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Cenários de Seleção Natural em Cosmologia Osame Kinouchi Departamento de Física FFCLRP USP Resumo: Ideias sobre evolução e desenvolvimento surgidas no contexto da Biologia têm sido aplicadas recentemente no contexto Cosmológico. Após uma breve descrição do problema do Ajuste Fino em Cosmologia e as principais propostas para sua solução, fazemos uma revisão do cenário de Seleção Natural Cosmológica de Smolin e sua extensão para cenários onde a vida inteligente desempenha um papel dentro de um Multiverso Biofílico. Consideramos as vantagens e desvantagens do cenário de Seleção Artificial Cosmológica proposto por pesquisadores ligados à temática de Universo EVO DEVO. Finalmente, descrevemos em que sentido tais especulações científicas podem ser testadas em um futuro próximo. “A vida é um processo transitório e marginal na história do Universo. Um acidente sem maiores consequências que será apagado e esquecido na medida em que a morte térmica do Universo (resultado inevitável da segunda lei da Termodinâmica) se processar, se não ocorrer muito tempo antes disso. A vida, um epifenômeno produzido por cegas leis físicas, sobrevive precariamente em um Universo que lhe é indiferente ou mesmo hostil”. Esta visão pessimista, herdada do século XIX, permanece ainda em nossa moderna Cosmologia. Jaques Monod, biólogo prêmio Nobel, enfatiza no seu livro Acaso e Necessidade (1972) que tal visão seria a única compatível com o conhecimento científico. O físico e também Nobel Steven Weinberg reafirma a mesma concepção em seu Os Três Primeiros Minutos (1977), dizendo: The more the Universe seems comprehensible, the more it seems pointless 1 . Sem dúvida não é um cenário muito agradável, mas a realidade não precisa ser agradável aos desejos humanos. Em uma entrevista, Weinberg esclarece melhor o que quis dizer com sua famosa frase 2 : 1 Quanto mais o universo se torna compreensível, mais ele parece ser sem sentido. 2 Years ago I wrote a book about cosmology, and near the end I tried to summarize the view of the expanding universe and the laws of nature. And I made the remark - I guess I was foolish enough to make the remark - that the more the universe seems comprehensible the more it seems pointless. And that remark has been quoted more than anything else I've ever said. It's even in Bartlett's Quotations. I think it's been the truth in the past that it was widely hoped that by studying nature we will find the sign of a grand plan, in which human beings play a particularly distinguished starring role. And that has not happened. I think that more and more the picture of nature, the outside world, has been one of an impersonal world governed by mathematical laws that are not particularly concerned with human beings, in which human beings appear as a chance phenomenon, not the goal toward which the universe is directed. And for some this has no effect on their religion. Their religion never looked for any kind of point in nature. For others this is appalling, the idea that all of the stars and galaxies and atoms are going about their business, and it's just by accident that here on this solar system the peculiar chemical properties of DNA acting over billions of years have produced these people who

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Page 1: Cenários de Seleção Natural em Cosmologia · Cenários de Seleção Natural em Cosmologia Osame Kinouchi Departamento de Física – FFCLRP – USP Resumo: Ideias sobre evolução

Cenários de Seleção Natural em Cosmologia

Osame Kinouchi

Departamento de Física – FFCLRP – USP

Resumo: Ideias sobre evolução e desenvolvimento surgidas no contexto da

Biologia têm sido aplicadas recentemente no contexto Cosmológico. Após uma

breve descrição do problema do Ajuste Fino em Cosmologia e as principais

propostas para sua solução, fazemos uma revisão do cenário de Seleção Natural

Cosmológica de Smolin e sua extensão para cenários onde a vida inteligente

desempenha um papel dentro de um Multiverso Biofílico. Consideramos as

vantagens e desvantagens do cenário de Seleção Artificial Cosmológica

proposto por pesquisadores ligados à temática de Universo EVO DEVO.

Finalmente, descrevemos em que sentido tais especulações científicas podem

ser testadas em um futuro próximo.

“A vida é um processo transitório e marginal na história do Universo. Um

acidente sem maiores consequências que será apagado e esquecido na medida em que

a morte térmica do Universo (resultado inevitável da segunda lei da Termodinâmica)

se processar, se não ocorrer muito tempo antes disso. A vida, um epifenômeno

produzido por cegas leis físicas, sobrevive precariamente em um Universo que lhe é

indiferente ou mesmo hostil”.

Esta visão pessimista, herdada do século XIX, permanece ainda em nossa

moderna Cosmologia. Jaques Monod, biólogo prêmio Nobel, enfatiza no seu livro

Acaso e Necessidade (1972) que tal visão seria a única compatível com o

conhecimento científico. O físico e também Nobel Steven Weinberg reafirma a

mesma concepção em seu Os Três Primeiros Minutos (1977), dizendo: The more the

Universe seems comprehensible, the more it seems pointless1. Sem dúvida não é um

cenário muito agradável, mas a realidade não precisa ser agradável aos desejos

humanos.

Em uma entrevista, Weinberg esclarece melhor o que quis dizer com sua

famosa frase2:

1 Quanto mais o universo se torna compreensível, mais ele parece ser sem sentido.

2 Years ago I wrote a book about cosmology, and near the end I tried to summarize the view of the expanding universe

and the laws of nature. And I made the remark - I guess I was foolish enough to make the remark - that the more the

universe seems comprehensible the more it seems pointless. And that remark has been quoted more than anything else

I've ever said. It's even in Bartlett's Quotations. I think it's been the truth in the past that it was widely hoped that by

studying nature we will find the sign of a grand plan, in which human beings play a particularly distinguished starring

role. And that has not happened. I think that more and more the picture of nature, the outside world, has been one of an

impersonal world governed by mathematical laws that are not particularly concerned with human beings, in which

human beings appear as a chance phenomenon, not the goal toward which the universe is directed. And for some this

has no effect on their religion. Their religion never looked for any kind of point in nature. For others this is appalling,

the idea that all of the stars and galaxies and atoms are going about their business, and it's just by accident that here on

this solar system the peculiar chemical properties of DNA acting over billions of years have produced these people who

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Anos atrás eu escrevi um livro sobre cosmologia, e perto do final, eu

tentei resumir o ponto de vista do Universo em expansão e as leis da natureza.

E eu fiz o comentário - eu acho que fui tolo o suficiente para fazer a

observação - que quanto mais o Universo parece compreensível, mais parece

sem sentido. E essa observação foi citada mais do que qualquer coisa que eu

já disse. Ela está até no livro de citações de Bartlett. Eu acho que tem sido

verdade no passado de que era amplamente esperado que, ao se estudar a

natureza, iríamos encontrar o sinal de um grande plano, no qual os seres

humanos desempenhariam um papel de protagonista particularmente distinto.

E isso não aconteceu. Eu acho que cada vez mais a imagem da natureza, do

mundo exterior, tem sido uma de um mundo impessoal regido por leis

matemáticas que não estão particularmente preocupados com os seres

humanos, em que os seres humanos aparecem como um fenômeno casual, não

a meta para a qual o Universo é dirigido. E, para alguns, isso não tem efeito

sobre a sua religião. Sua religião nunca olhou para qualquer tipo de propósito

na natureza. Para outros, isso é terrível, a ideia de que todas as estrelas e as

galáxias e os átomos estão tratando de seus próprios negócios, e é só por

acaso que aqui neste sistema solar as propriedades químicas peculiares do

DNA, atuando ao longo de bilhões de anos, produziram essas pessoas que têm

sido capazes de falar e olhar em volta e aproveitar a vida. Para algumas

pessoas essa imagem é a antítese da visão da natureza e do mundo que a sua

religião lhes tinha dado.

Assim, um certo senso comum parece identificar unicamente dois cenários para

a origem do Universo: um cenário Teísta, onde o Criador planeja e cria o Universo

com sentido e propósito, e um cenário Ateísta, onde o Universo, a vida e a mente

surgem por puro acaso e não possuem nenhum sentido ou significado mais profundo.

Parece provável que o que muitas pessoas achem deprimente no Ateísmo não é a

ausência de um Criador em si, mas a ausência de propósito e significado para o

Universo e para vida. Afinal, algumas versões do Budismo postulam um Universo

eterno não-criado, ou consideram a questão da origem do Universo irrelevante, mas o

Budismo mantém a ideia de um sentido e propósito para a vida humana e para o

Universo, e não poderia deixar de ser assim enquanto for uma filosofia religiosa.

Alternativamente, teístas ficariam insatisfeitos com a ideia de um Criador que, por

pura diversão ou acidente, faz um Universo sem sentido ou com um sentido perverso.

Devemos notar que os livros de Monod e Weinberg foram publicados na

década de setenta e talvez precisem de alguma atualização. Por exemplo, Monod

defende que a origem da vida é um acidente existencial extremamente improvável e

talvez único na história do Universo. Hoje em dia, os astrobiólogos consideram que a

vida, pelo menos em sua forma microbiana, deve ser um fenômeno extremamente

provável, quase um processo inevitável dadas as condições físico-químicas corretas.

Em relação ao livro de Weinberg, surgiram evidências crescentes de que, em certo

sentido, nosso Universo é bastante especial: suas leis físicas, constantes universais e

have been able to talk and look around and enjoy life. For some people that picture is antithetical to the view of nature

and the world that their religion had given them.

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condições iniciais parecem ser especialmente ajustadas para não apenas permitir, mas

também favorecer a emergência de estruturas complexas. Este é o assim chamado

Problema do Ajuste Fino (Fine Tunning), amplamente discutido na literatura mas

ainda sem solução consensual (BARROW & TIPLER, 1988; BARNES, 2011;

COLEMAN, 2012).

Curiosamente, nos últimos vinte anos, um grupo de pesquisadores, em sua

maior parte físicos, cosmólogos, biólogos e filósofos, têm desenvolvido uma espécie

de “terceira via” entre Ateísmo e Teísmo. Nessa abordagem, chamada de Universo

EVO DEVO3 (pois tenta aplicar ideias advindas das teorias de evolução e

desenvolvimento biológicos ao Universo), três cenários tem sido estudados. No

primeiro, de Seleção Natural Cosmológica (SNC), nosso Universo não tem um

criador, mas tem sentido e propósito na forma de uma sequência desenvolvimental

que visa sua reprodução, dentro de um quadro maior similar a uma evolução

Darwinista de Universos. No segundo cenário, chamado de Seleção Natural

Cosmológica com Inteligência (SNCI), inteligências evoluídas dentro do Universo

contribuem para seu processo de replicação de forma intencional ou não. No terceiro

cenário, de Seleção Artificial Cosmológica (SAC), as inteligências que habitam um

Universo-mãe criam artificialmente novos Universos visando seu melhoramento

“genético”, ou seja, suas condições de habitabilidade. Apenas nos dois últimos

cenários temos um papel relevante para a vida e a inteligência no processo cósmico,

embora o papel dos seres humanos nesse processo pode ser apenas transiente ou

mesmo insignificante.

Neste ponto, dado que tais ideias podem parecer beirar a ficção científica (e

realmente foram ali primeiro concebidas, ver Asimov (1956) e Brin (1991)), creio

que seria importante discutir o que é considerado um programa de pesquisa científico

em física teórica e o que é tido como apenas uma especulação científica. Para um

programa de pesquisa (um conjunto de teorias com pressupostos comuns) ser

considerado científico basta que ele seja fértil e produtivo, no sentido de que pode ser

explorado por modelos matemáticos que solucionem questões teóricas, que

expliquem resultados empíricos ou que sugiram a possibilidades de testes empíricos

no futuro.

Já a aceitação consensual de teorias advindas de um programa de pesquisa é

um processo bem mais lento que depende do sucesso empírico da teoria frente ao de

suas concorrentes. Por exemplo, a Teoria de Cordas, que visa unir a Gravitação de

Einstein com a Física Quântica, constitui um programa de pesquisa científico, embora

não possua evidências empíricas a seu favor. Ou seja, é um programa de pesquisa em

andamento, fértil e promissor, mas que ainda não atingiu o nível consensual tanto por

falta de testes empíricos quanto pelo fato de ainda não ter atingido uma formalização

matemática coerente e final.

No caso dos cenários SNC, SNCI e SAC, os mesmos também visam explicar

um problema fundamental (o aparente ajuste fino cosmológico), mas, dado o nível

informal e menos matemático de seus modelos, o progresso dessas ideias é menos

3 http://evodevouniverse.com/wiki/Cosmological_natural_selection_(fecund_universes)

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mensurável4. Tais cenários seriam melhor descritos como especulações científicas, ou

seja, são possibilidades teóricas compatíveis com resultados conhecidos e cuja

exploração parece ser interessante, tanto do ponto de vista científico quanto

filosófico. Entretanto, devemos ter sempre em mente que vários de seus pressupostos

são baseados em resultados teóricos ainda não conclusivos, cuja precariedade será

devidamente assinalada ao longo deste texto.

Seleção Natural Cosmológica (SNC)

Comecemos pelo cenário de SNC, que foi proposto em 1992 pelo físico Lee

Smolin (SMOLIN, 1992; SMOLIN, 1994). Sua motivação principal foi dar uma

resposta alternativa e mais testável ao problema do ajuste fino cosmológico: o fato de

que uma série de coincidências nas leis físicas, constantes universais e condições

iniciais do Universo parecem conspirar para a formação de estruturas complexas

(galáxias, estrelas, planetas, química orgânica e vida) (BARROW & TIPLER, 1988;

BARNES, 2011; COLEMAN, 2012). Ou seja, nosso Universo não só permite como

parece favorecer a emergência da complexidade, mas isso não precisaria ser assim. É

totalmente possível, por exemplo, imaginar Universos física e matematicamente

viáveis que contém apenas um gás de partículas ou mesmo feitos de puro vácuo

quântico (GREENE, 2011).

Em termos genéricos, um crescente consenso está se estabelecendo de que o

que chamamos de complexidade pode estar ligada ao fato de que os parâmetros de

um sistema estão sintonizados perto de uma transição de fase ou bifurcação dinâmica,

as assim chamadas “regiões críticas” (WOLFRAM, 1986; KINOUCHI & COPELLI,

2006; VIDAL, 2010). Se este realmente é o caso em Cosmologia, então, dado que a

dimensionalidade de uma região crítica é sempre menor que a do espaço de

parâmetros5 em questão, um ajuste fino realmente seria necessário e inevitável para

se criar um Universo complexo.

Uma primeira resposta para o problema do ajuste fino seria a de que, afinal de

contas, o Universo é como é, não possuindo parâmetros livres que precisem ser

ajustados. Respondendo a um conhecido comentário de Einstein6, Stephen Hawking

sugeriu que talvez Deus não teria liberdade matemática alguma na criação de nosso

Universo, de modo que a hipótese de Deus seria dispensável. Ainda acalentada na

década de noventa, essa ideia de uma Teoria do Tudo, que seria uma única teoria

matematicamente consistente e sem parâmetros livres, foi abandonada pela maioria

dos físicos, inclusive Hawking, em favor de cenários de Multiverso (ver a seguir).

Afinal, a suposição de um único Universo fisicamente possível que é, ao mesmo

tempo, um Universo complexo, apela para uma incrível coincidência cientificamente

não justificável.

4 No caso das Supercordas, podemos medir esse progresso pela solução de problemas matemáticos da teoria, novos

teoremas etc. 5 Por exemplo, um ponto crítico (dimensionalidade d = 0) em um sistema com um parâmetro (d = 1) ou uma linha

crítica (d = 1) em um espaço com dois parâmetros (d = 2). Note que espaço de parâmetros não tem a ver com o espaço

físico, mas sim com o número de parâmetros independentes (ou “livres”) que podem ser variados em um sistema. 6 Einstein teria dito, metaforicamente, que o objetivo de sua pesquisa era verificar que tipo de liberdade Deus teria ao

criar o Universo.

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Uma segunda resposta, que é a mais popular atualmente, é a de que nosso

Universo faz parte de um conjunto imenso de outros Universos, o Multiverso. Cada

Universo teria propriedades, partículas, leis e constantes físicas diferentes uns dos

outros7 (WEINBERG, 2006; CARROLL, 2006; GREENE, 2011). A resposta então é

dada pelo Principio Antrópico Fraco8: se o nosso Universo não fosse complexo, nós

não estaríamos aqui para fazer a pergunta sobre o ajuste fino cosmológico. Portanto,

por puro acaso, devemos estar em um dos raríssimos Universos do Multiverso

capazes de produzir observadores. Chamaremos esta solução de Multiverso Inóspito

(MI).

Ao propor sua ideia de uma seleção natural de Universos, Smolin (2002, 2004)

tenta esboçar um cenário mais cientificamente testável do que o cenário de

Multiverso Inóspito com Princípio Antrópico Fraco. Baseado em certas ideias da

física de buracos negros (HAWKING, 1993), Smolin assume que os mesmos podem

gerar Universos-bebês, ou seja, regiões do espaço-tempo que se expandem de forma

inflacionária e se desconectam do nosso (ver Figura 1). Smolin postula que tais

Universos-bebês herdam as leis físicas e constantes universais do Universo-mãe (o

análogo de um genoma cósmico) com pequenas variações induzidas por flutuações

quânticas (análogas a mutações biológicas). Ao longo de sucessivas gerações,

Universos com propriedades que produzem mais estrelas e buracos negros acabam

por se tornar estatisticamente dominantes no Multiverso.

Figura 1. Uma bolha de falso vácuo se separando do universo-mãe e gerando um universo-

bebê, de Guth (1991).

O ponto importante da proposta de Smolin é que Universos complexos não

7 Isso é previsto quando combinamos resultados da Teoria de Inflacão Eterna com a Teoria de Supercordas. A Inflação

Eterna mostra que o processo de geração de Universos é contínuo, ou seja, o Big Bang não é único. Relevo de

Supercordas (Superstring Landscape) é um conceito desenvolvido por Susskind que se refere ao espaço de soluções da

teoria, estimado em pelo menos 10500

universos fisicamente diferentes (WEINBERG, 2006; GREENE, 2011). 8 O Princípio Antrópico Fraco diz que, ao estudarmos o Universo, devemos levar em conta (e não ficarmos surpresos

com o fato de) que ele precisa ter as propriedades corretas para admitir a presença de observadores como nós. Ou seja, a

probabilidade condicional de um parâmetro X estar na faixa antrópica A na presença de observadores O, P(X=A|O) é

muito maior do que a probabilidade a priori P(X=A). Já o Principio Antrópico Forte diz que, por alguma razão a ser

esclarecida, o Universo possui as propriedades corretas para gerar observadores em seu interior (BARROW & TIPLER,

1988).

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aparecem de pronto ou surgem do nada: a evolução de Universos simples para

Universos cada vez mais complexos (no sentido de produtores de estrelas e buracos

negros) é um processo longo baseado em um tipo de seleção natural cosmológica.

Assim, no cenário original de SNC, a função de fitness9 biológico a ser otimizada

pelo processo evolutivo cósmico é a produtividade de buracos negros.

Essa ideia de Smolin é em princípio testável, examinando-se os possíveis

Universos com parâmetros próximos dos nossos e verificando-se se a função custo

realmente está otimizada. Em meados dos anos noventa, Smolin reportou que sua

equipe fez testes de sensitividade, via simulações computacionais, em oito de vinte

parâmetros físicos fundamentais. Smolin e colaboradores teriam encontrado que

nosso Universo parece estar realmente ajustado tanto para produzir muitas estrelas e

buracos negros quanto para ter uma longa duração, o que coincidentemente parece ser

um pré-requisito para a evolução biológica.

A análise de ajuste fino, porém, precisa ser feita com cuidado, pois podemos

variar não apenas um parâmetro por vez (mantendo os outros fixos), mas também

mudar vários parâmetros ao mesmo tempo (HARNIK et al., 2006; GIUDICE, 2012).

Um resultado recente e interessante é que o conjunto de parâmetros que fornece

Universos complexos não está restrito a uma região pequena do espaço de

parâmetros, mas constitui uma região interconectada (BRADFORD, 2011). Sendo

assim, realmente podemos imaginar um processo evolutivo dentro dessa região, de

Universos com ajuste cosmológico grosso para Universos com ajuste cada vez mais

fino.

Precisamos notar duas coisas aqui: primeiro, as ideias de Smolin são mais

testáveis cientificamente que modelos de Multiverso sem seleção natural porque

podemos, em principio, examinar se nosso Universo realmente tem um ajuste fino

para maximizar a produção de buracos negros (ou qualquer outra função de fitness

proposta). O mesmo não é o caso do cenário de Multiverso Inóspito, onde a

observação direta de outros Universos está praticamente fora de questão (evidências

indiretas de um Multiverso, porém, podem ser obtidas, ver Greene (2011)). Segundo,

a vida e a mente são epifenômenos cósmicos no cenário CNS: a formação de estrelas,

pré-requisito para a formação de buracos negros, é otimizada na presença de carbono

porque tais átomos são um importante fator no processo de resfriamento e colapso

das nuvens proto-estelares. Que a mesma otimização gere a química baseada em

carbono da qual emergem moléculas complexas, vida e consciência é um fato

acidental, não relacionado com o processo de reprodução dos Universos.

O cenário CNS recebeu certa atenção e sofreu algumas críticas, a principal

delas sendo a de que a densidade de energia escura10

não parece estar especialmente

ajustada para a produção de buracos negros (SUSSKIND, 2004; VILENKIN, 2006).

Smolin elaborou melhor suas ideias e se defendeu de tais críticas (SMOLIN, 2006).

9 Usaremos a definição biológica usual de fitness (ajuste) de uma entidade como sendo o número de descendentes

férteis que a mesma é capaz de produzir. 10

A Energia Escura, elemento desconhecido que constitui 74% da energia do Universo, é detectada apenas por seu

efeito gravitacional repulsivo que acelera a expansão do Universo. Não deve ser confundida com a Matéria Escura,

possivelmente relacionada a partículas massivas desconhecidas com gravitação atrativa e que perfaz 22%. As partículas

conhecidas (Modelo Padrão) tais como fótons, neutrinos, elétrons, quarks etc., perfazem apenas 4% da energia/matéria e

constituem o nosso Universo visível.

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Assim, seria prematuro dizer que a ideia de Cosmologia com Seleção Natural tenha

sido refutada, especialmente porque é muito provável que o processo físico de

geração de Universos-bebês via buracos negros venha a ser melhor compreendido e

aceito, dando uma maior plausibilidade teórica ao mecanismo de reprodução com

variação de Smolin.

Seleção Natural Cosmológica com Inteligência (SNCI) e Seleção Artificial

Cosmológica (SAC)

O cenário SNCI nasce a partir das ideias de Smolin (1992), tendo sido

proposto inicialmente por Crane (1994) e Harrison (1995). Foi desenvolvido por

Gardner (2000, 2003, 2007), Smart (2000) e mais recentemente por Vidal (2008,

2010) e Stewart (2010). Como é comum em ideias cosmológicas, tais cenários foram

também explorados na literatura de ficção científica, por exemplo em Asimov (1956),

Brin (1991) e Kinouchi (2011).

Os modelos de SNCI tentam trazer os tópicos de inteligência e computação

para o cenário de SNC, propondo que tais fatores, quando muito desenvolvidos

dentro de um Universo, acabam por ajudar de alguma forma na sua replicação e

seleção dentro do Multiverso. Universos com inteligências são, por definição, mais

complexos que Universos sem inteligência, de modo que seus estados internos são

mais variados. Basta que algum desses estados mude levemente o fitness reprodutivo

de tal Universo para que eventualmente sua linhagem se torne dominante frente a

linhagens sem inteligência, geradas no cenário SNC ou no Multiverso Inóspito. Ou

seja, basicamente a pergunta é se uma civilização ou inteligência suficientemente

adiantadas poderia ser capazes de gerar um Universo de forma artificial ou se existe

alguma barreira, física ou tecnológica, que impediria tal processo.

Surpreendentemente, nossos conhecimentos em física e cosmologia atual nos

dizem que, em principio, seria possível reproduzir as condições do Big Bang

inflacionário de forma artificial. Alan Guth, um dos fundadores da Teoria

Inflacionária e recente ganhador do Fundamental Physics Prize11

, mostrou que, em

princípio, é possível criar um Universo “em laboratório” desde que se produza uma

bolha de falso vácuo similar ao estado que deu início à inflação de nosso Universo

(FARHI et al., 1990; GUTH, 1991). Desde então, outros autores tem estudado

propostas similares (para uma revisão, ver ANSOLDI & GUENDELMAN, 2006 e

McCABE, 2008).

Autores como Crane (1994) e Harrison (1995) especularam que civilizações

avançadas poderiam, ao criar mini-buracos negros para geração de energia e outros

fins, gerar Universos-bebês de forma acidental ou não. Tais Universos-bebês, ao

herdarem as propriedades físicas de seus univeros-mães com pequenas variações,

exibiriam assim um mecanismo complementar ao de Smolin para a seleção natural de

Universos complexos.

11

O Prêmio de Física Fundamental é concedido pela The Fundamental Física Prize Foundation, uma organização sem

fins lucrativos dedicada à premiação de físicos envolvidos em investigação fundamental, que foi fundada em julho de

2012 pelo físico russo e empresário Yuri Milner. Este é o maior prêmio acadêmico mundial, tendo contemplado nove

físicos teóricos em 2012 com três milhões de dólares cada (http://en.wikipedia.org/wiki/Fundamental_Physics_Prize).

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Enquanto que Crane (1994), Harrison (1995) e Gardner (2000, 2003) abordam

o tema de um ponto de vista de arquitetos cósmicos de natureza pós-biológica (seres

orgânicos em simbiose com inteligência artificial), Smart (2000, 2009) enfatiza mais

uma abordagem evolucionária e desenvolvimental (Evo Devo) de toda a história do

Universo, onde o papel da inteligência é mais constrangido12

. Já Vidal (2008, 2010)

sugere que os habitantes de um Universo-mãe poderiam, via extensivas simulações

computacionais, determinar como incrementar as condições de vida nos novos

Universos. Poderíamos assim ter uma evolução dirigida, uma Engenharia Genética

Cosmológica, que Vidal chamou de Seleção Artificial Cosmológica (SAC).

O raciocínio no qual os cenários de SNCI e SAC se baseiam pode ser colocado

em termos bastante conservadores. Vamos supor que exista, em media, apenas uma

única tecnocivilização avançada por galáxia (um número considerado conservador até

pelos astrobiólogos mais pessimistas). E vamos supor que tal civilização crie, ao

longo de sua história, apenas um Universo-bebê (de novo, uma perspectiva muito

conservadora). Neste caso, dado que temos bilhões de galáxias no Universo

observável, teríamos que Universos com vida e mente produziriam pelo menos esse

número de Universos-bebês a mais do que Universos similares destituídos de

inteligência. No Multiverso, os Universos cujo ciclo reprodutor auxiliado pela

inteligência passariam a ser mais frequentes estatisticamente.

Assim, o cenário SNCI é consistente não apenas com o Principio Antrópico

Fraco, mas também com o Princípio Antrópico Forte, que afirma que o Universo tem

condições favoráveis à vida e inteligência devido a fatores causais. Em outras

palavras, não apenas a replicação e seleção de Universos, mas também a emergência,

conservação e robustez da inteligência podem ser consideradas intrínsecas ao telos

desenvolvimental do Universo, na medida em que a inteligência tiver algum papel,

por pequeno que seja, nesse processo de replicação/seleção universal.

Vaas (2009, 2010) examinou de forma crítica o cenário SNCI, delimitando os

maiores problemas ainda não resolvidos na pesquisa e validação dessas ideias.

Mesmo assim, ele nota que o cenário SNCI tem utilidade potencial como uma

maneira de integrar três correntes de pensamento filosófico: 1) a origem e aparente

ajuste fino de nosso Universo, 2) o possível valor e significado da vida no Universo e

3) a sobrevivência de informação e complexidade do Universo.

Os cenários SNCI e SAC são testáveis?

Os principais testes que podemos submeter os cenários SNCI e SAC a fim de

refutá-los são os seguintes:

a) Mostrar que a criação de Universos-bebês artificiais é fisicamente ou

tecnologicamente impossível.

b) Mostrar que os Universos-bebês não podem herdar as características do

Universo-mãe com pequenas mutações em suas leis, constantes e condições

12

Note que as inteligências residentes em um Universo-mãe não precisam criar novos Universos de forma proposital e

consciente. Mesmo se os Universos-bebês surgirem como acidentes ou produtos colaterais das atividades dessas

inteligências, a linhagem de Universos com inteligência será favorecida no Multiverso.

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iniciais.

c) Mostrar que a vida inteligente não dura o tempo suficiente para poder criar de

Universos-bebês.

d) Mostrar que o relêvo de ajuste paramétrico (fitness landscape) do Multiverso é

muito rugosa e não permite a evolução via algoritmos genéticos13

como nas

propostas com Seleção (Natural ou Artificial) de Universos.

Evidências favoráveis ao cenário SNCI poderiam ser obtidas ao se melhorar as

análises dos intervalos de ajuste fino cosmológico. Se os parâmetros de nosso

Universo estão especialmente sintonizados para a produção de vida inteligente (mais

do que para a produção de buracos negros naturais), isso favorece os cenários SNCI e

SAC em detrimento do SNC. A plausibilidade de cenários com Seleção de Universos

também é favorecida quando se nota que cenários alternativos como o de Multiverso

Inóspito é menos testável empiricamente (SMOLIN, 2002; SMOLIN, 2006).

No cenário de Multiverso Inóspito o processo de eclosão de novos Universos

não é mapeado em uma árvore filogenética de Universos com seleção natural (SNC,

SNCI) ou artificial (SAC). Os Universos surgem ao acaso, independentes, pelo

mecanismo de Inflação Eterna, e o Multiverso é uma realização estatística dos

Universos fisicamente possíveis. A resposta para o problema do ajuste fino é

simplesmente, neste cenário, a de que uma pequena fração dos Universos possíveis

permite a emergência de inteligência. Dado que não estaríamos aqui para fazer

perguntas se o Universo não permitisse observadores, não é surpresa que estejamos

dentro de um desses raros Universos, por puro acaso. Neste cenário, tanto a vida

como a consciência são epifenômenos situados em raros oásis dentro de um

Multiverso enorme e basicamente hostil a qualquer entidade complexa.

Isso implica em uma predição que difere do cenário SNCI. Estatisticamente,

deveríamos esperar que os Universos que apenas “permitem” a complexidade e a

vida são muito mais abundantes do que aqueles que “favorecem” a emergência das

mesmas. O Multiverso Inóspito prediz que nosso Universo deve estar na borda da

região do espaço de parâmetros que contem Universos habitáveis. Já o cenário SNCI

(e ainda mais o SAC) prediz que nosso Universo está bem mais dentro dessa região,

embora sua localização não precise estar totalmente otimizada14

. Isto poderia ser

testado observacionalmente.

Vantagens e desvantagens dos cenários de Seleção de Universos sobre o

cenário de Multiverso Inóspito

A principal vantagem do cenário de Multiverso Inóspito (WEINBERG, 2006;

GREENE, 2011) é que ele é uma simples consequência de teorias bem desenvolvidas

13

Dentro da Teoria de Otimização Computacional, que os melhores algoritmos para otimização de estruturas complexas

são do tipo evolucionário: Computação Evolucionária, Algoritmos Genéticos, Programação Evolucionária,

Programação Genética etc. (BAECK et al., 1997) em vez de abordagens de design direto, o que poderia ser tomado

como um argumento a favor do cenário CAS e do Teísmo Evolucionário (e contra o Design Inteligente e o

Criacionismo). 14

Afinal, ao contrário de um Deus perfeito que criaria um Universo perfeito, o processo evolucionário no Multiverso é

falho e ainda estaria em andamento.

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(Inflação Eterna e Relevo de Supercordas). Mesmo se a existência do Multiverso não

puder ser testada diretamente, as teorias que o preveem podem ser testadas porque

fazem predições em relação ao nosso próprio Universo. Afinal, elas não foram

construídas para prever um Multiverso, mas sim para solucionar problemas concretos

no modelo de Big Bang e na física de partículas elementares.

Entretanto, a solução do problema de ajuste fino via cenário de Multiverso

Inóspito tem algo de insatisfatório porque parece uma explicação fácil demais.

Lembra a atitude de alguns filósofos ateus antes do aparecimento da Teoria da

Seleção Natural de Darwin que, quando confrontados com a complexidade dos seres

vivos, apelavam para a ideia de que haveria no Universo infinitos mundos, e que

dentre estes, por puro acaso, os átomos se juntariam nas configurações corretas para

produzir o conjunto de seres vivos da Terra. Ou seja, nessa visão, a complexidade não

é fruto de um processo evolutivo paulatino, não existe um processo histórico, mas

ocorre de pronto, de forma estática e por acaso.

Os cenários SNC, SNCI e SAC são menos simples, porém parecem ser mais

interessantes (ou seja, definem programas de pesquisa mais frutíferos, com maior

possibilidade de serem submetidos a testes empíricos e gerar novas hipóteses).

Mesmo o cenário SCNI segue uma lógica bastante estrita: para negar sua

possibilidade, seria preciso que pelo menos um dos testes listados na seção anterior o

refutasse. Nada no nosso conhecimento científico atual sugere isso.

Além do mais, podemos citar três vantagens filosóficas do cenário SNCI frente

a seus concorrentes. Primeiro, para que a vida inteligente possa desempenhar algum

papel na reprodução de Universos, é necessário que o mecanismo físico para essa

reprodução seja suficientemente simples e inteligível para mentes que emergem

dentro do próprio Universo, e que surgem por processos evolucionário que em

princípio não visam esse entendimento (por exemplo, a evolução do cérebro caçador-

coletor humano). Ou seja, o cenário SNCI responde à perplexidade de Einstein15

de

que “o mais incompreensível a respeito do Universo é que ele seja compreensível”

(por mentes finitas evoluídas para outros fins): Universos cujo mecanismo de criação

e reprodução são mais simples e inteligíveis acabam “tendo mais filhos” do que

Universos cuja dinâmica cosmológica é muito difícil de se entender.16

A

compreensibilidade das leis fundamentais da física seria uma consequência de uma

dinâmica evolutiva no Multiverso, mas agora visando a simplificação dessas leis, não

sua complexidade: nos cenários SNCI e SAC, o Universo precisa ser complexo o

suficiente para gerar observadores e simples o suficiente para que seu mecanismo de

criação artificial seja inteligível.

Em segundo lugar, o mesmo raciocínio parece ser uma nova resposta ao

famoso argumento evolucionário de Platinga contra o Naturalismo (BEILBY, 2002).

O cerne desse argumento é o de que não existe razão para um Naturalista acreditar

que seus raciocínios sejam confiáveis, dado que a Evolução não precisa produzir uma

15

A pergunta de Norbert Wigner sobre por que a Matemática, criada por mentes humanas, parece tão eficaz como guia

na descoberta das leis físicas fundamentais teria uma resposta similar. 16

Notar que a pressão evolutiva para a inteligibilidade só é válida para o mecanismo de criação artificial de Universos.

Outros sistemas complexos, tais como o cérebro humano, a sociedade ou a economia presentes não precisariam ser

inteligíveis por mentes evoluídas por um processo Darwiniano.

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mente que produza verdades, mas apenas uma que produza crenças

evolucionariamente adaptadas. No caso do cenário SNCI, as mentes que emergem em

um dado Universo precisam estar aptas para racionalmente determinar o mecanismo

de criação artificial de Universos-bebês. Universos cujos processos evolucionários

internos não produzem tais mentes confiáveis acabam por não se reproduzir. Além

disso, as mentes que emergem em um dado Universo compartilham um ambiente

similar ao do Universo-mãe onde habita a mente racional que o criou.

Essa nova resposta ao argumento de Platinga é viável porque os cenários SNCI

e SAC pressupõe, como Platinga, criadores racionais17

. Porém, de forma importante,

tais criadores são finitos, não onipotentes. Essa não onipotência parece resolver

também o problema do Mal, na medida em que criar um universo perfeito, sem

falhas, perfeitamente favorável à vida, seria um problema de otimização NP-

Completo não solúvel por mentes finitas18

.

A terceira vantagem filosófica ds cenário SNCI é que o mesmo é totalmente

compatível com o naturalismo científico e, ao mesmo tempo, implica em um

Universo com propósito e função intrínsecos (pelo menos a função de prosseguir a

linhagem de Universos Inteligentes). E, no caso do cenário de Seleção Artificial

Cosmológica de Vidal, teríamos ainda um Universo ajustado intencionalmente para

suportar vida inteligente. Temos assim um contra exemplo claro à afirmativa de que o

Ateísmo é a única filosofia compatível com a ciência natural. Embora tal afirmativa

não seja comum entre filósofos profissionais, é uma posição defendida por escritores

ligados ao assim chamado Neo-ateísmo (Dawkins, 2007).

Conclusão. É interessante verificar que os cenários SNCI e SAC parece

fornecer uma terceira via filosófica, naturalista, mas que contem elementos de

intencionalidade e propósito. É uma opção que se situa entre a visão ateísta da vida

como frágil epifenômeno cósmico e a visão antropocêntrica teísta. O criador de um

Universo-bebê, embora muito poderoso e inteligente, é uma entidade finita, nem

onipotente nem onisciente, e que teve também a sua origem a partir de um Universo-

mãe anterior, em uma longa linhagem cujas origens podemos apenas especular.

Com efeito, uma crítica aos cenários SNC, SNCI ou SCA é a de que eles jogam

o problema das origens apenas para trás, quem sabe em um regresso infinito. Isso,

porém, não é verdade: tal como na teoria Darwinista da evolução, o objetivo de tais

cenários não é explicar a origem da vida (ou do primeiro Universo auto-replicante)

mas sim explicitar um mecanismo pelo qual Universos complexos, com alto grau de

ajuste fino, poderiam lentamente emergir a partir de Universos menos complexos,

com menor grau de ajuste. O cenário SNCI admite um estágio pré-biofílico,

dominado pelos processos de criação espontânea de Universos, seja o Multiverso

17

Obviamente, dada a complexidade do argumento de Platinga, a resposta aqui esboçada precisaria ser melhor

desenvolvida. 18

Um problema NP-Completo é um problema cujo tempo de solução (ou número de passos de computação) cresce de

maneira muito forte com o número de vínculos a serem satisfeitos. Se seguirmos Tomás de Aquino, mesmo um Deus

onipotente não pode realizar coisas logicamente (e matematicamente?) impossíveis, e problemas NP-Completos tendem

a não ser solúveis para tempos finitos. Obviamente, tentar dar uma nova solução para o Problema do Mal em termos da

Teoria de Complexidade Computacional é um passo, dado aqui, no mínimo temerário, mas talvez interessante de ser

teologicamente explorado.

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Inflacionário (MI) seja o mecanismo de Smolin (SNC), ou qualquer outro tipo de

surgimento natural de Universos. Basta que, em algum desses Universos surgidos ao

acaso, apareça um inteligência suficiente para criar Universos-bebês, para que o

cenário SNCI decole e domine o Multiverso. Poderíamos até mesmo especular que,

analogamente à emergência da vida e da consciência dentro de nosso Universo, os

diversos cenários cosmológicos poderiam seguir uma ordem temporal do tipo MI →

SNC → SNCI → SAC.

Finalmente, devemos citar que a questão de se o próprio Multiverso é eterno ou

se teve um início já está sendo discutido pelos cosmólogos, com o resultado

surpreendente de que o mesmo provavelmente teve uma origem: é eterno em relação

ao futuro, mas não em relação ao passado. Entretanto, esse início dos tempos parece

ser fisicamente inacessível para qualquer habitante do Multiverso (SUSSKIND,

2012).

A ideia de que nosso Universo foi criado, em vez de apenas surgir por acaso,

implica que ele pode ter algum sentido (dar prosseguimento à linhagem de

Universos-vivos) e que a vida e a mente também podem ter (pelo menos) um

propósito cósmico: catalisar a formação de Universos-bebês. Nesse sentido, os

cenários SNCI e SAC diferem da posição ateísta tradicional. Stewart (2010) examina

como essa perspectiva poderia até informar uma certa atitude moral coletiva – no

caso, a partir de certo ponto, civilizações (biológicas ou pós-biológicas) precisam

assumir sua evolução de forma intencional, com o principal propósito de preservar

sua Biosfera planetária e cultivá-la em outros lugares a fim de “esverdear a Galáxia”,

no dizer de Freeman Dyson (2000).

Lembremos, porém, que o cenário de SNCI não deve ser tomado como uma

visão antropocêntrica. Stewart enfatiza que a humanidade não está destinada a ter um

papel na evolução cósmica de maneira determinista: a partir de certo momento, ela

precisa escolher a sobrevivência da Biosfera/Tecnosfera como alvo e direcionar todos

seus esforços para este fim. Na falta da humanidade, quem sabe por uma

autodestruição civilizatória, basta que outras civilizações estelares atinjam o ponto de

geração de Universos-bebês para que a vida possa prosseguir em Universos cada vez

mais finamente ajustados.

Em termos estatísticos, talvez possamos ser otimistas. A vida média de espécies

mamíferas é de dois milhões de anos e o homo sapiens sapiens tem cerca de duzentos

mil anos. Com exceção de um cenário de auto-destruição (ou um evento astronômico

tipo choque cometário), é perfeitamente imaginável que nossa civilização global dure

pelo menos mais cem mil anos. Acredito que não seja possível extrapolar a forma que

a civilização global atingiria com cem mil anos de desenvolvimento técnico. Alguns

pesquisadores ligados às ideias de Universo EVO DEVO acreditam que, muito tempo

antes disso, a humanidade daria lugar a um desenvolvimento simbiótico com

máquinas e Inteligência Artificial Forte (máquinas auto-conscientes). De certa forma,

nossa sociedade já pode ser pensada em termos de uma inteligência coletiva com

memória baseada em tecnologias e instituições (LEVY, 1998). Neste caso, já não

poderíamos tomar o exemplo de espécies animais e civilizações humanas extintas

para estimar a duração de uma civilização pós-humana.

Creio que é aqui que as especulações científicas relativas ao cenário de

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Cosmologia com Seleção Artificial devem parar. Não que tais ideias sejam

consideradas por demais fantasiosas pelos cientistas envolvidos. Na verdade,

conjectura-se que talvez as mesmas não sejam fantásticas o suficiente para dar conta

da incrível complexidade do Universo e do Multiverso. Mas os proponentes dessa

nova visão biológica do Universo, que é mais metafórica que literal19

, precisam

desenvolver ainda mais seus modelos e suas previsões empíricas. Na falta delas,

temos apenas uma especulação científica e filosófica que é uma terceira via entre o

Teísmo e o Ateísmo, ou seja, a proposta de um Universo criado com sentido

(desenvolvimental) e talvez com propósito, através de um agente inteligente finito e

natural. Talvez isso não seja pouco, dado a pobreza do debate filosófico em que o

dualismo Teísmo-Ateísmo tantas vezes se enreda (PAGE, 2010).

É certamente surpreendente ver, por exemplo, o campeão do Neoateísmo

Richard Dawkins se aproximar da posição do físico cristão Freeman Dyson,

convergência explicitada em uma recente entrevista de Dawkins para o New York

Times (POWELL, 2011):

Human Gods

After two hours of conversation, Professor Dawkins walks far afield. He

talks of the possibility that we might co-evolve with computers, a silicon

destiny. And he’s intrigued by the playful, even soul-stirring writings

of Freeman Dyson, the theoretical physicist.

In one essay, Professor Dyson casts millions of speculative years into the

future. Our galaxy is dying and humans have evolved into something like bolts

of superpowerful intelligent and moral energy.

Doesn’t that description sound an awful lot like God?

“Certainly,” Professor Dawkins replies. “It’s highly plausible that in the

universe there are God-like creatures.”

He raises his hand, just in case a reader thinks he’s gone around a

religious bend. “It’s very important to understand that these Gods came into

being by an explicable scientific progression of incremental evolution.”

Could they be immortal? The professor shrugs.

“Probably not.” He smiles and adds, “But I wouldn’t want to be too

dogmatic about that.”

19

Sobre o uso de metáforas com instrumentos de pensamento ver (KINOUCHI et al., 2012).

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