um seu criado, senhor - disse Quilp a quem a palavra tinha sido dirigida. - Antes de deixar esta cena alegre e festiva, estes sales de luz estonteante, sen hor... - disse Mr. Swiveller. - Gostaria, com sua licena, de fazer uma breve obse rvao. - Eu vim aqui hoje convencido de que o velhote estava de bom humor. - Prossiga, senhor - disse Daniel Quilp, uma vez que o orador tinha feito uma pe quena pausa. - Inspirado por esta ideia, e pelos sentimentos que ela me inspirou, e pensando, como amigo de ambos, que as ms palavras, a falta de educao e a falta de delicadeza no so as coisas mais favorveis para as almas ou para promover a harmonia social ent re aqueles que se desentenderam, resolvi sugerir algo que me parece ser a melhor soluo a ser adoptada neste caso. Posso segredar-lhe uma palavrinha, senhor? Sem esperar que lhe dessem licena, inclinou-se sobre o ano, apoiou-se no seu ombro e disse-lhe numa voz perfeitamente audvel a todos os presentes. . - A palavra senha para o velho "sacar". - O qu?

- "Sacar", cavalheiro! "Sacar" - respondeu Mr. Swiveller dando uma palmada na al gibeira. O senhor est a compreender? O ano acenou afirmativamente com a cabea. Mr. Swiveller recuou e acenou tambm com a cabea, a seguir recuou um pouco mais para trs e voltou a acenar, e assim por diante. Assim, acabou por chegar porta. Aqui, tossiu alto por forma a chamar a ateno do ano e conseguir uma oportunidade de exprimir por mmica a confidncia mais ntima, o segredo mais inviolvel. Quando acabou de representar a sua pantomima , necessria para expressar estas ideias, precipitou-se no encalo do amigo e

desapareceu. - Hum! - disse o ano com um olhar azedo e um encolher de ombros. - E so estes os c aros parentes! Graas a Deus, no reconheo nenhuns! E voc bem podia fazer o mesmo - acrescentou ele voltando-se para o velho. - Se no fosse fraco e desmiolado como um canio. - Que quer voc que eu faa? - replicou ele com uma espcie de impotncia desesperada. fcil falar e troar, mas o que que eu hei-de fazer? - Quer saber o que que eu faria, se estivesse no seu lugar? - perguntou o ano. - Qualquer coisa violenta, com certeza, - L nisso tem razo - respondeu o homenzinho, parecendo muito satisfeito com aquilo que evidentemente considerava um cumprimento. Em seguida fez um sorriso diablico , e esfregou as suas mos sujas. - Pergunte a Mrs. Quilp, bonita Mrs. Quilp, obedien te, tmida e doce Mrs. Quilp. Mas agora me lembro, deixei-a sozinha e ela fica ansiosa, no tem um momento de sossego enquanto eu no chego. Eu sei que ela fica ne sse estado sempre que eu saio, embora no se atreva a dizer-mo, a menos que eu insista, ou lhe diga que pode falar livremente e que no me zangarei com ela. Oh, a minha mulher est bem ensinada! A criatura tinha um aspecto horrvel, com a sua cabea enorme e o seu corpo to pequen o, enquanto ia esfregando as mos, devagar, com repetidos gestos circulares, com qualquer coisa de fantstico at na sua maneira de levar a cabo este seu gesto insignifi cante e, baixando as suas fartas sobrancelhas e levantando o queixo para o ar, olhou em volta com um ar de furtiva satisfao que at um demnio poderia ter copiado pa ra si prprio. - Tome - disse ele levando a mo ao peito e aproximando-se do velho enquanto falav a. - Trouxe-o eu, com medo de algum acidente. ouro, e achei que era grande e pesado demais para que fosse transportado por Nell, mas bom que ela se v habituan do a estes pesos, pois quando o vizinho morrer ho-de passar para ela. - Deus permita que sim! Espero que assim seja - disse o velho com uma espcie de g emido. - Espere! - ecoou o ano aproximando-se do seu ouvido. - Vizinho, eu gostava de saber em que que emprega as suas reservas. Mas voc um ho mem cauteloso e guarda bem o seu segredo. - O meu segredo! - disse o outro com um olhar assustado. - Sim, tem razo, est... e st bem guardado, muito bem guardado. No disse mais nada mas pegou no dinheiro, virou-se com passo vagaroso e incerto e levou a mo cabea como um homem cansado e deprimido. O ano observava-o atentamente enquanto ele atravessava a pequena sala e guardava o ouro num pequeno cofre de f erro por cima da chamin, e depois de reflectir um momento preparou-se para sair, observando que se no se despachasse, quando chegasse j Mrs. Quilp certamente teria tido um ataque. - Por isso, vizinho... - acrescentou ele. - Vou regressar a casa; deixo saudades

Nell e espero que ela no se volte a perder, embora isso me tenha proporcionado uma honra inesperada. - Com isto fez-me uma vnia com ar velhaco e, lanando em volt a um olhar arguto que pareceu observar tudo em redor, mesmo os objectos mais pequenos e vulgares, foi-se embora. Por vrias vezes tentei sair tambm, mas o velho no me

deixava, e pedia-me que ficasse. Quando ficmos a ss voltou a insistir para que fic asse e, com muitos agradecimentos, aludia noite em que havamos estado juntos, e assim aceitei o seu convite, e sentei-me fingindo examinar algumas miniaturas curiosas e medalhas antigas que ele colocou minha frente. No teve grande dificuld ade em convencer-me a ficar, pois se da primeira vez a minha curiosidade havia ficad o espicaada, no o estava menos agora. Da a pouco Nell juntou-se a ns, trouxe para a mesa a sua costura e sentou-se ao p d o velho. Era agradvel observar as flores frescas pela sala, o passarinho cuja pequena gaiola era sombreada por um ramo de verdura, o cheiro a frescura e a juv entude que parecia perpassar por aquela casa velha e triste e envolver a criana. Era curioso, embora menos agradvel, passar da beleza e da graa da rapariga para o vulto curvado, o rosto marcado pelos desgostos e o aspecto cansado do velho. medida que ele envelhecesse e fosse ficando mais fraco, que seria desta criaturi nha sem ningum? Talvez ele fosse um fraco protector, mas qual seria o destino da criana quando ele morresse? O velho pareceu ler os meus pensamentos. Deu a mo garota e disse em voz alta: - Vou tentar passar a estar mais alegre, Nell - disse ele. - A felicidade tem de te estar reservada. No para mim que a peo, mas para ti. So ta ntas as desgraas que ameaam cair sobre a tua cabea inocente, que tenho de acreditar que alcanars um dia a felicidade. Ela olhou alegremente o seu rosto, e no disse nada. - Quando penso - disse ele - em todos os anos, muitos, na tua vida ainda to curta , que viveste sozinha comigo... na tua existncia montona, sem conheceres companhei ros da tua idade nem os prazeres prprios da infncia... na solido em que cresceste at te tornares no que s e na vida triste que viveste, afastada da gente da tua idade, na companhia deste velho... penso por vezes que fui demasiado severo cont igo, Nell. - Av! - disse ela surpreendida - No foi de propsito, no - disse ele. - Sempre desejei ver chegar o dia em que te p udesses dar com as mais belas crianas, as mais alegres, ver-te ocupar o teu lugar entre os melhores, mas continuo espera, Nell, continuo ansiosamente espera , e penso: se tivesse de te deixar, como foi que te preparei para fazeres frente vida? O passarinho que ali vs est to bem preparado como tu para a enfrentar, abando nado sua merc. Escuta! O Kit est l fora, eu ouvi-o. Vai ter com ele, Nell, vai ter com ele. Ela levantou-se e correu para a porta, parou, voltou para trs, abraou o pescoo do v elho e s ento saiu, mais rapidamente ainda, para esconder as lgrimas.

- Deixe-me fazer-lhe uma confidncia, cavalheiro - murmurou o velho. - Fiquei inqu ieto com o que o senhor me disse na outra noite, e a nica coisa que lhe posso dizer que fiz sempre tudo pelo melhor. Agora tarde par a voltar atrs, mesmo que o pudesse fazer, e no posso. Para alm disso, ainda tenho esperana de atingir os meus objectivos. Tudo o que fao, fao-o para bem dela. Eu prprio suportei muita pobreza, e quereria poupar-lhe todos os sofrimentos que a pobreza arrasta consigo. Quereria poder poup-la a todas as misrias que causa ram uma morte prematura me dela, a minha querida filha. Quero deix-la, no com bens que possam facilmente ser gastos ou desbaratados, mas com algo que a co loque para sempre acima das necessidades. O senhor est a compreender? Ela no vai ter uma pequena quantia, vai ter uma fortuna. Chiu! No posso dizer mais nada sobr e o assunto, nem agora nem nunca. Ela a vem. A veemncia com que estas palavras foram lanadas ao meu ouvido, a mo trmula com que e le agarrava o meu ombro, os olhos fixos, espantados, com que me olhava, a louca inquietao, a agitao dos seus modos, tudo me enchia de espanto. Tudo o que eu t inha ouvido e visto, e muito do que ele prprio tinha dito, me levavam a supor que ele seria um homem muito rico. Eu no conseguia compreender o seu temper amento, a menos que se tratasse de um daque-

ls miserveis que, tendo tido o lucro como nico objectivo das suas vidas, e tendo co nseguido acumular grandes riquezas, so continuamente atormentados pelo terror da pobreza, torturados pelo medo da perda e da runa. Muitas das coisas que ele ti nha dito e que eu no tinha conseguido compreender eram perfeitamente conciliveis com os pensamentos que agora me vinham mente, e acabei por concluir, para l de qu alquer dvida, que o velhote s podia pertencer a esta raa infeliz. Esta opinio no era o resultado de uma reflexo precipitada, para a qual, alis, naquel e momento, nem sequer tinha tido tempo, porque a criana j estava de regresso, e preparava-se para dar a Kit a sua lio de caligrafia. Dava-lhe estas lies duas veze s por semana, e calhava justamente naquela tarde, com grande alegria para Kit e tambm para a sua professora. Seria demasiado longo relatar o tempo que levo u at que a modstia de Kit lhe permitiu sentar-se na sala, na frente de un cavalhei ro desconhecido. Quando finalmente se convenceu, arregaou as mangas da camisa, espet ou os cotovelos para fora e colou o rosto ao caderno, entortando os olhos. No vale a pena contar em detalhe a forma como Kit, a partir do momento em que se vi u com a pena na mo, comeou a nadar em borres e a salpicar-se de tinta at raiz dos cabelos, nem a forma como quando, por acaso, conseguia fazer uma letra direi ta, imediatamente a esborratava com o brao ao tentar fazer a letra seguinte, ou a forma como a cada erro se seguia uma alegre exclamao da criana, e uma gargalhada ainda maior e mais alta do prprio Kit, ou ainda a forma como havia da parte dela um desejo carinhoso de ensinar, e da parte dele um desejo ansioso de aprend er. Seria demasiado longo relatar esses detalhes, e basta por isso dizer que a l io foi dada, que a tarde passou e chegou a noite, que o velho de novo ficou agitado e impaciente, que de novo saiu de casa mesma hora da outra noite, e que de novo a criana ficou sozinha entre aquelas paredes to tristes. Agora que conduzi a histria at aqui pela minha mo, e j apresentei estas personagens aos leitores, afastar-me-ei da narrativa, que assim ficar beneficiada, deixando falar e agir por si prprias as personagens que dela fazem parte. CAPITULO IV

Mr. e Mrs. Quilp moravam em Tower Hill, e Mrs. Quilp, no seu refgio de Tower Hill , lamentava-se da ausncia do seu senhor que a deixara para ir tratar do assunto que j conhecemos. No se podia dizer que Mr. Quilp tivesse uma ocupao propriamente dita ou se dedicass e a um negcio especfico, porque as suas ocupaes eram numerosas e os seus negcios muito diversificados. Ele recebia as rendas de bairros inteiros, de ruas e ruelas imundas da zona ribeirinha, emprestava dinheiro a juros a marinheiros e oficiais menos graduados da marinha mercante, negociava com a pacotilha dos pilotos da rota da ndia, fumava os seus c harutos de contrabando debaixo do nariz dos funcionrios da Alfndega, e todos os dias se encontrava com homens de sobrecasaca e chapu lustroso para discutir os cmbios. Junto ao rio, para os lados de Surrey, havia um pequeno ptio sombrio e infestado de ratazanas denominado Cais de Quilp, onde havia um pequeno escritri o de madeira, tombado para um lado, enterrado no p, como se tivesse cado das nuvens e ali tivesse ficado, mergulhado no cho. Havia alguns pedaos de ncoras ferru gentas, vrias argolas grandes de ferro, montes de madeira podre e duas ou trs pilhas de folha de cobre velha, amolgada, rasgada, torcida. Ali possua Daniel Quilp o seu armazm de sucata de navios, mas a julgar pelas aparncias, ele seria um sucateiro de navios em pequena escala, ou ento desmantelava os seus navios em pedaos muito peque-

nos. O local tambm no parecia fervilhar de actividade, uma vez que o seu nico ocupa nte era um rapaz anfbio vestido de lona cuja ocupao variava entre estar sentado sobre uma pilha e atirar pedras para a lama quando a mar estava baixa, e na mar alta, de mos nos bolsos, contemplar apaticamente a actividade e a agitao do rio. A casa do ano, em Tower Hill, inclua, para alm dos aposentos necessrios para ele e p ara Mrs. Quilp, um pequeno quarto destinado me desta, que vivia com o casal e mantinha uma guerra permanente com Daniel, embora o receasse muitssimo. D e facto, esta criatura to feia conseguia, de um modo ou de outro, fosse pela sua fealdade, fosse pela sua ferocidade, fosse pela sua astcia natural, isso no nos im porta grandemente, que aqueles que com ele conviviam diariamente temessem a sua ira. Sobre mais ningum tinha no entanto o ascendente que tinha sobre a prpria Mrs. Quilp, uma mulher pequena e bonita, de falas suaves e olhos azuis, que, tendo-s e ligado ao ano pelos laos do matrimnio devido a um desses estranhos impulsos dos qua is no faltam exemplos, cumpria por esse seu momento de loucura uma terrvel penitncia em todos os dias da sua vida. J aqui dissemos que Mrs. Quilp se lamentava no seu retiro. Ela l estava, de facto, mas no estava sozinha, porque para alm da velha senhora sua me, que j mencionmos, estavam presentes tambm meia dzia de senhoras da vizinhana que, por uma estranha co incidncia (e devido tambm a uma pequena combinao entre elas), tinham aparecido umas atrs das outras por volta da hora do ch. Esta era uma estao propcia s conversas, e a sala era um lugar fresco e confortvel, com algumas plantas junto da janela aberta, que no deixavam entrar a poeira, interpondo-se agradavelmente e ntre a mesa do ch, no interior, e a velha torre, no exterior. Era portanto natura l que as senhoras se sentissem tentadas a conversar indolentemente, especialmente se tomarmos em linha de conta a presena de manteiga fresca, po fresco, camares e agries.

Assim, estando as senhoras reunidas neste ambiente, era natural que o tema da co nversa fosse a tendncia por parte dos homens para tiranizarem o sexo fraco, e o dever que esse mesmo sexo fraco tinha de resistir a essa tirania e exigir os seu s direitos e a sua dignidade. Era natural por quatro motivos: primeiro, porque M rs. Quilp era uma mulher jovem, claramente debaixo do domnio do marido, que tinha de ser convencida a tomar uma atitude de revolta; segundo, porque a me de Mrs. Quilp era conhecida como sendo uma mulher corajosa, capaz de resistir autoridade mascu lina; terceiro, porque cada uma das presentes estava desejosa de mostrar como ne sse aspecto era superior s outras mulheres em geral; quarto, porque, estando habituad as a juntarem-se aos pares para dizerem mal umas das outras, e vendo-se privadas do seu tema de conversa preferi do, agora que ali estavam todas reunidas como boas amigas, o assunto que lhes re stava era atacar o inimigo comum. Movida por estas consideraes, uma senhora forte comeou por perguntar como estava Mr . Quilp, ao que a me de Mrs. Quilp respondeu: - Oh, ele est bem, a ele no h mal que lhe chegue, as ervas daninhas esto sempre de boa sade.- Ento as senhoras s uspiraram em coro, abanaram a cabea com ar grave e olharam para Mrs. Quilp como para uma mrtir. Ah! - disse a senhora que tinha falado. - A senhora, Mrs. Jiniwin, que devia aco nselh-la. - Era esse o nome de solteira de Mrs. Quilp, e portanto tambm da sua me. - Ningum melhor do que a senhora sabe o que ns, mulheres, devemos a ns prprias. - Devemos, de facto, minha senhora! - replicou Mrs. Jiniwin. - Quando o meu pobr e marido, o querido pai dela, era vivo, se alguma vez se tivesse atrevido a diri gir-me uma m palavra, eu tinha-lhe... A boa e idosa senhora no chegou a acabar a sua frase, mas torceu a cabea a um cama ro com uma fria vingativa que parecia significar que a aco se destinava de algum

modo a substituir as palavras. Isto foi imediatamente compreendido pela outra se nhora, que imediatamente aprovou e replicou: - A senhora compreende bem os meus sentimentos, eu prpria no teria feito outra coisa. - Mas no precisa de o fazer - disse Mrs Jiniwin. - Felizmente para si, tem tanta razo para o fazer como eu. - Nenhuma mulher precisa de chegar a essa situao, se for honesta consigo prpria - d isse a senhora forte. - Ests a ouvir isto, Betsy? - disse Mrs. Jiniwin em voz de reprimenda. - Quantas vezes te disse j estas mesmas palavras e quase me pus de joelhos para que me ouvi sses? A pobre senhora Quilp, que olhava, aflita, de um rosto condodo para outro, corou, sorriu e abanou a cabea com ar hesitante. Foi isto que despoletou o clamor geral que comeou por um leve murmrio e gradualmente se transformou num barulho enorme, c

om toda a gente a falar ao mesmo tempo, dizendo que ela era muito jovem, pelo que no podia pretender fazer prevalecer as suas opinies contra a experincia daquela s que sabiam melhor; que ela fazia mal em no aceitar os conselhos de pessoas que s queriam o que era melhor para ela; que a atitude dela estava muito prxima da ingratido; que se no tinha respeito por ela prpria devia ao menos t-lo pelas outras mulheres, a quem a sua humildade comprometia; e que se ela no tinha respei to pelas outras mulheres, um tempo viria em que as outras mulheres o no teriam por ela, e que havia de se arrepender, asseguravam-lhe elas. Tendo-a assim admoe stado, as senhoras comearam a atacar ainda com mais violncia o ch, o po fresco, a manteiga fresca, os camares e os agries, e disseram que a sua indignao era to grand e por v-la agir daquela maneira, que mal conseguiam engolir uma migalha. - muito fcil falar - disse Mrs. Quilp com muita simplicidade. - Mas eu sei que se morresse amanh, Quilp podia voltar a casar com quem lhe apetecesse. Podia, que eu bem sei! Estas palavras geraram um grito de indignao. Casar com quem lhe apetecesse? Ele que se atrevesse a pensar em casar com alguma delas! El e que fizesse a mais pequena tentativa nesse sentido! Uma das senhoras, viva, gar antia que lhe dava uma facada menor tentativa que ele fizesse. - Muito bem! - disse Mrs. Quilp abanando a cabea. - Como eu j vos disse, muito fcil falar, mas volto a dizer-vos que sei, tenho a ce rteza... Quilp quando quer sabe ser to insinuante, que a mais bonita mulher que aqui estiver no conseguia recus-lo se eu morresse, e ela estivesse livre, e el e a quisesse. Ora! Todas se empertigaram perante esta observao, como se dissessem: " de mim que ela es t a falar, eu sei. Pois ele que experimente!" E por qualquer razo oculta todas elas estavam zangadas com a viva, e cada uma delas segredou ao ouvido da sua vizinha que a viva julgava que era a ela que se referiam, e como ela era d issimulada. - A minha me sabe... - disse Mrs. Quilp. - Que o que eu estou a dizer verdade, po rque ela prpria o disse muitas vezes antes de eu me casar. No disse, me? Esta pergunta colocou a respeitvel senhora numa posio muito delicada, porque ela prp ria tinha encorajado o casamento da filha e, por outro lado, no era propriamente uma honra para a famlia pensar-se que a filha tinha casado com um homem que mais ningum queria. Por outro lado ainda, exagerar as qualidades cativantes do genro seria enfraquecer a causa da revolta na qual tinha investido todas as suas energ ias. Perante estas consideraes contraditrias, Mrs. Jiniwin reconheceu o poder de insinuao do genro, mas negou o seu direito autoridade, disse uma amabilidade se nhora forte e conseguiu oportunamente fazer regressar a conversa ao ponto de partida. - Oh! O que Mrs. George disse uma coisa muito sensata e justa - exclamou a velha senhora. - Se as mulheres ao menos fossem honestas consigo prprias! - Mas Betsy no , para minha pena e vergonha. - Antes de deixar que um homem mandasse em mim como Quilp manda nela, antes de c onsentir em submeter-me a um

homem como ela se submete a ele, eu... eu matava-me e deixava uma carta a dizer que foi ele. Estas palavras foram comentadas e aprovadas em voz alta, quando outra senhora, d as Minorias, tomou a palavra: - Mr. Quilp pode ser um homem muito simptico - disse ela. - Eu no tenho dvida nenhu ma a esse respeito, uma vez que a prpria Mrs. Quilp quem o diz, e Mrs. Jiniwin, que tm obrigao de saber isso melhor do que ningum. Mas no exactamente aquilo a que ch amamos um bonito homem, nem propriamente um jovem, e isto pode ser uma desculpa para ele, se que ele tem alguma desculpa. Ora a mulher dele jovem e bonita, e uma mulher, e isso o mais importante. Esta ltima frase foi dita de uma forma extraordinariamente enftica, o que produziu nas ouvintes um murmrio como resposta e, assim estimulada, a senhora observou ainda que se este marido era mau e pouco razovel com semelhante esposa, ento... - Se ! - interps a me pousando a sua chvena de ch e sacudindo as migalhas do colo, o que deixava antever que se preparava para fazer uma solene declarao.Se ! Ele o maior tirano que j existiu, ela no manda nem na sua prpria alma, ela trem e a uma palavra dele, ou mesmo a um olhar, ele assusta-a de morte, e ela no tem coragem para lhe responder uma palavra, no, nem uma palavra! Apesar de todas as visitas estarem ao corrente do que se passava, e de tudo isto j ter sido discutido e comentado em todos os chs bebidos na vizinhana ao longo dos ltimos doze meses, assim que foi feita esta comunicao oficial comearam todas a f alar ao mesmo tempo, excedendo-se umas s outras em veemncia e volubilidade. Mrs. George observou que as pessoas falavam, que j lho tinham dito vrias vezes, qu e Mrs. Simmons, ali presente naquele momento, lho tinha dito vinte vezes, e que ela tinha sempre respondido: "No, Henrietta Simmons, enquanto no vir com os meus o lhos, e no ouvir com os meus ouvidos, no vou acreditar." Mrs. Simmons corroborou este testemunho e acrescentou-lhe fortes argumentos de sua au toria. A senhora das Minorias relatou o tratamento que tinha aplicado ao marido quando este, ao fim de um ms de casamento, havia comeado a transformar-se num tigre, e qu e desta forma se tinha tornado um verdadeiro cordeiro. Outra senhora contava a sua luta e vitria final, para a qual se tinha visto obrigada a chamar para sua casa a me e duas tias, e chorar incessantemente, noite e dia, durante seis semana s. Uma terceira, que no meio da confuso geral no tinha conseguido outra pessoa que a ouvisse, agarrou-se a uma jovem ainda solteira que tambm l estava, e exortava-a, se tinha amor paz da sua alma e sua felicidade, a aproveitar aquela ocasio solene , aprender com o exemplo de fraqueza dado por Mrs. Quilp e, a partir daquele momento, dirigir todos os seus pensamentos no sentido de sub jugar o rebelde esprito masculino. O barulho era muito, e metade do grupo gritava para abafar as vozes da outra metade, quando viram Mrs. Jiniwin mudar de cor e a gitar o seu dedo indicador, a mand-las calar. Ento, e s ento, que viram que a causa de todo aquele burburinho, Daniel Quilp em pessoa, estava na sala, obser vando e ouvindo com profunda ateno. - Continuem, minhas senhoras, continuem... - disse Daniel. - Mrs. Quilp, por favor convide as senhoras para jantar, umas lagostas, um janta r leve e saboroso. - Eu... eu... no as convidei para o ch, Quilp - gaguejou a mulher dele. - Foi um p uro acaso.

- Tanto melhor, Mrs. Quilp. Estas festas que acontecem por acaso so sempre as mai s agradveis - disse o ano esfregando as mos com tanta fora que parecia ocupado a fabricar, com a sujidade que as cobria, pequenas cargas para espingardas de pr esso de ar. - O qu? As senhoras no se vo embora, no se vo embora, com certeza! As suas belas inimigas abanavam ligeiramente a cabea enquanto procuravam os seus xailes e chapus, deixando a desavena verbal a cargo de Mrs. Jiniwin que, vendo-se em lugar de destaque, fez uma fraca tentativa para manter a pose.

- E porque no haviam de ficar para o jantar, Quilp... disse a velha senhora.- Se a minha filha o desejasse? - Claro - respondeu Daniel. - Porque no? - No h nada de desonesto ou de errado num jantar, acho eu - disse Mrs. Jiniwin.

- Certamente que no - volveu o ano. - Porque haveria? E tambm no h nada que faa mal s e, a menos que seja servida salada de lagosta, ou gambs, que dizem que so difceis de digerir. - E voc no havia de querer que a sua mulher passasse por isso, ou por qualquer out ra coisa que a incomodasse, no verdade? - disse Mrs. Jiniwin. - Por nada deste mundo - respondeu o ano com um sorriso sarcstico. - Nem mesmo par a ter meia dzia de sogras ao mesmo tempo... e que bno isso seria! - No h dvida, Mr. Quilp, que a minha filha sua esposa - disse a velha senhora com u m sorriso que pretendia ser satrico, insinuando assim que ele precisava de ser lembrado do facto. - Sua esposa legtima. - No h dvida que , no h dvida - observou o ano. - Tem ento, espero, o direito de fazer o que lhe apetecer, Quilp - disse a velha senhora tremendo, em parte de raiva, em parte de secreto medo do seu malvado gen ro. - Espera que tenha? respondeu ele. - Ento no sabe que tem? No sabe que tem? - Sei que devia ter, Quilp, e que teria, se pensasse como eu. - Porque que no pensa como a sua me, minha querida? - disse o ano voltando-se e dir igindo-se mulher. - Porque que no imita sempre a sua me, minha querida? Ela o ornamento do seu sexo, o seu pai dizia isso todos os dias, estou certo disso. - O pai dela era uma criatura abenoada, Quilp, e valia vinte mil vezes mais do qu e certas outras pessoas, vinte milhes de vezes. - Gostaria de o ter conhecido - comentou o ano. - Ousaria ento afirmar que era uma criatura abenoada, mas agora com certeza que o . A sua morte foi um alvio. Creio que teve um longo so frimento, no foi?

A velha senhora abriu a boca, mas no conseguiu articular nenhum som. Quilp contin uou, com a mesma malcia no olhar e a mesma polidez sarcstica na ponta da lngua. - Parece que no se est a sentir bem, Mrs. Jiniwin. Creio que se deve ter excitado hoje demasiado, talvez a falar, que o seu ponto fraco. V para a cama. Peo-lhe que v para a cama. - Hei-de ir quando me apetecer, Quilp, no antes. - Mas eu peo-lhe que v agora. Peo-lhe que v agora - disse o ano. A velha olhou zangada para ele, mas foi recuando medida que ele avanava, e acabou por bater em retirada sua frente enquanto ele lhe fechava a porta na cara e a trancou, deixandoa no meio da escada, entre as visitas que neste momento des ciam as escadas apressadamente. Quando ficou sozinho com a mulher, que se sentou a um canto, a tremer, de olhos fixos no cho, o homenzinho plantou-se na frente de la, cruzou os braos e deixou-se ficar, sem dizer nada, a olhar para ela. - Oh, doce criatura! - foram as palavras com que rompeu o silncio, estalando os lb ios como se no estivesse utilizando uma figura de retrica, e quisesse de facto significar aquilo que dizia. - Oh, precioso amor, delicioso encanto! Mrs. Quilp soluava e, conhecendo o feitio do seu bom senhor, parecia to assustada com estas amabilidades como se se tratasse de palavras de extrema violncia. - Ela ... - disse o ano com um sorriso sarcstico. - uma jia, um diamante, uma prola, um rubi, um cofrezinho doirado com pedras preciosas embutidas! Ela um tesouro! Como eu gosto dela! A pobre mulherzinha tremia dos ps cabea e, levantando para ele os olhos suplicante s, voltou a baix-los e soluou de novo. - O que ela tem de melhor... - disse o ano avanando com uma espcie de pulinho que, juntamente com as suas pernas tortas, o seu rosto horrendo e os seus modos sarcs-

ticos fazia lembrar um demnio. - O que ela tem de melhor ser to humilde e to doce, no ter nunca uma vontade prpria e ter uma me to insinuante. Disse estas palavras com uma malcia refinada, da qual outro que no ele no teria con seguido aproximar-se sequer, a seguir colocou as mos nos joelhos e afastando muito as pernas, devagar, foi-se curvando, curvando, curvando, at que, inclinando muito a cabea para um lado, se interps entre os olhos da mulher e o cho. - Mrs. Qulp! - Sim, Quilp! - Sou agradvel vista? Seria o mais belo homem do mundo se usasse bigodes? Sou um homem galante? Sou, Mrs. Quilp? Mrs. Quilp respondeu obedientemente: - Sim, Qulp. - E, fascinada pelo seu olhar,

ficou timidamente a olhar para ele, enquanto ele lhe oferecia sucessivas caretas to horrendas que s ele ou uma figura de pesadelo seriam capazes de fazer. Durante toda esta representao, que foi bastante demorada, ele manteve-se em absoluto silncio excepto quando, com um salto inesperado, fazia a mulher recuar sem conseg uir reprimir um grito. Dava ento uma risadinha. - Mrs. Quilp - disse ele por fim. - Sim, Qulp - respondeu ela humildemente. Em vez de prosseguir, dizendo aquilo que tinha em mente, Quilp levantou-se, cruz ou novamente os braos e olhou para ela com uns olhos ainda mais ameaadores, enquan to ela desviava os seus e os mantinha fixos no cho. - Mrs. Quilp. - Sim, Quilp. - Se volta a dar ouvidos a essas tolas, eu mordo-lhe! Com esta ameaa lacnica, que acompanhou com uma rosnadela que dava a impresso de dizer isto muito a srio, Mr. Quilp mandou-a levan tar a mesa do ch e trazer o rum. Quando a bebida foi colocada na frente dele, num enorme garrafo vindo da despensa de algum navio, mandou que ela lhe trouxesse gua fria e a caixa dos charutos. Quando ela lhos trouxe acomodou-se num cadeiro com a sua grande cabea e a sua cara larga reco stadas para trs, e as suas perninhas pousadas em cima da mesa. - Agora, Mrs. Quilp - disse ele -, apetece-me fumar e provvel que fique a fumar t oda a noite, mas far o favor de se deixar estar a sentada, para o caso de eu precisar de si. Ela no foi capaz de responder outra coisa que no fosse o "Sim, Quilp" do costume, e aquele pequeno senhor da criao pegou no seu primeiro charuto e preparou o primeiro grogue. Entretanto ps-se o Sol, surgiram as estrelas, a torre passou da sua cor natural para cinzento, e de cinzento para negro, a sala mergulhou na esc urido, com a ponta do charuto de um vermelho ardente, mas Mr. Quilp continuava a fumar e a beber na mesma posio, olhando apaticamente pela janela com o seu eterno sorris o de co. Quando Mrs. Quilp fazia um pequeno movimento de nervoso ou cansao ele fazia uma careta maldosa de prazer. CAPTULO V Se Mr. Quilp dormitou ou permaneceu toda a noite acordado, o que certo que o seu charuto permaneceu ac eso toda a noite, acendendo cada charuto novo no borro daquele que estava prestes a consumir-se, sem precisar de acender uma vela. O bater dos relgios, hora aps hor a, tambm no parecia cans-lo ou provocar nele uma natural vontade de descansar, parecendo, pelo contrrio, aumentar a sua falta de sono, que ele demonstrava, medi da que a noite ia avanando, atravs dos rudos abafados que ia emitindo com a garganta e os movimentos dos ombros que ia fazendo, como algum que ri com vonta de, mas sorrateira e maliciosamente. Por fim nasceu o dia, e a pobre Mrs. Quilp,

tremendo com o frio da madrugada e derreada pelo cansao e pelo sono, l

estava, pacientemente sentada na sua cadeira, levantando os olhos de tempos a te mpos, num mudo apelo compaixo e clemncia do seu senhor, lembrando-lhe docemente atravs de uma leve tosse que ainda no tinha sido perdoada e que a sua penitncia j ha via durado muito. Mas o ano seu marido continuava a fumar o seu charuto e a beber o seu rum sem lhe dar importncia. E foi s quando o Sol j tinha nascido h u m bom bocado e o rudo e a actividade do dia comearam a fazer-se sentir pela rua, que ele se dignou dar pela sua presena, o que at a no tinha feito, atravs d e uma palavra ou sinal que fosse. Talvez nem ento o tivesse feito, se no fossem as pancadas impacientes que se ouviram e pareciam indicar que um punho enrgico se manifestava activamente do outro lado da porta. - Valha-nos Deus! - disse ele olhando volta com uma careta maliciosa. -J dia! Ab ra a porta, doce Mrs. Quilp. A sua obediente esposa correu o ferrolho e a senhora sua me entrou. Ora Mrs. Jiniwin entrou na sala com grande impetuosidade. Julgando o genro ainda deitado, vinha dar largas aos seus sentimentos criticando severamente a conduta e o carcter de Quilp. Vendo que ele estava levantado e vestido, e que parecia ter havido gente na sala toda a noite, parou rapidamente um pouco desorientada. Nada escapava argcia do olhar do horrendo homenzinho que, percebendo facilmente o que se estava passando na mente da velha senhora, se tornou mais feio ainda na plenitude da sua satisfao, e lhe deu os bons dias com uma careta de triunfo. - O qu, Betsy? - disse a velha senhora.- Tu no ficaste... no me vais dizer que fic aste... - Aqui sentada toda a noite? - disse Quilp respondendo pergunta. - Ficou, sim. - Toda a noite? - exclamou Mrs. Jiniwin. - Sim, toda a noite, ser que a minha querida e velha sogra ficou surda? - disse Q uilp com um sorriso sarcstico. - Quem que disse que o homem e a mulher no so boa companhia? Ha, ha! O tempo voou! - Que selvagem! - exclamou Mrs. Jiniwin. - Ora, ora... - disse Quilp fingindo no ter compreendido que o epteto lhe era diri gido. - A senhora no devia chamar-lhe nomes. Ela agora uma mulher casada, sabe, e embora me tenha retido aqui, e no me tenha deixado ir para a cama, a se nhora no deve ser to carinhosa comigo a ponto de se zangar com ela. Deus lhe pague, minha querida e velha sogra. Bebo sua sade! - Estou-lhe muito grata! - respondeu a velha senhora, dando a entender atravs da agitao das suas mos que o seu desejo era bater no genro com o seu punho de matrona. - Oh, estou-lhe muito grata! - Que alma to grata! - exclamou o ano. - Mrs. Quilp.

- Sim, Quilp - disse a sua tmida vtima. - Ajude a sua me a preparar o pequeno-almoo, Mrs. Quilp. Vou ao cais, esta manh, e quanto mais cedo, melhor, por isso despache-se. Mrs. Jiniwin fez uma fraca tentativa para se rebelar, sentando-se numa cadeira j unto porta e cruzando os braos como que determinantemente resolvida a no fazer coisa nenhuma, mas algumas palavras que lhe segredou a filha, e a amvel pergunta do genro que quis saber se no se sentia bem, e lhe lembrou que no quarto ao lado havia gua fria em abundncia, rapidamente fizeram desvanecer todos os sintomas, e a plicou-se a preparar o que lhe pediam com carrancuda diligncia. Enquanto me e filha se ocupavam da sua tarefa, Mr. Quilp passou para a sala contgu a e puxando a gola do casaco para trs, comeou a esfregar-se com uma toalha hmida de aparncia mais que duvidosa, que deu sua pele um aspecto mais sujo ainda d o que dantes. Entretanto, enquanto assim se ocupava, a sua ateno e curiosidade no abrandaram, porque com a sua expresso arguta e malvada de sempre, mesmo durante esta rpida operao, por vrias vezes parou

e ficou a ouvir a conversa no quarto ao lado, pensando que poderia ser a seu res peito. - Ah! - disse ele aps um breve esforo de ateno. - No era a toalha nos meus ouvidos, bem me parecia que no era. Eu sou um malvado d e um marreco e um monstro? Sou, Mrs, Jiniwin? Oh! O prazer desta descoberta fez reaparecer no seu rosto, com toda a fora, o seu vel ho sorriso canino. Quando se cansou sacudiu-se como um co e regressou presena das senhoras. Mr. Quilp avanara para a frente de um espelho e estava agora ali colocando o seu leno de pescoo, quando Mrs. Jiniwin, que estava atrs dele, no resistiu tentao de ameaar com o punho o seu desptico genro. Foi um gesto que durou apenas um insta nte, mas no momento em que o fazia, acompanhando-o com uma expresso ameaadora, os seus olhos cruzaram-se no espelho com os de Quilp, que a apanhava em flagrant e. O mesmo olhar mostrou-lhe no espelho o reflexo de um rosto distorcido e horri velmente grotesco com a lngua pendente. No instante seguinte, o ano voltou-se com uma expre sso perfeitamente serena e plcida, e perguntou num tom extremamente carinhoso: - E como que se sente agora, a minha querida velhinha? Este incidente tinha sido insignificante e ridculo, mas fazia Quilp surgir aos ol hos da velha senhora com um aspecto to diablico, e tambm to severo e astucioso, que a velha senhora sentiu tanto medo dele que no foi capaz de pronunciar uma nica palavra, e deixou-se conduzir com extrema delicadeza at mesa do pequeno-almoo. Aqui, de forma alguma ele diminuiu a impresso que acabava de causar, porque comeu ovos cozidos com casca e tudo, devorou enormes gambs com cabea, rabo e tudo, mastigou tabaco e agries ao mesmo tempo com extraordinria brutalidade, bebeu ch a f erver sem pestanejar, mordeu o garfo e a colher at os dobrar, e cometeu tantos actos horripilantes e fora do comum que as duas mulheres estavam quase loucas de medo e comearam a duvidar se ele seria de facto uma criatura humana. Por fim, dando por terminadas estas coisas e muitas outras que

eram seu hbito, Mr. Quilp deixou-as reduzidas a um estado de perfeita submisso e dirigiu-se para a beira do rio onde tomou um pequeno barco para o cais a que h avia dado o seu nome. Estava mar alta quando Daniel Quilp se sentou no barco para atravessar para a out ra margem do rio. Algumas barcaas avanavam preguiosamente, umas de lado, outras de frente, outras de popa, todas elas com um ar turbulento, obstinado, teimoso, dando encontres aos barcos maiores, passando por baixo da proa dos navios a vapor , metendo-se por todos os lados, por todos os buracos onde no tinham de se meter, e smagadas por todos os lados como outras tantas cascas de noz. Cada uma delas, co m o seu longo par de remos a debater-se e a bater na gua, parecia um grande peixe em desespero. Nalguns dos barcos que estavam ancorados, todos os braos esta vam ocupados a enrolar cabos, a estender as velas a secar, a carregar e a descar regar mercadorias. Noutros barcos no se via mais sinal de vida para alm de dois ou trs ra pazes sujos de alcatro ou um co a ladrar e a correr de um lado para o outro ou trepando mais acima para ladrar ainda com mais fora ao mundo sua volta. No mei o de uma floresta de mastros, um navio a vapor avanava lentamente, batendo na gua a intervalos impacientes com as suas pesadas ps como se precisasse de espao par a respirar, avanando com o seu enorme vulto como um monstro marinho entre os cadozes do Tamisa. De um lado e do outro estendiam-se longas filas negras de barcos carvoeiros. Pelo meio deles passavam navios vagarosos que saam do porto co m as velas a brilhar ao Sol e rudos a bordo que se ouviam em todos os lados. A gua e tudo o que estava sua superfcie, tudo se movia activamente, danando, flutuando, borbulhando, enquanto a velha torre cinzenta e os aglomerados de construes nas mar gens, com campanrios no meio apontados para o cu, pareciam olhar com frieza e desprezo esta vizinhana barulhenta.

Daniel Quilp, para quem a nica coisa importante numa manh bonita era que lhe evita va a maada de levar guarda-chuva, desembarcou perto do cais e dirigiu-se para l por uma azinhaga que, partilhando da natureza anfbia dos seus frequentadores, er a composta por gua e lama, ambas em grandes quantidades. Chegado ao seu destino, a primeira coisa que viu foi um par de ps muito mal calados, levantados no ar com as solas para cima. Era o rapaz, que era um pouco excntrico e gostava de dar cambalhotas, quem se encontrava nesta estranha posio, e contemplava o rio desta fo rma curiosa. Assim que ouviu a voz do patro ps-se rapidamente de p, e assim que a sua cabea voltou para o seu lugar, Mr. Quilp, para falar com propriedade, e falta de melhor expresso, "pregou-lhe um tabefe". - Vamos, deixe-me em paz - disse o rapaz defendendo-se de Quilp com as duas mos a lternadamente. - Se no me deixa em paz ainda capaz de receber uma coisa de que no vai gostar, sou eu que lhe digo. - Co ! - rosnou Quilp. - Bato-te com uma trave de ferro! Coo-te com um prego ferru gento! Arranco-te os olhos se dizes mais alguma coisa! Vais ver! Enquanto lhe fazia estas ameaas cerrou o punho de novo, e enfiando-o habilmente n o meio dos cotovelos do rapaz, agarroulhe a cabea enquanto ele se esquivava para um lado e para o outro, e pregou-lhe trs ou quatro bons socos. Feito isto, deixou -o. - Voc no volta a fazer isso - disse o rapaz sacudindo a cabea e afastando-se com os cotovelos preparados espera do pior.

- Est quieto, co! Eu no vou voltar a fazer isto porque j o fiz as vezes todas que q ueria. Agora, pega l a chave. - Porque que no -se muito devagar. vai bater em algum do seu tamanho? - disse o rapaz aproximando

- E onde que h uma pessoa do meu tamanho, co? - respondeu Quilp. - Agarra na chave ou ainda te ponho os miolos de fora - dizen do isto, deu-lhe uma forte pancada com ela. - Agora, abre o escritrio. O rapaz obedeceu contrariado, primeiro a resmungar, mas desistindo quando olhou volta e viu que Quilp o observava atentamente. Aqui queremos observar que entre este rapaz e o ano existia uma espcie de estranha e recproca amizade. Como havia na scido, e como se desenvolvera, alimentada com pancadas e ameaas de um lado, e do outro com respostas tortas e desafios, no vem agora ao caso. O que verdade q ue o rapaz era a nica pessoa que Quilp admitia qu