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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA
NATHAN PASQUETI MACIEL
A CEGUEIRA DELIBERADA E SUA APLICAÇÃO NA ESFERA PENAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
CURITIBA 2019
NATHAN PASQUETI MACIEL
A CEGUEIRA DELIBERADA E SUA APLICAÇÃO NA ESFERA PENAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito, do Centro Universitário Curitiba. Orientador: Prof. Dr. Guilherme Oliveira de Andrade
CURITIBA 2019
NATHAN PASQUETI MACIEL
A CEGUEIRA DELIBERADA E SUA APLICAÇÃO NA ESFERA PENAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Faculdade de Direito de Curitiba, pela Banca Examinadora formada pelos
professores:
Orientador: ___________________________________ Prof. Dr. Guilherme Oliveira de Andrade
___________________________________ Professor Membro da Banca
Curitiba, __ de _________ de 2018
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeço a minha família que sempre me deu suporte em todos
os momentos da graduação.
Gostaria também de dedicar o presente trabalho ao meu pai Luiz, que sempre
me apoiou incondicionalmente e que sempre foi meu exemplo, pois além de ser meu
companheiro foi um profissional exemplar em sua carreira no funcionalismo público.
Agradeço também, minha mãe Hosana, que sempre lutou para me proporcionar
uma educação de qualidade.
Sou grato por todas as amizades que fiz durante a graduação, as quais foram
fundamentais em várias etapas da faculdade, agradeço portanto, meus caros amigos
e minha companheira Roberta que em muito me auxiliou.
Por fim, faço um agradecimento especial a todos os meus professores que
fizeram e fazem parte de minha formação acadêmica.
Toda ação humana, quer se torne positiva ou negativa, precisa
depender de motivação. (Dalai Lama)
RESUMO
A cegueira deliberada, conhecida também como instruções de avestruz, foi utilizada originalmente na Inglaterra e posteriormente nos Estados Unidos, país em que foi mais difundida, ela visa solucionar casos em que o agente de forma consciente, finge não enxergar a ilicitude de sua conduta. O presente trabalho objetiva analisar a aplicação da cegueira deliberada na esfera penal do ordenamento jurídico brasileiro e sua divergência com relação a forma em que é aplicada nos Estados Unidos da América, adepto do sistema jurídico da common law diferentemente do Brasil. Por fim, será analisada a compatibilidade da cegueira deliberada com o sistema jurídico pátrio, levando em consideração sua construção histórica e principalmente o elemento subjetivo utilizado como critério de imputação. Palavras-chave: Cegueira deliberada. Direito Penal. Elemento Subjetivo.
ABSTRACT
The willful blindness, also known as ostrich instructions, was originally used in England and posteriorly in the United States, where it was most widespread, it seeks to resolve cases where the agent consciously pretends not to see the unlawfulness of his conduct. The present study aims to analyze the application of willful blindness in the criminal sphere of the Brazilian legal system and its divergence with respect to the way it is applied in the United States of America, adhering to the common law legal system differently from Brazil. Finally, the compatibility of willful blindness with the Brazilian legal system will be analyzed, leading in consideration its historical construction and especially the subjective element used as imputation criterion. Keywords: Willful blindness. Criminal law. Subjective elemento.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. .......8
2 BREVES CONSIDERAÇÕES NO QUE TANGE AOS SISTEMAS JURÍDICOS DA COMMON LAW E CIVIL LAW .................................................................................... 9
2.1 O SISTEMA JURÍDICO DA COMMON LAW ......................................................... 9
2.2 O SISTEMA JURÍDICO DA CIVIL LAW .............................................................. 13
3 A ORIGEM HISTÓRICA DA CEGUEIRA DELIBERADA ...................................... 14
3.1 O SURGIMENTO DA CEGUEIRA DELIBERADA NO SISTEMA JURÍDICO DA COMMON LAW ......................................................................................................... 14
3.2 O SURGIMENTO DA CEGUEIRA DELIBERADA NO SISTEMA JURÍDICO DA CIVIL LAW................................................................................................................. 17
4 DOLO E CULPA COMO ELEMENTOS DO CRIME NO DIREITO PENAL BRASILEIRO ............................................................................................................ 23
4.1 O DOLO .............................................................................................................. 23
4.1.1 Elementos do Dolo ........................................................................................... 24
4.1.2 Teorias do Dolo ................................................................................................ 25
4.1.2.1 Teoria da vontade ......................................................................................... 26
4.1.2.2 Teoria da representação ou da possibilidade ................................................ 27
4.1.2.3 Teoria do consentimento ............................................................................... 27
4.1.3 Espécies de Dolo ............................................................................................. 28
4.1.3.1 Dolo direto ..................................................................................................... 29
4.1.3.2 Dolo eventual ................................................................................................ 30
4.2 A CULPA ............................................................................................................. 33
4.2.1 Os Elementos do Delito Culposo ...................................................................... 34
4.2.1.1 Conduta humana voluntária .......................................................................... 34
4.2.1.2 Inobservância do cuidado objetivo ................................................................ 35
4.2.1.3 Produção de um resultado e nexo causal ..................................................... 36
4.2.1.4 Previsibilidade objetiva do resultado ............................................................. 37
4.2.2 Modalidades de Culpa ...................................................................................... 39
4.2.3 Espécies de Culpa ........................................................................................... 40
5 A (IM)POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA CEGUEIRA DELIBERADA NA ESFERA PENAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO .................................. 42
5.1 O CONCEITO DE CEGUEIRA DELIBERADA .................................................... 42
5.2 KNOWLEDGE COMO ELEMENTO SUBJETIVO NO CÓDIGO MODELO NORTE AMERICANO E SUA RELAÇÃO COM A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA ... 42
5.3 A UTILIZAÇÃO DO DOLO EVENTUAL COMO CRITÉRIO LEGITIMADOR DA CEGUEIRA DELIBERADA ........................................................................................ 46
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 49
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 50
8
1 INTRODUÇÃO
A cegueira deliberada, também conhecida como instruções de avestruz ou
willful blindness, tem como objetivo, solucionar casos em que o agente de forma
consciente se coloca em uma situação de ignorância com relação a ilicitude de sua
conduta. Diante da adesão que vêm ocorrendo por parte dos operadores do direto,
deve ser feita uma análise profunda no que tange a aplicação da cegueira deliberada
no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que foi importada dos Estados
Unidos da América, localidade que adota uma matriz jurídica diversa da realidade
nacional.
Para isso, será feita uma análise histórica da cegueira deliberada, com o intuito
de demonstrar a forma pela qual foi aplicada em seu país de origem. Serão relatados
de forma sucinta os casos em que foi aplicada.
Posteriormente, será explorado o elemento subjetivo de imputação no direito
penal brasileiro, tendo em vista que a willful blindness é aplicada no cenário pátrio
através do dolo eventual, espécie do elemento subjetivo dolo.
Em seguida, analisar-se-á o Model Penal Code norte americano e os elementos
subjetivos que este consubstancia, são estes, purpose, recklessness, neglicence e
knowledge, com enfoque no último elemento citado.
Por fim, será feita uma comparação entre a aplicação da cegueira deliberada
no território norte americano e brasileiro, com o objetivo de verificar a compatibilidade
de sua utilização levando em consideração as particularidades do ordenamento
jurídico pátrio.
9
2 BREVES CONSIDERAÇÕES NO QUE TANGE AOS SISTEMAS JURÍDICOS DA
COMMON LAW E CIVIL LAW
Preliminarmente, antes de abordar o núcleo do presente trabalho, o qual se
consubstancia na aplicação da cegueira deliberada no cenário jurídico pátrio, será
feito uma breve análise entre os sistemas jurídicos elencados no título deste capítulo,
tendo em vista que a referida doctrine teve sua origem em um sistema jurídico diverso
do qual é adotado no Brasil.
2.1 O SISTEMA JURÍDICO DA COMMON LAW
O sistema jurídico da common law, conhecido também como direito
consuetudinário, é originário do direito inglês, é mais utilizado nos países de origem
anglo-saxônica, como Inglaterra e Estados Unidos, sistema este, baseado nos
costumes e na tradição.
As decisões judiciais das localidades adeptas da common law são baseadas
na jurisprudência, sobre isso nos ensina Teresa Arruda Alvim Wambier:
O common law não foi sempre como é hoje, mas a sua principal característica sempre esteve presente: casos concretos são considerados fonte do direito. O direito inglês, berço de todos os sistemas de common law, nasceu e se desenvolveu de um modo que pode ser qualificado como “natural”: os casos iam surgindo, iam sendo decididos. Quando surgiam casos iguais ou semelhantes, a decisão tomada antes era repetida para o novo caso. Mais ou menos como se dava no direito romano.1
Neste sistema existe uma valorização da jurisdição a qual é equiparável a
legislação, além disso preconiza a igualdade de tratamento, pois o ordenamento
jurídico deve tratar casos iguais da mesma forma, evitando em tese, a arbitrariedade
e a subjetividade dos julgadores das lides.
A origem deste sistema nos remete ao século XII, com seu marco inicial mais
especificamente nas sentenças judiciais dos Tribunais de Westminster, os quais eram
constituídos pelo Rei que visava impor uma lei comum a toda a Inglaterra frente aos
direitos costumeiros e particularidades de cada povo. Conforme se verá adiante, além
do direito denominado common law, existiu outra esfera jurídica emergente das
1 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A uniformidade e a estabilidade da jurisprudência e o estado de direito - Civil law e common law. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 57, n. 384, 2009, p. 34.
10
decisões dos Tribunais do Chanceler do Rei, a equity, que se consubstanciou como
uma espécie de temperamento ao rigor dos Tribunais de Westminster.
Com a conquista normanda da Inglaterra, houve uma concentração de poder
na figura do rei, a jurisdição por exemplo era uma prerrogativa deste, que outorgava
a subalternos denominados judges, os quais andavam pelo reino com o intuito de
escutar as queixas do povo em consequência disso proferiam um writ, remédio jurídico
adequado para uma situação específica. Sobre este lapso histórico elucida Soares:
Enquanto os juristas da Europa continental da época esforçavam-se por determinar as regras do direito material (as regras de fundo), na Inglaterra elaboravam-se as regras quanto às possibilidades de obterem-se as ações processuais; obtidas essas, quanto ao julgamento sobre o direito contestado, não havia a menor previsão ou a menor preocupação. Na expressão da época: remedies precede rights (os remédios têm precedência aos direitos subjetivos). O sistema era pesado, a ver-se pelo fato de que dos 56 writs existentes em 1227, seu número somente em 1832, ser elevado para 72, data em que o sistema seria profundamente reformado. Contudo, por analogia, concediam-se writs para situações novas. A exemplo: inexistia um writ determinado para os contratos; contudo, por um writ of detinue, destinado a beneficiar um possuidor de boa fé, protegia-se quem detivesse sem justo titulo uma propriedade, portanto, quem detivesse a coisa sem ter um contrato que legitimasse a posse; ou ainda o writ of trespas, que servia para proteger um dano causado por ato ilícito, seria aplicado, analogicamente, para proteger um contratante que tivesse sido prejudicado pela inadimplência do contrato. Note-se que não havia maneira de fazer cumprir-se compulsoriamente o contrato: inadimplido, partia-se para perdas e danos.2
Com o decorrer da marcha tempor10al, este sistema sofreu algumas
mudanças, visto que os recursos direcionados ao Rei, fato que ocorria quando não
havia um writ da common law, começaram a ser decididos não em matéria fática-
jurídica mas em “matéria de consciência”. Diante disso, o Chanceler, The Keeper of
the King's Conscience, começou a prover algumas medidas que mais se
enquadravam em decisões de conhecimento originário das causas do que um recurso
propriamente dito. Funcionava da seguinte forma, quando ocorria uma injustiça nos
tribunais reais, a parte sucumbente tinha a faculdade de solicitar que o caso fosse
levado até o Chanceler o qual decidiria o conflito em conjunto com o conselho. Este
procedimento realizado pelo confessor do rei proporcionou a criação de uma justiça
paralela aos Tribunais de Westminster, as chamadas Courts of Chancery que geraram
2 SOARES, Guido Fernando Silva. Estudos de Direito Comparado (I) - O que é a "Common Law " em particular, a dos EUA. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. v. 92. p. 175, 1 jan. 1997.
11
aos poucos uma jurisprudência denominada de equity que tinha como objetivo trazer
justiça de forma imparcial.
A equity, tinha como base as normas do direito canônico que eram
consideradas mais racionais frente aos procedimentos casuísticos da common law,
neste cenário ocorreu o desenvolvimento desta vertente, consequentemente a figura
do Chanceler ganhou cada vez mais espaço, tanto que em 1529 não era mais
considerado um eclesiástico, possuía a titulação de jurista.
Durante um tempo pensou-se que a equity fosse substituir a common law, posto
que detinha apoio da população em geral, no entanto após conflitos entre estes
tribunais, em 1875 foi estabelecido um meio termo através dos Judicature Acts, assim
houve uma junção destes dois sistemas gerando uma estrutura dualista.3
Os Judicature Acts transformaram a estrutura judiciária da época, pois
possibilitaram a aplicação da equity e da common law em conjunto em uma única
jurisdição denominada Supreme Court of Judicature, antes disso era necessário
passar pelo Tribunal da Common law para posteriormente recorrer ao Tribunal da
Chancelaria (Equity).
2.1.1 O Sistema da Common Law e Statue Law
Conforme já abordado, entende-se por common law como aquele direito criado
pela figura do juiz frente ao statue law que se consubstancia pela lei positivada no
ordenamento jurídico, como por exemplo a constituição federal, leis ordinárias e
federais.
No primeiro sistema supracitado, a decisão judicial possui grande relevância
visto que assim se criaria o direito além da concretização da coisa julgada, possui
ainda uma função de criar um precedente obrigatório para os casos subsequentes,
faz-se, portanto, um precedente. Vale ressaltar que tal precedente está
umbilicalmente ligado aos fatos de seu caso inicial, não sendo portanto uma regra
abstrata4. Dentre as vantagens dos precedentes, pode-se citar a facilidade de
compreensão, pois funcionam como uma espécie de “arquivo de histórias”.
3 SOARES, 197, p. 175. 4 Ibid., p. 183
12
Já no que tange ao statue law, o qual além de possuir como característica
marcante a positivação de normas, é suscetível a alteração, modificação frente aos
case laws da sistema jurídico da common law que uma vez fixados possuem seu valor.
Estes sistemas possuem várias diferenças, no entanto, isso não significa que
os precedentes não podem ser aplicados em uma localidade adepta de normas
positivadas. O que ocorre de fato é uma espécie de inversão, no Brasil por exemplo,
os precedentes são utilizados de forma subsidiária, primeiramente é feita uma leitura
da norma legal e posteriormente é utilizada a jurisprudência, o que não ocorre no
sistema norte americano, pois o sistema é invertido, primeiro analisa-se o precedente
e a partir da constatação de uma lacuna é verificada a lei escrita.
Com estes esclarecimentos, vislumbra-se de forma cristalina que é possível a
aplicação de componentes de sistema distintos em um único, porém a conciliação não
deve ser confundida com transformação, não se deve de forma impositiva realizar
transformações radicais em um sistema dotado de peculiaridades, sobre isso elucida
Medina:
Entendo que o modelo do stare decisis não é “exclusivo” do common law. Penso, por outro lado, que qualquer esforço realizado no sentido de “transformar” o direito brasileiro em common law é destinado ao fracasso. A despeito disso, nada impede que mecanismos que estimulem os juízes a se orientarem por precedentes já firmados sejam, em sistemas como o brasileiro, criados pela lei. Evidentemente, o precedente não pode valer mais que a lei. Note-se, aliás, que as decisões judiciais, mesmo no sistema de common law, não podem “criar” a partir do nada: ao examinar um precedente, deve o juiz identificar a norma que o embasa. No Brasil, tal esforço seria desnecessário, pois, afinal, temos, além do texto constitucional, os Códigos e outros textos legais. O modelo de precedentes, contudo, pode ser útil, a fim de se afastar a ideia de que, a cada nova decisão, o texto legal pode ser considerado como se não houvesse um histórico sobre como deve ser interpretado e aplicado.5
Com estes apontamentos, conclui-se que devem ser respeitadas as
peculiaridades de cada sistema e se, eventualmente for necessária uma
transformação, esta deve ser feita em consonância com o ordenamento jurídico
estabelecido.
5 MEDINA, José Miguel. Jurisprudência não está, nem pode estar, acima da lei. Revista Consultor Jurídico, 9 set. 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-set-09/processo-jurisprudencia -nao-nem-fonte-direito#_ftn2>. Acesso em: 11 nov. 2018.
13
2.2 O SISTEMA JURÍDICO DA CIVIL LAW
Frente a common law, o sistema jurídico da civil law também conhecido como
romano-germânico, é baseado no direito romano e tem como principal fonte a lei.
Dentro de sua evolução histórica a Revolução Francesa de 1789 merece
destaque, visto que, com a queda da monarquia absolutista houve a eclosão de um
novo direito, o qual visava controlar a atuação judicial, estabelecendo um limite a sua
aplicação, sendo este a literalidade do diploma legal. Nas palavras de Marinoni:
Para a revolução francesa, a lei seria indispensável para a realização da liberdade e da igualdade. Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria indispensável diante das decisões judiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes da lei, os propósitos revolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis. A certeza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, na própria Lei. Lembre-se que, com a Revolução Francesa, o poder foi transferido ao Parlamento, que não podia confiar no judiciário.6
Vislumbra-se neste momento que a lei, além de dotar de uma função limitadora,
também possui uma função social de representar a vontade do povo e garantir a
igualdade, pois as normas positivadas eram iguais para todos.
Vale ressaltar, que o sistema da civil law é adotado pelo ordenamento jurídico
pátrio, tal afirmação possui respaldo legal no artigo 5°, II da Constituição Federal de
1988.
6 MARINONI, Luiz Guilherme. A Transformação do Civil Law e a Oportunidade de um Sistema Precedentalista para o Brasil. Revista Jurídica, Porto Alegre. ano 57, p. 46, 2009.
14
3 A ORIGEM HISTÓRICA DA CEGUEIRA DELIBERADA
O objetivo deste capítulo, se consubstancia na análise histórica do princípio da
cegueira deliberada ou willful blindness, a qual irá abarcar a trajetória de sua aplicação
nas localidades em que se predomina o sistema jurídico da Common Law e
posteriormente da Civil Law. Se buscará ainda, relatar os primeiros casos jurídicos em
que o princípio supracitado foi aplicada.
3.1 O SURGIMENTO DA CEGUEIRA DELIBERADA NO SISTEMA JURÍDICO DA
COMMON LAW
A cegueira deliberada, surgiu na Inglaterra, país que adota o sistema da
Common Law, teve seu gérmen mais especificamente em 1861 no caso Regina v
Sleep.7
No caso em questão, Sleep era um ferreiro que embarcou em uma navio com
vários parafusos de cobre, dentre os quais alguns continham a marca de uma flecha,
o que indicava a propriedade estatal dos mesmos, diante disso, foi acusado por desvio
de bens públicos. Sleep foi considerado culpado pelo júri, em sede de segunda
instância a defesa do sujeito ativo do suposto crime cometido, arguiu que o mesmo
não tinha conhecimento que os parafusos eram de propriedade estatal, tese que foi
acolhida pelo juiz que o absolveu, pois não havia base probatória para atestar o
contrário.
Com fulcro na decisão proferida pelo magistrado, começou a ser desenvolvida
a teoria da willful blindness, ressalta-se que caso houvesse base probatória para
comprovar que Sleep, intencionalmente tivesse se abstido de angariar algum
conhecimento acerca da origem dos parafusos de cobre, o mesmo poderia ter sido
punido.
Alguns anos mais tarde, em 1875, a cegueira deliberada tornaria a aparecer
mesmo que de forma embrionária, no caso Bosley v. Davies, no qual Davies detinha
propriedade de uma pensão em que supostamente ocorriam jogos ilegais com o seu
consentimento, devido a isso foi denunciado.8
7 ROBBINS, Ira P. The Ostrich Instruction: Deliberate Ignorance as a Criminal Mens Rea. The Journal of Criminal Law and Criminology, 81, p.196, 1990. 8 Ibid., p. 197.
15
O acusado afirmava em sua defesa que não tinha conhecimento de que dentro
de seu estabelecimento estariam ocorrendo práticas ilícitas, argumento que não foi
acolhido pelo Tribunal inglês, pois haviam circunstâncias que possibilitavam presumir
que Davies possuía ciência das ilicitudes que ocorriam dentro de seu estabelecimento.
Diante da narrativa destes casos, ambos julgados pelo tribunal inglês,
vislumbra-se o que foi a fase inicial do princípio da cegueira deliberada, com a
posterior pacificação na Inglaterra do referido tema no século XIX.9
Na sequência fática, em 1899 a cegueira deliberada começou a ser utilizada
nos tribunais norte-americanos, foi incialmente aplicada no caso Spurr v. United
States.10 No caso em questão, Spurr era presidente do Banco Nacional da cidade
americana de Nashville, Tennessee, foi denunciado por emitir cheques para
particulares cuja a conta não possuía fundos. Nos Estados Unidos da América, os
bancos podem estabelecer certificados em cheques para declarar que estes possuem
provisão suficiente de fundos, em função disso podem ser aceitos no comércio, por
meio disso o banco atesta a liquidez do emitente.11
O núcleo do presente caso se consubstancia na suposta violação intencionada
praticada por Spurr, os eméritos julgadores entenderam que a ilicitude desta conduta
poderia ser presumida em detrimento de sua ignorância proposital e sua forma incauta
de realizar sua atividade laborativa, visto que era sua função básica verificar se uma
conta carece de fundos.
Ressalta-se, que em 1962, um fator importante ocorreu para condicionar a
aplicação da teoria da cegueira deliberada, o advento do Model Penal Code, proposto
pelo American Law Institute, que mesmo não fazendo menção direta a referida teoria,
dividiu as opiniões dos juristas da época no que tange a sua recepção pelo novo
código. Parte da doutrina norte americana entendeu que a willful blindness, foi
recepcionada pelo Código Penal Modelo, tendo em vista estar configurada no título
dos requisitos de culpabilidade12.
9 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Editora Atelier, 2007. p. 66. 10 Ibid., p. 67. 11 LUCCHESI, Guilherme Brenner. A Punição da Culpa a Título de Dolo, o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Doutorado em Direito) UFPR. Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. p. 126. 12 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Model Penal Code. 1962, p. 21 apud GEHR. Amanda. A Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro. Monografia (Graduação em Direito) UFPR. Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2012. p. 5.
16
Em 1976 um dos casos mais relevantes em que a willful blindness foi aplicada
no território norte-americano foi United States v. Jewel.13
Neste, Charles Demore Jewell, foi acusado de tráfico internacional de drogas,
ele transportou substância entorpecente, conhecida como maconha dentro de um
compartimento secreto de um automóvel, cruzou a fronteira entre México e Estados
Unidos, local em que foi preso pelas autoridades.
Jewel, sujeito ativo do suposto crime cometido, alegou que não tinha
conhecimento de que carregava produto ilegal em seu automóvel, tese que não foi
acolhida o que gerou sua condenação pelo júri, o qual foi instruído da seguinte forma
com relação a culpabilidade do acusado:
A acusação pode cumprir seu ônus probatório provando, para além de uma dúvida razoável, que se o acusado não estava realmente consciente de que havia maconha no veículo que ele conduzia quando entrou nos Estados Unidos a sua ignorância àquele respeito foi somente e integralmente um resultado do seu propósito consciente de desprezar a natureza daquilo que estava dentro veículo, com um propósito consciente de evitar conhecer a verdade.14
A defesa de Jewel solicitou que os jurados fossem instruídos em relação a uma
condicionante de punição, para ocorrer uma condenação deveria ser demonstrado
que o acusado sabia estar carregando drogas no automóvel, porém a solicitação foi
rejeitada.15
Após a utilização de seus mecanismos jurídicos de defesa, Jewel foi condenado
pelo Tribunal, segundo o entendimento de que o autor do delito deliberadamente se
recusou a visualizar a verdade, neste momento pode ser observado que a cegueira
deliberada começou a ser utilizada como um substituto para o elemento knowledge
(conhecimento).
O Direto americano portanto, entendeu que seria reprovável a conduta do a
gente de se eximir de forma proposital.
13 ROBBINS, 1990, p. 204. 14 The Government can complete their burden of proof by proving, beyond a reasonable doubt, that if the defendant was not actually aware that there was marijuana in the vehicle he was driving when he entered the United States his ignorance in that regard was solely and entirely a result of his having made a conscious purpose to disregard the nature of that which was in the vehicle, with a conscious purpose to avoid learning the truth. In: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, U.S. Court of Appeals for the Ninth Circuit - 532 F.2d 697 9th Cir. 1976. Disponível em: <https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F2/532/697/99156/>. Acesso em: 11 nov. 2018. 15 LUCCHESI, Guilherme Brenner. A Punição da Culpa a Título de Dolo, o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Doutorado em Direito) – UFPR, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. p. 137.
17
Dentre as peculiaridades que estão presentes nesse caso, vale ressaltar que a
o caso foi decidido em composição integral do tribunal federal norte-americano, além
de que foram utilizados diversos casos anteriores para embasar a decisão dos
eméritos julgadores.
Com o crescente entendimento da equivalência entre o conhecimento real e a
cegueira intencional a título de culpabilidade, a willful blindness foi amplamente
utilizada nos Estados Unidos no âmbito criminal, como por exemplo em crimes
ambientais para fundamentar à prova de conhecimento.16
Conforme se observa no lapso temporal abordado, a teoria da cegueira
deliberada foi se pacificando com base em precedentes, o que deve ser encarado com
certa normalidade, tendo em vista o sistema jurídico adotado nos países elencados
neste subcapítulo.
3.2 O SURGIMENTO DA CEGUEIRA DELIBERADA NO SISTEMA JURÍDICO DA
CIVIL LAW
O surgimento da cegueira deliberada no sistema da Civil Law ocorreu em 2000,
em um julgado do Tribunal Supremo da Espanha, de relatoria de Giménez García, a
qual relata que se tratar-se da:
Situação em que o sujeito não quer saber aquilo que pode e deve conhecer, ou seja, um estado de ausência de representação em relação a um determinado elemento do tipo em que devem concorrer duas características, a capacidade do sujeito em abandonar tal situação caso queira e o dever de procurar tais conhecimentos. Há, ainda, um terceiro requisito: o fato de que o sujeito se beneficia da situação de ignorância por ele mesmo buscada (sem que a Sala Segunda especifique se tal vantagem deve ser econômica ou de outra ordem).17
Mesmo que a relatora não tenha feito menção ao nome específico da willful
blindness, acabou por elucidar sua correta definição.
A partir disso, surgiram vários casos em que a willful blindness foi utilizada, no
entanto, não houve uniformidade quanto aos critérios de sua aplicação.
16 Ramon Ragués i Vallès, menciona o caso United States v. Lara Velasquez e United States v. Mac Donald & Watson Waste Oil Co. In: RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Editora Atelier, 2007. p. 77. 17 RAGUÉS I VALLÈS, 2007, p. 23 apud GEHR. Amanda. A Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro. Monografia (Graduação em Direito) UFPR. Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2012. p. 6.
18
Além da argumentação elucidada pela relatora Giménez García, em 2001
houve menção expressa no que tange a referida teoria. No caso em questão, se
averiguava um crime em que o sujeito ativo (José J) foi condenado em primeira
instância por ter transportado dinheiro proveniente de tráfico de entorpecentes para a
cidade de Andorra. Em sede recursal o sentenciado argumentou que não sabia da
origem ilícita do dinheiro, em face desta tese o seguinte argumento foi proferido pelo
Tribunal Superior da Espanha:
Na entrega do dinheiro para José J., Miguel estava acompanhado de Hebe, e José J. cobrava uma comissão de 4%. A Câmara chega à conclusão de que José J. sabia que o dinheiro vinha do tráfico de drogas - o que ele nega - de fatos tão óbvios quanto o fato de que a quantia era muito importante e da natureza claramente clandestina das operações. Quem se coloca em uma situação de ignorância deliberada, isto é, não quer saber o que pode e deve ser conhecido, e mesmo assim se beneficia dessa situação - ele pagou uma comissão de 4% - está assumindo e aceitando todas as possibilidades da origem do negócio que participa e, portanto, deve responder por suas consequências.18
O Teórico Ragués i Vallès, salienta que a cegueira deliberada gerou
consequências negativas, como condenações dolosas, fato este, preocupante, o
doutrinador ainda afirma que está teoria já foi intitulada de “doutrina conceitualmente
errônea e desnecessária”19. Sua aplicação não deve ocorrer de maneira incauta, pois
em jogo está o bem jurídico mais importante de um particular, sua liberdade.
Com isso, esta teoria passou a ser considerada uma nova forma de imputação
subjetiva, foi tratada portanto, como uma matéria pacificada no ambiente jurídico
espanhol.
No Brasil, o leading case deu-se no qual gerentes de uma concessionária
venderam sob dinheiro em espécie onze automóveis para os agentes que furtaram o
cerca de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e
18 En la entrega del dinero a José J., Miguel estuvo acompañado de Hebe, y José J. cobrara un 4% de comisión. La Sala extrae la conclusión de que José J. tuvo conocimento de que el dinero procedía del negocio de drogas -cosa que él niega- de hechos tan obvios como que la cantidad era muy importante y de la natureza claramente clandestina de las operaciones, por lo que quien se pone en situación de ignorancia deliberada, es decir no querer saber aquello que puede y debe conocerse, y sin embargo se beneficia de esta situación -cobraba un 4% de comisión-, está asumiendo y aceptando todas las posibilidades del origen del negocio em que participa, y por tanto debe responder de sus consecuencias. In: RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Editora Atelier, 2007. p. 20. 19 RAGUÉS I VALLÈS, 2007, p. 58 apud GEHR. Amanda. A Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro. Monografia (Graduação em Direito) UFPR. Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2012. p. 7.
19
cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta de reais) do Banco Central situado na cidade
de Fortaleza.
Antes de adentrarmos do mérito da utilização da teoria da cegueira deliberada
no presente caso, será feito um breve resumo acerca do furto ao Banco Central.
O referido crime foi extremamente emblemático, ocorreu na madrugada de 06
de agosto de 2005. A sede do Banco Central possuía inúmeros mecanismos de
segurança, portas de aço, sensores e vigilantes, era basicamente impossível acessar
o cofre pela porta da frente, em virtude disso Antônio Jussivan dos Santos, conhecido
como “Alemão”, formou uma equipe de 36 pessoas para cavar um túnel pelo qual
pudessem acessar diretamente a caixa forte do Banco Central. Dentre os percalços
que os infratores encontraram, estava 1,10 metros de concreto reforçado, nas
palavras do Professor Guilherme Brenner Lucchesi:
Havia receio de que pudesse ser acionado algum dos sensores de impacto da casa forte instalados na parede e no teto, embora não houvesse sensores de impacto no piso. Foi necessário um trabalho cirúrgico para atravessar 1,10 metros de concreto reforçado, sendo utilizada uma serra circular elétrica, com disco diamantado importado de Israel, auxiliada por uma furadeira manual elétrica. Em cerca de duas horas, conseguiram romper o piso da casaforte, e às 21h do dia 5 de agosto de 2005 Alemão e mais três ladrões entraram na casa-forte do Banco Central. Embora todos os membros da quadrilha soubessem que o crime seria lucrativo, não faziam ideia do montante que seria efetivamente furtado: a casa-forte do Banco Central continha bilhões de reais em cédulas novas e usadas.20
Apesar de os infratores planejarem a execução do furto de forma arquitetônica,
esqueceram de um “pequeno” detalhe, o que fazer com o montante usufruído
ilicitamente?
Conclui-se, portanto que a inexperiência dos assaltantes neste sentido acabou
conduzindo-os ao fracasso, 129 autores foram denunciados à Justiça Federal, dentre
os quais 87 condenados, 16 absolvidos e 26 estão aguardando julgamento.21
20 LUCCHESI, Guilherme Brenner. A Punição da Culpa a Título de Dolo, o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Doutorado em Direito) – UFPR, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. p. 31. 21 DIOGENES, Juliana; CARVALHO, Marco Antônio; GODOY, Marcelo. Os Toupeiras. Capítulo 5: Vai começar de novo. Estadão, 08 ago. 2015 apud LUCCHESI, Guilherme Brenner. A Punição da Culpa a Título de Dolo, o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Doutorado em Direito) – UFPR, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. p. 35.
20
No que tange a aplicação da willful blindness, os gerentes, José Vieira e
Francisco Vieira, venderam 11 (onze) veículos por intermédio de José Charles aos
agentes que furtaram o caixa forte do Banco Central.
Foram condenados em primeira instância pelo crime de lavagem de capitais,
sob o argumento de que os vendedores dos automóveis intencionalmente teriam se
cegado, não presumindo portanto, que o dinheiro utilizado para compra dos bens seria
proveniente de origem ilícita.
A decisão proferida pelo magistrado foi reformado pelo Tribunal Regional
Federal da 5 ª Região em relação à José Vieira e Francisco Vieira. Os ilustres
julgadores entenderam que a referida imputação do crime de lavagem era
descabida.22
Já no que tange ao sentenciado José Charles, o Tribunal entendeu que o
conjunto probatório era suficiente para manter sua condenação, o relator argumenta
que:
O problema reside em saber se é possível a responsabilização criminal dos empresários sem a presença de prova segura de que soubessem ou devessem saber da origem espúria do dinheiro que receberam em transação comercial aparentemente regular. [...] O recebimento antecipado de numerário (mais de duzentos mil, reais), para escolha posterior dos veículos é intrigante, mas, a meu sentir, não autoriza presumir que, por essa circunstância, devessem os empresários saber que se tratava de reciclagem de dinheiro. A própria sentença recorrida realçou que os “irmãos José Elizomarte e Francisco Dermival, ao que tudo indica, não possuíam” a percepção de que o numerário utilizado tinha origem no furto do Banco Central (fls. 3949), mas “certamente sabiam ser de origem ilícita”. Aplicou, assim, a teoria da CEGUEIRA DELIBERADA ou de EVITAR A CONSCIÊNCIA (willful blindness ou conscious avoidance doctrine), segundo a qual a ignorância deliberada equivale a dolo eventual, não se confundindo com a mera negligência (culpa consciente). A sentença recorrida procura justificar a adequação daquela doutrina, originária das ostrich instructions (instruções do avestruz), utilizadas por tribunais norte-americanos, ao dolo eventual admitido no Código Penal brasileiro, [...]. Entendo que a aplicação da teoria da cegueira deliberada depende da sua adequação ao ordenamento jurídico nacional. No caso concreto, pode ser perfeitamente adotada, desde que o tipo legal admita a punição a título de dolo eventual. [...] No que tange ao tipo de utilizar “na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo” (inciso I do § 2º), a própria redação do dispositivo exige que o agente SAIBA que o dinheiro é originado de algum dos crimes antecedentes. O núcleo do tipo não se utiliza sequer da expressão DEVERIA
22 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Processo nº 200581000145860, ACR5520/CE. 2ª Turma. Relator: Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. Julgado em: 09 de setembro de 2008. Diário da Justiça, 22 out. 2008, p. 207 apud AROUCK, Vinicius. A Teoria da Cegueira Deliberada e Sua Aplicação No Ordenamento Jurídico Pátrio. Empório do direito, 08 jul. 2017. Disponível em: <http://em poriododireito.com.br/leitura/a-teoria-da-cegueira-deliberada-e-sua-aplicabilidade-no-ordenamento-juri dico-patrio>. Acesso em: 10 nov. 2018.
21
SABER (geralmente denotativa do dolo eventual). Assim sendo, entendo que, ante as circunstâncias do caso concreto, não há como se aplicar a doutrina da willful blindness. As evidências não levam a conclusão de que os sócios da BRILHE CAR sabiam efetivamente da origem criminosa dos ativos. Não há a demonstração concreta sequer do dolo eventual.23
Com isso, conclui-se que a Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região
deu provimento aos recursos interpostos por José Vieira e Francisco Vieira, por não
constatarem presentes os requisitos de aplicação da teoria da cegueira deliberada.
Além do caso supracitado, a cegueira deliberada também foi utilizada no caso
popularmente conhecido como “Mensalão”, em que pessoas ligadas ao Governo
foram condenadas pelo STF em virtude da compra de apoio político de parlamentares
de diferentes partidos. Compra esta que foi realizada através de instituições
financeiras e agências de publicidade, com um intuito de “lavar o dinheiro”.
Neste caso, a cegueira deliberada foi aplicada aos acusados beneficiários dos
pagamentos considerados extravagantes realizados por agências de propaganda, no
qual o entendimento majoritário se consubstanciou pela possibilidade de punição
tendo em vista uma suposta equiparação entre o dolo eventual e a willful blindness.
A Ministra Rosa Weber realizou uma comparação entre a ciência da alta
probabilidade da fonte ilícita dos valores recebidos e o dolo eventual com relação à
pratica do crime de lavagem de dinheiro tutelado pela Lei 12.683/2012.
Foi elencado pela Ministra o seguinte argumento:
Para a configuração da teoria da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa. (...) Pode-se identificar na conduta dos acusados beneficiários, especialmente dos parlamentares beneficiários, a postura típica daqueles que escolhem deliberadamente fechar os olhos para o que, de outra maneira, lhes seria óbvio, ou seja, o agir com indiferença, ignorância ou cegueira deliberada. Para o crime de lavagem de dinheiro, tem se admitido, por construção do Direito anglo-saxão, a responsabilização criminal através da assim denominada doutrina da cegueira deliberada (willful blindness doctrine). (...) Em termos gerais, a doutrina estabelece que age intencionalmente não só
23 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). Processo nº 200581000145860, ACR5520/CE. 2ª Turma. Relator: Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. Julgado em: 09 de setembro de 2008. Diário da Justiça, 22 out. 2008, p. 207 apud AROUCK, Vinicius. A Teoria da Cegueira Deliberada e Sua Aplicação No Ordenamento Jurídico Pátrio. Empório do direito, 08 jul. 2017. Disponível em: <http://em poriododireito.com.br/leitura/a-teoria-da-cegueira-deliberada-e-sua-aplicabilidade-no-ordenamento-juri dico-patrio>. Acesso em: 10 nov. 2018.
22
aquele cuja conduta é movida por conhecimento positivo, mas igualmente aquele que age com indiferença quanto ao resultado de sua conduta.24
Percebe-se que a Ministra faz um comparação entre o sujeito que não sabe da
ilicitude da origem dos bens e valores e aquele sujeito que efetivamente cria
empecilhos para não tomar conhecimento da origem destes soma-se a isto o fato de
que a cegueira deliberada é originária da common law, fato que por si só já é digno
de atenção.
Além disso, a Ministra não se atenta ao requisito subjetivo (knowledge)
necessário para aplicar a cegueira deliberada em seu país de origem, o qual não pode
ser equiparado ao dolo eventual tendo em vista que o código penal brasileiro não
estabelece em nenhum dispositivo que o agente que atua ciente da alta probabilidade
será responsabilizado.
O simples transplante de teorias estrangeiras para o direito brasileiro pode
causar efeitos catastróficos, deve-se observar as peculiaridades de sua aplicação em
seu país de origem.
A partir deste entendimento a cegueira deliberada começou a ser aplicada no
Brasil, com o intuito de estabelecer uma ligação com o elemento subjetivo dolo
eventual.
24 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Penal nº 470/MG. (Plenário). Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Data de Julgamento: 17 dez. 2012. p. 1273. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/ verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=236494>. Acesso em: 10 nov. 2018.
23
4 DOLO E CULPA COMO ELEMENTOS DO CRIME NO DIREITO PENAL
BRASILEIRO
Neste capítulo, primeiramente será feita uma análise acerca do elemento
subjetivo dolo, seus elementos, teorias e espécies.
Na sequência, será analisado o elemento da culpa, seus elementos e sua
subdivisão sendo ela, culpa consciente e inconsciente.
Estes apontamentos são fundamentais para a compreensão da aplicação da
teoria da cegueira deliberada, tendo em vista que, conforme será demonstrado neste
trabalho, a mesma visa abarcar uma espécie de elemento subjetivo para legitimar sua
aplicação.
4.1 O DOLO
De acordo com nosso ordenamento jurídico, mais especificamente no artigo 18
do Código Penal, um crime é doloso quando o agente quer o seu resultado, ou seja é
a consciência e vontade de realizar uma conduta dotada de ilicitude prevista em um
tipo penal, nas palavras de Welzel25, o dolo em sentido técnico penal, é somente a
vontade de ação vocacionada a realização do tipo de um delito.
Este elemento subjetivo é representado, portanto, pela vontade consciente de
uma ação direcionada contra uma norma penal.26 Além disso, o dolo foi estabelecido
pelo legislador como regra geral, todo crime via de regra é doloso, admitindo somente
a forma culposa com expressa previsão legal, sendo, portanto, uma exceção.
Cumpre ressaltar, que a definição feita pelo legislador carece de fundamentos,
é rasa e precisou de auxílio da doutrina para cristalizar uma definição mais coerente
e delimitadora.27 Nelson Hungria afirma que o Código Penal adotou a teoria do
consentimento, a qual será abordada em momento oportuno, com isso acaba por
estabelecer um critério que delimita o alcance do dolo nas problemáticas em que há
25 WELZEL, Hans, 1951 apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 355. 26 BITENCOURT, loc. cit. 27 LUCCHESI, Guilherme Brenner. A Punição da Culpa a Título de Dolo, o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Doutorado em Direito) – UFPR, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. p. 191.
24
assunção do resultado para os casos em que o infrator consente com a produção do
ilícito penal.28
4.1.1 Elementos do Dolo
Após a breve conceituação de dolo, balizada pelo nosso ordenamento jurídico
pátrio, é mister que se estude os elementos que o compõe, conforme se vera adiante.
O dolo é constituído por dois elementos, um cognitivo que se consubstancia no
conhecimento ou consciência do fato típico que compõe a ação e um volitivo que se
amolda na vontade de realizar tal conduta.
O elemento cognitivo ou intelectual, refere-se a consciência do agente
criminoso, Zaffaroni29 faz uma observação pontual quanto a este primeiro elemento,
afirma que o sujeito ativo do crime não precisa ter um conhecimento técnico da norma
penal, é necessário apenas que possua “conhecimento paralelo na esfera do profano”
ou a “valoração paralela de leigo”, tal conhecimento deve ser atual, sendo configurado
no lapso temporal em que ocorre o crime e não posterior a sua execução.
Ainda sobre esta temática, elucida Rogério Greco:
A consciência, ou seja, o momento intelectual do dolo, basicamente, diz respeito à situação fática em que se encontra o agente. O agente deve ter consciência, isto é, deve saber exatamente aquilo que faz, para que se lhe possa atribuir o resultado lesivo a título de dolo.30
Deve portanto, o agente saber aquilo que faz, pode-se citar como exemplo o
crime de homicídio tutelado pelo artigo 121 do Código Penal, o polo ativo da referida
conduta deve saber que mata outra pessoa, o mesmo ocorre com relação à crimes
patrimoniais como é o caso do furto, estabelecido no artigo 155 também do Código
Penal, o infrator deve saber que está subtraindo para si ou para outrem, coisa alheia
móvel e consequentemente diminuindo de forma ilícita o patrimônio de outro
particular, ora polo passivo do crime.
28 HUNGRIA, 1958 apud LUCCHESI, Guilherme Brenner. A Punição da Culpa a Título de Dolo, o problema da chamada “cegueira deliberada”. Tese (Doutorado em Direito) – UFPR, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. p. 189. 29 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral. v. 1. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423. 30 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. 10 Ed. Rio de Janeiro. Impetus, 2008. p. 183
25
O segundo elemento que compõe o dolo, se configura como a vontade de
realizar uma conduta e de produzir e prever (representar) um resultado, é portanto
uma faculdade do ser humano, de livremente escolher praticar ou não praticar
determinada conduta, logo uma ação que possua o componente da coação não
poderia configurar uma vontade, visto que não se consubstancia como uma faculdade.
Além disso, no que concerne à vontade, esta deve transcender a seara psíquica
do agente, estando no plano fático, argumenta Bittencourt31 que a vontade sem
representação (previsão sem vontade) é penalmente irrelevante, ela deve abranger a
ação ou omissão e o resultado do agente.
Nesta linha de raciocínio José Cerezo Mir32 cita o seguinte exemplo, um
sobrinho que é herdeiro de seu tio, o recomenda que faça inúmeras viagens de avião
com intuito de que ocorra algum acidente e consequentemente o falecimento do
mesmo, certamente deseja que ele morra, porém neste caso não está presente o
elemento volitivo.
Vale ressaltar que na ausência de um destes elementos o crime não se
caracterizado como doloso.
Por fim, nos ensina o doutrinador Welzel33 que quando verificados os elementos
constitutivos do dolo, este alberga o objetivo que o infrator deseja alcançar, os meios
que ele utiliza para isso e as consequências secundárias que estão necessariamente
vinculadas com o emprego dos meios.
4.1.2 Teorias do Dolo
São várias as teorias que abordam o conceito de dolo, mas dentre estas
existem três serão objeto de estudo: teoria da vontade, teoria do assentimento e teoria
da representação.
31 BITENCOURT, 2013, p. 359 32 CEREZO MIR, 2001, p. 145 apud GRECO, 2006, p. 185. 33 WELZEL, 1951 apud JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, volume 1: parte geral. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 289.
26
4.1.2.1 Teoria da vontade
Esta teoria estabelece, como o nome já diz, que a essência do dolo estaria na
vontade do particular causar o resultado que se amolda a um tipo penal, sendo que a
representação (consciência da ilicitude), nas palavras de Bitencourt seria como se
fosse uma “irmã siamesa da vontade, visto que vislumbrar a vontade sem
representação seria uma ideia impossível, pois quando o particular dota de uma
vontade livre vocacionada para um determinado fim, ele necessariamente tem
consciência do resultado, realizada sua representação.34
Nas palavras de Rogério Greco:
Segundo a teoria da vontade, dolo seria tão-somente a vontade livre e consciente de querer praticar a infração penal, isto é, de querer levar a efeito a conduta prevista no tipo penal incriminador.35
Com relação ao dolo eventual, a referida teoria estabelece que assumir o risco
que possivelmente produzirá o resultado, equivale-se a vontade, visto que assumir de
certa forma é um querer.36
Dentre os argumentos emanados pelos críticos desta teoria, o principal refere-
se a questão de que a vontade não é essencial para a concretização do tipo.37
Além da impossibilidade de comprovação empírica, posto que para a
caracterização do dolo exige-se um elemento que se encontra na mente do autor e
quando não exteriorizado, torna-se quase impossível sua comprovação, mesmo tendo
em vista que a comprovação deste elemento subjetivo se consubstancia em uma
questão de processo penal, sua definição gera impacto no próprio objeto de prova.38
34 BITENCOURT, 2013, p. 357. 35 GRECO, 2008, p. 186. 36 BITENCOURT, op. cit., p. 357. 37 DIÁZ, 1993 apud OLIVEIRA, Suzana Luzia. Dolo Eventual e Culpa Consciente Nos Delitos Praticados na Direção De Veículos Automotor. Monografia (Graduação em Direito) UFPR. Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2016. p. 18. 38 COPELLO, 1999 apud PARDAL, Rodrigo Francisconi Costa. Dolo: entre o conhecimento e a vontade. Tese (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2013. p. 91
27
4.1.2.2 Teoria da representação ou da possibilidade
Para esta corrente de pensamento, o dolo se consubstancia na previsão
(representação) do resultado que contrária a norma penal.39 Portanto, a mera
representação por parte do infrator já configuraria o dolo e seria passível de punição.
Porém, conforme se observa de forma cristalina, a mera representação não é
suficiente para configuração do elemento subjetivo dolo e por consequência gerar uma
penalidade para o suposto infrator, é necessário um momento de maior intensidade
que faça um ligamento entre a representação e a vontade.
Nesta linha de raciocínio, Bittencourt sustenta que:
Segunda a teoria da representação, cujos principais defensores, em sua fase inicial, foram Von Liszt e Frank, para a existência do dolo é suficiente a representação subjetiva ou a previsão do resultado como certo ou provável. Essa é uma teoria hoje completamente desacreditada, e até mesmo seus grandes defensores, Vonz List e Frank, acabaram, enfim, reconhecendo que somente a representação do resultado era insuficiente para exaurir a noção de dolo, sendo necessário um momento de mais intensa ou íntima relação psíquica ente o agente e o resultado, que, inegavelmente, identifica-se na vontade.40
Ainda, para esta teoria não há distinção entre dolo eventual e culpa consciente,
pois basta a representação do agente para responder por um infração dolosa.41
Ocorreria, portanto, uma supressão dos crimes praticados com culpa consciente e um
aumento dos crimes dolosos.
Dentre deste panorama, um agente que realiza uma atividade de risco e tenha
representado um resultado que venha a ocorrer será responsabilizado de a título de
dolo, o que de fato não parece justo nem compatível com sua conduta.
4.1.2.3 Teoria do consentimento
Esta teoria muito se assemelha à teoria da vontade, pois exige que o infrator
tenha consciência (representação do fato), não sendo necessário a intenção de
produção do resultado, basta apenas o seu assentimento.42 Nesta teoria não basta
39 JESUS, 2002, p. 288. 40 BITENCOURT, 2013, p. 357-358. 41 GRECO, 2008, p. 186. 42 JESUS, 2002, p. 288.
28
somente a representação, que seria um mero ato que compõe a seara psíquica do
indivíduo.
Nesta vertente Rogério Greco faz o seguinte apontamento:
Já a teoria do assentimento diz que atua com dolo aquele que, antevendo como possível o resultado lesivo com a prática de sua conduta, mesmo não querendo de forma direta, não se importa com a sua ocorrência, assumindo o risco de vir a produzi-lo. Aqui o agente não quer o resultado diretamente, mas entende como possível e o aceita.43
Conforme já abordado neste trabalho, o código penal adotou a referida teoria
do assentimento no que tange a aplicação do dolo eventual, tema este que será
abordado em momento oportuno, tal afirmação contata-se na leitura do artigo 18, I do
Código Penal, o qual estabelece que o crime é doloso, quando o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.44
Ao final deste dispositivo legal está escrito, “assumiu o risco de produzi-lo”, aqui
encontra-se o dolo eventual, aceito pela ampla maioria da doutrina e jurisprudência,
dentre os casos em que o referido instituto e mais aplicado na sociedade
contemporânea, pode-se citar a caracterização do dolo eventual nos casos de
embriaguez nos crimes de trânsito.
Um agente que ingere uma grande quantidade de álcool e em seguida vai até
seu automóvel para se deslocar para outro local, mesmo não tendo a intenção de
matar ou ferir outra pessoa, acaba por aceitar que poderá produzir um resultado que
amolde sua conduta a um tipo penal, seja esta o homicídio ou qualquer outro crime
que atente contra a integridade física de terceiro.
4.1.3 Espécies de Dolo
Conforme já abordado neste trabalho, dolo se consubstancia na composição
de dois elementos, um volitivo denominado de vontade e um cognitivo (intelectual)
sendo este último a consciência (representação). Agora neste subcapitulo serão
abordadas as espécies do dolo, sendo estas dolo direto ou imediato e dolo indireto ou
dolo eventual.
43 GRECO, 2008, p. 186. 44 BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://w ww.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 20 fev. 2019.
29
4.1.3.1 Dolo direto
Nesta modalidade, o agente que produz o resultado ilícito, visa este fim, possui
a intenção e vontade de pratica-lo, realiza de forma direta o fato típico, ou seja, o
agente está consciente (não possui nenhum tipo de coação, seja física ou psicológica)
e direciona sua vontade para a prática da ilicitude.
Bitencourt, relata que o dolo direto é composto por três aspectos, sendo o
primeiro a representação do resultado, dos meios necessários e das consequências
do ato, o segundo aspecto se configura no querer agir, visando o resultado, assim
como os meios escolhidos para executar a ação e por fim, o anuir na realização das
consequências representadas, as quais decorrem do uso dos meios escolhidos para
atingir o fim objetivado.45
Ainda relata que o dolo direto é classificado como de primeiro grau, quanto aos
fins propostos e os meios escolhidos e de segundo grau no que tange aos efeitos
colaterais.46
Conforme elucida Juarez Cirino dos Santos, o dolo direto de primeiro grau é
abarcado pela vontade do agente.47
Esta analise pode ser melhor elucidada através de um exemplo fático, vejamos,
um agente que visa cometer o crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal), para
atingir este fim faz uso de uma arma de fogo e assim disfere tiros contra a vítima.
Nesta situação o infrator utiliza a arma de fogo como meio, isto de forma consciente e
tem como consequência a realização do crime supracitada.
Já no que concerne ao dolo direto de segunda grau, também conhecido como
dolo necessário, o agente para atingir o resultado do cometimento do crime
pretendido, tem consciência de que será gerado um efeito colateral típico, sendo que
este decorre do meio utilizado escolhido para atingir o que objetiva.48
Como exemplo desta modalidade, Figueiredo Dias cita o seguinte caso:
O exemplo de escola é aqui constituído pelo agente que coloca uma bomba num avião como forma de, em pleno voo, matar um seu inimigo que nele viaja, mas plenamente consciente de que a explosão provocará, como vem a provocar, a morte dos restantes viajantes. A morte do inimigo ser –lhe –á imputada a título de dolo direto intencional ou de primeiro grau, a de todos os
45 BITENCOURT, 2013, p. 360. 46 BITENCOURT loc. cit. 47 DOS SANTOS, 1985 apud BITENCOURT, 2013, p. 361. 48 BITENCOURT, loc. cit.
30
outros ocupantes, como consequência da explosão da bomba e da aeronave, a título de dolo direto necessário ou de segundo grau.49
Nota-se que tanto no dolo de primeiro grau como de segundo, o dolo é direto,
o dolo de segundo grau acaba por abarcar a primeira modalidade, posto que o agente
tem consciência e vontade e visa cometer uma conduta típica.
A diferença reside no sentido de que no dolo de segundo grau, o autor, para
alcançar o resultado pretendido, acaba realizando outro (gerando um efeito colateral)
que não era seu foco principal, mas necessário para a concretização do fim
pretendido.
Vale ressaltar a colocação de Bitencourt, argumenta que a simples presença
na mesma ação das duas modalidades de dolo, de primeiro e segundo grau, não pode
ser caracterizada como concurso formal impróprio de crimes, posto que esta
duplicidade não altera a unidade de elemento subjetivo, a referida distinção de graus
estabelece a intensidade do dolo, não sua diversidade.50
Uma questão peculiar a despeito do referido tema, se consubstancia no
assassinato de irmãos gêmeos, caso o agente tenha como objetivo matar apenas um
dos irmãos, de que forma será responsabilizado? Vejamos, mesmo que ele objetive
matar apenas um, responderá por duplo homicídio, tendo em vista que por questões
biológicas ocorreria a morte de ambos, ocorrerá, portanto, dolo direto de primeiro grau
no que tange a vítima visada e dolo direto de segundo grau em relação a seu irmão.51
4.1.3.2 Dolo eventual
O dolo eventual caracteriza-se quando o agente não objetiva realizar de forma
direta o fim ilícito, porém aceita este como possível e assume o risco da produção de
seu resultado.
Conforme estabelece a parte final do artigo 18, I, o crime é doloso quando o
agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Na leitura desde dispositivo nota-se que o autor do delito prevê o resultado
como provável e mesmo assim aceita o risco de produzir este. Assim como no dolo
49 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Tomo I. São Paulo: RT, 2007. p. 367-368. 50 BITENCOURT, 2013, p. 361. 51 BITENCOURT, loc. cit.
31
direto, no dolo eventual, existe a presença da consciência e da vontade, posto que a
mera representação não é suficiente para a configuração do dolo eventual.
Percebe-se que a definição utilizada pelo artigo 18 do Código Penal é simplória.
Lucchesi conclui através de apontamentos de Luís Greco, que a definição deve ser
complementado pelo caput do artigo 20 que tutelado o erro de tipo, estabelece que “O
erro sobre elemento constitutivo do tipo penal exclui o dolo”, levando em consideração
esta linha de raciocínio o conhecimento do autor acerca das circunstâncias
elementares do crime é colocado como elemento essencial para a configuração do
dolo.52
No que tange ao elemento volitivo, Bitencourt elucida ser indispensável uma
determinada relação de vontade entre o desfecho da conduta e o autor, pois o
elemento volitivo que diferencia o dolo da culpa.53
Nos ensina Alberto Silva Franco:
Tolerar o resultado, consentir em sua provocação, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único momento, o de provar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo.54
A diferença entre o dolo direito e o dolo eventual se verifica segundo Bitencourt
na seguinte afirmação, o dolo imediato é a vontade por causa do resultado, enquanto
que no dolo eventual é a vontade apesar do resultado.55
Nesta colocação, existem algumas palavras centrais para o entendimento deste
instituto, na primeira afirmação é relatado que a “vontade por causa do resultado”, ora,
o autor está vocacionado para atingir o fim, objetiva este, como é o caso do exemplo
do homicídio em que o autor utiliza uma arma de fogo para cometer o crime, visa a
morte da vítima e para concretiza-la faz o uso do referido instrumento de ataque. Na
segunda afirmação estabelece a seguinte colocação, “a vontade apesar do resultado”,
aqui o autor prevê o resultado e não se importa se isto ocorrer.
Ainda no que tange a diferença destas nomenclaturas, Juarez Tavares
argumenta o seguinte:
52 LUCCHESI, Guilherme Brenner. Acertando um caso: Uma análise da cegueira deliberada como fundamento para a condenação por lavagem de dinheiro no voto da Ministra Rosa Weber na APN470. 1. ed. São Paulo: Jornal de Ciências Criminais, 2018. p. 104. 53 Ibid., p. 363. 54 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 6. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997. p. 284. 55 BITENCOURT, 2013, p. 363.
32
A diferenciação com o dolo direto deve se dar, primeiramente, em que naquele, a associação representativa se fixa na certeza de que as consequências ligar-se-ão necessariamente aos meios ou ao fim, enquanto que neste esta ligação se representa apenas como possível na mente do autor. O caráter de ligação necessária ou somente possível na mente do autor é que marca já, dentro do momento intelectivo, a linha divisória entre as duas espécies de dolo.56
Nesta linha de pensamento sobre a diferenciação, Tavares elucida que o autor
pode entrar em duas situações distintas, sendo a primeira a de conformar-se com o
acontecimento (vontade indireta de realização), neste caso o agente não atribui a si
qualquer chance de evitar o que irá resultar da conduta, deixará a verificação ao
acaso, o que iria caracterizar o dolo indireto, já no que concerne ao segundo caso,
confiar na sua não verificação o que configura a culpa consciente.57
Lendo o conceito de dolo eventual, pode-se pensar que é simplório e de fácil
compreensão, sendo algo já pacificado na doutrina, no entanto, engana-se quem
pensa desta forma, é um tema que gera ampla discussão até os dias de hoje.
Rogério Greco apresenta uma conceituação que diverge da que é proposta por
Bitencourt e Tavares, pelo menos em alguns pontos, pois afirma que ao contrário do
dolo direto, no dolo eventual ou indireto, não se pode identificar a vontade do agente
como um de seus elementos integrantes, existindo somente a consciência
(representação).58
Com essa linha de raciocínio, Greco conclui, assim como os teóricos Bustos
Ramirez e Homormazábal Malarée, que o dolo eventual não passa de uma espécie
de culpa punida de forma mais severa.59
Diante das conceituações feitas e adotando a linha de raciocínio proposta por
Tavares e Bitencourt, pode-se citar o seguinte caso, o qual amolda-se ao dolo
eventual, um sujeito A que nunca utilizou um arco antes e possui ciência de sua falta
de habilidade, visa atingir uma maçã que está acima da cabeça de um sujeito B com
uma flecha, o que acaba resultado a morte de B.
56 TAVARES, Juarez. Espécies de Dolo e Outros Elementos Subjetivos do Tipo. Paraná: Revista da Faculdade de Direito UFPR, 1971. p. 112. 57 Ibid., p. 113. 58 GRECO, 2008, p. 190-191. 59 GRECO, loc. cit.
33
4.2 A CULPA
O ordenamento jurídico pátrio estabelece a definição de culpa no artigo 18, II
do Código Penal, o crime se configura como culposo quando o agente deu causa ao
resultado por imprudência, negligência ou imperícia.60
Diante disso, conclui-se que o crime na forma culposa acontece quando um
agente age com imprudência, imperícia ou negligência, causando um dano ao bem
jurídico tutelado pela esfera penal.
A definição elencada pelo diploma legal não esgota o tema e necessita ser
complementada, segundo Bitencourt:
A tipicidade do crime culposo decorre da realização de uma conduta não diligente, isto é, descuidada, causadora de uma lesão ou de perigo concreto a um bem jurídico-penalmente protegido. Contudo, a falta do cuidado objetivo devido, configurador da imprudência, negligência ou imperícia, é de natureza objetiva. Em outros termos, no plano da tipicidade, trata-se, apenas, de analisar se o agente agiu com o cuidado necessário e normalmente exigível.61
Conforme observa-se de forma cristalina, o crime culposo ocorre quando o
comportamento do agente demonstra-se descuidado, incalto ou imprudente.
Corroborando com este entendimento, nas palavras de Mirabete, enquadra-se
como crime culposo a conduta humana voluntária, sendo esta uma ação ou omissão,
que produz resultado antijurídico não objetivado, mas previsível que podia ser evitado
se houvesse cautela e atenção.62
No que tange a diferenciação do crimes doloso e culposo, o primeiro é tratado
como regra geral, todo crime via de regra é doloso, o agente possui tem consciência
e vontade de praticar o infração penal, já o injusto culposo é tratado como exceção,
só caberá a responsabilização na forma culposa se houver expressa previsão legal.
Na lição de Rogério Greco, para a caracterização do crime na forma culposa é
necessário a constatação de alguns elementos, são eles: conduta humana voluntária,
comissiva ou omissiva, inobservância de um dever objetivo de cuidado seja este
caracterizado por, negligência, imprudência ou imperícia, resultado lesivo não querido
pelo agente, nexo de causalidade entre a conduta do autor que deixa de observar o
60 BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://w ww.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 20 fev. 2019. 61 BITENCOURT, 2013, p. 372. 62 MIRABETE, 2009 apud GRECO, 2008, p. 197.
34
seu dever de cuidado que acaba resultando em uma lesão de um bem jurídico,
previsibilidade e por fim, tipicidade.63
4.2.1 Os Elementos do Delito Culposo
Conforme supramencionado no parágrafo anterior, existem alguns elementos
necessários para a constatação do delito culposo, os quais serão abordados a seguir.
4.2.1.1 Conduta humana voluntária
Sabe-se que toda conduta humana atinge um fim, podendo este ser lícito ou
ilícito.
De uma forma geral as condutas nos crimes de modalidade culposa possuem
um fim lícito, mas que por imprudência acabam por gerar de forma não requerida, um
resultado ilícito tipificado no diploma legal.
Segundo Rogério Greco, frente ao que se estabelece nos crimes dolosos, a
conduta de natureza culposa os meios escolhidos e utilizados pelo agente para atingir
a finalidade lícita, acabam sendo mal utilizados, neste sentido dá o seguinte exemplo,
se alguém querendo chegar mais cedo em sua casa para assistir um jogo de futebol,
dirige com velocidade acima do limite estabelecido e, em decorrência disso, atropela
e causa a morte de uma criança que tentava atravessar a rua em que estava o carro
do motorista incalto.64
Ora, no caso em questão o fim que o agente objetivava era lícito, ele não queria
atropelar a criança, visava apenas chegar mais cedo em sua residência, mas a má
utilização do meio para alcançar seu objetivo acabou resultado em uma infração
penal, pois não observou o dever cuidado, no caso o limite de velocidade estabelecido.
Constata-se então, que para toda conduta há uma finalidade, sobre isso relata
Zaffaroni:
Se a conduta não se concebe sem vontade, e a vontade não se concebe sem finalidade, a conduta que individualiza o tipo culposo terá uma finalidade, tal qual a que individualiza o tipo doloso [...]. O tipo culposo não individualiza a
63 GRECO, 2008, p. 198. 64 GRECO, loc. cit.
35
conduta pela finalidade, mas sim porque pela forma que se obtém essa finalidade se viola um dever de cuidado.65
4.2.1.2 Inobservância do cuidado objetivo
No crime culposo, o essencial não se configura na simples causação do
resultado, mas sim o modo pelo qual ocorreu essa causa, nessa linha de pensamento
é inserido o conceito de inobservância do cuidado objetivo.
Tal conceito, consiste em reconhecer o perigo para o bem jurídico tutelado e
preocupar-se com as possíveis consequências que uma conduta que carece de
cautela pode gerar.66
A vida em sociedade nos impõe algumas regras de conduta, as quais devem
ser obedecidas por todos os particulares, caso isso não ocorra pode acabar
ocasionando o caos da sociedade.
Neste aspecto Bitencourt elenca o que entende-se por princípio da confiança,
vejamos:
Na vida em sociedade, é natural que cada indivíduo se comporte como se os demais também se comportassem corretamente. Para a avaliação, in concreto, da conduta correta de alguém, não se pode, de forma alguma, deixar de considerar aquilo que, nas mesmas circunstâncias, seria lícito esperar de outrem. Esse critério regulador da conduta humana recebe a denominação de princípio da confiança (Vertrauensgrundsatz). Como o dever objetivo de cuidado dirige-se a todos, nada mais justo esperar que cada um se comporte com a prudência e inteligência necessárias para a convivência harmônica de toda a coletividade. As relações sociais não são orientadas pela desconfiança, com a presunção de que o semelhante não cumprirá com suas obrigações de cidadão. Por razões como essas é que o dever objetivo de cuidado dirige-se a todos, indistintamente, visto num plano puramente objetivo. A evidencia, só quem observa corretamente o dever objetivo de cuidado pode invocar a seu favor o princípio da confiança. Assim, por exemplo, em um cruzamento de trânsito, a quem trafega pela via principal é lícito supor que o outro motorista, que está na via secundária, aguardará sua passagem, em respeito às normas convencionais de trânsito (princípio da confiança).67
Além disso, para que se constate o injusto culposo, deve a ação descuidada do
particular ultrapassar os limites do que a sociedade considera como perigo
socialmente aceitável.68
65 ZAFFARONI, 1997 apud GRECO, 2008, p. 199. 66 Ibid., p. 201 67 BITENCOURT, 2013, p. 375. 68 BITENCOURT, loc. cit.
36
Destarte, conclui-se que existem situações em que o agente prática uma
conduta tida como imprudente, mas este comportamento não cause dano aos bens
jurídicos tutelados pelo Código Penal, ou seja a referida conduta carece de dignidade
penal, em situações como está ele não será punido, posto que é necessário a
concretização de um resultado naturalístico modifique o mundo exterior.69
A referida exigência citada acima está positivada no inciso II, artigo 18 do
Código Penal, o crime é culposo quando o agente deu causa ao resultado, seja por
negligência, imprudência ou imperícia.
Rogério Greco cita dois exemplos para ilustrar está situação fática, sendo o
primeiro o seguinte caso, um homem que deixa um vaso de flores na beira da janela
de seu prédio, se este não cair não há que se falar em responsabilização culposa,
pois não se vislumbra resultado naturalístico, não há lesão em face de nenhum bem
jurídico.
O segundo exemplo citado pelo autor se consubstancia no seguinte caso, um
agente participa de um racha acaba ultrapassando o sinal vermelho em uma via, mas
não fere nenhum particular, ora, este não responderá por lesão ou homicídio culposo,
porém pode responder pelo crime estabelecido no artigo 308 do Código de Trânsito.
4.2.1.3 Produção de um resultado e nexo causal
Além do que já foi elencado até aqui, para uma conduta ser culposa ela deve
possuir um nexo de causalidade entre a conduta que não observe um dever objetivo
de cuidado e o resultado que dote de dignidade penal.
Caso seja observado o dever objetivo de cuidado e mesmo assim ocorra o
injusto penal, não se pode falar em responsabilização culposa.70
Sobre isso o doutrinador Bitencourt elucida:
Com efeito, quando, hipoteticamente, for obser- vado o dever de cautela, e ainda assim o resultado ocorrer, não se poderá falar em crime culposo. Atribuir-se, nessa hipótese, a responsabilidade ao agente cauteloso constituirá autêntica responsabilidade objetiva, pela ausência de nexo causal. Os limites da norma imperativa encontram-se no poder de cumprimento pelo sujeito; por isso, o dever de cuidado não pode ir além desses limites. A inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade. Em outros termos, é indispensável que a inobservância do cuidado devido seja a causa do resultado tipificado como crime culposo. Por isso, não haverá crime culposo
69 GRECO, 2008, p. 200. 70 JUNIOR, 1976 apud BITENCOURT, 2013, p. 376.
37
quando o agente, não observando o dever de cuidado devido, envolver-se em um evento lesivo, que se verificaria mesmo que a diligência devida tivesse sido adotada.71
Conclui-se que o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado
naturalístico se demonstra como imprescindível para que se possa falar em
responsabilização culposa do agente.
4.2.1.4 Previsibilidade objetiva do resultado
O resultado da conduta incalta deve ser objetivamente previsível, caso o
resultado não seja previsível, não há que se falar na forma culposa do injusto penal.
Segundo Hungria, a previsibilidade é caracterizada quando o agente no
contexto em que se encontra, tem a possibilidade de prever as consequências de seu
ato, ressalta que é previsível o fato sob o aspecto penal, quando a previsão do seu
advento, na situação fática, podia ser exigida do homem normal (homo medius).72
O mesmo entendimento possui Bitencourt:
A previsibilidade objetiva se determina mediante um juízo levado a cabo, colocando-se o observador (por exemplo, o juiz) na posição do autor no momento do começo da ação, e levando em consideração as circunstâncias do caso concreto cognoscíveis por uma pessoa inteligente, mais as conhecidas pelo autor e a experiência comum da época sobre os cursos causais.73
A doutrina realiza ainda realiza uma divisão entre a previsibilidade objetiva e
subjetiva. Previsibilidade objetiva segundo Rogério Greco, é aquela em que o agente
no caso concreto deve ser substituído pelo “homem médio”, caso o resultado ainda
persista, mesmo após a referida substituição é sinal de que o resultado não poderia
ser previsível, pois é exigido dele a capacidade normal de um homem, nada além
disso.74
71 BITENCOURT, 2013, p. 376-377. 72 HUNGRIA, 1958 apud GRECO, 2008, p. 201. 73 BITENCOURT, op cit., p. 376-377. 74 Como exemplo desta modalidade pode-se citar o seguinte caso, um agente dirige seu veículo em alta velocidade próximo a uma escola, no horário de saída dos estudantes e acaba causando a morte de um destes. Analisando o caso, verifica-se que o agente dirigindo em velocidade excessiva (violação do dever objetivo de cuidado), atropelou um adolescente o que resultou em sua morte (resultado naturalístico e nexo de causalidade), sendo que a vítima estava saindo da escola (previsibilidade do fato, tendo em vista que no horário em questão existe grande circulação na rua). Ao substituirmos o infrator por um homem médio, o resultado teria sido diferente tendo em vista a prudência que este
38
Frente ao que é estabelecido na previsibilidade objetiva, na subjetiva não existe
a substituição do indivíduo que realiza a conduta por um homem médio, o que é de
fato levado em consideração são as condições particulares do agente na situação
(limitações e experiências).75
Neste temática é vislumbrado as circunstâncias que antecedem o resultado
naturalístico, nesta linha de pensamento Damásio de Jesus argumenta o que segue:
Nos termos do critério subjetivo, deve ser aferida tendo em vista as condições pessoais do sujeito, deve ser aferida tendo vista as condições pessoais do sujeito, a questão de o resultado ser ou não previsível é resolvida com base nas circunstâncias antecedentes à sua produção. Não se pergunta o que o homem prudente deveria fazer naquele momento, mas sim o que era exigível do sujeito nas circunstâncias em que se viu envolvido.76
A doutrina diverge quanto a aceitação da previsibilidade subjetiva, dentro os
doutrinadores que rechaçam o referido instituto, pode-se citar Hungria, que elenca o
seguinte apontamento:
É de rejeitar-se, porém, a opinião segundo a qual a previsibilidade deve ser referida à individualidade subjetiva do agente, e não ao tipo psicológico médio. O que decide não é a atenção habitual do agente ou a diligência que ele costuma empregar in rebus suis, mas a atenção e diligência próprias do comum dos homens; não é previsibilidade individual, mas a medida objetiva média de precaução imposta ou reclamada pela vida social.77
Para os teóricos que admitem a previsibilidade objetiva, deverão estudar seus
elementos (substituição do agente pelo homem médio) no esfera do tipo penal,
enquanto que para o adeptos da previsibilidade subjetiva, direcionarão seus estudos
ao campo da culpabilidade, posto que serão abordadas as condições pessoas do
agente.78
tomaria. A referida substituição que visa a modificação do resultado da origem a previsibilidade objetiva. In: GRECO, 2008, p. 202. 75 Ibid., p. 202-203. 76 JESUS, 2002, p. 300. 77 HUNGRIA, 1958 apud GRECO, 2008, p. 203. 78 JESUS, op. cit., p. 300.
39
4.2.2 Modalidades de Culpa
Conforme tutelado pelo incido II do artigo 18 do Código Penal, um crime pode
ser considerado culposo quando o autor age com imprudência, negligência ou
imperícia, sendo estas denominadas como modalidades de culpa.
A primeira delas a imprudência, se configura como uma conduta positiva
(comissiva) de falta de cuidado e imoderação, o agente nesta modalidade de culpa,
pratica uma conduta perigosa para a sociedade, nos ensina Bitencourt através do
exemplos fáticos de Bonfim e Capez:
Na imprudência há visível falta de atenção, o agir descuidado não observa o dever objetivo da cautela devida que as circunstâncias fáticas exigem. Se o agente for mais atento, poderá prever o resultado, utilizando seus freios inibitórios, e assim não realizar a ação lesiva. Uma característica especial da imprudência é a concomitância da culpa e da ação. Enquanto o agente pratica a ação, vai-se desenvolvendo ao mesmo tempo a imprudência: ação e imprudência coexistem, são, digamos, simultâneas. Bonfim e Capez ilustram com os seguintes exemplos: “Ultrapassagem proibida, excesso de velocidade, trafegar na contramão, manejar arma carregada etc. Em todos esses casos, a culpa ocorre no mesmo instante em que se desenvolve a ação”. O agente sabe que está sendo imprudente, tem consciência de que está agindo arriscadamente, mas, por acreditar, convictamente, que não produzirá o resultado, avalia mal, e age, e o resultado não querido se concretiza.79
Dentre os exemplos de imprudência, pode ser citado o caso que já pincelado
nesta pesquisa, o motorista que dirige em velocidade acima da permitida.
A segunda modalidade de culpa é a negligência que frente a imprudência se
consubstancia em uma conduta negativa (omissiva), é portanto um deixar de fazer80.
Como exemplo desta modalidade pode-se citar a situação em que o pai deixa sua
arma de fogo ao alcance de seu filho pequeno. Esta modalidade não caracteriza como
um fato psicológico, se enquadra mais como um juízo de apreciação81, pois se atesta
a possibilidade do agente prever as consequências de sua omissão.
Por fim, como última modalidade temos a imperícia, que pode ser entendida
como a inabilidade para exercer determinada atividade ou a falta de conhecimento
técnico que dota o autor da conduta. Como exemplo deste instituto pode-se citar o
engenheiro eletrônico que assina um projeto de construção de um shopping center,
tal exemplo se amolda na referida modalidade tendo em visto que o engenheiro
79 BITENCOURT, 2013, p. 380. 80 GRECO, 2008, p. 205. 81 BITENCOURT, op. cit., p. 380.
40
eletrônica não possui conhecimento técnico para tanto. Além disso, a imperícia não
pode ser confundida com o erro profissional, sobre isso ressalta Bitencourt:
Imperícia, por outro lado, não se confunde com erro profissional. O erro profissional é, em princípio, um acidente escusável, justificável e, de regra, imprevisível, que não depende do uso correto e oportuno dos conhecimentos e regras da ciência. Esse tipo de acidente não decorre da má aplicação de regras e princípios recomendados pela ciência, pela arte ou pela experiência. Deve-se a imperfeição e precariedade dos conhecimentos humanos, operando, portanto, no campo do imprevisível, transpondo os limites da prudência e da atenção humanas. No entanto, não estamos com isso sustentando que exista um direito ao erro, que, desde logo, reconhecemos não existir, apenas desejamos deixar claro que o erro profissional, que não se confunde com imperícia, pode ocorrer, como acidente de percurso, a despeito de serem empregados todas as cautelas, cuidados e diligências que as circunstâncias requerem, situando-se, portanto, fora do campo da previsibilidade. Com efeito, embora o médico, por exemplo, não tenha carta branca, não pode, ao mesmo tempo, ficar limitado por dogmas inalteráveis.82
Destarte, através da referida análise a despeito das modalidades da culpa,
conclui-se que ainda não há pacificação na doutrina com relação a alguns de seus
desdobramentos, existe um amplo de discussão.
4.2.3 Espécies de Culpa
Nosso ordenamento jurídico não realiza uma diferenciação no que tange as
espécies de culpa, no entanto, sabe-se que no meio acadêmico a culpa consciente é
mais gravosa frente a culpa inconsciente. Neste título serão abordadas as espécies
de culpa, mesmo que de forma simplória.
A primeira espécie a ser abordada é a culpa consciente, nesta o resultado
naturalístico e previsto pelo autor da conduta que de forma leviana espera que o
mesmo não ocorra, ele acredita que pode evitar tal resultado.83
Bitencourt relata que quando o agente, prevê o resultado e espera
sinceramente que o resultado ilícito não ocorra, há que se falar em culpa consciente.
Argumenta ainda que como o dever de cuidado é um elemento da culpa, o
desconhecimento da existência, do referido dever pode descaracteriza-la, sob pena
da ocorrência de uma espécie de responsabilidade penal objetiva, o que é vedado
pelo ordenamento jurídico pátrio.84
82 BITENCOURT, 2013, p. 381 83 JESUS, 2002, p. 303. 84 BITENCOURT, op. cit., p. 381.
41
A culpa inconsciente por outro lado é configurada por uma conduta em que o
agente não prevê o resultado naturalístico, apesar de sua possibilidade de previsão.
Em outras palavras o agente atua sem se dar conta que sua conduta representa
um perigo para a sociedade.85
A previsibilidade é um elemento central, posto que identifica as duas espécies
de culpa, a culpa inconsciente por exemplo, caracteriza-se pela ausência absoluta de
nexo psíquico ente o agente e o resultado naturalístico, ante a inexistência da
previsibilidade subjetiva.86
85 BITENCOURT, 2013, p. 383. 86 Ibid., p. 383-384.
42
5 A (IM)POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA CEGUEIRA DELIBERADA NA
ESFERA PENAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
O presente capítulo se consubstancia como núcleo deste trabalho, abordará,
portanto, a teoria da cegueira deliberada.
Inicialmente será realizada uma breve análise no que concerne a lógica de
aplicação da Willful blindness nos Estados Unidos da América, levando em
consideração os elementos subjetivos trazidos pelo Código Modelo, com enfoque no
elemento knowledge.
Por fim, com os apontamentos feitos no capítulo anterior, no que tange aos
elementos subjetivos estabelecidos pelo código penal pátrio, será feita uma analisa
com relação a (im)possibilidade de aplicação da referida teoria no ordenamento
jurídico nacional, tendo em vista a equiparação do dolo eventual com a cegueira
deliberada.
5.1 O CONCEITO DE CEGUEIRA DELIBERADA
Tendo como base os casos em que foi utilizada, consoante capitulo 2, entende-
se por cegueira deliberada as situações em que o agente de modo deliberado se
coloca em uma situação de ignorância, criando assim, de forma consciente barreiras
para alcançar um alto grau de certeza no tocante a ilicitude de sua conduta, se
mantendo em um estado de incerteza.
5.2 KNOWLEDGE COMO ELEMENTO SUBJETIVO NO CÓDIGO MODELO NORTE
AMERICANO E SUA RELAÇÃO COM A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
Para auxiliar na compreensão dos fatos elencados a seguir, cumpre-se
ressaltar que cada ente nos Estados Unidos da América possui competência para
legislar em matéria penal, o documento intitulado como Model Penal Code, foi criado
por uma associação de juristas que estavam preocupados com reforma da legislação
penal americana, com o objetivo de estabelecer um modelo que pudesse ser adotado
pelos Estados.
Ocorre que, nem todos os Estados utilizam os conceitos elencados pelo Código
Penal Modelo posto que não possui natureza vinculante.
43
Porém, o Código Penal Modelo será utilizado como base para delimitar e
conceituar os elementos subjetivos necessários para que ocorra a infração penal.
O Código Penal Modelo norte americano, institui no §2.02, denominado
General Requirements of Culpability, quatro elementos como requisitos para
configurar a culpabilidade do agente, sendo estes, purpose, recklessness, neglicence
e knowledge.87
O primeiro elemento, purpose, se configura quando um particular age de forma
proposital para atingir um resultado específico, ou seja, o autor objetiva determinado
resultado. Segundo Guilherme Brenner Lucchesi, em um crime que se exige purpose,
a natureza da conduta praticada pelo autor assim como o resultado são objetivos
conscientes.88
Na sequência, com relação ao segundo elemento, uma pessoa age com
recklessness, seja com uma omissão ou uma ação, quando está ciente de um alto
risco de promover um resultado que deriva de suas ações.89 Este risco deve ser alto
o suficiente para que a referida ação represente um desvio no padrão de conduta que
uma pessoa respeitadora das normas legais observaria.90
O terceiro elemento neglicence, se consubstancia em uma situação fática
quando o autor da conduta viola um dever geral de cuidado que deve ser observado
por todas as pessoas.
Conforme se verifica, existe uma linha relativamente tênue em relação aos
elementos recklessness e neglicence, a diferença reside no sentido de que o primeiro
exige um padrão de conduta de pessoas que são consideradas cumpridoras da lei,
87 AMERICAN LAW INSTITUTE. Model Penal Code. Filadelfia, 1962. § 2.02. General Requirements of Culpability. Disponível em: <https://www.legal-tools.org/doc/08d77d/pdf/>. Acesso em: 21 mar. 2019. 88 LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 72. 89 Para elucidar o elemento Recklessness, pode-se citar como exemplo o seguinte caso: Fred e sua nova esposa, Betty, decidem ir para o Havaí em sua lua de mel. Wilma, a invejosa ex-mulher de Fred, descobre em qual companhia aérea eles estão e no dia em que eles irão voar, ela planta uma bomba naquele avião. Wilma não tem ideia de que horas o voo decola, mas ela manda a bomba explodir às 7:00 da manhã. A bomba explode às 7:00 da manhã, matando um bagageiro que está carregando bagagem no avião. Neste caso, Wilma não propositalmente matou o bagageiro, uma vez que não era sua intenção de matá-lo. Além disso, ela não o matou conscientemente porque não era certo que a morte do condutor da bagagem resultaria das ações de Wilma. No entanto, como havia um risco substancial e injustificado de que as ações de Wilma resultassem na morte de alguém ou em ferimentos graves, ela agiu de forma imprudente. (Tradução livre). In: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Model Penal Code’s Mens Rea. Law Shelf Educational Media. Disponível em: <https://lawshelf.com/coursew are/entry/model-penal-codes-mens-rea>. Acesso em: 21 mar. 2019. 90 LUCCHESI, op. cit., p. 73.
44
enquanto que no segundo elemento exige de todas as pessoas a observação de um
dever geral de cuidado.
Além disso, no elemento recklessness, o autor do fato tem ciência do risco de
produção do resultado ilícito, enquanto que o autor que age com neglicence, deveria
ter ciência do risco mas não o percebe.91 Existe portanto, uma valoração do autor da
conduta, que possibilita uma sanção diferenciada para o mesmo.
Com relação ao elemento knowledge, o Código Penal Modelo estabelece que
o mesmo se configura na ciência que o autor do fato possui no tocante à natureza de
sua conduta assim como de elementos indispensáveis para que ocorra o delito, sendo
que essa ciência, refere-se também a alta probabilidade de que o resultado ilegal
ocorra.92
A aplicação deste elemento subjetivo pode causar certa confusão, tendo em
vista a similitude em relação à sua definição frente a outros elementos já abordados
neste capítulo. Diante disso, a título de conhecimento será feita uma breve
diferenciação.
A diferença entre knowledge e purpose se consubstancia no objetivo
consciente que possui o autor do fato, o qual é vislumbrado apenas no elemento
purpose.93
Já no que concerne a distinção entre knowledge e recklessness, nas palavras
de Lucchesi:
Os Comentários ao Código Penal Modelo propõem que as categorias se opõem na medida em que recklessness envolve a criação consciente de riscos, ao passo que knowledge se refere à consciência quanto à quase certeza de que o resultado ocorrerá. Em ambos os casos tem-se um grau cognitivo. O que varia é o objeto do conhecimento do autor: o risco de produzir um resultado ou a (quase certa) produção do resultado em si. Não escapa a atenção dos comentaristas o fato de em ambos os casos estar tratando com graus de probabilidade, e não com certeza.94
91 LUCCHESI, 2018, p. 74. 92 Id., 2017, p. 99. 93 Para tornar clara a referida diferenciação pode-se citar como exemplo o seguinte caso: Fred e sua esposa vão para o Havaí passar a lua de mel. Wilma, a ciumenta ex-esposa de Fred decide explodir o avião em que o casal irá embarcar, no entanto, Wilma tem conhecimento de que neste avião existem mais noventa e oito passageiros e apesar de se sentir mal em relação a estes, decide prosseguir com seu plano. Ela então explode o avião matando Fred e sua esposa além dos outros passageiros. No caso em tela, percebe-se que Wilma tinha a intenção de matar Fred e sua esposa (purpose) e embora não objetivasse a morte das outras pessoas sabia que sua ação resultaria em suas mortes (knowledge). (Tradução livre). In: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Model Penal Code’s Mens Rea. Law Shelf Educational Media. Disponível em: <https://lawshelf.com/courseware/entry/model-penal-codes-mens-rea>. Acesso em: 21 mar. 2019. 94 LUCCHESI, op. cit., p. 107.
45
Vislumbra-se portanto, a linha tênue que existe entre estes elementos
estabelecidos pelo Código Penal Modelo.
No tocante a relação do elemento subjetivo knowledge com a cegueira
deliberada, conforme abordado no capítulo de número 2, o qual traz o resumo do caso
United States v. Jewel, a cegueira deliberada começou a ser utilizada como um
substituto para o elemento knowledge com o intuito de satisfazer o requisito mental
dos delitos que exigem o conhecimento do autor, mesmo quando este não está
presente, equiparando o desconhecimento voluntário ao conhecimento efetivo. No
caso em questão, o réu foi acusado de tráfico de drogas, por ter transportado maconha
em um compartimento secreto de um automóvel.
Neste caso, o magistrado Anthony M. Kennedy realizou um apontamento no
sentido de que para constatação do delito de tráfico seria necessário comprovar o
conhecimento (knowledge) do acusado sobre a droga contida no automóvel, exigido
pelo crime em questão. No entanto, a tese vitoriosa foi a contrária, configurando assim
a cegueira deliberada (desconhecimento intencional).
O desfecho deste caso foi importante para elaboração de precedentes
utilizando a cegueira deliberada, adotando assim a delimitação de knowledge
estabelecida pelo Código Penal Modelo.
O doutrinador Sydow reforça esta ideia, elencando que o diploma abrange não
apenas a ideia de conhecimento sobre o fato, como também a alta probabilidade de
conhecimento.95
Diante deste entendimento, conclui-se que o fato de as drogas estarem no
veículo conduzido por Jewell configuraria uma alta probabilidade de conhecimento por
parte do mesmo.
Com isso, percebe-se que a caracterização da willful blindness está presente
no território norte americano quando o autor do fato possui ciência da elevada chance
de existência de uma circunstância ou fato elementar do delito e de forma deliberada
realiza atos que evitem comprovar a realidade do fato.96
Essa construção da cegueira deliberada aborda a subjetividade do autor, tendo
em vista que exige que o mesmo não acredite que a circunstância elementar não
existisse.
95 SYDOW, Spencer Toth. A teoria da Cegueira Deliberada. 2. tir. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 85. 96 LUCCHESI, 2017, p. 184.
46
5.3 A UTILIZAÇÃO DO DOLO EVENTUAL COMO CRITÉRIO LEGITIMADOR DA
CEGUEIRA DELIBERADA
Conforme foi verificado no subcapitulo anterior, knowledge, elemento subjetivo
necessário para a imputação de um crime se configura quando o autor possui
conhecimento acerca da natureza de sua conduta e ciência de que é praticamente
certo que a conduta praticada resultará em um ilícito criminal, sendo que a cegueira
deliberada possui uma função substitutiva deste elemento, equiparando assim o
desconhecimento voluntário ao conhecimento.
Ainda sobre a temática do elemento subjetivo, foi elencado no capítulo 2
mesmo que de forma breve, a forma pela qual o Brasil vem aplicando a cegueira
deliberada, constatou-se que a Ministra Rosa Weber no caso “Mensalão”, fez uso da
willful blindness para comprovar a presença do dolo eventual no crime de lavagem de
dinheiro, caso que será utilizado como base para identificar as disparidades
existentes.
Em síntese, a Emérita julgadora entendeu que os acusados detinham ciência
da alta probabilidade da origem criminosa do valor envolvido e, apesar disso, optaram
por prosseguir com a conduta, assumindo o risco de realizar a lavagem de capitais. A
ministra ainda pontua que as cortes americanas prescrevem três requisitos para a
aplicação da cegueira deliberada no crime de lavagem de capitais, são eles: a ciência
do autor com relação a elevada probabilidade de que os bens envolvidos tinham
origem delituosa; a atuação indiferente do autor no tocante à ciência dessa elevada
probabilidade e a escolha deliberada pelo autor de permanecer ignorante a respeito
dos fatos.97
Ocorre que, a utilização da cegueira deliberada a partir do conceito de dolo
eventual possui alguns problemas que serão elencados a seguir.
Primeiramente, vale ressaltar que os elementos subjetivos de imputação nos
Estados Unidos se diferem dos elencados pelo Código Penal pátrio, naquela
localidade foram estabelecidos os elementos, purpose, knowledge, recklessness e
negligence, enquanto que no Brasil através de construção doutrinária fala-se em, dolo
direto de primeiro grau, dolo direto de segunda grau, culpa e dolo eventual, sendo que
este último, não possui respaldo no território norte americano. O elemento knowledge
97 LUCCHESI, 2017, p. 47.
47
não se confunde com o dolo eventual e nem mesmo com o próprio conhecimento do
direito penal brasileiro, enquanto que no território norte americano este conceito
representa o próprio elemento subjetivo, aqui o conhecimento é um componente
(elemento cognitivo) do elemento subjetivo dolo.
Consoante capítulo 3, quando foi estabelecido o conceito de dolo eventual,
verificou-se que, segundo o entendimento do teórico Luís Greco o conhecimento
(elemento cognitivo) é uma categoria essencial para sua configuração, é claro que,
deve estar atrelado com um elemento volitivo, tendo em vista a previsão de
responsabilidade penal por imprudência consciente. Tendo em vista isso, percebe-se
que a utilização da cegueira deliberada como subespécie do dolo eventual acabaria
por ampliar de forma indevida o que foi estabelecido no artigo 18 e no caput do artigo
20 ambos do Código Penal, pois em alguns casos acabaria por punir um particular
que não detêm conhecimento como se este o tivesse.
Vejamos o seguinte exemplo, um particular sabendo que os freios de seu
automóvel estão desgastados, não se importa com tal fato e liga o carro e assume o
risco de causar um acidente, e acaba por matar um particular, neste caso incide o dolo
eventual. Agora alterando um pouco a situação, caso o particular dono do automóvel,
desconfiando que seus freios não funcionam, deixa de testa-los visando evitar o gasto
da substituição, liga o carro e acaba causando um acidente, neste caso amolda-se o
instituto da culpa consciente frente ao dolo eventual.98
Além disso, se cegueira deliberada supostamente se equivalesse ao dolo
eventual, não seria necessário realizar uma importação de teoria de um território que
possui matriz jurídica diferente da realidade nacional, bastaria aplicar o dolo eventual,
se este se demonstrar insuficiente existindo portanto uma lacuna de punibilidade, não
seria suficiente dizer que cegueira deliberada é dolo eventual. Segundo André Luís
Callegari, essa equiparação indevida abre porta para o ativismo judicial, tendo em
vista que o juiz acaba estendendo a delimitação de um critério subjetivo, substituindo
o conhecimento exigido por lei pela cegueira deliberada (equiparando o particular que
mantem-se alheio a informação aquele que detém o conhecimento do ato ilícito).99
98 CALLEGARI, André Luis. A cegueira deliberada da common law à civil law e a apropriação (indébita) da teoria pelo judiciário: nova oportunidade ao ativismo judicial e o retorno à jurisprudência dos valores. 1. ed. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2017. p. 30. 99 CALLEGARI, 2017, p. 31.
48
Por fim, outro critério que é estabelecido para aplicação seria a indiferença
sobre isso elucida Lucchesi:
No direito penal brasileiro, o requisito legal “assumir o risco de produzir o resultado” não corresponde necessariamente a algum grau de indiferença pelo autor. Há diversas teorias sobre o dolo, sendo a teoria da indiferença apenas uma entre as teorias volitivas. Há outras teorias volitivas, como a teoria do consentimento, além de diversas outras teorias cognitivas do dolo. Resumir o dolo eventual à indiferença do autor é ao mesmo tempo limitar as possibilidade de responsabilização e ampliar excessivamente o conceito de dolo a partir de um conceito indeterminado.100
Diante dos fatos narrados, é possível perceber que a função desempenhada
pela cegueira deliberada nos Estados Unidos da América diverge da adotada pelo
Brasil, no território nacional é utilizada como uma subespécie de dolo eventual, ao
passo que no território norte americano é utilizada com o objetivo de substituir o
elemento subjetivo knowledge. Soma-se a isso o fato de que uma teoria estrangeira
não pode simplesmente ser “transplantada” de uma localidade para outra sem
observar as peculiaridades existentes, haja vista que a willful blindness surgiu em um
país que possui matriz jurídica diversa da realidade brasileira, teve sua aplicação
construída através dos precedentes e da estruturação do Código Penal Modelo.
A forma pela qual a cegueira deliberada vêm sendo aplicada não é adequada,
não se pode ampliar de formar indevida a abrangência de um elemento subjetivo que
já possui conceito próprio em nosso ordenamento jurídico, para adequá-la à realidade
nacional seria necessária uma mudança legislativa não apenas através de critérios
fixados por precedentes. Levando em consideração todos os apontamentos feitos
neste trabalho, conclui-se que a cegueira deliberada não se configura como
compatível com o ordenamento jurídico pátrio.
100 LUCCHESI, 2017, p. 215.
49
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a elaboração do presente trabalho, verificou-se que os Estados Unidos da
América adotam um sistema jurídico diferente do que é consubstanciado no Brasil,
enquanto que naquela localidade é adotada a common law que preconiza os
precedentes, o ordenamento jurídico pátrio adota a civil law, que tem como fonte de
direito a lei positivada.
Ainda, foi verificada através do relato de leading cases a forma pela qual a
cegueira deliberada foi aplicada desde seu surgimento até os dias atuais,
demonstrando as peculiaridades de cada localidade.
Foi aprofundado o conceito do elemento subjetivo tutelado pelo código penal
brasileiro e posteriormente foram analisados os elementos subjetivos estabelecidos
no território norte americano, localidade em que a willful blindness foi mais difundida.
Ao final, foi constatado que a função que desempenha a cegueira liberada nos
Estados Unidos em muito difere da que está sendo estabelecida no território nacional,
posto que em seu país de origem ela é utilizada como um substituto do elemento
knowledge, enquanto que no Brasil sua utilização ocorre através do dolo eventual,
sendo que estes institutos não são equivalentes.
Além da diferenciação da base de utilização da cegueira deliberada, foi
verificado que a forma pela qual vem sendo utilizada no Brasil não está em
consonância com o diploma legal, tendo em vista que em alguns casos aumenta a
abrangência do dolo eventual, tutelado pelo artigo 18 do código penal, pois acaba
punindo um agente que está alheio a informação (culpa consciente) como se este
tivesse conhecimento acerca da ilicitude de sua conduta.
O transplante da cegueira deliberada não observou as peculiaridades da
realidade normativa do Brasil, o conceito de elemento subjetivo de imputação em
muito se difere dos Estados Unidos. Diante disso, tendo como base a linha de
raciocínio construída neste trabalho, foi possível constatar que a forma pela qual a
cegueira deliberada está sendo aplicada confronta o ordenamento jurídico pátrio, não
possuindo compatibilidade com o mesmo.
50
REFERÊNCIAS
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