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1 Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa GERTRUD GROSS-HERING 1879-1968 (Celeste Ribeiro de Sousa) 2016 De boa cepa * von Gertrud Groß-Hering Sempre foi assim com o avô Zurich: quando se zangava ou irritava, a ponta do nariz ficava branca..... Sempre foi assim com o avô Zurich: quando se zangava ou irritava, a ponta do nariz ficava branca. Não era muito frequente que o avô chegasse a esse estado, mas quando acontecia, o filho mais velho do avô – Hermann – logo se evadia da zona de perigo, tal como netos e netas. Hoje, a palidez do nariz estreito e protuberante era particularmente visível no rosto acobreado do velho. O queixo com a barba por fazer tremia de leve e os lábios apertados tremulavam. Na mão direita, o avô trazia uma carta toda amassada, que ele há pouco havia encontrado sobre a mesa manca no quartinho do neto. Do neto, que nessa noite havia deixado o teto protetor da casa dos avós, deixado em segredo! * Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. Groß-Hering, Gertrud. Ein guter Kern. (De boa cepa). In: Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermund Kalender), São Leopoldo, Rotermund, 1938, p. 97-108.

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Page 1: (Celeste Ribeiro de Sousa) De boa cepa CEPA.pdf · Hoje, a palidez do nariz estreito e protuberante era particularmente visível no rosto acobreado do velho. O queixo com a barba

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Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br

PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa

GERTRUD GROSS-HERING 1879-1968

(Celeste Ribeiro de Sousa)

2016

De boa cepa*

von Gertrud Groß-Hering

Sempre foi assim com o avô Zurich: quando se zangava ou irritava, a ponta do

nariz ficava branca.....

Sempre foi assim com o avô Zurich: quando se zangava ou

irritava, a ponta do nariz ficava branca.

Não era muito frequente que o avô chegasse a esse estado,

mas quando acontecia, o filho mais velho do avô – Hermann – logo

se evadia da zona de perigo, tal como netos e netas.

Hoje, a palidez do nariz estreito e protuberante era

particularmente visível no rosto acobreado do velho.

O queixo com a barba por fazer tremia de leve e os lábios

apertados tremulavam. Na mão direita, o avô trazia uma carta toda

amassada, que ele há pouco havia encontrado sobre a mesa manca

no quartinho do neto. Do neto, que nessa noite havia deixado o teto

protetor da casa dos avós, deixado em segredo!

* Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. Groß-Hering, Gertrud. Ein guter Kern. (De boa cepa). In: Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermund Kalender), São Leopoldo, Rotermund, 1938, p. 97-108.

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Da boca crispada do velho saía uma espécie de rosnado

semiapagado. O Jacozinho, a única memória da filha falecida ainda

jovem – a Margret! – Nesse dia, retornando do enterro, ele e sua

mulher haviam levado para casa o pequenino de dois anos. “Por

pouco tempo”, havia dito Karl Schmidt, o pai da criança. E já se

haviam passado 18 anos. – Karl logo se casara de novo e a benção

da paternidade com que havia sido agraciado no novo casamento não

permitira a este pai sentir falta do filho mais velho.

Para alegria dos avós, o pequeno cresceu e ficou um rapaz forte

e louro. – Nos primeiros anos, talvez tivesse sido bafejado com

muitos mimos, pois Jacozinho se mostrava com frequência bem

teimoso e insubordinado, mas sua bondade nata, na maioria das

vezes, consertava tudo e apagava as más-criações.

As noras do velho casal remoíam-se e exasperavam-se com a

“distorção”, que contaminava o amor dos avós pelas suas crianças.

Mas a avó Zurich tinha um imenso coração que abarcava todos

os seus netos. E, como a avó nunca ligara para isso, nem para o fato

de, na juventude, ter sido submetida a trabalhos pesados, nem de,

em tempos difíceis, com coragem, ter permanecido companheira fiel

ao lado de seu homem, um dia teve um piripaque e, com 67 anos, a

avó Zurich morreu de hipertrofia cardíaca. Lá se vão 5 anos.

A boa mulher havia falecido demasiado cedo. Cedo de mais

para a administração dos trabalhos, cedo de mais para o esposo,

cedo de mais para o neto, naquela época adolescente, sobre cuja

existência rebelde havia exercido influência apaziguadora com seu

jeito tranquilo.

O avô Zurich andava desnorteado para lá e para cá, pela casa e

pelo jardim, ainda apertando na mão direita a carta amassada. - Um

silêncio imenso alargava-se em torno dele. Filho, nora e netos, que,

depois da morte da avó Zurich tinham assumido todas as tarefas,

haviam ido hoje de manhã à igreja, sem imaginar que Jacó, que

acreditavam dormir ainda, tinha fugido na calada da noite.

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Fugido! Por quê? O avô Zurich alisava pela terceira vez a carta,

puxava os óculos da testa para o nariz, sentava-se no banco de

ordenha do curral e lia pela terceira vez a meia voz as poucas linhas

fugidias:

Querido avô, eu estou indo embora. Sei que não é direito

o que estou fazendo. Mas o trabalho sujo da roça não é para

mim. Estou indo para a cidade, talvez vire marinheiro.

Não pense mal de mim e mande cumprimentos à Lena.

Seu Jacó.

Nada mais – nenhuma palavra de agradecimento, nada!

O avô Zurich amassou a carta pela quarta vez e atirou-a com

furiosa raiva no monturo de lixo à frente da porta. Mas depressa se

dobrou e apanhou-a de novo, limpou algumas manchas de sujeira

com o lenço vermelho e enfiou-a no bolso das calças, resmungando.

E, enquanto buscava com o “balaio” a ração picada no galpão

ao lado, para a distribuir pelas manjedouras, seus pensamentos

permaneciam presos àquele que deveria ser a alegria de sua velhice,

ainda que, por vezes, fosse uma alegria “doída”.

Era a indiferença do Jacozinho diante de todos os antepassados,

seu sorriso a jogar tudo para o alto, seu desapego às tradições

familiares, que deixavam o avô furibundo. Assustava-o que Jacó

tivesse sido permeável a influências estranhas, tivesse desprezado o

redentor trabalho na terra e procurado sua felicidade em outro lugar.

Quando o avô Zurich, com palavras vacilantes, desajeitadas,

quis ampliar o mundo das ideias de Jacozinho, contando-lhe casos

vividos e coisas lidas, quando ele tentou, do melhor jeito que ele

mesmo conhecia, despertar no neto o interesse pelos antepassados

na Alemanha, Jacozinho nem se dava ao trabalho de dissimular que

tudo aquilo lhe era medonhamente enfadonho. Preferia muito mais

passar o tempo livre com os camaradas na floresta ou à beira d´

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água, caçando, pescando, aprendendo a fumar cigarros e a bater

papo em português.

“Vocês e sua língua”1, costumava ele dizer com desprezo,

embora ele mesmo com sua pronúncia não pudesse negar seus

antepassados de Baden.

“E o eterno capinar neste calorão abrasador,“ irritava-se ele.

“Sinto-me um fracassado. É mais esperto alugar casa na cidade, ir

para lá é mais cômodo”.

Tudo isto passava pela cabeça do avô Zurich, quando ele voltou

a sair à luz do dia. Colocou a mão sobre os olhos, que piscavam, e

deu uma olhada para a cancela do jardim. Acabara de ser aberta, ele

conhecia o chiado. Uma figura clara insinuou-se entre os arbustos e

um sobressalto percorreu o velho: era a Lena do terreno vizinho, que

ele acalantava ter um dia como neta.

Com passos rápidos, a moça loura e determinada dirigiu-se a

ele. Seus olhos claros esquadrinharam as adjacências e pregaram-se,

interpeladores, no avô Zurich.

“Oi, vô Zurich,” disse ela um pouco embaraçada; e, enquanto o

rosto não parava de corar, acrescentou baixinho: “Queria mesmo

perguntar, se o Jacozinho está em casa?”

O velho puxou o cachimbo do bolso das calças, encheu-o e

acendeu-o com dificuldade.

“Por que pergunta?” respondeu-lhe com outra pergunta,

tragando profundamente.

A moça, embaraçada, retorceu as fitas do avental. “O Jacó

pareceu-me engraçado ontem à noite, é. Ele acha que nada mais o

prende aqui, foi o que ele disse.”

“Hum – hum.” Apesar do clima turvado, um leve sorriso

desenhou-se na boca do avô. “Tu és mas é uma boa sirigaita“.

1 Todas as falas em dialeto alemão receberam traduções em norma standard.

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A moça olhou para o rosto do velho sem entender, até que o

sentido da observação de repente se fez claro. Corou até a raiz dos

cabelos e retrucou com desassombro:

“Nós somos vizinhos, avô, e me importo, se o Jacozinho está

passando por maus momentos.”

As feições do velho voltaram a assumir seriedade austera.

“Maus momentos ele nunca teve na minha casa, o Jacó. Mas um

temperamento rebelde é o que ele tem e, por isso, ele fugiu.“

“Ele - - - ?“ Leninha levou a mão fechada à boca como que a

sufocar um grito.

O avô assentiu com um movimento de cabeça. “É verdade, é

verdade, aquele malandro.”

“Então - -,” a garota sentiu um nó na garganta, virou-se,

tímida, e com rapidez levantou a ponta do avental, levando-a aos

olhos. “Já que é assim – que Deus te acompanhe – av- ”, ela não

continuou. Ficou entravada e, apesar dos apelos tranquilizadores do

avô, logo desapareceu pela cancela do jardim.

O velho puxou o lenço de assoar vermelho, fungou nele e, de

repente, pisou-o furiosamente com os pés, de tal maneira que a bota

de couro perdeu a estabilidade. “Safado, miserável”, rosnou

enfurecido.

----------

O dito cujo, a quem a exclamação pouco digna se referia,

encontrava-se sentado sobre uma caixa no alto de um carro de bois

com sua trouxa sobre os joelhos, deixando-se conduzir pela parelha

dos bem nutridos bovinos através do barro resistente.

Há horas viajava e a viagem no carro de bois era para ele um

presente dos céus, já que o condutor negro o deixara sentar-se no

alto da caixa em troca de uns quebrados. E, embora o assento

sacolejasse e o carro andasse aos solavancos e ressaltos, Jacozinho

pensava: melhor viajar mal de carro do que andar muito. Além do

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mais era possível ir agradavelmente batendo papo com o negro, que

não era bobo, e, assim, o tempo passava rápido. Jacozinho ficou

sabendo de quem era a caixa e para onde estava sendo transportada.

O Senhor Waldomiro, seu dono, queria viajar, viajar para o Rio,

contou o negro. O vapor do Lloyd brasileiro, entretanto, só zarpava

de Rio Grande dentro de 3-4 dias, mas com os caminhos ruins era

melhor levar a caixa o quanto antes, dissera o patrão. Ele próprio só

seguiria amanhã com o carro agrícola.

Depois dessas revelações, Jacozinho ficou por um tempo em

silêncio. Não era aquilo um sinal do alto a indicar-lhe justamente o

caminho pelo qual ele ansiava há tanto tempo?

E se ele mesmo, em vez do Chico, entregasse a caixa ao Lloyd?

Era o que Jacó queria saber.

O interpelado sorriu confiante: “Naturalmente”, não era à toa

que se tinha um “compadre” foguista no vapor.

O coração saltou no peito de Jacozinho, quase o sentia

fisicamente.

“Chico, tu tens que me ajudar a ser marinheiro no vapor.” ICI

O negro revirou os olhos, deixando apenas o branco à vista.

“Quanto pagas?” perguntou astuciosamente.

“Um cachecol matizado e uma cachaça grande”, disse Jacó

presto.

Chico anuiu com a cabeça. “Bom, combinado.”

- Jacozinho conhecia Porto Alegre; já havia estado lá algumas

vezes e, a cada vez, havia-se admirado do luxo e da riqueza ali

ostentados. Pelo menos assim parecera a Jacozinho, quando, ansioso

no âmago, zanzava pelas ruas animadas. Nunca havia sentido

verdadeiro prazer em olhar, porque em lugar algum era permitido

ficar parado, sempre se corria perigo de ser atropelado.

Desta vez, porém, Jacó Schmidt pouco olhava ou ouvia o bulício

da cidade grande. Estava internamente demasiado ocupado para

fazê-lo. – Ir até o mar – tornar-se marinheiro! Será que havia algo

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mais belo? Nenhum ancinho para arrastar, nenhum lixo para

transportar, nenhum milho nem batatas para plantar! Não, ser ninado

pelas águas do mar, apenas o céu sobre ele – como deveria ser

magnífico!

De manhã cedo, quis viajar com o Chico e a caixa até o

pequeno vapor em Rio Grande – e procurar sua sorte junto ao capitão

do navio.

E Jacozinho teve sorte! Todavia apenas como grumete, embora

estivesse já fora da idade. Mas, e daí? Haveria de progredir; não

tinha medo. Nesse momento, sentia-se feliz pela primeira vez.

Contudo, a felicidade logo se dissipou, assim que o vapor se

colocou em movimento e tudo o que havia no estômago de Jacozinho

se revirou e subiu.

Os marinheiros de cor não se mostraram gente sensível e

zoaram sem piedade do sujeito curvado e choramingas.

Depois de 2-3 dias o sofrimento passou, embora uma sensação

estranha tenha ficado no couro cabeludo, algo como se cada cabelo

se estivesse arrepiando.

Um pouco antes de Santos, Jacó ficou sabendo que o navio do

Lloyd brasileiro deveria fazer-se ao mar em direção a Hamburgo, sem

ficar atracado por muito tempo em portos brasileiros. Diante desta

perspectiva, uma emoção singular apoderou-se de Jacó. Alemanha –

era algo que pairava bem, bem lá longe, bem remoto, algo irreal,

algo borrado. A terra da infância dos avós, de que haviam falado

durante os intervalos de descanso em meio ao trabalho árduo,

quando os pensamentos recuavam a dias pretéritos. Isso sempre se

afigurara ridículo ao Jacozinho, antiquado, quase ingênuo. Parecia-lhe

que lá só havia anciãos de opiniões e costumes antigos. Afinal, era

referida como “velha” pátria. Foi assim que o seu imaginário foi

tomando forma durante a infância, além de que o assunto parecia a

Jacó por de mais irrelevante, para que, mais tarde, pudesse vir a

construir outra imagem.

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E, agora, havia de ir à velha terra e ver com seus próprios

olhos. Ou será que haveriam de permanecer no vapor enquanto este

estivesse atracado no porto?

Meu Deus, o que haveria de grande para apreciar lá.

Hamburgo, certamente, não chegava aos pés de Porto Alegre.

----------

Nesta viagem, Jacozinho não tinha muito do que rir. Todos os

marinheiros pareciam ter o direito de zoar com ele, de o atazanar.

Os companheiros de cor chamavam-no de “Alemãozinho” e

troçavam de sua lourice, de sua pele clara, de sua imperícia de

novato nos trabalhos do navio.

“Eu sou tão brasileiro quanto vocês”, dizia ele empertigado,

quando eles o azucrinavam, chamando-o de alemão. “Eu falo tão bem

português quanto vocês”. E também sou capaz de escrever. Vocês

escrevem o seu nome fazendo esforço igualzinho a mim.”

Aí é que os outros ainda riam mais e chamavam-no de “nosso

professor Jacó”.

Não, Jacozinho não dormia em cama de rosas. Seu entusiasmo

diminuía cada vez mais.

Quando, por fim, fizeram escala em portos espanhóis e

Jacozinho teve permissão para ir a terra, reconciliou-se outra vez.

De resto, ele nem estava muito admirado com as cidades

portuárias. Pareciam-se mais ou menos com as brasileiras na

arquitetura, na vida e movimento. Os comerciantes, que voejavam

em torno do navio no porto, tal como os basbaques ociosos no cais,

pouco se diferenciavam dos conterrâneos de Jacó.

Porém, depois de terem passado por Cuxhaven e adentrado o

(rio) Elba, uma outra paisagem completamente diferente se abriu

diante dele.

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Então isso era a Alemanha! Nas primeiras horas da manhã,

estava um pouco frio, um tanto nebuloso, até o sol despontar

exuberante, radiando por sobre o verde luminoso da margem,

deixando luzir as artemísias meio escondidas lá atrás das árvores

grandes, e urdindo uma aura festiva em volta das pessoas, que, em

trajes domingueiros, se encontravam em cima das pontes de

desembarque, acenando e gritando para os navios que chegavam.

A orquestra de bordo tocava, e quando silenciava, ouviam-se

melodias alemãs vindas de algum lugar de diversões ou de alguma

esplanada. Havia algo genuinamente encantador em tudo, algo que

fazia os olhos de Jacó Schmidt brilharem de intensa e alegre

expectativa.

- Férias na terrinha! Jacó percorria com alguns de seus

camaradas as ruas de Hamburgo. As pessoas olhavam para eles, para

os marinheiros de rostos estranhos, que, com seu jeito barulhento e

descuidado, esquisito naquele lugar, contrastavam com as sóbrias

casas vetustas e com os frios e laboriosos hamburgueses, que

passavam.

Jacó Schmidt, de repente, percebeu a situação e um

desconforto percorreu-lhe o corpo. Tentou ficar para trás, para

continuar depois a andar sozinho, sobretudo, depois de ter ouvido

que o passeio deveria terminar num boteco de marinheiros, que os

rapazes descreviam com observações inequívocas. O líder era um

foguista de pele escura, alto, que já havia feito uma vez a viagem à

Alemanha.

Hermann Wols, um teuto-brasileiro, já alertara Jacó a respeito

desse sujeito e dos botecos que havia nas proximidades do porto.

Assim, Jacó tentou esquivar-se, ficou para trás numa curva da rua.

Mas os outros logo perceberam isso e, em louca euforia, começaram

uma caçada a ele.

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O Alemãozinho era um traidor, um desertor, gritavam, meio a

sério, meio na brincadeira. Primeiro, ele devia travar conhecimento

com a verdadeira vida de marujo, eles haveriam de encontrá-lo logo.

Então, quando alcançaram Jacó e o cercaram e se preparavam

para descarregar sua ira sobre ele, um grupo de gente jovem,

rapazes de 15 a 17 anos, dobrou a esquina, vestindo camisas

marrons, calças curtas, mochilas afiveladas nas costas, o nó do lenço

sob o queixo.

Diante da cena inusitada, o grupo estacou como que

obedecendo a um comando. O que os estrangeiros quereriam? Talvez

arrastar à força o jovem alemão? Mas ele próprio usava o mesmo

uniforme de marinheiro estrangeiro.

“Hei,” gritou – ao que parece – o líder do pequeno grupo, “O

que está havendo aí? Querem ajuda?”

Os marinheiros deixaram sua presa, depois de a terem

perturbado para valer, e voltaram-se rindo para os jovens alemães,

divertindo-se com as calças curtas e as mochilas.

“De onde será essa gente? Da África? Da Índia?” Conjeturavam.

O líder dos jovens alemães avançou em direção a Jacó, que,

exausto, se encostava à parede de uma casa.

“Do you speak English?” perguntou.

Jacó olhou para ele sem entender.

“Was meinen Sie?” (O que quer dizer?“

„Um alemão!“ exclamou o da pergunta, pasmo. “O fazes afinal

nesse grupo?”

Jacó limpou o rosto afogueado com o lenço rústico. “Pertenço à

tripulação do Lloyd brasileiro”, disse ele um pouco embaraçado.

“Caramba! E ele fala badense”, admirou-se o rapaz. “Então,

com certeza, fugiste de casa?” adivinhou ele.

“Certo”, rispostou Jacozinho. “Mas, em breve, retorno ao lar.”

“Lar? Onde?”

“Bem, no Brasil, onde eu moro.”

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Os jovens, que, curiosos, se haviam aproximado, olhavam-no

interrogadores.

“Como assim? Tu falas dialeto. Portanto, com certeza, deves ter

nascido aqui.”

“Ah! Não. Meu avô é que nasceu, eu não. Eu sou brasileiro.”

Disse isso com uma ponta de orgulho e ficou irritado com os rostos à

volta dele, que, de repente, desataram a rir.

“Um brasileiro que fala badense,” exclamou um deles. “Tu

pensas que somos bobos?”

À vista disso, Jacó empertigou-se e puxou de um bolso de sua

camisa um livrinho. Abriu-o, exatamente no lugar, onde o seu retrato

estava colado e o dava como soldado brasileiro.

“Minha Caderneta,” disse orgulhoso.

Meio desconfiados, meio admirados, 10 jovens pares de olhos

pousaram no retrato. “Serviste no exército brasileiro?”

“Como voluntário. Fiz carreira de tiro,” disse Jacó todo cheio de

si.

“Tiro?” Os jovens não atinavam com o significado disso.

Em todo o caso, porém, suas dúvidas foram colocadas de lado.

Só então lhes ocorreu, perguntarem pelos marinheiros de pele

escura. A rua estava vazia, à exceção de alguns transeuntes, não

havia ninguém mais à vista.

“Essa agora, será que os pilantras haviam desaparecido

temporariamente. Afinal, o que eles queriam aprontar contigo há

pouco?” Perguntou o líder.

Jacó deu de ombros. „Eu deveria ir com eles ao boteco

embebedar-me.”

Alguns deles riram, outros mediram o jovem teuto-brasileiro

com olhares piedosos.

“O melhor que tens a fazer é voltares ao teu navio”, interveio

um deles. “Tu sabes, onde ele se encontra?”

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Um medo súbito e visguento invadiu Jacó. E se ele sozinho não

voltasse a encontrar o vapor e este se fosse embora sem ele?

Era como se aquela gente jovem adivinhasse seus

pensamentos. Olharam uns para os outros, alguns deles encolheram

os ombros. “Querem saber,” exclamou o líder, “façamos nossa

caminhada pelo (rio) Alster, podemos fazer isso. Assim, levamos

nosso badense ao porto.”

A caminho do porto, Jacó percebeu que seus acompanhantes

faziam parte de um movimento, que desejava resgatar a imagem da

Alemanha dos velhos tempos. “O movimento hitlerista”, explicaram

eles.

“Hitler?” É um homem?”

Diante da pergunta, fitaram Jacó perplexos. „Sim, afinal, vocês

no Brasil não leem jornais alemães? – Hitler é nosso futuro. Hitler

será nosso guia, o guia de toda a Alemanha, e isso, queira Deus, em

breve.”

Jacó baixou os olhos, envergonhado. Pensou no avô, que

sempre tentara lhe despertar o interesse pelos acontecimentos na

Alemanha. Mas a Alemanha estava lá tão longe, bem lá atrás não se

sabe onde – pensava Jacó, o que uma pessoa pode ter a ver com

coisas que não lhe dizem respeito?

“Nós estamos numa jornada”, continuou o líder, “feita em parte

a pé, em parte de navio até o Reno. Na Renânia, encontramo-nos

com outros da Juventude hitlerista e aquartelamos em Mutter Grün”.

Na Renânia? Jacó ficou tenso. Baden não ficava por ali perto?

Mas, de medo de cometer outra gafe, não ousou perguntar.

Como se obedecessem a um comando, os jovens hitleristas

permaneceram ali de pé.

“Não te podemos acompanhar mais para diante, se não

perdemos o horário. – Então, adeus, faz uma boa viagem pelo mar e

não te esqueças da Alemanha.” Cada um deles apertou a mão de

Jacó e, depois, separaram-se, enquanto o que permaneceu os

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continuou vendo por um tempo, até que se virou e se dirigiu para o

porto. Algo parecido com inveja tomou conta dele; inveja por não

poder, como eles, passear assim tão saudavel e livremente; inveja da

camaradagem que existia entre eles.

Ah! Nos seus “camaradas”, ele pensava com medo; pensava no

momento em que chegassem ao navio, afogados em álcool, afoitos a

qualquer briga funesta; pensava no capitão, de novo em fúria

contida, pois não suportava o álcool, em especial, quando sua gente

se embebedava tolamente.

Felizmente, apenas alguns mestiços mostravam seu verdadeiro

caráter depois do gozo do álcool: sintomas perniciosos herdados dos

pais. Nessas ocasiões, o próprio capitão se controlava para não agir

contra eles com toda severidade, de medo de sua vingança.

Jacó havia sido introduzido entre eles a pedido do Chico, que

contatara o mulato Manuel, o qual intercedera por Jacó junto ao

capitão.

- Quando Jacó, exausto de tanto andar, coisa a que não

estava acostumado, descansava em sua rede, o jovem teuto-

brasileiro – Hermann Wols – apresentou-se a ele e lhe contou a

grande novidade: por motivos indeterminados, o Lloyd ficaria por

mais tempo ali no porto de Hamburgo.

O jovem ficou fora de si de alegria. “Talvez o velho me conceda

uma licença e, então, vou poder conhecer a Alemanha. Primeiro, a

Pomerânia, de onde vêm meus avós.”

A fadiga de Jacó dissipou-se por completo. Pensou na pequena

sacolinha, que carregava rente ao corpo nu, onde escondia duas

moedas de ouro – presente do padrinho – e a nota de 100 mil-réis.

Talvez pudesse cambiá-las no mercado. Será que eram suficientes

para uma viagem até Baden e para o regresso?

Teve sorte – obteve a licença, cambiou honestamente a nota de

100 mil-réis pela metade do valor e, aconselhado por Hermann Wols,

adquiriu uma passagem para Colônia. “Em Colônia, tu pegas o

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vapor”, foi o que lhe aconselhou, além de ter dado outras dicas

variadas, como por exemplo sobreviver da maneira mais barata

possível durante o percurso. O Hermann Wols era um garoto

iluminado.

- Para Jacó Schmidt era uma novidade, a viagem de trem, o

trânsito regulamentado, a prestimosidade dos funcionários da estrada

de ferro, coisas que Jacozinho nunca havia testemunhado.

- O percurso atravessava a charneca, pequenas florestas e

campos, passava por aldeias e vilas. Como num prodígio, as terras da

Alemanha se abriam ante os olhos pasmados de Jacó. Parecia-lhe um

sonho, um conto de fadas. De novo, as histórias da avó vinham-lhe à

mente – quando ela queria refrear aquela criança rebelde, pô-la para

dormir.

Jacó achava que ele não deveria viajar sozinho; deveria fazê-lo

com um camarada, que desfrutasse do passeio com ele.

Lembrou-se dos jovens hitleristas e pensou em como seria

formidável estar na companhia deles.

Em Colônia, quase se esqueceu de descer por causa do

assombro diante da catedral gigantesca, que despontara ali ao lado

da linha férrea.

Ainda totalmente atordoado, foi perguntando pelo atracadouro

do barco, e ficou feliz em ter conseguido um vapor, um minuto antes

de sua partida.

Assim que Jacó retomou o fôlego e o navio todo enfeitado

deslizou pelo Reno, escutou bem ao seu lado grande cantoria

acompanhada de alaúde.

“Muß i denn, muß i denn zum Städtele hinaus,“2 entoavam as

gargantas de uma dúzia de jovens rapazes. Algumas pessoas

também começaram a cantar e, por fim, todos os passageiros.

2 „Muss i denn, muss i denn zum Städtele hinaus“ é o título de uma canção popular alemã, adaptada por Friedrich Silcher e publicada pela primeira vez em 1827. Os soldados fizeram uso dela. O texto inspirou Elvis Presley a uma adaptação para „Wooden Heart“ (1960). Versão integral da canção alemã ao final do texto. Nota de Celeste Ribeiro de Sousa.

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Jacó conhecia a canção, embora da letra só soubesse o primeiro

verso.

De seu lugar, Jacó podia ver o gramofone e, com um grito de

alegria meio sufocado, levantou-se. Eram os jovens hitleristas, eles

estavam ali, era o seu líder quem controlava o instrumento.

Em grande agitação, Jacozinho irrompeu por entre os

passageiros até chegar perto de seus conhecidos; um deles logo o

reconheceu, chamando a atenção dos demais.

Tão logo a canção terminou, chamaram-no e, então, para Jacó

começou aquilo com que tanto sonhara durante sua viagem solitária.

Para ele, tratava-se de uma senhora experiência o deslizar do

barco sob o céu azul iluminado de sol em companhia entusiasta.

Porém, satisfeito ele não se sentia às margens verdes do Reno,

passando suavemente por cidadezinhas e lugarejos.

E, à medida em que despontavam castelos e burgos em ruínas,

alguns no cimo de rochas escarpadas, outros no topo de morros

cobertos de florestas, muitos dos jovens sabiam contar lendas a eles

ligadas ou declamar algum poema que os evocava. Em paralelo,

todos cantavam uma ou outra melodiazinha, na maioria das vezes,

alegres canções de viandantes (Wanderlieder).

Deveriam pernoitar em Koblenz. Ao chegarem, a estátua

colossal do velho imperador alemão no “ângulo alemão” (Deutschen

Eck)3 elevou-se diante deles, gigante, enquanto na margem oposta

assomava das alturas a antiga fortaleza “Ehrenbreitstein” como uma

vigia de antanho, que quisesse tomar sob sua proteção o imperador

ancião no seu volumoso cavalo.

Os passageiros tiveram dificuldade em desviar os olhos dessa

vista grandiosa e foram os jovens hitleristas os primeiros a subir o

máximo permitido ao monumento.

Mais tarde, os passageiros cansados foram acolhidos numa

pensãozinha pequena e, na manhã seguinte, o proprietário, a quem 3 Alusão à língua de terra, que marca a confluência do rio Mosela com o Reno.

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os rapazes caíram no agrado, só lhes cobrou a metade do preço

normal.

E a viagem continuou pelo azul do Reno. Risos, contemplações

e sonhos alternavam-se com comida e bebida, e, assim,

incorporaram Jacó com grande companheirismo.

Ao passarem pelo rochedo da Lorelei, um músico a bordo em

notas langorosas entoou no trompete a canção de Lorelei4, e na

garganta de Jacozinho formou-se um grande nó na garganta. Era

como se ele, depois de se ter inebriado com vinho doce, voltasse a

sentir a feia miséria. Mas isso logo passou.

Depois de uma breve troca de ideias, os jovens hitleristas

sugeriram a Jacó desembarcar com eles em Aßmannshausen e

acompanhá-los a pé no trajeto até as proximidades do monumento

de Niederwald5, onde deveriam encontrar-se com outros camaradas.

Louco de alegria, Jacó aceitou o convite e a expectativa do que

estava por vir elevou ainda mais o seu entusiasmo com a viagem.

Sabia que, na vida, nunca a haveria de esquecer, sabia que era uma

experiência única em sua existência, que haveria de recordar, mesmo

quando fosse ancião.

E assim foi o passeio através de terras pujantes, a vista do

monumento de Niederwald em meio às paisagens verdejantes de

florestas, e, por fim, a chegada ao acampamento da Juventude

Hitlerista.

Havia tendas montadas na planície viçosa, onde esvoaçavam

bandeiras com a suástica. Predominava ali, entre os rapazes, um

ambiente alegre, mas também meio solene, sério, disciplina férrea

em meio a camaradagem cordial.

4 Das Loreleilied (A canção de Lorelei) é um poema escrito por Heinrich Heine em 1823. Texto completo ao final. Nota de Celeste Ribeiro de Sousa. 5 Este monumento, perto de Rüdesheim no Estado de Hessen, foi construído entre 1871-1880 para comemorar a unificação da Alemanha, ou a fundação do Kaiserreich (Segundo Império Alemão/Prússia) pelo imperador Wilhelm I.. Nota de Celeste Ribeiro de Sousa.

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Não houve alvoroço à chegada de Jacó, embora tivessem

percebido sua surpreendente figura – trajava uniforme de marinheiro.

Nos intervalos entre os exercícios e os jogos, um ou outro

aproximava-se dele, conversava, interessado fazia perguntas sobre

este ou aquele aspecto do longínquo Brasil e Jacó relaxava,

respondia descontraído.

Jacó caiu nas graças de um de seus primeiros conhecidos, que

lhe perguntou de seus relacionamentos, de como estava sua situação

com aqueles camaradas assustadores, que haviam aprontado com

ele.

Jacó não conseguia esconder que receava a continuidade

daquela convivência e que ficaria feliz, se conseguisse escapar da

viagem de retorno.

Por fim, todo o acampamento acabou por se interessar pelas

circunstâncias de Jacó Schmidt e todos ponderaram sobre o modo

como poderiam ajudá-lo.

Um deles comentou pensativo: “Um parente de um amigo meu

viaja na próxima semana para o Brasil ou para a Argentina; será que

ele não poderia levar com ele nosso Jacó?”

“Gente, o parente de seu amigo é um nababo?” retorquiu um

outro.

Era palpite daqui e dali.

“Por que não viajas como comissário de bordo num vapor

alemão”, disse um.

Jacó deu de ombros em dúvida.

“Será que o velho me dispensa? Não posso desertar.”

Mais e mais sugestões vieram à baila, muitas delas bem

aventurescas. Por fim, Jacó esclareceu que ele tinha coragem

suficiente para se despedir do velho e o futuro logo haveria de se

desenhar.

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Infelizmente a vida no acampamento logo chegou ao fim. E as

lágrimas assomaram aos olhos de Jacó, quando, ao despedirem-se,

apertou as mãos daqueles amigos tão rapidamente encontrados.

“Escreve – aqui, o meu endereço – o meu também – –“.

Depois, o trem, a que ainda o acompanharam, partiu.

A sacolinha de Jacó, graças à generosa ajuda de seus amigos,

havia gasto poucos Marcos, e ele podia continuar sua viagem sem

grandes problemas até Baden. Contudo, todo o entusiasmo havia

desaparecido de sua alma, ao ver-se viajando tão sozinho.

“Afinal, o que ele queria em Baden? Ele já nem sabia mais o

nome da aldeia, onde o avô nascera. Que estúpido fora em não se

dar ao trabalho de registrá-lo. Agora, atravessava a região de Baden,

parecida com a da Renânia; e, quando a linguagem do maquinista e

de alguns passageiros lhe recordou o lar - talvez por causa disso

mesmo - a saudade de casa invadiu-o de repente. Tão

inesperadamente, tão avassaladora, que Jacó desceu em Heidelberg

e comprou imediatamente uma passagem de volta para Hamburgo.

Pesava-lhe na alma não ter enviado até agora nenhum sinal de

vida ao avô. Será que o ancião ainda se inquietava com sua

ausência? Será que fora correto da parte dele – Jacozinho – fugir

assim em segredo, sem um agradecimento? Será que o avô merecia

isso dele? – O arrependimento abrasava o coração de Jacozinho e o

medo de que não pudesse mais encontrar o avô com vida

desassossegava-o. Pessoas assim velhas são acometidas de males

súbitos.

E, quando numa paragem a atenção de Jacó Schmidt foi atraída

por uma garota loura, porque apresentava singular parecença com

Lena Wittich, sua amiga de infância, aí as lágrimas rolaram-lhe

impulsivas pela face e ele, perturbado, limpou-as com a manga.

A saudade de casa superava qualquer timidez, qualquer

reflexão, ele tinha que voltar, tinha que voltar.

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O capitão, não sabendo ele mesmo, quando deixaria o porto,

assegurou ao requerente a dispensa, tão logo este mencionou a

saudade de casa. Talvez lhe compreendesse os sentimentos.

Três dias mais tarde, o “Monte Olívia” deixava o porto de

Hamburgo; nele, empregado como camareiro, seguia de volta ao lar

Jacó Schmidt.

Quando o vapor começou a sacolejar, sinal de que tinha

atingido as águas do mar, poderia ter dado cambalhotas de alegria.

E foi o que, realmente, aconteceu - uma cambalhota - , mas

involuntária, quando, caprichoso no serviço, quis levar escada acima

uma cadeira de espaldar. O navio inclinara-se com as ondas e

Jacozinho, num átimo, encontrou-se de volta no pé da escada, o

braço firmemente entalado na cadeira. Manchas roxas, as

consequências; contudo não fizeram arranhão no seu bom humor.

Logo no dia seguinte, percebeu-se que um dos passageiros de

cabine – um sujeito gordo, bem apessoado – residia em Rio Grande,

voltando agora de uma viagem à Alemanha.

Também ele ainda falava um pouco o dialeto alemão do sul e

isso transformou-se, imediatamente, num elo de ligação entre o

passageiro e seu camareiro. Aquele logo ficou sabendo das aventuras

de Jacó e o jeito despretensioso e aberto do rapaz agradou-lhe.

Quase no fim da viagem, o Sr. Kullmann ofereceu ao seu

camareiro um emprego em sua chácara. “De tudo o que me contaste,

deduzi que escondes na alma um agricultor muito capaz. Sem dúvida,

estás familiarizado com todos os trabalhos da colônia. – Na minha

chácara, tu terias de cuidar de um grande número de árvores

frutíferas, terias de tomar conta do galinheiro e da horta. É muito

trabalho, já te adianto, porque não arredo pé de ordem e limpeza

absolutas. Para o geral, poderia empregar ainda um outro homem,

mas eu preciso mesmo é de alguém em quem possa confiar e, aí,

tenho esperanças de que esse alguém possas ser tu. Até agora, meus

empregados mais me arruinaram do que me ajudaram. E, então,

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como é? 250 mil-réis de salário fixo, incluindo tudo. Mais tarde,

quando as coisas começarem a dar lucro, aumento correspondente de

salário.”

Jacó não pensou duas vezes. A oferta seduziu-o e ele atreveu-

se a dar começo à coisa.

O avô Zurich estava sozinho em casa. Estava resfriado,

prostrado, casmurro, aliás como quase sempre nos últimos tempos.

Estava com um cachecol grosso em volta do pescoço, embora

estivesse sentado perto do fogão, onde cozinhava o feijão preto. A

nora passara-lhe sem cerimônia a tarefa do almoço, já que ele hoje

“não servia para mais nada”, enquanto ela própria fora pegar na

enxada, para ombrear com os outros na roça.

E, enquanto o avô Zurich cuidava de sua incumbência,

enquanto mexia o feijão, pensativo, não se esquecendo de ir

colocando madeira no fogo, seus pensamentos percorriam o mesmo

caminho de sempre, de todos os dias.

Onde seria que o maroto do Jacozinho se havia enfiado? Por

que não escrevia ele? Será que caíra nas mãos de gente ruim, ou

estaria mesmo ainda vivo? – Ah! Bem melhor teria sido, se ele,

naquele tempo, tivesse deixado o filho da filha, onde estava. Como

teria se poupado de tantas preocupações.

Ruminando os pensamentos, jogou quase com ira um cepo

sobre as brasas, de tal modo que estas, rebeldes, levantaram faíscas

para todo o lado. Por isso, não ouviu, quando a porta da cozinha se

abriu e, logo, se fechou. Só quando uma vozinha acanhada gaguejou

“Bom dia, avô”, ele se apercebeu da situação.

Sentado ereto, os olhos fixados no recém-chegado. Assim ficou

até recobrar os movimentos, até conseguir mover os olhos, a boca.

“Jacozinho, és tu, realmente?“

„Avô, posso entrar? O Sr. ainda gosta de mim?” Com mãos

quentes e jovens, o neto pegou as do velho, trêmulas.

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“Jacozinho, tu estás aqui, tu estás mesmo aqui.” Os olhos do

velho perscrutavam os do jovem à sua frente. “O Sr. Deus do céu

seja louvado, tu voltaste do mesmo jeito que partiste”.

“Ora, avô, é verdade, falhei um pouco. Sim, mas estive lá, na

Alemanha.”

“Na – – – ?“ O velho ficou pasmo, de boca aberta. “Tu estiveste

na Alemanha -? Jesus, depois disso, não falo absolutamente mais

nada”.

“Sim, veja lá, avô“. Jacozinho conseguiu sobrepor-se. “E se eu

lhe contar das pessoas, que querem o Hitler – andei com elas três

dias – e ficamos amigos – “ ele ria, ao lembrar-se desses dias e ao

sentir a alegria de voltar a encontrar o avô tão conciliador.

O velho estava imóvel, os olhos pregados no jovem, como se

ele falasse indiano.

“A Alemanha é uma nação poderosa, disso eu nem tinha ideia,”

continuou Jacozinho ali perto avô, enquanto se sentava no

banquinho. ”Qualquer um pode ter um deslize. E eu estive em

Baden,” acrescentou triunfante.

“Tu - estiveste - em Baden?” gaguejou o ancião. “E, então, o

velho carvalho ainda existe lá ao pé da fonte da aldeia, onde nós

íamos buscar água?”

Jacozinho corou até a raiz dos cabelos. Afinal, ele não poderia

dizer ao avô que havia esquecido o nome de sua aldeia natal. Mas,

rapidamente, mudou de assunto.

“E, agora, avô, tenho que informar o Sr. que consegui um

emprego com um salário de duzentos e cinquenta mil-réis”. Jacozinho

ficou todo inchado ao pronunciar esse número pausadamente. “E

também tenho direito a uma casinha, caso venha a me casar, foi o

que disse o Sr. Kullmann, o meu patrão.”

“Jacozinho”, o avô Zurich continuava sentado, rígido, o nariz

estreito, que, ao ouvir as improváveis novas do neto, ficara

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empalidecido, tornara-se branco, “Jacozinho, isso não é uma

mentira?“

“Não, não, verdade verdadeira,” assegurou Jacó.

“Então, - -,” o avô Zurich respirou fundo e uma lufada de

satisfação desanuviou a tensão do rosto do velho. “Então, também

conseguiste uma casinha?” Um sorriso espraiou-se por suas feições,

enquanto seu olhar astuto esquadrinhava o rosto do neto.

Este ficou um pouco vermelho, mas não disse nada. Não lhe

ocorreu, adiantar ao avô que, ainda há pouco, encontrara a Lena e,

dos lábios vermelhos, arrancara-lhe um juramento. Isso haveria de

ser ainda uma surpresa extra para o avô.

Viu-se na cozinha à procura de alguma coisa. “Estou com fome,

o Sr. sabe, desde ontem à noite que não como nada.”

O avô levantou-se ligeiro. “Vem, o feijão deve estar no ponto. -

oh meu Deus, será que está saboroso? Está mesmo é queimado. Lá

vem bronca da nora. - - Queres comer pão de milho – então, vem.”

Entre mastigadelas e goles, Jacozinho contou as suas

peripécias, terminando com estas palavras: “O Brasil é minha pátria e eu

morreria, se não pudesse ficar aqui, mas os que são alemães têm que saber de

onde lhes vem a força e não se esquecerem disso.” Deu uma fungadela. O Sr.

sabe, avô, dentro de mim tenho uns pensamentos que não consigo botar em

palavras.” “Não é preciso, não, Jacozinho”, acudiu o avô quase solene. “O que

importa é sentir.” “Mas ainda lhe quero dizer, “ acrescentou Jacó, “das cidades

não guardei nada, lá a gente podia até ficar louco diante de tantas coisas

espetaculosas. Aqui há mais aconchego. – Quando a saudade bateu, só

consegui pensar na nossa colônia.”

O avô Zurich sentiu-se, de repente, 10 anos mais moço, havia

esquecido que, realmente, estava doente e de mau humor. Nem

mesmo os feijões queimados lhe causaram preocupação ou

problemas de consciência. Qual o problema de comer hoje pão de

milho? O que importa é que Jacozinho está outra vez aqui, o

Jacozinho, que, em 2 meses aprendeu o que ele – avô – com todo o

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amor e com toda a disciplina durante 18 anos não lhe conseguiu

ensinar: consideração pela terra de seus pais e, desse modo,

consideração pelos próprios pais, e o amor ao torrão natal.

FONTE: Groß-Hering, Gertrud. Ein guter Kern. (De boa cepa). In: Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermund Kalender), São Leopoldo, Rotermund, 1938, p. 97-108.

ANEXO:

1) Muss i denn, muss i denn

Muss i denn, muss i denn Zum Städtele hinaus, Städtele hinaus, Und du, mein Schatz, bleibst hier? Wenn i komm’, wenn i komm’, wenn i wiedrum komm’, wiedrum komm' Kehr’ i ein, mein Schatz, bei dir. Ann i glei net allweil bei dir sein, Han i doch mei Freud’ an dir! Wenn i komm’, wenn i komm’, wenn i wiedrum komm’, wiedrum komm' Kehr’ i ein, mein Schatz, bei dir. Wie du weinst, wie du weinst, Dass i wandere muss, wandere muss, Wie wenn d’ Lieb’ jetzt wär’ vorbei! Sind au drauß, sind au drauß Der Mädele viel, Mädele viel, Lieber Schatz, i bleib dir treu. Denk du net, wenn i ’ne Andre seh’, No sei mein’ Lieb’ vorbei; Sind au drauß, sind au drauß Der Mädele viel, Mädele viel,

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Lieber Schatz, i bleib dir treu. Über’s Jahr, über’s Jahr, Wenn me Träubele schneid’t, Träubele schneid’t, Stell’ i hier mi wiedrum ein; Bin i dann, bin i dann Dein Schätzele noch, Schätzele noch, So soll die Hochzeit sein. Über’s Jahr, do ist mein’ Zeit vorbei, Da g’hör’ i mein und dein; Bin i dann, bin i dann Dein Schätzele noch, Schätzele noch, So soll die Hochzeit sein. https://www.youtube.com/watch?v=kHl0OlxRdjo

2) Das Loreleylied

Ich weiß nicht was soll es bedeuten Daß ich so traurig bin; Ein Märchen aus alten Zeiten, Das kommt mir nicht aus dem Sinn. Die schönste Jungfrau sitzet Dort oben wunderbar, Ihr goldenes Geschmeide blitzet, Sie kämmt ihr goldenes Haar. Den Schiffer, im kleinen Schiffe, Ergreift es mit wildem Weh; Er schaut nicht die Felsenriffe, Er schaut nur hinauf in die Höh´. Die Luft ist kühl und es dunkelt, Und ruhig fließt der Rhein; Der Gipfel des Berges funkelt Im Abendsonnenschein. Sie kämmt es mit goldenem Kamme Und singt ein Lied dabey; Das hat eine wundersame, Gewaltige Melodei. Ich glaube, die Wellen verschlingen Am Ende Schiffer und Kahn; Und das hat mit ihrem Singen

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Die Lore-Ley getan.