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CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – FAHL CURSO DE PSICOLOGIA HENRIQUE PEREIRA AQUINO ESQUIZOFRENIA: UM-MODO-DE-SER-AÍ BELO HORIZONTE 2006

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CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – FAHL

CURSO DE PSICOLOGIA

HENRIQUE PEREIRA AQUINO

ESQUIZOFRENIA: UM-MODO-DE-SER-AÍ

BELO HORIZONTE

2006

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HENRIQUE PEREIRA AQUINO

ESQUIZOFRENIA: UM-MODO-DE-SER-AÍ

Monografia apresentada ao Curso de Psicologia na Área de Psicologia Fenomenológico-Existencial, da Faculdade de Ciências Humanas e Letras – FAHL do Centro Universitário Newton Paiva, na Disciplina de Orientação de Monografia, como trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de Psicólogo, sob a orientação do Professor Éser Pacheco.

BELO HORIZONTE

2006

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AGRADECIMENTOS

Novamente a nomes de grande apreço: Hélcio e Hércules pela graça

e sabedoria que me alentam no itinerário pela Ciência da Alma...

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DEDICATÓRIA

A todas as pessoas que desprezam esta moral habitual que é capaz

de classificar o mundo em bons e maus.

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EPIGRAFE

“O mundo em que vivemos é louco. Muito mais louco do que pensamos. Totalmente louco.

Não tem mais remédio. Alias, se houvesse remédio, o mais salutar seria a própria loucura, o

único bem supremo (...). A loucura domina o mundo. Loucura por dinheiro, loucura pelo

poder, loucura pelo saber, loucura em divindade que guia todos seus passos...” (Ciro

Mioranza).

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SUMÁRIO 1) INTRODUÇÃO................................................................................................................08

2) PSICOPATOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA.................................................................10

3) POR UMA VISAO MAIS ABRANGENTE....................................................................18

4) UM FENÔMENO EXISTENCIAL: O DASEIN ESQUIZO...........................................24

5) UM MODO-DE-SER-AÍ..................................................................................................34

6) CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................40

7) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................................42

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RESUMO

“A psicopatologia, a psicose, a loucura não são monopólios da psiquiatria, tampouco da

psicanálise; embora esta tendência ideológica foi, e continua sendo, disseminada aos quatro

cantos. Diante destas constatações tratamos de fomentar a importância (ou a própria

existência, para alguns leitores), do psicoterapeuta que se vale de uma matriz compreensiva

– existencial-fenomenológica – no tratamento das psicoses”.

PALAVRAS-CHAVES

Esquizofrenia; Existencialismo; Compreensão Fenomenológica.

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I INTRODUÇÃO

O engajamento subjetivo deste texto surgiu animado por uma constatação curiosa acerca do

tema em voga. Há um desconhecimento por parte de um número significativo de

graduandos em psicologia, e afins, a respeito da possibilidade (ou, a própria existência), de

uma compreensão fenomenológica-existencial do adoecimento psíquico, principalmente

quando o assunto é a psicose.

Há também um autoritarismo nos concursos públicos que dispõem apenas uma bibliografia

psicanalítica para a preparação das provas. Não podemos negar uma ideologia presente

nestas atitudes que têm suas raízes já nos bancos universitários. Não sabemos descrever

categoricamente – até porque não é nosso propósito aqui – o motivo de uma predominância

da teoria psicanalítica acerca da psicopatologia.

Contudo, estamos apenas apontando nossa existência e nossa competência, enquanto

psicólogos existencial-fenomenológicos, no trabalho com o portador de sofrimento

psíquico. E, findamos nossas bases de inquietação para que o leitor não nos aponte o risco

de cairmos em uma denúncia histérica e com isso, encerrarmos as chances de propor um

trabalho enriquecedor na primazia de nossa discussão.

Com o presente trabalho pretende-se elucidar a psicose enquanto uma forma de ser-no-

mundo. A perspectiva a que recorremos para nos auxiliar e apresentar o adoecimento

psíquico ficam a cargo da compreensão fenomenológica-existencial. Com este propósito

deliberado o leitor se permitirá – assim desejamos – estabelecer uma noção da discrepância

entre as diferentes perspectivas teóricas de avistamento da esquizofrenia.

Demonstraremos o nascimento da psicose enquanto objeto médico descrito e caracterizado

como doença e apontaremos as diferentes abordagens psicológicas e sua antropologia

acerca do homem. Por fim, aprofundaremos nossa discussão na compreensão

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fenomenológica do Dasein Esquizo, e o descreveremos enquanto um ato fracassado.

Exemplificaremos o trabalho do psicoterapeuta existencial com um caso clínico atendido

pelo aluno pesquisador.

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II PSICOPATOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA

Si bien la historia de la esquizofrenia, en cuanto unidad nosológica, se inicia con

Kraepelin... (Fernández, 1979, p.309). Com esta evocação Alonso Fernández (1979), inicia

sua contribuição acerca das Psicosis Esquizofrênicas,1 contida em seu trabalho

“Fundamentos de la Psiquiatrìa Actual”. Como o próprio Fernández afirma, existem outras

notas antecedentes que se revelam desnecessárias, principalmente para nós neste

empreendimento. No ano de 1896, Emil Kraepelin escreve em seu tratado de psiquiatria o

termo Demência Precoz, em que descreve vários quadros clínicos psicóticos. Diante do

desenvolvimento mórbido do quadro demencial postulava-se uma alteração anatômica,

embora não considerasse a Demência Esquizofrênica uma demência orgânica. Nesta época,

Kraepelin aderira ao modismo de dividir os enfermos em curáveis e não curáveis.

(Fernández.1979)

Eugen Bleuler, por el contrário, se funda sobre todo en la psicopatología cuando en 1911

describe las esquizofrenias (FERNÁNDEZ, 1979, p.310). Esta revolução vem de encontro

(opondo-se), com o conceito Kraepeliniano, pois Bleuler ao falar das esquizofrenias não as

compreendia como se houvesse uma unidade etiológica correspondente. Tampoco as

concebia ao critério de Kraepelin com relação ao início precoce e a evolução

sintomatológica.

Para Bleuler, a dissociação das funções psíquicas, que acometiam a unidade da

personalidade, caracterizava mais fidedignamente o quadro de Mente Dissociada.2 Por fim,

Bleuler afirma que, la incurabilidad no es un rasgo esquizofrénico cardinal, sino que la

curabilidad es siempre posible. (Fernández, 1979, p.311). Constatava também que,

enquanto a afetividade, o interesse e a espontaneidade são ofendidos pela doença, a

inteligência permanece não afetada. (Fernández, 1979).

1 Capitulo 6 da obra “ Fundamentos de la Psiquiatria Actual” (Fernández, 1979) 2 Para Bleuler, esquizofrenia significa etimologicamente “mente disociada, escindida o disgregada”

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Em uma de suas obras, Bleuler separa, de forma descritiva, os sintomas esquizofrênicos em

fundamentales y acessórios. Os sintomas fundamentais estariam sempre presentes nos

casos em que a morbidade alcançasse um avanço considerável no sujeito. São eles: a

debilidade das conexões associativas, o autismo, as ambivalências e certas alterações da

afetividade, sobretudo a inadequação dos sentimentos e dissociação afetiva. Por sua vez, os

sintomas acessórios compreenderiam: transtornos do pensamento não fundamentável,

sintomas catatônicos, as pseudopercepções e idéias delirantes. (p.316)

Com o decorrer do tempo, e estudos afins, agregam-se às esquizofrenias a parafrenia, a

paranóia e outras. Tal pensamento era compartilhado por nomes importantes como Jaspers

e Kurt Schneider dentre outros. Bleuler era admirador de Wundt e fora influenciado por

Freud através de Jung. Com efeito, acreditava que o transtorno esquizofrênico fundamental

compreendia uma Disociación Funcional, implicando a perda da personalidade. O autismo

(falta de contato com o mundo externo), seria uma falta de conexão entre os elementos

psicológicos. Por outro lado os desejos instintivos inconscientes freudianos penetrariam na

consciência e regeriam a vida do sujeito. (Fernández, 1979).

Como descreve Fernández (1979), a psicopatologia de Bleuler aponta para uma leitura que

envereda pela supremacia das ciências naturais, pensamento pertinente a época. No entanto

não se pode perder de vista a significância de seu trabalho com relação aos estudos

psicopatológicos entorno da esquizofrenia que acabaram por superar a idéia de Kraepelin,

Déficit de la Afectividad.

Los ensayos de ordenar los síntomas esquizofrénicos desde un punto de vista clínico-

fenomenológico se muestran mucho más fructíferos. (Fernández, 1979, p. 316). Dessa

maneira, trazendo uma revolução ao entendimento do adoecimento psíquico, K. Schneider,

supera Bleuler com sua contemplação psicológica das psicopatologias, apontando na sua

matriz clínico-fenomenológica sintomas mais bem definidos que a simples descrição.

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Tal perspectiva clínico-descriptiva se mostra aquém quando comparada ao trabalho de K.

Schneider e seu ponto de vista clínico-fenomenológico. Schneider, citado por Fernandez

(1979), oferece uma divisão psicológica dos sintomas esquizofrênicos em primer rango y

de segundo rango. Respectivamente:

las vivencias de influencia o de intervención ajena, sea em el sentido de produción o en el de substracción, sobre las esferas de la corporalidad, el pensamiento, los sentimientos o la acción voluntaria; la sonoridad del pensamiento y fenómenos afines como el eco del pensamiento, la divulgación de las ideas y el robo del pensamiento; las percepciones delirantes, y la audición de voces dialogadas y de voces comentadoras de la actividad del proprio sujeito. E: las inspiraciones u ocurrencias delirantes, las seudoalucinaciones auditivas restantes, la perplejidad, las distimias depresiva y eufórica, el empobrecimiento de la vida afectiva y algunos outros. (FERNÁNDEZ, 1979, p. 317)

Quanto ao fato de emitir um diagnóstico de esquizofrenia com base nesta ordenação

sintomática descrita por Schneider, o teórico propõe que os sintomas de primeira ordem

devem ter se manifestado em um estado de claridade da consciência (FERNÁNDEZ, 1979,

p.317). Ou, ainda que os sintomas de primeira ordem estejam ausentes, a manifestação

patológica dos tipos sintomáticos de segunda ordem estando claras e sólidas permitiria, por

tanto, emitir tal diagnóstico com considerável precisão.

Lopez Ibor, citado por Alonso Fernández (1979), tem uma grande contribuição a partir da

compreensão dos sintomas descritos por Schneider, a saber. Entende que devido ao fato da

proximidade das funções percepção, pensamento e afetividade, uma perturbação

esquizofrênica que venha a acometer qualquer uma delas geraria uma contaminación

funcional. (FERNÁNDEZ, 1979, p.317). Ou seja, o esquizofrênico apresentaria uma

vivência funcional nova. Com relação a esta última afirmativa, las seudoalucinaciones no

son ni percepciones sin objeto ni representaciones muy vivas (...), es una vivencia

funcional nueva (FERNÁNDEZ, 1979, p. 317), incomum.

Para Fernández (1979) instaura-se uma desorganização da funcionabilidade vivencial. E a

partir de suas observações definiu o transtorno da atividade do eu como traço, presente em

todos os possíveis sintomas de primeira ordem. Nas palavras de Gruhle (1932 e 1953),

também apresentado por Fernandez (1979): una parálisis del yo (p. 318). Tais afirmativas

são compreendidas a partir da observação, dentre outros fenômenos, aquele que

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Clerambault chamou de automatismo mental. O eu esquizofrênico não percebe a autoridade

ou responsabilidade de suas atitudes, pensamentos e percepções; são vividos como uma

imposição de outrem (vivencias impuestas).

Nos primórdios do desenvolvimento da doença do sujeito é possível constatarmos la

perplejidad – pertencente à categoria dos sintomas de segunda ordem de Schneider –

intimamente ligada a um humor delirante, ou, vivências de estado de animo delirante. No

entanto, a afetividade é o primeiro setor vivencial que emite os sinais do transtorno. Para

Ibor, citado por Fernández (1979), a afetividade acometida conduziria a aparição de outros

sintomas de primeira ordem, como as vivências delirantes primárias. (delirare: desatinar o

salirse del surco).

Com relação ao embotamento afetivo, sua caracterização o dispõe tanto em um nível

crônico como residual no desenvolvimento dos sentimentos, ou na sua não exteriorização.

Contudo, existem outras idéias comungadas por alguns autores que afirmam a presença de

um delírio primário que subjaz por todo princípio de uma esquizofrenia; ou ainda, a

alteração da atividade do eu enquanto traço psicológico é o transtorno esquizofrênico

fundamental – sintoma de primeira ordem. (FERNÁNDEZ, 1979).

Os sintomas de primeira ordem Schneiderianos, como reafirma Fernández, têm um valor

significativo devido ao fato de caracterizam-se enquanto Síntomas Psicologicamente

Incomprensibles, tanto no plano afetivo como a luz da história vivencial do sujeito.

Também se mostram incompreensíveis no plano racional, pois apontam formas de

vivencias novas.

O delírio ocupa uma posição capital no quadro sintomal esquizofrênico. Segundo Janzarik,

citado por Fernández (1979): todo tipo de esquizofrenia atravessa ao menos uma etapa

paranóide-alucinatória. Sendo que em alguns casos este se mantém, e noutros

(esquizofrenia simples, hebefrênica e catatonia), o delírio é breve. Fernández (1979)

complementa: para entender cabalmente el delirio esquizofrénico debe tenerse siempre

presente el principio de que el origen del mismo no reside en sus contenidos ni en la

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historia vivencial interna del sujeto (p.322). Sua aparição se revela psicologicamente

incompreensível.

Há um fato curioso que percebemos nas escritas que tematizam a esquizofrenia e que está

presente na elaboração de um psicodiagnóstico desta, qual seja, a insegurança e a

estranheza, presente nos relatos dos pacientes entrevistados. Esta estranheza, bem como, a

insegurança esta presente também na vivência do psicólogo no contato com o

esquizofrênico. Fernández (1979) - na sua experiência pessoal - significa a relação como

propriamente o contato com um vazio em relação a reciprocidade, não havendo uma

ressonância e tampouco sensação de afeto; o contato com o esquizofrênico pode ser grande

gerador de ansiedade e uma ferida narcísica ao entrevistador.

A importância do psicólogo existencialista no trabalho com o esquizofrênico se revela na

valoração da dimensão vivencial presente no contato com o cliente. O viés pela

fenomenologia permite ao psicólogo se aproximar do campo experimental do outro e,

através da ressonância que o sintoma esquizo causa no psicoterapeuta, facilitar a

compreensão daquele modo-de-ser-no-mundo. Para Fernández (1979), os elementos do

enfermo que suscitam a vivência da esquizofrenia são três: la relación afectiva, las

vivencias y las manifestaciones expresivas. (p.323).

Para a confecção deste escrito, Fernández (1979) contribui com sua visão significativa, ao

que divide os sintomas esquizofrênicos em alterações do pensamento, vida afetiva, vontade,

psicomotricidade e a instância do eu. Reúne e cita em seu texto sobre a psiquiatria vários

teóricos afins e seus estudos, como por exemplo, o trabalho do psiquiatra fenomenólogo

K.Jaspers. Este último descreve sobre as quatro características da consciência do eu e

aponta as suas alterações no desenvolvimento morboso, a saber: a dissolução dos limites

entre o eu e o mundo exterior; a perda da unidade do eu; perda da identidade ou

continuidade do eu que chega a registrar uma vivência de haver nascido realmente após o

desencadeamento, e a alteração da consciência da atividade do eu em forma de fenômenos

psíquico-automáticos e vivências de despersonalização.

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Em outro ponto descritivo, Fernández (1979) esclarece que as alterações do pensamento

trazem fenômenos como a dissociação das idéias, pensamento vago, alterações ou bloqueio

do pensamento, ambivalências ideativas e idéias delirantes. No que tange a dimensão da

afetividade, as alterações em torno desta se caracterizam por humor delirante, um autismo

(sem contato de afeto, ou com a realidade), sentimentos incongruentes, ambivalência e

embotamento afetivo dentre outros. Por sua vez, a alteração da vontade, traz a abulia, uma

obediência automática e um negativismo. O mutismo, o estupor, a catalepsia ou agitação,

maneirismos e reverberação são algumas alterações que se figuram no plano da

psicomotricidade.

Comumente nos deparamos com alguns comentários proferidos por leigos, perplexos diante

de alguma pessoa que apresenta um quadro de esquizofrenia; esta surpresa aponta para uma

característica curiosa acerca deste processo de adoecimento. A perplexidade quase sempre

compreende ao espanto diante da capacidade do esquizofrênico em manter sua memória e

inteligência, ou ainda, uma capacidade artística inaudível. A este respeito, faz-se necessário

ressalvarmos que a memória, a atenção, a orientação, a inteligência e a consciência quase

sempre se mantêm intactas diante da doença. (Fernández, 1979, p. 325).

Como puede y debe entenderse la abundancia em metáforas y símbolos que existe em el

pensamiento esquizofrénico? (FERNÁNDEZ, 1979, p. 326). Respondendo a sua própria

provocação, Fernández esclarece que o simbólico esquizofrênico é pessoal e concreto (ou

coisificado). Possui, pois, uma significação personalizada e concreta (real). Logo, perde sua

característica de símbolo. Com efeito, as entidades abstratas, como o tempo, por exemplo,

são vividas como concretos. Neste sentido existe uma posição autística diante do

rompimento do vínculo que há entre o eu e o mundo externo.

Bleuler foi o inventor do conceito de autismo (ensimesmamento), que aponta para uma

incapacidade de compreender a realidade, ou ainda, a criação de um mundo próprio,

apartado. Minkowski sinalizou o autismo como sendo o transtorno fundamental

esquizofrênico – como uma perdida del contacto vital con la realidad (Fernández, 1979, p.

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326). Em suma o esquizofrênico ao desfragmentar seu próprio eu, esfacela suas conexões

com outrem e o mundo, sobrepondo o mundo interior ao exterior, com caráter real.

Fernández (1979) não se limita em seu trabalho a uma descrição psicopatológica, citando

contribuições de Binswanger, dentre outros existencialistas, para o entendimento do Dasein

esquizofrênico dentro de uma matriz compreensiva. Binswanger, embora preconizava uma

dimensão orgânica à psicose transcendia esta com seu conceito de existência malograda (p.

330). Para este, , trata-se de entender as alterações espaciais e temporais (que são as de

maior representação), enquanto transtornos funcionais e vivenciais psicóticos; compreender

o adoecer esquizofrênico enquanto um modo-de-ser-no-mundo, com-os-outros. Lembrado

por Fernández (1979), Minkowski dizia que o dasein esquizofrênico seria a perda do

contato vital com a realidade.

A antropologia fenomenológica entende as alterações da intersubjetividade do

esquizofrênico como transtorno primário. É uma alteração da própria pessoa. O sujeito

paranóide não mantém relações intersubjetivas com outras pessoas, mas com personagens

estranhos e um mundo cheio de sinais também estranhos. Quanto ao esquizofrênico, a

dimensão entre ele e o outro, sofre uma crise de confiança, daí a possibilidade (vivência)

de ser invadido. Fernández (1979), refere a esta crise no processo de estruturação da

confiança como algo que teria suas raízes nas relações com os pais.

Corroborando este pensamento, os antipsiquiatras não admitiam a esquizofrenia enquanto

enfermidade individual, fazendo alusão as relações no bojo da família. Sobre este ambiente

esquizofrenogêneo e a não estruturação de uma confiança ontológica primária da criança,

deixaremos a palavra a outro teórico em um ulterior capítulo deste mesmo trabalho.

Pensemos, finalmente, que la esquizofrenia ataca abiertamente el núcleo más central del

vivencias mismo que diferencia al hombre del animal: el yo y la capacidad reflexiva.

(FERNÁNDEZ, 1979, p.335); transformando-se no centro do mundo, no ponto de

referência. Encerraremos este pequeno capitulo cônscios da redução grosseira que o mesmo

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dispõe. Os apontamentos supramencionados têm apenas o intuito de nos orientar acerca do

desenvolvimento do estudo da esquizofrenia e sua origem na ordem médica. Neste sentido,

continuaremos a configurar as diferentes abordagens ao adoecimento psíquico do

esquizofrênico.

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III POR UMA VISAO MAIS ABRANGENTE

A psicopatologia, a psicose, a loucura não são monopólios da psiquiatria, tampouco da

psicanálise; embora esta tendência ideológica foi, e continua sendo, disseminada aos quatro

cantos. Diante destas constatações tratamos de fomentar a importância (ou a própria

existência, para alguns leitores), do psicoterapeuta que se vale de uma matriz compreensiva

– existencial-fenomenológica – no tratamento das psicoses. Nesta perspectiva acreditamos

que há um EU dentro deste jardim tomado por ervas daninhas que precisa ser buscado,

ainda que nos machuquemos, ou machuquemos o outro, nos espinhos ali nascidos.

(Romero, 1973).

Na medida em que a doença psíquica não se limita aos portões dos hospitais psiquiátricos,

nem mesmo as camisas-de-força químicas, entendemos que se faz mister uma compreensão

e, por conseguinte, um tratamento que abarque uma dimensão vivencial do adoecimento

psíquico do ser. Com relação ao método psicanalítico, entendemos que, toda e qualquer

teoria que se sustenta em uma metodologia interpretativa e explicativa, acaba por definição,

visar uma normatização do ser humano com relação a sua cultura. Logo, podemos inferir as

conseqüências deste modo de operar com o ser esquizo.

Uma vez que deixamos para um ulterior capitulo as discussões mais aprofundadas acerca

da primazia deste empreendimento, descreveremos neste a contribuição de alguns teóricos

na definição da antropologia existencial e suas idiossincrasias no avistamento do adoecer

psíquico e suas discrepâncias com relação a outras abordagens.

Com o auxilio das palavras de um grande semiologista, Tzvetan Todorov (1980),

poderíamos - cônscios da redução que nossa proposta didática caba por cometer – dividir a

psicose em três principais categorias: a catatonia, que seria a recusa da interação com o

mundo pela negação motora e o silenciar da fala; a paranóia que se compara no discurso

com uma pessoa “sã”, embora seus relatos se dêem na ordem puramente imaginaria; e por

ultimo aquela que deveras nos debruçamos para compreensão, a esquizofrenia.

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Há no discurso do esquizofrênico um total rompimento com seu interlocutor devido a

inexistência de uma referência. Existe, segundo o autor, um funcionamento

metalingüístico de natureza claramente diferente daquela observada no discurso paranóico.

A incoerência é uma das razões pelas quais a referencia se tornou impossível. (Todorov,

1980, p.78) Assim o funcionamento de elementos lingüísticos como anáfora, conjunções, a

hierarquização dos segmentos, o fluxo dos discursos e a coerência interproposicional são

especialmente fracos.

Um discurso sem referencia, que não permite a construção de representações, é um

discurso que não encontra sua justificação fora de si mesmo, um discurso que é apenas

discurso (Todorov, 1980, p.81); o esquizofrênico é um orador sem platéia, pois sua fala

dificulta, quando não encerra, o laço social.

Romero (1973) é nome de grande apreço por nos auxiliar na confecção deste trabalho.

Resgataremos, de forma sumária e com o auxilio deste autor, um sucinto e tímido apanhado

das diferentes teorias que pretendem tratar o ser humano em seu adoecimento psíquico.

Descreveremos, pois, as abordagens organicistas, psicanalítica, comportamental e a

fenomenologia existencial.

A abordagem organicista pressupõe sempre um determinante biológico, embora reconheça

a importância do ambiente psicossocial no adoecimento da pessoa. O médico encarna o

saber e o poder na relação com o paciente e apontando a cura no caminho para o

desaparecimento do problema. O método explicativo de se pensar o adoecimento almeja a

volta à normalidade, ao silencio dos órgãos.

Contrariando a perspectiva anterior, os freudianos acreditam na origem psicológica da

doença provocada por conflitos reprimidos e inconscientes. O analista é depositário do

saber, mas o cliente é agente. A cura se dá na superação dos complexos inconscientes e

através do modelo interpretativo explicativo. A busca é pelo sujeito do inconsciente,

dominado por determinismos precoces da infância primeira.

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Para os comportamentalistas um aprendizado inadequado, mais o postulado de um fator

orgânico são o que engendram a psicopatologia do ser. O terapeuta prescreveria um

programa de aprendizado ao paciente e na medida em que este alcançasse o bem-estar

adaptando-se socialmente e eliminado os sintomas estaria no caminho para a cura. Um

método explicativo, como podemos perceber, pois vê o homem enquanto condicionado por

reflexos inatos e aprendizagens.

Para a abordagem fenomenológica existencial, que escuta (compreende) o ser humano nas

suas vivências, as psicopatologias têm sua origem em experiências mal-assimiladas; a

pessoa negaria em seu desenvolvimento sua liberdade, responsabilidade, autenticidade

dentre outras características existenciais. Na psicose, a falta de reconhecimento do outro, ou

ainda, a impossibilidade de reconhecer-se neste outro (uma negação do próprio eu), são

fatores para o desencadeamento da morbidade.

A díade psicólogo e cliente trabalham em conjunto. O contato é de pessoa para pessoa. O

cliente é principal no processo de cura. A noção de cura está na visada da retomada das

possibilidades essenciais, bem como, a integração das polaridades do individuo adoecido. O

modelo epistemológico aqui é o compreensivo, dialético e fenomenológico. Sua visão

antropológica do ser é a liberdade para se inventar no percurso da existência.

Compreender o sujeito esquizofrênico em sua totalidade implica em reconhecer o concreto

de sua existência, considerá-lo aí-no-mundo e com sua forma de relacionar-se com toda sua

dimensão existencial – tempo, corpo, o outro, possibilidade/limite, ser-só e o espaço.

Segundo M. Augras (1986 p.84): a compreensão empírica é interpretação de fenômenos,

toda compreensão realiza-se dentro do ‘círculo hermenêutico’ que se movimenta dos fatos

particulares ao todo, onde se incluem, e do todo para os fatos específicos, de tal maneira

que ‘nunca há solo firme definitivo.

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Longe de querermos cair em um romantismo humanista, gostaríamos de lançar mão de um

conceito que diz respeito a uma postura do psicoterapeuta. A empatia é essencial para o

desenvolvimento salutar do atendimento ao portador de sofrimento psíquico. Por uma

perspectiva fenomenológica sublinhamos a importância de ater ao presente - ao aqui agora

- na relação com o cliente, observando sua maneira de traçar seu itinerário existencial. Tal

postura, muito mais que uma pragmática, se mostra um desenvolvimento por parte do

psicoterapeuta que inclui no bojo de sua pesquisa a dimensão sócio-histórica do paciente

entrevistado.

Para o psicólogo existencial, ou gestaltista, nem sempre o conteúdo do que é relatado vem a

se caracterizar como sendo o mais importante, valorizando assim sua experienciação no

momento do relato – uma terapia do contato, pois. O que vale é a “verdade” do cliente

(verbalizada ou não). O que o sujeito esquizo experimenta não é uma metáfora, mas é real

ou literal. E o “perigo” de se abrir nesta congruência, o preço a ser pago pela

comunicação destes sentimentos é ser considerado louco, finaliza Laing (1973 p.46).

A postura por parte do psicólogo existencial-fenomenológico implica em uma

transcendência da simples descrição dos fenômenos esquizofrênicos e a emissão de

psicodiagnósticos. Os termos técnicos que observamos ser utilizados por médicos, ou

presentes na lista diagnóstica do CID ou DSM, na Psicopatologia não abarcam a totalidade

do ser; não consideram o indivíduo esquizo em suas relações, tampouco abandonam a cisão

retrograda e desintegradora que é a percepção do “psíquico” apartado do “soma”.

Como enfatiza Laing (1973), o terapeuta é como um interprete. Interpretar (melhor seria

dizer compreender), o texto do cliente é não perder de vista que, como é uma ação do

terapeuta, a ação está carregada de conteúdos próprios do psicoterapeuta. Pois bem, ter um

texto esquizofrênico é nos valer da possibilidade de viajar até a loucura do outro. Uma

despersonalização temporária sem, no entanto, desprender-nos das amarras que nos

constitui enquanto um eu são. A empatia, esta possibilidade de nos colocar no lugar do

outro é que nos permite ir ao encontro com este outro. E pelo contato deparar-nos com o

real do desencontro, (a alteridade).

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O que o esquizofrênico é para nós determina de maneira considerável o que somos para

ele e, portanto, as suas ações, (LAING, 1979, p. 35). Laing ainda nos convida a pensar

que, como afirmava Buber, um encontro não existe entre um terapeuta e os sinais de uma

esquizofrenia ou sintomas ou ainda disfunções; muito antes pelo contrário o encontro se dá

entre duas pessoas, eu-tu. Podemos ainda qualificar uma pessoa de psicopata mediante a

uma incongruência na relação que se estabelece entre a díade. O autor sugere, após algumas

reflexões, a dedução de que a sanidade ou a psicose seja testada pelo grau de conjunção

ou disfunção entre duas pessoas, das quais uma é sadia por consenso geral. (LAING,

1973, p.37). Em ultima instância a doença é da relação.

Logo, o diagnóstico nos auxilia para a compreensão de uma determinada personalidade em

um dado momento, não justificando o encerramento do sujeito em um estigma ou rótulo.

Receber um cliente esquizofrênico na clínica, ou qualquer outra forma de atendimento

significa menos procurar por sinais da doença que lhe escutar seu modo de lidar com os

sintomas. A esquizofrenia é um modo-de-ser-no-mundo.

Neste sentido, ninguém sofre de esquizofrenia, a pessoa é esquizofrênica. Embora

reconhecemos que a esquizofrenia traga um grande sofrimento a pessoa, não se trata de

apontar, pura e simplesmente, estes sinais ou sintomas; e a questão de que a pessoa é

esquizo, está ligada a um Dasein e não a algo estático e estruturado. Onde são os pontos

saudáveis do ser-aí? Enfocar os sinais da doença é um autoritarismo que acaba por sufocar

a pergunta pela energia da pessoa, ou ainda, perder uma visão ampla de sua dimensão

vivencial. Como nos lembra o próprio Laing (1973), dentre outros teóricos, é

expressamente difícil diagnosticar uma esquizofrenia quando o quadro não apresenta

sintomas de um adoecimento expressivo.

Já percorremos caminhos capitais para chegar até aqui, descrevendo o conceito de

esquizofrenia para a psicopatologia e uma breve mostra do modo como outras abordagens

entendem o adoecimento psíquico, também a perspectiva Existencial-fenomenológica e sua

antropologia. Nas paginas que se segue, cremos estar aprofundando na descrição do que

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seria o cerne deste trabalho, a saber, a compreensão fenomênica do modo-de-ser-

esquizofrênico.

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IV UM FENÔMENO EXISTENCIAL: O DASEIN ESQUIZO

Laing (1973) principia sua obra chamando atenção para o fato de que o esquizóide

caracteriza-se por um rompimento com o mundo e um rompimento consigo mesmo. O eu

dividido, fragmentado, vivencia segundo o autor, uma solidão e um isolamento de forma

desesperadora – fora do normal. Tal sofrimento deve ser compreendido na medida em que

consideramos o esquizofrênico em seu contexto existencial e a sua condição humana

particular.3

Por hora, tentaremos sucintamente descrevê-la como nos a entendemos. Laing (1973),

relata sobre um homem que se considerava irreal, por anos escondera isto e agora já não o

poderia mais. O que nos salta aos olhos com considerável apreço é o que uma leitura

compreensiva fenomenológica deste caso incita-nos, a saber, o desejo dúbio de ocultar-se e

de revelar-se – presente em toda trama existencial de qualquer ser humano.

Diga-se de passagem, uma personalidade sadia pode vir a se encontrar em conflitos, ou

dividida. Mas aquele que se desenvolveu num modo de ser psicótico enfrenta uma

ansiedade sem bordas. Laing (1973) nos convida a refletir nos conceitos, que se mostram de

importância capital ao texto, que são Self Encarnado e Self Desencarnado. Ambos dizem

da situação humana e a experienciação do corpo, ou, como o individuo percebe seu corpo

em relação ao mundo, (corpo-existência); situação esta que diz de uma construção e não

algo inerente (dado) ao Dasein.

No caso do self encarnado: em circunstancias comuns, a pessoa sente que o próprio corpo

está vivo, é real, substancial e sente-se a si mesma viva real e substancial. (LAING, 1973

p.77). Diferentemente é o caso do Self desencarnado: nesta posição, o indivíduo sente o

próprio self mais ou menos divorciado ou desligado do corpo. É sabido que o corpo é o

3 Não é por acaso que a obra “O Eu Dividido” do autor Laing é tão afamada pelos leitores de sua temática e afins. É de clareza ímpar, ao nosso juízo, a passagem que compreende as páginas 38 e 39 desta obra. Sugerimos ao leitor que recorra a ela para experimentar sua contribuição na íntegra. No momento em que o autor mergulha com muita fineza e perspicácia mais a fundo na disjunção entre o sadio e o psicótico é possível que seu leitor compreenda o que quer dizer abordar um esquizo como um Dasein (ser-aí).

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primeiro contato com o mundo, o primeiro espaço existencial e que por ele experimentamos

as coisas mundanas.

Se a pessoa se vê com o corpo-objeto é compreensível pensar porque se fecham em si

mesmas negando toda percepção, ou senso-percepção, captada pelo próprio corpo.

Esta sensação de impotência experimentada no contato com o outro, bem como o sufocar

da co-existência gera no esquizofrênico o poder, a necessidade, de virar a mesa. Voltando-

se apenas para seu mundo interior onde é seguro e sente toda onipotência possível. Vê-se

como senhor em seu castelo de areia. Uma vez que empobrece na falta de contato com o

mundo externo, como esperado, seu mundo interior definha-se até o extremo vazio.

Outrossim, quando não petrifica as pessoas, ou evita o contato ele “se mata” para se manter

impenetrável por outrem; por fim, para manter-se vivo.

Estar-só-no-mundo, embora sociáveis, é próprio da condição humana – mas esta situação é

vivida, ou experimentada pelo esquizo com um peso quase insuportável. Alem de se sentir

abandonado vivencia uma vulnerabilidade ameaçadora. Logo, quando um paciente relata de

si a desesperança total e o pensamento de que havia sido golpeada por uma desgraça

semelhante a qual ninguém mais havia sido, (KAFKA, 1971), ele está falando de como

experiencia seu estar-no-mundo. Dilacerado, oco, violentado, putrefato etc, são

significações reais, embora não sejam factuais. O que é ‘existencialmente’ verdade o é

vivido como ‘realmente’ verdadeiro. (LAING, 1973).

Laing (1973), em seu trabalho, corrobora para o avistamento da psicose como uma

possibilidade do vir-a-ser. Anuncia que as evoluções de certas psicoses estariam

intrinsecamente ligadas à possibilidade do individuo não ter alcançado uma posição de

segurança ontológica primária, (déficit presente já nos primórdios da vida da criança na

relação familiar), o que levaria a personalidade esquizo a uma luta pela vida para não se

perder o próprio Self.

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Nas palavras de Laing (1973 p.83): o estado esquizóide que descrevemos é compreendido

como uma tentativa de preservar um ser precariamente estruturado. Mas, este movimento

de se fechar como proteção é um engodo, pois acaba por aprisionar o próprio eu. E no que

sente sua “desvantagem” ontológica, esta insegurança exacerbada, o esquizo a substitui

pela necessidade de estar no controle. Este controle se revela “real” somente em suas

fantasias. Fantasias estas que são dissociadas num mundo irreal. Logo o psicótico se lança

numa dimensão imaginária. Falamos, pois, de pessoas que são inquilinos do imaginário,

como intitula Romero (2001). A conseqüência de se viver na fantasia é tornar-se irreal.

Para Laing (1973), há uma posição esquizóide inicial que se desenvolve (ou não) a uma

psicose. Esta posição esquizóide estaria, decerto, ligada a não estruturação da segurança

ontológica. Ainda complementa que este tipo de personalidade, que vivenciam em seu

existir uma insegurança ontológica, experimentam três formas de ansiedade na relação com

o mundo, qual seja, a Absorção, Implosão e Petrificação.

A absorção pode ser compreendida aos moldes de um relato psicótico que descreve sobre

as chamas na qual seu corpo está imerso. Este relato denuncia, senão, sua vulnerabilidade

diante do contato com o outro. Na certeza existencial de ser absorvido pelo outro e perder

sua identidade, perder-se no outro, não há muita saídas. Não dá conta de se manter

integrado numa relação e logo busca o isolamento. Nem sempre é o medo de um ódio

proveniente deste outro; a sensação de ser amado pode se caracterizar muitas vezes pior:

significar ser amarrado ou desalmado. Se pensarmos nestas condições e suas implicações

no setting terapêutico podem caracterizar-se como negativas, ou impeditivas do laço; visto

que ser amado (compreendido) pelo terapeuta pode tomar significações diversas, quiçá

opostas.

A implosão é um termo utilizado por Laing (1973) como o mais próximo daquilo que seria

o sentimento de invasão da realidade. Todo contato com a realidade é evitado, pois se

apresenta persecutório ao vazio (cheio de nada) interno do eu psicótico. A petrificação e a

despersonalização são formas de desvelar o terror sentido pelo EU dividido. Embora certa

despersonalização (identificação com o outro), seja desejável nas relações do cotidiano, na

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medida em que salvaguardam as dimensões do ser-para-si e ser-para-o-outro de ambos

interlocutores, há um risco em cair no exagero desta técnica universalmente utilizada pelo

Dasein. A pessoa se congela, petrifica-se.

Uma concepção esquizofrênica pode animar o seguinte raciocínio: se eu considero o outro

como sujeito, posso me reduzir ao seu objeto experimental, ou, vazio de subjetividade. Esta

sensação é para o esquizo como desintegradora de seu Self. A despersonalização seria uma

defesa: se despersonalizar aquele que me afeta ele não mais me invade, é vazio (esvaziado)

de poder.

Falso self é um modo de não ser a si mesmo, uma má fé existencial. As máscaras que

usamos são diferentes para cada tipo de personalidade, neuróticos normais, histéricos e

esquizóides. As máscaras utilizadas pelo ultimo lhes tomam de forma penosa, pois têm

“vida própria”, assumem uma forma autônoma compulsiva. Diferentemente, no caso da

histérica há uma gratificação nas atitudes “teatrais” – realizações de desejos.

Na psicose, considerando-a enquanto o adoecimento agudo de uma personalidade esquizo

há um desvelamento do falso self. O self despeja então uma série de acusações de

perseguição às mãos da pessoa com quem o falso self esteve de acordo a anos (LAING,

1973, p.108). Como podemos compreender até aqui, há na esquizofrenia uma proteção da

identidade no ato de isolar-se do mundo, concomitante, criando um mundo interno. Pode-

se pensar que este mundo interno está presente também na neurose, no entanto, para o

psicótico ele é a sua única referência; enquanto na neurose ele está oculto, na psicose ele se

sobrepõe ao mundo externo.

Uma das conseqüências obrigatórias é o self ter dificuldades em sustentar qualquer

Sentiment du Réel pela própria razão de não estar ‘em contato’ com a realidade, jamais,

‘encontrar’ a realidade. (LAING, 1973 p.152). O pensamento ontológico descreve o com-

viver enquanto condição da existência. Negá-lo seria o mesmo que praticar um suicídio à

saúde do indivíduo; é uma “volta” a imanência.

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Pois bem, o leitor – assim esperamos – já consegue perceber que a escolha pela

esquizofrenia é, em suma, uma saída pela tangente diante da experiência angustiante do

existir. Pois o real nada mais é do que aquilo que o Eu capta enquanto experiência em seu

mundo. Embora este real não seja factual - e, por conseguinte na esquizofrenia se mostra

uma experiência incongruente - falamos da verdade do sujeito. E este contínuo fechamento

ao íntimo gera ao self do esquizofrênico uma evolução para a fantasia, perdendo assim uma

identidade firme. É um self vazio, irreal, paupérrimo, cheio apenas de ódio, medo, inveja,

tornando-se dividido. (LAING 1973). Ou seja, os afetos estão em estado bruto.

Se suas experiências são fantásticas, o trato social fica comprometido. Cria-se em seu

mundo uma onipotência para dar conta de sua impotência (nada pode), frente ao outro.

Torna-se um deus, ou coisa que o valha, uma vez que seu self não experimenta sensações

reais com o mundo. É possível então, compreendermos alguns fenômenos como

mutilações, atear fogo ao corpo, ou ainda, qualquer atitude barulhenta com o corpo

esquizofrênico como sendo uma verdadeira busca por sensações ou sentimentos reais. O

leitor atento poderá conferir que, a crença de uma satisfação masoquista presente nos

fenômenos supramencionados, se mostra um entendimento contraposto ao que nos

propomos defender aqui.

Como afirma Laing (1973), o esquizofrênico às vezes brinca de ser são. Ao brincar, finge.

Fingindo, se mata. Morre para permanecer vivo. Laing (1973) faz uma comparação,

concomitante a um exemplo de um caso de ansiedade neurótica em que, o indivíduo com

medo de perder sua função genital (castração), “finge” uma impotência; eliminando no

imaginário a potência, acaba por preservá-la no real. Tenho certeza que em um bom número

de ‘curas’ de psicopatas consiste no fato de que o paciente decidiu, por qualquer razão,

voltar a brincar de ser são. (LAING, 1973, p.165).

É possível captar uma mecanização ou um automatismo nas interações sociais do esquizo,

diferentemente de atitudes animadas por desejos internos. O que pode gerar um sentimento

insuportável de culpa; culpa pela inconseqüência de seu self e suas atitudes. O sentimento

de culpa, contido numa personalidade psicótica, não pode ser compreendido da mesma

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forma aos de uma pessoa normal. Sua culpa, bem como a pessoa, é contraditória; uma

advém do self falso e outra do self interior. (LAING. 1973).

Para Laing (1973 p.218), a unidade pessoal é um pré-requisito de percepção refletiva, isto

é, a capacidade de estar cônscio do próprio ser agindo com relativa inconsciência de si

mesmo, ou com uma simples percepção primária não refletiva. Aquilo de que nos valemos

para por borda numa identidade, acaba por espremê-la até atrofiá-la; o corpo, por sua vez, é

percebido como um amontoado de carne e osso que ora se expande até se misturar com os

objetos, ora se desintegra do próprio self que o animaria.

Toda e qualquer personalidade vivencia em algum grau, ambivalência e/ou ambigüidade.

No caso do psicótico esta ambigüidade é demasiadamente freqüente nas suas experiências.

Neste caso, uma percepção de um aspecto de si mesmo é avistada como exterior ao sujeito;

como uma alucinação. Julie, no exemplo de Laing, confundia sua consciência com a fala da

mãe e vice-versa.

A situação familiar esquizofrenizante, a qual é estruturado o self inseguro desde a infância,

contribui na evolução da patologia. Laing traz o exemplo de Julie que elucida a interação

familiar do esquizofrênico e sua contribuição para a psicose. Na infância, Julie era uma

garota boazinha, obediente, fazia tudo para agradar aos pais, não contestava e acatava para

agradar. Repudiava apenas a idéia de se afastar da mãe. Ulterior, Julie entra na fase de

menina má. Neste período a afeição materna foi sentida por Julie, mas com a ressonância

de um absoluto sufoco. Não se sentia desejada pela mãe.

A família foi avistada de diversas formas ao longo das transformações sócio-históricas. O

atendimento clínico à família como um todo acontece somente a partir da década de 50.

Dois marcos importantes contribuem para esta nova visão dos grupos, da família e do

mundo enquanto sistema: O desenvolvimento da Psiquiatria Social e o atendimento

psicológico de grupos no pós-guerra. Neste momento, o desenvolvimento dos estudos da

cibernética serviu para metaforizar o sistema da família. Bateson, citado por Benoit (1981),

inicia uma investigação da família com relação às motivações das doenças mentais nos

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sujeitos esquizofrênicos; e cria a teoria do Duplo Vínculo – enquanto uma relação

esquizofrenogênica.

Estudando a família de forma sistêmica, Bateson pode compreender suas relações internas e

os movimentos peculiares daquelas famílias de esquizofrênicos. Da obra de Benoit (1981)

retiramos uma sucinta reunião do conceito de duplo vinculo e outras contribuições de

autores afins.

Toda comunicação pretende-se a uma mensagem, esta por sua vez se divide em dois níveis:

um verbal e um não-verbal. O que Bateson descobriu no trabalho sistêmico com as famílias

de esquizofrênicos foi que havia uma contradição, um paradoxo, entre o nível verbal e o

não-verbal nas mensagens. O que ele chamou de Duplo Vinculo. Esta nova visão da

família, mais ampla, holística, permitiu deslocar a simbiose mãe-filho do centro causador

das psicoses. Benoit (1981).

Logo, o sintoma passa a ser visto como sistema dentro de um todo mais amplo (a família).

Percebeu-se que certas extravagâncias dos esquizofrênicos tinham uma ligação direta com

um modo de funcionamento de sua família. Se nas comunicações há níveis diferentes, há

uma meta-mensagem que impõe um sentido ao interlocutor, ou uma confusão na

compreensão. É possível compreendermos a deteriorização das inter-relações na família de

esquizofrênicos a partir deste estudo.

A relação com os pais é primordial para o desenvolvimento de uma segurança na criança.

A criança, extremamente dependente, necessita da compreensão da mensagem da mãe, caso

contrário o esquizofrênico não consegue metacomunicar-se. A escolha das palavras, o tom,

a teatralização, o maneirismo são figuras decorativas da mensagem que a compõe e podem

lhe dar um caráter ambivalente, senão contrário, ao desejo do pronunciador. Desta

informação supracitada poderíamos imaginar suas implicações na relação psicoterapêutica.

Não é difícil entendermos nas mensagens: “estou lhe batendo porque te amo!”, enquanto

distribui sovas ao filho; “não faça isto, contrário você vai ver!”; que há uma interferência na

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captação do sentido de ambas exclamações. Para nós psicoterapeutas fica a mensagem

explicita do que diz a teoria do duplo vinculo no que tange a utilização das palavras

vitalizadoras, na hora certa, na entonação precisa e sutil como um bisturi; principalmente

com pacientes esquizos. Benoit afirma que ao esquizofrênico só lhe resta emitir uma

resposta metafórica, tão paradoxal quanto o duplo vínculo.

Nas palavras de Jackson, citado por Benoit (1981): “a semiologia esquizóide poderia

aparecer quando a mãe pouco calorosa oculta uma atitude de rejeição sob um papel de

mártir, ficando o pai em segundo plano, ausente ou morto. A mãe nega seus próprios

sentimentos, dizendo uma coisa que significa outra”. Enquanto há uma mãe

esquizofrenogênica, o pai por sua vez é inadequado. Como fica o tratamento do esquizo que

aprendeu a viver neste tipo de relação? É praticamente impossível responder a uma

mensagem duplo vínculo.

Para Haley, citado por Benoit (1981), os membros da família do esquizofrênico não

apresentam congruência entre o dito, verbalizado e suas sequazes, gestos etc. É, pois,

incompreendido pelo outro que acabam por desqualificar a sua fala. Observou também que:

ninguém assume a responsabilidade de um acontecido e não são feitas alianças, pois estas

são consideradas uma traição com um terceiro membro. A culpa originaria por um fracasso

é passada de um para o outro como uma batata quente.

Segundo o autor, diferentemente de uma situação dilema, o vinculo duplo oferece uma

situação mais dramática: a injunção paradoxal barra a própria possibilidade de escolha;

nada é possível, desse modo, desencadeia-se uma sucessão alternativa infinita. (BENOIT,

1981, p.40). Para Searles, citado por Benoit a instauração de toda e qualquer interação

interpessoal que tenda a favorecer um conflito afetivo no outro (...) tende a torna-lo louco

(ou seja, esquizofrênico). (BENOIT, 1981, p.42). A gênese da esquizofrenia é, por um lado,

a esquizofrenia da gênese das relações.(BENOIT, 1981, p.49).

Retornemos ao exemplo fornecido por Laing (1973). O grifo que damos a este caso (julie),

é o fato de que tudo que adivinha no momento em que o self falso predominava era bem

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quisto pelos familiares, enquanto isso as acusações que eram animadas pelo self real eram

censuradas. Ao que uma terceira fase se apresenta, a esquizofrenia, ou a loucura da filha,

seus trejeitos e falas eram interpretadas pelos pais com sentimento de pena, marcando um

certo sentimento de alívio da família.

Esperamos ter chegado ate aqui com o mínimo de clareza possível ao que nos propomos no

início de nossa escrita. Neste itinerário, mostra-se essencial à descrição de um caso clínico

na perspectiva fenomenológica. No capítulo seguinte trataremos de apontar este caso com a

maior fidedignidade aos métodos descritivo e compreensivo. Não cometendo assim,

nenhum tipo de interpretação ofensiva ao fenômeno essencial, ou ao modelo de construção

que se deu o existir do paciente em questão.

V UM MODO-DE-SER-AÍ

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Trata-se de um rapaz, que nomearemos Rodrigo, estudante de Farmácia de 23 anos que

chega até a clínica com um diagnóstico de Esquizofrenia. Segundo o próprio cliente seu

diagnóstico foi dado quando fora internado pela primeira vez em um hospital psiquiátrico

quando contavam 17 anos. Relata que é filho caçula do segundo casamento de seu pai

(homem já mais velho). Conta que teve duas crises na adolescência, sendo uma delas após a

morte de seu pai (primeira e última vez que fala do pai). Confessa ter sido, na adolescência,

usuário pesado de maconha e álcool. Sendo difícil a ele dizer dos momentos em que

passava sóbrio devido o excesso e constância do abuso delas. Sente falta, porem se mantém

abstinente devido à opção pelo uso de psicotrópicos (prescritos após sua internação).

Encerrou seu atendimento com um psicanalista do serviço do Ipseng por não concordar

com suas explicações acerca da causa da doença. O psicanalista havia me dito que a

esquizofrenia começa na infância devido ao fato da criança “querer” a mãe... E o pai não

intervem... Alguma coisa assim... Eu não concordei com ele... Então sai, (sic). Tal

informação acerca da doença era somada ao aprendizado sobre sintomas esquizofrênicos,

aprendidos por ele com os tratados de psiquiatria que a irmã (estudante de psicologia), lhe

emprestava. O cliente ainda acrescenta ao seu repertório de conhecimento sobre a doença

aquilo que o seu psiquiatra dissera, que sua tendência era só piorar, tornando cada vez

mais insociável e se fechando em si mesmo, evitando as pessoas etc, tudo isto por causa do

desenvolvimento da doença...(sic).

Não queremos jogar o leitor contra o analista, o médico ou a irmã de nosso cliente em

questão devido as suas atitudes para com este. Ao contrário, atentamos para a possibilidade

desta “verdade” do cliente não se revelar factual. Pouco importa. O que queremos atrair

para estas descrições e outras ulteriores é a atenção para o fato de que, o nosso cliente

aceita estes diagnósticos de uma forma um tanto quanto curiosa, a saber.

Em um passado, Rodrigo recebeu um diagnóstico de depressão de um psicólogo que o

atendeu a pedido da escola em que estudava – Rodrigo havia apresentado, segundo seu

relato, um desinteresse pela escola e se irritava facilmente com aquilo que era para ser

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entendido como brincadeira dos colegas, e também iniciava seu mergulho nas drogas.

Iniciando aí o afastamento, pois, da condição humana de com-viver.

Quando questionado pelo seu psicoterapeuta, (já agora em atendimento na clínica de

Psicologia da Newton Paiva), sobre o que achou, como significou aquele diagnóstico e

quais foram suas atitudes e sentimento depois disto, o cliente surpreende o psicoterapeuta

(ainda inexperiente em seu 5º ano de faculdade), com sua resposta, qual seja, havia sido

bom pra mim... Não precisava fazer mais nada, podia ficar deitado o dia todo (não andar a

vida)... já que eu estava com depressão justificava não querer ir a aula ou sair de casa.... É

possível percebermos como Rodrigo joga com seus diagnósticos e utiliza-se deles como

verdadeiros oráculos.

Mas então não estamos falando de um ser esquízo? Mas de onde então veio este

diagnóstico de uma psicose ou esquizofrenia especificamente? Não queremos – se assim

pensa o leitor interessado – desbancar todo o trabalho realizado pelos outros profissionais

que atenderam a pessoa em questão. Seu rótulo não foi tirado de uma interpretação

equivocada ou coisa que o valha.

Podemos, senão é nosso dever, descrever alguns traços de personalidade de nosso cliente

em um nível que transcenderá – como objetivo do presente artigo – uma simples descrição

psicopatológica; sem ao menos cairmos em tentações de pecarmos contra o fenômeno

existencial do caso com a violência das interpretações psicanalíticas. Outrossim, almejamos

descrever os fenômenos e sintomas compreendendo-os, no contexto existencial concreto do

cliente e em seu modo-de-ser-esquizofrenico.

Rodrigo apresenta uma auto-estima baixa e dificuldades na compreensão no que tange as

relações com outras pessoas. A combinação destes aspectos emite um pedido de socorro,

(segundo o cruzamento de dados fornecido a partir da aplicação do MMPI).

Demasiadamente introvertido, (neste caso significando um sinal da esquizofrenia), se

polariza numa única visão, qual seja, para o seu próprio interior.

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Como profetizou o psiquiatra de Rodrigo, este traz uma questão acerca de sua dificuldade

em se relacionamento com os outros, principalmente seus colegas de sala. O uso, ou abuso,

das drogas, quando jovem, aponta para uma dificuldade em encarar a angústia do co-existir,

e todo o desdobramento presente nas idiossincrasias deste caso específico; a morte do pai,

embora o cliente não a comente, é pensada por nós enquanto uma vivência de miséria,

como alguém que perdeu tudo. Esta hipótese será averiguada mais adiante.

Diante das brincadeiras dos colegas de sala (como ocorria na sua infância e adolescência),

se sentia atacado, ofendido e como tal, contra-atacava. Polarizado na dimensão masculino,

autoritário, não dá conta da diferença (alteridade). Apresenta um saudosismo com relação

as suas relações de antes, da época em que bebia e fumava; quando as descreve é

perceptível sua preferência com as classes mais pobres já que poderia se sentir por cima,

numa relação estabelecida de forma hierárquica. Dentre suas amizades contavam-se

mendigos e usuários de drogas.

“Você acha (pergunta a seu psicólogo), que eles pensam que o fato de eu ficar calado na

sala de aula pode ser porque eu me ache superior a eles?” Uma boa força do ego e um

etnocentrismo, presente em Rodrigo, são provocadores de um preconceito elevado Na

dificuldade em interagir, já que se vê extremamente vulnerável, a saída é aniquilar o outro,

ou a si mesmo – e para nós refere-se ao fato de Rodolfo sentir a intimidade como algo que

gera desprezo (vivência metaforizada em sonhos, quando descreve uma experiência onírica

em que ha a sensação de que irá realizar um atentado ao pudor, durante uma conversação

mais íntima com alguém).

Uma outra fala significativa é “não gostaria de ouvir um não das mulheres!” Esta por sua

vez, nos leva a refletir sobre o medo que apresenta o cliente diante de algo que coloca sua

integridade, ou imagem a prova. Possui baixa resistência à frustração e uma imaginação

pobre; que, com efeito, passa a ser rico nas ações. Dito de outra forma é um perfil

psicopata; não consegue negociar com a realidade: frustrou, age. Tendendo, ainda, a

hostilizar o terapeuta quando se sente bem e o toma como cúmplice quando a situação é de

apuros.

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Relata que faz uso de uma mochila que serve para barrar os pensamentos ruins, que o

cliente descreve como pensamentos de auto-extermínio e atentado ao pudor (caracterizando

sua relação com o desejo de exibicionismo, concomitante ao pavor de ficar em evidência,

em se expor, e correr o risco do julgamento de outrem). A mochila é carregada pra onde ele

vai na intenção de, ao irromper dos desejos, conter sua atitude, como um amuleto mágico.

Diz que antes de desencadear o surto (vários insultos de vozes e uma agitação motora que o

conduziu a quebrar o vidro de sua casa), ouvia vozes que o atormentava e o condenava.

Quando relata estas situações, o cliente chega a desconfiar de algumas vezes em que tinha a

sensação, embora não tinha certeza, de que o pessoal de seu prédio falava dele.

Acreditamos que o cliente está em um delírio de auto-referência. . Extremamente

desconfiado se torna hipovigil, o que anima estes delírios de auto-referência

(megalomania).

É sabido também que o fenômeno paranóico refere, ao menos neste caso, a um mecanismo

de projeção. Há uma tendência a dissimulação: a intenção de seus atos é hostil, mas a

aparência é de bondade. O inventário MMPI corrobora com as percepções captadas pelo

psicoterapeuta no contato com o cliente durante seu tratamento. Confirma uma

personalidade que tende a emitir respostas em direção ao socialmente mais aceitável,

principalmente no que diz respeito a sentimentos hostis.

Acredita que sua doença provoca conseqüências como sua timidez (para nós, é um sinal de

um orgulho petrificado e patológico); algumas frases do tipo: “talvez se eu não fosse

esquizofrênico eu não teria estes problemas!”, fazem parte constante de seu discurso. Com

um humor depressivo, sente um grande sentimento de dó de si mesmo O inventário de

personalidade (MMPI) também aponta uma tênue elevação no indicador de suicídio; bem

como, uma elevação no quadro referente à hipocondria, o que justifica alguns sintomas

físicos dos quais Rodrigo se queixa.

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Em uma sessão em especial foi possível ao psicólogo, colher uma informação importante

mediante a uma técnica da Gestalt-Terapia em que o cliente fora submetido: um diálogo

lúdico entre o Rodrigo de hoje e o Rodrigo de antes (usuário de drogas). Numa primeira

fala o primeiro diz: “você não precisava beber tanto!”, no que uma resposta foi emitida de

prontidão: “mas eu passei por umas coisas ruins!”, com um humor deprimido Rodrigo

deixa escapar um sentimento de um trauma, quiçá da morte de seu pai. O que confirma a

vivência de miséria e a busca por relações em que estas misérias sejam explicitas, como a

de mendigos.

Rodrigo foi submetido ao inventário de personalidade MMPI, para nos auxiliar na

compreensão de sua personalidade e nas diretrizes de seu tratamento. O inventário de

personalidade não visa um diagnóstico estrutural e fixo, sendo apenas mais uma ferramenta

ao psicólogo que trabalha com diferentes formas de chegar ao não dito do cliente, e não se

limita ao conteúdo verbal deste. Rodrigo se mostrou demasiado interesse nos resultados,

cobrando-os em todas as sessões, e nos causando uma certa desconfiança, pois.

O interesse de Rodrigo na posse de um diagnóstico vem da mesma origem de sua intenção

e seu uso do diagnóstico de depressão do passado: Evadir-se da angústia de existir – já que

o mundo lhe apresenta ofensivo e invasívo. Como não pensamos o ser-no-mundo por uma

perspectiva estruturalista, o inventário de personalidade viria nos auxiliar na compreensão

da dinâmica dos sintomas apresentados pelo cliente em seu modo-de-ser-aí esquizofrênico.

A impossibilidade, e a frustração, de poder estar de posse de um diagnóstico, (sendo-lhe

apenas permitido o acesso a uma descrição de sua personalidade, naquele momento),

promoveu em Rodrigo um movimento salutar em vista do qual apresentava até então.

Dessa forma, Rodrigo já não mais percebe sua esquizofrenia como uma doença irreversível

e degenerativa. Entendendo que a utilização que vinha fazendo desta, era de maior

relevância do que a doença em si mesma. Tampouco, Rodrigo encontra-se curado de sua

enfermidade psíquica, mas a desmistificação da doença possibilitou uma abertura para o

trabalho de responsabilizar-se pela sua própria existência.

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Há tempos Rodrigo havia tido um sonho e o relatado em analise para seu antigo psicólogo.

No sonho, Rodrigo ouvia de seu analista que a sua doença era contrária ao tratamento

psicoterápico. Rodrigo se lembra deste sonho e nos relata em atendimento. Para nossa

surpresa, nesta mesma sessão diz de uma outra experiência onírica que teve na semana

anterior, (ou seja, já no seu atual processo psicoterapêutico). Estava na faculdade com seus

colegas de sala e com seu atual psicólogo, quando um deles pergunta ao profissional qual

remédio tomar para curar uma gripe que o atormentava. No que o psicólogo diz: Rodrigo

que poderia lhe ajudar, ele quem tem o remédio. Então Rodrigo nomeia um medicamento e

o receita.

É notória a mudança de postura de Rodrigo com relação a sua enfermidade e o processo

terapêutico. Se antes, através do sonho, afirmava a impossibilidade de tratamento e

buscava, com efeito, uma justificativa no diagnóstico, Rodrigo agora se implica na escolha

de seu itinerário existencial. Aludindo ao último sonho, Rodrigo agora possui o remédio

para a doença e também a coragem de receitá-lo.

.

VI CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Como discorremos, a psicopatologia não dá conta do todo da existência humana; não

engloba, pois, o adoecimento como um malogro do ser em alcançar uma forma

idiossincrática de unidade. Por sua vez, Freud foi um excelente psicopatologista, haja visto

que a patologização do linguajar psicológico sobrevive até hoje.

Embora Freud tenha descrito precisamente os fenômenos, tomou um viés que foi o da

explicação dos mesmos enquanto decorrentes de conflitos inconscientes e determinantes

pulsionais. Deixando assim, para nós fenomenólogos, a riqueza da possibilidade de

compreendermos estes mesmos fenômenos e os sintomas da esquizofrenia enquanto fruto

de uma escolha-existencial malograda – como diria Binswnager –, dentro de um contexto

existencial.

Se a pergunta da fenomenologia é qual a intenção do ser em relação ao mundo?, é preciso

que o psicólogo transite bem pelo campo fenomênico do cliente a fim de livrar-se dos

grilhões do ato de julgar, ou interpretar, principalmente quando se fala de pacientes

psicóticos.

Para o esquizofrênico, enamorar-se é perder-se no outro, ou ser como o outro; neste

sentido, odiar e ser odiado oferece menos perigo à identidade. O esquema que deturpa esta

relação é o seu self cindido entre o ser da pessoa e seu próprio corpo. Neste sentido,

algumas implicações são inevitáveis no tratamento aos pacientes divididos, inseguros e

vulneráveis.

O esquizofrênico só poderá ser compreendido no momento em que o psicólogo alcança o

campo fenomênico do paciente. Esta relação depende de um contato genuíno entre ambos.

Decerto o psicólogo ou qualquer outro que se aproxima (com seu saber), deverá se

posicionar de uma forma congruente, ter realmente um engajamento com o paciente. Ainda

que tudo isto não seja suficiente para estabelecer uma abertura por parte daquele que se

encontra demasiado trancado, abafado, devido ao receio das invasões.

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Esta postura de abertura ao campo fenomênico do indivíduo é caracterizada como uma

atitude amorosa para com a relação. Enquanto psicólogos, travamos uma árdua tarefa com

nossos clientes para que busquem seu ser-para-si, sua edificação e sua individuação.

Tornar-se si mesmo já é um trabalho difícil, imaginemos acolher alguém que afirma ser

outro, completamente incongruente com a própria experiência do self? Seria impossível

terapia de qualquer espécie, (LAING, 1973 p.190).

Contudo, não recuamos diante da esquizofrenia em detrimento das dificuldades que esta

personalidade nos impõe. O esquizo, na tentativa de não se comunicar, mantém–se numa

comunicação silenciosa, fracassando, pois, em seu sentido último. Aqui ressaltamos a

riqueza da técnica tête-à-tête no processo terapêutico que nos permite absorver a linguagem

do esquizofrênico que não se revela na verbalização.

Outrossim, não buscamos uma psicologia que visa uma normatização social, tampouco

pretendemos curar o esquizofrênico dele mesmo – semelhante ato seria o próprio

diagnóstico da loucura – na medida em que não reconhecemos a psicose como uma

morbidade médica, mas sim uma forma do Dasein se apresentar com sua angústia

existencial no mundo. Desse modo, cabe a nós evitar, por necessidade, a imposição de toda

e qualquer conclusão que venha a responder a todas as questões que o presente texto nos

instiga – caracterizando-se como um ensejo para firmarmos nossos primeiros passos em

busca de uma maior compreensão do devir esquizo.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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AUGRAS, Monique. O ser da compreensão: fenomenologia da situação de

psicodiagóstico.

3. ed. Petrópolis: Vozes. 1978.

BENOITE, Jean-Claude. Vínculos Duplos: Familiares dos Esquizofrênicos. Rio de

Janeiro: Zahar Editores. 1981. 96 p.

FERNÁNDEZ, F. Alonso. Fundamentos de la psiquiatria actual. 4. ed. Madrid: Paz

Montalvo, 1977, 957 p.

LAING, R. D. (Ronald David). O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura.

3. ed. Vozes, 1978, 231 p.

ROMERO, Emílio. Inquilino do imaginário: formas de alienação e psicopatologia. 3. ed.

Lemos, 2001. 295 p.

TODOROV, Tzevtan. Os gêneros do discurso. São Paulo: M. Fontes, 1980, 305 p.