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ARTE,LINGUAGEM,ETNOLOGIAEntrevistas com Claude Lévi-Strauss

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  • Entrevista de Georges Charbonnier com

    Claude Lvi-Strauss

    Traduo Ncia Adan Bonatti

    ARTE, LINGUAGEM, ETNOLOGIA

    Entrevistas com Claude Lvi-Strauss

    11

    "PRIMITIVOS" E "CIVILIZADOS"

    Georges CHARBONNIER. - Claude Lvi-Strauss, preciso que o homem de cincia tenha, em relao a ns, muita pacincia, pois ns pedimos que responda a nossas questes, e natural que o homem de cincia no coloque as questes como ns. Ele as coloca para conhecer, ns para conservar, para conservar nossa idia do homem, essa idia, essa obstinat1o que nao podemos de forma alguma precisar, ns o sabemos. Nossa simpatia pelo etnlogo dirige-se a este homem de cincia que faz uso de uma potica para conhecer. Pedimos tambm, e no seu objeto, para apreender poeticamente nossa sociedade, enquanto estuda como astrnomo - retomo seus prprios termos - uma matria social privilegiada, uma espcie de estado cristalino da matria social, uma matria social longnqua, distante.

    Nilo nos sentimos representados pelo socilogo por uma razo simples: ele pode, atravs dos nmeros, prever o comportamento mdio de nossos grupos e imediatamente tememos por nossa liberdade. Tambm ao etnlogo que desejamos inicialmente colocar esta questllo: Quais silo as diferenas fundamentais de funcionamento, de estrutura, que voc assinala entre as sociedades que so objeto de seu estudo e da sociedade na qual vivemos, a nossa?

    Claude Lev1-STRAUSS. - Voc coloca a mais difcil das questes s quais se pede s vezes ao etnlogo para responder. To dificil, que no estou persuadido de que a resposta seja

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  • possvel. Pode ser que tenhamos atingido a um limite absoluto de nosso conhecimento. Antes de tentar responder questo, poderamos talvez nos perguntar por que essa uma questo muito difcil.

    Parece-me que essa questo encobre uma outra, que de saber se possvel ordenar todas as sociedades humanas em relao a uma noo de progresso, sendo umas mais primitivas - pois o termo "primitivas" se impe a ns pelo uso, dado que no temos outro melhor - e outras as que poderamos chamar de "mais civilizadas".

    G. C. - Eis af uma das questes que colocava em segundo plano; e nao exatamente a nica.

    C. L.-S. - Sim, mas se permite, comecemos por atac-la deste ngulo. Parece-me que a grande dificuldade provm de que no de nenhuma forma a mesma coisa olhar uma sociedade do exterior e olh-la do interior. Quando a olhamos de fora, podemos atribuir-lhe um certo nmero de ndices, determinar o grau de seu desenvolvimento tcnico, a amplitude de sua produo material, o efetivo de sua populao e assim por diante, e depois dar-lhe muito friamente uma nota, e comparar com as notas que damos s diferentes sociedades.

    Mas, quando se est dentro, esses elementos muito pobres se dilatam e se transformam para cada membro de uma socidadeququer' se} a .... filais cf viliZad o mais primitiva, isto no tem importncia, essa sociedade rica de todos os tipos de nuanas. -?--:=:..:--- -------

    Imagine, em outra ordem de idias, o que a morte de um individuo, para simples conhecidos ou para sua prpria familia. Visto do exterior, um acontecimento bem banal, mas para os prximos a subverso completa de um universo: jamais poderemos compreender exatamente o que o luto de ur.na famlia que no a nossa familia, o

    2

    que um luto que no nosso luto.

    No se pode, simultaneamente, derterminar a trajetria de uma partcula e sua posio. Da mesma forma, no podemos, ao mesmo tempo, procurar conhecer uma sociedade do interior e classific-la do exterior em relao a outras sociedades. Eis ai a dificuldade.

    G. C. - Mas ao mesmo tempo a dificuldade geral da etnologia e a dificuldade geral de todo modo de conhecimento.

    C. L.-S. _rf; dificuldade ddmd;;onhecimento e tento somente exp 1car sua mc1 enc1a particular sobre a

    tnologia. Gostaria de t-1 8 feito no prembulo, mas claro, rtfo para esquivar-me de sua questo, qual preciso tentar responder, pois uma pergunta que todos ns nos fazemos, e porque no podemos nos impedir de comparar sociedades to desiguais quanto, digamos, as dos indgenas australianos,

    sem cermica, nem tecelagem, nem agricultura, nem animais domsticos, e nossa prpria sociedade, com o maquinismo, a energia trmica, a energia eltrica e agora a energia nuclear. Entre tais sociedades, a diferena impe-se, e no podemos deixar de tentar compreender as razes.

    G. C. - H todo um vocabulrio sobre o qual seria preciso saber o que ele recobre. Para ns, homens deste tempo, homens que vivem no interior das grandes sociedades, mesmo quando queremos adotar, sem sermos homens de cincia, uma posido imparcial, sentimos sempre que a palavra "grande" significa alguma coisa.

    C. L.-S. - Objetivamente, as sociedades contemporneas e as dos povos a que chamamos "primitivos" no so da mesma ordem de grandeza. uma constatao. Partamoa

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    da, se me permite. Podemos conceber nossa civilizao como uma combinao muito complexa. Essa diferena de ordem de grandeza e de complexidade da combinao. No caso que nos ocupa, como se pode explic-lo?

    Vou propor-lhe uma primeira hiptese: desempenhar o papel de advogado do diabo, digo logo, pois no me aterei a isso, mas parece-me que preciso primeiramente t-lo presente no esprito.

    Suponha um jogador de roleta inveterado e que tenha por finalidade no somente tirar o nmero escolhido, mas realizar uma combinao muito complexa, atingindo vrias dezenas ou vrias centenas de lances e definida por certas regras de alternncia entre o vermelho e o preto, ou entre par e mpar. Essa combinao complexa, nosso jogador poderia realiz-la no primeiro lance, ou no milsimo, ou no milionsimo, ou jamais. Mas no nos ocorreria ao esprito dizer, se realizar sua combinao na 725 tentativa, que todas as que a precederam foram indispensveis para que ele o conseguisse. Ele realizou nesse momento, poderia ter sido mais tarde, assim, mas no teve um progresso, durante suas tentativas iniciais, que fsse a condio necer.ia..do rucesso. E j poderamsrespoder-ao problem-a que voc colocou h pouco dessa maneira. Digamos, com efeito: foi necessrio atingir um certo nmero de centenas de milnios para que a humanidade realizasse esta combinao muito complexa que a civilizao ocidental. Ela poderia muito bem t-lo feito desde o inicio, poderia t-lo feito muito mais tarde; ela o fez neste momento, no h razo, assim. Mas voc me dir: "No satisfatrio".

    G. C. - Ndo, ndo satisfatrio. Parece-me, a mim no especialista, que o elemento tempo importante.

    C. L.-S. - Estou de acordo com voc, mas tentemos sitiar o elemento tempo. Em que consiste ele? Creio que aqui

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  • necessrio fazer intervir uma aquisio essencial da cultura e que a condio mesma dessa totalizaco do saber e dessa o de experincias passadas, a qual sentimos, de modo mais ou menos intuitivo, que foi a origem de nossa civilizao. E essa aquisio cultural, essa conquista, a escrita.

    certo que um povo s pode aproveitar as aquisies anteriores na medida em que esto fixadas pela escrita. Bem sei que os povos que chamamos primitivos tm freqentemente capacidade de memria inteiramente surpreendente e falam-nos dessas populaes polinsias que so capazes de recitar sem hesitao genealogias que atingem dezenas de geraes, mas isso tem, apesar de tudo, manifestamente seus limites. Seria preciso que a escrita fosse inventada para que o saber, as tentativas, as experincias felizes ou infelizes de cada gerao fossem acumuladas e que a partir desse capital se tornasse possvel s geraes seguintes no somente repetir as mesmas tentativas mas utilizar as que haviam sido feitas anteriormente para melhorar as tcnicas e promover novos progressos. Voc est de acordo com isso?

    G. C. - Parece-me; no vejo o que seja discutvel.

    C. L.-S. - Ento h alguma coisa qual podemos nos agarrar, porque a inveno da escrita situa-se no tempo e no espao. Sabemos que ela aconteceu no Mediterrneo oriental, entre o 3? e o 4? milnios e que havia a alguma cisa d idispensvel.

    G. C. - Mas existe alguma coisa de privilegiado na apario em tal momento, em tal lugar, de um fenmeno tal como a inveno da escrita. O no-especialista pergunta: por que aqui?

    C. L.-S. - Por que aqui? Vai parecer que contradigo o que sugeria h poucos instantes, mas parece-me que, neste ponto, necessrio introduzirmos uma nova reflexo. A escrita

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    apareceu na histria da humanidade entre o 3? e o 4? milnios antes de nossa era, num momento em que a humanidade j tinha concludo suas descobertas mais essenciais e mais fundamentais: no antes, mas no dia seguinte ao que se chamou "a revoluo neoltica", que consistiu na descoberta das artes da civilizao que esto sempre na base de nossa existncia tais como a agricultura, a dometicao dos animais, a cermica, a tecelagem -todo um conjunto de procedimentos que vo permitir s sociedades humanas, no mais como nos tempos paleolticos, viver o dia a dia, ao acaso da ca. da colheita cotidiana, mas acumular ...

    G. C. - ... a dispor de uma diretriz.

    C. L.-S. Sim, de ter uma diretriz, exatamente. Ora, erraramos em pensar que descobertas to essenciais quanto estas puderam surgir de uma s vez, como efeito do acaso. A agricultura, para tomar um s exemplo, representa uma soma de conhecimentos, de experincias acumuladas durante geraes e geraes, transmitidas de uma a outra, antes que se tornasse verdadeiramente alguma coisa utilizvel. Freqentemente notamos que os animais domsticos no so simplesmente espcies selvagens que passaram ao estado da vida domstica; so espcies selvagens que foram ompletamente transformadas pelo homem, e a transformao, que era a condio mesma de sua utilizao, deve ter solicitado perodos de tempo e uma persistncia, uma aplic&o na experimentao, extremamente longos. Ora, tudo isso foi possvel sem a escrita.

    i;>ortantp, se a escriia apareceu-nos h poucos instantescomo uma condio do progresso, devemos tomar cuidado, pois certos progressos essenciais que a humanidade jamais promoveu aconteceram sem sua interveno.

    G. C. - Apesar de tudo, para cada um desses progressos

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    somos levados a colocar-nos a mesma questo. O no-cientis pergunta-se por que tal progresso, em tal lugar. E quant mais remoto no tempo, mais me fao a mesma pergunta.

    C. L.-S. - No que concerne ao neoltico, o problema no inteiramente o mesmo.

    G. C. - "Condies de aparecimento de uma manifestao de progresso", eis a questo sempre aberta.

    C. L.-S. - Sim, mas no de maneira alguma certo que as grandes conquistas do neoltico produziram-se em um s lugar. e em um s momento. verossmel que em certas condies, que alis tentaram-se determinar - isolamento relativo de grupos humanos em pequenos vales montanhosos, beneficiando-se de uma irrigao natural, protegidos por esse isolamento contra as invases de populaes estrangeiras - em diversas regies do mundo, as conquistas do neoltico tenham podido aparecer independentemente. Enquanto que, no que concerne escrita, em nossa civilizao, ao menos bem localizado. Ento, necessrio perguntar-se a que ela est ligada. O que se produziu ao mesmo tempo que a inveno da escrita? O que a acompanhou? O pode t-la

    onclrcTon Com respeito a isso, pocf:Sefazer uma constatao: o nico fenmeno que parece sempre e em todos os lugares ligado apario da escrita, no somente no Mediterrneo oriental, mas na China proto-histrica e mesmo nas regies da Amrica onde esboos de escrita aparecem antes da conquista, a constituio de sociedades' hierarquizadas, de sociedades compostas de senhores e escravos, de sociedades que utilizam uma certa parte de sua populao para trabalhar em benefcio da outra parte.

    E quando vemos quais foram os primeiros usos da , escrita, parece claro que foram inicialmente os do poder: inventrios, catlogos, recenseamentos, leis e mandamentos; em todos os casos, quer trate-se do controle de bens materiais

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  • ou dos seres huma__I!os, manifestao de autoridade de alguns .fimens sobre outros homens e sobre riquezas.

    G. C. - Controle da autoridade.

    C. L.-S. - ontrole autoridade e meio de controle. Seguimos um iu muito tortuoso, partfuos do pro6Iema do progresso e conduzimo-lo ao da capitalizao ou da totalizao do saber. Isso mesmo s nos pareceu possvel a partir do momento em que a escrita existe, e a escrita, nos parece, est associada de modo permanente, em suas origens, a sociedades que so fundadas na explorao do homem pelo homem. Desde ento, o proble resso se complica; ele no orta uma ma uas imense pois, se foi necessrio, para esta e ecer se peno sobre a natureza, que o homem subjugasse o homem e tratasse uma parte da humanidade como um objeto, no mais possvel responder de forma simples e no-equvoca s questes que suscitem a noo de progresso.

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  • e destruindo-a progressivamente. , ' , Eu diria que as sociedades que o etnlogo estuda, comparadas a nossa grande, as nossas grandes sociedades

    modernas, so um pouco como sociedades "frias" em relao s sociedades "quentes", como relgios em relao s mqujnas a vapor. So sociedades que produzem pouqussima desordem, o que os fsicos chamam de "entropia", e que tm a tendncia de manter-se indefinidamente em seu estado inicial, o que explica, alis, que paream-nos sociedades sem histria e sem progresso. Nossas sociedades no so somente as que fazem um grande uso da mquina a vapor; do ponto de vista de sua estrutura, parecem-se com mquinas a vapor; utilizam para seu funcionamento diferenas de potencial, que se encontram realizadas por diferentes formas de hierarquia social, quer se chamem escravido, servido, ou quer se trate de uma diviso em classes, isso no tem importncia fundamental quando olhamos as coisas de forma tanto longnqua quanto com ma perspectiva largamente panormica. Tuis sociedades conseguem promover um desequilbrio em seu seio, que usam para produzir, ao mesmo tempo, muito mais ordem - temos sociedades a maqwrusmo - e tambm muito mais desordem, muito mais entropia, sobre o plano das relaes entre os homens.

    G. C. -A questo imediata esta: Quais so as conseqncias, para o individuo, do desequilfbrio utilizado e qual o valor da palavra "desigualdade" no interior de uma sociedade primitiva e no interior de uma sociedade contempornea?

    C. L.-S. - uma diferena muito considervel. Eu no queria generalizar, porque assim que tentasse formular essa diferena em termos um pouco amplos, poderiam opor-me excees. claro, atrs do que chamamos "sociedades primitivas", h todo tipo de formas de organizao social, e nunca repetirei suficientemente que duas sociedades primitivas podem diferir entre si tanto quanto cada uma

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    delas difere da nossa.

    Houve sociedades primitivas de castas. A ndia, que no uma sociedade "primitiva" dado que conheceu a escrita, no certamente a nica sociedade desse tipo. Todavia, a grande diferena de conjunto que as sociedades primitivas esforam-se, de mosciente ou inconsciente, para evitar entre seus membros essa Clivagem que permmu )Tvoreceu o implllso-a CivitiZciaental. E uma das melhores provas parece-me poder ser encontrada em sua organizao poltica. H um grande nmero de sociedades primitivas - no direi todas, mas podemos encontr-las nas regies mais diferentes do mundo - onde vemos um esboo de sociedade poltica e de governo, seja popular, seja representativo, pois as decises a so tomadas pelo conjunto da populao reunida em um grande conselho, ou pelos notveis, chefes de cls ou sacerdotes, chefes religiosos. Nessas sociedades delibera-se e vota-se. Mas os votos s so vlidos em caso de unanimidade. Parece crer-se que, se existissem no momento de uma deciso importante e na menor frao que se queira da sociedade sentimentos de amargura tais como os pertinentes posio de vencido em uma consulta eleitoral, esses sentimentos, a m vontade, a tristeza de no ter sido seguido, agiriam com uma potncia quase mgica para comprometer o resultado obtido.

    alis a razo pela qual, em certas sociedades penso em exemplos ocenicos - quando uma deciso importante deve ser tomada, primeiro - na vspera ou na antevspera - organiza-se um tipo de combate ritual, no decorrer do qual todas as velhas querelas so liquidadas em combates mais ou menos simulados, onde algumas vezes, alis, h feridos - se bem que haja um esforo para limitar os riscos. A sociedade comea, portanto, por purgar-se de todos os motivos de desavenas, e somente depois que o grupo, refrescado, rejuvenescido, tendo eliminado seus desentendimentos, est em posio de tomar uma deciso

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    que poder ser unnime e de manifestar assim a boa vontade comum.

    G. C. - Dito de outra forma, se compreendo bem, h um -estado de unanimidade que ntJo depende da decistJo. Cria-se

    um estado de unanimidade que vai ser aplicado decistJo a ser tomada.

    C. L.-S. - isso, um estado de unanimidade que considerado como indispensvel para que o grupo se perpetue como grupo. Quer dizer, se me permite levar em considerao o que dizamos h pouco, uma proteo contra o risco de clivagem contra o risco de que uma hierarquia sub-reptcia se introduza no grupo social, entre os que estariam do lado bom e os que estariam do lado mau. Dito de outra forma, no h minoria; a sociedade tenta perpetuar-se como um relgio, one todas as engrenagens participam harmoniosamente da mesma atividade, e no como as mquinas, que parecem recobrir em seu seio um antagonismo

    , latente: o da fonte de calor e o do rgo de refrigerao.

    G. C. - Em tudo o que voc2 diz, parece-me ver despontar as idias de Rousseau.

    C.L.-S. - Por que no?

    G. C. -A unanimidade definida por Jean-Jacques Rousseau consiste na decisOo unOnime de respeitar a decistJo tomada pela maioria. Essa unanimidade vizinha da unanimidade que voe defende.

    C. L.-S. - Mas claro! Rousseau no conhecia os exemplos que evoquei, porque os problemas que atingem a vida poltica dos povos primitivos s foram abordados tardiamente. e na sua poca no se dispunhaiP de elementos de informao suficientes. Apesar disso, Rousseau viu admiravelmente que um ato de unanimidade a condio terica da existncia ' ---- .. -----

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  • de. cujo princpio populaes muito humildes souberam coTcar metodicamente em prtica. A grande dificuldade em Rousseau aparece no momento em que ele tenta passar dessa regra de unanimidade, que fundada no direito, prtica do escrutnio majoritrio.

    G. C. - uma unanimidade de aceitao, para Rousseau: alieno minha liberdade para participar da soberanidade.

    C. L.-S. - Certo. A vontade geral no , para ele, a vontade da totalidade, ou da maioria da populao, expressa em ocasies particulares; a deciso latente e contnua atravs da qual cada indivduo aceita existir enquanto membro de um grupo.

    G. C. - isso. No somos unnimes para decidir: somos unnimes para obedecer deciso tomada. Parece-me que no estamos muito longe do estado que voc acabou de definir.

    C. L.-S. - Estou inteiramente de acordo. Creio que Rousseau, no Contrato Social - dado que no Contrato Social que pensamos neste momento - formulou a idia mais profunda e a mais suscetvel de ser generalizada, quer dizer, verificada em um grande nmero de sociedades, do que podem ser a organizao poltica e as condies tericas de toda organizao poltica possvel.

    G. C. - S que estamos muito longe de nossas formas socia is. E se penso no que disse h pouco do nosso tipo de sociedade, que tem necessidade de diferena de potencial para funcionar, concluo que a democracia as."ifame'fte mtli6pelfs6 Pt{ ao funcionamento da mquina, se a sociedade deve conservar essa diferena, se ela quer viver, por conseguinte toda democracia impossfvel.

    C. L.-S. - A voc me leva a um territrio que no exatamente o do etnlogo, pois me pede para raciocinar

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    no sobre esses pequenos relgios - defini dessa"' maneira as sociedades primitivas - mas, ao contrrio, sobre as mquinas a vapor colossais que so as sociedades contemporneas. Mas creio que mesmo assim, sem ir at o fim, poderamos tentar prolongar um pouco o raciocnio que esboamos.

    O que eu dizia pode se resumir da seguinte maneira: as sociedades que chamamos primitivas, at certo ponto, podem ser consideradas como sistemas sem entropia, ou com entropia extremamente fraca, funcionando com uma espcie de zero absoluto de temperatura - no a temperatura do fsico mas a temperatura "histrica"; alis o que exprimimos dizendo que essas soc1edads no tm histria - e, por conseguinte, manifestam no plano mais alto fenmenos de ordem mecnica que levam vantagem, entre elas,sfe fp"QfifQ.( sfafliCos. surpreendente que os estudos nos quais os etnoTgm esto mais vontade - as regras de parentesco e do casamento, as trocas econmicas, os ritos e os mitos - possam freqentemente ser concebidos sobre o modelo de pequenos mecanismos funcionando de

    odo bem regular e cumprindo certos ciclos, a mquina assando sucessivamente por vrios estados antes de retornar

    ao ponto inicial e recomear seu percurso.

    As sociedades com histria, como a nossa, tm, eu diria, uma temperatura muito mais alta, ou, mais exatamente, existem separaes maiores entre as temperaturas internas do sistema, separaes maiores entre as temperaturas internas do sistema, separaes essas devidas s diferenciaes sociais.

    No seria portanto necessrio distinguir sociedades "sem histria" de sociedades "com histria". Com efeito, todas as sociedades humanas tm uma histria, igualmente longa para cada uma, dado que essa histria remonta s origens da espcie. Mas, enquanto as sociedades ditas primitivas banham-se em um fludo hisQ....a.O._qual

    ,------------ __ ._.J.-...------ ... ... _ ... _ ... --- ..... -

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    esforam-se para permanecer impermeeis, nossas sociedades lntenonzm, 1e J'osso dizei asslnr,1f'1\istria, para fazer

    'fela o motor de seu desenvolv1menfo. / ! ----

    -----. -- "- ... . . . - -- . V'-

    E agora volto questo que voc colocou no incio, isto : i;.m q-5!!fe.el? '-"(

    Com efeito, toda sociedade implica os dois aspectos. Uma sociedade simultaneamente urna mquina, e o trabalho que ornece Jssa mquina.) Enquanto mquina a vapor, fabnca enfropia. Mas enquanto considerada como um motor, fabrica ordem. Esse aspecto - ordem e desordem -corresponde, em nossa lngua, a duas maneiras de olhar uma civilizao: de uma parte, a cultura, de outra parte, a sociedade; a cultura designa o conjunto das relaes que, em uma dada forma de civilizao, os homens mantm com o mundo, e a sociedade designa mais particularmente as relaes que os homens mantm entre si. A cultura fabrica organizao: cultivamos a terra, construmos casas, produzimos objetos manufaturados ...

    G. C. - Por conseguinte, a sociedade separada do mundo.

    C. L.-S. - Ela , mas continua com ele em uma relao de complementaridade. No menos surpreendente que Gobineau - que foi o primeiro a perceber esse elemento de entropia, essa desordem, que um fator concomitante do progresso, e caracteriza essencialmente a sociedade - o tenha "naturalmente", de qualquer forma, situado to longe quanto possvel da cultura, mais distante do que deveria; colocou-o na natureza, no nvel de diferenas raciais. Ele tinha, portanto, claramente concebido a oposio, mas, como tinha sido o primeiro a aperceber-se, deu-lhe uma amplitude considervel demais.

    Nesse caso podemos dizer que um domnio social qualquer - se chamamos uma sociedade de um domnio

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  • social - fabrica entropia, ou desordem, como sociedade, e que fabrica ordem, como cultura. essa relao inversa que, parece-me, traduz a diferena entre os que chamamos primitivos e os civilizados.

    Os pri,:nitivos fabricam pouca ordem em sua cultura. Ns os chamamos hoje de povos subdesenvolvidos. Mas fabricam pouca entropia em sua sociedade. Em resumo, essas sociedades so igualitrias, de tipo mecnico, regidas pela regra de unanimidade da qual falvamos h pouco. Ao contrrio, os civilizados fabricam muita ordem em sua cultura, como nos mostram o maquinismo e as grandes obras da civilizao, mas fabricam tambm muita entropia em sua sociedade: conflitos sociais, lutas polticas, todas as coisas contra as quais vimos que os primitivos se previnem de maneira talvez mais consciente e sistemtica do que teras-! ----------- -- ---------

    0 grande problema da civilizao foi, portanto, manter uma separa!o. Vimos essa separao estabelecer-se Q!!l a escravido, depois com a servido e em seguida pela formao de um proletariado.

    Mas, como a luta operria tende, em certa medida, a igualar o nvel, nossa sociedade teve de partir em busca de novos nveis diferenciais, com o colonialismo, com as polticas ditas imperialistas, isto , procurar constantemente, mesmo no seio da sociedade ou por submisso de povos conquistados, promover um distanciamento entre um grupo dominante e um grupo dominado; mas essa separao sempre provisria, como em uma mquina a vapor que tende imobilidade, porque a fonte fria se aquece e a fonte quente v sua temperatura abaixar.

    As separaes diferenciais tendem portanto a igualar-se, e a cada vez foi necessrio recri-las: quando isso se tornou mais difcil deruro do grupo socit,fealizaram-se combinaes

    -------

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    mais complexas, como os exemplos que foram dados pelos imprios coloniais.

    Voc me diria ento: inevitvel? irreversvel? Poderia conceber-se que, para nossas sociedades, o progresso e a realizao de uma justia social maior devam consistir em uma transferncia de entropia da sociedade para a cultura. P .... arece que enuncio :rtguma coisa muito abslrat e, apesar disso, somente repito Saint-Simon: que o problema dos tempos modernos passar do governo dos homens administrao das coisas. "Governo dos homens" sociedade (e entropia crescente); "administrao das coisas" ultura

    -e:!;::rJore1m ,;;,

    pe _m .ica _et fJ,ex Apesar disso, entre as socieddes justas do fuu e'

    as sociedades que o etnlogo estuda subsistir sempre uma diferena, quase uma oposio. Elas trabalhariam sem dvida a uma temperatura muito prxima d"o da fs mas umas no plano da sociedade, outras nQJ?fano da cultura:.. isto que exprimimos, ou percebemos de maneira collfu, quando dizemos que a civilizao industrial desumaninte.

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    Georges CHARBONNIER. - Se compreendi bem, nllo pode haver um corte entre os diferentes elementos da populallo, no interior de uma sociedade primitiva. Deduzo que provavelmente sero encontradas diferenas de riquezas, mas esta no a mesma que reina entre ns.

    Claude LVI-STRAuss. - Digamos que ao menos nas que constituem os melhores exemplos, pois repito, h sociedades que no sabemos exatamente como classificar. Elas dependem de uma categoria, pois no tm escrita; e apesar disso, vemos aparecer nelas esboos de explorao econmica. Penso em algumas sociedades indgenas da costa canadense do oceano Pacfico, cujos totens, maravilhosamente esculpidos, tornaram-nas familiares para ns. Essas sociedades praticavam a escravido e mostravam incontestavelmente uma acumulao de riquezas em proveito de uma classe e s expensas de outra. Portanto, necessrio ser prudente e opor no todos os tipos, mas somente as formas extremas.

    G. C. - Em nossa sociedade no se manifesta um tipo de separao particularmente inconcebvel na sociedade primitiva? No se manifestam cortes no interior do grupo, e cortes que no correspondem a uma diferena, a uma distin4o entre as classes no plano econmico?

    C. L.-S. - Que voc quer dizer com isso?

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    G. C. - Parece-me ver que, em um certo nmero de grandes pases, como os Estados Unidos ou a Frana, estabeleceu-se quase um fosso, poderamos dizer, entre a parte do grupo que se consagra verdadeira elaborao da cultura. Essa separao condicionada por nossas formas sociais? Nada permitir suprim-la? indispensvel ao funcionamento de nossas sociedades? Parece-me haver uma desarmonia, um desacordo, que pode ser observado. Tomei como exemplo a Frana e os Estados Unidos, mas penso que em outros pases isso tambm pode ser constatado. Cito a Frana e os Estados Unidos, porque so pases onde penso ver esse desacordo de maneira caracterstica. Tudo parece acontecer como se a conscincia ocorresse para um certo nmero de indivduos e como se os outros fossem completamente desprovidos dela - necessrio dizer claramente --como se a conscincia se refugiasse em uma minoria de indivduos, como se o conhecimento houvesse escapado a alguns, como se estivesse longe demais, complexo demais; mas parece-me ser, talvez, uma forma simplista de explicar as coisas.

    C. L.-S. - 'Il'ata-se muito mais de especializao que de hierarquizao, e parece-me que, nas sociedades indgenas, encontraramos exemplos de uma e de outra. claro, so sociedades onde a totalidade da populao participa - de maneira bem mais plena e completa - da cultura do grupo, o que no ocorre entre ns.

    G. C. - Ora, parece-me claramente que nosso grupo, para tom-lo em seu conjunto - e outros grupos tambm poderiam ser considerados (no quero de forma alguma limitar o exemplo Frana) parece-me que nosso grupo no se reconhece nos que produzem, nos que elaboram nossa cultura.

    C. L.-S. - Sim, compreendo e digo: as duas hipteses' podem acontecer. Voc tem essa participao coletiva na cultura, sob a forma de grandes cerimnias religiosas, festas

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    ou danas, que ocupam um lugar considervel na vida das sociedades que chamamos primitivas: tagto ou mais que as atividades dedicadas produo. Ento os sblos, os scerdotes, os lideres cerimoniais so a encarnao, o exemplo de um modo de vida, de um tipo de conduta, de uma forma de compreender o universo, que so os do grupo em sua totalidade; e estamos verdadeiramente no oposto da situao que voc descreve em nossas sociedades. Mas consideremos outros casos, como por exemplo os das castas de ferreiros nas sociedades africanas, ou em algumas outras sociedades do tipo pastoral: os ferreiros tm relao no com os animais e a vegetao, mas com o minrio que est no interior da terra e com o fogo; so detentores de um saber e de tcnicas que dependem de uma ordem diferente das do grupo. Em conseqncia, destina-se-lhes uma posio particular, feita ao mesmo tempo de respeito e temor, de admirao e hostilidade e que, parece-me, assemelha-se ou tende a assemelhar-se posio dada a alguns especialistas em nossas sociedades contemporneas.

    G. C. - Mas com vontade de faz-los desaparecer, ou admitindo perfeitamente sua presena e a necessidade dela?

    C. L.-S. - Oh! Com sentimentos extremamente ambguos; fiquei particularmente surpreso lendo em jornais - pois no vi o texto original - os resultados de uma pesquisa recente, feita nos Estados Unidos, junto juventude dos dois sexos, a fim de precisar a imagem que os adolescentes tm do "sbio" (e, bem entendido, na poca atual, o sbio o fsico nuclear). Ora, parece-me que essa imagem e as atitudes correspondentes associavam uma espcie de temor e repulsa (as garotas afirmavam que jamais se casariam com um homem de cincia) a uma admirao quase mstica e religiosa. Reencontramos a atitudes muito vizinhas s que observamos nas sociedades primitivas em relao casta de ferreiros.

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  • G. C. - Peo-lhe que me permita uma grosseria: fazer uma citado. Uma coisa me pareceu muito surpreendente: em um conto, Gobineau faz um de seus personagens dizer (referindo-se a um outro): "Ele tinha uma srdida cara de sbio". Penso que a est uma coisa caracterfstica. Ora, Gobineau disse "sbio" e, me parece, no somente se deve entender "sbio", mas ainda "todos os que produzem um modo de pensamento". Creio que preciso entender: artistas, poetas, escritores, enfim todos os que chamamos de "os intelectuais". Parece-me constatar que, em nossas sociedades, eles esto cada vez mais entrincheirados. Eles produzem a cultura, mas o grupo ndo considera que sua cultura seja

    feita por essa minoria. Parece-me que essa minoria rejeitada pelo grupo, e que o corte entre grupo e intelectuais do grupo muito mais importante, muito mais irredutvel do que o corte que pode manifestar-se entre as classes sociais, que talvez no plano econmico tendam a uniformizar-se.

    C. L.-S. - Com muita certeza esse segundo corte no da mesma natureza.

    G. C. - Esse segundo corte condicionado por nossas formas sociais? uma condiOo obrigatria de funcionamento de nossa sociedade?

    C. L.-S. - Neste ponto devo desculpar-me, e dar prova de incompetncia; no posso lhe fornecer uma resposta, porque todos os problemas que dizem respeito ao papel, ao lugar do artista, nas sociedades que chamamos primitivas, e vejo que voc pensa muito mais no artista ...

    G. C. - Oh ntlo, nt/o! De modo algum!

    C. L.-S. - Oua, ainda assim h uma grande diferena, que um sbio, se um bom sbio, est praticamente seguro de fazer carreira.

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    G. C. - O artista tambm faz carreira. Ele se insere tambm. Mesmo Baudelaire se insere.

    C. L.-S. - Bom, no completamente, enquanto era vivo.

    G. C. - Penso que a insertlo muito maior do que em geral se quer dizer.

    C. L.-S. - Voc me pede para fazer uma comparao, mas eu no seria um etnlogo se no me impedisse de raciocinar sobre a situao de uma sociedade particular, no caso a nossa, com a base de observaes provindo de outras sociedades.

    Alm disso, no sabemos muito bem o que um artista, ou o que poderamos considerar como um sbio, nas sociedades que chamamos primitivas. Tudo o que sabemos que as atitudes podem ser extraordinariamente variadas. Se me refiro s sociedades da costa do Pacfico, no Canad, que citei h pouco, encontramos artistas especializados -encontrvamos, pois no existem mais - conhecidos por seus nomes, desfrutando uma reputao, aos quais os nobres encomendam esculturas ou pinturas que s eles tinham meios de pagar, to caros quanto podem ser, em nossa poca, um Matisse ou um Picasso, no em dinheiro, mas em escravos ou em bens materiais. Compare essa situao com a que poderamos observar em outra regio, que foi contudo um dos maiores centros de produo artstica: a bacia do Sepik na Nova Guin. A existem ainda sociedades - mas no todas - onde todo o mundo escultor; os homens esculpem nas horas vagas; com desigualdade de talento, sem dvida, mas todos so capazes de produzir os objetos que colocamos nos museus. Portanto voc v que as mais diferentes formas de produo esttica podem ser observadas.

    G. C. - Esclarecendo-se que o progresso, que para ns parece ter um sentido, enfim, ao qual atribumos um sentido,

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    ndo o tem no interior das sociedades que voc estuda.

    C. L.-S. - Concordo.

    G. C. - O progresso no lhes diria nada.

    C. L.-S. - Certamente no. Cada uma dessas sociedades considera que seu fim essencial, sua finalidade ltima, perseverar em seu ser, continuar tal e qual os ancestrais a fizeram assim; no h necessidade de outra justificativa; "ns sempre fizemos desta maneira", a resposta que recebemos indefectivelmente, quando perguntamos a um informante o motivo de tal costume ou de tal instituio. No h outra justificativa seno sua existncia. A legitimidade vem de sua durao.

    G. C. - Portanto, enquanto o progresso, em nossas sociedades, significa evolutlo, mudana, e nada alm ...

    C. L.-S. - Sim, mas porque nossas sociedades funcionam sobre diferenas de potencial, sobre separaes internas.

    G. C. - Mas enttlo, em nossas sociedades, o progresso ndo est inteiramente determinado? Ele ntlo escapa inteiramente ao homem? Ndo inteiramente funo do desenvolvimento dos conhecimentos, e, por conseqncia, inteiramente determinado pelo conhecimento? No h um determinismo 2 interno no conhecimento e nos mtodos de conhecimento < que faz com que nOo possamos influir em nada?

    C. L.-S. - Parece-me ser esse o caso, pois se nos pedissem para nos declararmos abertamente a favor ou contra alguns progressos - e o problema coloca-se neste momento com o desenvolvimento da energia atmica - ao menos concebvel que um grande nmero de homens diga: "No, melhor no ter isso, melhor ficar no estado atual". O fato de possuir um automvel no me parece ter uma

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  • vantagem intrnseca; uma proteo indispensvel em uma sociedade onde muitas outras pessoas tm um automvel; mas, se pudesse escolher, e se todos os meus contemporneos quisessem renunciar tambm, com que alvio levaria o meu carro ao ferro velho!

    G. C. - Bem sei que me distancio da antropologia, mas a questo que eu, nilo especialista, que eu homem, fui levado a me colocar: Como o homem poderia intervir no que me parece ser um processo invencfvel que no depende do conhecimento? Penso, por exemplo, em todas as posies que habitualmente se consideram como de generosidade. So sempre vs, sempre completamente inteis. sempre um progresso econmico ou tcnico que permite conquistar 1 uma posilfo que a generosidade humana reivindicava anteriormente mas que nOo poderia jamais ter conquistado por si prpria. Com efeito, o estabelecimento de um mercado em determinado lugar que vai permitir s pessoas dispor de tais bens dos quais tinham necessidade, mas, enquanto as condies de estabelecimento do mercado nOo so realizadas, podem reivindicar esse bem em nome dos direitos do homem; nunca, jamais, algum os far se beneficiar disso, e este raciocfnio pode ser transposto para todos os campos.

    C. L.-S. - Voc no acredita que essa espcie de impotncia do homem diante dele mesmo se ligue, em ampla medida, enorme expanso demogrfica das sociedades modernas? Pode-se coC'eb'er que soc1eda pequenas, pequenos grupos compostos de algumas dezenas de milhares de pessoas, e no limite de algumas centenas de milhares, possam refletir sobre sua condio e tomar decises conscientes e amadurecidas para modific-la. A incapacidade de que padecemos est ligada, me parece, extraordinria massa humana no seio da qual vivemos, pois nem mesmo estamos sob o regime de uma civilizao nacional, tendemos cada vez mais a uma civilizao mundial ou quase mundial, e esta nova ordem

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    de grandeza, esta mudana de escala nas dimenses da sociedade humana que a torna incontrolvel.

    G. C. - Sim, mas me parece que, apesar de esse crescimento demogrfico, em certa medida, multiplicar os poderes, os problemas continuam a ser pensados por um certo nmero de pessoas e que, quaisquer que sejam as dificuldades que voc levante, estas no devem ser consideradas como objeto nico do debate.

    C. L.-S. - No posso lhe propor uma resposta; alis, penso que ningum poderia lhe propor uma resposta, e o etnlogo menos que qualquer outro. Em seu esforo para descobrir a diferena entre as sociedades que estuda e as outras, alm da presena ou da ausncia da escrita, alm da presena ou da ausncia da categoria histrica como um modo indispensvel de a sociedade em questo conhecer a si prpria ... no quero dizer que as sociedades primitivas no tm passado, mas que os membros dessa sociedade no sentem a necessidade de invocar a categoria da histria; para eles, esta vazia de sentido, pois na medida em que uma coisa nunca existiu, essa coisa ilegtima a seus olhos, enquanto que para ns o contrrio.

    G. C. - O contrrio.

    C. L.-S. - Bom, necessrio ainda fazer ntervir uma outra categoria. a existncia, no nvel da sociedade, de relaes interpessoais. Os pequenos efetivos dessas sociedades fazem com que, com efeito, ou em todo caso em direito, seja possvel a todos os membros do corpo social se conhecerem mutuamente, enquanto que acima de um certo nmero populacional isto se torna manifestamente impossvel.

    G. C. - Pode-se substituir "conhecer" em nossas sociedades por "admitir". Poderia-se manter em nossas sociedades um tipo de "conhecimento" a priori, onde admito o prximo

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    do mesmo modo que um outro qualquer que eu conhea melhor que ningum.

    C. L.-S. - Bem sabemos que h uma diferena, no somente de grau, mas de natureza, entre a gesto de um conselho municipal e a gesto de um parlamento; no primeiro caso as decises no so tomadas principalmente em funo de um contedo ideolgico: so tambm fundamentadas no conhecimento do que pensam Pedro ou Paulo, e sobretudo do que eles so concretamente. Podem se apreender condutas humanas de maneira global. claro que nilaelaslMb"m em . . jg; ms -smr intttt>retveis pela histria de cada membro da pequena comunidade, sua situao familiar, sua atividade profissional, e tudo isso se torna impossivel alm de um certo nmero populacional. o que denominei anteriormente de nveis de autenticidade. Mesmo em nossa

    -sciedae;- claro, existem nveis e autenticidade; so grupos institucionais ou no, onde os indivduos tm um conhecimento concreto mtuo. Mas os nveis de r'ia

    multiplicam-se: todos aqueles onde os 'mf mlS'ssO separados ou agrupados por intermedirios ou retransmissores, quer se trate de rgos ciiiUrustrativos, quer de inflorescncias ideolgicas. Enfim, se o etnlogo ousasse permitir-se desempenhar o papel de reformador e dizer: "Eis aqui para que nossa experincia de milhares de sociedades lhes pode servir, a vocs, homens de hoje'', ele preconizaria sem dvida uma descentralizao em todos os anos, de forma que o maior nmero de atividades sociais econmicas se realizassem nesses nveis de autenticidade, onde os grupos so constitudos por homens que tm um conhecimento concreto recproco.

    G. C. - Esse conhecimento concreto recproco nOo pode, em certa medida, ser pmJ!!_nsaqg_pJl./.g __ {aborao de um mito do homem que se1a vlido para todos e que permita rriWntrar uma autenticidade too vlida quanto possfvel?

    .... _ .... _ ..... _ __..,,... _ _ .... ___ . . --- . "

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  • C. L.-S. - Mas h uma contradio entre os termos! Parece-me que as palavras "mito" e "autenticidade" destoam entre si.

    G. C. - Compreendo. por isso que disse "compensar em certa medida".

    C. L.-S. - Mas no! O mito a inautenticidade radical. Defini essa autnticicf.! .QO --!.g!t . ,elo do c os indivduos tm mutuamente, msiia Tmais a6stiato que um mlto;-ao invers i:fo"que t>Omt precer rmfo-clemprtica proposies que, quando queremos analis-las, exigem de nossa parte um recurso lgica simblica. No de forma alguma sem razo, se bem que seja um uso no tcnico do termo, em suma, que mito e mistificao sejam palavras que se paream tanto . . .

    G. C . - Que se aproximam, sim. Mas enfim, independentemente do grau de descentralizao ao qual se possa chegar, levando em conta o crescimento constante dessas massas humanas, ntio h modo de prever o estabelecimento das relaes concretas das quais voc fala. Seria, portanto, necessrio substitu-las por alguma coisa.

    C. L.-S. - Sim, mas o papel do etnlogo no esse. Eu lhe fao uma enorme concesso (e no gostaria de faz-la por escrito; a gente se permite, falando, exprimir muitas coisas que no escreveria), tentando estender a mo ao reformador, mas jamais conseguiria tocar-lhe alm da ponta ,.. dos dedos. O que possvel? No sei. Pela fora das coisas, (

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    os etnlogos encontram-se como os indignos depositrios ,- de uma imensa experincia sociolgica e hosfica, a das s'5C1eaades que chamamos primitivas ou sem escrita, que esto em vias__E.xtinguir- e onde nosso papel foi d:_ preservr_ tugQ...o. .que .. pod@ $g.""E se voce me perguntar: l ensinamento tirou disso?"' eu lhe ofereo esta mesma experincia pelo que ela vale. Agora, este ensinamento pode servir para o homem de hoje, ou de amanh? No sei.

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    A ARTE E O GRUPO

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    Georges CHARBONNIER. - Que diferena o etnlogo foi levado a constatar entre a arte das sociedades ditas primitivas e a arte no "moderna", mas "dos tempos modernos"?

    Claude LVI-STRAUSS. - Nessa categoria um pouco vaga dos tempos modernos, temos que inicialmente fazer uma distino. Um etnlogo se sentiria perfeitamente vontade, e em um terreno familiar, com a arte grega anterior ao sculo V e mesmo com a pintura italiana, at a Escola de Viena. Onde o terreno comearia a ceder sob nossos ps, onde impresso d estranheza apareceria, seria somente, de uma parte, com a arte grega do sculo V, d outra, com a pintura italiana a partir do Quattrocento. E com essas formas relativamente "modernas", cada uma em sua dimenso histrica, que necessrio tentar a comparao entre a arte ou as artes primitivas.

    Isto posto, parece-me que a diferena diz respeito a duas ordens de fatos: de uma parte, o que poderamos chamar de individualizao da produo artstica e, de outra, seu carter cada vez mais figurativo ou representativo. E ainda a, gostaria de fornecer uma preciso: quando falo de individualizao da produo artstica, no penso, num primeiro momento, na personalidade do artista, como indivduo e criador. Se bem que tenhamos demorado muito para perceber, o artista possui tambm esses caracteres em muitas sociedades que chamamos "primitivas". Trabalhos

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  • recentes sobre a escultura africana mostram que o escultor um artista, que esse artista conhecido, s vezes em grandes distncias ao seu redor, e que o pblico indgena sabe reconhecer o estilo prprio de cada autor de mscara ou esttua. Com a arte dos tempos modernos, iria tratar-se de uma individualizao crescente, no do criador, mas da clientela. No mais o grupo em seu conjunto que espera que o artista lhe fornea alguns objetos feitos segundo cnones prescritos, mas amadores - to bizarro quanto o termo possa parecer, em uma comparao com sociedades to diferentes da nossa - ou grupos de amadores.

    G. C. - A arte est reservada aos amadores, em nossa poca, por muitas razes. Primeiramente, h um corte no interior do grupo, uma parte dele se desinteressa total ou parcialmente pela obra de arte, s admitindo formas degradadas. Mas h tambm uma questo econmica que se coloca: a obra de arte , em nossas sociedades, uma coisa muita cara, e por conseguinte, no acessvel a todos. Pode-se constatar isso em uma sociedade primitiva, ou isso jamais acontece? Na sociedade primitiva todos tm acesso pessoal arte?

    C. L.-S. - Isso depende do caso. H certas sociedades primitivas onde se manifestam os mesmos fenmenos sociais e econmicos aos quais voc fez aluso, onde os artistas criam para pessoas ou grupos ricos que lhe pagam extremamente caro, e que podem mesmo amealhar um grande prestgio pelo fato de monopolizar a produo de tal ou tal artista. Isso pode ser encontrado; ainda assim, excepcional. Mas voc tem razo ao levantar imediatamente esse problema da hierarquia social, pois creio que iremos reencontr-lo aqui, como o havamos, outro dia, encontrado a propsito da noo de progresso e do lugar da histria. Tnhamos dito que a histria uma categoria interior a certas sociedades, um modo segundo o qual as sociedades hierarquizadas se auto-apreendem, e no um meio no qual

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    todos os agrupamentos humanos se situam do mesmo modo. E vamos reencontrar idias muito vizinhas daquelas.

    Mas no gostaria de me lanar de cabea nesta explicao, pois me parece que, se a aceitarmos sem precaues, ser menos convincente do que se chegarmos nela por um caminho mais longo. Retomo, portanto, o que dizia sobre os dois caracteres: individualizao da produo artstica, vista mais sob o ngulo do cliente que do artista, e carter cada vez mais figurativo ou representativo das obras. Ento me parece que, nas artes que chamamos primitivas, sempre h - em razo alis da tecnologia bem rudimentar dos grupos em questo - uma disparidade entre os meios tcnicos dos quais o artista dispe e a resistncia dos materiais que tem para vencer, que o impede, se posso dizer, mesmo se conscientemente no o quisesse (e freqentemente ele o quer), - de fazer da obra de arte um simples fac-similado. Ele no pode ou no quer reproduzir integralmente seu modelo, e se encontra ento obrigado a signific-lo. Em lugar de ser representativa, a arte aparece assim como um sistema de signos. Mas, refletindo, v-se claramente que esses dois fenmenos - de uma parte, a individualizao da produo artstica e, de outra, a perda ou o enfraquecimento da funo significativa da obra -so funcionalmente ligados, e a razo simples: para que haja linguagem, preciso haver grupo. Isto intrnseco, a linguagem ...

    G. C. - Sendo constitutiva .. .

    C. L.-S. - . . . um fenmeno de grupo, constitutiva do grupo, s existe pelo grupo, pois a linguagem no se modifica, no se perturba vontade. No chegaramos a nos compreender se formssemos, em nossa sociedade, uma quantidade de pequenas capelas, cada uma das quais com sua linguagem particular, ou se nos permitssemos introduzir em nossa linguagem perturbaes ou revolues constantes,

    como as que assistimos no domnio artstico, de alguns anos para c. Quem fala linguagem fala portanto de um grande fenmeno, conjunto interessante de uma coletividade, e sobretudo um fenmeno de uma muito relativa, mas mesmo assim grande, estabilidade.

    As duas diferenas que notamos h pouco so portanto as duas faces de uma mesma realidade. medida que um elemento de individualizao se introduz na produo artstica que, necessria e automaticamente, a funo semntica da obra tende a desaparecer, e ela desaparece em proveito de uma aproximao cada vez maior do modelo que se procura imitar, e no mais somente significar.

    Isto posto, estou pronto a voltar s consideraes sociolgicas que voc havia citado. Introduzimos uma relao entre a arte e a linguagem, ou ao menos com os diferentes sistemas de signos. Ora, j havamos colocado esse problema a propsito da escrita. Quando perguntamo-nos qual grande fenmeno social a apario da escrita se encontra ligada, sempre e em todos os lugares, concordamos, creio, que a nica realidade concomitante foi o aparecimento de fissuras, de clivagens, correspondendo a regimes de castas ou classes, pois a escrita surgiu em seus primrdios como um meio de submisso de homens a outros homens como um meio de comandar homens, e de apropriar-se das coisas.

    Ora, talvez no seja fortuito que a transformao da produo artstica tenha acontecido em sociedades com escrita - no digo que fosse um fenmeno novo para a Renascena, mas o que era original, pelo menos, era a inveno da imprensa, isto , a mudana de ordem de grandeza do papel da escrita na vida social - e, em todo caso, duas sociedades, a Grcia ateniense e a Itlia florentina, onde as distines de classe e de fortuna tomam um relevo particular; em suma, nos dois casos, tratam-se de sociedades onde a arte se torna, em parte, coisa de uma minoria que

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  • nela procura um instrumento ou uma forma de desfrute ntimo, muito mais do que aconteceu nas sociedades que chamamos primitivas e que sempre acontece em algumas delas, isto , um sistema de comunicao, funcionando na escala do grupo.

    G. C. - O que fica muito claro, que em nossas sociedades todos os artistas so unnimes em deplorar a ausncia de difuso de suas obras nas classes ditas populares. E, ao mesmo tempo, tudo fica no plano da lamentao vagamente expressa.

    C. L.-S. - Mas s pode acontecer isso, pois no depende da vontade de todos esses artistas, nem de um nico, que uma situao histrica que levou sculos para se produzir mude bruscamente. Tudo o que fazemos constatar um estado de fato que no est em nosso poder mudar deliberadamente.

    G. C. - Mas ento, onde encontrar as causas da ruptura? No grupo ou em uma mudana da funo da arte, ligada a outros fenmenos?

    C. L.-S. - Penso que podemos encontr-las em urna evoluo geral da civilizao, que no aconteceu de uma s vez, pois discernimos perodos de recorrncia. A arte, parece-me, perdeu contacto com sua funo significativa na estaturia grega, e tornou a perd-la na pintura italiana da Renascena. Mas se poderia dizer at certo ponto que so coisas que se esboam tambm em outras sociedades, provavelmente j na estaturia egpcia, em menor grau que na Grcia; talvez tambm em um perodo da estaturia assria e, finalmente, em uma sociedade que dispensa etnlogos, apesar de seus pontos comuns com as que acabei de citar: o Mxico pr-colombiano. Ora, sem dvida no por acaso que penso no Mxico pr-colombiano evocando nuanas da produo esttica, dado que o Mxico tambm

    foi uma sociedade com escrita. Parece-me que a escrita desempenhou um papel muito profundo na evoluo da arte em direo de uma forma figurativa; a escrita ensinou aos homens que era possvel, atravs de signos, no somente significar o mundo exterior mas apreend-lo, tomar posse dele. Eu no teria a ingenuidade de pretender que uma esttua grega seja um fac-similado do corpo humano. Em um sentido, ela tambm fica distanciada do objeto; como no caso de uma esttua africana, temos signos, se bem que em um grau menor. A diferena no se encontra somente a, mas tambm nas atitudes do autor e do pblico. Parece-me que na estaturia grega, ou na pintura italiana da Renascena, ao menos a partir do Quattrocento, existe, em relao ao modelo, no somente esse esforo de significao, essa atitude puramente intelectual, que to surpreendente na arte dos povos que chamamos primitivos, mas quase - parece que profiro um paradoxo - uma espcie de concupiscncia de inspirao mgica, pois repousa na iluso de que se pode no somente comunicar-se com o ser, mas tambm apropriar-se dele atravs da efgie. o que eu chamaria de "possessividade em relao ao objeto", o meio de se apoderar de uma riqueza ou de uma beleza exterior. nessa exigncia vida, essa ambio de capturar o objeto em benefcio do proprietrio ou mesmo do espectador, que me parece residir urna das grandes originalidades da arte de nossa civilizao.