chaia, miguel. cinema, político desde o nascimento

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Neamp Aurora, 5: 2009 www.pucsp.br/revistaaurora 7 Cinema: político desde o nascimento Miguel Chaia * Se para alguns existe uma linha tênue na relação entre cinema e arte, para muitos são bastante estreitos – senão estruturais – os vínculos entre cinema e política. Inúmeros indícios e fortes evidências podem ser percebidos tanto nas construções teóricas para a abordagem do cinema quanto nas produções cinematográficas ao longo do tempo. Enquanto Walter Benjamin entende que o cinema é um tiro certeiro no inconsciente, Jean- Luc Godard afirma que o importante não é o cinema político, mas sim como fazer cinema político. Diferentes perspectivas, originadas em distintas situações problematizam a produção cinematográfica: se, com base em Gilles Deleuze, o cinema pode ser pensado como uma “máquina de guerra” (no sentido de afrontar valores e propiciar experimentos estéticos mais próximos da vida), para o ator Michel Picolli, os filmes são, paradoxalmente, contrapontos ao mundo midiático em que vivemos (no sentido de expressar as possibilidades da liberdade frente à sociedade do ordenamento). Simultaneamente à reflexão e sistematização do conhecimento sobre o cinema, as produções cinematográficas também sustentam a idéia da forte dimensão política dessa forma audiovisual. Afinal, são tão políticos os filmes produzidos pelo “cinema de sistema” de Hollywood, quanto os filmes realizados pelo “cinema de autor”; são políticos os filmes do “cinema novo”, do dito “cinema marginal”, da atual onda de documentários nacionais, e mesmo os filmes da “chanchada” produzidos em décadas passadas no Brasil. Assim como a dimensão sócio-política está presente nas recentes produções de audiovisuais, ela também caracterizou a origem do cinema, que nasce no final do século XIX, sendo que em 1895 ocorre a sua primeira exibição pública, como conseqüência da Revolução Industrial. Este salto tecnológico de suporte e linguagem deu-se no interior da modernidade, configurada em uma sociedade sensível às mazelas sociais e que experimentava um crescente processo de produção e consumo em massa. * Professor do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC/SP.

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CHAIA, Miguel. Cinema, Político Desde o Nascimento.

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  • Neamp

    Aurora, 5: 2009 www.pucsp.br/revistaaurora

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    Cinema: poltico desde o nascimento Miguel Chaia*

    Se para alguns existe uma linha tnue na relao entre cinema e arte, para muitos

    so bastante estreitos seno estruturais os vnculos entre cinema e poltica. Inmeros

    indcios e fortes evidncias podem ser percebidos tanto nas construes tericas para a

    abordagem do cinema quanto nas produes cinematogrficas ao longo do tempo.

    Enquanto Walter Benjamin entende que o cinema um tiro certeiro no inconsciente, Jean-

    Luc Godard afirma que o importante no o cinema poltico, mas sim como fazer cinema

    poltico. Diferentes perspectivas, originadas em distintas situaes problematizam a

    produo cinematogrfica: se, com base em Gilles Deleuze, o cinema pode ser pensado

    como uma mquina de guerra (no sentido de afrontar valores e propiciar experimentos

    estticos mais prximos da vida), para o ator Michel Picolli, os filmes so,

    paradoxalmente, contrapontos ao mundo miditico em que vivemos (no sentido de

    expressar as possibilidades da liberdade frente sociedade do ordenamento).

    Simultaneamente reflexo e sistematizao do conhecimento sobre o cinema, as

    produes cinematogrficas tambm sustentam a idia da forte dimenso poltica dessa

    forma audiovisual. Afinal, so to polticos os filmes produzidos pelo cinema de

    sistema de Hollywood, quanto os filmes realizados pelo cinema de autor; so polticos

    os filmes do cinema novo, do dito cinema marginal, da atual onda de documentrios

    nacionais, e mesmo os filmes da chanchada produzidos em dcadas passadas no Brasil.

    Assim como a dimenso scio-poltica est presente nas recentes produes de

    audiovisuais, ela tambm caracterizou a origem do cinema, que nasce no final do sculo

    XIX, sendo que em 1895 ocorre a sua primeira exibio pblica, como conseqncia da

    Revoluo Industrial. Este salto tecnolgico de suporte e linguagem deu-se no interior da

    modernidade, configurada em uma sociedade sensvel s mazelas sociais e que

    experimentava um crescente processo de produo e consumo em massa.

    *Professor do Departamento de Poltica e do Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais e pesquisador do Ncleo de Estudos em Arte, Mdia e Poltica da PUC/SP.

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    Aurora, 5: 2009 www.pucsp.br/revistaaurora

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    O cinema enquanto meio propiciado pela reprodutibilidade tcnica volta-se a

    pequenas platias e gradativamente a maiores pblicos, constitudos neste incio por

    trabalhadores, comerciantes, profissionais liberais, desocupados e migrantes originados no

    campo e no exterior. Talvez pela caracterstica da reproduo tcnica e pela platia

    convocada nas ruas, tenha nascido a impresso do cinema como fenmeno que no

    pudesse ser includo na categoria arte, mesmo porque as projees em residncias da

    burguesia foram acontecimentos assustadores, dada a facilidade de incndio do celulide,

    composto por nitrato de potssio, facilmente inflamvel. Assim, se o cinema se afasta dos

    sales dos palacetes, ele encontra abrigo em salas de exibio pblicas. Ao longo do

    tempo expandem-se os locais de projeo, aumentando o nmero de espectadores

    passeantes das ruas, crescendo tambm a quantidade de produo de filmes.

    Neste dinmico processo inicial de tcnicas e espaos de exibio, ocorrem

    simultaneamente as invenes de linguagem. Alm das primeiras experincias de Thomas

    Edison que exibia de forma restrita imagens documentando a realidade e pequenos

    esquetes, sero os irmos Lumire os primeiros a ampliarem as exibies pblicas.

    Engendram-se assim duas matrizes cinematogrficas, desta inveno da nova linguagem.

    Os irmos Lumire, mesmo produzindo pequenas apresentaes, priorizaram o

    documentrio, captando imagens em lugares remotos e registrando o cotidiano de

    trabalhadores, filmando em portas de fbricas e nas ruas. Mlis, por sua vez, delimita o

    territrio da fico criando imagens para contar histrias e inicia a narrativa ficcional.

    Esto fundamentados, ento, os campos do documentrio e da fico no cinema que

    passaro a estabelecer complexas relaes entre si, tendendo a levar ao desaparecimento

    as fronteiras entre estas duas formas de filmar. O cinema tem a iluso do tempo e o

    movimento como aspectos constituintes da sua linguagem, que passa a se desenvolver

    com rapidez, seja no mbito da tecnologia, seja experimentalmente.

    Essas duas matrizes pioneiras conduzem a D. W. Griffth, estruturador da

    linguagem cinematogrfica clssica, que com o O Nascimento de uma Nao (1915) e

    Intolerncia (1916), reafirma profundamente a dimenso poltica do cinema. Essas duas

    pelculas abordam temas de forte cunho poltico, tendo como suporte no apenas a

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    inveno da forma-linguagem, mas tambm uma especfica e articulada viso de mundo

    do seu autor. Passa a estar em jogo a maneira de fazer cinema poltico.

    Esta origem, delineada pelos irmos Lumire, Mlis e Griffth, foi marcada pela

    presena das vertentes social e poltica. A partir de ento, essa dimenso scio-poltica

    desdobra-se, aflorando com grande potncia em vrios momentos da histria

    cinematogrfica: Vertov, Chaplin, Eisenstein, Rossi, Roselini, Welles, Godard, Glauber,

    Pontecorvo, Sganzerla, Spike Lee, Babenco, Copolla, Scorsese, Reinchenbach, os irmos

    Salles, Brant, Sacramento... e continua uma interminvel lista de realizadores de filmes...