chad oliver - que viagem!

Upload: adsobotano

Post on 05-Apr-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    1/14

    1

    O velho estava sentado em um quarto a prova de som. Vesa-se elegantemente com roupa de equeta, embora no momento -vesse prescindido da capa, e seus dedos bem feitos baam na bor-da gelada do seu copo de coquetel, marcando o compasso.

    Ele se chamava Theodore Pearsall, fato importante, j que eraum dos homens mais ricos do mundo. Contudo o dinheiro no lhe

    interessava; era somente um meio para alcanar um m.

    Estendeu a plida mo rosada e fez um ligeiro ajuste, acio-nando um dos vinte e dois botes do brao da sua cadeira, um es-pao muito curto para a esquerda.

    - Sintoniza esse aparelho, Dippermouth! - disse Theodore gri-tando. Dippermouth obedeceu.

    Um tape reluzente, que nha msicas executadas h qua-se duzentos anos atrs, encaixou-se no seu lugar sob a cobertura

    protetora de plsco transparente. Alimentando o brilhante equi-pamento, a msica surgiu do alto-falante de ultra high-delity queabarcava toda uma parede.

    Louis Armstrong, claro. Uma das boas e velhas gravaes, talcomo o prprio Satchmo costumava dizer: Potato Mead Blues,

    Que viagem!

    Chad Oliver

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    2/14

    2

    executado pelos Hot Seven por volta de 1927, quando Louis tocavarmemente seu trompete vibrante.

    Pearsall fechou os olhos e sorriu. Todo seu rosto cou sereno.Seu sapato lustroso baa no grosso tapete. Destacava-se o clarinete

    de Johnny Dodd e os maravilhosos toques de arremate do trombo-ne de Kid Ory.

    - Que dias aqueles! - murmurou Pearsall, cheio de sasfao.Agora sena-se completamente perdido.O alto-falante recriava sem parar o passado e os integrantes

    legendrios voltaram a tocar: o invenvo sax soprano de Sidney Be-chet, os contrapontos entre King Oliver e Lile Louis, e Bix, o extra-

    ordinrio Bix, soprando aquelas notas to puras e limpas como agua de um manancial, que destroavam o corao...

    Alm disso, Jelly Morton expressando no canto o seu gnioe seu desespero: Poderia estar aqui sentado mas a milhas de dis-tncia.

    Poderia estar aqui sentado mas a milhas de distncia...A grossa porta se abriu e fechou-se de vez produzindo um

    rudo dilacerante. Pearsall voltou-se, achando que seria um rob;mas no era... pelo menos no de todo.

    Era Laura, sua mulher.Trazia sua habitual expresso de mulher crucicada.- No caso de que tenha esquecido, Theodore, que esta noite

    daremos uma festa e disse isto acentuando bem as palavras, - omenos que devias fazer era subir e conversar com nossos convida-dos.

    Pearsall considerou isto em silncio.- No podes interromper essa msica quando eu estou falan-

    do? Ests bbado, Theodore?- Ainda no foi a resposta.E a voz de Jelly Roll retornou do longo silncio dos sculos.Olhou para a esposa sem denotar prazer. Claro, Laura estava

    magnicamente vesda, toda em seda e franzidos, com sua guraadmiravelmente conservada. Theodore se perguntou se alguma veza nha amado.

    - Ento, vem?

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    3/14

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    4/14

    4

    Um bonito cavalheiro, com um po de gravidade desespera-da, imitava um foguete do espao exterior.

    Pearsall pegou o copo, botou a azeitona na boca e forcou-se com um trago. A seguir, exibiu um sorriso transparentemente

    falso e entrou.Pensou que aquela era precisamente o po de festas que os

    lmes que promovem escndalos costumar reproduzir. S UM HE-DONISTA, THEODORE PEARSALL? O QUE SE SABE SOBRE O BONECOQUE PEARSALL TEM EM SUA SALA? UM TEDDY, UM URSO TEDDY,UM URSO DE BRINQUEDO?

    O que nos lmes nunca se proclamava era que tudo no pas-

    sava uma reunio estrepitosamente aborrecida.Uma mo perfumada roou nele.- Finalmente te encontrei, homem simpco! Vamos ser s-

    cios!Era Jenny, esposa do vice-presidente de uma das companhias

    que Pearsall possua. Havia sido bonita em seu tempo e connua-va vesndo-se como uma sereia. Infelizmente era incuravelmente

    vivaz.- Muito bem! - disse Pearsall, deixando-se conduzir para onde

    estavam as pessoas. Em sua cabea repea-se uma cano muitovelha:

    Meu Deus! Prero beber gua com barro, dormir em umtronco oco... Era Big Gate, Jack Teagarden. Nascido no Texas e cria-do no Tenesse... Uma noite mais.

    Distrado, alisou a cabea de Jenny e cumpriu com sua obriga-o em uma parda interminvel de charadas.

    Mais tarde, logo que os convidados se foram e Laura se dirigiuao seu quarto, Pearsall desceu apressadamente sua abbada prova de som e fechou a porta depois de entrar.

    Tinha a mente completamente limpa, apesar do gin, e estavanervoso como um menino ao ponto de pescar sua primeira truta

    no riacho.

    -Williams?- Oh, senhor Pearsall! Pensamos que nha nos esquecido.- Isto no seria fcil respondeu ele, olhando furvamente o

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    5/14

    5

    local para tranquilizar-se. - Est tudo pronto?- Pronto e esperando, senhor. E, como eu disse a mim mesmo,

    foi um trabalho excelente.- Bom Williams, depressa. Meus assuntos aqui esto todos

    em ordem e j constui um fundo de depsito para que no faltenada a Laura. Estou pronto para sair.

    - Agora?- Agora. Esta noite. O mais cedo possvel.- Como queira senhor. Ah! H um pequeno detalhe...- Sim?- As garotas, tal como o senhor indicou, sero reais e trabalha-

    ro em turnos. Um excelente... hum... colorido local. Agora, bem,a Patrulha esteve averiguando coisas no escritrio. Ao que pare-ce, pensam que, enquanto as meninas esverem ali... to perto dacasa, como dizem... se perguntavam se seria permido aos guardasfora de servio... como eu poderia expressar-me... fazer uso das ex-traordinrias facilidades disponveis...

    Pearsall estalou os dedos.

    - Excelente! - exclamou, acompanhando a palavra com umsorriso. - Extraordinrio!

    - No entendo.- Quero dizer que maravilhoso. Presumo, naturalmente, que

    o dinheiro se desnar a cobrir os custos do projeto.- No se pode negar que o senhor um homem de negcios,

    senhor Pearsall! precisamente o que pensvamos.

    - E Laura jamais saber onde eu estou?- Pode conar em nossa absoluta discrio, senhor. Em cin-

    quenta anos de servios, nossa rma nunca recebeu uma queixa.- Ento, Williams, que seja esta noite. Ocupe-se. Use a entra-

    da do fundo.- Como queira, senhor. Nosso representante trar o contra-

    to consigo; rogo-lhe que o leia dedamente na viagem. Se puderservir-lhe em alguma outra coisa, para mim ser um prazer.

    - Obrigado, Williams.Interrompeu a ligao. Jamais havia se sendo to animado,

    to anelante. Sorrindo, passeou pelo quarto.

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    6/14

    6

    Botou msica. Muskrat Ramble! Save It Prey Mama!Way Down Yonder in New Orleans!

    Chegaram para busc-lo s quatro da madrugada, muito an-tes que Laura vesse despertado.

    Para o mundo que havia conhecido, ele desapareceu sem dei-xar rastros.

    A nave subiu para o nascer do sol por uma escala de chamas.Atravessou, como uma lana, montanhas de nuvens e depois doazul conhecido do cu, desvaneceu-se e escureceu, e estava no es-pao.

    Pearsall j havia estado antes no espao e aquilo no o encan-tou. Na verdade, as luzes frias das estrelas voltavam a ser bonitascontra sua tela de fundo de veludo e o sol era um glorioso resplen-dor amarelo. Mas era a vida o que chamava Pearsall, toda a vidaque no havia desfrutado, todos os cheiros, os sons, os gozos e asdores de cabea de que havia ouvido falar e sobre os quais havialido, mas que nunca havia experimentado.

    O espao era um innito mar da morte. No para ele.Ainda.O olhar dos seus velhos olhos azuis percorreu o contrato....e sobre a base da mdia de vida aplicvel ao Comprador,

    tal como foi determinada pelos mdicos da Companhia e vericadopelo mdico pessoal do Comprador, a Companhia concorda em ofe-recer, prover e manter dito Projeto de acordo com as especicaes

    do Comprador, at o momento em que dito Projeto j no possa serde nenhuma ulidade para o Comprador, momento no qual o ditoProjeto e a dita Propriedade voltar Companhia para qualqueruso que...

    Leu o resto e assinou.

    Sabia, claro, que os mdicos no podiam calcular com todacerteza a hora exata da morte de um paciente. Existem acidentesque podem matar um homem antes da sua hora, mas desde o anode 2.100 no havia sido registrado nenhum caso de pessoa que

    vivesse mais que sua vida esperada... e desde ento, as tcnicasrelavas a diagnscos e prognscos haviam melhorado. Natural-

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    7/14

    7

    mente, este era um dado que os mdicos estavam proibidos, porlei, de comunicar aos seus pacientes.

    Era melhor no sab-lo.Reclinou-se no assento e fechou os olhos. A fora motriz nha

    sido interrompida e a nave viajava silenciosamente por inrcia, emdireo a Marte e mais alm. No conseguiu dormir nem desejava.No senu pena do que deixava para trs. No nha lhos e o seucasamento com Laura havia sido por simples interesse e nada mais.

    O dinheiro que possua era herdado, em sua maior parte, e nohavia lhe proporcionado felicidade alguma. A prpria Terra era umfssil; em outros mundos aconteciam coisas emocionantes, mas ele

    no reunia as condies exigidas para ir para l.No, se livraria de tudo isto, de tudo isto... e fazia bem. O fu-

    turo era o que importava.

    Um mundo todo seu, seu po de mundo, com seu po degente. O corao martelava em seu peito e seus olhos brilharam.

    Isto no ajuda nada, pensou. No devo sobreexcitar-meTomou dois comprimidos de sonfero e dormiu.

    Antes que ele vesse despertado, a nave havia entrado naseo da Faixa de Asteroides situada entre Marte e Jpiter, que per-tencia Companhia, e comeou a diminuir a acelerao. Afastoudos olhos os cabelos grisalhos e contemplou o espetculo visvelatravs da tela visora. Havia milhares de pequenos mundos suspen-sos no espao, movimentando-se em rbitas calculadas com preci-so.

    Cada mundo era o sonho de um homem converdo em re-alidade, e todos se diferenciavam entre si. Percebeu rumores dealguns deles: em um se desenvolvia um importante acontecimentodesporvo, a cada quatro horas, outro era um paraso de caado-res, com seus velozes riachos e temveis animais, e havia um queera um sonho erco transplantado para a vida...

    A nave acomodou sua velocidade de uma forma vagamentedivisada. Produziu-se um estremecimento ao acoplarem-se ambosos veculos, a eclusa pneumca de um contra a eclusa pneumcado outro.

    - Estamos aqui, senhor disse uma voz.

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    8/14

    8

    Theodore Pearsall cou de p, com os punhos muito aperta-dos e respirando aceleradamente.

    Estamos aqui repeu. E dirigiu-se pornhola.Entrou e a nave j havia se distanciado.

    A principio cheirou: um cheiro de rio, mido e denso. Aspi-rou-o at os pulmes, provando-o, saboreando-o. Pendia sobre acidade como uma nvoa doce e invisvel.

    O Rio.O Velho MississipiEnto ouviu. Seus olhos se nublaram. Msica: clara como

    uma companhia, lquida como o prprio rio, elevando-se no ar

    como uma coisa utuante, viva. Um tremor percorreu sua colunavertebral e ps-se a correr lentamente.

    Quase no viu o velho edicio de madeira com suas torres esuas chamins, no notou nenhuma das pessoas sorridentes comquem tropeou e no prestou ateno alguma incitao sussurra-da que desceu de trs de uma persiana do primeiro andar.

    Comeou a dar voltas entre as duas portas brancas giratrias

    das que costumavam chamar o negcio de Tom Anderson. Estavato perto da msica que poderia estender uma mo e toc-la, masse deteve. Escutou.

    Mais msica. Chegava pela rua.Estava ali, dobrando a esquina. Um carro puxado por uma

    junta de cavalos. Um letreiro no carro que anunciava um baile. Euma orquestra que executava Milneburg Joys. Sem piano, claro;

    somente bateria, guitarra e contrabaixo. Um jovenzinho com o pis-to, sentado em uma caixa. Ao seu lado, um homem de idade to-cava o clarinete. E sentado na borda posterior do carro, os ps ba-lanando, com seu trombone dourado lanando fascas sob o sol...

    Kid Ory.Era mais jovem em quase todas fotograas que se via, embo-

    ra Kid jamais tenha envelhecido realmente. Parecia ter ao redor devinte e cinco anos e era um negro bonito que com a potncia do seutrompete sustentava a orquestra com um duro e rme compassode dois por quatro. Enquanto Pearsall olhava, Ory afastou os lbiosda bocal e gritou-lhe algo em francs.

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    9/14

    9

    Pearsall ruborizou-se; no pode captar as palavras. Mas sorriuentredentes e cumprimentou-o com a mo. Kid abaixou a cabea,replicou com o trompete e arremeteu com os compassos intrinca-dos do Orys Crele Trombone.

    O carro prosseguiu e a msica cou utuando no ar morno emido como uma nervosa pintura que se perdia lentamente no sol.

    Pearsall entrou no negcio de Tom Anderson e aproximou-sedo balco.

    - Senh Theodore Pearsall! - exclamou o homem que aten-dia no balco, com um sorriso de orelha a orelha.

    - Chame-me de Ted disse Pearsall.

    Era a primeira vez que dizia isto. E sena-se bem.- Sim Senh. O que vai tomar?- Usque escocs e gua, por favor.O homem preparou a dose e entregou-lhe. Pearsall meteu a

    mo no bolso para rar dinheiro.- Este no custa nada, Senh Ted. por conta da casa.Pearsall voltou-se, senndo-se melhor do que havia se sen-

    do em muitos anos. Tinha que reconhecer que na Companhia sa-biam fazer as coisas.

    O diretor da orquestra, um negro que Pearsall no reconhe-ceu primeira vista, cumprimentou-o gravemente com uma reve-rncia, bateu no cho com o p e soprou o trompete, procurandoas notas baixas. Tishomingo Blues... Oh, meu Deus! Era Bunk,Bunk Johnson e seus rapazes. Era jazz puro de Nova Orleans, e a

    orquestra inteira tocava, no um grupo de solistas.Pearsall olhava, escutava e bebia seu usque Pensava: Todos

    esto a fora, agora mesmo, me esperando. Louis e Sidney e Bude-dy e Jerry Roll. E Bix, Bix nha que estar ali, embora nunca vesseestado na vida real; para isso so os sonhos...

    Ficou ali um par de horas, contente e feliz e ento foi para seuapartamento, que estava no Bairro Francs. Era simples, mas cmo-do, com uma grande cama de bronze e janelas abertas que davampara a rua. A brisa do rio moveu as cornas e ouviu- se um clarineteque se queixava ao longe.

    Doddes? Fazola, talvez? No importa.

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    10/14

    10

    Junto cama havia um jornal, um verdadeiro jornal, no umteipe. Olhou a data.

    17 de junho de 1917.Se captou o signicado da data, no demonstrou.

    Mas nunca mais nha lido um jornal e deliberadamente per-deu a noo do tempo. Um pisto que parecia cortar a melodia.

    Um trombone, deslizando, atroando, retrocedendo.Um clarinete, um clarinete lrico, fundindo suas notas com as

    deles. Retrocedendo. Trs ritmos que contribuam, impulsionandoa msica, dando-lhe uma base em que sustentar-se: bateria, contrabaixo, guitarra. (Claro que naqueles dias se usava o banjo, mas os

    sonhos so melhores.)Msica viva, msica do corao, msica para afugentar a tris-

    teza. Msica viva tocada por homens que haviam vivido. Msicaviva que no morreria, mas que tampouco voltaria jamais.

    Cu, Utopia, Paraso. Tinha muitos nomes. Era diferente paracada homem. Para Theodore Pearsall, criado em um mundo fcil decertezas e automasmo, isto era tudo quanto ele ansiava, todas as

    pessoas que precisava, toda a felicidade, o riso e a dor. Havia escu-tado a msica uma vez em um museu e ela o chamou.

    Ele respondeu.

    Exigiu dinheiro, tempo, gnios da engenharia. Um pequenoplanetoide entre Marte e Jpiter, com um bolha para reter o ar.Gravidade arcial para que os homens pudessem andar. E a re-construo de Storyville; no toda, mas o suciente.

    A msica era real, no pode ser falsicada. Havia sido execu-tada por homens reais, muito tempo atrs, e gravada em discos.Depois foi recondicionada, gravada em teipes. Nem sequer se po-diam ver os teipes nos trompetes.

    E Louis e Kid e Jelly Roll, e todos os grandes?Robs, claro... ou androides, se lhes dermos seus verdadei-

    ros nomes. Inteligentes. No poderia diferenci-los a menos que seaproximasse muito. Quem olharia de muito perto com toda aquelamsica, aquela bebida e aqueles risos?

    S algumas das garotas eram reais. Nenhum rob seria toperfeito.

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    11/14

    11

    Os homens fazem monumentos diferentes. Pearsall sabia queexisam alguns que se teriam escandalizados pelo que ele fez comseu dinheiro. A maioria no compreenderia. Mas ali encontrou oque desejava: paz e amor e msica e bons momentos para recordar

    por toda sua vida.Era um velho.

    Sabia o que nha importncia e o que no nha. Um homemsabe sempre, se olha para o passado.

    Outros poderiam ir conquistar as estrelas e sem dvida vale-ria a pena.

    Saiu do seu quarto com uma agradvel garota em cada brao

    e um charuto negro na boca. Foi para as luzes e a msica.Em algum lugar do rio escutou-se o apito de um vapor. Pear-

    sall apressou o passo.

    Era quatro de julho, um dia muito importante.Todos sabiam o que havia acontecido em quatro de julho. Foi

    no ano de 1900. Sim senhor.O aniversrio de Louis Armstrong.

    Ted Pearsall o procurou. Ainda era um garoto, ainda estavana adolescncia, mas j podia erguer-se, com seu leno na mo. E apotncia do seu pisto era coisa para ser ouvida.

    Pearsall jantou um sanduche Joor Boy, meio po francs cor-tado no meio, bem cheio de presunto cozido. Tentou levar Satch aorestaurante de Antoine para oferecer-lhe uma comida de verdade,mas o garoto no quis sair do seu feijo com arroz.

    A noite chegou deslizando.Eu gostaria de danar shimmy com minha irm Kate... Creio

    ter ouvido Buddy Bolden dizer...Oh! Estava tudo ali.Basin Street, Canal Street, Burgundy Street.E todos os velhos e respeitveis lugares: o Saloon de Caoba de

    Lulu White, A Casa da Condessa Willie, a de Josie Arlington, ondecobravam cinco dlares. Podia ver tudo no Livro Azul de Tom An-derson, que se vendia por vinte e cinco centavos de dlar, e no qualconstavam as mais famosas casas de m fama... duzentas no total.

    Se consegues um bom homem e no queres o tomem. No

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    12/14

    12

    diga sua amiga o que seu homem pode fazer...E tudo era por conta da casa... ou melhor, das casas.Tudo o que ele amava, os balces das casas, as tardes quentes

    quando o sol se punha, a palmeira no deserto.

    Mas gostaria de poder chutar os Patrulheiros quando vinham cidade. Sempre apareciam quando estavam na vizinhana. Claro,eram rmes como uma rocha e, alm disso, cabeas duras. Mas eramuito bom saber que at os Cadetes Espaciais nham glndulas.

    Todos o consideravam louco.

    Pearsall, de certa forma, pensava o mesmo deles. Agosto, se-tembro, outubro.

    Tenho uma amiga negra, vive sempre na priso. Tenho umadoce amiga negra... O senhor Jelly Lord, tocando seu solo de pia-no como uma orquestra, esmagando King Porter em um bar. Or-questras de metais nas ruas, tocando In Gloryland.

    Pearsall cou acordado at que pode; dormiu quando pde,brio de msica. E logo chegou novembro.

    Novembro de 1917.

    Estava sentado no bar de Tom Anderson quando aconteceu.Durante todo o dia vinha senndo a mudana, mas sem saber

    o que era. Havia tenso no ar como a tenso de uma espera. Nasjanelas assomavam garotas procurando alguma coisa. Um co laul longe, junto ao rio. Longe, em algum lugar, um pisto soluava osblues.

    Sentou-se em sua mesa. Notou o suor nas palmas da mos.

    Que no seja este o dia. Por favor, que no seja este.Mas no era.Um ocial da Patrulha entrou no local e olhou ao redor. Era

    um po importante. Pregou alguma coisa na parede. Alguma coisabranca.

    Um aviso.

    Pearsall no precisou ler. Sabia o que era.Corria o ms de novembro de 1917, quando Storyville nha

    sido fechada, condenada pela marinha. Aquilo foi o m, a poca emque veram que arrematar os mveis das casas da Condessa Willieconseguiram um dlar e um quarto por seu famoso piano branco,

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    13/14

    13

    os dias em que os msicos veram que fazer suas malas e parrpara Chicago, para Los Angeles, rio acima, para qualquer parte.

    Sabe o que signica perder Nova Orleans...Voltava a acontecer. A Patrulha era a Marinha de ento, e es-

    tavam botando cadeado na Terra dos Sonhos.Pearsall no nha medo, mas sabia o que ia acontecer....a Companhia concorda em oferecer, prover e manter o dito

    Projeto... de acordo com as especicaes do Comprador, at o mo-mento em que o dito Projeto j no possa ser de nenhuma ulidadepara o Comprador...

    Sabiam que ele estava morrendo. Os mdicos sabiam de

    tudo. Bem, diabos!Era uma linda e bela forma de faz-lo. No senu pena.O caminho para o cemitrio estava transbordando de gente.Houve muito pranto e muitos gemidos, mas alm de tudo es-

    cutavam a msica. Assim era como aquilo deveria ser, pois at en-to jamais nha havido outra orquestra como esta.

    Estavam l Louis e Bix e Bunk. O trombone de Ory e o de Te-

    agarden. Becket e Dodds e Fazola nos clarinetes. Minor Hall e suabateria abafada com um leno.

    Tocaram a chorosa Fugi como um ave durante todo o cami-nho para o cemitrio, onde os carregadores baixaram o fretro nacova. O pregador disse as palavras.

    Minor Hall rerou o leno do seu tambor.Atacou com os compassos da marcha, o ritmo feliz, e a banda

    alinhou-se a ele. Assim eram feitas as coisas em Nova Orleans: atristeza por um homem ter morrido e logo a alegria por ele ter idose reunir com os santos.

    O que tocavam?

    Tocavam Didnt he ramble.Louis tomou a frente, seguiu-lhe Bix e depois Bunk... Oh!

    Didnt he ramble!Vagueou por toda a cidade.

    At que o aougueiro o segou com sua foice...Tocaram com toda sua alma, tocaram pela lma vez, na mar-

    cha de regresso a Storyville, a terra de sonhos que j estava se es-

  • 7/31/2019 Chad Oliver - Que Viagem!

    14/14

    14

    vaziando.Durante a marcha, enquanto o tom dos clarinetes subia, a

    Companhia pde, ou no pde, surpreender-se ao ver que Louis sevoltava para Bix e dizia:

    - O velho morreu com eslo.Bix inclinou a cabea, concordando.- Foi magnco voltar a tocar disse, e levantou seu pisto em

    direo ao rio.