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CCEJ CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS Prof. Dr. Saul Kirschbaum Tradição e história do judaísmo São Paulo 2018

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CCEJ – CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Prof. Dr. Saul Kirschbaum

Tradição e história do judaísmo

São Paulo

2018

CCEJ – CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Prof. Dr. Saul Kirschbaum

Tradição e história do judaísmo

São Paulo

2018

Apostila elaborada, pelo Dr. Saul

Kirschbaum, a partir da tradução livre

de excertos das obras relacionadas ao

final, na bibliografia.

Curso de Extensão em Cultura

Judaica-Cristã, História e Teologia.

Disciplina: Tradição e história do

judaísmo.

Índice Analítico

1. O período do Segundo Templo ..................................................................................... 3

1.1 O exílio babilônico e a restauração............................................................................. 3

1.2 A estrutura social e governamental da Judeia sob os ptolomeus e selêucidas ......... 12

1.3 O estado hasmoneu ................................................................................................... 17

1.4 A Judeia sob domínio romano .................................................................................. 24

1.5 Religião e Literatura ................................................................................................. 36

1.6 A Grande Revolta ..................................................................................................... 40

2. Mishná e Talmud ........................................................................................................ 44

2.1 Os judeus na Terra de Israel ..................................................................................... 44

2.2 As terras da diáspora................................................................................................. 58

3. Idade Média ................................................................................................................ 61

3.1 Liderança centralizada e liderança local ................................................................... 61

3.2 Vida judaica social e cultural até o final do século XI ............................................. 63

3.3 Vida social e realizações culturais ............................................................................ 70

3.4 Criatividade espiritual e social ................................................................................. 75

3.5 Ideais sociais no final da Idade Média...................................................................... 80

4. Período Moderno ........................................................................................................ 96

4.1 Conflito interno no judaísmo leste europeu .............................................................. 96

4.2 A luta pela Emancipação na Europa Ocidental e Central ....................................... 100

4.3 O fracasso da Emancipação: luta pela sobrevivência e renascimento nacional ..... 106

4.4 O movimento socialista entre os judeus antes da Primeira Guerra Mundial .......... 116

4.5 O crescimento da Nova Cultura Judaica................................................................. 122

4.6 O movimento sionista e o “Lar Nacional” entre as guerras ................................... 129

Bibliografia .................................................................................................................. 140

3

1. O período do Segundo Templo

1.1 O exílio babilônico e a restauração

Consequências imediatas da destruição

Após a destruição de Jerusalém e o exílio na Babilônia, o quadro territorial da história

judaica expandiu-se de Judá propriamente dita para áreas mais amplas. Ele agora incluía não

apenas aqueles que haviam permanecido em Judá, mas também as diásporas da Babilônia e do

Egito e, no devido tempo, da Ásia Menor.

Para a história de Judá durante o período do exílio babilônico, existem muito poucas

fontes. Da descrição em Jeremias 32 ss e em 2 Reis 24-251, fica claro que a devastação foi

ampla, e que somente os pobres ficaram no país, “para vinheiros e para lavradores”. As

hipóteses variam quanto ao número de exilados: 10 mil pessoas foram com Joaquim, mas é

incerto se este número se refere a chefes de família ou ao total de exilados. Não há dúvida de

que um grande número deixou Judá durante a guerra ou imediatamente após a destruição,

fugindo em todas as direções – para Samaria, Edom, Moab, Ammon e Egito. As escavações

arqueológicas conduzidas em Tell Beit Mirsim, Beth-shemesh, Lahish e Ramat Rahel, dão

testemunho das dimensões da destruição. Os restos encontrados mostram marcas claras de

devastação, os resultados de lutas e batalhas cruéis nos últimos anos de independência de

Judá. Ao mesmo tempo, várias cidades ao norte de Jerusalém, como Bethel, Mispah e Gibeon,

não foram nada destruídas, e agora se admite que essa região – a terra de Benjamin –

submeteu-se aos babilônios em 588, no começo da guerra, e assim escapou à destruição.

Mispah poderia, assim, servir de sede para Gedaliah ben Ahikam. Um líder da facção

moderada que se opôs à rebelião em Judá, Gedaliah foi nomeado governador do que quer que

tenha sobrado em Judá após a destruição em 586.

A primeira e mais importante reforma de Gedaliah foi a legalização do status das

terras usurpadas, reconhecendo como proprietários aqueles que as ocupavam ou lavravam.

Assim, os “mais pobres da terra”, os não exilados, tomaram posse das terras através desta

medida excepcional. O propósito primário de Gedaliah era a normalização da vida em Judá.

Sua política é formulada na declaração registrada em Jer. 40:9-10: “Nada temais da parte dos

caldeus; ficai na terra, servi ao rei da Babilônia, e bem vos irá. Quanto a mim, eis que habito

1 As referências bíblicas foram confrontadas com a tradução de João Ferreira de Almeida.

4

em Mispah, para estar às ordens dos caldeus que vierem a nós; vós, porém, colhei o vinho, as

frutas de verão e o azeite, metei-os nas vossas vasilhas e habitai nas vossas cidades que

tomastes”. Este movimento coincide com a visão de que a terra pertencia por direito àqueles

que tinham por ela reivindicação física, como se evidencia nos slogans citados em Ezequiel:

“... os moradores destes lugares desertos da terra de Israel falam, dizendo: Abraão era um só;

no entanto possuiu esta terra; ora, sendo nós muitos, certamente, esta terra nos foi dada em

possessão” (33:24).

No entanto, o breve governo de Gedaliah terminou com seu assassinato nas mãos de

um membro da família real. O assassino, Ishmael ben Nethaniah, deve ter considerado

Gedaliah um traidor. É também muito provável que ele tenha sido contratado pelo rei de

Ammon, que, aparentemente, desejava ocupar partes de Judá. De qualquer maneira, isso

assinalou o fim da última manifestação de autonomia de Judá.

O Império neo-Babilônio manteve o padrão assírio de administração, mas se desviou

em sua política em relação aos exilados. Não há evidência de que existia a política de troca

forçada de população, nos dois sentidos, mas somente a de uma deportação unidirecional de

povo conquistado para a Babilônia, que na época necessitava aumentar sua população para

repovoar as áreas destruídas nas guerras com a Assíria. Eram necessários artesãos e

trabalhadores qualificados para as operações de construção em todo o país, especialmente na

cidade de Babilônia; consequentemente, Nabucodonosor não transferiu quaisquer novos

habitantes para a devastada Judá, mas deixou os territórios permanecerem em ruínas. De fato,

eles podem ter sido propositalmente deixados desérticos, para servirem como uma área

tampão com o Egito. Como resultado desta política, os exilados que retornavam não

encontraram oposição externa quando de seu retorno para seus próprios lares. Nada se sabe a

respeito da organização ou da história da terra de Judá desde 586 até o Retorno em 538.

Os exilados na Babilônia

Os exilados da Judeia foram assentados no rio Quebar, um importante canal de

irrigação perto da cidade de Nippur (Ez. 1:1). A escolha desse território parece não ter sido

acidental. Nippur tinha servido como fortaleza dos assírios na Babilônia, nos dias de

Assurbanipal, particularmente durante as guerras entre seus herdeiros e Nabopolassar e, em

larga medida, tinha sido deixada deserta. É bem possível que os habitantes que permaneceram

fieis à Assíria tenham sido mortos ou deportados. Os nomes de outros locais povoados pelos

exilados da Judeia apontam para uma situação similar. Todos indicam destruição e ruína:

5

Tell-abib, “local destruído como pelo dilúvio” (abubu em acádico); Tell-melah, “Monte de

Sal”, i.e., uma ruína na qual foi espalhado sal para simbolizar que nada deveria jamais crescer

sobre ela; e Tell-harsa, “uma ruína coberta com cacos”. Os novos assentados foram dirigidos

principalmente para a agricultura. Outros, em especial artesãos e trabalhadores especializados,

foram transferidos para a própria Babilônia e empregados em projetos de construção de

Nabucodonosor.

Os exilados da Judeia preservaram a estrutura social de unidades familiares, como se

evidencia pelas listas genealógicas em Ezra 2 e Neemias 7. Joaquim, o rei exilado, a nobreza e

os sacerdotes nunca são mencionados diretamente por Ezequiel. Os únicos líderes que o

profeta encontra são os “anciãos”, a liderança tradicional (Jer. 29:1 e Ez. 8:1 e 20:3).

O Livro de Ezequiel dá testemunho não só da organização social dos exilados; seu

principal significado reside em que reflete de muitas formas as saudades, conflitos e

esperanças dos exilados, sua condição psicológica e atitude espiritual. A primeira onda de

exilados, aqueles trazidos com Joaquim, viam seu cativeiro como temporário. Esperavam a

iminente derrota do jovem Império neobabilônico e seu consequente retorno a Judá. É contra

essa esperança vã que Jeremias e Ezequiel dirigiram seus pronunciamentos, profetizando

repetidamente a aproximação da destruição de Jerusalém e do Templo. Mesmo assim, o

otimismo dos exilados, estimulado pela atividade dos assim chamados “profetas da redenção”

– condenados por Jeremias como falsos profetas – impedia sua aceitação dos profetas da

condenação. Seu falso otimismo foi despedaçado e levou a um intenso desespero quando da

efetiva destruição do Templo em 586. É esta depressão que Ezequiel retrata tão vividamente.

O povo agora sentia a plena carga de seus pecados e especialmente os de seus pais. Contra

isso, Ezequel enfatizava a responsabilidade pessoal: “O filho não levará a iniquidade do pai,

nem o pai a iniquidade do filho” (Ez. 18:20). Somente o arrependimento podia prevenir a

punição. Após a destruição, o povo percebeu a força de seus captores e se deu conta de que o

exílio significava uma total ruptura com sua agora desolada terra natal. Em resposta ao

lamento então corrente, “Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança” (Ez.

37:11), Ezequiel contrapunha sua “Visão dos ossos secos”, na qual os ossos são revestidos em

carne (Ez. 37:1-10).

Sem dúvida, a atividade de Ezequiel frutificou. Sabemos que ocorreu uma mudança

decisiva nas percepções religiosas e culturais da comunidade exilada. A idolatria e o

fetichismo sincréticos, que ainda eram evidentes no final do período do Primeiro Templo,

parecem ter desaparecido. Um fator decisivo foi o sentimento de arrependimento em relação

às transgressões cúlticas de Manasseh e sua época. Como nos conceitos religiosos babilônios

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e assírios, a destruição e o exílio eram vistos como manifestações da ira divina. Somente a

eliminação do pecado e sua expiação poderiam restaurar a graça divina. Esta atitude tem

paralelo claro nos historiadores babilônios do período. A destruição de Babilônia em 689 por

Senaqueribe, rei da Assíria, foi explicada como a punição de Marduk, o principal deus

babilônico, como resultado de sua fúria em face dos pecados dos habitantes. Similarmente,

em uma inscrição posterior de Nabonidus, a destruição (em 610) de Haran (última capital da

Assíria e centro da adoração de Sin, o deus-lua) foi interpretada como punição divina: “Sin,

rei dos deuses, irou-se com sua cidade e seu templo e foi para o céu. A cidade [de Haran] e o

povo que estava nela ficaram desolados”. Somente quando o “período de aflição assinalado”

foi completado “sua ira se acalmou... ele foi reconciliado” e concordou em retornar para sua

cidade e seu templo, restaurados por seu ardente seguidor Nabonidus.

A mudança religiosa e espiritual experimentada pelos exilados no período foi um sinal

de tendências isolacionistas, um desejo de completa separação dos ambientes estrangeiros

impositivos. Mas foi também um período no qual algumas influências babilônicas seculares

penetraram profundamente. Isto se verifica nos nomes babilônios adotados por alguns

exilados, mesmo membros da família real de Judá, como Zorobabel (Zer-babili, “semente da

Babilônia”), o nome do neto de Joaquim. Outra mudança significativa foi a adoção dos nomes

babilônicos dos meses – Nissan, Iyar, Sivan, etc. – em lugar do sistema israelita original de

numerá-los serialmente, como o primeiro, segundo, terceiro mês, etc. Houve também uma

mudança influenciada pelo aramaico, a língua franca na Babilônia e na parte ocidental do

Império Persa, pela qual o cursivo aramaico substituiu a antiga escrita hebraica.

A influência babilônica é reconhecível também na esfera literária. Os Livros de Reis

foram reeditados como uma crônica síncrona seguindo o padrão das Crônicas babilônicas. O

referencial cronológico foi especialmente retrabalhado: as datas dos reis de Judá foram

harmonizadas com as dos reis de Israel. A composição como um todo foi atualizada até 561,

ano da libertação de Joaquim de sua prisão por Evil-Merodaque, sucessor de Nabucodonosor

(2 Reis 25:27-30).

Retorno e restauração

O Edito [de Ciro aos exilados de Judá na Babilônia, permitindo-lhes reconstruir o

Templo em Jerusalém] despertou esperanças entusiásticas. Já em 538, o ano da proclamação,

foi organizado o primeiro grupo de retornados. O número registrado é 42.360 (Esdras, 2:64),

junto com 7.337 homens e mulheres servos e mais de 200 músicos. Estes números,

7

presumivelmente, constituem o total de várias ondas de retornados durante o reinado de Ciro e

de seus sucessores, e alguns admitem que eles na realidade incluem também os retornados nos

dias de Esdras e Neemias. Obviamente, um número considerável de exilados decidiu

permanecer na Babilônia, a despeito de serem instados entusiasticamente pelo Deutero-Isaias

a partirem imediatamente da “terra dos caldeus”. Aparentemente, estes exilados tinham

lançado raízes na Babilônia e sua situação econômica era sólida. Deve-se lembrar que a

imensa maioria era de nativos da Babilônia, e, portanto, não eram influenciados por

promessas de uma distante terra natal que eles nunca haviam visto.

A primeira onda de refugiados foi encabeçada por Sesbazar, “o príncipe de Judá”

(Esdras, 1:8); é possível que ele deva ser identificado com Senazar, o filho de Joaquim (1

Crônicas 3:18). Foi Sesbazar quem recebeu os vasos do Templo do tesoureiro persa. O título

honorífico de “príncipe de Judá” é idêntico ao usado por Ezequiel em sua visão de uma

monarquia restaurada em Judá. No entanto, isto não indica que Ciro tinha em vista a

restauração da monarquia; seu propósito era reconstruir o Templo em Jerusalém. A estrutura

do Império Persa não deixava espaço para reis vassalos, somente para “governadores”, alguns

dos quais podem ter sido descendentes das dinastias locais. É possível que Sesbazar tenha

sido nomeado governador (peha) de Judá, como Esdras 5:14 pode indicar.

O Edito de Ciro se referia somente ao Templo em Jerusalém, e o resto de Judá nem

sequer é mencionado. Pode-se até assumir que o Templo foi isentado, pelo menos no estágio

inicial, de todas as formas de taxação usualmente impostas no Império Persa. Por outro lado,

parece que o povo de Judá estava sujeito a taxas e obrigações de corvéia, como era comum

entre os súditos do Império Persa (Esdras 4:12-16). Ciro e seus sucessores adotaram a mesma

política em várias outras províncias do Império, isentando alguns templos de corvéia e taxas.

Dessa forma, a classe sacerdotal ficava obrigada ao regime persa, sua fidelidade assegurada

por privilégios econômicos.

A ordem dos eventos na construção do Segundo Templo, bem como a identidade da

liderança daquela época ainda estão abertas para debate. De acordo com Esdras 3, Josué, filho

de Jozadaque, o sacerdote, e Zorobabel, filho de Salatiel, encabeçaram os retornados, seu

primeiro passo tendo sido erigir o altar em seu lugar e reinstituir o sacrifício. O passo

seguinte, “no segundo ano da sua vinda à Casa de Deus, em Jerusalém” (Esdras, 3:8), foi

assentar os alicerces do Templo entre celebração e júbilo (“com altas vozes” [Esdras, 3:11]).

De acordo com Esdras 4, a reconstrução foi interrompida, e retomada somente no segundo

ano de Dario (Esdras, 4:24), ou seja, em 520. Também nesta etapa Zorobabel e Josué

lideraram o povo. Os profetas Ageu e Zacarias proferiram profecias de encorajamento para

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ambos, instando-os, especialmente a Zorobabel, agora chamado peha (“governador” [Ageu,

1:1]), a apressarem o trabalho. A impressão recebida, notadamente de Ageu 2:15 (“antes de

pores pedra sobre pedra no templo”) e 2:18 (“desde o dia em que se fundou o templo do

Senhor”), é que o Templo só foi completado nos dias de Dario. Adicionalmente, um

documento aramaico referente à reconstrução sob Ciro declara: “Então, veio o dito Sesbazar e

lançou os fundamentos da Casa de Deus, a qual está em Jerusalém; e, daí para cá, se está

edificando e ainda não está acabada” (Esdras 5:16). Para explicar esse dilema, foi sugerido

que Zorobabel e Josué pertencem apenas ao segundo período, o de Dario, e que seu

aparecimento precoce é resultado de uma adição editorial posterior. Por outro lado, Zorobabel

e Josué podem perfeitamente ter pertencido a ambas as fases. Em 538, quando Sesbazar era

governador e oficialmente responsável pela reconstrução, Zorobabel e Josué eram os líderes

populares, enquanto que na etapa posterior (520) Zorobabel se tornou o governador persa de

Judá.

Não é provável que Dario tenha nomeado um governador para uma pequena província

em 522/1, enquanto estava tentando reprimir uma rebelião que se alastrava em seu reino. É,

portanto, lógico que Zorobabel foi nomeado antes disso, ou nos últimos anos de Ciro ou no

reinado de Cambises. Foi também sugerido que outro grupo retornou a Judá durante o reinado

de Cambises. De qualquer maneira, é claro que nenhum trabalho de reconstrução foi realizado

durante um tempo considerável. Ageu, testemunha dos eventos (1:2), acusou claramente o

povo, que mantinha que “Não veio ainda o tempo, o tempo em que a Casa do Senhor deve ser

edificada”, enquanto o historiador em Esdras 4:1-5 culpa do atraso “os adversários de Judá e

Benjamim”, que “edificavam o templo ao Senhor, Deus de Israel. E alugaram contra eles

conselheiros para frustrarem o seu plano”.

Mesmo nos primeiros estágios desenvolveram-se graves conflitos entre os retornados e

“as gentes da terra” (Esdras 4:4), que se viam como correligionários: “porque, como vós,

buscaremos a vosso Deus; como também já lhe sacrificamos desde os dias de Esar-Hadom, rei

da Assíria, que nos fez subir para aqui” (Esdras 4:2).

Este grupo solicitou que lhe fosse permitido participar na restauração do Templo. A

resposta de Zorobabel e dos outros líderes foi inequívoca: “Nada tendes conosco na edificação

da casa a nosso Deus; nós mesmos, sozinhos, a edificaremos ao Senhor, Deus de Israel, como

nos ordenou Ciro, rei da Pérsia” (Esdras 4:3). A questão da identidade destes “adversários de

Judá e Benjamim” é outro ponto debatido. A opinião aceita, de acordo com a declaração em

Esdras 4:2, é que eles eram descendentes dos povoadores estrangeiros deportados para

Samaria pelos reis assírios, um grupo posteriormente conhecido como samaritanos.

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O próprio Ciro, aparentemente, não estava mais interessado na manutenção de sua

política de outorgar privilégios especiais para a restauração de centros religiosos desolados.

Seus esforços agora eram dirigidos para a consolidação do império e a expansão para o leste.

Ele morreu em 530, enquanto lutava com os cítios nas periferias orientais do Irã. Seu filho

Cambises renovou o interesse persa na expansão para o oeste e conduziu uma campanha bem-

sucedida contra o Egito.

Após a morte de Cambises e a ascensão ao trono de Dario I em 522, irromperam

revoltas em todo o Império Persa, a partir da própria Media, onde a nobreza se revoltou contra

Dario, até Elam, Babilônia e Ásia Menor. Foi só em 519, no final de seu segundo e início de

seu terceiro ano, que Dario assumiu o controle de todo o império. Em seu segundo ano a

restauração do Templo foi retomada. No sexto mês do segundo ano de Dario (520), Ageu

despertou o povo e os líderes para recomeçarem a construção do Templo (Ageu 1:14). Junto

com a reconstrução, surgiu a esperança de renovação do reinado sob a dinastia davídica, e esta

esperança estava, naturalmente, conectada com a personalidade de Zorobabel.

A construção do Templo foi completada no sexto ano do reinado de Dario (516/5) e

foi marcada pela alegre celebração de Pessah (Esdras 6:15-20).

As reformas de Neemias

Neemias, filho de Hahaliah, apareceu em Jerusalém como governador de Judá em 445,

treze anos após a chegada de Esdras. Nossa única fonte para a história dessa época é o livro de

memórias que leva seu nome, e que não dá nenhuma indicação de seu contexto. Este

documento único é o primeiro no gênero de memórias autênticas em primeira pessoa na

Bíblia. Ele começa abruptamente no vigésimo ano do reinado de Artaxerxes I, quando

Neemias, um copeiro do rei, e por isso um cortesão do mais alto nível, recebeu mensagem do

que parece ter sido uma delegação de Jerusalém a respeito da tentativa mal-sucedida de

reconstruir a muralha: “Disseram-me: Os restantes, que não foram levados para o exílio e se

acham lá na província, estão em grande miséria e desprezo; os muros de Jerusalém estão

derribados, e as suas portas, queimadas” (1:3).

Neemias sentiu que, na condição de mais alto oficial judeu na corte persa, era seu

dever intervir junto ao rei. Quatro meses se passaram até que ele confrontasse o rei com a

solicitação incomum de ser liberado de seu posto e enviado “a Judá, à cidade dos sepulcros de

meus pais, para que eu a reedifique” (Ne 2:5). O governante concedeu sua permissão e deu a

Neemias cartas para os governadores das províncias de Trans-Eufrates e ao guardião das

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florestas do rei, que deveria fornecer madeira para a reconstrução dos portões da fortaleza do

Templo, da muralha da cidade e da nova casa do governador em Jerusalém.

Durante as duas gerações que precederam a chegada de Neemias a Jerusalém, a

polarização social em Judá se tornou muito aguda. Enquanto os nobres, os altos oficiais e as

famílias sacerdotais eram relativamente prósperas, a seca, fome e taxações atingiam os

camponeses e pequenos proprietários de terra, de forma que servidão e escravidão se tornaram

um fenômeno comum. Sua condição encontrou expressão no clamor dirigido a Neemias: “As

nossas terras, as nossas vinhas e as nossas casas hipotecamos para tomarmos trigo nesta fome.

... e eis que sujeitamos nossos filhos e nossas filhas a serem escravos, algumas de nossas

filhas já estão reduzidas à escravidão. Não está em nosso poder evitá-lo; pois os nossos

campos e as nossas vinhas já são de outros” (Ne 5:3-5). Neemias recorreu a uma solução

radical: o cancelamento das dívidas e a restauração dos campos a seus proprietários

empobrecidos. Estes atos foram realizados em virtude de sua autoridade como governador

persa de Judá, que aparentemente lhe permitia tomar medidas extremas em momentos

críticos. Ele reuniu o povo em uma “grande assembleia” extraordinária (Ne 5:7) em

Jerusalém, onde os segmentos mais ricos da população estavam, aparentemente, em minoria.

Por persuasão verbal e confiando na vontade do povo e em sua própria autoridade, ele

conseguiu aprovar as reformas mencionadas. Os nobres tiveram que jurar ante a assembleia,

que as reformas seriam implementadas imediatamente.

Um conjunto adicional de reformas de Neemias estava ligado ao Templo. Neemias

deve ter achado que, apoiando o status do Templo e das classes sacerdotais, ele estaria, ao

mesmo tempo, fortalecendo a posição de Jerusalém, assegurando uma sólida base econômica

para o Templo e a cidade. Os sacerdotes mais pobres e os levitas tinham perdido suas receitas

(as porções hereditárias ou prebendas), enquanto umas poucas famílias sacerdotais tinham

ganhado controle do tesouro e dos presentes das colheitas trazidos a Jerusalém. Parece que

Neemias teve muito trabalho para garantir uma base econômica para os levitas, a seção

sacerdotal mais pobre. Ele renovou suas porções e designou novas posições para eles como

porteiros e guardas na área do Templo.

De especial significado é a insistência de Neemias quanto à estrita observância do

shabat. Isto não é surpreendente, já que esta observância tinha se tornado uma das

características destacadas das comunidades judaicas na diáspora. A aplicação estrita da lei

sabática foi confiada aos levitas. “Dando já sombra as portas de Jerusalém antes do sábado,

ordenei que se fechassem; e determinei que não se abrissem, senão após o sábado; às portas

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coloquei alguns dos meus moços, para que nenhuma carga entrasse no dia de sábado” (Ne

13:19).

É bastante natural que tais medidas controversas encontrassem forte oposição. O

oponente mais destacado foi Sanballat, governador de Samaria. Apesar de portador de um

nome babilônio (Sin-uballit), e chamado de horonita por Neemias (talvez uma referência à

cidade de Haran, o centro do culto a Sin), Sanballat era um devoto do Templo de Jerusalém e

do Deus de Israel (o que se manifestava nos nomes de seus filhos, Delaiah e Shelemiah, mais

adiante governadores de Samaria). O segundo adversário, normalmente mencionado em

conjunto com Sanballat, era Tobias, o amonita. Apesar de referido por Neemias como um

“escravo” (aparentemente um trocadilho com seu título oficial “rei-escravo”), ele era um

representante da mais influente família de proprietários de terra em Ammon. A família dos

tobíadas, de origem judeana, iria se tornar a mais proeminente em Jerusalém cerca de dois

séculos após Neemias. Um terceiro adversário, registrado por Neemias, era Geshem o árabe,

aparentemente rei dos kedaritas, uma poderosa confederação tribal árabe do norte, possuidora

de monopólios sobre o lucrativo tráfico de incenso.

Outro adversário ainda era Eliashib, o Sumo Sacerdote em Jerusalém. Sua oposição

não era tão óbvia quanto a de Sanballat ou Tobias, e ele não é retratado negativamente nas

memórias de Neemias. No entanto, seus vínculos com outros dois adversários são evidentes:

O neto de Eliashib era casado com a filha de Sanballat, e Tobias, sem dúvida um laico, tinha

uma chancelaria privada no Templo. Também aqui Neemias recorreu a medidas extremas.

Despejou Tobias, cancelando seus direitos especiais, e durante seu segundo mandato, baniu o

neto de Eliashib de Jerusalém.

O último movimento se conectou com a “purificação” da comunidade da Judeia.

Neemias aderiu à ideologia isolacionista de Esdras, típica da diáspora babilônica. Novamente

a grande questão passou a ser os casamentos mistos. Esdras não mencionou Neemias em suas

memórias, ainda que os dois estivessem associados com a expulsão das mulheres gentias, ato

que culminou com uma convocação nacional na qual foi lido o “Livro de Moisés”.

A única menção a esse evento nas memórias de Neemias ocorre em Ne 13:1, enquanto

que o historiógrafo que editou e combinou os livros de Esdras e Neemias (aparentemente no

final do século III) detalhou eloquentemente, em terceira pessoa, os eventos do “sétimo mês”

em Jerusalém em Ne 8-10. Sua descrição, cuja veracidade foi questionada, é colocada no

meio das próprias memórias de Neemias. A convocação culminou com a assinatura de um

pacto por Neemias, o governador, seguido pelos sacerdotes, os levitas e os chefes das famílias

(Ne 10:1 ss). O ponto central do pacto era sua separação dos “povos da terra” (Ne 10:29-31).

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O cânone

As várias tendências e correntes dentro da nação encontraram sua expressão no amplo

espectro da produção literária judaica nestes tempos. A literatura palestiniana após o século V

a.e.c. marcou o fim da profecia visionária e o começo da consolidação das Escrituras. No

começo da era helenística, a Torá e os Profetas já tinham se tornado parte do cânone divino e

eram vistos como livros sagrados. Com a passagem do tempo, a terceira seção da Bíblia, os

Escritos, também se tornou parte integral do cânone.

A não ser em relação à Torá, não sabemos os critérios pelos quais o cânone foi

compilado. Mas o gosto popular, bem como o julgamento sacerdotal e acadêmico, parece ter

tido sua participação. Os cinco rolos conhecidos como Meguilot, ou Cânticos, eram lidos em

público nas grandes festas, o Cântico de Salomão (Cântico dos Cânticos) em Pessah, Rute em

Pentecostes, Eclesiastes em Tabernáculos, Ester em Purim e Lamentações na festa da

Destruição de Jerusalém. Em consequência, eles se tornaram populares, e é por isso que foram

incluídos no cânone. À parte de sua associação com um grande rei, o Cântico de Salomão é

evidentemente uma antologia de poemas de amor, e não há razão intrínseca para sua inclusão.

A tradição rabínica diz que no Concílio de Iavneh, no início da era cristã, quando o cânone foi

finalmente estabelecido, Rabi Akiva disse: “Pois em todo o mundo não há nada que iguale o

dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel, pois todos os escritos são santos, mas o

Cântico dos Cânticos é o Santo dos Santos”. Mas ele então adicionou, como um alerta:

“Aquele que, em busca de entretenimento, canta o Cântico como se fosse uma canção

profana, não terá lugar no próximo mundo”.

A inclusão no cânone era a única forma segura de assegurar que uma obra literária

sobrevivesse, pois na antiguidade, a menos que um manuscrito fosse constantemente

recopiado, ele tendia a desvanecer sem deixar traços dentro de uma geração ou duas. As

famílias dos escribas, então, asseguraram a sobrevivência dos textos bíblicos por mil anos ou

mais, e, no devido tempo, foram sucedidos por famílias de massoretas ou escribas eruditos

que se especializaram na escrita, soletração e acentuação de textos bíblicos. Foram eles que

produziram a versão canônica judaica oficial, conhecida como texto massorético.

1.2 A estrutura social e governamental da Judeia sob os ptolomeus e selêucidas

A autonomia da Judeia e de Jerusalém: o Sumo Sacerdote e a Gerusia

13

Jerusalém era não apenas a capital como também a principal cidade da Judeia. Até as

mudanças introduzidas por Antíoco Epífanes, Jerusalém não tinha nem o status nem as

instituições de polis, se bem que suas relações com o território da Judeia eram de certa forma

comparáveis com as das cidades gregas e seus territórios. O governo do território autônomo

da Judeia foi entregue ao Sumo Sacerdote e o Conselho de Anciãos, ou Gerusia. A Gerusia, a

despeito de seu nome, tinha poucas das características dos sistemas gregos e era uma

continuação direta do conselho dos “anciãos de Judá” dos tempos persas.

Os Sumo Sacerdotes eram zadoquitas do ramo sacerdotal de Yedaya (uma das 24

divisões do sacerdócio) e eram todos descendentes de Josué ben Jozadaque, o Sumo

Sacerdote durante o período da restauração do Templo. A posição era passada de pai para

filho; se o herdeiro legal fosse muito jovem para ocupar o posto, era usual nomear um irmão

ou tio do Sumo Sacerdote falecido. O Sumo Sacerdote ocupava o cargo de forma vitalícia

(somente Antíoco Epífanes rompeu este costume), e tanto judeus como estrangeiros o viam

como o líder da nação. O Sumo Sacerdote era, assim, não apenas o chefe religioso, mas

também o líder político da nação. Ele exercia a suprema autoridade sobre o Templo, o que

incluía responsabilidade sobre a segurança da capital e seu fornecimento regular de água. Ele

também presidia a Gerusia e era responsável pelo recolhimento de taxas reais.

O Sumo Sacerdote era assistido pela Gerusia. Presume-se que, oficialmente, estava

acima dela; essa, pelo menos, era a situação no final do século III. Além dos líderes do

sacerdócio, a Gerusia incluía também chefes de famílias que representavam os interesses das

cidades provinciais da Judeia. O costume dos reis helenistas era, aparentemente, de dar

precedência à Gerusia sobre o Sumo Sacerdote em seus documentos, mas quando a dinastia

hasmoneana consolidou sua posição, e o cargo de Sumo Sacerdote passou para seus membros,

os documentos começam a nomear o Sumo Sacerdote antes do conselho. Esta mudança

refletiu o deslocamento no equilíbrio de poder na Judeia que se seguiu à revolta dos

Hasmoneus.

As fontes falam também de assembleias do povo de Jerusalém que aconteciam no

pátio do Templo. Elas não ocorriam regularmente, e fica-se em dúvida se tinham uma função

claramente definida, como tinham as ecclesiai das cidades gregas. Aparentemente, o povo só

se reunia em ocasiões extraordinárias, quando tinham que ser tomadas decisões

particularmente importantes. Para decisões de natureza constitucional, todo o povo da Judeia

era convocado. Essas assembleias eram conhecidas como haknesset ha-Gedolah (“a Grande

Assembleia”).

14

A monarquia estrangeira confirmou as “leis ancestrais” dos judeus como código

vinculante para todo o território da Judeia autônoma. Estas leis ancestrais, com efeito,

consistiam na Lei de Moisés, tal como interpretada pela liderança reconhecida da Judeia. Em

virtude desta confirmação real, as autoridades autônomas de Jerusalém tinham poder até para

compelir toda a população da Judeia a obedecer aos preceitos da Torá e banir a idolatria em

todo o território. Além dos direitos que o governo garantia aos judeus, ele também lhes

impunha encargos. A Judeia, como parte do reino ptolemaico ou selêucida, tinha que pagar

pesadas taxas ao erário público, que foram um fardo sobre seus fazendeiros enquanto durou o

governo estrangeiro. De uma ordem emitida por Antíoco III após a conquista de Jerusalém,

apreendemos que a população da Judeia pagava não apenas taxas imobiliárias como outros

impostos, incluindo uma espécie de taxa eleitoral. Sabemos também da existência de uma taxa

sobre sal e uma taxa para a coroa. Esta última era, inicialmente, um presente expressando a

participação do povo nos eventos festivos da casa real, mas acabou por se tornar uma

contribuição opressiva e compulsória. Além de impostos diretos, os judeanos pagavam

tributos pesados sobre bens importados, mesmo que eles fossem apenas transportados de um

distrito para outro.

O Templo e os sacerdotes

O foco da vida religiosa, política e social na Judeia era o Templo. Diferentemente de

outros templos orientais, o Templo de Jerusalém não era rico em propriedades imobiliárias. O

sustento dos sacerdotes e levitas era, de acordo com os preceitos da Torá, encargo de toda a

nação, que era solicitada a entregar-lhes oferendas e dízimos. A Torá não impunha nenhum

imposto regular para a manutenção do Templo, os sacrifícios diários, e assim por diante.

Neemias foi o primeiro a cobrar um imposto de um terço de shekel (Ne 10:33) para cobrir as

despesas do Templo. Em que medida este costume persistiu entre os dias de Neemias e os dos

hasmoneus não é claro, mas sabemos que a receita do Templo incluía quantias da monarquia

gentia, que contribuíam com o financiamento do sacrifício diário. Por causa de seu caráter

sagrado particular, o Templo servia também como depositário de capitais, como dinheiro

pertencente a viúvas e órfãos ou de ricos, que temiam por seus capitais sob as condições

muitas vezes inseguras reinantes na terra.

A elite da Judeia helenista eram os sacerdotes, um dos quais era o Sumo Sacerdote, o

chefe reconhecido da nação. Eles forneciam parte da composição da Gerusia, bem como a

maioria dos funcionários importantes.

15

Muitos sacerdotes viviam em cidades do interior e em aldeias, mas costumavam ir

para Jerusalém para servir no Templo quando chegava seu turno, assim como para os três

festivais de Pessah, Shavuot (Pentecostes) e Sucot (Tabernáculos). O sacerdócio, como um

todo, era dividido em 24 turnos, que serviam no Templo em rotação.

Os membros do sacerdócio não estavam todos em pé de igualdade, pois os interesses

dos sacerdotes principais, por um lado, e os da massa dos sacerdotes e dos levitas, por outro,

nem sempre coincidiam. A Torá tinha estabelecido a distribuição original entre sacerdotes e

levitas das receitas de oferendas, dízimos e outras obrigações, mas durante a época do

Segundo Templo, quando o número e a importância dos levitas encolheram, os sacerdotes se

apropriaram da maior parte dos dízimos, que, de acordo com a Torá, era a parte dos Levitas.

Como podemos ver dos livros de Judite e Tobias, que podem recuar aos tempos persas, bem

como de 1 Macabeus, os dízimos eram trazidos a Jerusalém e não eram distribuídos no local.

Esta concentração dos dízimos em Jerusalém trazia-os diretamente para a esfera de influência

do Sumo Sacerdote e das autoridades centrais da capital, tornando, assim, as massas de

sacerdotes e levitas ainda mais dependentes do estrato superior do sacerdócio.

Havia várias famílias sacerdotais proeminentes, além da do Sumo Sacerdote, que

desempenhavam papeis importantes na vida social e política dos judeus. Uma delas era a casa

de Hakotz. Johanan ben Hakotz era o homem que negociava com Antíoco III para assegurar

os direitos de Jerusalém após a conquista. Seu filho Eupolemos estava à frente da delegação

enviada a Roma por Judas Macabeu. Outra importante família sacerdotal era a de Bilga; seus

membros incluíam Simão, Menelau e Lisímaco, que minaram a posição do Sumo Sacerdote

legal e se tornaram pilares do movimento de helenização. Simão ocupou o cargo de

governador do Templo e Menelau veio a substituir o Sumo Sacerdote. Também de uma das

famílias sacerdotais veio Jose ben Joezer, um dos maiores sábios judeus da época. Um seu

parente, Jakim-Alcimus, foi nomeado Sumo Sacerdote pelo rei sírio Demétrio I durante a

revolta dos hasmoneus. No período do Segundo Templo, as principais famílias sacerdotais

adotaram uma prática de casamentos endogâmicos; mas, sob circunstâncias favoráveis, não se

opunham a estabelecer vínculos matrimoniais com famílias importantes não incluídas entre as

sacerdotais.

A influência do helenismo

A prolongada influência do helenismo no campo cultural e social, o sistema

administrativo ptolemaico e selêucida e as conquistas materiais da civilização helênica em

16

agricultura, planejamento urbano e finanças, todos se combinaram para criar mudanças de

longo alcance mesmo na Judeia. Não devemos esquecer que os estabelecimentos de

população judaica na Palestina eram rodeados por uma população gentia hostil; e enquanto

esta população era de origens étnicas muito diferentes, o governo helênico a provia com algo

semelhante a uma liderança helênica unificada. Anteriormente, somente o lado judeu era

diferenciado por sua unidade, mas agora um bloco sírio-grego tomava forma, e surgiu a

questão crucial sobre se a nação judaica poderia se sustentar como uma força a ser levada em

conta na Palestina, ou se iria acabar perdendo seu caráter nacional, religioso e cultural

específico, e se tornar uma das muitas unidades que eram os portadores da civilização

helênica na Palestina, assim como já havia perdido sua independência política e se tornado

uma das muitas unidades de governo da Síria e da Fenícia. Em torno do ano 200 parecia que a

vitória do helenismo estava assegurada; o fascínio externo e a superioridade material da

civilização dominante pareciam capazes de colocar em perigo a continuidade do judaísmo ou,

ao menos, de privar a classe dirigente de seu caráter judaico. As classes superiores adaptavam

cada vez mais sua forma de pensar e estilo de vida aos daqueles das classes correspondentes

das seções não judaicas da população. Tendências que nunca tinham desaparecido

completamente voltaram a emergir com plena força: oposição à acentuação do particularismo

judaico e o desejo de se fundir no estrato superior da sociedade gentia. As outras classes

também se deixaram cada vez mais influenciar pela atmosfera helenística geral. Muitos judeus

viviam em cidades em que a maioria da população era helenizada, e os mercadores judeus que

negociavam com cidades estrangeiras distantes adquiriam a civilização grega juntamente com

suas mercadorias, e as passavam para seus companheiros judeus.

A influência helênica na Judeia se revela primariamente no campo da civilização

material. As moedas de Yehud do período persa imitavam a cunhagem ateniense e parece que

as finanças helênicas gradualmente conquistaram Jerusalém. A influência helênica era

evidente também na arquitetura e nas artes. A disseminação de nomes gregos entre os judeus

era um sinal externo da helenização da Judeia; nomes gregos não eram mais usados apenas

por aqueles judeus que se tinham separado da tradição judaica. No século III os nomes gregos

ainda eram raros entre os judeus; mas, em torno do ano 200, os nomes gregos começaram a se

tornar comuns em diferentes níveis sociais, incluindo até a família dos Sumo Sacerdotes.

Somente em parte das cidades do interior e nas aldeias da Judeia e do sul da Samaria este

hábito comum não se enraizou: nenhum dos filhos de Matatias, o hasmoneu, por exemplo, era

chamado por um nome grego.

17

Não obstante, deve-se registrar que em torno do ano 200 a civilização grega ainda não

tinha lançado raízes profundas na Judeia. Enquanto contatos com os vizinhos e com a

administração real tornaram os judeus familiarizados com a linguagem grega, e palavras

gregas começavam a encontrar seu caminho no hebraico, duvida-se se havia muitos na Judeia

que eram cultos o bastante para ler os clássicos da literatura e filosofia gregas.

1.3 O estado hasmoneu

Perseguição religiosa

Em 167 Antíoco deu um passo decisivo: proibiu a observância da religião judaica na

Judeia e impôs a pena de morte para qualquer judeu que circuncidasse seus filhos ou

observasse o shabat. As autoridades forçaram a população judaica a participar em ritos

pagãos e a comer alimentos proibidos, particularmente porco, e o Templo foi profanado e

rededicado a Zeus Olímpico.

O politeísmo é visto, em geral, como naturalmente tolerante, e é um fato que Antíoco

não recorreu à compulsão religiosa com respeito a outras nações em seu reino. O próprio

Antíoco era inclinado ao culto de Zeus Olímpico, como evidenciam as moedas que cunhou;

mas não há base para assumir que esse apego o induzia a humilhar outros cultos, com a

exceção da religião judaica, que perseguiu impiedosamente. Aparentemente, a tensão

duradoura na Judeia fez o rei compreender que a religião judaica, com seu monoteísmo

militante, estava por trás da resistência teimosa dos judeus às inovações que ele queria

introduzir no país, e que esta resistência punha em risco a segurança de sua fronteira sul.

A política que ele escolheu parecia muito praticável, pois podia contar com a plena

cooperação dos helenistas extremados entre os judeus e, em primeiro lugar, com a de seu

líder, Menelau. Aparentemente, falhou em compreender quão fina era essa crosta superior,

pois sua cooperação voluntária o levou a assumir que toda a classe alta dos judeus iria apoiá-

lo contra os elementos hostis ao seu governo, e que estes recebiam seu apoio principal das

classes baixas. Na verdade, Menelau e seus seguidores não tinham ponto de apoio real entre o

povo judaico. Este grupo seguiu Antíoco até ele ser varrido completamente pela poderosa

corrente de acontecimentos; após a revolta dos hasmoneus não sobrou traço deles entre a

nação judaica. Contrariando as expectativas do rei, a grande maioria da nação judaica

permaneceu leal à religião, e em todos os níveis sociais havia gente pronta a dar sua vida pela

18

causa da fé ancestral. Mesmo em épocas anteriores os judeus tinham provado que não

hesitariam em sacrificar suas vidas quando a religião o ordenasse, mas agora, pela primeira

vez na história humana, o mundo testemunhou um espetáculo de martírio coletivo.

Como iria acontecer tão seguidamente no futuro, o martírio era acompanhado por

anseios escatológicos elevados. Havia uma crença crescente de que se aproximava uma época

de retribuição divina, que iria trazer com ela a queda do reino do mal, e assim se realizaria a

profecia do “fim dos dias”.

A revolta: a conquista de Jerusalém e a purificação do Templo

O primeiro choque entre os hasmoneus e as forças do rei ocorreu quando este veio a

Modi’in para forçar a população local a tomar parte em um sacrifício pagão. Matatias, o chefe

da família dos hasmoneus, reagiu com a maior determinação:

Matatias respondeu-lhes: Ainda mesmo que todas as nações que se acham no

reino do rei o escutassem, de modo que todos renegassem a fé de seus pais e

aquiescessem às suas ordens, eu, meus filhos e meus irmãos perseveraremos

na Aliança concluída por nossos antepassados. Que Deus nos preserve de

abandonar a lei e os mandamentos! (1 Macabeus 2,19-21)

Um dos judeus que obedeceu à ordem real e se aproximou do altar pagão que tinha

sido construído em Modi’in para o sacrifício foi assassinado por Matatias.

Depois deste incidente, Matatias e seus filhos não podiam continuar em Modi’in. Eles

e seus seguidores foram para as colinas, onde a eles se juntaram muitos que compartilhavam

suas opiniões. Logo Matatias se tornou o líder reconhecido de toda a comunidade dos

hassidim e foi fundamental na adoção de várias decisões importantes. Talvez a mais

importante destas fosse a que permitiu aos judeus empunharem armas mesmo no shabat para

repelir ataques. Nos dias de Matatias os insurgentes ainda relutavam em travar guerra aberta

contra os exércitos do rei e limitavam-se a operações de guerrilha. As atividades de Matatias

se orientavam a consolidar a organização dos bandos insurgentes, a minar a autoridade do

governo estrangeiro nas aldeias e cidades do interior e a liquidar os judeus que colaboravam

com os sírios na implementação de sua política religiosa. Como resultado destas operações, a

área da Judeia sob controle selêucida foi gradualmente reduzida, e Jerusalém, com sua

citadela e guarnição, foi, para todos os efeitos, isolada das bases militares e de outros centros

administrativos.

19

Após a morte de Matatias, a liderança da revolta passou para seus filhos, entre os quais

Judas, conhecido pelo apelido “Macabeu”, se destacou em razão de seus talentos militares.

Sob o comando de Judas, as atividades dos insurgentes ameaçaram a posição dos selêucidas

na própria Jerusalém e foi necessário tomar medidas para manter o controle da capital. A

ordem de quebrar a força militar judaica e reestabelecer contato com a guarnição de Jerusalém

foi dada por Apolônio, o governador de Samaria. Sua tentativa de irromper em Jerusalém a

partir do norte falhou miseravelmente; ele mesmo caiu em um combate que resultou na

primeira vitória de Judas sobre as forças regulares de Antíoco. O que Apolônio falhou em

obter, outro general selêucida, Seron, tentou consertar; Mas Judas infligiu uma derrota

decisiva a Seron também, nas encostas de Beth-Horon. Após essas duas vitórias, ficou

evidente que Judas comandava uma força que devia ser levada em conta, muito forte para ser

derrotada por comandantes locais. Ptolomeu, governador de Coele-Síria e Fenícia, designou

um poderoso exército para a Judeia sob o comando de dois de seus principais oficiais, Górgias

e Nicanor. O plano era se aproximar de Jerusalém a partir do oeste, através de Emaús. Uma

vitória selêucida parecia absolutamente certa, tanto que os mercadores de escravos seguiram

na esteira das forças invasoras, na esperança de poderem comprar cativos judeus por uma

bagatela. A atmosfera de luta por uma causa sagrada que predominava no acampamento,

inspirada por memórias de antigas tradições e instituições bem como pelos perigos do

presente, foi descrita de forma pungente pelo autor de 1 Macabeus:

Os israelitas se ajuntaram, pois, e se dirigiram a Masfa, defronte de

Jerusalém, porque tinham tido outrora, em Masfa, um lugar de oração.

Jejuaram aquele dia, vestiram-se com sacos, cobriram a cabeça com cinzas e

rasgaram suas vestes. ... trouxeram os ornamentos sacerdotais, as primícias e

os dízimos e mandaram vir os nazarenos que haviam cumprido o tempo de

seu voto; em seguida, sua voz se elevou com força ao céu: Que havemos nós

de fazer destas ofertas e para onde vamos nós levá-las? Vosso santuário está

profanado e manchado, vossos sacerdotes estão em luto e na humilhação, as

nações se coligaram para nos aniquilar e vós sabeis o que elas tramam contra

nós. Como resistir diante deles, se Vós não vierdes em nosso auxílio? Então

eles soaram a trombeta e fizeram um grande clamor. (1 Macabeus 3:46 ss)

Em uma ousada marcha para o sudoeste contra o acampamento de Emaús, Judas

pegou seus inimigos de surpresa e obteve uma de suas mais brilhantes vitórias.

Após essa vitória, Lísias, lugar-tenente de Antíoco na área cis-eufratiana do reino,

compreendeu que as condições na Palestina estavam deteriorando e poderiam ameaçar

seriamente a paz em todo o reino. Determinado a liderar a campanha contra a Judeia

20

pessoalmente, reuniu uma grande força e decidiu se aproximar da Judeia pelo sul, pelas terras

dos idumeus, que eram hostis aos judeus. Em uma batalha próxima a Beth-zur, na fronteira

entre Judeia e Idumeia, a fortuna da guerra mais uma vez favoreceu os judeus, e a quarta e

mais ameaçadora tentativa de suprimir a revolta foi, como as outras, derrotada.

Judas Macabeu, agora comandante de um exército embalado por vitórias, preparou-se

para tomar a própria Jerusalém. Mesmo aqueles judeus que tinham permanecido leais à

dinastia selêucida ao longo da guerra, incluindo o próprio Menelau, estavam agora prontos

para um compromisso. Lísias não teve alternativa a apaziguar os judeus. Por decisão sua, foi

emitido um decreto para a Gerusia judaica, garantindo perdão gratuito para todo judeu que

retornasse a seu local de residência em uma determinada data e proclamando liberdade de

religião para todos os judeus. No entanto, a implementação do decreto foi confiada ao Sumo

Sacerdote Menelau, em desrespeito a Judas Macabeu e seus homens. Como outro gesto de

conciliação, Ptolomeu, filho de Dorímenes, foi deposto do cargo de governador e substituído

por Ptolomeu Macron, cuja atitude para com os judeus era de compromisso.

Judas não se deixou impressionar por essas concessões e decidiu usar sua vantagem

militar temporária para ganhar controle sobre Jerusalém. Fez isso no mês de Kislev

(dezembro) de 164. A conquista de Jerusalém representou o sucesso completo da revolta. O

Templo foi purificado, o culto pagão abolido e o serviço do Templo confiado aos sacerdotes

do campo hasmoneu. Em memória da purificação do Templo, foi instituído o festival anual de

Hanucah.

Desenvolvimento constitucional no reino hasmoneu

O desenvolvimento constitucional da Judeia hasmoneana baseou-se no decreto da

Grande Assembleia de 140 a.e.c., que também proveu a autoridade legal para o status dos

hasmoneus como governantes do estado judeu. O vínculo entre a família dos hasmoneus e o

cargo de Sumo Sacerdote era uma consequência natural da situação que havia entrado em

vigor sob o governo persa, quando o Sumo Sacerdócio tornou-se o primeiro cargo da nação e

visto como expressão de sua autonomia. Se os hasmoneus tivessem abandonado o Sumo

Sacerdócio e permitido que caísse em outras mãos, seu poder político teria sido minado e seus

outros cargos esvaziados de toda substância real, pois o povo estava acostumado a ver o Sumo

Sacerdote como seu líder supremo.

Nas relações exteriores, a posição dos governantes hasmoneus inicialmente se refletiu

no título de etnarca. Simão já tinha recebido esse título, e João Hircano o usou até o final de

21

seus dias. Só ocorreu mudança importante sob Judas Aristóbulo I (104-103), que não se

contentou com o título de etnarca e assumiu as pompas da realeza. Com relação a seus súditos

judeus, no entanto, os hasmoneus eram, de fato, cuidadosos em não atrair muita atenção para

seu novo título; para os judeus, eles continuavam, principalmente, Sumo Sacerdotes. Somente

Alexandre Ianai, durante parte de seu reino, desprezou os sentimentos daqueles círculos

judaicos que consideravam o reinado dos hasmoneus como contrário à tradição judaica. Em

algumas das moedas de Ianai está inscrito “Jonatan o rei”.

Por mais forte que sua posição tenha se tornado, os governantes hasmoneus, com a

possível exceção de Alexandre Ianai, nunca se viram como monarcas absolutos nem

excluíram o povo dos negócios governamentais. Em assuntos domésticos, pelo menos, sempre

se esforçaram para enfatizar que todo o povo partilhava a soberania com o regente. Exemplos

claros podem ser encontrados na cunhagem de moedas pelos diferentes governantes (“Judas, o

Sumo Sacerdote, e a comunidade dos judeus”, “Jonatan, o Sumo Sacerdote, e a comunidade

dos judeus”).

Mudança social e a ascensão dos sábios

O desenvolvimento da família dos hasmoneus em dinastia governante e do sistema de

governo em uma monarquia foi acompanhado por mudanças substanciais na estrutura da

sociedade judaica. Essencialmente, os hasmoneus eram uma respeitável família sacerdotal, e

em sua subida levaram junto famílias aliadas para os níveis sociais mais altos. Ao mesmo

tempo, outras pessoas e famílias, principalmente as que tinham sido próximas a Menelau e

aos tobíadas, desapareceram do cenário político. No entanto, uma das características dos

desenvolvimentos sociais durante a revolta foi a cooperação entre os hasmoneus e uma parte

considerável da classe alta judaica, que tinha rejeitado as conclusões extremas a que Menelau

e seu partido tinham chegado, com relação ao modo de vida helênico.

Sabemos pouco a respeito dos desenvolvimentos sociais durante a ascensão dos

hasmoneus, mas o pouco que se conhece indica algumas tendências importantes. (1) Durante

o período que precedeu a revolta, quando mesmo as famílias mais poderosas, como a dos

Sumo Sacerdotes ou os tobíadas, não passavam de primi inter pares, havia uma boa dose de

variedade dentro da liderança; enquanto que sob o governo dos hasmoneus, a família real

ofuscava todas as outras famílias. Enquanto a família governante, como vimos, trouxe outras

famílias em seu rumo, os hasmoneus e membros de casas relacionadas ocupavam todos os

cargos militares e administrativos. (2) Como os hasmoneus eram sacerdotes, é evidente que a

22

hegemonia das famílias sacerdotais continuava a ser uma característica dominante da estrutura

social judaica. (3) A política iniciada por Simão de estabelecer laços estreitos com elementos

influentes fora da própria Judeia era fielmente seguida por seus sucessores. Particularmente

importantes, em vista das consequências posteriores, eram as relações que os hasmoneus

estabeleceram com uma das principais famílias da Idumeia, a casa de Antipas. O próprio

Antipas foi nomeado governador da Idumeia, após sua conquista pelos hasmoneus; seu filho

Antipater ganhou uma posição ainda mais central na sociedade judaica; enquanto que o neto

de Antipas foi Herodes, o homem que eliminou a família dos hasmoneus e fundou uma nova

dinastia em seu lugar. (4) O aspecto mais interessante do desenvolvimento social da nação

judaica durante estes tempos foi, sem dúvida, a ascensão dos hahamim ou sábios como um

grupo influente e prestigioso.

O estudo da Torá e o desenvolvimento da halahah, que determinou os padrões da vida

cotidiana – religião, cerimonial, justiça e governo – na Judeia hasmoneia, atraiu o creme dos

elementos intelectuais e espirituais da nação, que devotavam suas vidas a essa atividade.

Mesmo na geração anterior à revolta, o estudo da Torá e a formação da vida espiritual da

nação tinham, na prática, deixado de ser um assunto exclusivo dos sacerdotes e se tornado a

preocupação de homens que não pertenciam à casta sacerdotal. Quem quisesse e estivesse em

condições poderia obter o status de erudito da Torá. Enquanto o número de sacerdotes entre

os sábios continuava a ser considerável, mesmo nas gerações seguintes, havia muitos

proeminentes no campo originários de diferentes seções da população judaica na Palestina e

de fora. Mesmo descendentes de conversos podiam ser encontrados entre os mais respeitados

hahamim. “Discípulo de Aarão” tornou-se um título mais honorífico do que “filho de Aarão”.

Os grandes sábios da era dos hasmoneus eram professores que reuniam círculos de

estudantes e discípulos ao seu redor. Alguns deles ensinavam no Templo, mas acredita-se que

já naqueles dias existiam batei midrash (“casas de estudo”) encabeçadas por sábios que, além

de desempenharem um papel importante no desenvolvimento da halahah e da lei, apareciam à

nação como figuras elevadas, rodeadas por uma aura de santidade e pureza moral. Seus

ensinamentos éticos não eram menos aceitos do que suas decisões haláhicas. Alguns deles

obtinham um magro sustento de trabalho físico; outros eram membros do Sanhedrin e

influenciavam a vida política. Em geral, se envolviam nas atividades cotidianas e iniciavam

decisões que governavam uma ampla gama de assuntos, de acordo com as necessidades do

momento. Fossem ou não oficialmente sancionadas pelo Sanhedrin e pelos órgãos do estado –

em épocas em que os hahamin tinham voz decisiva nestas instituições – essas decisões eram

23

aceitas como obrigatórias e ganhavam curso em toda a nação, em virtude da reputação dos

sábios que as tinham instituído.

Sabemos de grandes sábios que viveram e trabalharam durante os séculos II e I, até a

época de Hillel o ancião. A mais famosa dessas figuras foi Simão ben Shetah, cuja atividade

se estendeu através do governo tumultuado de Alexandre Ianai e os dias da rainha Alexandra.

Ele foi o autor das diretrizes que obrigaram um esposo a ser responsável até o valor de todo

seu patrimônio pelo preenchimento do contrato matrimonial com sua esposa e prescreveram

que as crianças deviam frequentar a escola.

Correntes religiosas

Os hahamim eram o espírito que movia a mais importante corrente religiosa da época

do Segundo Templo – os fariseus, que deixaram sua marca em todo o desenvolvimento

interno da Judeia e estabeleceram os fundamentos do judaísmo como viria a ser após a

destruição do Templo. Basicamente, levaram avante uma tendência que teve suas origens na

época persa e englobou as atividades dos soferim e intérpretes da Torá nos dias de Esdras e

seguintes.

O princípio básico dos fariseus era a fé inabalável na Torá e sua infusão em todos os

aspectos da vida. A Torá à qual eles se referiam diferia consideravelmente do texto das

Escrituras, pois incorporava também toda a tradição viva da halahah, tal como tinha evoluído

ao longo de gerações, baseada na hipótese de que a Torá devia ser capaz de fornecer resposta

a qualquer questão que surgisse na vida real. Esta “Torá oral”, que era a tradição farisaica

atingida pela interpretação da Torá escrita – com resultados que, em face disso, muitas vezes

pareciam contrários à leitura simples do texto escrito – englobava todos os aspectos de

religião, ritual, lei e ordem social. No campo legal, a tendência farisaica era de humanizar a

lei penal; em teologia, os fariseus ocupavam o que pode ser visto como o terreno médio entre

as crenças determinísticas sustentadas, por exemplo, pelos essênios, e a doutrina do livre-

arbítrio. Eles acreditavam na imortalidade da alma e na recompensa e punição individual após

a morte, e partilhavam as crenças escatológicas do povo. Sua atividade espiritual e social era o

que preservava a religião judaica naqueles dias como uma fé vital, ativa.

A influência farisaica foi muito além dos aderentes diretos da seita. Seus seguidores

incluíam o grosso da nação, que viam os fariseus como seus líderes naturais, e a halahah

farisaica como a expressão visível da religião judaica. Seus principais oponentes durante a

existência do estado hasmoneu eram os saduceus. Em termos de religião, os saduceus eram,

24

essencialmente, o elemento conservador. Admitiam como santa somente a Torá escrita e não

concediam aos hahamim farisaicos autoridade para proclamar suas interpretações auto-

inspiradas como Torá oral e como fonte de leis equivalentes à Torá escrita. Em muitos

assuntos relacionados com o serviço do Templo, com assuntos legais e com o dia-a-dia, eles

diferiam dos fariseus. Em questões de fé e filosofia, acreditavam no livre-arbítrio e rejeitavam

muitas das crenças populares de sua época, como a ressurreição dos mortos e as importantes

funções dos anjos. Socialmente, formavam o estrato superior da comunidade judaica. Mesmo

seu nome, zedukim, aparentemente derivava de seu nexo com o sacerdócio e os zadokitas. “Os

saduceus têm seu suporte somente entre os ricos, e o povo não os segue, enquanto os fariseus

têm o povo como seu aliado” (Josefo, Antiguidades Judaicas, 13.298).

A vida religiosa, nos tempos do reino hasmoneu, era rica em sua variedade. Seria

errado supor que somente a controvérsia entre fariseus e saduceus refletia o inteiro complexo

de tendências e sub-tendências que deram expressão à fervente vida espiritual da época. Entre

outras seitas, devem-se mencionar os essênios, cuja organização coesa, santidade na vida

diária, crença na inspiração profética de seus caminhos e outras qualidades semelhantes

caracterizavam sua posição na sociedade judaica. No entanto, a batalha pela alma da nação e o

caráter do reino foi, primariamente, travada entre os fariseus e os saduceus.

1.4 A Judeia sob domínio romano

A dominação romana

Durante os últimos sessenta anos antes da destruição do Templo, a grande maioria dos

judeus da Palestina esteve sujeita à administração de governadores romanos, com uma única e

breve interrupção, quando o governo do país foi confiado ao rei judeu Agripa (41-4 e.c.).

Quando Arquelau foi deposto da etnarquia em 6 e.c., a própria Judeia, a Samaria e a Idumeia

foram convertidas em província romana sob o nome de Iudaea. A Galileia e as partes do reino

de Herodes na Transjordânia continuaram com os estados vassalos dos filhos de Herodes,

Herodes Antipas e Filipe.

A renúncia de Augusto à Palestina foi o resultado de uma decisão refletida, pois após

Arquelau ter sido exilado ele poderia, em teoria, ter escolhido outro governador entre os

familiares de Herodes. Na prática, no entanto, esta opção não estava aberta, por falta de um

candidato adequado e também porque uma parte muito grande da população judaica se

25

opunha fortemente à dinastia herodiana. Alternativamente, poderia ter anexado o país à Síria,

mas havia considerações de peso contra essa ação – primariamente, a natureza particular da

população judaica, com sua história e religião, que eram completamente diferentes das da

Síria. Enquanto o Império perdurou, os imperadores romanos nunca esqueceram este fato, e

não integraram completamente a Palestina à Síria. Augusto escolheu transformá-la em uma

unidade provincial de direito próprio. De acordo com seu sistema de organização, as

províncias que não requeriam grandes forças militares eram, em geral, confiadas à

administração direta do Senado. Aquelas em que estacionavam grande número de legionários

(p.ex., Síria) eram administradas por governadores nomeados pelo imperador, de nível

senatorial. Mas existiam também províncias para as quais os imperadores costumavam

nomear homens de nível equestre. Como Augusto, a princípio, não via qualquer necessidade

de enviar legiões para a Judeia, pois pensava que uma guarnição de auxiliares seria suficiente

para assegurar a segurança interna e suprimir possíveis desordens, não havia porque enviar

uma personalidade importante, de nível senatorial; um cavaleiro seria suficiente.

Temos alguma informação sobre os antecedentes de vários governadores da Judeia.

Tibério Augusto era judeu de origem, mas tinha abandonado a religião de seus ancestrais.

Felix era um liberto grego; Florus era grego de uma das cidades da Ásia Menor. Assim, pelo

menos três dos últimos sete governadores não eram nem romanos nem de origem italiana, mas

vieram do leste helenístico. E era muito natural que os governadores de origem grega

simpatizassem com a população urbana helenizada.

Quando a Judeia foi convertida em província romana, Jerusalém deixou de ser a

capital administrativa do país. Os romanos moveram a residência governamental e os

quartéis-generais para Cesareia. A administração tornou-se cada vez mais baseada em

habitantes das cidades helenizadas (Sebaste, Cesareia e outras). Mas Jerusalém, a mais

populosa cidade da província e foco de tumultos, choques e turbulência em geral, era

frequentemente visitada pelo governador.

A era republicana tardia é vista, em geral, como uma época em que os romanos

oprimiam suas províncias, e muito se fala da melhoria das condições sob o principado. De

fato, essa melhoria era limitada. O grau de poder e autoridade concentrado na pessoa do

governador era tal que o controle à distância não era fácil. Além disso, não era possível levar

um homem para ser julgado em Roma se ele tivesse um cargo governamental. Mesmo que

fosse possível se queixar em Roma contra o governador, era muito duvidoso que esta ação

fosse eficaz, já que o governador costumava ter conexões e influência em Roma; assim, teria

sido necessário alistar uma quantidade considerável de interesses contra ele na corte para

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obter sucesso. A única consideração capaz de restringir um governador era o medo de que

suas ações poderiam levar seus súditos à revolta, com tudo o que isso implicava. Além disso,

o governador sempre tinha que levar em conta a possibilidade de que poderia ser julgado após

completar seu mandato. Mesmo governadores ásperos às vezes buscavam apaziguar o povo

antes de deixar a Judeia.

Também era frequente a intervenção em assuntos da Judeia pelo governador da Síria.

As tropas auxiliares estacionadas na Judeia eram obviamente insuficientes para acabar com

insurreições sérias, e o governador da Judeia era, na prática, dependente da assistência que lhe

era prestada pelo governador da Síria. Este não era um governador provincial comum, mas o

mais respeitado entre todos os representantes imperiais, o comandante-em-chefe de todo o

leste romano, e a pessoa responsável pela fronteira parta. Consequentemente, a província da

Judeia pode ser vista como um satélite da Síria.

As forças armadas do Império Romano se baseavam em dois componentes principais:

as legiões e os contingentes auxiliares. As legiões eram formadas por cidadãos romanos; os

auxiliares (com exceção dos oficiais) eram recrutas que não eram cidadãos romanos no

momento em que eram alistados, mas recebiam a cidadania quando dispensados. A guarnição

da Judeia consistia de contingentes auxiliares que tinham sido recrutados, principalmente,

entre o povo de Sebaste e Cesareia, e tinham sua base principal na capital provincial,

Cesareia; mas um regimento de infantaria ficava, normalmente, estacionado em Jerusalém.

Sua principal tarefa era preservar a ordem durante os Grandes Festivais, que eram uma fonte

inexaurível de atrito entre judeus e autoridades romanas. A Grande Revolta e, após ela, a

revolta de Bar Kohbah, conscientizaram o governo romano dos perigos apresentados pela

inquietação na Judeia e levaram à conclusão de que era necessário estacionar legiões também

na Judeia.

Como todas as outras províncias, a Judeia devia pagar tributos a Roma. Esta não era a

primeira vez, pois anteriormente Pompeu tinha imposto um tributo após tomar Jerusalém; no

entanto, após o estabelecimento nos dias de Hircano II e Herodes, não houve mais contato

direto entre as autoridades romanas e os contribuintes judeus. Quando foi criada a província

da Judeia, tornou-se necessário organizar a coleta de impostos de acordo com a nova situação.

O sistema impositivo romano era baseado em um recenseamento geral de toda a população,

envolvendo declarações detalhadas de status pessoal e patrimonial de cada indivíduo. Essas

declarações eram conferidas de tempos em tempos, em pesquisas conduzidas por conta da

administração.

27

Sob os governadores romanos, o elemento básico do sistema impositivo continuava a

ser impostos incidentes sobre a terra. Em adição, havia uma espécie de taxa eleitoral, se bem

que estas, de forma alguma, completavam a lista. Ouvimos, por exemplo, de uma taxa

residencial que os habitantes de Jerusalém deviam pagar, da qual Agripa I os isentou. Para a

coleta dos impostos diretos, as autoridades romanas não utilizavam coletores de impostos,

mas recorriam às instituições governamentais locais. Além dos vários impostos, o povo se

aborrecia também pelas muitas tarifas aduaneiras que eram cobradas nas fronteiras e portos da

província e mesmo dentro do país. Eram cobradas taxas particularmente pesadas sobre

perfumes importados da Arábia, para os quais o principal ponto de trânsito de caravanas era

Petra. Outras importantes estações alfandegárias foram estabelecidas em Gaza e outros portos

marítimos (Cesareia e Jafa). Sabemos também de coletores de impostos em diferentes partes

do próprio país. Ouvimos de um chefe de coletores de impostos chamado Zakai, estacionado

em Jericó. Dos Evangelhos, sabemos também de agentes alfandegários em Capernaum.

Aparentemente, as atividades destes agentes não se restringiam especificamente a impostos

alfandegários, mas incluíam outras receitas governamentais. Como podiam aproveitar-se da

ajuda dos militares, estavam capacitados a agir por conta própria. Muitos deles ficaram ricos,

e alguns, como o publicano João de Cesareia, chegaram a atingir altas posições na sociedade.

Mas a atitude geral da população judaica em relação a eles era hostil e desafiadora, e eram

vistos como criminosos virtuais.

Como as necessidades do governo provincial eram muitas, o interesse dos

governadores era de extrair do povo tanto dinheiro quanto possível. Um dos medos que

atormentava os chefes da comunidade era que o governador pudesse roubar o tesouro do

Templo; e, de fato, Florus, o último governador antes da revolta, retirou 17 talentos do

tesouro do Templo a pretexto de que o dinheiro era necessário para atender às necessidades do

imperador. O governo romano também se beneficiava de receitas consideráveis das

propriedades privadas da casa imperial na Palestina, que tinham sido herdadas dos

governantes herodianos. Elas incluíam, entre outras, Iavneh e os bosques de bálsamo

próximos a Jericó. Além de taxas e impostos, havia contribuições na forma de trabalho

forçado, pois as autoridades costumavam capturar homens e animais para suprir as

necessidades do governo.

Uma das marcas do governo provincial era que a jurisdição criminal era atribuída ao

governador. A visão geral dos círculos governantes romanos era que as cortes locais eram, em

princípio, impróprias para julgar casos criminais e certamente não podiam receber o poder de

vida e morte. A justificativa oficial para deixar a jurisdição criminal nas mãos do governador

28

era a preocupação com a segurança pública, expressão que podia ser interpretada tão

amplamente quanto a situação demandasse. Algumas vezes, não passavam sentença eles

mesmos, mas enviavam réus para Roma, para julgamento ante o imperador. Os residentes da

Judeia que eram cidadãos romanos formavam uma categoria em separado e desfrutavam de

privilégios especiais. Eles provavelmente tinham a escolha, em casos capitais, de enfrentar

julgamento na província, ante o governador, ou serem enviados para Roma, para serem

julgados pelo imperador.

Autogoverno judaico

O governo romano deixou às instituições judaicas locais uma grande dose de

autonomia. Elas eram responsáveis pela manutenção da lei e da ordem, pela cobrança de

impostos diretos e pela supervisão da população judaica. A mais respeitada das instituições

judaicas era o Sanhedrin, o Grande Tribunal, que tinha sua sede no Monte do Templo e era a

mais alta autoridade legal e religiosa da nação judaica. Na esfera da administração, os poderes

do Sanhedrin eram confinados à própria Judeia, mas, em assuntos de religião e de

regulamentos religiosos, sua autoridade se estendia para muito além das fronteiras do país.

As tarefas do Sanhedrin eram, assim, muito variadas. Funcionava como a mais alta

autoridade em assuntos de religião e cerimônial, decretava regras religiosas e legais e

controlava a vida religiosa dentro e fora da Palestina. Tinha a seu cargo a supervisão do

serviço do Templo e o manejo de assuntos específicos das castas sacerdotais e levíticas, e

tinha autoridade para proclamar a lua nova e o ano bissexto.

Aparentemente, as autoridades romanas eram incapazes de lidar com o grande volume

de processos que requeriam decisões rápidas e, na prática, os deixavam para as autoridades

judaicas locais, que continuavam a exercer jurisdição civil. Uma coisa é certa: a jurisdição

sobre casos de pena capital foi retirada das instituições judaicas. Encontra-se evidência

explicita na literatura talmúdica: “Mais de quarenta anos antes da destruição do Templo, casos

de pena capital foram removidos [da autoridade do Beth Din]” (Talmud de Jerusalém,

Sanhedrin I 18a); e o comentário talmúdico é confirmado pelo Evangelho de João (18:31): “A

nós não nos é lícito matar ninguém”. Não obstante, às vezes temos a impressão de que os

judeus costumavam julgar casos de pena capital. Um estudo comparativo das fontes conduz às

seguintes conclusões: (1) em princípio, a jurisdição criminal fora, de fato, transferida das

instituições judaicas para a administração romana; (2) no caso de ofensas envolvendo

diretamente profanação do Templo, o Sanhedrin estava autorizado a emitir sentenças de

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morte, ainda que mesmo aqui houvesse uma medida de supervisão por representantes da

administração romana; (3) o grau de supervisão podia mudar de acordo com as circunstâncias:

sob um governador como Pilatos, era mais estrito do que sob governadores menos agressivos,

e, quando as circunstâncias eram favoráveis, os judeus podiam dar uma interpretação mais

ampla para seus poderes residuais de jurisdição sobre penas capitais, incluindo ofensas

religiosas relacionadas só indiretamente com o Templo; (4) mesmo em assuntos que não

tinham nenhuma relação com o Templo ou seu culto, as autoridades romanas, às vezes,

autorizavam o Sanhedrin e o Sumo Sacerdote a julgarem casos de pena capital.

O Sanhedrin era composto por setenta (ou setenta e um) membros. Incluía sacerdotes,

levitas e plebeus. Os sacerdotes, particularmente o círculo do Sumo Sacerdote, formavam um

grupo coerente. Ao lado deles, há menção a anciãos e escribas (soferim), o termo escribas

aqui significando hahamim ou representantes dos fariseus. Estes também formavam um grupo

consolidado, que se tornou cada vez mais importante e influente através do apoio

incondicional que recebia do povo. Os chefes dos sacerdotes, que faziam parte dos saduceus,

raramente se atreviam a tomar decisões contra os desejos expressos dos hahamim.

Condizente com suas funções nacionais, o Sanhedrin incluía não só residentes de

Jerusalém, mas também habitantes das cidades do interior da Judeia. Se o Sumo Sacerdote

estivesse presente, ele presidia a sessão. O grupo fariseu mantinha sua liderança separada.

Esta era confiada aos grandes homens da casa de Hillel, Rabban Gamaliel, o velho, e seu

filho, Rabban Simão. Uma das funções exercidas pelo Sanhedrin era o de conselho municipal

de Jerusalém.

Em contraste com Jerusalém, que em sua organização e instituições guardava pouca

semelhança com uma polis e continuava a se desenvolver, na maioria dos aspectos, de acordo

com a tradição judaica, Tiberíades era um exemplo de cidade com maioria judaica absoluta

que, desde o início, foi construída e organizada no padrão grego da polis. Na chefia do

executivo da cidade ficava um archon, e o controle da vida econômica era confiado a um

agoranomos. A cidade dispunha também de um grande estádio.

O Templo e a oligarquia judaica

Após sua renovação por Herodes, o Templo de Jerusalém competia com sucesso em

esplendor com outros famosos centros de culto. Era o centro para os judeus de todo o país;

sacerdotes de todas as partes do país vinham em multidão para servir na divisão sacerdotal

(“turno”) à qual pertenciam. As massas judeanas faziam peregrinações, principalmente nos

30

Grandes Festivais, e a elas se juntavam muitas outras que vinham da diáspora. Os homens não

subiam a Jerusalém sozinhos, mas levavam com eles suas esposas e filhos. Philo de

Alexandria descreve este movimento em massa de judeus para o Templo em termos que

refletem seu orgulho e alegria:

Multidões incontáveis de cidades incontáveis vêm, alguns por terra, outros

por mar, do leste e do oeste e do sul e do norte, em cada festa. Eles tomam o

Templo como seu porto, um paraíso geral e refúgio seguro da agitação e

grande tumulto da vida, e lá eles buscam encontrar tempo calmo e, liberados

dos cuidados cujo jugo tem pesado sobre eles desde seus primeiros anos,

para desfrutar de um breve respiro em cenas de grande alegria.

Esta reunião das massas fornecia um contexto adequado para interação entre diferentes

círculos de várias partes do país bem como da diáspora, que assim tinham uma oportunidade

de aprender e trocar novas ideias. Por isso, as peregrinações nos Grandes Festivais eram

notórias como ocasiões de agitação, revolta e tumultos.

O Templo era a sede do Sanhedrin e um centro para a propagação do ensino. Alguns

dos maiores hahamim, como o Rabban Simão ben Gamliel e o Rabban Johanan ben Zakai,

ensinaram do Templo. Também Jesus pregou seu Evangelho no Templo.

As despesas geradas pelos sacrifícios públicos, os custos de manutenção do Templo e

todos os outros desembolsos financeiros eram suportados pelo tesouro do Templo, que era

abastecido por fundos enviados de toda a Palestina e da diáspora. A receita recebida em

pagamento do meio shekel e de outras contribuições tornava possível usar o tesouro do

Templo para as necessidades municipais de Jerusalém; o tesouro do Templo era, de fato, uma

fonte de solidez financeira para toda a nação. A administração dos assuntos do Templo era

confiada ao Sumo Sacerdote e aos chefes do sacerdócio, supervisionados pelos governadores

romanos. Até o reinado de Herodes, o cargo de Sumo Sacerdote tinha sido atribuído dentro da

mesma família, de pai para filho. Sob Herodes, essa prática mudou. Desde então, a designação

era limitada a um mandato específico. Às vezes, um Sumo Sacerdote ficava no cargo durante

anos, como nos casos de Joseph Caifás (dezoito anos, de 18 até 36) e Hananiah ben Nedebai

(doze anos, de 47 a 59); em outros casos, o mandato foi reduzido a um ano ou mesmo a

apenas alguns meses. Somente os zelotes da Grande Revolta se afastaram desses costumes e

mudaram o sistema completamente.

Uma das casas mais destacadas dentro da oligarquia sacerdotal era a família de

Boethos, que ascendeu à grandeza sob Herodes e deixou sua marca nos assuntos domésticos

por várias gerações. Seus interesses eram entrelaçados com os dos herodianos. Como muitas

das grandes famílias da época, a casa de Boethos não era de origem palestina, mas veio da

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diáspora – de Alexandria, no Egito –, e vários de seus membros se tornaram, mais tarde,

Sumo Sacerdotes. Sua principal rival era a casa de Hanan, que produziu alguns dos mais

importantes estadistas e personalidades da Judeia nas últimas décadas antes da Grande

Revolta. Destacados entre eles eram Jonathan ben Hanan e Hanan ben Hanan. O último era

um saduceu militante e líder reconhecido das classes altas judaica durante a revolta. A

grandeza da terceira família sacerdotal, a casa de Phiabi, que também parece ter vindo do

Egito, se reflete no fato de que forneceu três Sumo Sacerdotes: o primeiro, Joshua ben Phiabi,

exerceu o cargo sob o próprio Herodes; o segundo, Ishmael ben Phiabi I, funcionou como

Sumo Sacerdote sob os primeiros governadores romanos; o terceiro, Ishmael ben Phiabi II, foi

nomeado por Agripa II.

As seitas

As principais tendências religiosas da época dos hasmoneus continuaram em sua

viabilidade e influência sobre a comunidade judaica. Os saduceus continuaram fieis a suas

ideias e conceitos religiosos; em termos sociais, representavam um círculo restrito dentro da

classe alta. A nova oligarquia sacerdotal que tinha se desenvolvido sob Herodes e os

governadores romanos era essencialmente saduceia. Algumas alusões ao pensamento social

dos saduceus foram preservadas: eles se orgulhavam de seu modo de vida e crenças e

zombavam da abstinência de seus adversários. Diziam que eles “usaram placas de prata e ouro

em suas vidas inteiras; não porque fossem aparatosos, mas com base no dito saduceu: ‘Os

fariseus têm a tradição de afligir-se neste mundo; no entanto, no mundo vindouro eles não

terão nada’”. Por causa da influência decisiva de seus oponentes fariseus (“Seu poder entre as

massas era tão grande que sua palavra era lei mesmo que eles falassem contra o rei ou contra

o Sumo Sacerdote” [Josefo, Antiguidades Judaicas 13.288]), os saduceus não tinham escolha,

mesmo enquanto detinham os mais altos cargos, a não ser fazer muitas concessões à opinião

farisaica. Somente em raras ocasiões tentavam impor suas próprias visões em várias áreas da

vida pública e do cerimonial religioso. Particularmente ousado, neste aspecto, foi o Sumo

Sacerdote Hanan ben Hanan, que no ano 62 estabeleceu um Sanhedrin que julgava casos de

pena capital com todo o rigor da doutrina saduceia.

O próprio fato de que o farisaísmo se tornou a principal doutrina na comunidade

judaica como um todo criou rupturas em assuntos de importância nacional. Quando se tratava

de religião, o grupo se mantinha unido, as diferenças surgiam em questões políticas e, acima

de tudo, nas relações com as autoridades romanas. De fato, foram os fariseus que deram

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origem ao movimento libertário extremista, se bem que a maioria permaneceu leal à casa de

Hillel, cujos representantes eram reconhecidos por toda a nação como líderes dos fariseus, e

cuja atitude em relação aos romanos era muito mais moderada que a dos zelotes.

Os essênios, cujos começos também remontam à época dos hasmoneus, igualmente

ainda existiam nesta época e estavam ativos no final da era do Segundo Templo. A descrição

deles por Philo de Alexandria nos conta que viviam nas pequenas cidades e aldeias da Judeia,

e não possuíam propriedades privadas. Alguns se ocupavam na agricultura e eram

notavelmente hábeis na semeadura e plantio, enquanto outros eram pastores ou apicultores.

Outros preferiam o artesanato, mas entregavam seus salários para o tesoureiro, e ele iria

comprar o que fosse necessário para as necessidades comuns. De acordo com Philo, os

essênios eram celibatários.

Em Todo homem bom é livre, Philo agrega que os essênios ultrapassavam 4.000 e que

não sacrificavam criaturas vivas. Philo registrou que não acumulavam nem prata nem ouro; de

todos os homens, somente eles, por escolha própria, não possuíam riquezas, nem se ocupavam

da fabricação de armas, e rejeitavam o comércio em todas suas formas. Não havia escravos

entre eles, e nenhum deles possuía casa própria. Não apenas viviam juntos e se organizavam

em comunidades, mas suas casas eram abertas para homens de visões similares. Sua

tesouraria, despesas, vestimentas e refeições eram todos comunais. Cuidavam dos doentes e

dos velhos, e supriam todas suas necessidades.

Uma descrição detalhada dos essênios é fornecida também por Josefo (Bellum

Judaicum 2.119ss.). Ele também enfatiza sua vida completamente comunal. Os sacerdotes,

diz, têm um lugar especial em suas preces e nas bênçãos oferecidas em suas refeições

comunais. A rejeição do casamento era devida não a objeções à vida marital em princípio,

mas sim a seus pontos de vista a respeito da corrupção básica da mulher. Ele acrescenta, no

entanto, que além dos essênios comuns havia outro tipo que se casava, com o objetivo de

propagar a raça humana. Em matéria de teologia, Josefo enfatiza que os essênios acreditavam

na predestinação.

Nem Philo nem Josefo relacionavam os essênios, de qualquer forma, com o Mar

Morto. Esta conexão aparece somente em escritos não-judaicos e é, de fato, o principal

acréscimo a nosso conhecimento dos essênios contribuída por Plínio (um autor grego, Dio

Chrysostomus, também menciona a conexão entre os essênios e o Mar Morto). Em vista do

que Josefo e Philo relatam, seria errado concluir de Plínio que o único estabelecimento

permanente dos essênios era próximo ao Mar Morto. Um de seus maiores e mais importantes

estabelecimentos estava localizado lá, mas viviam também em outros lugares. Em Jerusalém,

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por exemplo, sabemos de uma “Porta dos essênios”. Seu caráter específico e a atmosfera de

santidade que os rodeava deu-lhes um lugar importante na comunidade judaica. Josefo os

colocou em pé de igualdade com os fariseus e saduceus. Seu número também não era

desprezável. Philo exaltava seu pacifismo. Não obstante, alguns deles combateram na Grande

Revolta.

As grandes descobertas feitas em Khirbet Qumran a partir de 1947 revelaram os

estatutos, o modo de vida e a literatura de uma seita que habitou o deserto da Judeia. A

maioria dos estudiosos engajados no estudo dos pergaminhos de Qumran tende a identificar

esta seita com os essênios. Os pontos de vista religiosos e a estrutura social da seita são

marcadamente similares aos dos essênios, tal como os conhecemos de outras fontes literárias,

e as evidências arqueológicas também suportam a identificação. Além dos pergaminhos de

Qumran, temos o “Pacto de Damasco”, descoberto muito antes, que reflete uma das

tendências no desenvolvimento da seita.

Os zelotes

Um dos mais importantes desenvolvimentos na vida judaica no final da era do

Segundo Templo foi a emergência de seitas que concordavam com os pontos de vista do

judaísmo farisaico, mas eram mais extremadas na luta por liberdade política e libertação do

domínio romano. É usual designar estas seitas pelo nome comum de zelotes, apesar de o

termo se referir somente a uma tendência no movimento ativista de libertação.

Josefo conecta os começos do movimento extremista com o censo realizado sob a

supervisão de Quirinus, logo após a Judeia ter sido convertida em província romana (6 e.c.).

Como fundadores do movimento, menciona Judah de Gamala e Zadok o fariseu. Ele também

nomeia o movimento como uma quarta seita judaica, após os fariseus, os saduceus e os

essênios. Seguindo seu hábito de explicar os assuntos em termos compreensíveis por não-

judeus, refere-se ao movimento como uma “filosofia”. De acordo com ele, Judah de Gamala

era um fariseu com seu próprio sistema de pensamento: sua “filosofia” era, em todos os

aspectos, a mesma dos fariseus, mas seus seguidores tinham um amor ilimitado pela

liberdade; somente Deus era seu senhor e mestre, e estavam dispostos a sofrer qualquer

espécie de morte não-natural, juntamente com todos os membros de suas famílias, antes de

reconhecer um mortal como seu mestre. Assim, a característica distintiva do movimento era

que elevava a liberdade ao nível de um dogma religioso de primeira ordem e considerava a

submissão ao domínio do imperador romano como um dos pecados mais sérios, similar a

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sacrilégio. O reino de Deus, em seu sentido literal, devia ser trazido para mais perto pela ação

intencional contra o domínio estrangeiro, e Deus iria ajudar aqueles que realizassem Sua

vontade. As implicações práticas desta filosofia era que servia como um incitamento

permanente à revolta; instilava em seus crentes uma prontidão a dispor da própria vida pelo

ideal santificado e levava a uma série de tentativas de impor estes pontos de vista por

quaisquer meios, independentemente das realidades, sobre aqueles que não estavam

preparados a entrar em guerra contra Roma.

Este movimento foi o produto de uma combinação de vários elementos sociais. Um

deles sacava sua força de certos círculos no norte, em Gaulanitis e Galileia. Seu primeiro líder

foi Judah, filho de Hezekiah. A este elemento juntou-se um grupo fariseu específico, sob um

homem chamado Zadok. Não temos conhecimento seguro sobre as origens de Zadok ou de

seus seguidores, mas parecem ter pertencido ao sacerdócio de Jerusalém. Ao longo do

desenvolvimento do movimento libertário, ele continuou a consistir de várias tendências que

mantinham identidades separadas em assuntos de ideologia e laços sociais. Os galileus

permaneceram leais à liderança da família de Judah, o Galileu. Assim, vemos que, quarenta

anos após a época de Judah, seus dois filhos, Jacob e Simão, eram as figuras centrais em uma

insurreição, e foram executados por Tibério Alexander (46-8). O líder dos círculos galileus no

começo da Grande Revolta era Menahem, que tentou assumir a coroa real e foi objeto de

expectativas messiânicas. Sua ascensão conectou-se também com a eclosão da revolução

social em Jerusalém. Menahem foi morto em um choque com Eleazar ben Hananiah, o líder

dos rebeldes de Jerusalém. Os remanescentes do bando de Menahem, entre eles Eleazar ben

Jair, seu parente, escaparam para Massada. Os homens que fugiram para Massada viriam a ter

a honra de serem os últimos defensores da liberdade da Judeia.

Com relação a princípios básicos, não há muito que distinga os homens associados

com Menahem e Eleazar ben Jair, aos quais Josefo se refere como “sicarii”, dos ativistas de

Jerusalém, para os quais ele reserva o nome de zelotes, e que parecem ter continuado a

tradição de Zadok, o fariseu. As principais diferenças entre os sicários e os zelotes eram: (1)

os zelotes nunca se ligaram a uma família em particular e nunca proclamaram rei qualquer de

seus líderes; (2) os sicários tinham sua base original na Galileia, enquanto os zelotes estavam

concentrados em Jerusalém; (3) os sicários estavam lutando por uma revolução social,

enquanto os zelotes colocavam menos ênfase no aspecto social, se bem que eles também

tentaram eliminar a oligarquia que tinha conseguido dominar o Sumo Sacerdócio e o Templo,

e, quando obtiveram o controle durante a revolta, aboliram a reivindicação de exclusividade

das grandes famílias sacerdotais ao cargo de Sumo Sacerdote.

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O líder mais importante dos zelotes foi Eleazar ben Simão, que pertencia a uma

família sacerdotal. No entanto, mesmo durante o apogeu de seu poder, não era o único líder

do partido, e sabemos de um Zachariah ben Abculus, também sacerdote, que era seu

associado. Parece que alguns dos outros líderes também eram membros proeminentes da

sociedade de Jerusalém. Ideologicamente relacionado aos líderes dos zelotes era João ben

Levi de Giscala, na Galileia. João nunca reivindicou a coroa real e não era visto por seus

seguidores como o Messias. No começo da revolta, pertencia ao partido moderado, mas os

eventos da guerra mudaram sua perspectiva. Após a conquista da Galileia pelos romanos,

fugiu para Jerusalém, onde desempenhou um papel importante. Gradualmente, veio a pensar

em termos mais extremistas, e após ter ganhado controle sobre o Monte do Templo, até

mesmo os zelotes, até certo ponto, o viam como seu líder, apesar de sempre insistirem em

manter sua identidade separada.

Completamente diferente de João de Giscala, em caráter e conexões sociais, era seu

principal rival nos estágios finais da Grande Revolta, Simão bar Giora, um trans-jordaniano

que não tinha contatos com os círculos de classe alta na Palestina judaica. Permaneceu,

primariamente, como líder das classes baixas do país. Diferentemente de João de Giscala e

dos líderes dos sacerdotes de Jerusalém, que nunca assumiram um título real, Simão parece

ter recebido honras reais de seus seguidores, pelo menos em certo estágio de sua carreira. O

que o distinguiu em particular foi sua atitude em relação às várias classes da sociedade

judaica: libertou os escravos e causou grandes danos para os ricos, tanto em vidas quanto em

propriedade.

Em muitos aspectos, Simão bar Giora traz à mente os líderes judeus que emergiram na

Palestina após a morte de Herodes (4 a.e.c.). Um deles, também chamado Simão e ex-escravo

do falecido rei, operou na Trans-Jordânia judaica e proclamou-se rei. Temos registros

similares de outro líder rebelde do mesmo período, um pastor chamado Athronges, que foi

assistido por seus quatro irmãos. Também assumiu a coroa real. O denominador comum de

ambos esses movimentos anteriores foi que seus originadores vieram das classes baixas,

aparentemente com a motivação básica do descontentamento social. A atmosfera na Judeia

estava saturada de expectativas messiânicas, e isto, sem dúvida, tornou possível para certos

grupos sociais, principalmente da classe baixa, criar reis messiânicos, o último dos quais foi

Simão bar Giora. O estilo real de Menahem da Galileia formou parte do mesmo fenômeno,

mas, ao contrário de Simão, ele veio de uma família que tinha produzido heróis por várias

gerações. Simão nunca pertenceu aos sicários de Menahem, se bem que alguns deles

provavelmente se uniram a ele ao longo do tempo. Isto explicaria a total ausência dos sicários

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como um grupo organizado durante o sítio de Jerusalém e o grande número de homens de

Simão em comparação com os outros grupos que operavam na cidade.

1.5 Religião e Literatura

O governo da Torá e da Halahah e a hegemonia dos Sábios

Juntamente com o monoteísmo, o governo da Torá, que abrangia todos os aspectos da

vida, deixando nada intocado, foi uma das características mais destacadas do desenvolvimento

do judaísmo no final da época do Segundo Templo. Neste ponto, não havia diferenças entre as

principais tendências em atividade dentro da comunidade judaica. As diferenças que existiam

se relacionavam meramente com a concepção a respeito do significado da Torá (a essência da

disputa entre os fariseus e os saduceus) e sua aplicação específica na vida diária. A literatura

da época é cheia de louvores irrestritos à Torá.

O governo da Torá na época do Segundo Templo não pode ser compreendido sem se

entender o desenvolvimento da halahah. A halahah – “o caminho no qual Israel anda” –

formou a parte principal da tradição oral e compreendia todos os aspectos da conduta pessoal

e comunal do judeu. Incluía a ordem de ritual e prece, dízimos e oferendas, e outros

mandamentos “dependentes da Terra [que só podem ser cumpridos na Terra de Israel]”, leis

de pureza e impureza, do shabat e festivais, de relações maritais e status pessoal, a lei civil e

criminal. As raízes da halahah remontam a tempos muito anteriores, mas seu

desenvolvimento principal começou no início do período helenístico, notadamente no século I

a.e.C. Em parte, era baseada em interpretações da bíblia, e acabou sendo desenvolvido um

sistema quase-lógico de regras para derivar conclusões a partir do texto escritural. Outras

partes da halahah cresceram a partir de costumes legais e comportamentos que tinham se

desenvolvido ao longo do tempo, mesmo que não fossem referidos explicitamente a

mandamentos escriturais.

O estudo da Torá começava em tenra idade. Josefo enfatiza o costume judaico de

ensinar todas as crianças a ler e ensinar-lhes os costumes religiosos e a história dos patriarcas.

Como resultado, “se alguém pergunta a um de nós sobre as Leis, ele pode recitá-las mais

prontamente do que seu próprio nome”. A partir da época de Simeon ben Shetah, ouvimos

falar de preocupação pública com a educação, e pouco antes da destruição do Templo o Sumo

Sacerdote Joshua ben Gamla ordenava que “professores de crianças devem ser designados em

37

cada distrito e em cada cidade, e elas devem ser enviadas [para a escola] com a idade de seis

ou sete”.

O maior dos hahamim da última geração antes da destruição do Templo foi Hillel, o

ancião. Hillel viera da Babilônia para a Palestina durante o reinado de Herodes e tornou-se a

figura central em Jerusalém. Ganhou respeito universal por seus altos padrões éticos e tinha

reputação de ter conversa agradável, ser amante da paz e acessível. Hillel destacava-se tanto

em sua estatura intelectual quanto na moral. Ele foi quem formulou as regras pelas quais a

tradição oral era derivada da Escritura. Uma de suas preocupações era o ajuste das leis

econômicas da Torá à nova realidade da época. Hillel tinha muitos discípulos e fundou a

escolha conhecida como “a escola de Hillel”.

Outra escola, que discordava da de Hillel em certos pontos controversos da halahah,

foi fundada pelo sábio fariseu Shammai. Na consciência do povo, Shammai foi retratado

como homem excessivamente pedante, e sua escola tinha reputação de ser muito mais estrita

em questões de halahah do que a de Hillel.

Os representantes mais destacados da escola de Hillel na geração final antes da

destruição eram o Rabban Gamaliel, o ancião, e seu filho, Rabban Simão. Como Hillel,

Gamaliel também instituiu regulamentos haláhicos sobre assuntos como status pessoal e ano

bissexto. Gamaliel também teve muitos discípulos e era respeitado por toda a nação.

Foi sucedido por seu filho Simão, que desempenhou um papel importante no período

que precedeu imediatamente a revolta e durante a própria revolta. Era a autoridade suprema

na halahah para os judeus de todo o país e tinha o apoio do Rabban Johanan ben Zakkai.

Rabban Simão ben Gamaliel manteve relações estreitas com personalidades influentes em

todas as partes do país; um de seus amigos era Johanan de Gush Halav (João de Giscala –

agora Jish – na Alta Galileia). Durante a revolta, uniu forças com os chefes da facção do

Sumo Sacerdote, Hanan ben Hanan e Joshua ben Gamla, e era um dos membros do governo

provisório dos insurgentes.

A sinagoga

De todas as instituições desenvolvidas pelo judaísmo na era do Segundo Templo, a

sinagoga é, talvez, a que exerceu maior influência nas gerações posteriores. Foi dito, com

justiça, que, ao estabelecer a sinagoga, o judaísmo criou uma das maiores revoluções na

história das religiões e das sociedades, pois a sinagoga era um ambiente para o serviço divino

totalmente novo, de um tipo desconhecido antes em qualquer outro lugar, e não ocasionou as

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restrições cerimoniais e sacrifícios financeiros que eram exigidos para a manutenção de

templos. A sinagoga se tornou o centro da vida religiosa e social entre os judeus. Sabemos de

várias sinagogas na Palestina no final da era do Segundo Templo: em Cesareia, em Dor, em

Capernaum e em Tiberíades; e temos registro da existência de sinagogas em todas as terras da

diáspora. Em Jerusalém, os judeus de vários países da diáspora helênica mantinham suas

próprias sinagogas, que serviam como centro de sua vida social; em Tiberíades a sinagoga era

o foco da vida pública da cidade. Uma das sinagogas mais famosas da diáspora era a Grande

Sinagoga de Alexandria; e os judeus de Roma tinham um número muito grande de sinagogas.

De fato, não havia comunidade judaica na Palestina ou na diáspora que não tivesse pelo

menos uma sinagoga. Não apenas viria a se tornar a instituição mais destacada do judaísmo,

mas seu padrão veio a ser adotado pelas outras religiões monoteístas e se tornou o protótipo

da igreja cristã e da mesquita muçulmana.

A ideia messiânica

É completamente impossível entender o desenvolvimento do judaísmo ou descrever a

evolução dos eventos políticos na Judeia no final da era do Segundo Templo sem considerar a

forma que a ideia messiânica e a visão do Fim dos Dias assumiram naqueles tempos.

Esperanças escatológicas e messiânicas tinham se tornado parte até mesmo da profecia

bíblica. Na escatologia judaica da época, as esperanças nacionais se misturaram com uma

visão mais universal. O Fim dos Dias era não apenas a época em que Israel seria purificado e

seus inimigos punidos, mas também o dia em que todos os homens e todas as nações seriam

julgados. Mesmo na esfera física haveria uma grande mudança: este mundo acabaria e um

mundo novo, maravilhoso, surgiria em seu lugar. Simultaneamente com o universalismo,

havia também um desenvolvimento na direção do individualismo: a visão do Fim dos Dias era

não apenas uma resposta para a esperança de redenção nacional, mas também dos sofrimentos

do indivíduo. A mais ampla expressão disto foi a crença na ressurreição dos mortos.

O elemento que talvez tenha tido, isoladamente, a influência mais profunda nas

crenças concernentes ao Fim dos Dias foi a profecia de Daniel. Em um “tempo de angústia,

qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo” (12:1), o vidente profetizou a

queda dos reinos do mundo e a ressurreição do Reino de Israel, que iria herdar seus lugares.

Esta concepção iria permanecer como parte inseparável da visão escatológica judaica, tanto

em Israel como na diáspora, e se reflete na literatura judaico-helênica bem como nos escritos

apocalípticos da Palestina.

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Amiúde, enfatiza-se a conexão entre a visão do Fim dos Dias – uma expectativa

comum na época – e a do Messias real da casa de David. Às vezes, o rei ungido é concebido

principalmente como um monarca deste mundo, como rei nacional de Israel; mas em outros

momentos ele é visto como supranacional e transcendente, como no Livro Etíope de Enoch:

“Pois desde tempos antigos, o Filho do Homem estava escondido, e o Ser Supremo o

preservou ante seu poder e o revelou aos eleitos”. As expectativas messiânicas se tornaram

também um fator ativo na vida política, e todo o período dos governadores romanos esteve

cheio de revoltas e insurreições informadas pela tensão escatológica. A crença messiânica era

um motivo primário também no tempo da Grande Revolta. Mesmo a destruição não era capaz

de enfraquecer esta crença. Ao contrário, a descrição mais colorida do Fim dos Dias veio até

nós nas grandes obras dos visionários pós-Templo: a visão de IV Esdras e a de Baruch.

A literatura sapiencial e a história

A Literatura Sapiencial, de longa tradição no passado literário de Israel, teve

continuidade na era do Segundo Templo, seu principal representante tendo sido Ben Sira, que

viveu e trabalhou em Jerusalém antes da revolta dos hasmoneus, e cuja obra reflete a

sociedade de Jerusalém daqueles dias. Os autores do livro sapiencial clássico da Bíblia,

Provérbios, eram anônimos; os escritos de Ben Sira, por outro lado, nos mostram uma

personalidade distinta, cônscia de sua própria importância e de sua posição.

Um dos mais interessantes gêneros da literatura do período do Segundo Templo é a

novela ou conto. Dois exemplos característicos são Tobias e Judite. Em natureza de estilo e

artística, estas obras são profundamente enraizadas na literatura bíblica e não mostram sinais

de influência literária grega. A trama de Tobias nos leva para a diáspora oriental e introduz o

problema do indivíduo judeu que coloca os deveres de moralidade e religião acima das ordens

reais. A obra, como um todo, fornece um retrato da família judaica na era do Segundo

Templo.

O ambiente de Judite é puramente palestiniano, e a ambientação social que reflete é a

de uma cidade do interior da Palestina judaica. Essencialmente, é uma novela histórica, e os

eventos políticos desempenham um papel muito maior do que em Tobias. Como Rute e Ester,

tem uma heroína ao invés de um herói. Artisticamente, Judite é uma das mais perfeitas obras

da antiga literatura judaica. A história é excitante e cheia de tensão dramática: uma

cidadezinha judaica, lutando por sua existência contra um inimigo mais forte, ganha vida ante

nossos olhos.

40

1.6 A Grande Revolta

Causas e natureza da Grande Revolta

O choque entre os judeus e o Império Romano no final da era do Segundo Templo foi

o resultado de uma acumulação de diversos fatores. Na esfera ideológica, havia um conflito

agudo entre a concepção judaica de Israel como a eleita, com um futuro político e espiritual

glorioso, e a realidade de um Império Romano todo-poderoso, no qual a Judeia era meramente

uma de suas muitas províncias submetidas. Este contraste encontrava alívio em esperanças

messiânicas, na antecipação da salvação celestial, que iria trazer soberania eterna para a nação

judaica, como herdeira do Império Romano. “Muitos estavam convencidos de que estava

escrito nos antigos escritos sacerdotais que naqueles tempos o Oriente iria ganhar em poder e

aqueles que saíram da Judeia deveriam possuir o mundo” (Tacitus, Histórias). Esta visão

messiânica era a inspiração dos combatentes judeus, e até que as chamas subissem do Monte

do Templo eles esperavam uma intervenção divina que iria salvar o Templo e aniquilar o

inimigo. Esta crença era sustentada até o final por profetas que surgiam entre os sitiados, e

chegou a infectar os exércitos inimigos, a ponto de alguns de seus soldados desertarem para o

lado judaico. A ideologia do messianismo e da eleição do povo judeu tinha dado um claro tom

ativista a certos círculos desde o começo do domínio romano. Eles viam a tarefa de lutar

contra Roma como um mandamento positivo, que deveria compelir mesmo os hesitantes

dentro da nação a tomarem armas. A tentativa louca de Calígula de impor o culto de sua

divindade fez reviver a atmosfera da perseguição de Antíoco e mostrou os perigos que a nação

deveria esperar se o domínio romano fosse continuar.

Havia também aspectos específicos do domínio romano que ofendiam severamente as

sensibilidades judaicas. O controle romano sobre o culto do Templo e a imposição de taxas e

impostos, que impunham uma carga pesada sobre a população, levaram as massas a odiar os

governantes estrangeiros. Mais do que tudo, a raiva da população judaica da Palestina foi

estimulada pelo apoio da administração romana ao elemento não-judaico, greco-sírio. Após

seu declínio durante o apogeu do reino hasmoneu, o grupo tinha se recuperado com o

estabelecimento de novos assentamentos sob Pompeu e Gabinius, e ganhou força adicional

sob Herodes e os governadores romanos. A guarnição da província era recrutada quase

completamente nas cidades helenizadas, principalmente Sebaste e Cesareia. Os cidadãos das

cidades gentias se tornaram algo como uma elite na sociedade palestina. As relações entre eles

e os judeus eram tensas. As disputas entre gentios e judeus em Cesareia foram de importância

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histórica, e não foi por simples acaso que estiveram entre os principais fatores que

precipitaram a Grande Revolta.

A revolta dos judeus contra o domínio romano tinha também características de

revolução social. As classes baixas das grandes cidades, em sua maioria devedores sem terra e

refugiados de distritos fronteiriços, tornaram-se a levedura que criou a fermentação no

começo da revolta. O caráter social da revolução teve destaque particular entre os grupos

extremistas que produziram líderes messiânicos do porte de Menahem, o Galileu, e Simão bar

Giora. Para eles, a revolta não era apenas uma guerra contra Roma, mas também um desafio

ao status das classes altas da Judeia, que por tanto tempo tinham colaborado com os

governantes romanos. No início, os extremistas atuaram contra as condições sociais:

queimaram os arquivos municipais de Jerusalém, para destruir os registros de débito, e

começaram uma campanha de terror contra os principais representantes das classes

superiores. Estes últimos eram os menos interessados em revolta, e alguns deles fizeram

grandes esforços, ao menos durante os primeiros estágios, para deter o movimento entre as

massas. Muitos dentre as classes altas tinham interesses na administração romana; mas uma

grande parte, se não a maioria, dos membros do estrato superior da comunidade judaica estava

amargamente desapontada com a administração de Florus, que tinha causado grandes

prejuízos para as classes mais afortunadas de Cesareia e, diferentemente de seus

predecessores, tinha mantido a oligarquia sacerdotal de Jerusalém ao alcance de seu braço.

Com a vitória dos insurgentes sobre o governador da Síria, os representantes das classes altas

também foram arrebatados pelo entusiasmo geral. No governo temporário que foi

estabelecido em Jerusalém após esta vitória, e que deveria organizar a defesa do país contra os

romanos, um papel de destaque foi desempenhado pelo Sumo Sacerdote anterior e líder dos

saduceus, Hanan ben Hanan. Outros membros do Sumo Sacerdócio tomaram lugar a seu lado,

como Joshua ben Gamla, que tinha relações de parentesco por casamento com a família

Boethos. Mas após os judeus terem sofrido pesadas derrotas na Galileia e a expedição que

eles tentaram contra Ashkelon ter falhado desastrosamente, este grupo perdeu seu poder para

elementos mais extremistas.

Os judeus que tomaram parte na revolta vieram de diferentes seções do país. As

fileiras de João de Giscala foram infladas por refugiados da Síria e particularmente das aldeias

no território de Tiro. Os próprios líderes da revolta vieram de diferentes áreas. A Galileia

contribuiu com Menahem, o líder dos sicários no começo da revolta, Eleazar ben Jair, o herói

de Massada, e João de Giscala. Simão bar Giora (“o filho do prosélito”) era, como seu nome

testemunha, de uma família de prosélitos, aparentemente da cidade de Gerasa na

42

Transjordânia. Entre os comandantes que se destacaram na época de liderança moderada, nos

primeiros estágios da revolta, estavam José ben Mattathias (depois conhecido como Flávio

Josefo, também de uma família sacerdotal de Jerusalém), Níger da Transjordânia e João, o

essênio.

Se os insurgentes alimentavam esperanças de receber assistência militar dos inimigos

de Roma, foram amargamente desapontados. É certo que durante o reinado de Nero Roma foi

posta em teste por intensa atividade militar no leste e prolongou uma guerra indecisa contra a

Partia pelo controle da Armênia, e num estágio da guerra os partas até derrotaram as legiões

romanas. Mas logo depois da irrupção da revolta os dois lados ajustaram suas diferenças e

fizeram a paz, e no ano 66 o rei parta da Armênia foi a Roma para receber oficialmente do

imperador a coroa de sua terra. Um alívio temporário veio de um lado imprevisto. Do verão

de 68 até o final de 69 o Império Romano foi envolvido em uma violenta guerra civil na qual

um imperador suplantava outro, até que Vespasiano, o comandante da guerra contra os

judeus, tomou o trono. O desenvolvimento inesperado deu a Jerusalém uma breve pausa em

69, pois Vespasiano estava esperando para ver como o conflito na Itália iria terminar, antes de

empreender um sítio sistemático da capital da Judeia. Todos esses atrasos terminaram na

primavera de 70, quando um poderoso exército romano, sob o comando de Tito, filho do

imperador, investiu contra a cidade de acordo com todas as regras de guerra de cerco.

A Palestina judaica, predominantemente habitada por uma densa população agrícola,

tinha também um potencial militar considerável. Mas o número de soldados ativos que os

insurgentes podiam por em campo contra as forças regulares romanas não deve ser

sobreestimado. De fato, a própria Jerusalém não tinha muito mais de 23 mil defensores

armados durante o cerco. Um dos fatores que impedia o uso efetivo de tropas judias nos

diferentes estágios da revolta era a falta de uma liderança unida. A Grande Revolta,

diferentemente da dos hasmoneus, antes dela, e da de Bar Kokhba depois, não produziu uma

personalidade central cuja liderança fosse aceita por todos os combatentes. A inimizade e a

competição entre os líderes e entre as várias facções fizeram muito para interferir com a

condução da guerra do lado judaico, e até mesmo resultaram em confrontos sangrentos entre

judeus.

A conquista de Jerusalém e o fim da Revolta

Os defensores de Jerusalém não aproveitaram a pausa para formar uma liderança

unificada e melhorar sua situação militar. Os três líderes dos insurgentes – João de Giscala,

43

Eleazar ben Simão e Simão bar Giora, que tinha forçado seu caminho em Jerusalém e se

estabelecido na Cidade Alta – continuaram irremediavelmente enredados em seus próprios

conflitos. Não apenas foram incapazes de concordar com um plano conjunto de defesa, mas

persistiram em lutar uns contra os outros e, assim, minaram seriamente a força militar dos

judeus e facilitaram a tarefa romana.

O comando de Tito consistia das legiões com as quais seu pai tinha conquistado a

Galileia, com reforços adicionais. Durante a primavera de 70, o exército romano acampou

perto de Jerusalém; o cerco durou até o final do verão. Durante esses cinco meses, Tito

empregou sua superioridade militar para quebrar a resistência judaica. A ofensiva começou

por um ataque contra a cidade a partir do norte. Primeiro foi tomada a terceira muralha, e a

segunda muralha caiu poucos dias depois. Os romanos começaram, então, a sitiar a fortaleza

Antonia, que era defendida por João de Giscala, e a Cidade Alta, onde Simão bar Giora estava

no comando. As legiões começaram a realizar terraplenagem, mas tão logo o trabalho foi

completado ele foi totalmente destruído por um contra-ataque judeu. Tito decidiu cercar a

cidade com uma muralha, que foi construída em alta velocidade e cortou os suprimentos

remanescentes de comida, causando terrível fome na cidade sitiada. Todos os esforços dos

romanos estavam agora dirigidos contra Antonia, que foi tomada no começo do verão. A

conquista de Antonia abriu caminho para um assalto ao Monte do Templo, e no começo de

Av os romanos conseguiram superar a poderosa resistência dos defensores judeus. O Templo

foi completamente queimado por ordem do general romano, que com isso pretendia destruir a

raiz do problema e impedir que o Templo se tornasse foco de posteriores tendências rebeldes.

Seus defensores remanescentes fugiram para a Cidade Alta, que caiu para os romanos no

oitavo dia de Elul no ano 70.

Com a completa conquista de Jerusalém, a grande guerra entre os judeus e os romanos

virtualmente acabou. Umas poucas fortalezas ainda resistiam: Machaerus na margem oriental

do Mar Morto e Massada no lado ocidental. Massada foi defendida pelos últimos sicários, sob

Eleazar ben Jair, até o ano 73 (ou mesmo 74). A morte heróica dos defensores de Massada,

que até o final permaneceram fieis a seus elevados princípios e escolheram a morte por suas

próprias mãos à captura pelo inimigo, foi um epílogo adequado para a Grande Revolta.

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2. Mishná e Talmud

2.1 Os judeus na Terra de Israel

Recuperação após a destruição

A Grande Revolta, que durou mais de quatro anos e envolveu todas as partes do país,

juntamente com vários cercos, a conquista de Jerusalém e a destruição do Templo, foi um

golpe pesado para o povo judeu e para as pequenas cidades e aldeias da Terra de Israel.

Milhares foram mortos nas campanhas, e muitas cidades foram totalmente queimadas ou

arrasadas, seja no curso da guerra ou como atos de vingança e intimidação. O que mais sofreu

foi a agricultura. As áreas nas colinas e planícies que tinham sido plantadas com árvores

frutíferas foram devastadas. Em muitas partes, as tropas romanas receberam ordens

específicas de derrubar pomares. Josefo registra que no curso do cerco a Jerusalém todas as

árvores nos arredores da cidade foram destruídas e “a terra estava tão nua quanto solo

virgem”. Plínio, o naturalista romano que participou da guerra, ficou particularmente

impressionado pela destruição de pomares de caqui – os únicos no mundo – pois os judeus

preferiram arrancá-los a deixá-los cair nas mãos dos romanos.

No entanto, o empobrecimento demográfico e econômico da população não durou

muito; o povo judeu na Terra de Israel não foi reduzido à devastação total. Não apenas foi

capaz de travar uma grande guerra apenas uma geração após a destruição, mas, pelo final do

século I, a população tinha, em grau considerável, recuperado sua força numérica e

econômica.

Muitos daqueles que tinham sido capturados na guerra foram redimidos por seus

irmãos em Israel ou nas cidades da diáspora nas quais tinham sido vendidos como escravos.

Enquanto muitos deles se estabeleciam nos locais de seu exílio, muitos outros retornaram à

terra natal. Mesmo as cidades que Vespasiano e Tito tinham conquistado e, de acordo com os

registros, tinham arrasado, não desapareceram. Jafa foi tomada e totalmente destruída duas

vezes: primeiro logo no começo da guerra, por Cestius Gallus, e de novo por Vespasiano. Não

obstante, pelo começo do século II tinha sido reconstruída e estava florescendo. Outras

cidades, incluindo Jerusalém, Jotapata e En-gedi, a respeito de cujas completas destruições os

registros são muito explícitos, também voltaram à vida com o passar do tempo. Cidades

arruinadas não se tornaram uma característica da paisagem palestina até após a Revolta de Bar

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Kokhba (135). Nas cidades helenísticas, em que os judeus eram abatidos ou expulsos por seus

vizinhos (somente em quatro delas, Antioquia, Epimea, Sidon e Gerasa, os judeus ficaram

incólumes), encontramos uma grande população judaica pelo final do século I. Tanto a

literatura judaica quanto a não-judaica mostram que pelo final do século I e início do II tinha

sido restaurada uma economia agrícola normal, com o altamente desenvolvido cultivo de

culturas de campo e jardins. Muitos pomares foram recuperados e outros novos plantados.

Mesmo assim, a nação estava em sérios apuros políticos e econômicos. Não menos séria era a

depressão espiritual, como resultado da conquista do país, a captura de Jerusalém e a

destruição do Templo.

Escrevendo no ano 71, Josefo diz: “Naquela época, o imperador enviou cartas para

Bassus [o legado] e Labarius Maximus [o procurador], e ordenou-lhes que arrendassem todas

as terras dos judeus; pois ele não fundou nenhuma cidade no país, desejando reter todas as

terras para si mesmo, e assentou somente oitocentos veteranos”. De fato, há evidência de que

tanto durante quanto após a guerra muitos agricultores judeus permaneceram na terra, a

cultivaram e até mesmo a possuíam. A declaração de Josefo se aplicava somente àquelas

terras realmente confiscadas – uma proporção considerável das terras dos judeus. Na literatura

tanaítica da época, encontramos referências frequentes e amargas aos “opressores” – os

conductores que haviam tomado a terra em muitas partes do país. Em alguns casos, a

propriedade foi transferida para não-judeus – como no caso dos 800 veteranos que foram

assentados em Motza, de onde os proprietários anteriores foram completamente expulsos.

Com frequência, as autoridades romanas entregavam a terra para pessoas confiáveis e

privilegiadas, tal como judeus e não-judeus que tinham ficado do lado dos romanos durante a

guerra. Porém, na maioria dos casos em que a terra era expropriada, os proprietários não eram

expulsos - permaneciam como arrendatários. Geralmente, as autoridades romanas alugavam

grandes extensões de terra para arrendatários primários, conductores. Estes, por sua vez, a

sub-locavam em lotes separados para agricultores, que eram assim forçados a alugar “a terra

de seus pais”, como as fontes judaicas o expressam, a um alto custo – usualmente uma grande

parte da colheita – e sempre arriscavam ser expulsos por não poderem pagar o arrendamento

ou por qualquer outro pretexto. Estes “opressores”, como eram geralmente chamados, eram

usualmente, mas nem sempre, não-judeus, e a literatura tanaítica da geração após a destruição

se queixa amargamente não apenas dos sofrimentos do agricultor, que “podia mais facilmente

arrancar uma moeda de uma rocha do que do senhor da terra”, mas também da humilhação e

dor ao ver a propriedade de judeus apropriada por opressores estrangeiros.

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A crise institucional e espiritual

Os efeitos da destruição sobre a vida institucional e espiritual foram muito severos. As

devastações da guerra, a conquista de Jerusalém e a perda do Templo significaram que as

instituições que haviam guiado a nação – o Sumo Sacerdócio e o Sanhedrin – não

funcionavam mais, e o resultado foi paralisia e confusão. É verdade que mesmo antes da

destruição os sacrifícios tinham cessado de ser o principal elemento litúrgico, já que o foco da

vida religiosa tinha, em grande parte, se deslocado para a sinagoga, o estudo da Torá, a

observância dos mandamentos e a caridade; e a participação do Sumo Sacerdote na liderança

nacional e sua influência sobre o Sanhedrin tinham declinado. No entanto, a sinagoga e o

Templo estavam ligados pela prática diária bem como pela derivação histórica: as horas de

prece eram determinadas pelas do serviço do Templo, e durante as preces a congregação se

voltava na direção do Templo; as instituições locais de caridade eram modeladas pelas do

Templo; o Sanhedrin não apenas tinha sua sede no Templo, mas só podia exercer seus

poderes em sessão no Templo e enquanto o serviço do Templo continuasse a seguir seu curso

designado. Assim, por exemplo, os rabinos sustentavam que o Sanhedrin não estava

autorizado a julgar casos de pena capital a menos que os serviços de sacrifício estivessem

sendo executados conforme as prescrições.

A destruição do Templo implicou não apenas a abolição dos sacrifícios, das

peregrinações, e atividades semelhantes, mas perturbou muitos outros sistemas de

mandamentos. O sopro do shofar e o porte do lulav eram observados também fora do Templo,

mas só no Templo o shofar era soprado quando o Ano Novo caía no shabat, e só no Templo o

lulav era portado em todos os sete dias da Festa de Tabernáculos, enquanto que nas

comunidades fora de Jerusalém ele era portado somente no primeiro dia. Muitas dívidas e

dízimos sacerdotais estavam conectados com o Templo ou com Jerusalém: os primogênitos de

animais, as primeiras frutas e oferendas de paz eram trazidos para Jerusalém, como o segundo

dízimo, que só podia ser comido dentro da cidade.

Mesmo que o judaísmo não estivesse ameaçado de desintegração, a queda do Templo,

sem dúvida, produziu uma depressão que chegou perto do desespero. Ao ler a literatura

tanaítica do período, percebe-se o desânimo, a dor e o sofrimento generalizados. O mesmo

estado de espírito é característico de IV Esdras e do Apocalipse [Sírio] de Baruch (nenhum

dos quais chegou até nós no hebraico original). Ambos foram escritos por judeus vivendo em

Israel cerca de 25 a 30 anos após a queda do Templo; assim, algumas das visões registradas

neles eram não apenas concebidas mas de fato escritas sob o impacto direto daquele evento.

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Elas refletem o tumulto da geração imediatamente seguinte à destruição, bem como as

primeiras centelhas de recuperação.

A transição para a nova atitude religiosa que buscava reconstruir a vida da nação, sem

um Templo e sem seu estado próprio, com base na observância da Torá e na prática de boas

ações, enquanto esperava a redenção, não poderia ter ocorrido sob circunstâncias menos

auspiciosas. A recuperação espiritual e a reestruturação da entidade nacional eram dificultadas

por perseguições políticas e religiosas de parte das autoridades e dos chefes das cidades não-

judaicas na Terra de Israel e nos países vizinhos. Enquanto Roma era, geralmente, tolerante

em relação às religiões dos povos conquistados, a longa guerra contra os judeus tinha criado

um ressentimento considerável e foi seguida por medidas opressivas que eram tanto religiosas

quanto políticas em natureza, explicitamente decretadas ou ao menos toleradas pelas

autoridades. Até que o judaísmo voltasse a ganhar um status legal na Terra de Israel, os

judeus do país eram oficialmente considerados dediticii ou inimigos que se haviam rendido

incondicionalmente.

Rabban Johanan ben Zakai

A história do reestabelecimento da vida comunal judaica na Palestina após a

destruição está ligada à personalidade do Rabban Johanan ben Zakkai. Ele foi um dos sábios

mais destacados de Jerusalém antes da destruição, um dos chefes dos fariseus e porta-voz da

seita em suas disputas e competições contra os saduceus, e era o representante do Rabban

Simão ben Gamaliel, chefe do Sanhedrin e do governo formado em Jerusalém após a expulsão

de Cestius Gallus. Mesmo sendo ele mesmo um sacerdote, em seus ensinamentos e preceitos

censurava seus colegas sacerdotes por se colocarem acima do povo comum. A busca da paz é

um elemento importante em seus ensinamentos. Ao contrário de Simão, ele pode muito bem

ter se recusado a tomar parte na revolta; advertiu os rebeldes contra o fanatismo e excesso de

confiança, e os exortou a serem moderados em seu comportamento em relação a não-judeus.

Um dito seu, “Não se apresse a derrubar altares dos gentios, para que não seja forçado a

reconstruí-los com suas próprias mãos, para que você não derrube altares de tijolos e seja

obrigado a reconstruí-los de pedra”, aparentemente se refere ao zelo com que os rebeldes,

tendo ganhado controle do país, destruíam os altares dos não-judeus. Outro dito atribuído a

ele, “Se você segura uma muda em sua mão, e alguém lhe diz que o Messias chegou, primeiro

plante a muda e, depois, receba o Messias”, também presta testemunho de sua atitude mental

realista e desconfiança em relação a entusiasmo em demasia.

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Johanan ben Zakkai estava em Jerusalém quando do cerco, mas a deixou antes de a

cidade cair. Como os zelotes vigiavam para impedir quaisquer saídas, seus discípulos

recorreram a subterfúgio e o contrabandearam em um caixão. O evento provocou uma

impressão considerável nos autores da tradição talmúdica, e temos várias versões de seu

confronto com Vespasiano e do que o imperador lhe concedeu. De acordo com a tradição

mais tardia do Talmud da Babilônia, ele recebeu “Iavneh e seus sábios” e “a sucessão de

Rabban Gamaliel”. Mas esta tradição reflete amplamente um período posterior, quando

“Iavneh e seus sábios” estavam firmemente estabelecidos e chefiados pelo Rabban Gamaliel,

filho de Simão ben Gamaliel, que assentou as fundações da dinastia de nesi’im que se

seguiria. De acordo com tradições palestinas mais antigas, parece que Rabban Johanan foi

inicialmente um prisioneiro e foi levado contra sua vontade para Iavneh, a qual, juntamente

com outras cidades, como Ashdod e Gophna, serviam como lugares de detenção para aqueles

que se tinham rendido aos romanos. O que ele teve êxito em obter do imperador também

parece ter sido muito mais modesto, de acordo com a tradição palestina. Uma versão relata

que tudo o que ele pediu foi um indulto para alguns indivíduos; de acordo com outras versões,

ele pediu Iavneh para “ensinar seus discípulos” ou para “cumprir os mandamentos e ensinar a

Torá”. Considerando as circunstâncias gerais e a prática de Vespasiano e Tito, a versão que

aparece nas fontes mais antigas é mais provável. Dificilmente Roma teria dado permissão

para o estabelecimento de um centro nacional, mesmo que apenas espiritual. Mas, mesmo que

a permissão oficial que lhe foi concedida fosse muito restrita, a verdade é que Rabban

Johanan ben Zakkai começou, com ou sem o conhecimento das autoridades, a reconstruir a

vida judaica e a preencher o vazio criado pela destruição do Templo. Ele reconvocou o

Sanhedrin e começou a proclamar as luas novas e os anos bissextos a partir de Iavneh.

O ciclo anual dos feriados judaicos é baseado em um ano lunar, ajustado ao ano solar

pela inserção de anos bissextos que consistem de um décimo-terceiro mês. Antes da queda do

Templo, a prática regular era estabelecer a ocorrência da Lua Nova sob a evidência de

testemunhas. Após constatar que o advento de uma lua nova tinha sido propriamente atestado,

a Alta Corte (Sanhedrin) iria “venerá-la”; a informação era então imediatamente transmitida

para as comunidades judaicas na Palestina e mesmo na Babilônia, por meio de faróis.

A retomada desta prática era, em si mesma, suficiente para tornar Iavneh o centro de

liderança para a nação judaica como um todo. Várias das decisões instituídas por Johanan ben

Zakkai tinham a ver com o problema de venerar a Lua Nova na Casa de Assembleia, mesmo

que não estivesse se reunindo no Templo, e de anunciar este ato a todas as comunidades

judaicas. Ele estabeleceu que o shofar deveria ser soprado em Iavneh mesmo que o Ano Novo

49

caísse no shabat, “em memória do Templo”. Outra de suas decisões, no mesmo campo,

estipulava que “mesmo que haja um presidente de tribunal em cada lugar, as testemunhas [do

surgimento de uma lua nova] deverão testemunhar somente na Casa de Assembleia”. Todas as

práticas instituídas pelo Rabban Johanan foram projetadas para preencher o vácuo que tinha

sido criado pela destruição do Templo – algumas convocando atos em memória do Templo,

outras fornecendo meios de ajuste às novas circunstâncias e quebrando vínculos com o

Templo em casos em que a ausência deste interferia com o curso da vida.

Não obstante, comparado com o que foi feito em Iavneh uma geração mais tarde, o

trabalho de Rabban Johanan e o escopo de suas atividades eram restritos. Não ouvimos nada a

respeito do desenvolvimento de relações com a diáspora, da supervisão de comunidades na

Terra de Israel ou de preocupação com a lei civil, para mencionar apenas umas poucas esferas

em que a geração seguinte de estudiosos de Iavneh seria tão ativa. A razão não era inatividade

de parte de Rabban Johanan. No princípio, ele foi dificultado pelas circunstâncias externas;

pois nos primeiros anos após a queda do Templo as autoridades romanas vigiavam de perto

tudo o que acontecia em Israel. Além de reter o reconhecimento das instituições nacionais

judaicas e recusar-lhes qualquer grau de autoridade autônoma, os romanos restringiram suas

atividades.

As condições dentro da nação também eram desfavoráveis. Somente uma pequena

proporção dos sábios tinha acompanhado Rabban Johanan para Iavneh. A maioria das

autoridades de destaque na Torá que estavam fora de Jerusalém durante o cerco ou tinham

sobrevivido à queda da cidade estavam ausentes da primeira geração de Iavneh. Estavam

faltando rabinos de origem sacerdotal que tinham servido no Templo e gozavam de grande

influência em círculos fariseus - tais como R. Zadok e R. Eleazar -, e outros que tinham tido

grande influência no desenvolvimento da doutrina oral – como R. Dosa ben Harkinas, R.

Judah ben Baba e os dois eruditos que tinham estabelecido escolas de interpretação haláhica,

R. Nehunya ben Hakana e Nahum de Gimzo. Todos eles tinham sido ativos nos dias do

Templo e viriam a ser ativos em Iavneh após a época de Rabban Johanan. Mesmo de seus

cinco discípulos mais próximos, somente dois, R. Eliezer ben Hyrcanus e R. Joshua ben

Hananiah – os dois que o haviam levado para fora de Jerusalém –, permaneceram com ele em

Iavneh. Os outros seguiram seus próprios caminhos, incluindo seu discípulo mais antigo e

favorito, R. Eliezer ben Arakh, que foi para Emmaus. Aparentemente, a maioria dos sábios

não podia perdoar Rabban Johanan por deixar Jerusalém durante o cerco e render-se à

misericórdia do imperador. Rabban Gamaliel, que depois levou adiante a dinastia dos

patriarcas, desfrutou da cooperação renovada dos sábios.

50

Tudo isto, no entanto, não diminui a grandeza do trabalho do Rabban Johanan no

assentamento das fundações do centro nacional que se desenvolveu nas gerações seguintes.

Rabban Gamaliel

Johanan ben Zakkai não ficou em Iavneh até o fim de sua vida. Durante seus últimos

anos, dirigiu a academia em Bror Hayil, no sul. Logo que as condições ficaram maduras para

Rabban Gamaliel assumir, Rabban Johanan foi forçado a deixar Iavneh, para dar lugar a ele.

A instalação formal de Rabban Gamaliel em Iavneh somente pode ser efetuada no final da

dinastia flaviana (Domiciano, irmão de Tito e último dos Flávios, foi assassinado em 69). As

autoridades romanas tinham plena consciência das implicações de confiar a liderança do povo

a um membro da casa de Hillel. Nenhum flaviano teria permitido um ato tão tendente a

levantar o espírito da nação, pois eles sabiam muito bem que Rabban Gamaliel era filho de

Simão ben Gamaliel, que tinha sido um dos líderes da revolta desde seus princípios.

Sob Nerva e Trajano, os romanos relaxaram seu tratamento dos judeus. Nerva até

cunhou uma moeda com o objetivo de “remover a vergonha do imposto judaico”. Não se sabe

em que consistia esta “remoção”, mas é evidente que os judeus não eram mais perseguidos tão

duramente quanto antes.

Iavneh e judaísmo rabínico

Os judeus não desapareceram simplesmente do registro histórico, como fizeram tantos

povos nos grandes e convulsivos movimentos populacionais da antiguidade tardia. Não

perderam sua identidade nas comunidades emergentes da Era das Trevas – como romanos e

helenos, gauleses e celtas, ou como os milhões de judeus da diáspora que se tornaram cristãos.

O judaísmo e os judeus remanescentes foram preservados no âmbar da Torá. E esta

preservação e sobrevivência não foi uma inexplicável aberração da história. Os judeus

sobreviveram porque o período de intensa introspecção habilitou seus líderes intelectuais a

expandir a Torá em um sistema de teologia moral e lei comunitária de extraordinária

coerência, consistência lógica e força social. Tendo perdido o Reino de Israel, os judeus

transformaram a Torá em fortaleza da mente e do espírito, na qual podiam habitar em

segurança e até com conteúdo.

O grande empreendimento em metafísica social começou humildemente na sequência

da queda de Jerusalém, em 70 e.c. As famílias sacerdotais hereditárias, e a classe alta judaica

51

tradicional como um todo, pereceram na ruína da cidade. Por isso, os judeus transformaram-se

em uma catedocracia: eles eram governados da cadeira do professor. Isto tinha sempre sido

inerente ao judaísmo – pois os profetas não eram instrumentos através dos quais Deus

ensinava seu povo? Mas agora se tornou explícito. O rabino e a sinagoga se tornaram as

instituições normativas do judaísmo, o qual, doravante, era essencialmente uma fé

congregacionalista. A academia de Iavneh completou a canonização da Bíblia. Estabeleceu a

forma das preces comunitárias e normatizou regras para jejum e peregrinação. O sistema era

uma oligarquia autoperpetuada, a academia selecionando ou “ordenando” novos rabinos com

base em estudo e mérito. Mas a autoridade tendia a ser confiada a famílias destacadas por sua

erudição.

Estes estudiosos, como um corpo, declinaram de aderir à revolta de Bar Kokhba. Mas,

naturalmente, ela os afetou. Muitas vezes tinham que se encontrar secretamente. A própria

Iavneh se tornou insustentável, e após a revolta ter sido esmagada as autoridades rabínicas se

transferiram para a cidade de Usha, na Galileia ocidental. A maioria dos rabinos era pobre.

Eles trabalhavam, usualmente, com suas mãos. Construir a história judaica destes tempos é

difícil, pois os próprios judeus cessaram de escrevê-la; os registros biográficos e de outras

informações emergem incidentalmente, sem ancoragem cronológica, de passagens da halahah

ou de histórias e lendas da agadah. A sociedade acadêmica judaica nem sempre era

homogênea. Um dos grandes eruditos de Iavneh, Elisha ben Avuyah, tornou-se um herético.

Mas um de seus alunos, o rabino Meir, o melhor entre os eruditos do século II, pode ter sido

um convertido. As mulheres faziam sua parte. Bruria, a mulher de Meir, tornou-se uma

autoridade haláhica destacada.

Dinastias de eruditos existiram mesmo no período da Segunda Comunidade, quando

eram classificados como zugot ou “pares”. Houve cinco pares de eruditos de destaque, o

último tendo sido o famoso Hillel, professor de Cristo, e seu oponente, Shammai. Seus

descendentes e seguidores, e outros eruditos que se uniram à elite, são conhecidos como

tanaim. A geração seguinte, começando com Rabi Hiya Rabbah por volta de 220 e.c.,

inaugurou a época dos amoraim, que durou cinco gerações na Judeia, até o final do século IV,

e oito gerações na Babilônia, até o final do V. Tinham existido, sem dúvida, grandes

comunidades judaicas na Babilônia e seus arredores desde o Exílio. O contato era contínuo,

uma vez que os judeus da Babilônia aceitavam os cálculos de calendário das autoridades de

Jerusalém, e depois de Iavneh. Os judeus da Babilônia também vinham a Jerusalém em

peregrinação, quando isso era possível. O judaísmo farisaico ou rabínico chegou à Babilônia

como resultado direto da revolta de Bar Kokhba, quando estudiosos, em fuga da Judeia,

52

estabeleceram academias no que era, então, o território dos partas. Estas escolas estavam

centralizadas em Sura, ao sul do que agora é Bagdá, e em Pumbedita, no oeste, onde

floresceram até o século XI. A localização das academias ocidentais, na Palestina, variava. Na

época de Judah ha-Nasi, ele concentrou toda a erudição em Bet Shearim, mas após sua morte

existiram importantes academias em Cesareia, Tiberíades e Lydda.

Os traços físicos deste período da história judaica não são impressionantes. Os

arqueologistas judeus não puderam, é claro, explorar sítios no Iraque. O assentamento judaico

em Sura desapareceu completamente pelo menos desde a década de 1170, quando o viajante

judeu Benjamin de Tudela visitou o local; a cidade, escreveu, estava em ruínas. Em contraste,

encontrou uma comunidade considerável em Pumbedita, mas isto é o último que ouvimos

dela. Por outro lado, escavações em 1932 desenterraram, na cidade romana Dura Europus, no

Eufrates, os restos de uma sinagoga datados de 245 e.c., com inscrições em aramaico, grego e

pahlevi-parta. A colônia judaica lá vinha, parece, da destruição e exílio do Reino do Norte,

mas tinha sido reforçada por judeus mais ortodoxos após as revoltas de 66-70 e 132-35.

Mesmo assim, era uma comunidade heterodoxa, como talvez muitas naquela época. A

arquitetura era helenística, como era de se esperar, mas a surpresa está em cerca de trinta

painéis pintados (agora no Museu Nacional de Damasco), que ilustram o tema messiânico de

retorno, restauração e salvação. Há imagens dos patriarcas, de Moisés e do Êxodo, da perda

da Arca e seu retorno, de David e de Ester. Estudiosos relacionam estas pinturas às Bíblias

ilustradas que se acredita terem existido nos séculos II e III e.C., e que indicam que a arte

cristã também teve origem judaica. Evidentemente, a regra sobre imagens não era, então,

estritamente observada, pelo menos não em todos os círculos judaicos.

Mas os principais memoriais desta época são os próprios escritos judaicos sagrados. A

erudição judaica sagrada pode ser vista como uma série de camadas, cada uma dependente de

sua predecessora. A primeira é o próprio Pentateuco, que, em sua essência, foi completado

antes do Exílio, se bem que certamente ocorreu alguma edição após o Retorno. Este é o corpo

básico da lei escrita judaica, sobre o qual tudo o mais se apóia. Então vêm os livros dos

profetas, os salmos e a literatura sapiencial. A isto foram agregadas várias obras não-

canônicas essenciais para o estudo da religião e da história judaicas: a tradução grega da

Bíblia, ou Septuaginta; as obras de Josefo; a Apócrifa e vários papiros.

O desenvolvimento da Halahah

53

Durante esta era, as funções do Sanhedrin se desenvolverem em três direções. Ele se

tornou o órgão executivo, a fonte da interpretação haláhica e uma academia para o estudo da

Torá. A halahah não apenas recuperou sua força na vida diária, mas foi também elaborada de

um ponto de vista teórico e filosófico. Os ensinamentos dos sábios durante a gestão de

Rabban Gamaliel mostram uma clara tendência para resumir e consolidar os fundamentos

teóricos da halahah. A preocupação com as aplicações práticas da halahah – e seu estudo em

profundidade em busca dos princípios comuns interligando casos individuais – representou

uma importante contribuição à ampliação de sua influência e à reformulação de muitas de

suas doutrinas.

Nos dias do Templo, os estudiosos haláhicos tinham gozado de um grau considerável

de liberdade; mas, agora, a tendência dominante ia em direção a regras mais rígidas. Mesmo

nos dias do Templo tinha havido competições de vontades entre estudiosos individuais e os

sábios como um grupo, quando estes tentavam determinar a lei, e por vezes até

excomungavam indivíduos que recusavam se submeter à decisão da corporação. Mas, em

geral, o desejo de estabelecer regras não era muito pronunciado, e as diferentes escolas de

halahah podiam seguir seus próprios caminhos. Característico desta tendência era a

coexistência das escolas de Shammai e de Hillel, cada uma com sua própria concepção de

halahah e de agadah. Na era de Iavneh, no entanto, a escola de Shammai foi firmemente

descartada, e foi declarado que “quem ofender contra os ensinamentos da casa de Hillel

merece a morte”. A agadah atribui esta decisão a uma voz celestial que foi ouvida em Iavneh.

Mas fontes anteriores mostram que os rabinos não achavam fácil lidar com os últimos adeptos

da escola de Shammai, e que a primazia da escola de Hillel não tinha sido estabelecida da

noite para o dia.

Rabi Judah, o príncipe

O patriarcado do filho mais velho de R. Simão, R. Judah o Príncipe (também chamado

simplesmente de “Rabi”, “nosso santo Rabi” ou nasi), foi um tempo de prosperidade

econômica e política para a comunidade judaica da Palestina. R. Judah nasceu quando R.

Simão ainda estava vivendo na clandestinidade. O começo de seu governo como nasi caiu

dentro da era dos Antoninos, que durou até 192, mas a maior parte de sua gestão coincidiu

com a dinastia severana (193-235), e a agadah registra o bom relacionamento entre a casa do

nasi e a família imperial. Em geral, as relações entre os judeus da Palestina e os severanos

foram boas desde o início do regime destes últimos. Mas Pescennius Níger, rival de Septimus

54

Severus, tratou os judeus com dureza. Impôs severas penalidades sobre as cidades que

apoiavam Severus. Particularmente duro foi o destino do sul e de sua capital, Lydda. A

Décima Legião, estacionada em Jerusalém, ficou ao lado de Níger e aumentou os sofrimentos

dos judeus na região. Assim, a vitória de Severus veio como um grande alívio. Temos ampla

evidência da gratidão da nação aos severanos. A tradição judaica os representa

favoravelmente, e há evidência literária e epigráfica de sinagogas na Palestina e na diáspora

tendo sido dedicadas a membros da dinastia severana – uma honra que nunca tinha sido

prestada a qualquer governante romano desde a queda do Templo.

Uma das razões para as boas relações entre os judeus e a casa de Severus foi a origem

oriental desta e a inclinação de alguns de seus membros em direção a um sincretismo religioso

que incluía o judaísmo. Sob os severanos, a posição política da comunidade judaica da

Palestina foi fortalecida de diversas formas. Foi reconhecido o direito do patriarcado e do

Sanhedrin de cobrar impostos para a manutenção do centro. Durante o reinado de R. Judah, os

poderes dos tribunais judaicos, particularmente do tribunal do nasi, foram reforçados e

estendidos. Exerciam jurisdição civil e criminal, e possuíam meios para impor seus

julgamentos. Quando necessário, o tribunal do nasi julgava até casos de pena capital e

impunha sentenças de morte. O direito de assim proceder não era reconhecido oficialmente

pela lei romana, mas também esta Alta Corte não exercia a justiça em segredo.

R. Judah foi um favorito especial da corte imperial. Recebeu grandes extensões de

terra do domínio imperial como doações ou em arrendamento. O lendário talmúdico tem

muito a relatar a respeito das relações estreitas entre R. Judah e um imperador chamado

Antonino, as conversações amigáveis entre eles e a inclinação do imperador em direção ao

judaísmo. A agadah vai mesmo ao ponto de afirmar, em algumas versões, que o imperador

era convertido ao judaísmo, ou ao menos “reverenciava o Senhor”, o que, como termo

técnico, significa que um gentio, se bem que nem circuncidado nem convertido, tinha adotado

modos judaicos de pensamento e observava alguns dos mandamentos. Com todos seus

exageros, estas histórias mostram que havia um relacionamento próximo entre um dos

severanos e R. Judah. É difícil de dizer qual imperador está sendo referido, pois vários

membros da dinastia eram conhecidos pelo nome de Antonino. Alguns pensam que a

referência é a Caracalla (98-217), que era um sincretista e a quem as cidades gregas na

vizinhança da Terra de Israel costumavam chamar de “o ancião da sinagoga”.

A redação final da Mishnah

55

As atividades de R. Judah incluíram também a redação e a finalização da Mishnah, um

sumário e compêndio da maioria do material da tradição oral. Ele não foi o primeiro a

registrar a tradição oral por escrito na forma de uma coleção de decisões haláhicas; os tanaim

da época do Templo e particularmente da época de Iavneh, e mais tarde os discípulos de R.

Akiva já tinham empreendido fazê-lo. Coleções inteiras ou partes de coleções dos

ensinamentos destes sábios encontraram seu lugar na Mishnah, mas a compilação de R. Judah

era mais abrangente e ampla em escopo.

R. Judah colecionou os ensinamentos das autoridades anteriores, sumarizou as novas

decisões elaboradas por sua própria geração e a imediatamente anterior, e os arranjou em

capítulos e tratados de acordo com o assunto: Shabat (Sábado), Pessahim (Regulamentos de

Pessah), Gittin (divórcio), Kiddushin (casamento) e assim por diante. Os capítulos da

Mishnah são, agora, citados por suas passagens iniciais; os próprios assuntos são geralmente

arranjados de acordo com sua lógica interna. O tratado Sanhedrin, por exemplo, começa com

a composição da corte, que consistia de um painel de três em casos civis e vinte e três em

casos capitais; então, estabelece as regras de procedimento civil, seguidas pelas regras de

procedimentos capitais. Às vezes, no entanto, quando um tratado todo ele é um compêndio, e

R. Judah queria preservar sua forma original tanto quanto possível, o tratado ficou

estruturalmente incompleto.

A doutrina oral se reflete na Mishnah na forma em que foi entregue ao editor final –

como um somatório de diferentes opiniões onde nenhuma decisão final tinha sido atingida,

lado a lado com regras definidas decretadas em gerações anteriores ou na Casa de Assembleia

na própria época de R. Judah. Como resultado do caráter compósito da Mishnah, há às vezes

contradições entre a formulação de uma regra em um compêndio refletindo os ensinamentos

de um estudioso ou academia e uma diferente formulação em outro compêndio representando

a escola oposta. Às vezes, decisões haláhicas são dadas na forma de uma declaração comum,

sem menção de fonte, por exemplo: “Qual benção é recitada sobre fruta? Sobre fruta de

árvores, diz-se ‘Que criou a fruta da árvore’” e “Uma mulher pode ser emancipada por

divórcio ou pela morte de seu marido”. Muitas decisões, no entanto, são atribuídas aos seus

autores; e, às vezes, são registrados até o evento que ocasionou a questão que está sendo

levantada e o nome da pessoa que a decidiu ou estabeleceu o precedente. Grande número de

questões são reportadas como controvérsias. A Mishnah, em resumo, não é tanto um código

editado ou colecionado por R. Judah, mas um registro sumário em forma de livro do que era

ensinado e discutido na academia e na corte durante sua vida.

56

As circunstâncias de sua educação tornaram R. Judah eminentemente qualificado para

atuar como redator da Mishnah. Enquanto seu pai viveu na clandestinidade por medo de

perseguições, ele cresceu e estudou com vários dos maiores discípulos de R. Akiva. Depois,

estudou também com seu pai. Assim, adquiriu seu conhecimento de várias academias e estava

familiarizado com diferentes tradições e sistemas. Esta familiaridade ajudou-o a desenvolver a

tendência eclética e sintética de seu próprio ensinamento, que tendia a combinar elementos de

diversas tradições e sistemas. Sua modéstia no ensino da Torá e na decretação de decisões

haláhicas, seu espírito independente e seu alto status e longo governo foram as qualidades

que o assistiram na redação da Mishnah e contribuíram para sua aceitação como um manual e

código básicos da tradição oral. Enquanto ainda encontramos, na geração seguinte,

ocasionalmente, decisões sendo decretadas que são contrárias àquelas da Mishnah, os outros

compêndios que foram compostos antes ou durante sua época foram logo ofuscados por ela e

esquecidos. A Mishnah veio, inclusive, a servir como protótipo para trabalhos posteriores no

campo da Lei Oral. As declarações haláhicas transmitidas oralmente e que, por alguma razão,

não foram incluídas na Mishnah, foram colecionadas da mesma maneira na Tosefta, uma série

de suplementos à Mishnah que segue a ordem de capítulos e tratados deste. A Tosefta é uma

das coleções de beraitot, decisões dos tanaítas que ficaram fora da Mishnah.

No curso dos séculos seguintes, a Mishnah serviu como fundamento de duas grandes

obras talmúdicas, o Talmud de Jerusalém e o Talmud Babilônico. A Mishnah, assim, tornou-

se a segunda base de cultura judaica, seguindo apenas a própria Bíblia.

A Mishnah é dividida em seis “ordens”, cada uma lidando com um diferente aspecto

da vida:

1. Zeraim (“Sementes”) lida com a agricultura: as regras de cruzamento, dos primeiros

frutos, que devem ser descartados, do ano de repouso e das porções de colheitas que devem

ser postas à parte para o Templo, os sacerdotes e os pobres. Esta ordem é precedida pela seção

Berakhot (“Bênçãos”), que trata das regras de preces privadas e públicas.

2. Moed (“Festival”) concerne às leis do shabat e dos feriados.

3. Nashim (“Mulheres”) trata de todos os aspectos da vida familiar e das regras de

casamento, divórcio e questões associadas.

4. Nezikin (“Danos”) contém as regras de lei civil e criminal e de procedimentos dos

tribunais.

5. Kodashim (“Assuntos Sagrados”) concernente às regras para o serviço do Templo,

abate ritual e alimentos permitidos e proibidos.

6. Tohorot (“Pureza”) trata das leis de pureza ritual.

57

As seis ordens contêm um total de cerca de sessenta tratados. Com exceção de

algumas poucas palavras e expressões gregas e aramaicas, a Mishnah é escrita inteiramente

em um hebraico legal de notável clareza e vitalidade.

Com a finalização da Mishnah, a história da tradição oral atingiu uma linha divisória

que viria a se tornar mais claramente definida com o passar do tempo. A literatura escrita

antes da redação da Mishnah é conhecida como literatura tanaítica, seus autores sendo

conhecidos como tanaim; obras escritas depois e incluídas em compêndios colecionados entre

dois e três séculos após a finalização da Mishnah são conhecidos como literatura amoraica,

seus autores sendo chamados de amoraim. Qualquer decisão haláhica que apareça na

Mishnah ou em uma beraita tem mais autoridade do que uma que só aparece na Gemara, as

discussões posteriores que, junto com a Mishnah, formam o Talmud; e uma decisão de um

amorá é rejeitada se se descobre que ela se choca com a decisão de um Taná. Na última

geração tanaítica, a distinção entre taná e amorá nem sempre é clara. Alguns contemporâneos

de R. Judah não são incluídos na Mishnah, mas são mencionados com frequência nas

tradições extra-mishnaicas, as beraitot. Para a geração seguinte, no entanto, a distinção era

perfeitamente clara.

Poucas coleções de agadot distinguem entre tanaim e amoraim. A linha traçada pelas

autoridades judaicas não era tão agudamente definida em questões de agadah como o era

quando se tratava de halahah. Concepções divergentes eram toleradas em um grau muito

maior nas áreas de crenças e de ética do que em questões de prática. Enquanto alguns pontos

de vista eram mantidos em comum por todas as academias, a exigência de formulações

uniformes nunca foi tão marcada nestas áreas como o era com respeito à halahah e à lei. No

todo, esta distinção foi preservada no judaísmo até o presente.

A finalização do Talmud de Jerusalém

Na segunda metade do século IV, o Talmud conhecido como de Jerusalém ou

Palestiniano, foi completado na Terra de Israel – principalmente em Tiberíades. Ele sumariza

o conjunto do pensamente dos estudiosos palestinianos durante os dois séculos que se

seguiram à conclusão da Mishnah. Esta época, que vai do final da dinastia severana até a

abolição do patriarcado, é conhecida como a era dos amoraim palestinianos, e pode ser

dividida em cinco ou seis gerações, que são geralmente identificadas pelos nomes dos chefes

de academias ou outras figuras proeminentes.

58

O Talmud toma a forma de um comentário sobre a Mishnah – um comentário no

sentido amplo, pois com frequência inclui, mais do que explicações do texto mishnaico,

decisões sobre pontos que a Mishnah deixa em aberto, assim como discussões e acréscimos

sistemáticos ou haláhicos, apresentados à medida que aparecem no curso de debates

acadêmicos ou na vida prática. Como não há registro preciso da data de compilação do

Talmud de Jerusalém ou de seus autores, só é possível estabelecê-los com base nos últimos

estudiosos ou eventos referidos no corpo da obra. O texto disponível para nós cobre apenas

quatro das seis ordens da Mishnah – Zeraim, Moed, Nashim e Nezikin – e parte de Niddah; e

aqui e ali estão faltando capítulos. As discussões nas academias, sem dúvida, também incluem

assuntos pertencentes às ordens faltantes, pelo menos àquelas que ainda eram relevantes

depois da queda do Templo (tal como Hullin, que lida com as leis do abate ritual e alimentos

permitidos). Mas quão longe tinham progredido a edição, a ordenação e o registro dessas

ordens na época em que foram perdidas, não é sabido.

2.2 As terras da diáspora

Proselitismo

Durante o período em foco, as comunidades judaicas fora da Terra de Israel

aumentaram em tamanho e número, uma das razões sendo a tendência proselitista que

começou por volta do final da era do Segundo Templo. Após a queda do Templo, este

movimento não cessou, e muitas fontes indicam que até mesmo cresceu. Argumentou-se que

o desaparecimento do estado judeu e a destruição do Templo tornaram o judaísmo ainda mais

adequado ao papel de uma religião universal, já que suas características nacionais estavam

enfraquecidas e assim podia mais facilmente ser acessível a não-judeus. Outros alegam que o

heroísmo dos judeus, refletido na guerra contra Roma e a maneira como retiveram sua

identidade após a destruição do Templo, despertou a admiração de muitos gentios. Aceitemos

ou não essas explicações, a existência de proselitismo muito difundido após a queda do

Templo é incontestável. Muitos prosélitos vinham da população não-judia da Palestina; um

número ainda maior adotou o judaísmo nas terras orientais e ocidentais da diáspora, em

centros de civilização como Antioquia e Alexandria, e mesmo na própria Roma. Os prosélitos

vinham de todas as classes sociais, das cidades e do campo. Alguns se converteram

individualmente, deixando seus lares e famílias; em outros casos, famílias inteiras ou mesmo

59

distritos inteiros se tornaram judaicos. Os rabinos encorajavam o proselitismo e o promoviam

direta e indiretamente no curso de suas viagens. Somente mais tarde, particularmente após o

cristianismo ter chegado ao poder, a tendência foi revertida, não apenas por causa de

proibições legais, mas também porque os judeus preferiam viver em um mundo fechado,

próprio, e não mais esperar o preenchimento de suas aspirações no futuro imediato.

As academias da Babilônia

Uma grande explosão espiritual ocorreu na Babilônia na segunda metade do século II,

quase certamente como resultado de um grande influxo de refugiados da Palestina na época

da revolta de Bar Kokhba (132-135) e as perseguições que a seguiram. Muitos dos que foram

da Babilônia para a Terra de Israel para estudar a Torá voltaram depois de permanecer com

um professor durante certo tempo. Um desses estudantes foi Abba Arikha, geralmente

conhecido como Rav ou Rabeinu. Seu retorno para a Babilônia (em 219) foi um ponto de

virada no desenvolvimento espiritual, haláhico e jurídico da comunidade. Ao invés de se

assentar em um dos centros tradicionais de estudo, ele foi para Sura, que continha uma grande

população judaica, mas pouco estudo, e fundou lá uma grande academia. Nehardeia, um

centro cultural de longa data, passou por uma revitalização naqueles dias, e também se tornou

sede de uma grande academia, chefiada por Samuel, que, como Rav, pode também ter vivido

por um tempo na Terra de Israel. Ao contrário de Rav, no entanto, Samuel não se considerava

sujeito às decisões dos rabinos palestinianos. Rav introduziu não só a Mishnah, que acabara

de ter sido completada, como também o sistema palestiniano de estudo, bem como muitos

costumes palestinianos, como a transmissão de tradições e a preocupação com a prece formal

e a agadah.

A Babilônia judaica foi dividida entre Sura e Nehardeia, algumas cidades ficando sob

a influência de Sura e adotando seus regulamentos e decisões, enquanto outras tomavam seu

rumo de Nehardeia. Desde aquele tempo o estudo da Torá se tornou uma característica

comum da vida judaica em toda a Babilônia. O número de estudantes regulares apenas em

Sura na época de Rav era de 1.200. Esta foi também a época na qual foi instituído o costume

de yarhei kallah: nos dois meses do ano nos quais o trabalho no campo chegava a uma virtual

paralização – em Adar (fevereiro/março) e Elul (agosto/setembro) – milhares de judeus

instruídos se reuniam nas academias para estudar a Torá. Como na Terra de Israel, o

curriculum era baseado principalmente na Mishnah. As duas academias ainda existiam no

final da era gaônica (a metade do século X). Elas se tornaram a fonte da vida espiritual e os

60

pontos focais de toda a comunidade judaica da Babilônia, se bem que nem sempre com a

mesma extensão.

A edição do Talmud da Babilônia

No curso de gerações, novos níveis de ensinamento judaico e de lei judaica, baseados

na Mishnah, emergiram e tomaram forma na Palestina e na Babilônia, na forma de discussões

que interpretaram, expandiram ou suplementaram declarações da Mishnah. Durante a longa

presidência de R. Ashi em Sura (371-427), estas discussões foram sumarizadas e editadas na

forma da compilação conhecida como Talmud Babilônico, que segue a ordem dos tratados e

capítulos da Mishnah.

O texto do Talmud Babilônico mostra claramente a natureza desta edição criativa. Ele

contém não só tudo o que havia sido produzido por via de interpretação e expansões da

Mishnah, mas reflete séculos de pensamento e experiência na história da nação. Enquanto a

Mishnah contém questões somente de halahah em forma editada, o Talmud inclui grandes

seções em outras áreas da vida nacional, tradições anteriores à Mishnah que não são incluídas

nela e novas tradições que vieram a existir após sua conclusão. O Talmud apresenta os

assuntos não na forma de conclusões e decisões, mas com as discussões que levaram a elas e

as investigações conduzidas pelos rabinos em sua tentativa de resolver problemas teóricos ou

legais.

61

3. Idade Média

3.1 Liderança centralizada e liderança local

O exilarca (Resh Galuta)

Até 825, a pessoa aceita pelos judeus como seu exilarca era também a única

autoridade reconhecida pelos governantes muçulmanos. Naquele ano, irromperam disputas

entre os cristãos; eles também apontavam seus próprios chefes, que eram reconhecidos pelas

autoridades muçulmanas. Como resultado destas disputas, o califa proclamou que qualquer

homem aceito por dez infiéis como seu chefe receberia reconhecimento oficial. Em tese, este

pronunciamento abria caminho para anarquia na liderança e para um completo colapso da

autoridade do exilarca. Na prática, levou a um declínio em seu poder real e certa dependência

das duas ieshivot babilônicas e de seus chefes. No entanto, como resultado da alta estima que

o povo judeu dedicava à casa de David e do desejo de uma autoridade única reconhecida pela

sociedade hospedeira, durante todo o período em consideração aqui, à parte disputas

relativamente raras, houve um só exilarca na diáspora islâmica.

As Ieshivot babilônicas e os gueonim

Como o exilarcado, as ieshivot sob o domínio islâmico são descritas como uma

continuação das ieshivot babilônicas de Sura e Pumbedita, que tinham funcionado sob os

governantes pré-islâmicos. No entanto, logo se tornaram visíveis diferenças em caráter e

estrutura. O padrão específico de desenvolvimento das ieshivot sob o domínio muçulmano

marca seu caráter especial de instituições para liderança e estudo da Torá. Estas ieshivot eram

centralizadas em um grau desconhecido nas ieshivot da Babilônia e Erets Israel, que tinham

produzido os dois Talmuds alguns séculos antes. No Talmud, encontramos os nomes de

centenas de sábios cujos pontos de vista são citados. Raramente uma opinião é atribuída a

uma escola; e mesmo então, a escola recebe o nome do sábio que a encabeça, como “a casa de

Rav”, i.e., os estudiosos pertencentes à escola de Rav. Somente uns poucos sábios são

conhecidos como cabeças de uma escola ou academia. Na Idade Média, no entanto,

encontramos a situação oposta em quase todos os aspectos nas ieshivot tanto da Babilônia

quanto de Erets Israel. Sabemos os nomes de apenas um punhado de sábios do período, se

62

bem que estudiosos e discípulos eram abundantes; por outro lado, os nomes dos cabeças – os

gueonim que encabeçavam as ieshivot– são familiares para nós para a maior parte do período

e em relação a todas as academias em questão.

As ieshivot nas terras islâmicas, tanto na Babilônia quanto em Erets Israel, ocuparam

uma posição central na liderança da nação. Sua função educacional envolvia ensinar seus

estudantes tanto quanto o povo como um todo. A ieshivah incluía escolas de vários níveis,

culminando em uma escola de altos estudos. Elas também estabeleciam decisões legais finais

sobre todos os assuntos e problemas da vida diária. Estudiosos e sábios de ieshivah

interpretavam e comentavam a literatura canônica, e as interpretações dadas por este

colegiado eram vinculantes para todos. Era também uma academia de estudiosos qualificados

que constituíam a Suprema Corte, da qual a lei judaica emanava para todo Israel.

A liderança norte-europeia

Nos assentamentos de mercadores judeus ao norte dos Pireneus, não havia tradição de

submissão a qualquer centro. Os exilarcas, os gueonim e os neguidim2 dos territórios

islâmicos estavam muito longe, não apenas fisicamente, mas também em termos da barreira

que existia entre a cristandade na Europa norte-ocidental e o Islã. Os judeus do norte,

certamente, tinham plena consciência da autoridade e santidade dos antigos centros no leste, e

se comunicavam com eles de tempos em tempos. No entanto, a conexão que existia não podia

levar à submissão ou à liderança real pelos centros por causa de situação geopolítica geral.

Além disso, naquelas regiões nenhum judeu gozava de um status em qualquer corte real que o

habilitasse a ser nomeado ou nomear a si mesmo líder dos judeus com o apoio dos

governantes, como acontecia com os neguidim nas terras islâmicas. Assim, este território era

solo virgem no que dizia respeito a liderança, tradições e instituições.

Várias formas de liderança emergiram lá e se desenvolveram livremente. Desde o

começo do século XI temos notícia de um novo tipo de líder, o shtadlan (“intercessor”), que

aparece em contos que podem ser lendários, mas cujos detalhes se baseiam em situações reais.

Um shtadlan foi ao Papa para obter proteção para judeus perseguidos. Ele anunciou em “uma

carta com sua assinatura que todas as congregações deveriam honrar” o mensageiro que ele

pedira ao Papa que enviasse para proteger os judeus. Conta-se também que o conde de

Flanders enviou um convite pedindo “que o dito notável viesse a ele trazendo trinta judeus

2 Plural de naguid, termo que significa um príncipe ou líder. Amiude, o título se aplicava ao líder religioso em

comunidades sefarditas da Idade Média, geralmente no Egito.

63

para assentá-los em suas terras”. Assim, ele é retratado como um iniciador de novo

assentamento judaico, uma atividade que, seguramente, envolvia obter cartas, direitos e

privilégios de liderança.

3.2 Vida judaica social e cultural até o final do século XI

O caraísmo

No final do século VIII, Anan ben David começou a combater o esforço titânico para

basear a unidade do povo judeu sobre as tradições da lei Oral e os antigos sistemas de casas

de estudo e sua liderança santificada.

Anan era um rebento da família exilárquica. Uma tradição posterior preservada por

seus oponentes “rabanitas” atribuiu seu cisma a um desejo frustrado pelo cargo de exilarca

quando seu irmão Hananiah foi escolhido em seu lugar. Uma das fontes explica que ele foi

rejeitado por causa de uma “suspeita de mancha”. O termo “mancha” ou “desqualificação”

tinha um duplo significado no hebraico do mundo islâmico. Poderia significar desqualificação

devido a linhagem duvidosa ou a opiniões questionáveis, particularmente entre aqueles cujos

pontos de vista tendiam para o Islã. É razoável supor que no caso de Anan o último

significado fosse mais aplicável.

Fragmentos do Livro de Mandamentos de Anan sobreviveram. Após lê-los, nota-se

que Anan não era um caraíta no sentido de que se baseava unicamente na Escritura Hebraica,

seguindo “o significado simples do texto bíblico” e nada mais. Ele especificou numerosas

proibições e baseou costumes que aprovava em exposições do texto bíblico que,

frequentemente, são apresentados em estilo talmúdico. Por exemplo, ordenou: “Não usarás

roupas feitas... de animais e sementes”. Isto é uma expansão da proibição do Pentateuco

contra usar sha’atnez, tradicionalmente interpretado como uma mistura de lã e linho e, como

tal, proibido na tradição da Lei Oral.

Um exame cuidadoso dos mandamentos de Anan mostra que muitos deles eram

antigos costumes, santificados em uma região ou outra, que ele queria transformar em lei

judaica universal. Por exemplo, exigia que a circuncisão fosse realizada com tesoura; o

mandamento do dízimo foi expandido até ser convertido em imposto geral, permitindo assim

a existência de uma comunidade separatista da espécie à qual ele aspirava.

64

Anan emergiu como representante de grupos autônomos que existiam no povo judeu

durante o século VIII – grupos com seus próprios costumes e perspectivas. Quando juntou

seus partidários, pôs em jogo o peso de sua personalidade, seu profundo conhecimento e sua

abordagem sistemática, estabelecendo assim uma oposição à uniformidade que vinha

gradualmente sendo estabelecida sob a liderança do exilarcado e do gaonato. Mesmo naqueles

dias havia quem com justiça afirmasse que ele oferecia “um Talmud próprio” para a seita que

se havia reunido em redor dele. O “Talmud” de Anan é excessivamente estrito e homilético

em natureza. No entanto, seus escritos sobreviventes não mostram quaisquer sinais de

aspirações messiânicas.

Nos séculos VIII e IX, tanto antes quando após Anan, surgiu no seio do povo judeu

um intenso fervor messiânico. Foi despertado pelas esperanças de redenção trazidas pelas

conquistas muçulmanas e a subsequente desilusão. Alguns desses “messias” caíram em

batalhas, espada na mão. Os registros indicam as mudanças religiosas e sociais a que eles

aspiravam; mas, como as informações a respeito deles só estão disponíveis em documentos

escritos por judeus que se lhes opunham ou por muçulmanos, é muito difícil estabelecer com

precisão suas tendências religiosas, ao contrário do que aconteceu com Anan.

A mesma tendência em direção a racionalismo religioso produziu resultados muito

diferentes entre aqueles que rejeitavam a liderança do exilarcado e do gaonato, incluindo os

que no século X foram corretamente denominados caraítas. No século IX, no intervalo entre

Anan e os caraítas, a oposição à liderança estabelecida encontrou vários caminhos. O líder

reconhecido dos oponentes dos gueonim naquele século foi Benjamin ben Moses al-

Nahawendi (de Nahawend, na Pérsia). Sua obra Maseat Binyamin (“O ensinamento de

Benjamin”) é a expressão de uma atitude e escala de valores que diferia inteiramente em seus

aspectos sociais das de Anan, antes dele, e das dos caraítas no século seguinte.

No século X encontramos os caraítas no pleno significado da palavra, i.e., biblicistas.

Escutamos os pontos de vista dos judeus que confiavam exclusivamente no texto escritural e

em sua própria compreensão dele. Rejeitavam categoricamente o Talmud e seus métodos

homiléticos como uma carga que não mais podia ser suportada e como uma invenção humana,

proveniente daqueles que enganavam o povo pela força da tradição e seus próprios poderes

institucionais. Pode-se bem dizer que os caraítas do século X seguiram o princípio “Procure

bem na Torá e não dependa da minha opinião”, que foi erroneamente atribuído a Anan.

Este grupo era extremamente criativo em comentários, polêmicas e escritos históricos.

A despeito de todas as diferentes nuanças, suas obras eram unificadas em seu individualismo

religioso. De acordo com os caraítas, o indivíduo tem o dever de confiar em sua própria

65

Inteligência e compreender as Sagradas Escrituras independentemente. Este ponto de vista é

claramente expresso na proclamação escrita aos rabanitas por Sahi ben Mazzliah, um dos

líderes caraítas:

Saibam, meus irmãos, Filhos de Israel, que cada um de nós é responsável por

sua própria alma. E nosso Deus não escutará as palavras de um que se

justifica dizendo, “Assim é como meus mestres me guiaram”; assim como

Ele desconsiderou as desculpas de Adão, que declarou “A mulher que me

deste por esposa”, etc. Nem Ele aceitará a desculpa do homem que diz

“meus sábios me enganaram”, assim como não aceitou a de Eva quando ela

disse “A serpente me enganou, e eu comi”. E saiba que qualquer um que

declare como desculpa “Eu segui o caminho de meus pais” vai descobrir que

ela não é de nenhum proveito... Pois não há compulsão sobre nós para seguir

nossos pais em todos os aspectos. Pois é nosso indeclinável dever

inspecionar seus caminhos e avaliar seus feitos e julgamentos à luz das

palavras da Torá. Se virmos que eles as seguem sem mudança, deveremos

aceitar e obedecer... Mas se as palavras deles envolvem quaisquer alterações

da Torá, deveremos jogá-las fora e deveremos inquirir e investigar até

obtermos a imagem verdadeira dos mandamentos da Torá...

Agora, vocês da Casa de Israel, tenham piedade de vossas almas e de vossos

filhos. Porque eis que a luz ilumina e o sol brilha. Escolham o bom caminho.

E não digam: O que deveremos fazer? Pois mesmo os Filhos da Escritura

mudam [i.e., há diferenças de opinião e de prática entre os caraítas]. Qual

delas deveremos seguir? Os Filhos da Escritura não dizem que são guias, e

não têm qualquer intenção de guiar o povo por seu próprio capricho. Mas

eles investigam e inquirem a Torá de Moisés... e os Livros dos Profetas... e

também inspecionam as palavras de seus predecessores. Por isso, eles dizem

a seus irmãos os Filhos de Jacob: Estude e busque e pesquise e investigue e

faça o que ficar estabelecido para você com olhos claros e permaneça na sua

opinião.

Saadia Gaon (882-942)

A amplitude e intensidade dos ensinamentos religiosos de R. Saadia e suas inovações

refletem de modo representativo o estado de espírito racionalista que existia entre os

rabanitas. Nasceu no Egito, onde obteve sua educação inicial. Viajou para Erets Israel e se

familiarizou com as ieshivot lá. Foi convidado a presidir a ieshivah de Sura, onde, mais tarde,

se viu envolvido em extensos conflitos. Conduziu também um debate vívido, agudo e

incessante com os caraítas contemporâneos.

Assim, ficou no núcleo da liderança judaica autônoma e foi um centro de tempestades

para conflitos. Construiu o primeiro sistema abrangente de pensamento religioso judaico

racionalista, sob a influência da filosofia grega e árabe, na primeira obra judaica de natureza

filosófica desde os escritos de Philo de Alexandria, que tinham sido quase completamente

esquecidos pelo povo judeu. A obra foi escrita em árabe, com o título de Livro de Crenças e

66

Opiniões. O livro também delineia as polêmicas filosóficas e religiosas que tiveram lugar

entre membros das diversas fés e os pontos que eram correntes dentro da muito variegada

sociedade intelectual de Bagdá durante a primeira metade do século X.

A estima em que R. Saadia mantinha os antigos filósofos gregos e seus sistemas de

pensamento pode ser vista até quando ele adverte contra aquelas de suas opiniões que vão de

encontro ao judaísmo. Mesmo então, refere-se a eles como “Aristóteles e seus seguidores...

aqueles filósofos que eram grandes em astronomia e no conhecimento da natureza em todas as

suas verdades”. Via o intelecto humano como um dos fundamentos da fé, um instrumento

primário através do qual a Vontade Divina se revela à humanidade. Assim, explicava que a

Torá “não é a fonte de todo nosso corpus de Lei e ensinamento por si só. Além dela, temos

outras duas fontes. Uma delas, que tem prioridade, é o bem do intelecto, enquanto a segunda,

que a segue, tem seu ponto de partida na tradição”. Assim, o intelecto humano é a primeira

das três fontes para aquisição de conhecimento de assuntos elevados, enquanto as outras duas

são a Lei Escrita e a Oral. O intelecto humano é de particular importância: além de prover

seus próprios conceitos, abre o caminho para a compreensão correta das outras duas fontes e

sua autoridade. Pois “cada interpretação que concorda com o intelecto é verdadeira, e o que

quer que leve para o que não está em acordo com o intelecto é inútil”.

R. Saadia dá uma explicação racionalista, tanto histórica quanto psicológica, do

conceito de “tradição” – a base da Lei Oral. A crença na cadeia da tradição é razoável e lógica

porque todo o comportamento humano é baseado ou em expectativa ou em apreensão; e a

fonte de ambas está na transmissão de experiências passadas, nas quais temos que acreditar

por uma questão de necessidade existencial.

O racionalismo religioso de R. Saadia era enraizado em vívido interesse social e em

profundo senso de história. Estas qualidades de pensamento e suas atividades como guia o

levaram a dedicar especial interesse à história, à sociedade e a suas estruturas.

A observação do mundo ao seu redor convenceu-o de que

a finalidade [de Deus ao criar o mundo] é o Homem... pois o costume e a

construção colocam tudo o que tem valor entre objetos que são menos

valiosos... Nosso Deus... deu ao Homem uma vantagem sobre todas Suas

criaturas... e colocou o livre arbítrio como seu direito, e ordenou-lhe escolher

o bem... E nós encontramos sua vantagem na sabedoria que lhe foi dada e

que lhe foi ensinada.

Para R. Saadia, as artes da civilização são louváveis não apenas porque suprem as

necessidades essenciais da sociedade e lhe permitem funcionar, mas especialmente porque

melhoram a vida e aumentam o prazer e o gozo dos homens.

67

As generalizações com relação a sociedade, civilização material, ciências e artes são

clarificadas em detalhe na décima e última seção de Crenças e Opiniões, que lida com “o que

é bom para um homem fazer neste mundo”. Aqui, R. Saadia discute os impulsos humanos e

as realizações dentro da sociedade. Treze parágrafos tratam de asceticismo, comida e bebida,

relações sexuais, amor espiritual, acumulação de dinheiro, amor por crianças, organização da

sociedade, amor da vida por sua própria conta, amor por poder, vingança, sabedoria, trabalho

e repouso. Em cada caso, tanto os aspectos positivos quanto os negativos são apresentados

para consideração. Lendo a discussão como um todo, descobre-se que R. Saadia afirma as

criações da humanidade neste mundo e o prazer do homem pela vida. Suas restrições mais

severas são dirigidas contra o asceticismo. Para ele, as necessidades e paixões humanas têm

um propósito intelectual construtivo que beneficia tanto a alma do indivíduo quanto a

sociedade em geral, se forem perseguidas em medida razoável, de acordo com a vontade do

Criador. A hipótese de R. Saadia é que a natureza humana é prejudicada pelo exagero em

qualquer das atividades mencionadas acima. A humanidade do indivíduo só pode emergir “da

reunião e controle da essência humana”, isto é, da formação das várias forças espirituais e

físicas e recursos, e sua consolidação nas proporções corretas.

A cultura ashkenazi brotando

Nos séculos X e XI, as comunidades emergentes da Europa ocidental ao norte dos

Pireneus formularam um conjunto de ideias sociais baseado em antigas tradições nacionais

judaicas, mas que também refletiam suas particulares estrutura, sociedade e relacionamento

com o ambiente cristão. Muito cedo foram estabelecidas normas para guiar esta incipiente

cultura judaica.

Um profundo conhecimento da Torá, orientação por exemplo pessoal e preocupação

com instrução deviam ser qualidades daqueles em posição de autoridade. A ênfase era

colocada na importância de servir o povo a partir de um senso de dever, e não em vista de

benefício material ou reconhecimento público – uma expectativa que teria sido inconcebível

naquela época no mundo do judaísmo babilônio. É verdade que os sábios reconhecidos como

professores da comunidade às vezes recebiam tratamento especial em certas espécies de

transações, de forma que pudessem se devotar ao estudo e ensino da Torá. Assim, Rabenu

Gershom decidiu “que a comunidade deveria sustentar este estudioso cujo talento é o trabalho

do céu... para que ele possa não ser perturbado em seu estudo”. Mesmo assim, havia uma

diferença qualitativa entre a outorga de concessões econômicas especiais desta espécie e a

68

remuneração oficialmente estabelecida dos estudiosos babilônios. Era dever destes sábios

guiar “os remanescentes do povo santo”, que não tinham, eles mesmos, sido privilegiados

para “desfrutar da fonte da Torá ou de seu parentesco”, para citar R. Simão.

Ele descreveu também um comportamento ideal para o povo comum. Eles deveriam

realizar “suas transações de boa fé... e se interessar por todos os mandamentos

... sendo chamados filhos do Deus Vivo... vindo para a Casa de oração... e acostumados a

mostrar gentileza”. Estes dois conjuntos de deveres e padrões – para os sábios e para o povo

comum – se tornaram as luzes de orientação para o judaísmo ashkenazi ao longo da Idade

Média.

Em grande parte, o ideal de devoção ao estudo já vinha sendo realizado nestes dias

iniciais. A extensão pode ser julgada de um caso, trazido ao Rabenu Gershon para decisão,

relativo à disputa entre dois judeus sobre a ruína de manuscritos. Um tinha deixado “alguns

livros com o outro como garantia de um empréstimo, mas quando veio redimi-los, descobriu

que eles estavam gastos e... reclamou: eram livros novos, mas você os estudou e os emprestou

para outros e eles ficaram amarelados de fumaça”. O outro respondeu: “A condição sob a qual

eu lhe emprestei dinheiro foi de estudar e ensinar deles, e emprestá-los para outros”.

Estes detalhes, incidentalmente, fornecem informação sobre o tipo de iluminação

usado durante o estudo. Os manuscritos ficaram amarelados porque eram estudados com a

ajuda de tochas fumarentas. Parece, ainda, que o emprestador considerava um mérito de sua

parte ter emprestado os manuscritos para outros, para também serem estudados; e alega que os

tomou como garantia com esse propósito expresso. Na sociedade cristã desta região e período,

esta disputa somente poderia ser travada, se tanto, entre a escola de um mosteiro e a de outro,

ou, talvez, entre a escola de uma catedral e a de um mosteiro; é muito pouco provável que

pudesse ocorrer entre laicos ordinários.

A extensão de conhecimento livresco derivava do interesse parental pela educação de

seus filhos. Sabemos de um professor que apresentou a seguinte queixa contra seu

empregador ante Rabenu Gershom: “Você veio a mim de novo e de novo e me levou para sua

casa para ensinar seus três filhos. Você me deu três libras por ano por eles, e se fossem

adicionados a seus filhos alunos de fora, iria elevar [o pagamento] para dez libras”. Assim, a

classe que parecia razoável para o pai era uma contendo até dez alunos. Ele estava preparado

para abrigá-los em sua casa, para assegurar a educação de seus próprios filhos. Além disso, o

relato do professor mostra que o pai fornecia a um de seus filhos educação adicional, pois o

professor disse ao pai: “Você me enviou para estar com seu filho e instruí-lo, e apresentá-lo

aos portais dos sábios de manhã e à tarde”. Parece que o pai enviou seu filho para outra

69

cidade, junto com o professor, para “apresentá-lo aos portais dos sábios” naquele local; e se

comprometeu a pagar ao professor as despesas envolvidas. Um esforço como esse e a

existência de “portais dos sábios” abertos àqueles que quisessem estudar seria inimaginável

então na sociedade cristã laica, mesmo entre a aristocracia.

R. Solomon Yitshaki (Rashi 1040-1105)

A força criativa do grupo que lançou os fundamentos da cultura judaica ashkenazi se

manifesta com força nas obras de R. Solomon, mais conhecido como Rashi. Não apenas fez

uma importante contribuição à coesão judaica dentro dos reinos cristãos, que vinham

progressivamente se tornando mais hostis no período em que ele escreveu, mas também

exerceu influência sobre o povo judeu - e não só na área de Ashkenaz - que perdura até nossos

próprios dias. Esse impacto foi obtido quase inteiramente por meio de seus comentários sobre

a Bíblia e o Talmud, que combinam as tradições e métodos pedagógicos das gerações

precedentes em uma apresentação lúcida, sucinta e iluminadora. Suas interpretações chegaram

a nós na forma de incipits do texto seguido por seu comentário.

Em seu comentário sobre as Escrituras, tão perfeitamente combinou sua própria

compreensão com o espírito da Bíblia e o dos Midrashim – a literatura homilética e

interpretativa que precedeu, acompanhou e seguiu os dois Talmuds – que amiúde é difícil

diferenciar entre suas próprias palavras e o texto que ele está citando. O comentário é imbuído

de espírito moral e inclui palavras de consolação tiradas da agadah; ele pulsa com um desejo

de explicar o texto escritural na forma mais direta possível. O vigor espiritual de Rashi o

capacitou a combinar estas duas aspirações dentro de um mesmo comentário, ainda que às

vezes achasse necessário explicitar o significado homilético de uma passagem, ao lado de seu

significado simples. Quando ele mesmo estava incerto, tomava cuidado para evitar oferecer

uma opinião definitiva. Por exemplo, declarou no começo de seu comentário sobre o profeta

Zacarias:

As profecias de Zacarias são de fato muito obscuras. Elas contêm visões que

parecem sonhos requerendo interpretação; e nós somos incapazes de

determinar a verdadeira interpretação até que venha o Mestre Justo. Ainda

assim, no melhor de minha capacidade tentarei dispor-me a interpretar os

textos um a um com base no escrutínio mais próximo.

70

3.3 Vida social e realizações culturais

O clima cultural e o nível de educação no sudoeste europeu

O clima cultural e espiritual entre os círculos superiores da Espanha muçulmana

combinavam devoção ao estudo da Torá com atenção às sensibilidades estéticas. Esta

combinação é evidente na seguinte história:

Foi me dito por um dos anciãos de Granada, possam suas almas repousar em

paz no Paraíso, que eles uma vez estavam sentados desfrutando de um

banquete em um dos cantos sublimes da câmara na qual alguns dos mais

magnificentes e importantes homens daqueles tempos estavam reunidos,

com Rabi Judah Halevi, que ele possa repousar no Paraíso, entre eles; e se

engajaram em conversação honrosa e agradável. Enquanto estavam

admirando a sabedoria do Criador, como vista em toda sua Criação, apareceu

uma bela mulher, vestida em toda sua elegância; e eles se admiraram de sua

beleza e louvaram o Senhor, que Ele seja exaltado, pela perfeição de Suas

obras. Enquanto ainda estavam admirando seu lindo rosto e talhe, ela

começou a falar com seu acompanhante, e eles a ouviram falar coisas

ásperas em voz áspera. Quando Rabi Judah Halevi ouviu essa voz, ele disse:

“A boca que nos prendeu é a boca que nos liberta” [um trocadilho sobre a

frase talmúdica “A boca que proibiu é a boca que permite”]. E todos os que

o ouviram admiraram sua sabedoria em aplicar as palavras de nossos rabinos

de abençoada memória a esse assunto poético.

Este milieu aristocrático de estudiosos e notáveis foi abalado pelas invasões dos

Almôadas. No entanto, mesmo aqueles que fugiram para o norte levaram algo desta atmosfera

com eles, e a reestabeleceram em suas novas moradas.

O clima cultural no oriente

O nível de educação era consideravelmente alto mesmo entre os grupos menos

favorecidos e nos países muçulmanos além da Espanha. De uma questão apresentada a

Maimônides, apreendemos a situação de uma jovem a quem casaram com nove anos. A

descrição deixa claro que o casal era pobre, e que a mulher levava uma vida dura com seu

marido: “Desde que ela está com ele, ele não acendeu uma lâmpada para ela, nem em dia de

semana, nem no shabat ou em um feriado. E ela só vê a luz de uma lâmpada se entra na casa

de sua mãe ou de seu irmão, pois mora com eles em um pátio”.

No entanto, a mulher era educada. “Ela tem um irmão que ensina a Bíblia para

crianças pequenas, e também conhece a Bíblia. Ela pediu a seu irmão que lhe permitisse

71

ensinar a Bíblia junto com ele, para ganhar algo com que manter a si mesma e a seus filhos”.

Engajou-se nesta profissão por seis anos junto com seu irmão. “Depois disso, aconteceu que

seu irmão partiu em viagem. Ela tomou seu lugar e tomou as crianças e ensinou-lhes a Bíblia

e continuou assim por quatro anos”, tornando-se a principal professora desta instituição

educacional. A concorrência era acirrada, como explicou:

Meu sustento não é como o de outros, de forma que se o abandonasse hoje, o

recuperaria amanhã. Se eu deixar os alunos mesmo por um único dia, eu os

procurarei, mas não os encontrarei, porque seus pais os levarão para outras

escolas da Torá. E em relação a meu filho mais velho... homens trazem para

ele seus filhos somente por minha causa, porque ele ainda é um rapaz... E se

eu parasse de ensinar os pequenos... meus filhos e eu estaríamos perdidos.

Ouvimos muito a respeito da educação de meninas nos países islâmicos. Em uma carta

tocante do Egito que parece datar da primeira metade do século XII, uma mulher escreveu em

seu leito de morte:

Eu te digo, minha irmã – possa o Senhor me receber como teu resgate – que

eu caí em uma doença grave e há pequena possibilidade de recuperação dela,

e na verdade eu vejo sonhos que anunciam meu fim... Minha senhora, se o

Senhor nas Alturas vier a decretar minha morte, meu maior desejo é que

você tome conta de minha filha pequena e faça um esforço para que ela

estude. De fato, sei que estou impondo uma carga pesada sobre você. Pois

nós não temos os recursos para sua manutenção, quanto mais os custos de

ensino. Mas nós temos um exemplo de nossa mãe e mestra, a serva de Deus.

Eis aqui um exemplo de uma família judia que certamente não estava muito bem de

vida, na qual as mulheres de duas gerações eram educadas e se preocupavam com a educação

de suas filhas.

O meio cultural e nível de educação no noroeste europeu

Nas comunidades ashkenazis do noroeste da Europa havia relativamente poucas

diferenças entre os estratos sociais. O nível educacional geral era alto. Um dos estudantes de

Abelardo, monge do século XII, registrou em um de seus comentários:

Os judeus, por causa de seu zelo por Deus e seu amor da Lei, põem tantos

filhos quantos eles têm para as letras, para que cada um possa compreender a

Lei de Deus... Um judeu, não importa quão pobre ele seja, se tem dez filhos,

os porá todos para estudar, não para ganhar, como fazem os cristãos, mas

pela compreensão da Lei de Deus; e não só seus filhos mas suas filhas.

72

Nas comunidades de Ashkenaz, a criança era introduzida ao estudo da Torá por meio

de uma cerimônia solene e simbólica. Os judeus ashkenazis, que eram tão altamente

apreciados pelo monge por sua busca de aprendizado, tinham uma prática no século XII pela

qual logo após a circuncisão eles desejam que [um quorum de] dez se reúna e pegue um

Pentateuco; e o bebê no berço é finamente vestido como no dia da circuncisão. Eles põem o

livro sobre ele e dizem: “Que este aqui possa cumprir o que está escrito aqui”. E eles dizem,

“E Ele te será dado” e todos os versos das Bênçãos... e eles colocam um tinteiro e uma pena

de escriba em sua mão para que ele possa ser privilegiado para ser um escriba rápido na Torá

do Senhor.

Assim, enquanto ainda criança o judeu era posto em contato com os objetos de estudo,

que são vistos como sagrados e potentes símbolos de estudo, como se, assim, a criança fosse

absorver o amor da Torá e o desejo de estudá-la.

Chegaram também até nós informações sobre os métodos educacionais empregados

naqueles dias: “E então começavam a ensiná-lo; primeiro o seduzem, mas finalmente usam

um cinto em seu trazeiro... e o acostumam a balançar seu corpo enquanto aprende”.

No devido tempo iremos discutir as rigorosas tendências ascéticas entre os Hassidei

Ashkenaz. Já foi feita referência ao kidush hashem, ou à santificação do Santo Nome pela

morte, e o pavor e glória que envolvia. A vida da família judia, inclusive a dos ascetas e

dirigentes, era, em geral, uma combinação de medo do céu e alegria de viver. R. Eleazar ben

Judah, um dos líderes dos Hassidei Ashkenaz, lamentou sua esposa, “a piedosa Senhora

Dolce”, que foi assassinada pelos cruzados em 1196, juntamente com suas duas filhas jovens.

Em frases tomadas de empréstimo da seção final do Livro de Provérbios, ainda que com

detalhes tomados da vida real, ele descreveu essa valorosa mulher:

Coroa de seu marido, filha de nobres... o coração de seu marido confiava

nela, ela o alimentava e o vestia com honra para sentar com os anciãos da

terra e praticar a Torá e boas ações... todo o tempo ela estava com ele, ela lhe

fazia livros de seu trabalho... Ela procurava lã branca para fiar franjas... fiava

franjas para filactérios, rolos e livros. Era rápida como uma gazela para

cozinhar para as crianças e fazer a vontade dos estudantes... costurou cerca

de quarenta Rolos da Torá... adornou noivas e as trouxe [para o casamento]

com honras. A doce [Dolce] lavava os mortos e costurava suas mortalhas.

Suas mãos costuravam roupas para os estudantes e reparavam livros

rasgados. Abria sua mão para o pobre e dava comida para seus filhos e filhas

e marido. Fazia pavios [para as velas da] sinagoga... e recitava Salmos.

Cantava hinos e preces... recitando o relato da feitura de incenso, e os Dez

Mandamentos. Em todas as cidades instruía mulheres e cantava docemente,

chegando cedo à sinagoga e ficando até tarde. Durante o Dia da Expiação,

73

ficava cantando e tomando conta das velas... Abria sua boca com sabedoria e

sabia o que é proibido e o que é permitido... No Dia de Sábado, ficava

sentada perguntando, absorvendo as palavras de seu marido... Sábia na fala

ela era... comprando leite para aqueles que estudavam e contratando

professores por meio de seu trabalho... Corria para visitar os doentes ...

alimentava seus filhos e exortava-os a estudar... alegrando-se por realizar os

desejos de seu marido, e nunca irritando-o.

Este lamento é não apenas um memorial para uma mulher excepcional amada por seu

marido, mas também a descrição da atmosfera doméstica entre os sábios naqueles dias. A

mulher participava na vida da Torá e das orações não apenas por meio de seus serviços para

os estudantes e os chefes da ieshivah, mas também pela prece, ouvindo sermões, educando as

crianças e fazendo aquelas boas ações que caem dentro da esfera da mulher, como levar

noivas para o dossel e preparar os mortos para o enterro. Os detalhes são rodeados por um ar

de profunda estima pessoal.

De sua filha mais velha, que tinha treze anos quando assassinada, o pai escreveu que

“tinha aprendido todas as preces e melodias de sua mãe. Era piedosa e sábia, uma bela

virgem. Preparava minha cama e tirava minhas botas toda noite. Bellette era ágil em relação a

casa e falava somente a verdade, servindo seu Criador e fiando e costurando e bordando”. O

pai enlutado também lembrou os feitos de sua filha mais jovem: “Cada dia ela recitava Shmá

Israel e a prece seguinte. Tinha seis anos de idade e sabia fiar, costurar e bordar, e me entreter

cantando”.

Maimônides

A reivindicação de autoridade pelos novos guias espirituais pode ser plenamente

discernida nas palavras de Rabenu Moses ben Maimon (1135-1204), conhecido como

Rambam ou Maimônides. Quando exilado da Espanha para o Egito, descobriu que o novo

sistema que se tinha desenvolvido na Europa diferia distintamente do antigo, que ainda era

dominante no leste. Em expressa oposição à reverência em que as ieshivot eram tidas, e com

desprezo por seus métodos e aspirações, Maimônides pediu por uma liderança por figuras

mais espirituais. Várias passagens em seus comentários (sobre a Mishnah) insistem na

absoluta proibição de pagamento de qualquer tipo pelo estudo e ensino da Torá. Censurou as

ieshivot porque seus membros estavam ganhando a vida com “quotas” extorquidas do povo.

Em carta a um aluno, deu a entender que os traços aristocráticos e institucionais do gaonato

deviam corromper o caráter dos ocupantes de seus cargos, e empregou exegese homilética

74

para desacreditar as reivindicações de suporte financeiro por parte dos estudiosos de ieshivah.

Como muitos tanaim e amoraim da era talmúdica eram artesãos e viviam na pobreza, é

impossível supor que, se tivessem solicitado suporte financeiro de seus contemporâneos, eles

não o teriam recebido. Daí segue, Maimônides afirmava, que eles nunca solicitaram esse

suporte, porque o viam como uma transgressão.

Maimônides rejeitava também a premissa das ieshivot de que a educação talmúdica

que forneciam era o único método para obtenção de verdadeira erudição em Israel. Em

marcado contraste com a oposição às ieshivot, Maimônides respeitava a instituição do

exilarcado tanto em teoria como na prática, prestando-lhe plenas honras.

Foi o guia reconhecido de seu povo. Sua assinatura é a primeira a aparecer em um

mandado de ordenações para os judeus do Egito; e sua “Epístola ao Iêmen” mostra que os

judeus iemenitas, que mantinham laços comerciais estreitos com o judaísmo egípcio, o viam

como o guia e confortador a quem eles se voltavam em tempos de desgraças. Questões lhe

eram endereçadas de vários lugares da diáspora, como se ele fosse um gaon; e pelo final de

sua vida chegavam consultas de tão longe quanto o sul da França, tão amplamente seus

escritos eram disseminados.

Maimônides foi o professor mais destacado da escola racionalista. Em forte oposição

às descrições apocalípticas das “dores de parto do Messias” e de um mundo que seria

inteiramente diferente no futuro escatológico, ele declarou:

Que nenhum homem suponha que nos dias do Messias a ordem natural do

mundo será de qualquer forma modificada, ou que haverá qualquer inovação

no universo criado; mas o mundo continuará do seu jeito, e, quanto ao verso

de Isaias, “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao

cabrito”, é uma parábola e um enigma. Significa que Israel habitará seguro

entre os idólatras perversos, que são assemelhados a um lobo ou leopardo... e

todos retornarão para a fé verdadeira... De fato, todas estas passagens

relativas ao Messias são parábolas. E nos dias do Rei Messias todos os

homens saberão qual era o propósito das parábolas, e que assuntos eram lá

indicados. Os sábios disseram: “Não há diferença entre este mundo e os dias

do Messias, exceto em relação à servidão para reis estrangeiros”.

Não apenas Maimônides rejeitou totalmente as descrições místicas dos dias do

Messias, que em sua opinião eram fantásticas e exageradas, e adiou para o futuro a

compreensão dos textos bíblicos que descrevem aqueles tempos em termos miraculosos, mas

também repetidamente enfatizou o caráter humano e real do Messias. Também neste assunto,

o estilo e o espírito de suas palavras eram os das decisões legais tanto quanto os de um tratado

polêmico:

75

Não permita a si mesmo supor que o Rei Messias necessita realizar sinais e

maravilhas, ou trazer inovações para o mundo, ou ressuscitar os mortos, ou

qualquer coisa desse tipo. Não é assim... Se surgir um rei da casa de David

que seja instruído na Torá e na Lei Oral, e se ele ordena todo Israel a

observar a Torá e repara suas brechas, e trava as Guerras do Senhor, então,

de fato, ele se qualifica como o Messias. Se fez essas coisas com sucesso e

construiu o Templo em seu lugar legítimo e reuniu os dispersos de Israel,

então, de fato, ele seguramente é o Messias. E ele trará a Restauração do

Mundo, para servir o Senhor juntos.

A concepção naturalística e intelectualizada da Redenção de Maimônides era um

produto tanto de sua abordadem basicamente racionalista quanto de sua concepção do tipo de

guias que Deus envia para a humanidade. Ele desenvolveu sua doutrina da profecia e do

Messias sob a influência da filosofia Greco-árabe. Nesta, grandeza de intelecto e ensino são

prerrequisitos essenciais para a profecia. No entanto, enquanto realizações intelectuais e

morais são condições necessárias, elas não são em si mesmas qualificações suficientes para a

profecia. Ao contrário de seus predecessores entre os filósofos árabes, Maimônides deixou

para a Divindade o direito de “veto”: o homem que atingiu estas alturas da realização humana

é potencialmente capaz de profetizar; mas se ele profetiza ou não depende da Vontade Divina.

Os milagres não são a marca registrada da profecia. O Messias deve, inevitavelmente, ser um

profeta, um homem que atingiu o pináculo da sabedoria.

Maimônides via o exílio como uma poderosa competição espiritual e social. O campo

da verdade, i.e., o exército de Israel, fora constantemente cercado por inimigos desejosos de

destruir a verdade que Israel defendia. Em dias anteriores, os reis de diversas nações haviam

empregado somente o método da coerção; em dias posteriores, tentaram vencer pela sedução.

A inovação introduzida pelo cristianismo e depois pelo Islã estava na combinação de coerção

e sedução, o que explica o fato de que a guerra judaica era tão difícil de travar em sua época.

Estava convencido de que Israel iria emergir vitorioso, porque a vitória de Israel significaria a

vitória da verdade. Maimônides parece ter realmente acreditado que o Messias viria em seus

dias.

3.4 Criatividade espiritual e social

Disputas judeo-cristãs na Espanha

76

Na Disputa de Tortosa (1413-4) os judeus estavam sob forte pressão social; e esta

pressão, em conjunto com memórias frescas de 1391, encorajou os judeus a verem a disputa

como uma fonte potencial de sérios danos físicos para suas comunidades. Sob essas difíceis

circunstâncias, os representantes judeus se comportaram com perspicácia e coragem

consideráveis. R. Zerahiah Halevi Ferrer teve destaque particular. Os cristãos preferiram

começar com passagens bíblicas e agádicas provando que, com Jesus, o Messias já tinha

vindo, mas R. Zerahiah solicitou que fossem consideradas as “condições” para autenticação

do Messias. No curso do prolongado debate sobre a questão do Messias, os representantes

judeus insistiram uma e outra vez que as diferenças essenciais entre judaísmo e cristianismo

não estavam na questão da atualidade do Messias. O judaísmo prescrevia um conjunto de

características definidas para seu esperado salvador. Ele deve ser um homem da realeza e não

um Deus incarnado; não há conexão entre a vinda do Messias e a expiação da espécie humana

pelo “pecado original”. O significado simples dos versos bíblicos deveria ser o espírito de sua

letra, e não alguma interpretação alegórica; o Messias virá como rei para a restaurada

Jerusalém terrestre, negando importância para a imagem da “Jerusalém celestial”. O

prolongamento do exílio judaico é um mistério divino – todas as razões dadas para sua

duração até então sendo apenas consolação moral, decorrentes do ponto de vista humano e de

decisões arbitrárias de intérpretes daqueles mistérios. Os judeus concluíram seu argumento

com uma consideração metodológica e moral da atitude de interpretação: um fragmento não

pode ser tirado do contexto, e certamente não deve ser interpretado contra o espírito que

permeia e os princípios imanentes de seu contexto. Assim, ninguém pode tomar ditos

talmúdicos isolados e interpretá-los em qualquer sentido autoritário sem acreditar no Talmud

como um todo e se submeter a sua autoridade.

R. Zarahiah Halevi sumarizou para os judeus pedindo que cristãos e judeus concordem

que os princípios de suas fés não podem ser provados, mas são apenas uma questão de crença.

Além disso, os escritos sagrados para cada religião devem ser interpretados de acordo com

seus próprios princípios e não de acordo com os princípios de qualquer outra fé. Assim, se,

por exemplo, as lendas talmúdicas contêm algo aparentemente oposto aos princípios da fé

judaica, isto não pode ser interpretado de maneira isolada, com o objetivo de contradizer os

princípios do judaísmo, mas deve se submeter àqueles princípios.

A atmosfera espiritual e social em Ashkenaz

77

As comunidades judaicas que se consolidaram em Ashkenaz após a Peste Negra

reestruturaram uma forma de vida estabelecida e um conjunto de ideais dentro de um período

relativamente curto, e certos círculos foram muito estritos em sua implementação.

No século XV, os “primeiros hassidim de Neustadt”, na Áustria, eram tidos em alta

estima. Suas atitudes gerais e modo de vida podem ser julgados da narrativa de R. Shalom da

Áustria:

Em seus dias havia certo chefe de família... que se comportava em casa com

grande piedade. Ele tinha uma peça especial... na qual comia pratos de carne,

e outra peça especial para laticínios. E insistia que o gentio que costumava

lhe trazer água deveria usar um manto branco, e em um número de outros

assuntos semelhantes fazia uma cobertura e uma cerca com o propósito de

manter à distância o que quer que fosse proibido. Ele também trouxe para

sua casa dois irmãos órfãos... E era um dos primeiros hassidim de Neustadt.

A estrita observância da lei era disseminada nos círculos desses pietistas.

Apreendemos que “a esposa do rabino em certa cidade usava franjas todo o tempo”, mesmo

que esse mandamento deva ser cumprido apenas por homens. O grande rabino explicava que

ele não opunha quaisquer objeções por medo de “que ela não me obedeceria”. Isso também

refletia a tendência em direção à igualdade das mulheres na vida religiosa, que era popular

entre os cabalistas na Espanha.

Quando as comunidades estavam mais firmemente estabelecidas, R. Jacob Moellin,

que era ativo nas antigas comunidades do distrito do Reno, formulou uma escala de valores

para serviço público para os membros das várias classes. O princípio subjacente era “’afastar-

se do mal e fazer o bem’ de forma que um homem não deveria dizer... Eu não farei o mal nem

farei o bem. É por isso que a Bíblia prescreveu ‘e fazer o bem’, e não há bem melhor do que a

caridade, que é o mandamento básico pelo qual o mundo existe”. Este mandamento pode ser

cumprido de diversas formas, e com consideração pela capacidade individual:

Se o homem é um estudioso, que mostre bondade ensinando a Torá a

pessoas sem cobrar. E que seja agradável em suas relações... sempre, pronto

tanto para julgar quanto para instruir, sem demora. Se um homem é rico e

suas palavras são escutadas pelas autoridades, que esteja preparado para

recomendar as necessidades do povo ante os governantes. Mas se um

homem é pobre e precisa de seu dinheiro, que ele, em cada caso, tente fazer

o bem que puder. E se está em necessidade e deve obter seu sustento de

outros por sua labuta, que não tome mais do que o seu valor, e cobre menos

de um judeu do que de um gentio, e peça menos da comunidade do que de

indivíduos. E, de fato,... a essência da caridade é preocupar-se com a

comunidade.

78

A atividade diplomática em nome do povo judeu era vista como o serviço apropriado

para a classe alta, enquanto o ensino e o julgamento deviam ser realizados pelos estudiosos. A

pessoa engajada em tarefas manuais aparece por último em sua classificação, como alguém

“em necessidade e que deve obter seu sustento de outros por sua labuta”. Aos olhos do rabino,

esta situação é pior do que a do “homem pobre”, que é descrito como alguém com pouca

riqueza, toda ela investida na necessidade de sustentar-se.

Na explicação do comentário talmúdico que R. Judah Hanasi usava para honrar os

ricos, há evidência da tensão social da época. A explicação sustentava que “como o próprio

Rabi Judah era excessivamente rico, ele se acostumou a honrar os ricos para que as pessoas

pudessem aprender que elas também deviam honrá-lo por sua riqueza e não por seu

conhecimento da Torá”. “Quando [R. Israel Isserlein] viu certo chefe de família que tinha o

bastante para viver mas corria atrás de dinheiro dia e noite, estava sempre pensando em

riquezas, e suas relações não eram de boa fé, o Gaon disse: ‘Você quer ficar rico por pura

força; isto é incrível. Há até mesmo sábios que não são dignos de riqueza, que é um presente

dos céus’”.

Na vida doméstica também havia mais prazer do que se admite usualmente. R. Jacob

Moellin “permitia que ramos de árvores cortados no verão fossem postos em água no shabat,

para dar prazer no shabat”. R. Israel Isserlein conta que “Escutei na ieshivah (i.e., em sua

juventude) de um dos grandes estudiosos que em tempos idos em Krems... o rabino da cidade,

que era um dos grandes homens daquela época, junto com todos os valorosos da

congregação... iam caminhar ao longo da margem do rio Danúbio após comer o banquete do

shabat”. E esta caminhada não era o único relaxamento. Nos dias de R. Isserlein “a maioria

das pessoas, incluindo até os mais estritos, costumavam reunir-se no shabat após sair da

sinagoga e trocar novas relativas aos negócios dos reis e nobres e o curso das guerras”. O

rabino permitia isso “se as pessoas obtém prazer... como de fato muitos obtêm”, mas ficava

apreensivo pois tinha visto em muitas ocasiões que alguns daqueles que conversavam “não

obtêm prazer neste tipo de conversa e rumores, mas fazem isso para agradar seus

companheiros que se juntaram a eles”.

Parece que os judeus usavam as mesmas roupas que os gentios, pelo menos quando

viajavam, pois é dito que “judeus se hospedaram em certa hospedaria pertencente a não-

judeus. E havia lá muitos não-judeus. E quando os judeus sentaram... para comer... não

sabiam que havia judeus com eles na hospedaria”. Judeus também saiam “para ver os prazeres

dos incircuncisos quando eles apostavam e corriam com seus cavalos, o vencedor ganhando

ouro”. O rabino permitia isso porque não era por prazer, mas para “aprender o ofício, como

79

comprar cavalos que podem correr mais rápido para escapar do inimigo; e isso eu vi de

pessoas conhecidas por suas obras piedosas”.

Do relato de R. Jacob Moellin sobre certo incidente em sua própria cidade de Mainz,

aprendemos que havia uma vida social animada na ieshivah: parece que “um importante

jovem estudioso... tinha rapazes, estudantes e amigos em sua casa que comiam lá por um

pagamento... e costumava ensinar-lhes o sentido correto” do Talmud e algo das discussões.

Este “hostel estudantil” era mantido em ordem por uma servente viúva. À noite, “quatro dos

estudantes se reuniram para escutar problemas difíceis discutidos por seu mestre”, o dono da

casa. Um deles “estava noivo de uma donzela digna de boa família, e seu pai era muito rico,

possuindo ampla propriedade”. O rapaz tinha cerca de dezesseis anos, e a despeito de seu

noivado ele jocosamente “desposou” a servente viúva.

O Zohar

A literatura dos judeus místicos da Idade Média apareceu primeiro na Provença e

depois na Espanha cristã. Parte da literatura foi intencionalmente apresentada na forma de

obra coletiva. A obra mais amplamente aceita desta literatura é o Zohar [esplendor], que

parece ter sido escrito e compilado no século XIII; acredita-se que recebeu sua forma final de

R. Moses de Leon. É escrito em um aramaico único e afirma consistir das palavras de muitos

tanaim mishnaicos e amoraim talmúdicos, em particular R. Simeon bar Iohai, a quem a obra é

tradicionalmente atribuída, e seus discípulos.

Os comentários de Nahmanides, o Zohar e as obras dos místicos da Espanha e da

Provença nos séculos XII e XIII dariam uma forma escrita e compreensível dos objetivos e

realizações dos místicos, em suas visões celestiais e sua penetração nos estratos secretos da

Torá. A literatura foi produzida por um grupo muito pequeno de místicos, que reportaram

oralmente visões e interpretações ocultas. O espírito dos tempos e a necessidade de polemizar

contra os racionalistas levaram os místicos a se expressar em parte de uma forma que pudesse

ser compreendida pelo público em geral.

Algumas ligações ideológicas existiam entre os racionalistas e os místicos, mas todas

as pontes foram queimadas entre seus principais representantes. O conflito se tornou mais

agudo porque, inevitavelmente, envolvia questões a respeito do tipo de educação que era

permitido para um judeu. Estes conflitos espirituais amiúde eram complicados por tensões

sociais; assim, entre os judeus da península ibérica e vizinhanças, não somente haviam

80

diferentes pontos de vista e interpretações entre os guias intelectuais, mas as facções sociais

dentro das comunidades também estavam em competição.

A Cabala não apenas introduziu conceitos gnósticos que eram totalmente alheios ao

monoteísmo ético da Bíblia; em certo sentido, era uma religião completamente diferente:

panteísmo. Tanto sua cosmogonia – seu relato de como a criação foi concebida nas palavras

de Deus – e sua teoria da emanação divina levaram à conclusão lógica de que todas as coisas

contêm um elemento divino. Na década de 1280, um destacado cabalista espanhol, Moses ben

Shem Tov de Guadalajara, produziu uma summa da sabedoria cabalista, o Sefer ha-Zohar,

geralmente conhecido como Zohar, que se tornou o mais bem conhecido tratado sobre o

assunto. Muito dessa obra é explicitamente panteísta: ela insiste repetidamente que Deus “é

tudo”, e que tudo está unido Nele, “como é sabido dos místicos”. Mas se Deus está em tudo, e

tudo está em Deus, como pode Deus ser um ser único, específico, não-criado e absolutamente

separado da criação, como o judaísmo ortodoxo sempre afirmou enfaticamente? Não há

resposta para essa questão, exceto a simples de que Zohar-Cabala é heresia da espécie mais

perniciosa. Mesmo assim, é um fato que este tipo de panteísmo místico exerce um curioso

apelo para muitas pessoas inteligentes cuja abordagem usual do pensamento é sobriamente

racional. Por um paradoxo notável, a corrente de especulação que levaria Spinoza para fora do

judaísmo levou-o também ao panteísmo, de forma que ele foi o produto final tanto do

racionalismo de Maimônides quanto do anti-racionalismo de seus oponentes.

3.5 Ideais sociais no final da Idade Média

Dilemas colocados pela expulsão da Espanha

Muitos dos exilados sefaraditas foram perturbados, por gerações após sua expulsão,

pelo pensamento de que tinham sido expelidos da península ibérica sem tentar qualquer

resistência armada. Alguns se disseram que a dispersão em pequenos grupos dentro das

cidades gentias tinha feito deles vítimas desamparadas daqueles e impedido de oferecer

qualquer resistência real. R. Joseph ibn Yahia argumenta que quando Haman propôs que os

judeus deviam ser expulsos da antiga Pérsia, ele afirmou que “não há razão para temer que no

dia de sua destruição eles irão criar uma perturbação no reino ou resistir àqueles que se

levantam contra eles. Pois nenhum som será escutado quando eles forem destruídos, pois

estão dispersos, uns poucos aqui e uns poucos lá”. Nem teria, sua expulsão, qualquer efeito

81

danoso na vida diária, Haman explicou ao rei: “Não suponha que você tornará qualquer parte

do seu reino despovoado [expulsando os judeus]... pois... sua dispersão os mantêm

completamente isolados, pois há apenas uns poucos deles aqui e ali, e assim seu povo é

incapaz de se unir”.

Estas reflexões foram formuladas por R. Simhah (Simone) Luzzatto em uma

declaração apologética cujo motivo central é a submissão à expulsão:

Os judeus... nunca desejaram tentar novos meios de elevar o status de seu

povo em geral. Pois eles acreditam que toda mudança reconhecível que

tenha a ver com eles deriva de uma Alta Causa, e não do esforço humano. O

Decreto de Expulsão de Castela e outros reinos vizinhos... envolveu cerca de

meio milhão de pessoas... inclusive homens de alta inteligência e

conselheiros do estado... mesmo assim, entre este grande número não havia

sequer um único homem que se atrevesse a oferecer qualquer conselho firme

e enérgico para que eles se salvassem daquela amarga Expulsão. Mas

estavam dispersos e espalhados em todo o mundo, o que é uma prova

decisiva de que os judeus... tendem à submissão e obediência a seus

governantes.

Os exilados foram também testados em sua esperança messiânica, que parecia muito

longe da realização. A resposta a esse desafio foi não apenas um despertar do fervor

messiânico. Mesmo R. Isaac Abrabanel, o guia dos exilados hispânicos, que repetidamente

deu expressão à ardente esperança messiânica, registrou o que devem ter sido seus

sentimentos mais íntimos, escrevendo que:

nos dias da Redenção. eu contarei como eu costumava dizer naqueles dias

[i.e., nos tempos de desespero que se seguiram à Expulsão]... os profetas que

profetizaram a respeito de minha Redenção e salvação são todos falsos...

Moisés, possa ele descansar em paz, foi falso em seus pronunciamentos,

Isaias mentiu em suas consolações, Jeremias e Ezequiel mentiram em suas

profecias, e da mesma forma todos os outros profetas. Que o povo lembre...

todas as coisas desesperadas que eles costumavam dizer no tempo do Exílio.

O problema da atitude em relação aos marranos também se tornou mais agudo e

complicado. Aqueles que tinham abandonado os túmulos de seus pais, seus lares, suas

propriedades e seus laços com a terra e a cultura da Espanha, que amavam e apreciavam, para

poder permanecer leais ao judaísmo, eram naturalmente severos em sua atitude em relação

àqueles que, ao preço de fingir aceitar o cristianismo, tinham continuado a possuir tudo o que

os exilados tinham entregado. Neste momento, mesmo seus sofrimentos sob a Inquisição

pareciam ser uma punição bem merecida. Cerca de dois anos após a expulsão, R. Joel ibn

Shuaib proclamou:

82

estas palavras com relação àqueles que abandonaram a Torá e deixaram a

comunidade... que o bendito Senhor possa rejeitá-los... e destruí-los

completamente... Que Ele os rejeite com ambas as mãos como a fumaça é

soprada para longe... pois pensaram que poderiam se separar do fogo

separando-se da Congregação; assim o Senhor os separou para o mal de

todas as tribos de Israel como a fumaça é separada do fogo e rejeitada... Que

caiam por aquilo de que esperavam escapar e sejam consumidos pelo fogo,

completamente perdidos neste mundo e no próximo... porque eram da

semente de Israel e malvadamente separaram-se dela.

Não muito tempo após a expulsão, começaram a ser ouvidos argumentos em favor dos

marranos, particularmente depois de Portugal ter imposto o cristianismo à força àqueles que

fugiam para lá. Os judeus que escaparam partilharam a angústia dos marranos lá. Um

estudioso que chegou a Salônica em 1500 declarou: “Eu e todo o povo desta geração somos

obrigados a nos angustiar e preocupar e afligir toda nossa vida por nossos pais e irmãos que

sofreram a grande destruição da Espanha, pois eles queriam vir e servir O Senhor, mas não

lhes permitiram partir, de forma que tiveram que servir outros deuses sob compulsão”.

Com o passar do tempo, vários problemas teóricos e práticos influenciaram a atitude

em relação aos marranos. A despeito disso, eles e seu modo de vida formaram fatores

extremamente ativos na conduta dos negócios comunais judaicos, e nas ações e pensamentos

religiosos judaicos. Dentro da comunidade judaica como um todo, desenvolveu-se, na

verdade, certo sentimentalismo em relação aos marranos e seus vínculos com o judaísmo.

Muito disso era lenda ou fantasia, mas, mesmo que tivessem pouco a ver com a vida real dos

marranos, é de interesse por mostrar o que os judeus pensavam deles.

A partida da Espanha levou a uma considerável tensão social e cultural entre os

exilados e as comunidades judaicas que os admitiam. A cultura do judaísmo espanhol mostrou

força considerável, e em muitos locais chegou a dominar a cultura judaica local. Mas naquelas

regiões onde isso não ocorreu, existia certa tensão. Os exilados tinham os ambientes judaicos

para os quais vinham em baixa estima. Isto era particularmente verdadeiro na Itália, onde se

confrontaram com a cultura do judaísmo ashquenazi. R. Isaac Abrabanel zombava do estilo e

fala hebraicos “na Terra de Ashquenaz... nas bocas de seus rabinos... apesar de serem...

numerosos, sua fala é... uma paródia e farsa que não tem rima nem razão”. A semihah

[ordenação] ashquenazi de rabinos também era ridicularizada pelos eruditos espanhóis. Os

estudiosos ashquenazitas replicavam com críticas e queixas acerca dos descendentes de

marranos cuja cultura judaica era contaminada pela cultura cristã de seu ambiente, e que se

atreviam a criticar o estilo de vida e a criatividade literária dos ashquenazitas, que nunca

83

adotaram a cultura de seu ambiente. Em Safed e outros lugares influenciados pela cultura

sefaradita, esta tensão desaparecia.

Divindade, existência e exílio na Doutrina de Safed

O poder criativo do judaísmo espanhol exilado, a força espiritual que foi liberada pelo

choque da expulsão, e a resistência psicológica dos marranos e seus descendentes em reação

ao pavor do batismo forçado, todos encontraram expressão no modo de vida e doutrinas dos

sábios de Safed. Já nos referimos acima ao caráter da liderança nesta comunidade e suas

tendências voluntaristas. Sobre as fundações que os assentados em Safed tinham estabelecido

no século XVI e com base no pensamento e experiência espiritual daquelas gerações, a

estrutura do pensamento místico judaico começou a subir novamente. A Cabala – como a

doutrina mística judaica começou a ser chamada a partir de então – começou a mostrar sinais

de criatividade pouco antes da expulsão da Espanha, após um prolongado intervalo desde a

metade do século XIV. Seguindo a expulsão, essa doutrina começou a se espalhar por toda

parte. Além disso, aqueles que se engajaram nela não mais achavam necessário restringi-la a

círculos estreitos.

As doutrinas de Safed eram baseadas em algumas destacadas personalidades cujas

qualidades tinham sido imprimidas na consciência e imaginação do povo, não menos do que

em um amplo sistema de pontos de vista místicos e teóricos. Entre essas figuras, a principal é

R. Isaac Luria, “o santo Ari”, que morreu em 1572, aos trinta e oito anos. Suas doutrinas,

disseminadas por seus notáveis discípulos, deixaram uma impressão muito profunda no

mundo judaico. Sua imagem é rodeada por uma santidade luminosa. Contavam-se milagres

sobre seu nascimento e circuncisão. Quando seu pai chorou nesta ocasião, “Elias, de

abençoada memória, veio a ele e disse: Não chore, servo de Deus. Vá para o altar e faça seu

sacrifício, que é inteiramente para o Senhor, e sente-se... E eu sentarei em seu colo e em

minhas mãos eu segurarei essa criança”.

As doutrinas místicas emanadas de Safed, e particularmente da escola do Ari, davam

significado cósmico e humano ao Exílio e à Redenção. Seu ponto de partida era a questão:

“Se a Divindade está em tudo, e tudo é preenchido com ela, como pode existir qualquer lugar

no universo que não é Deus?” A resposta que eles encontraram envolve “o mistério do

tsimtsum (retirada, encolhimento). Quando Deus, o Ein-Sof, ou Ilimitado e Infinito,

determinou-se a criar o Universo, Ele, por assim dizer, retirou-Se, ou reduziu-Se para deixar

84

espaço para Seu universo – um vazio negro. Assim, a Criação não é uma expansão da

Divindade, mas seu recolhimento ou concentração dentro de si mesmo”.

Gershom Scholem indicou, com certa justiça, que ainda que os cabalistas nunca o

declarassem expressamente, “esta primeira ação de tsimtsum cria a impressão de um Exílio

primal. Deus não fez tanto por Se revelar como para exilar a Si mesmo nos recessos de Seu

Ser”. Neste universo existem várias Sefirot (esferas de luz emanada) irradiando plenitude da

Divina influência. Essas sefirot são vasos contendo a esmagadora irradiação Divina. No

entanto, somente as primeiras três sefirot podiam conter adequadamente a Luz Divina

primeva. Quando a irradiação atingiu as seis sefirot inferiores, sua capacidade falhou e a Luz

as destruiu. Centelhas da Luz Divina primeva foram aprisionadas nos fragmentos dos vasos,

algumas das quais subiram para o alto, enquanto outras desceram e afundaram. Aquelas que

afundaram são as Klipot, ou cacos, que foram transformadas em forças de impureza e mal.

Sua força deriva das centelhas da Luz Divina que ainda estão aprisionadas com elas. Isto é o

Exílio – a luz aprisionada dentro dos vasos quebrados e sujeita ao mal. A própria Shehinah, a

Divina Presença, está no Exílio, e por isso o universo é falho. Mas quando as centelhas que

estão aprisionadas nos vasos quebrados forem redimidas, o Exílio da Luz chegará ao final, e a

Redenção humana e Cósmica virá. Essa será a hora da redenção nacional judaica. A Torá e os

mandamentos são os meios dados por Deus àqueles que O servem na terra – a saber, o povo

judeu – com os quais eles podem consertar o cosmos. Cumprindo os mandamentos e evitando

transgressões eles podem aperfeiçoar não só as almas dos judeus, mas de todo o mundo,

libertando e redimindo a Luz Divina. O propósito do Exílio é trabalhar constantemente em

direção à Redenção da Luz do lugar de seu cativeiro, privar o mal de seu poder. Isto, de

acordo com a Cabala, é a missão de cada uma e de toda alma judaica.

Os esforços do indivíduo são passíveis de repetição constante através das gerações,

pois os cabalistas lurianos acreditavam na transmigração das almas. R. Isaac Luria deu aos

judeus um novo mito para compreender sua existência, tanto em realizações como em

tribulação. As falhas do indivíduo e da comunidade nunca podem ser finais ou absolutas, mas

apenas um estágio em uma sucessão de reincarnações, um processo incessante que

inevitavelmente irá “aperfeiçoar o universo como o Reino do Todo-poderoso”. Assim, aqueles

que seguiam sua doutrina viam a si mesmos comprometidos a disseminá-la; pois através dela

eles revelavam ao judeu comum não apenas o propósito de sua angústia e sofrimento, mas

também o elevado significado de cada detalhe dos mandamentos. Não é por acaso, portanto,

que as doutrinas do Ari eram espalhadas não apenas em obras cabalistas sistemáticas e

filosóficas, mas também em extensa literatura de pregação homilética.

85

Estes moralistas pregavam também a conclusão prática a ser tirada da doutrina mística

das klipot.

Nossos pecados obrigam o Santo e Abençoado a vestir-se e a sua Shehinah

com dez cacos... E os cacos que nossos pecados obrigaram o Santo e

Abençoado a vestir serão requeridos de nós... Como, então, pode o judeu

regozijar-se quando sabe quantas barreiras sobre barreiras seus pecados

obrigaram Deus e Sua Shehinah a vestir; e esta é a razão para a duração de

nosso Exílio... E por causa disso nossos rabinos, de abençoada memória,

disseram “que Israel só pode ser redimido através do Arrependimento” para

que as klipot possam ser quebradas.

Este sistema ético, assim, é derivado em cada estágio dos conceitos da teoria

cabalista. A tensão entre Exílio e Redenção, o horror da Shehinah estar no

Exílio e a Luz aprisionada nas klipot são usados para guiar e instruir cada

judeu em seus atos a cada momento, já que esses são atos que consertam e

aperfeiçoam o universo e o levam à restauração final, ou, alternativamente,

contaminam o homem e o universo, fazendo que o judeu seja cruel com sua

mãe, a Shehinah, e impedindo sua alma de se rejubilar na união com o amor

e a beleza mais altos.

A liderança messiânica

A partir do começo do século XVI, vários indivíduos reivindicaram sua liderança

sobre todos os judeus em virtude de sua missão redentora. Um dos mais interessantes foi o

homem que se apresentou como David Reubeni, príncipe da casa real da tribo de Reuben. Ele

combinou a antiga crença que as Dez Tribos perdidas viviam com esmagador poder militar e

político além das Montanhas da Escuridão, preparadas para vir em apoio de seus irmãos

judeus, com a aspiração cristã de estabelecer um “Segundo Front” para conquistar os

muçulmanos. Apareceu entre as comunidades da Itália na década de 1520 e chegou a Portugal

e suas comunidades marranas antes de desaparecer na década de 1530. Em Portugal, levou o

cristão-novo Diogo Pires a se circuncidar e se tornar o cabalista e visionário judeu Solomon

Molcho. Juntos, vieram ante o imperador da Alemanha, onde Molcho morreu como mártir, na

fogueira, enquanto David Reubeni desapareceu – como convinha a seu misterioso caráter.

Deixou para trás um diário, que mostra que ainda mais importante do que o homem real –

sobre cujas origens os historiadores ainda divergem – era a imagem que ele queria apresentar.

Em seu modo de vida e em suas narrativas, apresentava-se à semelhança de um paladino

judeu, ascético e temente a Deus, diplomata e pregador, que ao mesmo tempo atraía e repelia

comunidades através da personalidade imaginária que projetava.

86

Shabtai Tsvi e seu profeta Natan de Gaza são as figuras mais destacadas deste período.

O estilo que adotaram foi crucial para seu sucesso. O profeta Natan enviou instruções

clamando por penitência, que foram aceitas literalmente e obedecidas por pessoas em terras

distantes, de Amsterdã ao Iêmen, da fronteira oriental da Polônia às aldeias remotas das

montanhas Atlas no norte da África; e em muitos lugares foram aceitos com boa vontade e

entusiasmo. Os poucos oponentes tiveram que baixar suas vozes. Eles tinham que ficar

calados nas sinagogas quando eram pronunciadas bênçãos para o Rei Messias. Estas bênçãos

eram baseadas em fórmulas usadas pelos judeus para seus governantes gentios, acopladas com

formulações de adoração messiânica.

E esta é a forma da bênção: Que Aquele que dá vitória a reis e domínio a

príncipes, e cujo Reino se estende para todos os Universos... que faz um

Pacto com David seu servidor para estabelecer seu trono real para sempre,

que Ele abençoe e guarde e preserve e ajude e eleve e aumente e erga ainda

mais alto nosso Senhor e Rei, o Santo Rabino justo e salvo, a saber Shabtai

Tsvi, ungido pelo Deus de Jacob, que sua glória seja exaltada e seu reino

estabelecido no alto ...que sua trombeta se eleve em honra e o diadema de

seu Deus esteja em sua cabeça... que seu nome viva para sempre, que seu

nome brilhe ante o sol e que as pessoas se abençoem por isso. Que todos os

povos o reconheçam. Que nossos olhos vejam e nossos corações se

rejubilem pela reconstrução de nosso Templo e nossa glória, o Santo Lugar

do Senhor que suas mãos estabeleceram, e assim seja a Sua vontade, e

digamos Amém.

Em gerações anteriores, é certo, houve messias que afirmaram que iriam redimir

Israel, mas sua reivindicação nunca tinha sido amplamente aceita, e o povo não tinha

obedecido a suas ordens nem honrado sua auto-elevação em tão alto grau. Por apenas uns

poucos anos – mas anos que foram emocional e intelectualmente intensos – Israel teve seu Rei

Messias, um profeta de Deus; experimentou um sentimento de independência. Até certo

ponto, isso significou um renascimento – ainda que breve – das antigas formas de liderança

bíblica.

Mesmo que se rejeite a hipótese de um vínculo entre a ideologia sabateana e a dos

hassidim fundada pelo R. Israel Ba’al Shem Tov, é claro que a própria possibilidade de

reconhecer absoluta reverência por um tsadik, e por seus filhos após ele, tem suas raízes no

século XVII. É até mesmo possível que a resposta do povo judeu a uma figura como Theodor

Herzl nos séculos XIX e XX tenha suas raízes na reação popular ao sucesso de Shabtai Tsvi.

A Cabala luriânica

87

A expulsão da Espanha tornou a Cabala dinâmica, pela adição de um elemento

escatológico concentrado na noção de Sion e da vinda do Messias. A Cabala e seu crescente

volume de acréscimos supersticiosos cessaram de ser apenas um caminho místico para

conhecer Deus, e se tornaram uma força histórica, uma forma de acelerar a redenção de Israel.

Ela se moveu para o próprio centro da crença judaica e assumiu algumas das características de

um movimento de massas.

O processo foi assistido pela deriva de exilados judeus para a Palestina e o

crescimento de uma escola de estudos cabalistas em Safed. Seu primeiro estudioso notável foi

David ben Solomon ibn abi Zimra, que se mudou do Egito para Safed, e era conhecido como

Radbaz. Moses ben Jacob Cordovero, ou Remak (1522-70), forneceu a primeira teologia

completa e sistemática da Cabala. Mas o verdadeiro gênio do novo movimento foi Isaac ben

Solomon Luria (1534-72), conhecido como ha-Ari, o Leão. Seu pai era um ashkenazita da

Europa oriental-central que foi para Jerusalém e desposou uma jovem sefaradita. Assim, na

transmissão da cultura cabalista, Luria atuou como ponte entre as duas comunidades.

Dedicou-se ao comércio, especializando-se em pimenta e milho. Luria foi um exemplo

esplêndido da tradição judaica de que os negócios não são incompatíveis com vida intelectual,

ou mesmo com a mais intensa especulação mística. Negociou e estudou toda sua vida. È um

sinal de democratização da Cabala que ele tenha absorvido suas lendas na infância. Mas como

jovem adulto ele se tornou especialista em halahah ortodoxa, não-mística. Um de seus dons

foi reconciliar e mover-se facilmente entre as duas. Escreveu muito pouco. Seu único livro

conhecido é um comentário sobre o “Livro do Encobrimento” no Zohar. Só se mudou para

Safed no final de sua vida, após passar os anos 1569-70 refletindo sobre o Zohar em uma ilha

no Nilo. Mas, uma vez em Safed, teve um efeito hipnotizante sobre o amplo círculo de

discípulos que reuniu em torno de si. Eles memorizavam seus ensinamentos e mais tarde os

escreveram. Irradiava não apenas santidade, mas poder e autoridade. Alguns pensavam que

poderia ser o próprio Messias. Parecia entender a linguagem dos pássaros. Amiúde, falava

com os profetas. Caminhava em redor de Safed com seus alunos, apontando, por

conhecimento intuitivo, os túmulos não-identificados de santos homens. E aí voltava para o

negócio de exportação-importação. Concluiu sua última contabilidade apenas três dias antes

de morrer. Sua morte prematura deu origem a contos de que tinha ascendido ao céu, e

histórias de milagres logo se ligaram ao seu nome.

Luria adquiriu sua influência inicial ensinando seus alunos a atingirem estados

intensos de meditação concentrando-se inteiramente nas letras dos Nomes Divinos. Como

muitos cabalistas, acreditava que as letras da Torá, e os números que elas simbolizavam,

88

ofereciam meios de acesso direto a Deus. No entanto, Luria tinha também uma teoria cósmica

com consequências imediatas sobre a crença no Messias, e que continua a ser a mais influente

de todas as ideias místicas judaicas. Luria postulou o pensamento de que as misérias judaicas

eram um sintoma do colapso do cosmos. Seus cacos quebrados, ou klipot, que eram maus,

mesmo assim continham pequenas centelhas, tikim, da luz divina. Esta luz aprisionada é o

Exílio dos judeus. Mesmo a própria Shehinah divina é parte da luz presa, sujeita a más

influências. O povo judeu tem um significado dual neste cosmos quebrado, tanto símbolos

quanto agentes ativos. Como símbolos, as injúrias cometidas contra eles pelos gentios

mostram como o mal fere a luz. Mas como agentes eles têm a tarefa de restaurar o cosmos.

Pela estrita observância da Lei, podem libertar as centelhas de luz aprisionadas nos cacos

cósmicos. Quando esta restituição tiver sido feita, o Exílio da Luz terminará, o Messias virá e

a Redenção acontecerá.

A atratividade desta teoria para judeus comuns era que lhes permitia acreditar que

tinham algum comando sobre seu destino. Na antiguidade, tinham combatido os gentios e o

mal – e foram derrotados. Na Idade Média, tinham aceitado passivamente os males inflingidos

sobre eles – e nada tinha acontecido; sua situação tinha piorado. Agora lhes diziam, com

efeito, que eram atores potentes em um drama cósmico, pois quanto maiores as catástrofes

que envolviam os judeus, mais certos podiam ficar que o drama estava se tornando crise. Por

sua própria piedade, podiam acelerar e resolver a crise, gerando uma grande onda de prece e

devoção sobre a qual o Messias viria triunfante.

De Safed, a Cabala luriânica se disseminou gradualmente para comunidades na

Turquia, nos Bálcãs e na Europa oriental. Na Polônia, onde existiam gráficas judaicas em

Lublin e outros lugares, seu impacto foi forte e amplo. Pelo final do século XVI, ela era vista

como uma parte normativa do judaísmo. O rabino Joel Sirkes estabeleceu em um responsum

que “aquele que levanta objeções à ciência da Cabala” era “passível de excomunhão”.

Durante a primeira metade do século XVII, nos superpovoados shtetls e bairros-gueto da

Polônia, Lituânia e Ucrânia, esta forma de judaísmo, variando de pietismo intelectual místico

e ascético em uma ponta do espectro, a superstição ignorante no outro, tornou-se a religião

essencial da comunidade.

O movimento messiânico de Shabtai Zvi, 1665-6

Seus fundadores eram jovens. A própria figura central, o filho de Mordecai de

Esmirna, nasceu na Ásia Menor em 1626 e morreu em 1676, com cinquenta anos de idade.

89

Portanto, quando reivindicou o título de Messias e atraiu as massas do povo judeu, tinha

menos de quarenta anos. O ideólogo do movimento e seu guia espiritual e ideólogo, Natan de

Gaza, parece ter nascido em 1644 e morrido em 1680, aos trinta e seis anos de idade. Logo,

tinha vinte e um anos quando se pôs a anunciar a vinda do Messias e a guiar os judeus em

direção ao arrependimento. O messias era um sefaradita, o profeta um ashkenazita. O messias

tinha uma personalidade atraente, cativante, e suas emoções e imaginação parecem ter sido

maiores do que seu intelecto.

O jovem erudito de Esmirna tinha um método cabalista próprio mais ou menos

conforme ao do Zohar. Mas este não era o fator mais importante. Seu caráter era suave,

tendendo à inconstância. Seus admiradores falam de períodos em que ele tinha “a grande

iluminação”, que podia ser vista em sua face e em sua prontidão para realizar feitos grandes e

revolucionários. Falam também de períodos em que “o rosto era evitado”, significando

tempos de depressão, de humildade e arrependimento pelos feitos revolucionários que ele

tinha realizado antes.

Natan sempre mostrou uma posição firme e consistente. Ele era consumido pelo fogo

da visão que tinha tido, e que não tinha sido cumprida, mas se recusava a mostrar remorso por

causa da luz que tinha sido trazida para a casa de Israel. Revela-se em seus escritos e nas

impressões recebidas por aqueles que estiveram em contato com ele como um homem de

grande poder intelectual. A força que o trouxe para ser um profeta era a mesma que deu

origem ao Maguid de R. Joseph Caro, idêntica em princípio ao complexo psicológico que

atribuía ao “mestre de sonhos” de R. Hayyim Vital e seus círculos as muitas visões coloridas

que viam. Mas Natan traduziu esses sonhos para si mesmo e as massas do povo judeu como

marés de Redenção – uma redenção que identificava com pessoas e eventos reais. Do êxtase

do asceta solitário tornou-se um profeta para a multidão. No devido tempo, relatou como tinha

sido privilegiado ao proclamar “para a congregação de Israel, nossa Redenção e a salvação de

nossas almas”.

Ele não abandonou esta visão mesmo depois que seu messias mudou de fé, mas foi

vagando de comunidade em comunidade, pregando o poder da fé, clamando por

arrependimento e pureza de espírito em nome do messias convertido. Sua personalidade

formidável e seu fracasso público se revelam juntos na carta que foi compelido a assinar em

Veneza, em 1668, dois anos após o colapso do movimento. Tudo o que um tribunal rabínico

firme e estrito pode extrair dele foi: “Apesar de eu ter declarado que vi a Merkavah como o

profeta Ezequiel a viu e que a profecia declarou que Shabtai Tsvi é o Messias, os Rabinos e

Gueonim de Veneza decretaram que eu estou em erro e que não havia nada de real naquela

90

visão. Eu, portanto, admiti suas palavras e digo que o que eu profetizei com relação a Shabtai

Tsvi não tem substância”.

O relatório da profecia de Natan veio cerca de dezessete anos depois de os judeus

ashkenazitas das comunidades ucranianas, que tinham caído nas mãos dos tártaros durante os

Massacres de 1648-9, terem atingido as comunidades judaicas do Império Otomano. Nas

comunidades que os tinham redimido, os círculos dirigentes eram sefaraditas, que ainda

estavam sob a impressão do exílio da Espanha e a crise resultante no final do século XV. A

doutrina luriânica da Restauração do Universo como um ato de simultânea redenção universal

e judaica tinha se disseminado de forma constante em várias formas entre os níveis mais

elevados e mais baixos da comunidade. Os laços comerciais ao longo da diáspora judaica

vinham se tornando cada vez mais fortes, e as comunicações tinham melhorado.

Correspondentemente, as doutrinas e os guias do movimento podiam apelar para várias forças

e tendências espirituais ao mesmo tempo. As exigências do profeta Natan por perfeição e

penitência despertaram o zelo ascético de indivíduos e de massas, e fizeram dele um elemento

unificador do movimento. Conta-se que homens de grande riqueza, bem como estudiosos em

Amsterdã pediram-lhe para informá-los a respeito das práticas ascéticas apropriadas para as

“raízes” de suas almas, e fizeram o possível para cumprir essas práticas, não importando quão

duras fossem. Foram escritos livros para as massas, alguns deles no ídiche contemporâneo,

dando instruções sobre como realizar atos de penitência; e os livros foram vendidos

rapidamente.

Na “corte” de Shabtai Tsvi, por outro lado, nos anos 1665-6, mesmo durante sua

prisão em Gallipoli, havia ampla pompa externa. Em tempos de “Grande Iluminação” ele

prometia vingança contra os gentios e enfatizava que, em particular, se vingaria dos

assassinos da Polônia e da Lituânia. Quando o espírito pairava sobre ele, distribuía terras,

principados e reinos entre seus seguidores. Em sua corte havia uma atmosfera

emocionalmente carregada que era quase erótica. As listas de pecados e transgressões de que

Shabtai Tsvi se encarregava, seja instigando ou realizando, incluem numerosos mandamentos

de transformar dias de jejum pela destruição do Templo em festivais em honra do messias e

da Redenção. Até o momento de sua conversão, era acusado também de “pronunciar o Nome

Divino tal como é escrito”, um ato pertencente ao Messias e aos dias da Redenção; “de comer

da gordura proibida e dá-la a outros para comer e de profanar o Shabat”. As duas últimas

acusações, se verdadeiras, provariam uma tendência claramente antinomiana, um senso de

liberação dos grilhões da tradicional Lei Judaica. As várias histórias a respeito dos

casamentos de Shabtai Tsvi e de licenciosidade, incluindo orgias sexuais, em sua corte, na

91

medida em que forem corretas, expressam uma espécie de arcaísmo religioso, que sentiam o

aspecto ritual desses atos, assim como expressavam uma revolta contra a lei judaica.

A crise do movimento veio através de pressão sobre o mais fraco de seus líderes, o

próprio Shabtai. Em 1666, ao ser ameaçado de grande punição física e mesmo morte, adotou a

fé do Islã. Os judeus que o viram entrar no palácio do sultão pensaram que ele estava a ponto

de remover a coroa da cabeça do governante. Seu desapontamento foi mais amargo quando

descobriram que o messias tinha adotado a fé dele, o Islã. Sua própria coroa tinha caído de sua

cabeça. Parece que após sua conversão caiu em um estado de profunda depressão, da qual

acabou por se recuperar. Pode-se assumir que seu fiel profeta Natan o encorajou nisto. Natan,

de fato, reteve o respeito e a honra de extensos círculos judaicos mesmo após a conversão.

Um pequeno grupo dos que acreditavam nele também se converteu. Eles e seus descendentes

se constituiram, no devido tempo, na seita Doenmeh do Islã, que sobreviveu por várias

gerações.

Gradualmente, foi desenvolvido um completo sistema simbólico para justificar a

conversão de Shabtai e para manter a crença nele como messias. Parece que a primeira reação

direta pode ser encontrada nas palavras de Natan, em uma carta relativa ao jejum de nove de

Av, que escreveu logo após a conversão:

Quem quer que acredite no grande, santo, e incrível Shabat [um glorificante

trocadilho com “Shabtai”] é belo [Tsvi] para todos os Shabats. E ainda que

ele tenha posto o puro turbante, isto não é uma profanação de sua santidade.

Ele é santo e todos os feitos do Shabat são santos. É necessário acreditar, da

mesma forma, que a Shehinah subiu para seu assento original e não reside no

Exílio... nem é mencionado nas palavras de nossos sábios de abençoada

memória que o Senhor jurou que a Shehinah não partiria salva do Exílio

junto com o povo de Israel. Por isso... ela não mais exige nossa ajuda; e nós

ainda temos que ser redimidos enquanto ela deve ascender, já que um

aprimoramento do princípio do Shabat entrou no universo, e assim é visto

como se tivéssemos sido redimidos mesmo que ainda estejamos no Exílio e

o Rei Messias é oprimido entre as klipot, para purificar tudo o que nós

pecamos, para aperfeiçoar tudo o que nós manchamos. Já que nós

merecemos isso, que a Shehinah não está mais no Exílio... agora uma grande

e poderosa iluminação foi adicionada a ela... sendo assim, não é adequado

queixar-se ou despertar qualquer inveja ou choro ou lamento, já que ela

habita em alegria. Certamente, o jejum [de Nove de Av] merece ser

observado para compartilhar a dor de Israel, até que o assunto seja completa

e inteiramente revelado e nós tivermos o poder de torná-lo um festival

completo.

Aqui o conceito luriânico de tikun ou restauração foi deliberadamente dividido em

duas partes. A Shehinah foi redimida, enquanto Israel ainda espera sua restauração. Em

termos mais seculares, a sensação de liberdade interna possuída pelo crente em Shabtai Tsvi

92

agora encontrou expressão na crença de que a Redenção Divina cósmica foi alcançada, ainda

que não seja visível neste mundo. Esta separação da liberação política e física do povo judeu

da salvação da Shehinah do Exílio e a do cosmos dos efeitos do Exílio da Shehinah iria, no

devido tempo, separar o desejo de trabalhar pela redenção do povo de uma preocupação com

a Shehinah e sua condição.

O movimento sabateano trouxe a Idade Média judaica ao clímax de uma crise. Foi

uma tentativa de renascimento criativo em fase com as tendências de um mundo medieval,

mas marcava a virtual destruição do mundo judaico da Idade Média por uma extrema

exigência de individualismo. Combinava o fervor de um movimento de massas abrangente

com os fogos alienígenas de desespero e dúvida.

O pensamento ashkenazi no final da Idade Média

No milieu ashkenazita da Itália e Polônia-Lituânia, de R. Joseph de Rosheim ao

Maharal de Praga, há uma corrente de pensamento cujo conteúdo racionalista e tendência

educacional é claramente reconhecível mesmo em círculos que usam conceitos místicos e

terminologia cabalística. Todos esses pensadores refletem em seus escritos as forças

econômicas e sociais em operação no interior da comunidade. A sociedade judaica era

amplamente influenciada por seus sucessos espirituais e materiais, diversidade e realizações.

A principal influência do ambiente gentio é a atmosfera de humanismo da Reforma tardia, a

cultura que tinha advogado um retorno às fontes escriturais. Os desafios resultantes da

sociedade judaica e as influências do ambiente às vezes entravam em conflito uns com os

outros. Não obstante, os desafios produziram uma síntese, ao invés de um choque. A

influência de Safed também se fez sentir gradualmente, até o surgimento do movimento

sabateano.

Spinoza e as origens do secularismo judaico

Na Itália, por um lado, e na Holanda, por outro, havia pensadores judeus que foram

induzidos, pelas mudanças e crises na história judaica, a desafiar os próprios fundamentos do

judaísmo, tais como haviam sido modelados durante a Idade Média. Em seu livro Shaagat

Aryeh ve-Kol Sahal (“O rugido do leão e a voz do louco”), o erudito veneziano Judah Aryeh

de Módena ironicamente, e em uma forma que lhe permitia escapar à responsabilidade,

anotou argumentos básicos contra a halahah e a obrigação de obedecê-la. Ele não estava

93

sozinho em tal comportamento e pontos de vista, ainda que seu extremismo e sua cautela

fossem excepcionais.

Na Itália, esta atitude era o fruto da influência do Renascimento tardio, com sua

afirmação da vida e abandono de barreiras. Na Holanda, no entanto, surgiram ideias paralelas

em grande parte por causa da vacilação entre o cristianismo e o judaísmo vivenciada pelos

marranos. Havia conversos, particularmente entre as últimas gerações após a expulsão da

Espanha, que imaginaram que o judaísmo pelo qual ansiavam secretamente enquanto sob

domínio cristão era algo muito diferente do que encontraram quando de fato retornaram a ele.

Em suas mentes, o judaísmo era idêntico a liberdade de pensamento e crítica, com uma quebra

do jugo eclesiástico. Estavam acostumados a apresentar críticas, secreta ou abertamente, à

Igreja Católica e a suas lendas e leis, seu clero e modos de vida. Quando marranos desse tipo

chegavam às comunidades espanhola e portuguesa na Holanda, particularmente em Amsterdã,

encontravam uma sociedade judaica que tinha aprendido a duras penas o que o contato com a

cultura não-judaica na Espanha tinha feito a seus antepassados; ela estava agora conduzindo

seus próprios negócios em um ambiente calvinista e tinha, correspondentemente, introduzido

um sistema de supervisão cerrada sobre o indivíduo, seu modo de vida e opiniões. Era difícil

para os marranos não criticar tanto a agadah quanto a halahah, e acharam difícil aceitar o

controle dos estilos de vida individuais por rabinos e chefes da comunidade após terem tão

fortemente objetado tal controle pelas autoridades eclesiásticas na Península Ibérica.

Este tipo de marrano é representado por Uriel da Costa, que fugiu do cristianismo, mas

não conseguiu encontrar seu lugar dentro da comunidade judaica. Nasceu em Portugal de uma

família nobre de origem judaica. Estudou a lei canônica em uma universidade jesuíta e tomou

votos clericais. Ao mesmo tempo, começou a sentir que não podia encontrar salvação

espiritual no cristianismo. Como resultado, decidiu deixar Portugal e persuadiu sua mãe e

família a fugir para Amsterdã junto com ele. Lá, aceitaram o judaísmo. Em Amsterdã, no

entanto, revoltou-se contra os mandamentos e princípios da Lei Oral e publicou tratados para

defender seus pontos de vista, tornando-se um foco de polêmicas. Foram também publicados

tratados contra ele, e finalmente a congregação o excomungou. Viveu em isolamento por

vários anos, banido por seus irmãos.

Em seu isolamento, seus pontos de vista se tornaram ainda mais radicais, e rejeitou os

fundamentos da Torá e da halahah; mas seu desejo de companhia de judeus o levou a declarar

que tinha se arrependido. Foi compelido a concordar em ser açoitado na sinagoga e a

envolver-se em penitência pública de uma espécie degradante. Seu temperamento rebelde foi

94

profundamente ferido por essa submissão à disciplina social, para a qual não via justificativa

espiritual. Pouco depois de sua penitência pública, cometeu suicídio.

Muito mais profundamente enraizado no judaísmo e um lutador mais severo do que da

Costa, foi Baruch Spinoza (1632-77). Ele é o primeiro judeu conhecido por ter rejeitado a fé

judaica e se retirado da sociedade de seus irmãos judeus sem adotar outra religião. Spinoza

estudou a Torá com os rabinos e eruditos de Amsterdã, e a marca de seus estudos,

particularmente de Maimônides, pode ser vista em seus escritos. Quando Spinoza começou a

expressar seus pontos de vista em público, entrou em choque com os rabinos e chefes da

comunidade de Amsterdã, que o excomungaram em 1656. No entanto, não ficou

completamente isolado, mas encontrou para si um círculo de amigos cristãos que o tinham em

alta estima. O único efeito do banimento foi removê-lo da sociedade de judeus. Ganhava a

vida polindo lentes, enquanto se tornava uma das figuras de destaque do mundo filosófico.

Apresentou seu próprio sistema de divindade e moralidade, investigando o relacionamento

entre Deus e Criação e desenvolvendo um ponto de vista panteísta. Seu pensamento

influenciou e continua a influenciar muitos filósofos de destaque em todo o mundo. No

entanto, o desejo de objetividade, que caracteriza suas investigações de questões abstratas, o

desertou quando se pôs a considerar a relação entre estado e religião. Suas discussões deste

relacionamento refletem o complexo de tensões e animosidades dentro da comunidade judaica

de Amsterdã, por um lado, e as ideias predominantes na Europa ocidental durante a segunda

metade do século XVII, por outro. A esse respeito, a única obra que Spinoza publicou (e

publicou anonimamente) em sua vida é de particular importância. Todas as outras apareceram

após sua morte. Esta obra, que foi impressa em 1670, leva o nome latino Tractatus

Theologico-Politicus. O propósito do tratado era “explicar que em um estado livre cada

homem teria o direito de pensar o que quisesse e também de declarar o que pensa”. Em sua

perspectiva histórica e religiosa, a obra toda é dedicada a uma crítica da Bíblia. Um aspecto

dessa abordagem é sua tendência a ver muitas leis judaicas e eventos históricos como assuntos

nacionais e políticos, afetando somente a nação judaica.

Na opinião de Spinoza, a Torá não tem valor espiritual salvo por aqueles aspectos que

ela partilha com a Lei Natural e que são, portanto, obrigatórios para todos os mortais. “As

cerimônias sagradas, pelo menos tal como encontradas no Velho Testamento, foram

estabelecidas somente para os hebreus, e eram tão adequadas ao seu reino que em grande

parte só podiam ser realizadas pela sociedade como um todo, mas não por indivíduos...

Assim, elas não têm qualquer relação com felicidade... mas dizem respeito... à paz temporal

do corpo e do reino”. Nem é a Torá obrigatória para os judeus desde a destruição do Templo.

95

“Após a abolição do seu reino, os judeus estão obrigados à Lei de Moisés não mais do que

eram antes do início de sua sociedade e estado”.

Mesmo os fundamentos marranos da comunidade judaica dentro da qual vivia, e que

era a fonte intelectual direta da qual tinha retirado suas ideias, foram atribuídos por ele não à

força espiritual dos judeus perseguidos, mas a uma mudança na atitude dos governantes

cristãos em relação a eles. Aponta para uma diferença que, em sua opinião, pode ser

encontrada entre o comportamento dos conversos na Espanha e em Portugal. Na Espanha,

onde os judeus (i.e., os cristãos-novos) tinham permissão para ocupar qualquer posição no

estado, eles se assimilaram, enquanto em Portugal, onde eram excluídos de cargos

governamentais, não se assimilaram. Do que resulta que não vale a pena para os cristãos

perseguir judeus convertidos nem discriminar contra eles. A perseguição os restaura em seu

erro judaico. Bom tratamento pode ajudar a trazer seu desaparecimento. Talvez Spinoza

quisesse até insinuar que não valia a pena para os cristãos perseguir os judeus observantes, já

que a perseguição iria fortalecê-los em seu ódio; enquanto uma atitude amigável iria diminuir

esse ódio e aproximá-los dos outros povos. Spinoza não faz qualquer esforço para ocultar seu

rancor em relação à vida medieval dos judeus e aos fenômenos religiosos e sociais de seu

passado antigo do qual o judaísmo medieval tinha tirado sua força.

A amargura deste filósofo foi o primeiro sinal das futuras revoltas contra as leis da

Torá, o passado da nação e a estrutura comunal. Como muitos dos rebeldes, Spinoza teve

mais sucesso entre cristãos do que entre seus contemporâneos judeus. Em sua própria época

ele ficou como um pensador isolado, cortado do campo judaico.

É claro, portanto, que muitas tendências e correntes da moderna história judaica

estavam emergindo no final da Idade Média, não somente através da ascensão do

individualismo, as crises imanentes entre os cabalistas de Safed e o movimento messiânico de

Shabtai Tsvi, nem através da posição adotada em relação ao ambiente gentio durante a

Reforma e períodos de sucesso material e social entre os judeus ashkenazitas, mas também

por causa das críticas formuladas por vários pensadores na Itália e Holanda.

96

4. Período Moderno

4.1 Conflito interno no judaísmo leste europeu

Intensificação dos conflitos sociais

Em meados do século XVII, os fundamentos do grande centro judaico na Polônia-

Lituânia foram abalados pelas revoltas cossacas, os massacres de Khmelnitski (1648-9) e

vinte anos de guerra entre os poloneses e os russos e suecos, acompanhados por várias formas

de perseguição. A relativa tranquilidade desfrutada pelos judeus da Polônia desapareceu sem

deixar traços. Teve início um período de perseguição que durou até o final da existência da

Polônia como estado independente, em 1795. Mesmo assim, a comunidade judaica continuou

a crescer, assim como a competição interna por fontes de subsistência. As tensões sociais que

tinham existido dentro das comunidades judaicas em períodos anteriores agora se agravaram e

se transformaram em hostilidade social real – um confronto entre a classe dirigente dos ricos e

eruditos e os estratos mais amplos das classes inferiores e pobres.

Fermento místico: Jacob Frank (1726-91) e sua seita

A sociedade judaica na Polônia, que estava disposta a aceitar até mesmo críticas

sociais extremas, mobilizou-se para contra-atacar quando foram feitas tentativas de minar sua

fé e pontos de vista religiosos. O fermento místico – particularmente de parte dos

remanescentes sabateanos – que nunca tinha morrido na Europa oriental e que se inflamou

contra o pano de fundo da tensão social e da crise de liderança, encontrou assim a veemente

oposição de todas as seções do público judeu.

Na década de 1750, Jacob Frank emergiu como o novo líder dos remanescentes

sabateanos na Polônia. Frank nasceu na Podólia e foi atraído pelo sabateanismo em Salônica.

Em 1755 retornou para sua província natal, reuniu um número de fieis em torno de si,

ensinou-lhes vários conceitos sabateanos e organizou festividades que degeneraram em orgias

sexuais. Os feitos desse grupo logo vieram à luz e foi publicado um edito de excomunhão

contra eles. O bispo de Kamenets, vendo nisto uma oportunidade para atacar os judeus, exigiu

uma disputa religiosa entre eles e os frankistas. Estes eram definidos como “judeus opostos ao

Talmud”, acreditando na incarnação de Deus e na Trindade, e negando a redenção de Israel

97

em Jerusalém. A disputa aconteceu em junho de 1757, e, naturalmente, os frankistas foram

declarados vencedores. Em consequencia, cópias do Talmud foram queimadas em público.

No entanto, logo após, o bispo morreu subitamente, e os judeus puderam retomar sua

perseguição contra a seita. O próprio Frank já tinha fugido para a Turquia, onde conseguiu

obter um salvo-conduto em relação ao rei da Polônia. Ele e seus partidários, então,

procuraram o bispo de Lvov e solicitaram uma nova disputa contra os judeus. Este debate

aconteceu no verão de 1759, e desta vez os frankistas afirmaram que os judeus usavam sangue

cristão para fins rituais. Frank expressou estar pronto a se converter ao cristianismo, mas

queria permissão para manter uma seita separada. Seus pedidos foram rejeitados pelas

autoridades da igreja, mas já era muito tarde para cancelar o batismo dele e de seus

partidários. Depois de Frank ter se convertido, junto com centenas de partidários, foi

encarcerado na fortaleza de Czestochowa por treze anos, para que não viesse a exercer má

influência sobre eles. Mas a seita continuou a existir secretamente e até mesmo desenvolveu

crenças próprias.

Após os exércitos russos entrarem na Polônia durante a primeira partição (1772),

Frank foi libertado e se estabeleceu em Offenbach, na Alemanha. Após sua morte, a seita foi

encabeçada por sua filha, e acabou morrendo no começo do século XIX.

O Baal Shem Tov e os começos do hassidismo

Uma controvérsia não menos amarga, mas mais prolongada, surgiu em torno da nova

seita mística que emergiu entre os judeus poloneses, conectada com a personalidade de R.

Israel ben Eliezer Ba’al Shem Tov (“Mestre do Bom Nome”). O Besht nasceu na Podólia, de

origem humilde. Em sua juventude, foi sacristão de sinagoga e professor assistente. Após

vários anos de solidão e meditação, e antes de seu hitgalut (a revelação de sua verdadeira

missão), tornou-se um ba’al shem, ou milagreiro, curando com amuletos e encantos, e

continuou essa prática mesmo depois de ter se tornado o líder de uma seita. Os princípios

básicos de suas crenças nos são claramente conhecidos, ainda que ele não tenha deixado obras

escritas à parte algumas cartas e uma série de ditos anotados por seus discípulos. Mas não há

dúvida de que seu principal poder não estava em seus ensinamentos, mas na força de sua

personalidade.

O Ba’al Shem Tov estabeleceu contato com os cabalistas ascéticos de sua época, e

aparentemente também com os sabateanos. Naquele período havia muitos, mesmo entre os

jovens, que mergulhavam na Cabala. Como resultado, havia uma proliferação de teorias

98

místicas esotéricas. O ascetismo extremo também estava disseminado. O Ba’al Shem Tov

introduziu uma mudança de direção, desviando o cabalista individual de autopunição e

isolamento para a liderança da comunidade, moldando, assim, um novo tipo de líder judeu, o

tsadik hassídico, ou justo.

De acordo com a crença hassídica, “o tsadik é a fundação do mundo”: o mundo todo

foi criado só para ele, ele controlava todas as riquezas – espirituais e materiais – e podia até

mudar uma decisão do próprio Deus. Sua tarefa era guiar a comunidade; de outra forma, sua

missão perderia todo significado. Qualquer que fosse o grau de elevação espiritual que ele

mesmo atingisse, nunca poderia mudar a ordem do mundo e apressar a salvação, enquanto

atuasse sozinho, já que “a geração não é merecedora”. E mais ainda, se separado do povo, seu

avanço espiritual poderia ter o efeito inverso – ou seja, as massas poderiam ser castigadas por

não o terem emulado.

Portanto, era atribuída particular importância à devekut (apego a ou comunhão com

Deus) como entendida pelo hassidismo. O tsadik aderia a Deus, por um lado, e ao povo, por

outro, e era, assim, um memutsa ou intermediário. Era responsável por toda a comunidade e

tinha, portanto, que “descer” de seu exaltado nível espiritual, para elevar o povo junto com

ele. Descendo, adotava o que parecia ser uma forma simples e comum, misturando-se com o

povo no mercado, conversando com eles, mas permanecendo, enquanto isso, em um estado de

devekut com o outro mundo, seu único objetivo sendo elevar o povo a um nível mais alto. A

meta central da liderança do tsadik era libertar as centelhas divinas presas em todos os cacos

(klipot) do mundo material.

A partir da rejeição do ascetismo, emergiu a ênfase nas alegrias do culto divino. Como

o próprio Besht disse: “É melhor o médico que administra medicina com uma bebida doce

como o mel”. O ascetismo e a tristeza de uns poucos devotos somente evocava o atributo

divino de justiça estrita (que o mundo não podia suportar), pois por isso o mundo era

condenado por falhar em se assemelhar a eles. É bem possível que essa ênfase na alegria e o

modo de vida hassídico especial que surge dela tenha ajudado a atrair as massas, e

particularmente os jovens, para o hassidismo.

Em um estágio relativamente inicial, o Ba’al Shem Tov começou a acreditar que seus

ensinamentos poderiam servir de guia para o povo e aproximar a Redenção. Na grande visão

mística que vivenciou no Ano Novo de 1747, na qual viu a ascensão de sua alma para o céu, e

que descreve na famosa carta para seu cunhado na Terra Santa, o Messias prometeu que viria

“quando seu [do Besht] ensinamento for conhecido e revelado ao mundo, e sua fonte fluir”,

i.e., quando as crenças hassídicas tiverem se disseminado. Quando morreu, em 1760, seu

99

nome era bem conhecido e tinha aderentes em muitos lugares, mas eles ainda não constituíam

um “movimento”.

A luta contra o hassidismo: o Gaon de Vilna

Não há registro de luta contra o hassidismo e seus aderentes até a morte do Maguid de

Mezhirech [sucessor do Ba’al Shem Tov na liderança do movimento hassídico, responsável

por sua cristalização]. Mas foi preservada evidência da cooperação entre líderes comunitários

e líderes hassídicos na década de 1760. Após a irrupção da perseguição aos hassidim pela

liderança judaica na Polônia no começo da década de 1770, os cabeças da comunidade de

Dubno fizeram um acordo com R. Jacob Joseph e seus seguidores para ação conjunta no

“resgate de cativos”, ou seja, a libertação de um arrendatário judeu aprisionado por um dos

nobres. Houve casos similares de cooperação em outras partes, particularmente com relação à

salvaguarda da hazakah (prevenção de competição entre judeus em questões econômicas).

A campanha contra o hassidismo começou em Vilna, que era conhecida como

“Jerusalém da Lituânia”, o mais importante centro de estudo religioso na Polônia, naqueles

dias. Mesmo lá havia uma pequena comunidade de hassidim. Quando a existência desse grupo

foi descoberta, em 1772, os hassidim foram excomungados e seus líderes punidos ou até

banidos da cidade. A comunidade de Vilna enviou cartas para todas as outras comunidades,

conclamando-as a desentocar e excomungar os hassidim. A comunidade de Brody, a maior da

Polônia, também se decidiu pela excomunhão e foi seguida por outras comunidades. A

excomunhão de Brody proibia a existência de minyanim separados de hassidim, rezar de

acordo com o Nusah Ari, abate ritual com facas especialmente afiadas, e assim por diante.

Este decreto teve efeito pequeno sobre a situação dos hassidim no sul da Polônia, em Podólia,

Volhynia e Ucrânia, mas tornou sua vida mais difícil na Lituânia e na Rússia Branca. Alguns

deles esconderam suas atividades ou deixaram seus lares. A controvérsia foi renovada quando

os hassidim começaram a publicar seus livros em suas próprias gráficas, sem a aprovação dos

rabinos da comunidade. O livro Toledot Jacob Joseph, em particular, enfureceu os oponentes

do hassidismo, e em 1781 Vilna voltou a anunciar a excomunhão “da seita” em nome “dos

grandes e renomados de nossa comunidade... juntamente com o rabino, o grande sábio de

nossa comunidade, e juntamente com o grande devoto e afamado gaon, Rabi Elijah”. Todas as

comunidades lituanas aderiram à excomunhão. Os oponentes dos hassidim enviaram

emissários a diversos locais, incluindo Alemanha e Boêmia, onde os rabinos também foram

persuadidos a aplicar a excomunhão.

100

A despeito das crises externas e internas que afligiram a sociedade judaica e sua

liderança no século XVIII, ela ainda era forte o bastante para resistir a esta onda crescente de

fervor religioso. As forças criativas e conservadoras desta sociedade se mobilizaram em torno

do Gaon, Rabi Elijah de Vilna, um dos maiores eruditos de todos os tempos.

O Gaon de Vilna se opôs à reinvindicação hassídica de que Deus podia ser adorado no

mundo temporal tanto através dos bons quanto dos maus impulsos que existem nos homens.

Acreditava que essa abordagem borrava os limites entre o secular e o sagrado, o proibido e o

permitido – uma atitude alheia a sua abordagem estritamente ascética. O conceito do tsadik

como intermediário entre Deus e o povo parecia a ele ser simplesmente idolatria. Recusou-se

a ver esse movimento como meramente transgressor, como faziam os líderes da comunidade.

O Gaon declarou que “todos os que seguem este caminho nunca voltam – é heresia”. Estava

insatisfeito com a punição leniente aplicada pelos líderes da comunidade de Vilna ao minyan

hassídico lá, e “chamou os líderes da comunidade e enfureceu-se contra eles. Por que eles

tinham imposto uma punição tão leve? Se eu pudesse, eu faria com eles o que o profeta Elias

[seu mesmo nome] tinha feito com os profetas de Baal”.

As comunidades e rabinos lituanos obedeceram. Todas as tentativas dos líderes

hassídicos R. Menahem Mendel de Vitebsk e R. Shneour Zalman de Lyady de encontrar com

ele para clarificação e discussão foram infrutíferas.

Como viam os hassidim como não constituindo parte do povo judeu, era permitido

denunciá-los para as autoridades [russas]. E, de fato, foi apresentada uma queixa de que os

hassidim e seu líder, R. Shneour Zalman, eram desleais às autoridades, desprezavam os

gentios e vinham contrabandeando dinheiro para a Turquia (de fato, eram fundos para os

judeus na Palestina). R. Zalman foi preso e levado a São Petersburgo, mas foi logo liberado.

Mas, por causa de denúncias renovadas, desta vez de parte de R. Avigdor ben Hayyim, rabino

de Pinsk, o líder hassídico foi preso novamente e chamado a responder a uma série de

questões. Certos hassidim também levavam relatos às autoridades, afirmando que parte do

dinheiro coletado como imposto pela comunidade de Vilna estava sendo utilizado para

perseguição dos hassidim. Somente depois que as autoridades se convenceram de que não

havia aspectos políticos na disputa, liberaram R. Shneour Zalman pela segunda vez.

4.2 A luta pela Emancipação na Europa Ocidental e Central

Os começos do Iluminismo judaico (Haskalah): Moses Mendelssohn

101

O movimento iluminista judaico (Haskalah) foi uma ramificação do Iluminismo

europeu e se assemelhava a ele na medida em que elevava o indivíduo, o “ser humano”, e

aspirava liberá-lo de referenciais sociais e religiosos historicamente determinados. O

Iluminismo afirmava que a mente humana era o critério para todos os fenômenos naturais e

sociais. Os Iluministas viam-se, em consequência, em desacordo com os valores e instituições

tradicionais, tendendo a olhar a história passada da humanidade como uma compilação de

erros resultantes de ignorância, de excesso de confiança na autoridade e de exploração das

massas ignorantes por líderes ávidos de poder e riquezas.

A singularidade da Haskalah reside em sua emergência contra o pano de fundo da

integração social e cultural dos judeus em seus ambientes. Os judeus não apenas absorveram

os valores culturais das nações européias, mas alguns deles até começaram a escrever

criativamente em linguagens européias. Isto não era novo na história judaica; judeus tinham

escrito em linguagens estrangeiras antes, e muitas obras destacadas de conteúdo judaico e

geral tinham sido, no passado, escritas em grego, árabe, espanhol e italiano. Nos círculos da

Haskalah do século XVIII, a pedra de toque para entendimento e avaliação foi obtida nas

riquezas espirituais da cultura do entorno, e, portanto, mesmo entre os maskilim, que em

teoria permaneciam leais ao judaísmo, o movimento se tornou uma expressão de objetivos

espirituais universais. Um número considerável deles chegou, relativamente cedo, a conceitos

claramente deísticos, advogando o que era conhecido no século XVIII como “religião natural”

e se opondo a todas as religiões reveladas.

O pai espiritual dos maskilim era o proeminente filósofo Moses Mendelssohn (1729-

86). Era filho de um escriba, um escritor de rolos sagrados, de Dessau, e desde sua juventude

mostrou habilidades destacadas como estudante de filosofia hebraica medieval. Mudando-se

para Berlim, devotou-se ao estudo da literatura alemã e adquiriu conhecimento de latim e

linguas européias. Encontrou o famoso escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing em meados

dos anos 1750 e foi atraído para círculos do Iluminismo alemão.

As teorias filosóficas de Mendelssohn servem, na história do pensamento judaico,

como vínculo entre a filosofia racionalista medieval e as ideias do século XVIII. Seu ponto de

partida era a verdade da Divina Revelação tal como manifestada na “Outorga da Lei” no

Monte Sinai. Seu propósito, no entanto, não era derivar dela verdade religiosa universal, já

que se podia chegar a esta através da razão, mas sim determinar um modo de vida e

organização para os judeus como grupo que fosse capaz de servir de exemplo para todos os

homens. Os mandamentos impostos ao povo judeu pela revelação formavam a “constituição

102

divina”. As leis e injunções do judaísmo eram mais próximas da religião natural do que os

dogmas de qualquer outra religião. Mendelssohn aceitava a definição de Spinoza de que a

religião judaica era uma constituição política dos hebreus, mas, ao contrário dele, não via isso

como um fator limitante ou um defeito. Os mandamentos da religião judaica não podiam, por

causa de seu caráter único e falta de expressão sensual, tornar-se símbolos pagãos, ainda que

seu significado fosse principalmente simbólico. Isto tinha assegurado, por um lado, que

através dos séculos os judeus não iriam se afastar muito da religião natural, e, por outro, que

eles não teriam que criar uma rede dogmática de doutrinas obrigando todos os membros à

religião, como tinha acontecido com o cristianismo. Foi precisamente porque as obrigações

religiosas judaicas tinham tomado a forma de mandamentos práticos que a esfera das crenças

e opiniões permanecia, de acordo com Mendelssohn, aberta a discussão e clarificação. Assim,

Mendelssohn esforçou-se para conectar a observância fiel das injunções religiosas (os

símbolos que unem todos os puros crentes em um referencial específico) com tolerância e a

mais ampla liberdade de opinião.

A Haskalah na sociedade judaica

[Após a morte de Mendelssohn em 1786] os maskilim começaram a publicar críticas à

sociedade judaica e a apresentar propostas de reforma. Como resultado da violenta oposição

das autoridades rabínicas mesmo às reformas mais suaves, os maskilim deixaram de acreditar

na possibilidade de influenciar os judeus desde dentro. Por outro lado, tinham confiança na

influência benéfica do “absolutismo iluminado”, e pediram sua intervenção nas questões

judaicas. Isto serviu de base para seus métodos de propaganda – tanto interna quanto externa.

Dentro da comunidade judaica, publicavam obras filosóficas no espírito racionalista,

esforçando-se por disseminar um conhecimento de história e ciência. Com relação ao mundo

não-judaico, estavam constantemente abordando as autoridades com propostas e planos para

alterar o modo de vida judaico. As massas judaicas, particularmente naquelas partes da

Polônia anexadas à Prússia e à Áustria, viam qualquer intervenção oficial na autonomia

judaica como “um decreto do mal”; assim, as atividades dos maskilim antagonizavam a

comunidade judaica como um todo. Mas seu estranhamento só fortalecia a aderência dos

maskilim à autoridade do estado e sua dependência dele.

Tentativas de integração forçada na Europa oriental

103

Durante o período em que os judeus estavam conduzindo uma campanha por plena

igualdade legal nos países da Europa ocidental e central, a Rússia estava começando a

reconsiderar seu objetivo anterior de integrar, por meios moderados, os judeus na vida do

país. A atitude do regime face aos judeus refletia tanto a reação desencadeada na Europa após

o Congresso de Viena quanto o novo estado de espírito de misticismo religioso de Alexandre

I.

A campanha de Napoleão contra a Rússia pôs fim aos dois principais métodos pelos

quais o governo russo tinha tentado mudar o modo de vida dos judeus e a organização de sua

sociedade – expulsão das aldeias e fundação de assentamentos agrícolas no sul. Mas o

objetivo básico de evitar “atos de injustiça e interferência na agricultura e indústria dos

habitantes destes distritos nos quais os judeus residem” (como expressado no preâmbulo do

estatuto de 1804) – ou seja, a assim chamada proteção dos camponeses contra a exploração

judaica – continuou a ser a política declarada do governo russo durante a segunda metade do

reinado de Alexandre I e em todo o reinado de Nicolau I.

A despeito da lealdade da população judaica para com a Rússia durante a ocupação

francesa, a desconfiança oficial aumentou, ao invés de enfraquecer. As expulsões das aldeias

foram renovadas, e o Distrito de Residência [Pale] foi reduzido; os judeus foram proibidos de

viver nas cidades fortificadas ao longo da fronteira ocidental e nas cidades portuárias que

serviam como bases navais.

Assimilação cultural

Da metade do século XIX em diante, a conversão deixou de ser o principal método de

integração dos judeus na sociedade européia, e era escolhida apenas por uns poucos. A

assimilação cultural e uma identificação espiritual e ideológica com o estado a substituíram.

Esta mudança foi resultado de um longo processo no qual foi adquirido conhecimento da

linguagem e cultura locais – processo que tinha começado na Europa ocidental no século

XVIII ou mesmo no XVII. Não obstante, ao longo do século XVIII a maioria das

comunidades ainda mantinha seus livros de registro em hebraico ou em um hebraico

misturado com ídiche. As obras culturais judaicas eram quase todas escritas em hebraico, seja

em estilo rabínico ou no novo estilo da Haskalah, enquanto a língua falada nas comunidades

ashquenazitas era o ídiche.

Para o indivíduo judeu, a entrada no mundo da cultura europeia significava o

abandono do hebraico e do ídiche. A substituição do hebraico por outras linguagens e do

104

ídiche pela linguagem “pura” do país se tornaram os principais slogans dos advogados do

Iluminismo, judeus e não-judeus. Esta tendência foi promovida pelas escolas especiais

estabelecidas para crianças judias e o aumento no número de judeus frequentando escolas

públicas. A mudança na linguagem de sua cultura também transformou o mundo espiritual

dos judeus e alterou sua atividade criativa. Os sermões dos rabinos e sábios e a literatura

popular em ídiche dirigida às massas começaram a ceder seu lugar a obras escritas no espírito

da literatura europeia da época. O pouco de hebraico que sobrou entre os judeus da Europa

oriental e central ficou totalmente confinado à esfera da religião.

A primeira esfera em que os judeus se tornaram ativos nas linguagens européias foi a

imprensa. Os judeus desempenharam um papel particularmente importante na imprensa

liberal e radical, já que isso vinha ao encontro dos objetivos de sua atividade política. Por

volta da metade do século XIX, vários jornais importantes na Alemanha e França pertenciam

ou eram dirigidos por judeus. Alguns deles ajudaram a desenvolver as técnicas jornalísticas e

a aumentar a circulação de jornais. Seu sucesso no mundo do jornalismo forneceu o pretexto

para alegações de que “os judeus controlam a imprensa”.

À medida que os judeus se enraizavam na cultura de seus ambientes, também se

tornaram mais importantes no campo da literatura. Ludwig Boerne (1786-1837) e Heinrich

Heine (1797-1856) exerceram influência considerável sobre a vida cultural da Alemanha.

A extensa tradição musical dos judeus tornou fácil para eles desempenharem um papel

proeminente no desenvolvimento da música europeia. No século XIX os judeus produziram

vários compositores importantes (como Mendelssohn-Bartholdy, Meyerbeer, Halevy,

Offenbach). Eram também ativos na disseminação da educação musical: assim, por exemplo,

quando Bach tinha sido esquecido por mais de uma centena de anos, Mendelssohn reviveu sua

obra; os irmãos Rubinstein organizaram a educação musical na Rússia; Joseph Joachim e

Leopold Auer criaram escolas para violinistas. Também no teatro e na ópera os judeus

tiveram um papel de destaque (por exemplo, a atriz Rachel e Sarah Bernhardt).

Outra esfera de expressão artística – que na verdade era alheia à tradição judaica – era

a pintura e escultura. Mas na segunda metade do século XIX havia distinguidos artistas

judeus, como os pintores Jozef Israels (1824-1911) na Holanda, Camille Pissaro (1830-1903)

na França, Max Liebermann (1847-1935) e Lesser Ury (1861-1931) na Alemanha e o escultor

Marc Antokolsky (1843-1902) na Rússia.

A Haskalah no leste europeu (Galícia e Rússia)

105

A Haskalah na Galícia foi, principalmente, o resultado da tentativa de José II de

influenciar o modo de vida dos judeus por meios oficiais; por exemplo, estabelecendo escolas

governamentais para crianças judias que ajudaram a disseminar o conhecimento do alemão.

Mas círculos ativos de maskilim somente apareceram nesta área no começo do século XIX.

Mesmo na Rússia, onde não havia na época intervenção do estado para estimular o desejo de

integração, apareceram maskilim no final do século XVIII.

O pai da Haskalah russa for R. Isaac Baer Levinsohn (1788-1869), cujo livro Te’udah

be-Israel (“Missão em Israel”, 1828) advogava mudanças na educação judaica e continha uma

compilação de ditos de eruditos e sábios talmúdicos em louvor da atividade agrícola, do

trabalho físico e do estudo do vernáculo. Os maskilim russos fundaram várias escolas nas

décadas de 1820 e 1830 (em Varsóvia, Uman, Odessa, Kishinev e Riga), nas quais a

linguagem de instrução era o alemão; iniciaram, também, projetos para assentamento agrícola

judaico.

Com relação a seus objetivos centrais – a disseminação da cultura secular entre os

judeus e a reforma econômica e moral do povo – não havia diferença entre os maskilim do

leste e seus correspondentes no oeste. Mas, como resultado de condições contrastantes, a

forma como o movimento se expandiu e o status dos maskilim na sociedade judaica foram

totalmente diferentes nas duas regiões. Na Europa oriental não havia estrato social influente

na comunidade judaica que aspirasse por um contato mais próximo com o mundo e a cultura

não-judaicos, como havia no oeste. A comunidade leste-europeia se chocava com o mais leve

desvio da tradição e dos padrões aceitos de comportamento e pensamento. Os atraídos para a

Haskalah eram poucos e temiam empreender quaisquer campanhas públicas. Somente aqueles

econômica e socialmente independentes estavam em posição de demonstrar abertamente sua

atração pela Haskalah. A adesão à Haskalah na Europa oriental implicava um grande

afastamento da comunidade judaica, que via a disseminação da Haskalah como um meio de

abandonar o referencial judaico, enquanto os maskilim se viam como perseguidos por

fanáticos – daí, a natureza amarga do conflito sobre esse movimento na Europa oriental.

A diferença no nível cultural e na natureza do ambiente judaico na Europa ocidental e

oriental foi também responsável pela fraqueza das forças e reformas religiosas da Haskalah na

Europa oriental, bem como pela imprecisão de suas metas. O judeu da Europa oriental não se

sentia inferior ao seu ambiente, como os judeus ocidentais. O nível de educação dos

camponeses e mesmo dos citadinos, entre os quais os judeus da Europa oriental viviam, era

baixo e não seria capaz de atrair os judeus para experimentarem e integrarem-se a ele. As

influências da Haskalah que se infiltraram nos judeus leste-europeus vieram dos centros

106

culturais do oeste, acima de tudo de Berlim. Isto elevou o senso de continuidade e unidade do

movimento na Europa, que era geralmente influenciado pelo Iluminismo secular alemão; de

fato, a linguagem cultural da maioria dos maskilim leste-europeus, até os anos 1860, era o

alemão.

Por isso, em seus primórdios, a Haskalah leste-europeia se assemelhava, em geral, à

de Berlim. Os maskilim escreviam em hebraico, e, como o processo de assimilação dos judeus

do leste era muito lento, a cultura hebraica revivida não era facilmente suplantada pela

linguagem e cultura do ambiente. Assim, foram lançados os fundamentos para o crescimento

de uma nova literatura secular hebraica. Joseph Perl e Isaac Erter na Galícia, Isaac Baer

Levinsohn, Abraham Lebensohn (Adam Hacohen), Mordecai Aaron Guenzburg, Abraham

Mapu, Judah Leib Gordon (Yalag) e Moses Leib Lilienblum (Malal) na Rússia, fundaram a

nova literatura hebraica. Esta literatura era dirigida não apenas a um círculo limitado de

pessoas identificadas com os princípios básicos da Haskalah, mas também a um amplo

público de leitores de hebraico, inclusive estudantes de ieshivah.

Em seu desejo de influenciar as massas, os maskilim orientais escreveram também em

ídiche, a linguagem popular à qual os maskilim ocidentais se opunham ferozmente. Israel

Axenfeld, Solomon Ettinger, Isaac Linetzky e Shalom Abramowitsch (Mendele Mokher

Seforim) foram os pais da literatura ídiche, cujo objetivo central era disseminar os ideais da

Haskalah e expor os defeitos da sociedade judaica.

O fato de que os maskilim eram poucos e sua força social limitada prejudicou-os em

sua batalha contra os líderes comunitários, particularmente os tsadikim hassídicos. Para se

manterem nesta competição desigual, eles se inclinavam a confiar nas autoridades e a

cooperar com elas. Atacavam a autonomia judaica interna não apenas em bases ideológicas,

mas principalmente para enfraquecer a força do campo oposto, que dirigia as comunidades. O

fato de que os maskilim estavam do lado das autoridades na Rússia numa época em que

crianças estavam sendo recrutadas para serviço militar por decreto oficial, levantou dúvidas

na mente judaica em relação à lealdade dos maskilim a seu povo. A taxa imposta sobre a

comunidade para manutenção de escolas governamentais para crianças judias era vista como

uma carga insuportável.

4.3 O fracasso da Emancipação: luta pela sobrevivência e renascimento nacional

Novas tendências na história judaica; migrações

107

Não houve período mais dramático na história judaica do que os anos entre 1881 e

1948 – um espaço de tempo relativamente curto quando medido contra os anais de uma

nação. A ameaça à própria sobrevivência do povo nunca foi tão grande como nas décadas de

1930 e 1940; mas em nenhum período anterior, nem ao menos durante a rebelião

hasmoneana, tantos judeus estiveram prontos a se engajar em uma luta social e política para

assegurar que eles – e somente eles – seriam os árbitros de seu próprio destino e do de seus

irmãos. Esta consciência elevada, acoplada com métodos melhorados de comunicação e

transporte (que asseguravam a rápida propagação de informações e conhecimento da

intensidade do conflito), produziu um exemplo supremo de unidade judaica em pensamento e

atos. Em contraste com a longa tradição desenvolvida durante a Idade Média, de desviar o

ressentimento contra o domínio estrangeiro e os sofrimentos da diáspora para o mundo

interior do espírito e se abster de ativismo político (uma tradição só interrompida por

ocasionais movimentos messiânicos), poderosas forças agora despertavam no povo. Essas

forças, operando em um nível social e político, transformaram um povo disperso, dividido e

mortalmente ferido, de uma entidade passiva em uma força política e social ativa e

independente.

No começo deste período, a maioria do povo judeu ainda vivia dentro do quadro

tradicional e mantinha seu modo de vida histórico. Relativamente poucos tinham se

aproximado do ambiente europeu, tinham se familiarizado com seus valores e cultura ou

tinham buscado ser aceitos neles. Mesmo esses poucos, que serviam como exemplo e ideal

para muitos outros e viriam, eventualmente, a ser imitados por eles, eram ainda, no principal,

orgulhosos de suas origens e da contribuição do povo judeu para a cultura humana. Ao

mesmo tempo, eram unânimes em sua visão do futuro: os judeus estavam destinados a se

assimilar na cultura europeia e a ser incluídos sem reservas dentro dos quadros nacionais do

mundo gentio – exceto, talvez, em assuntos de religião e moralidade, onde os judeus tinham

uma missão única a cumprir como um grupo separado. Quase todos eles compreendiam, no

entanto, que a estrada para a integração não seria suave, e que muitos obstáculos estavam no

caminho. O clero ignorante, inimigo tradicional dos judeus, continuava a incitar seu povo

contra eles. Certos governos continuavam a discriminar contra os judeus sob pressão de

grupos hostis, ou para desviar a atenção da turba para um alvo conveniente e aceitável; havia

ainda liberais hesitantes, que advogavam meias-medidas e secretamente temiam a competição

judaica – ou, como eles a chamavam, “dominação judaica” – e que estabeleceram condições

rigorosas para a aceitação de judeus na nação. Havia, de fato, certas condições que os

108

partidários judeus da assimilação poderiam ter aceitado e justificado, como a abolição de

todas as injunções religiosas que criaram o “separatismo judaico”; mas não podiam aceitar a

exigência de identificação com os mitos nacionais e religiosos das nações européias em lugar

do ideal de uma sociedade racionalista universal, o sonho daqueles filósofos do século XVIII

que tinham sido os mentores espirituais dos maskilim. Muitos gentios radicais ainda insistiam

em ver os judeus como exploradores capitalistas e o próprio judaísmo como o grau mais baixo

da cultura humana, uma relíquia de adoração bárbara e “egoísmo” materialista. Eles

afirmavam que, na medida em que o indivíduo de origem judaica falhava em rejeitar essa

herança vergonhosa, ele não era merecedor de ser visto como um membro da sociedade

progressista. A despeito dessas reservas e obstáculos, parecia a esses poucos judeus que a

sociedade humana estava progredindo em direção a salvação e libertação; e todos os

maskilim, identificando-se completamente com o grande ideal de uma sociedade livre e

esclarecida, estavam firmes em sua crença de que nenhuma força poderia resistir à triunfante

marcha do progresso.

A situação era totalmente diferente no final deste período de sessenta anos. Os

desenvolvimentos que acabaram por levar ao Holocausto não apenas mudaram o status físico,

geográfico e social do povo judeu, mas também revolucionaram sua consciência judaica,

criando uma profunda metamorfose psicológica que levou grandes seções do povo a um ajuste

de contas consigo mesmo e à consequente mudança ideológica. A crença no progresso, na

benevolência das nações, na tradição cristã e humanista, foi destruída. Todas as nações tinham

falhado em salvar milhões de desamparados do extermínio, e nem tinham – durante os anos

de catástrofe ou depois – tornado a denúncia de genocídio um tema central em sua educação.

Ao invés, elas amiúde fecharam os olhos aos terríveis sofrimentos dos judeus ou os abafaram.

Os poucos exemplos tocantes de assistência e sacrifício só serviram para enfatizar a

desconsideração geral, o muro branco de rejeição e hostilidade que os judeus encontraram em

quase todos os lugares que os conquistadores nazistas e seus aliados trilharam. As portas de

todos os países estavam fechadas quando a grande onda de refugiados judeus começou a fluir

através da Europa na década de 1930, e eles ficaram encerrados nos dias terríveis de

liquidação dos guetos, de campos de extermínio e de navios de resgate periclitantes,

afundando nas profundidades do mar.

A União Soviética, que tinha criado um poderoso movimento de resistência atrás das

frentes de batalha, estava “incapacitada” para vir em socorro dos combatentes do gueto, nem

mesmo para deter o crescente antissemitismo nas unidades guerrilheiras – as quais, por sua

vez, não apenas falharam em resgatar os judeus que se deparavam com extermínio, mas até

109

atacaram unidades judaicas ou “campos de família” nas florestas. A Grã-Bretanha, que

incessantemente bombardeava solo inimigo, estava “incapacitada” para bombardear os

campos de extermínio e as vias férreas que levavam a eles. A America, com toda sua

poderosa influência em muitas partes do globo, estava “incapacitada” para esforçar-se para

abrir os portões da Palestina para os judeus perseguidos ou encontrar para eles um local de

refúgio.

Quais foram os fatores que fortaleceram e intensificaram a mudança na situação e nas

crenças dos judeus durante este período? Não há dúvida de que a boa vontade do mundo não-

judaico para absorver judeus fora consideravelmente limitada desde o início. Maskilim

individuais ou aqueles judeus ricos que tinham advogado uma total rejeição da herança

histórica de seu povo foram naturalmente bem sucedidos em completamente se assimilar no

correspondente estrato da sociedade cristã; mas para a comunidade judaica como um todo isso

não era uma solução. A grande maioria dos judeus se esforçou para preservar seu caráter

nacional, seu modo de vida, religião e costumes, e essa luta, naturalmente, prejudicou sua

aceitação no ambiente alheio, que era, majoritariamente, relutante em absorver os judeus que

continuavam a manter seus traços distintivos. Particularmente intensa – e estavelmente

crescente – era a oposição das classes médias européias. À medida que os judeus se

aproximavam da cultura e dos costumes do ambiente cristão, à medida que começavam a se

assemelhar a outros habitantes das cidades em seu modo de vida e fontes de subsistência, as

áreas de contato e atrito aumentaram e a velha tensão, naturalmente, se agravou. O atrito se

intensificou pelo crescimento natural dos judeus: de 7,5 milhões no começo da década de

1880 para 11 milhões no começo do século XX, e mais de 16,5 milhões quando da irrupção

da Segunda Guerra Mundial. O mesmo efeito foi obtido pelo grande movimento dos judeus

em direção ao oeste e sua concentração em grandes centros populacionais. Centenas de

milhares, talvez milhões – emigraram, principalmente da Europa oriental para além-mar ou o

oeste do continente, onde se agruparam nas grandes cidades.

Entre os próprios judeus, muito poucos tinham clareza, no começo do período, das

agudas mudanças que tinham ocorrido na atitude da sociedade que os rodeava e dos perigos

que isso implicava. A maioria ainda esperava por igualdade ante a lei, que viam como a

principal fonte de sua segurança e status. Por centenas de anos, eles tinham elaborado o

conceito, aceito pelos europeus esclarecidos, de que seu status especial era o resultado de leis

e regulamentos discriminatórios, que os tinham separado do resto da população. Era então

costumeiro, ao longo do século XIX, ver a “questão judaica”, i.e., a discussão do lugar dos

judeus no estado e na sociedade, como um problema basicamente legal e uma questão de

110

definições jurídicas e regulamentos administrativos, e não era compreendido que essa

“questão” estava gradualmente se deslocando do reino formal, legal, para a esfera social e

psicológica.

Os poucos que sentiram isso em primeiro lugar começaram a oferecer várias soluções

para a questão judaica em um espírito nacionalista: havia aqueles que propunham um status

autônomo para os judeus, principalmente em países multi-nacionais; havia aqueles que

procuravam por “um país próprio” para os judeus, no qual pudessem desenvolver sua própria

cultura particular; outros sonhavam com o renascimento dos judeus na terra de seus pais, que

iria constituir um refúgio, um centro espiritual para a diáspora, ou um estado judaico

independente com seu povo, “uma nação como todas as outras nações”. As anomalias e

dificuldades da existência judaica dentro dos países da Europa gradualmente levaram à

consolidação de uma clara consciência nacional em grandes seções do povo judeu. Seu

objetivo principal era duplo, e às vezes até autocontraditório: por um lado, se refletia na

revolta contra as tradições históricas do povo, aversão por suas formas “diaspóricas”

restritivas e aviltantes, e no desejo de substituí-las por uma nova cultura nacional, adequada às

condições modernas; por outro lado, encontrou expressão no desejo de elevar essa tradição

histórica, revivê-la em várias esferas e outorgar-lhe um novo significado.

Uma das principais razões de um número tão grande de jovens e de intelectuais judeus

tomar parte nos movimentos revolucionários socialista e comunista estava em sua esperança

de que uma mudança básica na forma da sociedade europeia e uma reforma de seus defeitos

fundamentais iriam pavimentar o caminho para a remoção de obstáculos dividindo os judeus

dos não-judeus. Em outras palavras, advogavam a solução do problema judaico por meio de

sua integração na sociedade livre e esclarecida que seria criada pela tão esperada revolução,

ao invés de pelo difícil método de remover obstáculos em uma sociedade velha e

conservadora, e ao invés de propor o renascimento nacional, que parecia utópico e fantasioso.

Aqueles que aspiravam por uma sociedade ideal e estavam prontos a oferecer

quaisquer sacrifícios para obtê-la, aqueles que acreditavam que isso iria redimir a humanidade

de todas suas falhas, inclusive a maldição da “questão judaica”, estavam fadados a ser

amargamente desapontados. Não foi só na Alemanha, o baluarte do socialismo europeu, que

uma porção considerável da classe trabalhadora – a força que se supunha que iria conduzir as

mudanças – de fato apoiou Hitler e seus esquemas antissemitas; na União Soviética, que

advogava o socialismo como um modo de vida político e social, o antissemitismo oficial

apareceu no final da vida de Stalin, e, como resultado, os remanescentes da cultura judaica

naquele país foram erradicados. Judeus escritores, artistas e figuras públicas foram

111

exterminados, e foram elaborados planos bárbaros para a expulsão de todos os judeus russos

para a Sibéria.

Antissemitismo na França e o caso Dreyfus

Na França, os primeiros sinais de antissemitismo apareceram no começo da década de

1880, quando a luta entre o campo republicano-radical e os elementos monárquico-clericais se

tornou mais aguda. A razão imediata para a propaganda antissemita foi o colapso do Banco

Geral União Católica, no qual muitos pequenos investidores católicos perderam suas

poupanças. O diretor do banco acusou o “capital judaico” pela falência, e apareceram várias

edições de jornais antijudaicos. Mas as ideias antissemitas se tornaram mais influentes após a

publicação, em 1886, do livro de Edouard Drumont A França Judaica. Esta obra se propunha

retratar o choque entre arianos e semitas, descrevendo a influência destrutiva dos judeus ao

longo da história da França e sua influência decisiva sobre a vida política após 1870.

Conclamava a uma revolução social que se basearia na divisão da propriedade judaica. Foram

vendidas centenas de milhares de cópias do livro, e seguiu-se atividade antissemita. Foram

organizadas associações antissemitas estudantis e outros corpos semelhantes. Muitos

socialistas também tomaram parte nesta campanha de propaganda.

Houve uma renovada irrupção de sentimentos antijudaicos no final de 1894, quando

um oficial judeu, Alfred Dreyfus, que servia no Estado Maior francês, foi preso sob acusação

de espionagem. Os antissemitas afirmaram que isso fornecia prova adicional de “traição

judaica”. A princípio, o Ministro da Guerra hesitou, mas acabou decidindo levar Dreyfus a

julgamento perante uma corte marcial. Por meio de falsificação e pressão política, Dreyfus foi

julgado culpado e sentenciado a exílio perpétuo na Ilha do Diabo. Mas um oficial de gabinete

chamado Picquart revelou que o documento central em que se baseara a condenação tinha, na

verdade, sido escrito por outro oficial, e que certo coronel Henri tinha forjado documentos,

aparentemente com o conhecimento de seus superiores, a fim de colocar a culpa em Dreyfus.

Picquart foi destituído de seu posto e enviado para a Argélia. Um jornalista judeu, Bernard

Lazare, publicou um panfleto entitulado Um erro judicial – a verdade sobre o caso Dreyfus.

Um pouco mais tarde, começaram a circular rumores acerca de vários acontecimentos

no Estado Maior, e levantou-se um clamor público que durou três anos (1897-9). Os

antissemitas afirmavam que havia uma conspiração judaica, cujo propósito era humilhar a

França e seu exército. A maioria dos partidos políticos se opôs a um novo julgamento, mas o

público se dividiu em dois campos – os “dreyfusards” e os “anti-dreyfusards”. Em 13 de

112

janeiro de 1898 o jornal de Clemenceau, L’Aurore, publicou um artigo do renomado escritor

Emile Zola, entitulado “J’Accuse”. Neste artigo, Zola acusou o Estado Maior de impedir a

justiça e encobrir o verdadeiro espião. Em reação, ocorreram tumultos antissemitas em

cidades da França e da Argélia. Nas eleições seguintes, a maioria dos candidatos dreyfusards

foi derrotada, mas o novo Ministro da Guerra, Cavaignac, que era inimigo jurado dos

dreyfusards, ordenou um re-exame de todos os documentos do caso Dreyfus, e assim as

falsificações foram descobertas. Henri, o oficial que tinha fabricado as falsificações, cometeu

suicídio na prisão. Não obstante, os chefes do exército continuaram a se opor a um novo

julgamento, e a controvérsia pública se tornou ainda mais violenta. Um novo julgamento

acabou por acontecer em agosto de 1899. A culpa de Dreyfus foi reafirmada pela maioria,

mas foi recomendado que sua pena fosse reduzida, e o presidente o perdoou. Ele foi

totalmente exonerado somente em 1906.

A ideia do Retorno para Sião

A emergência do movimento nacional foi, sem dúvida, um ponto de virada decisivo na

moderna história judaica. A tendência para a integração na sociedade geral e as realizações da

Emancipação levaram os judeus a uma crescente identificação com os povos e nações entre os

quais viviam. No entanto, mesmo naqueles países em que havia numerosos obstáculos à

integração e emancipação, e mesmo nos círculos ortodoxos, nos quais jamais houvera dúvidas

sobre a singularidade e eleição do povo judeu, não era sentida necessidade de atividade

política independente ou de objetivos políticos relacionados somente com o povo judeu. Na

segunda metade do século XIX, alguns pensadores nacionalistas elaboraram um programa

extremamente radical: (1) todos os judeus, em qualquer lugar, constituíam uma nação cuja

unidade se baseava não apenas em memórias, religião e vestígios culturais comuns, mas

também em esperanças de um futuro compartilhado a ser construído sobre um programa

nacional e político; (2) deveria ser desenvolvida atividade nacional-política independente pelo

povo judeu, através da consolidação de estruturas especiais e a unificação de todas as forças

nacionais. Os judeus deviam buscar aliados, mas somente eles eram capazes de obter a vitória

de seu ideal, e somente eles podiam assegurar seu próprio futuro e redenção.

Que fatores levaram ao surgimento de ideais nacionais nas décadas de 1860 e 1870 e à

cristalização de um movimento nacionalista na década de 1880? Alguns se originaram nos

processos que afetaram somente a sociedade judaica, e outros nos desenvolvimentos

específicos da sociedade europeia geral. Neste período, a unificação da Itália e a da Alemanha

113

foram completadas, e os movimentos nacionais dos povos eslavos, especialmente dos Balcãs,

obtiveram reconhecimento e sucesso político. A consolidação de ideologias e movimentos

nacionalistas na vida política da Europa focalizou maior atenção para os traços culturais e

étnicos únicos das unidades nacionais, e levou a uma acentuação daquelas qualidades que

distinguem seres humanos uns dos outros, ao invés de uni-los. Um dos maiores reflexos desse

desenvolvimento foi o renascimento de tradições antijudaicas e uma explosão de

antissemitismo, que tornou ainda mais difícil para os judeus se identificarem com seus

entornos. Mas os maskilim foram não menos influenciados pelo exemplo positivo dos

movimentos nacionalistas que tinham atingido seus objetivos. Por que, eles perguntavam,

deveriam os judeus ser considerados inferiores aos sérvios, os búlgaros ou os romenos, que,

todos, tinham conquistado independência política?

Desenvolvimentos judaicos internos giraram em torno de desilusão com os ideais

universalistas do Iluminismo. Estes não tinham trazido o estabelecimento de uma nova

sociedade baseada em conceitos racionalistas, nem reinava uma paz duradoura entre as

nações. Entre os judeus, esses ideais tinham apenas induzido um número considerável de

jovens intelectuais a abandonar a herança de seus antepassados e a ligar-se a culturas

estranhas. Intelectuais judeus leste-europeus, que agora percebiam que os ideais pelos quais

estavam prontos a abandonar a lingua e a cultura hebraicas não estavam sendo atingidos,

começaram a se perguntar se havia propósito em suas crenças.

Os nacionalistas não negavam os princípios fundamentais dos antigos maskilim, e não

renunciavam a suas ambições de aproximar os judeus do Iluminismo e despertar neles um

desejo de mudar suas ocupações, seu modo de vida e imagem moral. Mas desesperavam da

possibilidade de conseguir isso dentro de países europeus, onde cada judeu estava se

esforçando para ser um alemão, um francês ou um russo “de religião mosaica”. Ao invés,

esperavam atingir seus objetivos em um molde judaico autocontido – um estado judeu

soberano com maioria judaica, ou uma unidade judaica autônoma dentro de um molde maior

– sem perseguições antissemitas ou discriminação oficial.

Desde o início, portanto, o movimento nacionalista judeu foi afligido por tensão

dialética: sua justificativa histórica residia no ressurgimento histórico e na confiança nas

realizações de um passado glorioso, enquanto seu plano para o futuro era baseado na

integração do povo judeu no mundo em redor deles e no abandono coletivo de tudo o que, por

séculos, os tinha diferenciado das outras nações. É possível que essa tensão, esta fusão de

tradição histórica e metas modernas tenha sido o que emprestou ao movimento nacionalista

judeu sua força e estabilidade. Um fator adicional e muito significativo foi que o movimento

114

nacionalista tornou a judeidade uma fonte de orgulho individual: no final do século XVIII a

judeidade de um cientista, artista ou estadista era vista pela sociedade europeia como uma

inaptidão, um sinal de estrangeirismo. O movimento nacionalista capacitou o judeu a ser ativo

em todas as esferas da vida, sendo sua judeidade vista como um fator natural.

O emergente movimento nacionalista associava suas expectativas, principalmente,

com a Palestina, mas havia também os que consideravam a possibilidade de renascimento

nacional em outro lugar. No passado, os mais leais advogados do retorno dos judeus para sua

pátria histórica tinham sido membros de várias seitas cristãs, que mencionaram tais projetos

em seus escritos nos séculos XVII e XVIII. No século XIX, foi adicionado um fator político:

vários políticos na Inglaterra e no continente europeu começaram a pensar que um estado

judeu podia ser estabelecido na Palestina como parte de um assentamento político que eles

esperavam que se seguiria à desintegração do Império Otomano. Assim, acreditavam, a

Palestina serviria de barreira entre a Turquia e o Egito, e os judeus – que não tinham

afiliações na área – seriam os mais indicados para essa tarefa.

Em seu jornal Hashahar (“O Despertar”), Perez Smolenskin vinha divulgando seus

pontos de vista sobre os fundamentos espirituais do nacionalismo judaico. (Hashahar, que

aparecia em Viena, e Hamaguid, publicado em Lyck, Prússia Oriental, eram ambos dirigidos

aos maskilim da Rússia). Mas foi somente no final da década de 1870 que Eliezer Ben-

Yehuda (Perlman) publicou um artigo no Hashahar, no qual escreveu que o nacionalismo não

podia ser fomentado sem um centro espiritual para servir como base e ponto focal do

renascimento do espírito nacional, e que esse centro só poderia ser estabelecido na Palestina.

No verão de 1880 foi estabelecida em Bucarest, Romênia, uma associação para o povoamento

da Palestina. O entusiasmo cresceu após a publicação do plano de Laurence Oliphant para o

povoamento da Palestina pelos judeus, mas só ganhou momentum após a irrupção dos

pogroms na Rússia, em 1881.

O Sionismo

O movimento Hibat Tsion [amor por Sion] no princípio não despertou resposta muito

ampla entre os judeus ocidentais. No ocidente, os membros ativos eram principalmente

estudantes de origem leste-europeia, como os que estabeleceram a associação Kadimah em

Viena em 1882. Na sequência, foram estabelecidas associações Hovevei Tsion na Galícia,

Áustria, Alemanha, Inglaterra, França, Estados Unidos e Canadá. O espírito que movia esses

círculos era o vienense Nathan Birenbaum, que fundou o jornal Selbstemanzipation em 1885

115

(o primeiro a empregar o termo “sionismo”, a partir de Monte Sion, em Jerusalém, para

designar a meta de renascimento judaico como uma nação independente na Palestina).

Em 1893 Birenbaum publicou um panfleto advogando o renascimento nacional na

Palestina e começou a clamar pela realização de um congresso sionista internacional com o

objetivo de estabelecer um movimento político para a implementação dessa meta. No começo

de 1894, foi realizada uma conferência de associações sionistas de vários países em Paris, mas

fracassou em estabelecer uma organização durável. Apelos para a convocação de um

congresso sionista continuaram, mas os primeiros passos na direção de sua implementação só

foram dados após Herzl (1860-1904), um líder de presença espiritual e habilidade destacadas,

ter se unido aos partidários da ideologia sionista.

Theodor Herzl, um renomado jornalista e escritor, veio de um lar assimilado, estava

distante da cultura hebraica e não sabia nada a respeito da atividade nacionalista que o tinha

precedido. Desde sua juventude, tinha consciência do antissemitismo que predominava na

Áustria, mas via a França como a terra do progresso e da cultura. Como ele mesmo

testemunhou, ficou aturdido pelas explosões antissemitas em Paris na época do processo

Dreyfus. (Herzl era então correspondente em Paris do jornal vienense Neue Freie Press). Isso

o levou a pensar em profundidade o “problema judaico” para procurar possíveis soluções e a

entrar em contato com várias personalidades judaicas, como os escritores Max Nordau e Israel

Zangwill, e com membros ativos do Hovevei Tsion no ocidente. Previamente, em maio de

1895, tinha se encontrado com o Barão de Hirsch e tentado, sem sucesso, despertar seu

interesse em um plano para a evacuação dos judeus da Europa para um país próprio. No

começo de janeiro de 1896, Herzl publicou um artigo sobre esse assunto no Jewish Chronicle

de Londres, e em fevereiro expôs suas ideias em um livro entitulado O Estado Judeu: uma

tentativa de uma solução moderna para a Questão Judaica. Em sua opinião, o antissemitismo

nunca desapareceria; mas, também acreditava que os judeus eram “uma nação”. Por isso,

sentia que não podia haver solução para o “problema judeu” – que para ele era basicamente

uma questão nacional – a não ser pelo estabelecimento de um estado judeu. Isto podia ser

feito “se nos for concedida soberania sobre alguma área de terra neste planeta, para preencher

as justas necessidades de nosso povo; todo o resto nós mesmos forneceremos”.

A publicação de O Estado Judeu despertou uma onda de entusiasmo entre sionistas de

toda a Europa. Muitos procuraram Herzl para expressar sua lealdade e apoio, e começaram a

ajudá-lo em suas atividades. Isto o pôs em contato com projetos sionistas e com a Palestina.

Como o Barão de Hirsch tinha morrido, Herzl tentou obter ajuda dos Rotschilds, mas eles se

recusaram a apoiá-lo. Foi a Constantinopla para propor a solução dos problemas financeiros

116

do Império Turco em troca da concessão da Palestina como um estado independente, mas o

sultão recusou-se a conceder-lhe uma audiência. Herzl, não obstante, permaneceu resoluto em

sua convicção de que havia espaço para negociação com as autoridades turcas sobre essa

questão.

4.4 O movimento socialista entre os judeus antes da Primeira Guerra Mundial

O Bund

O movimento socialista judaico começou a emergir na segunda metade da década de

1870. Nos dez anos seguintes, começou a luta organizada dos operários judeus na Rússia,

Inglaterra e Estados Unidos pela melhoria de suas condições de vida. Na Rússia, associações

de operários judeus provaram sua força organizando greves impressionantes em várias

cidades do Distrito de Assentamento. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, ajudaram

imigrantes recém-chegados a introduzir melhorias nas terríveis condições que predominavam

nas “oficinas de suor”. Os representantes da intelligentsia socialista, particularmente

estudantes, começaram a formar círculos operários para disseminar educação e ideias

socialistas. Como em outros partidos socialistas em seus primeiros dias, e talvez mais do que

na maioria deles – a imprensa servia como alavanca e instrumento de primeira classe. Morris

Vinchevsky, que produzia o jornal socialista em hebraico Assefat Hahamim (“Assembleia dos

sábios”), uma continuação do Ha'emet de Liebermann em Koenigsburg, começou a publicar

um semanário em ídiche, Der Poilishe Yidl (“O judeu polonês”) em Londres, em 1884. Essa

transição do hebraico para o ídiche como linguagem de propaganda denotou a tendência de se

aproximar das grandes massas dos operários judeus, e não só dos judeus jovens educados em

ieshivot, como Libermann havia feito.

Em 1880 foi publicado um panfleto em Genebra por “um grupo de judeus socialistas”,

anunciando o estabelecimento de uma gráfica para publicar literatura socialista em ídiche. O

mesmo panfleto também explicava que havia entre os judeus, além da intelligentsia, artesãos

e trabalhadores braçais que poderiam proporcionar terreno para propaganda socialista.

A decisão dos estudantes e maskilim na Rússia de “voltar para seu povo” na época das

“tempestades do sul” afetaram não só o impulso em direção ao Hovevei Tsion e à migração,

mas também à clarificação do problema judaico de um ponto de vista socialista. Uma das

expressões disto foi um artigo de Ilya Rubanovich, um dos líderes dos narodniks, publicado

117

em 1886 no órgão do partido, com o título “O que os judeus russos deveriam fazer?” Esta foi

a primeira discussão aberta do problema judaico na imprensa revolucionária. Rubanovich

escreveu que não era a burguesia judia, mas sim a revolução russa, que outorgaria liberdade e

igualdade de direitos ao proletariado judaico. A revolução iria também capacitar judeus

camponeses pobres a fundar suas próprias colônias agrícolas.

A ideia de que os judeus em geral, e os operários judeus em particular, tinham

interesses próprios, e tinham assim necessidade de uma organização separada para atingir suas

metas, espalhou-se rapidamente entre os ativistas do movimento operário judeu. Após várias

deliberações, representantes dos círculos socialistas se reuniram em Vilna em outubro de 1897

e fundaram a União Geral de Trabalhadores Judeus na Lituânia, Polônia e Rússia, em ídiche

Der Bund.

O Bund não se via somente como um partido político, e devotou parte considerável de

sua atividade à luta sindical dos operários. Tirava sua força principal dos sindicatos

estabelecidos nos diversos segmentos. Assim, não definia sua natureza organizacional de

modo perfeitamente claro. Seu programa político, tal como formulado no primeiro encontro,

via como objetivo principal a guerra contra a autocracia tsarista.

O Bund não se considerava um partido separado, mas sim parte da social democracia

russa, que operava na forma de grupos e associações dispersos. Por causa de sua força

relativa, o Bund desempenhou papel importante no estabelecimento do Partido Social

Democrata de Toda a Rússia em março de 1898. Não é coincidência que a primeira

conferência desse partido tenha se realizado em Minsk, cidade da Região de Assentamento na

qual o Bund operava, e este colocou uma gráfica ilegal à disposição do partido.

O sionismo socialista

A quarta conferência do Bund (Bialystok, maio de 1901) foi, por muitas razões, um

marco em seu desenvolvimento. Ela decidiu a intensificação da luta política, como atividade

separada da luta econômica. Mas o ponto de virada principal foi a questão nacional. A

conferência decidiu exigir a transformação da Rússia em uma “federação de nações, cada uma

das quais com completa autonomia nacional, independentemente do território em que reside.

A conferência reconhece que o termo ‘nação’ também se aplica ao povo judeu”. Mas, levando

em consideração as condições vigentes na Rússia, a conferência não exigiu essa autonomia

nacional imediatamente, para evitar “obscurecer a consciência de classe do proletariado”.

118

No segundo congresso da social-democracia russa, realizado no verão de 1903, o Bund

exigiu que fosse reconhecido seu status autônomo de “único representante do proletariado

judeu”; isto encontrou a oposição da maioria, que rejeitava o princípio federativo na

organização do partido. Os principais oponentes do Bund nesta questão foram social-

democratas judeus como Martov, Trotsky e outros (de quarenta e cinco delegados da

conferência, vinte e cinco eram judeus, incluídos aí cinco representantes do Bund). O Bund

anunciou sua saída do partido e, subsequentemente, houve crescente atrito entre ele e a social-

democracia por causa de suas atividades paralelas no Distrito de Assentamento.

As atividades do Bund cresceram em escopo, e sua influência sobre o povo judeu

aumentou, após começar a organizar unidades de autodefesa no período dos pogroms de

1903-7. Desempenhou um papel ativo na Revolução de 1905, época em que o número de seus

membros tinha atingido 35.000. O quarto congresso da social-democracia russa concordou em

aprovar o status autônomo do Bund e abster-se de decidir sobre a questão do programa

nacional. Com base nessa decisão, a sétima conferência do Bund (Leipzig, 1906) decidiu

retornar às fileiras do partido.

Nachman Syrkin (1868-1924) é visto como o pai do socialismo sionista. Em 1898 ele

publicou um artigo entitulado “A Questão Judaica e o Estado Socialista Judeu” no qual exigia

o estabelecimento de um estado socialista judeu na Palestina. Somente um estado como esse,

pensava, seria capaz de fornecer uma solução para a questão judaica, que era insolúvel sob as

condições do capitalismo. Em 1901 emitiu um “Apelo à juventude judaica” no qual exigia o

estabelecimento de uma organização social-democrata judaica de massa para atingir essas

metas. Neste mesmo período, começaram a emergir na Rússia numerosos grupos de variadas

inclinações, assumindo o nome de Poalei Tsion (Trabalhadores de Sion). Alguns desses

grupos, como o de Yekaterinoslav, advogavam objetivos especificamente socialistas. Mas a

principal tendência entre eles, “a corrente de Minsk”, absolutamente não se via como

socialista. Ela enfatizava o papel central alocado aos trabalhadores no movimento sionista,

mas expressava reservas em relação à atividade política na diáspora.

A crise de Uganda, o fortalecimento do ânimo territorialista e a extensa atividade

política que se seguiu à revolução despertaram considerável fermento nos círculos Poalei

Tsion. Alguns desses grupos abandonaram completamente a ideia de um território judeu

independente, pelo menos no futuro próximo, e depositaram sua fé na obtenção de autonomia

judaica na Rússia. Eram influenciados pelo historiador Simon Dubnow, um dos formuladores

da teoria autonomística concernindo à manutenção de nacionalismo nos países de residência

dos judeus. Dubnow, um oponente do socialismo, foi ativo na defesa dessa causa na Aliança

119

pela Obtenção de Plenos Direitos para os judeus russos, e, após sua dissolução, tentou criar

um corpo político conhecido como o Folkspartei (Partido do Povo), para atingir essas metas.

O estabelecimento judaico na Palestina antes da ocupação britânica

Após o grande florescimento do centro judaico na Palestina no século XVI, a

comunidade passou por um declínio acentuado no século XVII. A situação instável de

segurança, catástrofes naturais, o pequeno número de imigrantes e o abandono das cidades

transformaram a Palestina em um canto remoto e desolado do Império Otomano, com uma

população judaica fraca e assolada pela pobreza. No século XVIII houve uma leve

recuperação. No começo do século, R. Yehudah Hehassid (“o piedoso”) imigrou com mais de

mil de seus seguidores, mas o grupo se desintegrou rapidamente após a morte de seu guia –

em parte como resultado da oposição levantada pela presença de muitos sabateanos entre os

imigrantes. A grande maioria do Ishuv (comunidade judaica) era composta de sefaraditas e

imigrantes dos países árabes, com apenas alguns ashquenazitas. As autoridades restringiram o

número de judeus autorizados a residir em Jerusalém, e não havia lá qualquer comunidade

ashquenazita, pois os ashquenazitas eram considerados responsáveis pelas dívidas deixadas

pelo grupo de R. Yehudah Hehassid. O assentamento na Palestina recebeu ímpeto renovado

com a imigração de hassidim da Lituânia, encabeçados por R. Menahem Mendel de Vitebsk

em 1777. Eles eram não apenas relativamente numerosos (mais de 300), mas também os

primeiros imigrantes que por algum tempo mantiveram contato ativo com seu país de origem

e receberam apoio material e espiritual de seus irmãos lá. R. Menahem Mendel continuou a

guiar a comunidade de Vitebsk desde a Palestina, de forma que a relação era recíproca. No

início, os hassidim contemplaram assentar-se em Safed, mas, por causa da oposição que isso

levantou, a maioria deles se mudou para Tiberíades e alguns se assentaram em Peki’in. Os

hassidim aumentaram a comunidade judaica na Galileia e estenderam a comunidade

ashquenazita para assentamentos fora de Safed, onde até então estavam concentrados. Nos

anos 1808-10, alguns discípulos do Gaon de Vilna, os perushim, imigraram e se

estabeleceram em Safed. Em 1816 um número deles se mudou para Jerusalém e lançou as

fundações do assentamento ashquenazita lá.

A despeito dessas ondas de imigração e da consolidação do Ishuv nas “quatro terras

santas” (Jerusalém, Safed, Tiberíades e Hebron), e, por algum tempo, em Acre e outras partes

da Galileia, a comunidade judaica na Palestina no começo do século XIX atingia apenas

alguns milhares de almas, que sofriam da fraqueza do regime otomano e de várias catástrofes

120

naturais, como pragas, terremotos e secas. A situação política e de segurança interna era

afetada consideravelmente pelas rebeliões de felayim e ataques de beduínos saqueadores. A

autoridade central enfraqueceu também quando países europeus estabeleceram um

protetorado sobre seus nacionais dentro do Império Otomano. Após a campanha de Napoleão

no oriente (1798-9), houve interesse crescente sobre a Palestina nos estados europeus, e eles

começaram a exigir proteção para os Locais Sagrados e para as diversas seitas cristãs. Com o

passar do tempo, os judeus também foram incluídos nesse sistema de proteção.

A despeito das numerosas mudanças políticas durante a primeira metade do século

XIX, o Ishuv continuou seu lento desenvolvimento. Jerusalém mais uma vez tornou-se a

comunidade guia, e em 1824 os ashquenazitas foram de novo autorizados a se assentar lá –

após terem conseguido livrar-se da responsabilidade das antigas dívidas. O número de judeus

em Safed mais uma vez atingiu 2.000 famílias, e o assentamento em Tiberíades também

cresceu. Mas o grande terremoto de 1837, no qual morreram 2.000 judeus de Safed e 700 de

Tiberíades, reduziu as comunidades. A maioria dos ashquenazitas de Safed se mudou para

Jerusalém.

As aliot

A primeira onda de imigração judaica (aliá), que começou em 1881, mudou

completamente a condição da comunidade judaica. O número de imigrantes não era grande,

mas eles vieram para o país com uma meta nacionalista claramente definida: fundar colônias

agrícolas como base para o assentamento no lar histórico e como passo principal em direção

ao retorno dos judeus para a Palestina. Eles se viam como a vanguarda do povo, cônscios de

que havia um grande ressurgimento em seus países de origem e de que eram apoiados por um

movimento público nas associações Hovevei Tsion. Os membros da associação Bilu, que

imigraram como um grupo organizado, e os emissários de outras associações, buscavam

caminhos para a realização dessa meta nacional. No verão de 1882 foi criado o Va’ad

Halutsei Yesud Hama’alah (“Comitê de Pioneiros”) em Jafa, que se esforçou para fornecer

ajuda sistemática a assentados e estabelecer um corpo central que utilizaria a experiência

adquirida. O comitê tentou prevenir a repetição de erros, bem como a exploração por

aproveitadores, e formular princípios adequados sobre os quais basear o novo assentamento –

tradição judaica, aspirações nacionais e influências narodnik.

Tão logo a imigração começou a crescer, as autoridades turcas ficaram apreensivas e

enrijeceram os regulamentos para entrada no país. Em maio de 1882 elas proibiram a

121

imigração completamente. Os imigrantes eram forçados a entrar no país secretamente, muitas

vezes subornando funcionários. Mas, a despeito das dificuldades, as primeiras colônias

agrícolas foram fundadas em 1882 (e duraram até agora). Os imigrantes da Rússia

estabeleceram Rishon le-Tsion, enquanto os da Romênia criaram Zihron Ya’akov na Samaria

e Rosh Pinah na Galileia. Em 1883, Petah Tikvah foi repovoada e Yesud Hama’alah foi criada

no Vale Huleh. Mas enquanto estavam sendo dados esses primeiros passos, ficou claro que os

primeiros assentados, com toda sua visão e coragem, não tinham conhecimento claro do

trabalho agrícola, particularmente sob as condições da Palestina, e que lhes faltavam os meios

financeiros para consolidar as novas colônias.

A mudança decisiva no projeto de renascimento nacional na Palestina foi forjada pelos

imigrantes da segunda aliá, os primeiros da qual, incluindo A. D. Gordon, chegaram à

Palestina no começo de 1904. Em 1905, um dos professores de hebraico no país, Joseph

Vitkin, publicou um apelo a jovens judeus na Rússia, chamando-os a imigrar para a Palestina

e a salvar o empreendimento nacionalista. Começaram a chegar jovens judeus que tinham

ficado chocados com o desamparo da grande comunidade judaica russa em face dos pogroms

de Kishinev. Os dez anos da Segunda aliá (1904-14) trouxeram cerca de 40.000 imigrantes

para a Palestina, a maioria dos quais era jovem. Ainda que a maioria deles acabasse por deixar

o país de novo, membros dessa aliá não apenas aumentaram e fortaleceram o Ishuv, mas

também transformaram completamente seu caráter, instituições e aspirações. Em 1914 havia

cerca de 85.000 judeus no país: 45.000 em Jerusalém, 10.000 em Jafa, 7.000 em Safed, 5.000

em Tiberíades, 3.000 em Haifa e 12.000 em colônias agrícolas. Em 1909 foi fundado o

subúrbio de Ahuzat Bayit perto de Jafa, que logo se desenvolveu na primeira cidade

totalmente judia, Tel Aviv.

A vida cultural

As organizações filantrópicas, a Aliança Israelita Francesa e a Hilfsverein der

deutschen Juden alemã, que estabeleceram e administraram a maioria das escolas no país,

esforçaram-se por favorecer os idiomas de seus próprios países nestas escolas. No entanto, o

conceito de educação hebraica enraizou-se no país, e o hebraico, gradualmente, tornou-se a

principal linguagem de instrução. Em 1906 foi fundado em Haifa um colégio em hebraico, e

Boris Schatz fundou Bezalel, uma escola de artes e ofícios. O Hebrew Gymnasia (colégio) foi

fundado em Jerusalém em 1909.

122

A “disputa do idioma” desempenhou um papel decisivo, trazendo consigo o triunfo da

educação em hebraico na Palestina. O Hilfsverein decidiu estabelecer um Instituto Técnico

em Haifa e um colégio afiliado, com ajuda de fundos doados por filântropos da Rússia e dos

Estados Unidos. Como o ensino do hebraico era de importância central no programa

educacional dessa sociedade, os sionistas apoiaram o plano. Mas em uma reunião do conselho

de administração no final de 1913 transpirou que o Hilfsverein tinha intenção de ensinar

ciências e assuntos técnicos em alemão, afirmando que o hebraico não estava suficientemente

desenvolvido para esse propósito. Essa decisão levantou uma onda de protestos no Ishuv. A

maioria dos alunos das escolas Hilfsverein entrou em greve, e os professores se demitiram. O

Centro dos Professores anunciou a abertura de novas escolas, e foi inaugurado um seminário

para professores de hebraico com a ajuda do Hovevei Tsion. A maioria dos alunos e

professores da rede do Hilfsverein foi absorvida nas novas escolas, enquanto a abertura do

Technion era adiada. Ele foi finalmente inaugurado após a Primeira Guerra Mundial, época

em que o hebraico estava fortemente entrincheirado na rede educacional do país.

4.5 O crescimento da Nova Cultura Judaica

A intensificação de tendências conflitantes na vida judaica

O desenvolvimento do povo judeu no final do século XIX e começo do século XX

flutuou entre dois extremos: por um lado, havia a irrupção de antissemitismo na Europa

central e ocidental, que era reflexo da recusa de amplos círculos em aceitar os judeus e

assimilá-los; e, por outro, havia um fortalecimento de tendências radicais entre os próprios

judeus, tanto na esfera nacional quanto na sócio-política. Os judeus associavam seu futuro

com seus países de residência, absorviam a cultura de seus países hospedeiros e tomavam

parte ativa na vida e conflitos dessas nações; mas, ao mesmo tempo, criavam estruturas

organizacionais especiais para ajuda mútua e suporte a seus irmãos perseguidos na Europa

oriental, Ásia Menor e norte da África. Fomentavam também o ressurgimento da cultura

nacional judaica e o desenvolvimento da moderna literatura hebraica e ídiche.

Esta dicotomia era particularmente evidente no período em discussão, durante o qual a

integração judaica na vida nacional e cultural da Europa ocidental e central deixou de ser a

escolha da minoria e passou a abranger a grande maioria das comunidades judaicas. A

integração e a atividade dentro das estruturas políticas, econômicas e culturais dos países não

123

eram conduzidas por judeus como um grupo ou comunidade, mas por indivíduos que usavam

seus direitos e cumpriam suas obrigações como cidadãos individuais. A reação hostil à

atividade judaica, por outro lado, não tomava a forma de oposição a indivíduos, mas de uma

campanha contra a “dominação judaica”, o “espírito judaico”, e outros conceitos antissemitas

semelhantes. Os judeus desses países foram, por isso, obrigados a se organizar em autodefesa

e a tomar parte no conflito social e político não como indivíduos, mas como um grupo

repelindo ataques. Começaram a fundar organizações para vários propósitos, mas o objetivo

central era salvaguardar seu direito de se integrar na sociedade circundante e constituir parte

orgânica dela. A existência, no entanto, de organizações especiais com objetivos sociais e

políticos específicos – mesmo quando eram claramente filantrópicas em natureza e fundadas

para ajudar estudantes ou imigrantes judeus – serviam como prova para antissemitas

declarados e para muitos outros círculos europeus de que a “unidade judaica”, o “separatismo

judeu”, e, portanto, a ambição pela “dominação judaica”, realmente existiam. Assim, foi

criado um círculo vicioso: as investidas, suspeitas e discriminações intensificavam a atividade

judaica, enquanto essa, por seu turno, aumentava a suspeita e a hostilidade. O resultado foi o

terrível preço que o povo judeu pagou durante as duas guerras mundiais e o período entre

guerras.

Florescimento da literatura hebraica

A educação judaica na Europa oriental assentou as fundações para o desenvolvimento

da língua hebraica a partir de formas literárias tradicionais para novos padrões, e a criação de

uma nova literatura hebraica. Da década de 1880 em diante, a literatura dos escritores da

Haskalah, polêmica, didática, elitista, começou a ser substituída por obras que refletiam a

vida e aspirações do povo. O florescimento dessa nova literatura hebraica é associado com o

movimento de renascimento nacional. Em lugar do ceticismo dos escritores da Haskalah em

relação à tradição, encontramos agora descrições simpáticas da “vida judaica integrada” do

passado. Havia um crescente interesse na literatura de períodos anteriores e em folclore. As

editoras Ahi’asaf e Tushiyyah em Varsóvia começaram a publicar as obras dos poetas

medievais judeu-espanhóis, traduções de obras em estudos judaicos, livros de filosofia, textos

didáticos e literatura para jovens. A imprensa hebraica teve um papel particularmente

importante em aproximar a cultura hebraica dos problemas contemporâneos: Hayom, editado

por Kantor, e Hatsefirah, editado por Sokolow, ajudaram a desenvolver o moderno jornalismo

124

hebraico; os artigos de Ahad Ha-Am foram a expressão clássica do moderno pensamento

nacional judaico.

O grande poeta nacional dessa época foi Hayyim Nahman Bialik (1873-1934),

comparável a Judah Halevi na Idade Média. Seu trabalho fundia delicada força lírica com o

tremendo poder da fúria poética, na tradição dos profetas. Sua singularidade espiritual residia

em sua tentativa de criar uma síntese entre a continuidade das tradições culturais hebraicas e

os esforços criativos de seus dias. Não foi por acaso que a ineficácia da grande comunidade

judaica russa durante os pogroms de Kishinev o levou à severa condenação de seu povo.

Contra essa escravidão espiritual, ele levantou a bandeira do renascimento, da profunda

revolução na vida do povo que acabaria por levá-lo à plena redenção em sua pátria ancestral.

A destruição do passado patriarcal sob a cruel pressão dos novos desenvolvimentos e o

conflito que levantou nos corações do povo encontraram sua expressão nas obras de

Feuerberg, nos conflitos de Berdyczewski, na amargura de Brenner. A literatura hebraica

tomou novas e variadas formas, do misticismo de I. L. Peretz e Berdyczewski à adoração pagã

da natureza e o amor materialista da vida de Saul Tchernichowsky e daqueles poetas que o

imitaram – Zalman Shneour e Yaakov Cahan; do naturalismo dos herdeiros de Mêndele ao

psicologismo simbolista de Peretz, David Frischmann e seus seguidores.

Literatura ídiche

Após o sucesso inicial das obras de Mêndele e Linetsky nos anos sessenta, o círculo de

leitores em ídiche expandiu-se grandemente nos anos setenta. Os romances populares no

estilo vulgar de Shomer começaram a ser muito difundidos, e as primeiras peças de Abraham

Goldfaden lançaram as fundações do teatro ídiche popular. O desenvolvimento do movimento

nacionalista e a criação de grandes centros de imigrantes nos Estados Unidos marcaram uma

nova fase na literatura ídiche. Sholem Aleichem e M. Spector saíram em batalha contra a

ficção popular barata. No começo dos anos oitenta começaram a aparecer os anuários Der

Hoisfreind, editado por Spector, e o Yiddishe Folksbibliotek, editado por Sholem Aleichem, e,

logo após, o Yiddishe Bibliotek, de Peretz. Mêndele, Sholem Aleichem e Peretz constituíram a

“cadeia de ouro” da literatura ídiche. Sholem Aleichem (Shalom Rabinowitz, 1859-1916),

cuja obra abrangia vários tipos de gêneros literários, foi sem dúvida um dos mais importantes

humoristas realistas da moderna literatura europeia. Sua poderosa influência é claramente

evidente na moderna literatura ídiche e hebraica.

125

Na virada do século [XIX para XX] os escritos em hebraico e ídiche ocupavam um

nicho próprio na literatura moderna. Seções consideráveis da intelligentsia judaica

começaram a vê-los como um importante ativo cultural, uma parte vital de suas vidas

espirituais e de sua identidade judaica. Mas a natureza única do desenvolvimento histórico

judaico deixou sua marca também nessa esfera, pois as forças criativas estavam divididas. A

literatura hebraica tornou-se a principal fundação do renascimento nacional sionista e trouxe

consigo a transformação evolucionária do hebraico em uma língua viva; ele não apenas era

falado pelo Ishuv na Palestina, mas servia como linguagem literária de amplas seções do povo

judeu, particularmente na Europa oriental. Por outro lado, a intelligentsia não-sionista radical,

que apoiava o Bund, transformou o ídiche e sua literatura em elemento primário de suas

aspirações nacionais e espirituais, mostrando grande devoção e até fanatismo em sua

fidelidade.

Papel dos judeus na vida cultural de outras nações

No final do século XIX houve um grande aumento no número de cientistas,

jornalistas, escritores, artistas, escultores e músicos judeus que tomaram parte e influenciaram

a vida cultural da Europa e dos Estados Unidos. Sua obra tinha pouca conexão com assuntos

especificamente judaicos; ao mesmo tempo, sua atitude face ao povo judeu e seus problemas

diferia daquela da intelligentsia judaica nos primeiros estágios de integração cultural na

Europa. Originalmente, o intelectual judeu tinha se esforçado em provar que tinha se separado

de seu legado judaico e não se diferenciava em nada de seu novo ambiente cultural. Não podia

haver maior elogio para intelectuais judeus do que lhes dizer que não pareciam judeus. Na

virada para o século XX, a situação mudou. Houve muitos casos em que intelectuais judeus

apareciam em seus próprios campos não simplesmente como “homens”, mas como judeus, e

enfatizavam não só seu desejo de se assemelhar a seu ambiente, mas também seu direito de

ser diferente dele. No final do século XVIII e começo do XIX, o intelectual judeu tendia a ver

seus irmãos judeus como ocupando o mais baixo degrau da sociedade, e seu único desejo era

elevá-los ao nível cultural e moral do mundo não-judeu, que ele via como o supremo critério

para a realização humana. No final do século XIX e começo do XX, ao contrário, um número

considerável de judeus cultos começou a procurar aqueles elementos da herança judaica que

poderiam ajudar a corrigir os defeitos da sociedade humana como um todo. Assim, consciente

ou inconscientemente, vieram a apoiar o ponto de vista de que o judeu tem uma missão

126

especial a cumprir na cultura europeia, ou a se juntar àqueles que se identificavam com o

movimento nacional.

Neste período, a pesquisa científica atingiu maior importância na Europa, e os judeus

começaram a desempenhar um papel maior e mais variado nela. Nos anos oitenta a maioria

dos estudantes judeus na Alemanha estudava medicina; portanto, não é surpreendente que

muitos judeus se distinguissem em assuntos médicos, alguns atingindo realizações destacadas,

como Paul Ehrlich (1854-1915), o imunologista, um dos pais do moderno pensamento

biológico. Na ciência médica aplicada foram obtidas importantes realizações pelo

bacteriologista nascido na Rússia, Waldemar Mordecai Haffkine (1860-1930), que combateu

o cólera e a praga na Índia e fundou o Instituto Bombaim, que ainda recebe seu nome.

Muitos judeus se destacaram em outro campo com longa tradição judaica – a

matemática -, e alguns descobriram nela novos campos de pesquisa, como Georg Cantor

(1845-1918), fundador da teoria de conjuntos, e Herrmann Minkowski (1864-1909), que

forneceu a base matemática para a conexão entre espaço e tempo. Com o passar do tempo,

mais e mais judeus começam a se engajar em física, incluindo alguns que obtiveram grandes

realizações, como Albert Abraham Michelson (1852-1931), famoso por seus experimentos na

determinação da velocidade da luz; Heinrich Hertz (1857-94), que estudou ondas

eletromagnéticas; e Albert Einstein (1879-1956), o pai da teoria da relatividade, que trouxe

consigo a maior revolução na física desde os dias de Newton.

Uma quantidade de judeus foi proeminente no campo da filosofia. Hermann Cohen

(1842-1918) foi o fundador da “escola Marburg” (batizada em homenagem a sua cidade

natal), que aspirava reviver o idealismo filosófico com base no kantismo. Outro pensador de

origem judaica extremamente influente foi Henri Louis Bérgson (1859-1941), que atacou o

ponto de vista mecanicista-materialista e advogou uma abordagem espiritual baseada na

intuição.

No estudo da lógica, a abordagem fenomenológica de Edmund Husserl (1859-1938)

foi de grande importância. Em psicologia, Sigmund Freud (1856-1939) foi de importância

destacada; ele foi o pai da psicanálise, que exerceu uma influência muito além da cura de

distúrbios psicológicos, que era seu propósito. Em sociologia, Georg Simmel (1858-1918) e

Emile Durkheim (1858-1915) fizeram contribuições importantes.

Nestes anos houve um aumento no número de judeus ocupados nas artes plásticas.

Enquanto em períodos anteriores os artistas e escultores judeus tinham sido poucos, agora

muitos jovens judeus se tornavam interessados em arte. Camille Pissarro (1830-1903) foi um

dos fundadores da escola impressionista de pintura, e seu filho Lucien (1863-1944), que viveu

127

a maior parte de sua vida na Inglaterra, seguiu seus passos. Na Holanda, Isaac Israels (1865-

1934), filho do artista Jozef Israels, pertenceu a essa escola. Na Alemanha, os mais

conhecidos representantes do impressionismo foram Max Liebermann (1847-1935) e Lesser

Ury (1861-1931). Na Rússia havia Leon Bakst (1868-1924), um artista que trabalhou em

estreita colaboração com o balé. Um dos mais importantes artistas da Rússia no final do

século XIX foi Isaac Levitan (1861-1900), que respondeu com sensitividade incomum à

paisagem russa, seu único assunto. Nos anos antes da Primeira Guerra Mundial, uma nova

escola revolucionária de arte, a “escola de Paris”, desenvolveu-se na capital francesa, na qual

judeus tiveram um papel de destaque. Os mais importantes entre eles foram Amadeo

Modigliani, Jules Pascin, Chaim Soutine e Marc Chagall. Para alguns deles, assuntos judaicos

formaram temas centrais em suas obras.

Havia muitos judeus escrevendo em alemão neste período. Em geral, não se

concentravam em temas judaicos, mas sua origem judaica ou a influência de seu ambiente de

infância encontrava expressão em sua obra. Peter Altenberg (1859-1919), Arthur Schnitzler

(1862-1931), Jacob Wassermann (1873-1933) e Franz Kafka (1883-1924) tiveram papeis

proeminentes na literatura alemã. Houve também escritores judeus em outros idiomas que se

preocuparam com temas judaicos e apelaram principalmente para leitores judeus: os escritos

de Israel Zangwill podem ser definidos como literatura anglo-judaica, assim como Lev

Levanda e o poeta Shimon Frug foram os fundadores da literatura russo-judaica. Mas na

Inglaterra e na Rússia, como tinha acontecido na Alemanha, a literatura judaica em vernáculo

existiu somente como um curto período de transição. Subsequentemente, a obra de autores

judeus se fundiu completamente na literatura geral de seus países, ainda que tenham sido

feitas tentativas por críticos – simpáticos ou hostis – de apontar seus traços singulares.

Intensificação da atividade política judaica após a primeira guerra

O ano de 1917 testemunhou a irrupção da Revolução Russa, a desintegração dos

impérios multinacionais e a declaração do presidente Wilson de seus “Quatorze Pontos”, que,

em princípio, tinham como objetivo a salvaguarda da independência nacional, a cooperação

entre nações e a paz mundial através da Liga das Nações. Esses três eventos despertaram

grandes expectativas, quase messiânicas, entre os povos da Europa, que tinham sofrido muito

durante os anos de guerra. As esperanças tomaram conta ainda mais rapidamente de milhões

de judeus da Europa oriental e central, que não apenas pensavam que tinha chegado a grande

128

hora em que iriam viver como iguais em seus países de residência, mas também celebravam

uma grande conquista política na publicação da Declaração Balfour.

O triunfo do principio de autodeterminação nacional e a publicação da Declaração

Balfour elevaram o prestígio dos sionistas a uma nova altura entre os judeus da Europa

oriental e dos Estados Unidos. Os longamente esperados objetivos nacionais pareciam perto

da realização tanto na Palestina quanto nos países da diáspora. É contra esse pano de fundo

que se deve compreender o surgimento de vigor idealista e atividade política em amplas

seções do povo judeus, incluindo a maioria da geração mais jovem.

Uma expressão espontânea da atividade política judaica independente foi o

estabelecimento de nationalraten (“conselhos nacionais”) em muitas partes da Áustria-

Hungria, Alemanha e Rússia durante 1918 e 1919, tão logo os combates cessaram. Fronteiras

políticas eram não-existentes, unidades militares estavam sendo transferidas de lugar para

lugar, e membros de várias nacionalidades, amiúde com tendências políticas opostas,

começaram a dar voz a suas reivindicações. Os conselhos nacionais judaicos da Áustria,

Tchecoeslováquia, Galícia Ocidental e Oriental, distrito de Poznan, Polônia do Congresso,

Ucrânia, Lituânia, Bukovina e Transilvânia foram criados com os objetivos de assegurar a

representação dos interesses judaicos, chegar a um entendimento com representantes de

outros povos da região e evitar conflitos com eles, ajudar a preservar a ordem pública e

assegurar suprimentos e serviços vitais. Grupos de ex-militares judeus, que estavam então

começando a retornar do front, ajudavam a manter a ordem e a proteger vidas e propriedades.

O programa desses conselhos era geralmente uniforme em seus contornos. O ponto de

partida era que o princípio aceito por todas as nações – isto é, o direito a autodeterminação

nacional – também se aplicava ao povo judeu. Assim, reivindicavam que, simultaneamente

com a concessão de direitos iguais aos cidadãos judeus como indivíduos, deveria também ser

reconhecido o direito à representação e autonomia nacional grupal. Em outras palavras, os

judeus como um grupo nacional deviam ser representados nas instituições governamentais

centrais e autorizados a organizar sua vida interna como achassem adequado, particularmente

na esfera de religião, educação e auxílio social. Todos eles depositavam grandes esperanças

na Conferência de Paz que estava por acontecer em Paris e esperavam pela sanção oficial de

suas reivindicações.

Por um curto período de tempo pareceu que a estrada para uma combinação de

aspirações de independência nacional judaica e igualdade e atividade civil em seus países de

residência estava aberta e prometia sucesso. Mas a ilusão inebriante não durou muito.

Tentativas de autonomia nacional em vários lugares da diáspora falharam ou diminuíram. A

129

atitude da administração militar britânica na Palestina em relação às aspirações sionistas era

reservada e mesmo hostil. A habilidade da Organização Sionista para começar um projeto de

assentamento amplo mostrou-se decepcionantemente limitada, enquanto as atividades dos

conselhos nacionais foram proibidas, canceladas ou reduzidas em escopo quando o período de

incerteza política passou, e as fronteiras e regimes foram fixados e determinados.

4.6 O movimento sionista e o “Lar Nacional” entre as guerras

A política sionista nos anos de guerra e a Declaração Balfour

A Primeira Guerra Mundial aturdiu a Organização Sionista Mundial e a confrontou

com numerosos problemas. Quando se tornou claro que a Rússia estava em aliança com as

potências da Entente, Inglaterra e França, muitos judeus anteciparam uma mudança na

política antijudaica russa. Foram amargamente desapontados, no entanto, nos primeiros meses

da guerra, quando os judeus foram expulsos das áreas do front, tomados como reféns e até

atacados em pogroms. Este desapontamento só reforçou a crença de muitos outros judeus,

particularmente nos Estados Unidos, que desde o começo tinham apoiado as Potências

Centrais da Alemanha e Áustro-Hungria (às quais mais tarde se juntou a Turquia). Mas

mesmo esses não podiam desconsiderar o fato básico de que metade do povo judeu residia na

Rússia, o mais importante centro de vida judaica, e que o destino desse país poderia decidir o

destino de seus judeus.

A Organização Sionista, que tinha sede em Berlim, se esforçava para continuar a

tradição de Herzl e evitar despertar a hostilidade de qualquer agente político. Ela, assim,

antecipou eventos e abriu um “Gabinete Principal” na neutra Copenhagen com o objetivo de

ser capaz de continuar a atividade sionista em todos os países. Mas mesmo entre os líderes

sionistas havia orientações políticas em conflito. Alguns, como Vladimir Jabotinsky,

afirmavam veementemente que só a derrota da Turquia poderia salvar a comunidade judaica

na Palestina da destruição e abrir novos horizontes para o movimento sionista. Assim, clamou

por participação ativa na guerra no lado da Entente. Os de orientação pró-germânica, por sua

vez, argumentavam que só a Alemanha, que exercia grande influência sobre o governo turco,

poderia garantir a segurança do Ishuv.

Já em 1915, os sionistas ingleses, guiados por Weizmann, tinham começado a tentar

persuadir o governo britânico a salvaguardar os interesses judaicos na Palestina, na

130

expectativa de que depois da guerra o país estaria sob curadoria britânica. Vários judeus

ingleses proeminentes apresentaram memorandos ao gabinete de ministros nesse espírito.

A despeito da oposição dos líderes sionistas, Vladimir Jabotinsky, Joseph Trumpeldor

e Pinhas Rutenberg começaram a agitar pela criação de uma Legião Judaica para lutar ao lado

dos aliados. A princípio, as autoridades britânicas expressaram reservas com relação ao

projeto como um todo, mas no começo de 1915 concordaram em criar o Zion Mule Corps.

Esta unidade foi utilizada em tarefas de serviço (suprimento de alimentos e munições) sob as

árduas condições da Campanha de Gallipoli. No verão de 1917, foi criado o 38º Batalhão de

fuzileiros reais, composto principalmente de judeus do East End de Londres e, após passar por

treinamento, foi enviado para a Palestina e participou em batalhas no verão seguinte.

A mudança de governo na Inglaterra e a piora da situação militar induziram as

autoridades britânicas a responder com mais força às demandas sionistas. Os aliados

esperavam que, através de uma declaração reconhecendo a justiça das aspirações sionistas,

eles iriam influenciar a opinião pública judaica nos Estados Unidos para ajudá-los em seus

esforços para persuadir os Estados Unidos a juntar-se ao esforço de guerra. Além disso,

soube-se que as autoridades alemãs também estavam contemplando a possibilidade de

publicar uma declaração expressando simpatia pelas aspirações sionistas. Por todas essas

razões, no final de janeiro de 1917 foi estabelecido contato entre os sionistas e o ministério do

exterior britânico, para definir objetivos políticos após a guerra. Ao mesmo tempo, Sokolow

estava conduzindo negociações com o governo francês – e até obtendo concessões

consideráveis. No começo de junho de 1917 ele recebeu uma nota do ministério do exterior

francês, que declarava:

Você considera que se as circunstâncias permitirem e for assegurado que a

independência dos Lugares Santos seja salvaguardada, será um ato de justiça

e de reparação assistir, pela proteção das Potências Aliadas, ao renascimento

da nacionalidade judaica naquela Terra da qual o povo de Israel foi exilado

há tantos séculos. O Governo Francês, que entrou na presente guerra para

defender um povo injustamente atacado, e que continua a luta para assegurar

a vitória do direito sobre a força, não pode deixar de sentir simpatia por sua

causa, o triunfo da qual está ligado ao dos Aliados. Estou feliz em dar a

Vossa Excelência tais garantias.

Este documento foi entregue por Sokolow ao ministério do exterior britânico, mas não

foi publicado. Parece que os sionistas queriam assegurar os britânicos de que não havia

objeção francesa a uma declaração pró-sionista.

131

Em julho, os sionistas submeteram ao governo britânico o esboço de uma proposta de

declaração política na qual os britânicos concordariam com “o princípio de que a Palestina

deveria ser reconstituída como o Lar Nacional do povo judeu”, e o governo britânico “usará

seus melhores esforços para assegurar a realização desse objetivo e discutirá os necessários

métodos e meios com a Organização Sionista”. Os oponentes do sionismo, tanto judeus como

não-judeus, objetaram violentamente a essa declaração, e por fim o governo britânico aprovou

um texto muito mais comedido. Em uma carta que o ministro do exterior britânico, Arthur

James Balfour, enviou a Lord Rothschild em 2 de novembro de 1917, ele declarou que o

Governo Britânico “vê com favor o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o

povo judeu e usaria seus melhores esforços para facilitar a realização deste objetivo”. A

despeito da redação moderada, a Declaração Balfour reconhecia tanto as aspirações nacionais

dos judeus na Palestina quanto o fato de que o movimento sionista representava essas

aspirações.

A luta sobre a natureza do Lar Nacional

A Declaração Balfour não definiu precisamente o que um Lar Nacional implicava.

Organizações judaicas, como o American Jewish Congress, reuniram-se em dezembro de

1918 para reivindicar a criação de condições que assegurassem o “desenvolvimento da

Palestina em um patrimônio comum judaico” sob a proteção da Grã-Bretanha, esta operando

em nome da Liga das Nações. Weizmann, por outro lado, alertava contra a reivindicação

entusiástica de que o “Estado Judeu” fosse criado de uma só vez e acreditava que a Palestina

devia primeiro ser povoada com uma maioria judaica de forma a ser “tão judaica quando a

Inglaterra é inglesa”.

Por outro lado, nenhum protesto foi proferido pelos árabes à época da publicação da

Declaração Balfour. Somente quando foram apresentadas diferentes interpretações do

significado da Declaração, vários agentes começaram a enfatizar a importância da posição

árabe em relação ao plano. Os líderes sionistas se reuniram, por isso, em Londres no final de

1918 com Faiçal, filho de Sherif Hussein de Meca, e tentaram chegar a um acordo com ele. A

extensão de seu sucesso pode ser avaliada pelos comentários de Faiçal, publicados no Times

em 12 de dezembro de 1918. Lá era declarado que os dois ramos principais da família semita

compreendiam um ao outro. Os árabes não invejam os sionistas judeus e pretendem atuar em

um espírito de “fair play”, e os judeus prometeram aos “nacionalistas árabes” uma atitude

similar.

132

Após as deliberações, Faiçal assinou um acordo com Weizmann em 3 de janeiro de

1919 aceitando a Declaração Balfour e concordando com imigração e assentamento em larga

escala.

O acordo anotava que se qualquer conflito surgir entre as partes, ele deverá ser

“referido ao governo britânico para arbitragem”. Faiçal agregou sob sua assinatura a reserva

de que iria manter o acordo somente se as reivindicações árabes que estava submetendo ao

ministério do exterior britânico fossem atendidas; se não, ele não seria responsável por sua

implementação. Como, no meio tempo, em uma entrevista na imprensa, tivesse expressado

reservas com relação à ideia de um estado judeu, foram conduzidas negociações adicionais.

Sua conclusão tomou a forma de uma carta de Faiçal ao professor Felix Frankfurter, um dos

principais sionistas nos EUA. Nesta carta, enviada em 1º de março de 1919, foi declarado que

as propostas sionistas, tal como submetidas à Conferência de Paz, pareciam às delegações

árabes “moderadas e apropriadas”. “Nós desejaremos aos judeus um caloroso bem-vindos de

volta ... O Movimento Judaico é nacional e não imperialista. Nosso Movimento é nacional e

não imperialista, e há espaço na Síria para nós dois. De fato, eu penso que nenhum poderá

obter um sucesso real sem o outro”. Ao mesmo tempo, em 2 de julho de 1919, um Congresso

Sírio, representando nacionalistas árabes, aprovou uma resolução contra “as pretensões dos

sionistas de criar um Patrimônio Comum Judaico na parte sul da Síria, conhecida como

Palestina”, e árabes palestinos expressaram seu protesto perante uma comissão americana

enviada pelo presidente Wilson.

Enquanto isso, haviam começado deliberações sobre a formulação do Mandato e as

disputas entre Inglaterra e França com relação ao controle do legado do Império Turco

ficaram mais agudas. Somente em abril de 1920, em San Remo, foi atingido um acordo, e o

Mandato sobre a Palestina foi confiado à Grã-Bretanha. As resoluções de San Remo foram

acolhidas com entusiasmo pelos judeus e com raiva pelos árabes palestinos, particularmente à

luz do fato de que Lloyd George pedira a Herbert Samuel que fosse o primeiro Alto

Comissário Britânico na Palestina, e Samuel aceitou.

A Segunda Guerra Mundial e a Shoah

Sob as condições democráticas da República de Weimar, em uma atmosfera de tensão

social e violentos choques políticos, a propaganda antissemita tornou-se um dos fenômenos

destacados na vida política. Vários grupos, mesmo com pontos de vista diversos,

apresentavam programas políticos que incluíam cláusulas antissemitas. Já em 1920 o

133

Deutsche-nationale Partei, que se inclinava para o antissemitismo, ganhou 66 assentos no

Reichstag, e em 1924 o número de seus deputados cresceu para 96. Um grupo antissemita

extremamente radical rompeu com esse partido e juntou-se ao Partido Nacional-Socialista dos

Trabalhadores Alemães; juntos, obtiveram 32 assentos nas eleições de 1924. Seu líder era

Adolf Hitler, que desde o começo de sua carreira política advogava um programa antissemita

extremista. Hitler era apoiado pelo general Ludendorff, chefe do Estado-Maior Geral Imperial

durante a Primeira Guerra. Os voelkische (nacionalistas tradicionais) então receberam cerca

de dois milhões de votos. O Deutsche-nationale Partei foi o segundo mais votado, depois dos

social-democratas.

Os partidos antissemitas receberam inspiração das numerosas publicações que

inundaram a Alemanha nos anos vinte, particularmente das assim chamadas teorias

antissemitas “científicas”, apresentadas em ensaios de vários cientistas e filósofos. Elas se

inclinavam a acentuar a importância de “raça”, “sangue” e ”solo” na vida do povo alemão. De

influência considerável foi o livro de Oswald Spengler, O Declínio do Ocidente, que era

permeado de um espírito de pessimismo e nihilismo. Aqueles com inclinações antissemitas

eram particularmente atraídos para teorias raciais, como as expostas em livro por Hans

Guenther – o futuro teórico nazista sobre raça – publicado em 1912 sob o título As Origens

Raciais do Povo Alemão. Guenther via a raça nórdica como a ideal, e exigia que ela fosse

nutrida por meio de “higiene racial”. Os judeus, em seu ponto de vista, eram uma raça mestiça

inferior e extremamente perigosa.

Em seus primeiros dois anos de governo, os nazistas publicaram muitas leis e

regulamentos que afetavam os judeus e os discriminavam. Durante esse período, vários judeus

foram presos ou banidos, acusados de hostilidade em relação aos nazistas; mas no começo de

1935 começaram os preparativos para uma legislação antijudaica abrangente, e em 15 de

setembro foram publicados os decretos conhecidos como Leis de Nuremberg. A Lei da

Nacionalidade, como foi oficialmente chamada, tornou os judeus “súditos”, sem quaisquer

direitos políticos. Outra lei aprovada por unanimidade pelo Reichstag no mesmo dia foi a Lei

para a Proteção do Sangue e a Honra Alemães. Com o propósito de “preservar o povo alemão

perpetuamente”, a lei proibia judeus de casar com não-judeus, empregar governantas não-

judias com menos de quarenta e cinco anos e arvorar a bandeira nacional. A lei, então, definiu

“judeu” como uma pessoa com três avôs judeus. Aqueles com menos sangue judaico em suas

veias eram vistos como “mestiços” de primeira ou segunda classe, de acordo com o número

de avôs judeus. As Leis de Nuremberg eram leis básicas, que foram suplementadas, ao longo

dos anos, por vários editos e regulamentos que restringiram e gradualmente cancelaram o

134

status dos judeus em todas as esferas da vida, até que perderam completamente sua posição

legal e ficaram sob o poder da “polícia de segurança”.

No período entre a publicação das Leis de Nuremberg e 1938, a expulsão dos judeus

da vida econômica e social continuou. Em 1937, começou a “arianização” em grande escala;

ou seja, os negócios judeus eram roubados e transferidos para mãos de arianos, em sua

maioria associados com o regime. Alegadamente, essa transferência era processada por venda,

mas, na verdade, implementada pela força.

No começo de 1938, só cerca de um terço dos judeus alemães tinha deixado o país. A

maioria ainda acreditava que a onda de terror passaria. Mas a perseguição ajudou a fortalecer

os laços dos indivíduos com a comunidade judaica: no começo mesmo do regime nazista,

quando as empresas judaicas começaram a ser marcadas com o “Emblema Amarelo”, um

jornal sionista, Jüdische Rundschau, escreveu: “Use-o com orgulho, esse emblema amarelo.

Judeus, aceitem o Escudo de David, e usem-no com orgulho”. A maioria das organizações

judaicas se juntou a uma Representação Nacional de Judeus Alemães (Reichsvertretung der

deutschen Jüden), que evoluiu para ser a liderança da comunidade judaica, representando-a

sob as mais amargas e difíceis condições. Ela era encabeçada pelo rabino-chefe de Berlim,

Leo Baeck. As principais funções do Reichsvertretung eram a organização da emigração; o

ensino de novas profissões e vocações, principalmente artesanato e agricultura, em lugar das

velhas fontes de sustento; a administração de escolas judaicas (mesmo antes de as crianças

judias serem oficialmente proibidas de frequentar as escolas gerais, elas eram incapazes de

suportar a perseguição de seus professores e colegas); e o auxílio àqueles privados de seu

sustento. Esta ajuda foi fornecida principalmente através de fundos enviados pelos judeus dos

Estados Unidos. Os judeus reagiram à sua expulsão da vida cultural criando uma Aliança

Cultural de Judeus Alemães, que promovia concertos, representações teatrais e eventos

literários. De acordo com um edito oficial, esses encontros eram abertos somente para judeus.

Assim, a discriminação nazista trouxe consigo um renascimento da atividade judaica

independente.

Os judeus de todo o mundo não permaneceram ociosos em face dos apuros dos judeus

alemães. Em reação à perseguição e ao boicote operados pelos nazistas, grupos judeus e

antifascistas nos países democráticos começaram a organizar um contraboicote de bens

alemães. O Congresso Mundial Judaico reuniu-se em agosto de 1936 com o objetivo de

coordenar essa campanha, e tornou-se um corpo permanente. Ele decidiu iniciar atividade de

propaganda e informação orientada para expor a verdadeira natureza do regime nazista e

planejar operações de defesa e ajuda.

135

A invasão da Polônia e sua partição entre a Alemanha e a União Soviética colocaram

mais cerca de dois milhões de judeus sob o poder de Hitler. Imediatamente após a ocupação,

foram perpretados pogroms contra os judeus. Os alemães se puseram a recrutar desordeiros

entre os poloneses, mas suas próprias tropas também tomaram parte nos assassinatos. Então

começou uma política sistemática de opressão.

No final de setembro, foi publicado um decreto ordenando todos os judeus – mesmo

aqueles que residiam em aldeias e cidadezinhas – a se concentrar nas cidades. No começo de

outubro, a Polônia ocidental (as áreas que tinham pertencido ao Império Alemão antes da

Primeira Guerra Mundial, mais o distrito de Lodz, a partir de então conhecido como

Litzmannstadt) foi proclamada parte do Reich. Logo depois, começaram expulsões destas

áreas para o leste, para a região entre o Vístula e o Bug. Os judeus foram expulsos de toda a

Polônia ocidental com exceção de Lodz e sua vizinhança, e os judeus da Boêmia e Áustria

também foram enviados para a mesma área.

No final de outubro de 1939, todos os judeus das áreas da Polônia ocupadas pela

Alemanha foram obrigados a usar um crachá branco ou amarelo com uma Estrela de David

nele. Em 12 de dezembro de 1939, todos os homens entre 14 e 60 anos foram recrutados para

trabalho forçado “por dois anos, um período que pode ser estendido se os objetivos

educacionais não tiverem sido atingidos”. Essa mesma obrigação foi imposta a judeus dentro

do Reich, ainda que tenham sido forçados a usar o crachá amarelo somente em setembro de

1941. Dentro de poucas semanas, as leis restritivas dirigidas contra os judeus alemães foram

também impostas aos judeus da Polônia. Foram proibidos de visitar locais públicos e de

assistir a performances culturais, e foram expulsos de escolas e universidades; seus direitos

sociais como trabalhadores foram revogados; foram excluídos das profissões liberais, e suas

lojas, negócios e empresas industriais foram confiscados. Não lhes foi deixada outra escolha

prática além de se ocuparem nos mais simples trabalhos braçais.

Em novembro e dezembro de 1939, foi anunciado que todos os judeus seriam

obrigados a se mudarem para guetos, bairros especiais dentro de cidades. O primeiro gueto foi

criado em Lodz, em fevereiro de 1940. Seguiu-se o gueto de Varsóvia em novembro de 1940.

Em 1941 havia guetos em toda a Polônia, na maioria dos casos cercados por um muro. No

início, os alemães, em vista de considerações econômicas, emitiram numerosas permissões

para deslocamento para e dos guetos, mas com o passar do tempo essas considerações foram

abandonadas e, em instruções despachadas para as autoridades locais, foi enfatizado que, ao

lidar com a “questão judaica”, não havia lugar para cálculos desse tipo. A partir de outubro de

1941 foi imposta a pena de morte a qualquer judeu encontrado fora dos muros do gueto sem

136

uma permissão. No final desse ano foi anulada a autoridade de tribunais regulares sobre os

judeus, e eles foram colocados sob a jurisdição da policia e da S.D. (polícia especial de

segurança). De fato, ficaram então sem qualquer proteção legal.

A ideia de exterminar os judeus tinha existido há algum tempo como parte do plano

nazista, desde o cancelamento de projetos como o assentamento de judeus em Madagascar;

mas a decisão prática de começar o extermínio sistemático parece ter sido tomada no final de

1941. Em 20 de janeiro de 1942 foi realizada em Berlim uma conferência, referida no material

submetido à corte internacional em Nuremberg como a Conferência de Wansee – nome da rua

onde se realizou. Cinco dos participantes representavam a S. S. e a Gestapo – incluindo

Heydrich, Müller e Eichmann. Os restantes eram representantes de vários ministérios em

nível executivo. Eles discutiram detalhes dos planos para o extermínio do povo judeu na

Europa; de acordo com seus cálculos, onze milhões ao todo. Entre as decisões então tomadas,

a mais importante foi que súditos judeus da Alemanha, Croácia, Eslováquia e Romênia

deveriam ser enviados para “o leste”. Na época, já estava em operação um campo de

extermínio por gás em Chelmno, Polônia. Como transpirou de atividade posterior, havia uma

diretriz básica no plano “Solução Final” – quebrar o espírito dos judeus antes de matá-los,

piorando as condições nos guetos, aumentando o terror e criando a ilusão de que aqueles que

se submetessem tinham uma chance de se salvar.

No final de 1941, a expulsão dos judeus das fronteiras do Reich para a Polônia foi

retomada e se tornou uma operação sistemática. Aparentemente, os nazistas tinham então

decidido tornar a Polônia o centro para o extermínio de todos os judeus europeus. Os judeus

da Europa ocidental e do Reich foram enviados para os guetos de Lodz, Riga, Minsk e Kovno.

Nos meses de março a julho de 1942, 80 mil judeus foram expulsos da Áustria, Alemanha,

Boêmia e Eslováquia para a área de Lublin. Já em março de 1942, milhares de judeus dessa

região foram despachados para o campo de extermínio de Belzec.

Em um discurso de março de 1942, Himmler declarou que metade dos judeus

poloneses devia ser “reassentada” (o termo nazista para extermínio) até o final do ano. Em um

telegrama enviado em julho, exigia que a operação fosse estendida dentro do mesmo período

para todos os judeus poloneses. Para evitar resistência dentro da maior concentração judaica,

o gueto de Varsóvia, os nazistas começaram a introduzir métodos de terror mais severos. Em

julho de 1942 as tropas alemãs mais antigas que estavam guardando o gueto foram

substituídas por membros da milícia ucraniana e lituana, e imediatamente depois o Judenrat

recebeu ordens de entregar seis mil judeus por dia para “reassentamento no leste”. A polícia

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judaica (Ordnungsdienst) começou a reunir as pessoas. Após dois dias de tais concentrações,

o chefe do Judenrat de Varsóvia, Adam Cherniakov, cometeu suicídio.

O estado de espírito do gueto mudou. Os alemães começaram a cancelar permissões de

trabalho en masse. Mesmo os industriais alemães, que tinham ganhado milhões explorando o

trabalho judaico escravo no gueto, não conseguiam mais salvar seus operários. Não se

cristalizou no gueto resistência digna desse nome até o final de outubro. Durante as dez

semanas entre o final de julho e meados de outubro, perto de 310 mil judeus foram enviados

para a morte a partir do gueto de Varsóvia.

Foram realizadas “ações” de massa no gueto de Lodz para expulsão para Majdanek.

Em um relatório submetido a Himmler no final de 1942, foi registrado que dentro da Polônia

ocupada algo como 1.274.166 judeus tinham sido “reassentados”.

Após a irrupção e a supressão da revolta do gueto de Varsóvia, cerca de 300 mil

judeus ficaram na Polônia e Rússia ocupadas. Cerca de 85 mil estavam no gueto de Lodz, 30

mil em Bialystok, e cerca de 20 mil em cada em Sosnowiece, Lvov, Vilna e Kovno. Em

março de 1943, o gueto de Cracóvia foi liquidado, e em abril de 1943 cerca de cinquenta

guetos foram dizimados por ordem de Himmler. De julho a setembro de 1943, os guetos de

Bialystok, Minsk, Riga e Vilna foram obliterados. Depois que Smolensk foi capturada pelo

exército soviético, os últimos guetos da Rússia Branca foram liquidados. Em 1944 só havia

judeus ainda em Lodz e Kovno. Quando o exército soviético começou a avançar, no começo

daquele ano, os alemães começaram a expelir internos dos campos para oeste, obrigando-os a

marchar a pé sob as duras condições invernais; muito poucos sobreviveram a essas marchas

da morte.

O estabelecimento do Estado de Israel

Enquanto a Assembleia Geral das Nações Unidas estava deliberando, os árabes

anunciaram que iriam resistir pela força contra a implementação da partilha; a Inglaterra

declarou que não a apoiaria nem iria cooperar na sua realização. As Nações Unidas não

possuíam uma força militar para impor sua autoridade e implementar a resolução. A criação

de fato de um estado judeu seria, portanto, tarefa do Ishuv na Palestina, com a ajuda do povo

judeu em todo o mundo.

Tentativas das Nações Unidas de evitar a guerra na Palestina se mostraram

infrutíferas. Em 16 de abril de 1948 ocorreu uma sessão especial da Assembleia Geral da

ONU, devotada, mais uma vez, à situação na Palestina. O comitê da ONU criado para

138

implementar o plano de partilha reportou na sessão o fracasso de seus esforços; os britânicos

não lhes tinham permitido entrar na Palestina e assumir o controle. Os britânicos,

deliberadamente, mergulharam o país em um estado de caos, aparentemente na expectativa de

que os judeus não conseguiriam resistir aos árabes e pediriam à ONU que reestabelecesse o

domínio britânico. Mas os judeus não pediram misericórdia, e a Assembleia Geral foi

dissolvida sem aprovar qualquer nova resolução. Ela apenas apontou um mediador oficial, por

conta das Nações Unidas.

Na sexta-feira, 14 de maio de 1948, os líderes do Ishuv se reuniram no museu de Tel

Aviv, e David Ben-Gurion leu em voz alta a Declaração de Independência: “... em virtude de

nosso direito nacional e intrínseco, e da força da resolução da Assembleia Geral das Nações

Unidas, nós declaramos a criação de um estado judaico na Palestina, que será conhecido como

Estado de Israel”. O governo do estado foi confiado ao Conselho Provisório do Estado

(Mo’etset Hamedinah), que elegeu o governo provisório. Imediatamente após essa declaração,

o Estado de Israel foi reconhecido de facto pelo governo dos Estados Unidos, e de facto e de

jure pelo governo soviético.

Na noite seguinte, cinco exércitos árabes invadiram Israel simultaneamente. Em 15 de

maio um telegrama do ministério do exterior egípcio foi apresentado ao Conselho de

Segurança da ONU anunciando que forças egípcias tinham começado a entrar na Palestina

para “reestabelecer o respeito pela moralidade universal e os princípios reconhecidos pela

ONU”. Os libaneses entraram por Malkiyyah e Kadesh Naphtali. Os sírios capturaram

Tsemah e atacaram os dois assentamentos de Deganyah Alef e Bet. Houve luta amarga lá,

uma vez que os defensores do kibuts permaneceram firmes contra os tanques inimigos. A

despeito de seu equipamento superior, o inimigo foi forçado a recuar, deixando para trás

blindados e munições. Tsemah foi recuperada para as forças judaicas, que também tomaram

conta de dois assentamentos previamente abandonados – Massadah e Sha’ar Hagolan. Os

defensores do kibuts Ein Guev forneceram um exemplo destacado de resistência resoluta. Mas

os sírios conseguiram capturar e destruir a colônia de Mishmar Hayarden e aprisionaram seus

últimos defensores. Os iraquianos, que operavam no triângulo árabe de Nablus-Tulkarem-

Jenin, não tiveram sucesso: tentaram avançar até a cidade judaica de Netanyah e cortar a

planície costeira em dois, mas foram detidos.

Esta era a situação nos vários fronts quando a trégua negociada pelo mediador da

ONU entrou em vigor – após vários adiamentos – em 11 de junho. As batalhas tinham durado

menos de quatro semanas do dia da invasão até o primeiro cessar-fogo, mas foram de

tremendo valor para a consolidação do estado. A mobilização foi completada, e em 31 de

139

maio foi publicada uma Ordem do Dia pelo ministro da defesa, Ben-Gurion, criando as Forças

de Defesa de Israel (FDI). Chegavam imigrantes, e, após um curto período de treinamento,

eram enviados para a linha de frente; também chegavam voluntários do exterior. Entre os

duros combates, o Estado de Israel demonstrou sua vitalidade e resolução. Seu exército não

recuou em nenhuma das longas e sinuosas frentes.

Dois fatos básicos determinaram o desenvolvimento do jovem Estado de Israel:

imigração em massa, que inundou o país imediatamente após sua criação e trouxe centenas de

milhares de judeus de diferentes países, unidos em religião, origem histórica e identidade

emocional, mas separados por língua e hábitos, padrão de vida e modos de vida, bem como

por valores sociais e culturais; e a incessante hostilidade dos árabes, sua recusa de aceitar a

existência do estado, suas tentativas de prejudicá-lo de todas as formas possíveis, que criou,

dentro da população de Israel, uma sensação de estar sob constante cerco. A imigração serviu

como fator de diversificação, criando tensões e minando a estabilidade da sociedade

israelense, enquanto a hostilidade árabe foi um fator coesivo, estimulante, fortalecendo a

solidariedade. A imigração produziu uma tensão entre veteranos e recém-chegados,

“europeus” e “orientais”, formuladores da política e trabalhadores de colarinho branco,

trabalhadores e beneficiários da assistência social. O cerco árabe e a ameaça à segurança

criaram um sentimento de destino compartilhado, um laço entre indivíduos e comunidade, e a

necessidade de um rápido desenvolvimento do estado. Não obstante, a imigração era vista por

todos como uma necessidade vital do estado – sua força e a base de sua existência e

desenvolvimento futuro. Havia apoio popular para o estímulo à imigração e sua absorção

como questão de vida e morte para o jovem estado, e a “integração das comunidades” era

proclamada como um dos principais objetivos sociais e culturais.

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BIBLIOGRAFIA

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Brasil, 1996.

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Ediciones Mirador, 1992.