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VivaPareia!
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Maria Acselrad
Viva Pareia!
Edição com DVD incluso
Recife | PE | Brasil | 2013
,Corpo, danca e brincadeira no Cavalo-Marinho de Pernambuco
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Catalogação na fonte
Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748
CRÉDITOS
Coordenação editorial Maria AcselradOrientação Els LagrouRevisão ConsultextoProjeto gráfco Ana Farias
Assistência de pesquisa Raíssa Batista FonsecaFotografas Michele Zolini, Roberta Guimarães e XirumbaCartograma Luís BulcãoIlustração Lula MarcondesProdução Silvia MeloFoto da capa Roberta GuimarãesFoto da orelha Hércules Dias
Acselrad, Maria.Viva Pareia! : corpo, dança e brincadeira no Cavalo-Marinho de
Pernambuco / Maria Acselrad. – Recife : Ed. Universitária da UFPE,2013.
[175] p.
Edição com DVD incluso.Originalmente apresentada como dissertação da autora
(mestrado - Instituto de Filosoa e Ciências Sociais, 2002), sob otítulo: Viva Pareia! - a arte da brincadeira ou a beleza da safadeza -uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho.
Inclui bibliograa.ISBN 978-85-415-0146-0 (broch.)
1. Danças folclóricas brasileiras – Pernambuco. 2. Antropologia.3. Cultura popular. I. Titulo.
793.3198134 – CDD (23.ed.) UFPE (BC2013-022)
A187v
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Reitor Prof. Anísio Brasileiro de Freitas DouradoVice-Reitor Prof. Sílvio Romero MarquesDiretora da Editora UFPE Profª Maria José de Matos Luna
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente Profª Maria José de Matos Luna
Titulares Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler,Antonio Motta, Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, RicardoBastos Cavalcante Prudêncio, Rogélia Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia SouzaMelo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima.
Suplentes Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria FigueiroaBarretto, Eduardo Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo AntônioSimões Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota
Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas.
Editores Executivos Afonso Henrique Sobreira de Oliveira e Suzana Cavani Rosas
A P O I O
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Para Tomás, que leva no corpo a paixão pelo movimento.
Para Isaac Acselrad, que sabiaapreciar o movimento do mundo.
Para Biu Roque, da música omovimento.
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Mas já agora podemos falar do corpo como de um limite movente entre o
futuro e o passado, como de uma extremidade móvel que nosso passadoestenderia a todo momento em nosso futuro. Enquanto meu corpo,
considerado num instante único, é apenas um condutor interposto entre
os objetos que o influenciam e os objetos sobre os quais age, recolocado
no tempo que flui, ele está sempre situado no ponto preciso onde meu
passado vem expirar numa ação.
(BERGSON, 1999, p. 84-85)
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Maria Acselrad
A escrita deste livro atravessou tempos e espaços. Entre o Rio e o Recife,num percurso que envolveu distâncias simbólicas, afetivas e geográficase num período que somou mais de dez anos, foi com a linha dos bonsencontros que sua trama foi sendo tecida.
Por essa verdadeira composição de movimentos, sentimentos e pen-
samentos agradeço aos meus colegas de palco, que durante oito anosconviveram de forma generosa com minha condição anfíbia, CharlesSiqueira, Laura Sarmento, Gustavo Ciríaco, Elisa Alvarenga, Astrid o-ledo, Marina Dain, Cristina Souza e Antonio Saraiva. A Paula Nestorov,pelo encontro precioso com a dança.
A Els Lagrou, minha orientadora de ontem, hoje e sempre. Peloconstante estímulo e pela indicação dos caminhos. Porque chegou nahora certa e desde o início percebeu o que eu queria dizer, mesmo quan-
do eu ainda não sabia traduzir em palavras os meus impulsos.Aos meus pais, Gilberta e Henri Acselrad, que me incentivaram a
ser curiosa, sensível e crítica, na mesma medida, ajudando-me a perce-ber o quão próxima está a Ciência da Arte. Nossa história de exílio foio meu primeiro grande aprendizado antropológico. À Lúcia e DanielAarão Reis, pelo prazer de termos vivido no mesmo tempo.
Aos professores do PPGSA-IFCS/UFRJ com quem tive o prazer deestudar, fazendo das aulas estimulantes campos de batalha, para os quais
aprendi a nunca ir desarmada de questões e inquietações. Em especial:Beatriz Heredia, Rosilene Alvim e Regina Novaes. No IUPPERJ, ao Prof.Renato Lessa. Pela contribuição, através de suas participações na banca,aos Profs. José Miguel Wisnik e José Reginaldo Gonçalves.
No Rio de Janeiro, aos queridos amigos, Ana Paula Secco, Clara Seidl,Clarisse Meirelles, Emílio Domingos, Frederico Coelho, Graziella Mo-raes, Guacira Waldeck, Gustavo Saldanha, Luiza Pitanga, Marcela Levi e
AGRADECIMENTOS
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VIVA PAREIA!
Olga Fernandez. Aos irmãos Moema e Vitor Acselrad. Ao Zé e ao Andréque me levaram pela primeira vez a desbravar os 2.800 km que separamo Rio de Janeiro de Pernambuco. Esta experiência me ensinou que as
viagens são sempre de ida.Em Recife, aos Profs. Roberto Benjamin, José Fernando e Carlos
Sandroni, pelo respeito e pela confiança. A Duda eodósio, que abriuas portas pra Zona da Mata Norte. Aos amigos e parceiros que compu-seram a equipe de registro Luca Barreto, Léo Crivellari, Bruno Vianna,Michele Zolini, Márcio Costa e Gustavo Vilar. A Gilson Martins, meueditor-coreógrafo. A Xirumba e Roberta Guimarães, pela força das ima-gens. A Gabriela Santana, pelas leituras, apontamentos e pelo diálogosempre tão sensível. A Roberta Ramos e Letícia Damasceno, amigas, ir-mãs e parceiras. Raíssa Fonseca e Uana Mahin, fiéis escudeiras. A Silvia
Melo, pelo apoio firme e sereno.A todos os integrantes do Cavalo-Marinho Boi Brasileiro, pelo pra-
zer e potência de suas danças, comigo compartilhadas. A Biu Roque,presente da vida em forma de melodia, que me ensinou o quanto é im-portante ter cuidado.
À Faperj e ao CNPq, instituições que financiaram esta pesquisa.
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VIVA PAREIA!
O cavalo-marinho é um tipo de teatro popular cantado e dançado naZona da Mata Norte de Pernambuco e no sul da Paraíba. Já foi classifi-cado como uma variedade de reisado ou de bumba meu boi. Seja lá oque ele for, o cavalo-marinho é fascinante. ão fascinante que pareceincrível que a bibliografia sobre ele ainda seja tão pequena. O trabalho
que o leitor tem em mãos não se propõe a explicar o que é afinal o cava-lo-marinho nem a encontrar uma nova classificação para ele na tabelaperiódica das manifestações populares. Sua autora, Maria Acselrad, éantropóloga, mas também dançarina e coreógrafa; assim, sua visão docavalo-marinho se ilumina pela perspectiva do fazer. Ela nos traz doisregistros simultâneos. Por um lado, uma rica e sensível descrição docavalo-marinho pernambucano tal como é praticado para os lados deCondado, Camutanga e Aliança, por mestres como Biu Alexandre, Iná-
cio Lucindo, Grimário, com destaque para o saudoso Biu Roque, faleci-do em 2010. Por outro lado, um debate instigante sobre as possibilidadesde uma “estética” do cavalo-marinho. Aqui a pergunta é: discrepandotanto o cavalo-marinho como outras manifestações populares de no-ções estabelecidas sobre “arte”, como entender o significado do prazer eda beleza que os próprios participantes encontram nele? Para respondera esta pergunta, Maria Acselrad mergulha nas conversas com mestrese brincadores de cavalo-marinho e observa seus corpos transfigurados
em mateus, em capitães, em galantes, em ambrósios. O resultado é umlivro que enriquece nossa compreensão da cultura popular e das especi-ficidades e sentidos escondidos no universo do cavalo-marinho.
Carlos Sandroni
UFPE
APRESENTACÃO
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Maria Acselrad
É com entusiasmo que releio, redescubro e apresento este belo trabalho.O livro Viva Pareia! Corpo, dança e brincadeira no Cavalo-Marinho de
Pernambuco, de Maria Acselrad, segue de perto a dissertação defendidaem 2002, apesar de ter sido totalmente reescrito. Resulta, desse expe-rimento, um texto com o frescor do dia, que, no entanto, revisita um
momento na história do cavalo-marinho que já passou. A escolha demanter-se próximo ao texto original se justifica por várias razões e re-
vela a força de um trabalho que, tendo sido posto à prova durante dezanos, tanto pela autora, que continuou pesquisando o universo das brin-cadeiras no Estado de Pernambuco, como pelos pesquisadores na área,que citam Viva Pareia! desde o começo, já conquistou um lugar na lite-ratura especializada antes mesmo da sua publicação.
A pesquisa de Maria Acselrad foi precursora na análise de um fenô-
meno, o cavalo-marinho, até então pouco estudado. A autora se dedicacom cuidado à tentativa de delinear a especificidade dessa brincadeira
que faz parte de um universo transformativo, que vai desde as váriasmanifestações populares do auto do boi aos reisados, sem, no entanto,perder sua autonomia enquanto brincadeira com tempo, ritmo, figurase instrumentos próprios. “Uma das mais significativas características docavalo-marinho”, segundo a autora, “é sua fatalidade móvel, capacidadesingular de conviver com a alteridade, que contribui para um tipo deidentidade em movimento, fazendo com que toda brincadeira seja umaexperiência única”. Se essa regra, da unicidade de cada performance,se aplica provavelmente ao conjunto todo das festas populares, ela nãodeixa de ser especialmente pertinente para o cavalo-marinho, como estelivro mostra com brilho. Biu Roque, Mestre do cavalo-marinho com oqual a autora mais conviveu, confirma essa interpretação com a seguintefrase: “Cavalo-marinho é brincadeira de presença”.
prefácio
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VIVA PAREIA!
A especificidade do olhar sobre a brincadeira, que marca tanto a falade Biu Roque quanto a análise de Acselrad, revela uma abordagem ino-
vadora do universo das festas populares. A autora está à procura de uma verdadeira antropologia da dança, que dialogue com a dança entendidacomo o estudo das qualidades do movimento, no sentido proposto por
Laban, no cotidiano e na performance, assim como com a nova antro-pologia da arte, que aborda arte e vida enquanto fenômenos intrinseca-mente entrelaçados. Para entender o que é arte para os nativos, ou seja,para os sujeitos com os quais nos relacionamos através da pesquisa eda participação parcial de suas vidas, é preciso partir dos seus própriosconceitos a dar conta da experiência. Desse modo, surge, no universo docavalo-marinho, o conceito de brincadeira, uma espécie de espetáculode rua, essencialmente relacional e dialógico, que tem no riso e no risco
a fonte de produção de sua beleza e que mobiliza cantos, instrumentos,dança, poesia e figuras altamente expressivas a produzir complexas per-formances que refletem e fazem refletir sobre conflitos e escolhas quemobilizam a vida das pessoas nos canaviais pernambucanos.
A brincadeira do cavalo-marinho mostra, mais uma vez, que é peloestudo em profundidade de fenômenos bem específicos que chegamos,na antropologia, a filosofias nativas que abordam grandes questões da
vida. A brincadeira materializa uma filosofia de vida que tem no cuida-
do, no perigo do desmantelo e na procura da consonância conceitos queguiam a conduta do Mestre, dos brincadores e dos figureiros, na vida ena arte. Aqueles que se arriscam na vida do riso e do risco, da safadezaque brinca com o sagrado e o profano, que expõe ao avesso as regras queguiam a moral local, tematizando a vadiação, a provocação, o namoro, acachaça, a amizade e o ciúme, sabem como ninguém que a importância
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Maria Acselrad
do cuidado é a regra de ouro para uma estética do ris(c)o, onde “a graça consiste em dizer as coisas pela metade”.
O grito “Viva Pareia!” sintetiza melhor que qualquer outro conceitonativo a filosofia do cavalo-marinho apresentada no livro: a brincadei-ra — na dança, no canto e ao colocar figuras — é sobre a explosiva ecriativa dinâmica do par, na arte e na vida; é sobre o estar relacionadoe sobre como são arriscadas e necessárias as relações: entre o senhor deengenho e seus escravos, entre o patrão e os trabalhadores assalariados,entre o Mestre e seus brincadores, entre amigos e rivais.
Na brincadeira, a ideia do par aparece na centralidade da atuação dadupla Mateus e Bastião, dois palhaços presentes durante toda a brinca-
deira e responsáveis por intermediar a relação entre o banco de músicos,o Mestre e as figuras que vão aparecendo progressivamente. “Mateusanda no mundo com seu pareia Bastião.” Pareia significa companheiro, parceiro, aquele com quem se tem afinidade, e um cavalo-marinho ondeos dois não se afinam é “desmantelo garantido”. Em episódio que se tor-nou raro nas apresentações atuais do cavalo-marinho, a relação do parde amigos é ainda complementada por uma terceira figura, a Catirina,“mulher de Mateus, ‘amigada’ de Bastião”. Não é difícil imaginar o ren-
dimento jocoso dessa triangulação em cena. A Catirina saiu do elen-co; porém, apareceram outras figuras femininas lascivas que invocam omesmo tema da mulher poderosa a querer devorar os homens e outras
vítimas, como a Veia do Bambu, cuja atuação é belamente descrita nolivro.
“Pareia”, nos ensina um dos mestres cuja fala é citada no livro,
[...] é andar em dois. Um homem e uma mulher dá pareia.
É muito importante, um casal bem unido. Onde tem uma pareiatem uma amizade, mas onde tem amizade também tem ciúme.
Acontecem essas coisas. Porque a pessoa não vai deixar outras
pessoas tomar conta. Ali se chama pareia. É por isso que tem
tanta violência. É por causa do ciúme.
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VIVA PAREIA!
O livro, em consonância com a sabedoria de vida dos brincadores emestres do cavalo-marinho, mostra que “quanto mais íntima, mais pro-
vocadora (exitosa) será a pareia”, mas também que quanto mais próximaa relação, mais chance existe de o ciúme eclodir, assim como a rivalida-de, a violência verbal, enfim, o temido desmantelo do que foi construídocom tanto cuidado, riso e risco na brincadeira e na vida.
O livro de Maria Acselrad se constitui, assim, numa bela etnografia,que mostra como o estudo antropológico da estética, enquanto estudode um estilo de se expressar, de ser, de sentir e de agir, pode lançar luzsobre grandes questões filosóficas, existenciais, sociais e políticas quemobilizam um grupo de pessoas que moram nas cidades e no campo da
Zona da Mata pernambucana.
Els Lagrou
PPGSA/IFCS/UFRJ | Janeiro 2013
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INTRODUÇÃO 19
CAVALO-MARINHO — UNIVERSO EM MOVIMENTO 28A Zona da Mata Norte de Pernambuco 28Visões sobre o cavalo-marinho 35Brincadeira – entre o desmantelo e a consonância 45Possíveis origens da brincadeira 51
UMA BRINCADEIRA DE CAVALO-MARINHO – RECORRÊNCIAS ESINGULARIDADES 57
ANTROPOLOGIA DA ARTE OU A ARTE DA ANTROPOLOGIA: DATRANSCULTURALIDADE DOS CONCEITOS 87Arte e Antropologia 89
O pensamento estético de Mário de Andrade 106Arte e Cultura Popular 115
O CORPO EM MOVIMENTO NO CAVALO-MARINHO 123O corpo como eixo de relação com o mundo 124A dança das guras 130Veia do Bambu e Ambrósio 140Safadeza ou a beleza da graça 145
Do saber e do sambar 152
O AMANHECER DO DIA 157
BIBLIOGRAFIA 161
REGISTRO FOTOGRÁFICO 168
SUMÁRIO
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19Introdução
Os estudos sobre a relação entre arte e sociedade se desenvolveram, demaneira geral, com base em duas orientações. Em alguns casos, pri-
vilegiando o estudo de grupos ou linguagens artísticas analisadas emcontexto, predominava uma compreensão abrangente, dedicada ao en-tendimento das relações sociais envolvidas e ao seu poder reflexivo. Emoutros, enfocando estudos de manifestações artísticas em si, concen-
trava-se na compreensão das suas estruturas internas, dos significadose das categorias estéticas, valorizando assim o seu poder expressivo ecomunicativo. Se considerarmos, no entanto, que tais abordagens sãointerdependentes e podem nos revelar mais do que o fato de que arte esociedade se relacionam, será possível então identificar como se relacio-nam e quanto expressam a própria natureza do vínculo existente entresi.
Este livro baseia-se em minha dissertação de mestrado, defendida
em 2002, no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia,do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal doRio de Janeiro (PPGSA-IFCS/UFRJ). Seu objetivo consiste em pensar aspossibilidades de análise que a arte oferece à antropologia enquanto ob-
jeto de estudo que, ao representar um sistema cultural, mais do que umreflexo da sociedade que a produz, apresenta-se como uma reflexão so-bre ela. Sem dúvida, é impossível compreender uma sem a outra. A arteé um fenômeno social. A sociedade se expressa, se inventa e reinventa,dentre tantas maneiras, através da arte. Por outro lado, é importanteconsiderar que os princípios, as formas, os estilos e as estruturas, as ca-tegorias e lógicas intrínsecas de uma manifestação artística expressammuito acerca da organização social de um determinado grupo. Sendoassim, privilegiar o espaço da relação entre arte e sociedade pode nosdizer muita coisa sobre por que uma prática artística se realiza e, princi-palmente, por que se realiza daquela maneira.
INTRODUCÃO
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Compreender a brincadeira do cavalo-marinho do ponto de vistade suas relações sociais, assim como de suas categorias estéticas nativas,logo nos apresenta alguns desafios. O fato de os brincadores não se uti-lizarem do conceito de arte para definição dessa atividade é um deles.Classificá-la como arte, sem levar em conta criticamente o emprego doconceito, suas diferentes aplicabilidades históricas e culturais, tambémnão contribui para uma compreensão apropriada daquilo que se expres-sa através da brincadeira.
Diferentes formas de concepção e apreciação estéticas, no entanto,podem ser identificadas em processos criativos, histórica e culturalmen-te marcados por parâmetros não hegemônicos, envolvendo outras con-
ceituações e trabalhando de modo diferente com as relações sensíveis eimaginárias (Zemp, 1998). Enquanto discurso reflexivo, a estética nosinforma sobre classificações e julgamentos, atribuições de valor e gostoque permitem a compreensão da dinâmica de um grupo e o desenvolvi-mento de seu estilo nos mais diferentes âmbitos da vida (Lagrou, 1998).
Por isso, o que se pretende com este livro, a partir de uma descriçãoe análise da brincadeira, das relações que os sujeitos estabelecem comela e dos valores mais amplamente compartilhados por essa pequena co-
munidade de brincadores, é investigar a forma como se dá esteticamen-te a concepção e a apreciação de uma determinada prática cultural porum grupo de pessoas que se reúne para dançar, cantar e tocar. Melhordizendo, para brincar.
No primeiro capítulo, contextualizo a brincadeira através de umpanorama da Zona da Mata Norte de Pernambuco, de modo a propor-cionar o entendimento das condições históricas e culturais nas quais seencontram os brincadores de cavalo-marinho, considerando as impor-
tantes transformações ocorridas nas relações sociais, a partir da décadade 1960 (Sigaud, 1979). Ainda neste capítulo, dialogo com a produçãoacadêmica sobre a brincadeira (Marinho, 1984; Murphy, 1994; Moreno,1997; Santos Moreno, 1998; Perazzo, 2000; Gonçalves, 2001), uma vezque o cavalo-marinho já suscitou interessantes discussões junto a di-
versas áreas do conhecimento. Isso permitiu também que eu pudessedar minha contribuição ao debate através do que chamei de aborda-
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21Introdução
gem antropológica da estética do cavalo-marinho. Isto é, uma análise dosconceitos e das categorias estéticas nativas que procuram dar conta daexperiência da brincadeira, tais como o desmantelo e a consonância —tensão complementar que se resolve quando as relações de cuidado seconstituem entre os seus integrantes. Dentre as hipóteses sobre a origemda brincadeira, mais do que sugerir uma versão definitiva, destaco quetodas elas apontam para a sua singularidade, enquanto gênero musi-cal e coreográfico, numa construção de identidade em movimento, queabrange e incorpora a alteridade.
No segundo capítulo, com base numa descrição etnográfica da brin-cadeira a partir de suas recorrências e singularidades, busco demons-
trar a complexidade dessa experiência, que, mais do que possuir umaestrutura, organiza-se com base em ritmos ou regularidades orientadospor uma transitoriedade estrutural , combinação particular e históricade diversos elementos que propiciam, a cada noite, resultados diferen-tes. Assim, perceber o que significa a experiência do cavalo-marinhoenquanto brincadeira e tudo o que isso envolve é o primeiro passo emdireção ao que pretendo afirmar com este trabalho. A utilização do ter-mo como passível de identificação com o conceito de arte faz parte de
um segundo movimento, que permitiu, através de uma desconstrução erelativização desse conceito, realizar uma análise daquilo que na brinca-deira existe de semelhante e de diferente da experiência artística.
No terceiro capítulo, a partir de uma discussão de ordem basica-mente conceitual, busco refletir sobre os diversos caminhos que a antro-pologia percorreu a fim de entender “a arte dos outros”. Projetos episte-mológicos tais como os do particularismo histórico, do estruturalismoe da antropologia interpretativa são postos em diálogo, uma vez que me
permitiram discutir os limites e as possibilidades da dimensão particu-lar e universal da sensibilidade estética (Boas, 1947; Lévi-Strauss, 1961;Geertz, 1983). A desconstrução do conceito de arte realizada por essesautores, assim como a contribuição dada por Mário de Andrade (1986),através de suas discussões sobre o prazer estético, as origens da arte ea sua relação com a sociedade, pareceu-me importante para o alarga-mento do conceito, bem como para a tentativa de pensá-lo preenchido
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pela noção de brincadeira. Considerando a produção de pensamento e aatuação política dos folcloristas brasileiros, uma problematização sobreo uso e a aplicação do conceito de povo também se fez necessária, tendoem vista o projeto nacionalista que se escondia por detrás das especula-ções sobre a cultura popular (Vilhena, 1997).
O quarto capítulo, dedicado a uma reflexão sobre o corpo da brin-cadeira, apresenta-se como uma ponte de acesso para uma análise sen-sível do cavalo-marinho. A discussão sobre o corpo dos brincadores emmovimento, a lógica de organização da dança, as categorias estéticasnativas ligadas a ela, além do espaço e tempo dedicados à transmissãode saberes, interessou-me de forma privilegiada. A dança não foi apenas
o que me chamou mais a atenção na brincadeira, como também repre-sentou o principal canal de comunicação, através do qual se deu minhainserção neste universo de pesquisa. Linguagem que mantém íntimarelação com as demais, a dança possibilitou, também, a compreensãodaquilo que significa ser brincador, ao considerarmos dança não apenasum conjunto de padrões de movimento e deslocamentos espaciais notempo, mas todo um mundo de significados que se movimenta atravésdo dançarino (Launay, 1992). O seu aprendizado, portanto, teve papel
decisivo na pesquisa, possibilitando a compreensão de valores éticos eestéticos ali em jogo.
A dança, na virada do século XX, foi considerada a “antropologia dogesto” (Baxmann, 1989). Portanto, a observação da brincadeira aliadaà participação na brincadeira possibilitou um envolvimento especial enecessário para a incorporação de um conhecimento sobre o corpo docavalo-marinho e sobre os corpos que o constituem, sem os quais estapesquisa não teria sido possível. Acredito também que a investigação de
práticas corporais tais como a dança fortalece um projeto de superaçãoda dicotomia sujeito-objeto, ampliando os entendimentos acerca dessapossível relação. Numa pesquisa acadêmica, há sempre o risco de tra-tarmos os sujeitos que estudamos como objetos ou meramente comomeios de atingir um conhecimento e objetivo intelectuais. Há um riscosemelhante na relação que estabelecemos com nosso corpo. Uma antro-pologia que tem como objeto de estudo os usos e significados do corpo,
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23Introdução
ao incluí-lo em seus procedimentos metodológicos, lembra-nos de queo conhecimento se constrói, inevitavelmente, a partir do corpo, e queisso implica afetar e ser afetado, transformar e ser transformado.
O corpo não é um dado biológico, mas uma experiência tão cons-truída quanto a própria história que o cerca (Le Breton, 1999). O corponão se encontra separado do mundo em que vive. Conhece o mundo,conhecendo-se a si mesmo, isto é, em movimento. Quem ou o que dan-ça quando se dança? Quantas danças existem numa só dança? Onde,por que e quando se dança? Afinal, o que caracteriza, de fato, a dan-ça? O diálogo com o Sistema de Análise do Movimento, de Rudolf vonLaban (1978), permitiu o entendimento de que as dinâmicas ou os es-
forços cinesiológicos podem ser descritos com ênfase em seus aspectosqualitativos.Nesta análise, alguns aspectos são considerados de fundamen-
tal importância: o que se move, como se move, onde e com quem nosmovemos. Seja no palco, no cotidiano, na vida. Construir uma teoriado movimento que recusasse não apenas um discurso anatômico-me-canicista, como também um discurso psicologizante era o objetivo deLaban. Nesse processo, o conceito de qualidade de movimento assume
papel fundamental. No cavalo-marinho, a categoria nativa do pantinho foi identificada como equivalente no propósito de chamar atenção paraa maneira particular com que cada dançarino coloca uma figura.
ais reflexões são pertinentes uma vez que as danças populares etradicionais possuem como elemento principal o fato de que precisamdo corpo para acontecer. “Cavalo-marinho é brincadeira de presença”,dizia João Soares da Silva, mais conhecido como Biu Roque, dono dogrupo de Cavalo-Marinho Boi Brasileiro, ao qual esta pesquisa dedicou
a maior parte do tempo. Com o corpo, no corpo e através do corpo se fazdança, música e poesia. Lugar atravessado por desejos e em constanteformação e transformação, o corpo aqui desencadeia processos que ca-racterizam a brincadeira como experiência de multiplicidade subjetiva.Esse corpo extrapola a si mesmo, se expande, se contrai, se torce e dis-torce, se multiplica e, assim como invade, é invadido. Ao nos apresentarformas diferentes de se mover, nos revela formas diferentes de ver e ser.
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Quanto aos procedimentos metodológicos, a pesquisa foi realizadacom base em três viagens de campo, entre 2000 e 2002, com períodosde permanência variados, que totalizaram quatro meses de pesquisa decampo. Na maior parte do tempo, desenvolvi o trabalho no distrito deChã do Esconso, município de Aliança, Zona da Mata Norte de Pernam-buco, onde morava Biu Roque, assim como no município de Itaquitin-ga, onde o grupo costumava se apresentar e onde vivem muitos de seusbrincadores. Considerado um dos principais herdeiros do reconhecidoCavalo-Marinho de Mestre Batista, grupo que até hoje ocupa lugar pri-
vilegiado na memória dos brincadores da região, o Cavalo-Marinho deBiu Roque é bastante reconhecido por isso.
Idas e vindas, dentro da própria Zona da Mata ou desta região parao Recife, no entanto, foram necessárias à pesquisa. Na Zona da Mata, osdeslocamentos pelas cidades, pelos distritos e pelos bairros rurais per-mitiram a realização de entrevistas com a maior parte dos brincadoresdesse grupo e de outros, em cidades como Aliança, Itaquitinga, Conda-do e Camutanga. No Recife, os deslocamentos foram determinados pelapesquisa bibliográfica, iconográfica e sonora em instituições, tais como:Fundação Joaquim Nabuco, Universidade Federal de Pernambuco, Mu-
seu do Homem do Nordeste, Museu da Imagem e do Som, Secretariade Cultura do Recife, V Universitária, além de associações culturais,como a Comissão Pernambucana de Folclore. Nessas consultas, foi pos-sível constatar o quanto ainda era tímida a produção acadêmica e do-cumental sobre o cavalo-marinho até o momento da realização destapesquisa.
No Rio de Janeiro, as visitas ao Museu Edison Carneiro, no CentroNacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, contribuíram para
delinear um panorama geral da produção folclorista brasileira. Em SãoPaulo, a Discoteca Oneyda Alvarenga, no Centro Cultural São Paulo– CCSP, e o Instituto de Estudos Brasileiros/USP – IEB, com seus res-pectivos acervos de fonogramas da Missão de Pesquisas Folclóricas e demanuscritos de Mário de Andrade, sugeriram interessantes discussõessobre a origem da brincadeira e sobre as relações entre arte e sociedade.
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25Introdução
A realização de um registro audiovisual completo de uma das brin-cadeiras do Cavalo-Marinho de Biu Roque — cuja edição acompanhaeste livro, dialogando, sobretudo, com o segundo e o quarto capítulos —facilitou o estudo, esclareceu escolhas estéticas feitas pelo grupo e aindapossibilitou a aquisição de um registro audiovisual atualizado sobre abrincadeira1. Agora editado e anexado ao livro, esse material representauma oportunidade aos pesquisadores e ao público em geral, de ter aces-so a ilustrações em movimento da brincadeira, o que, para uma análiseda dança, é algo imprescindível, além de representar importante docu-mento histórico.
Ao longo do trabalho de campo, tive a oportunidade de assistir a
dezesseis brincadeiras. Dentre elas, oito do Cavalo-Marinho de Biu Ro-que, de Aliança/Itaquitinga; três do Cavalo-Marinho de Mestre InácioLucindo, de Camutanga; duas do Cavalo-Marinho de Mestre Grimário,de Aliança; duas do Cavalo-Marinho de Mestre Salustiano, de Olinda; euma do Cavalo-Marinho de Mestre Irineu, na época sediado em Nazaréda Mata.
A convivência com a família de Biu Roque e com os demais brincado-res deste e de outros cavalos-marinhos, incluindo idas à feira, conversas
noturnas, trabalhos caseiros, passeios pela região, festas e brigas de famí-lia, idas ao canavial e ao sindicato dos trabalhadores rurais, foi importantepara que eu percebesse, incorporasse e me sensibilizasse em relação a ou-tras músicas e danças. Pensar em várias claves (Wisnik, 1989) me pareceser um dos exercícios mais instigantes da antropologia. O contato perme-ável com a diferença faz dela uma das ciências humanas onde a aventurado conhecimento se mostra das mais encantadoras. O cavalo-marinho foiaqui a minha principal motivação para falar dessa experiência.
A oportunidade de publicar este trabalho tantos anos depois desua realização tem para mim um significado muito especial. Marca amemória daqueles que já não estão mais brincando e reforça a atuação
1 O último registro integral de uma brincadeira havia sido feito em 1991, pelo etnomusicólogoJohn Murphy, a partir de uma apresentação do Cavalo-Marinho de Inácio Lucindo, na épocasediado em Condado. Esse material foi localizado no acervo da Fundação Joaquim Nabuco,assim como alguns trechos de encontros de cavalo-marinho, realizados no Terreiro IlumiaraZumbi, Cidade Tabajara/Olinda.
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dos que ainda brincam. A brincadeira, como a vida, se renova. Afirmatambém minha infinita paixão pela brincadeira. Nunca me canso deacompanhá-la e observar que sei tão pouco sobre ela, o que me esti-mula a continuar em constante e persistente processo de pesquisa. Sãoapaixonantes os objetos de estudo infinitos. Com o tempo, o trabalhoassumiu um lugar de referência para alguns pesquisadores. Assim, nãoposso deixar de mencionar os trabalhos acadêmicos que surgiram nes-tes dez anos, como o de Helena enderini, Mariana Oliveira, Érico Joséde Oliveira, Carolina Laranjeira, Lineu Guaraldo, além das monografiasde Paulo Henrique Lopes e ainá Barreto. Alguns ajustes no texto fo-ram necessários, mas não me propus fazer uma atualização. Se o cavalo-
-marinho e seu entorno já não são mais os mesmos, alguns aspectospermanecem atuais, por isso preferi manter o caráter de registro desteencontro. Pra mim, para sempre, um grande encontro.
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27Introdução
Cartograma da Zona da Mata Norte de PernambucoCavalos-Marinhos contactados pela pesquisa
Aliança
Itaquitinga
Condado
Olinda
Camutanga
0 10 205Km
±
Projeção Plate-CarréeMalha municipal IBGE 2005
SistematizaçãoMariaAcselrad
CartografiaLuis Bulcão
Janeiro de 2013
LEGENDA
Municípios Sede dos Grupos Pesquisados
Zona da Mata Norte
Outros Municípios
CAVALO-MARINHO ESTRELA DO ORIENTE
DE INÁCIO LUCINDO
CAVALO-MARINHO BOI BRASILEIRO DE BIU ROQUE
CAVALO-MARINHO BOI PINTADO DE GRIMÁRIO
CAVALO-MARINHO ESTRELA DE OURO
DE BIU ALEXANDRE
CAVALO-MARINHO BOI MATUTO DE MANÉ SALU
Recife
1:1.000.000
Estado de Pernambuco
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28
CAVALO-MARINHO — UNIVERSO EM
MOVIMENTO
A ZONA DA MATA NORTE DE PERNAMBUCO
A Zona da Mata Norte do Estado de Pernambuco, localizada a cerca desetenta quilômetros do Recife, entre o litoral e o Agreste, é uma região
que se caracteriza pela existência de uma estrutura fundiária, organiza-da em torno das grandes propriedades rurais, onde durante séculos sepraticou a monocultura da cana-de-açúcar como base da economia lo-cal. É lá também que se concentra, até os dias de hoje, um dos conjuntosmais diversificados de manifestações culturais do Estado, as chamadasbrincadeiras.
Complexos festivos e espetaculares que envolvem diferentes lingua-gens artísticas, as brincadeiras encontram-se distribuídas ao longo doano, através dos ciclos natalino, junino e carnavalesco, e são realizadaspor brincadores que, em sua maioria, trabalham ou já trabalharam como corte da cana na região.
Mistura de dança, música, teatro e poesia organizada sob a forma deespetáculo de rua, com duração de até oito horas, a brincadeira do cava-lo-marinho teve sua origem, segundo seus brincadores, nas senzalas daZona da Mata Norte de Pernambuco. Com vistas a contribuir para o en-tendimento das condições sociais e econômicas nas quais a brincadeirado cavalo-marinho se encontra inserida, assim como seus brincadores,é importante discutir alguns aspectos que assumiram papel decisivo naocupação histórica e geográfica dessa região.
A cana-de-açúcar, desde o período colonial e até meados do séculoXX, representou a maior fonte de renda da região. Aterrando rios, su-bindo morros, ocupando chãs, a cana intensificou o processo de desma-tamento, causando sérios problemas ligados à erosão do solo e à falta de
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29Cavalo-marinho — universo em movimento
água. A concentração fundiária, resultante da facilidade de crédito e dosubsídio que a grande lavoura historicamente sempre usufruiu dos ór-gãos governamentais, assim como do caráter essencialmente comercialda agricultura nordestina, produziu a decadência das lavouras de sub-sistência da região, dificultando as condições de vida dos trabalhado-res rurais, a fertilidade da terra e a diversidade da produção (Andrade,1986).
Latifúndio e monocultura, somados ao trabalho escravo e, mais re-centemente, ao trabalho assalariado, foram, portanto, os alicerces sobreos quais se estruturou o processo de exploração da Zona da Mata Nortepernambucana. Os conflitos de interesse entre grandes proprietários, as
transformações tecnológicas e o movimento de resistência dos trabalha-dores rurais ainda contribuíram para fazer desta região, com o passar dotempo, palco de sérias disputas políticas (Sigaud, 1979).
Nesse contexto, a passagem do sistema de engenho para o sistemade usina representou uma mudança significativa na estrutura de orga-nização social local e possibilitou o surgimento de um novo padrão derelação que contribuiu para o processo de proletarização dos trabalha-dores rurais, do qual muitos brincadores de cavalo-marinho se conside-
ram vítimas. Desde a abolição da escravidão até meados da década decinquenta do século XX, a força de trabalho utilizada nos engenhos pro-dutores de cana-de-açúcar era constituída por trabalhadores residentesnaqueles engenhos. Ser morador significava que:
[...] o trabalhador recebia como concessão do proprietário
uma casa e a possibilidade de trabalhar em troca de alguma re-
muneração, bem como o acesso a um pedaço de terra para cul-
tivar produtos de subsistência, o acesso ao barracão da proprie-dade, onde podia se abastecer daquilo que não produzia, quer
porque não pudesse, quer porque fosse impedido pelo proprietá-
rio, e ainda o acesso aos rios e matas do engenho, que lhe garan-
tia a água e a lenha. Como morador podia também criar alguns
animais domésticos. A contrapartida ao proprietário que tudo
isso lhe assegurava consistia no estar totalmente à sua disposição
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para o que fosse necessário dentro da propriedade, o que tan-
to significava um compromisso em relação ao fornecimento de
sua força de trabalho e a de sua família para o trabalho na cana,
como o compromisso de não trabalhar a nenhum outro proprie-
tário (Sigaud, 1979, p.34).
O sistema de morada pressupunha um conjunto de relações de leal-dade baseadas num regime hierárquico, mas onde conviviam o cultivodo roçado, a prática da “troca de dia” e o trânsito dos trabalhadores pelaregião. Estes, quando insatisfeitos, tinham a possibilidade de mudar deengenho, com a condição de que quitassem suas dívidas. O que geral-
mente não conseguiam fazer, transferindo-as do antigo para o novoengenho. Quando esse sistema começa a sofrer modificações, é a pró-pria dissolução do sistema de morada, “[...] enquanto modo particularde vincular a força de trabalho ao proprietário, que atinge não apenasàqueles que deixaram os engenhos, mas também os que ainda lá resi-dem” (Sigaud, 1979, p.34).
João Soares da Silva, mais conhecido como Biu Roque2, dono doCavalo-Marinho Boi Brasileiro, grupo com o qual convivi a maior parte
do tempo desta pesquisa, nasceu em Acauzinho, um engenho situadono município de Condado, no ano de 1934. Na época da pesquisa, BiuRoque morava no Engenho abajara, pertencente à Usina Santa ereza,localizada no município de Aliança. Pendências com o sindicato dostrabalhadores rurais fizeram com que ele permanecesse nas terras doengenho como último morador , de forma a reivindicar os direitos nãoconcedidos pela usina. Biu Roque nasceu, cresceu e trabalhou, prati-camente, toda a sua vida nos engenhos da região. As consequências da
modificação na relação de morada são comentadas por ele:
[...] de premero, pra se trabalhar era muito bom. Naquele
tempo a gente “amarrava cachorro com linguiça” porque tinha de
sobra. A essa hora, assim, a gente tava tudo no assentamento do
2 Biu Roque nasceu em 06 de maio de 1934, em Condado, e veio a falecer em 23 de abril de2010, em Goiana.
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engenho, bebendo caldo, lambendo mel, comendo açúcar bruto.
Era tudo dentro do engenho. Depois, a inflação foi aumentan-
do. Aí cortava cana, tomava cana e fazia empréstimo. Quando
era no fim da safra, a usina tomava conta de tudo, quando ia
ver o dinheiro não dava pra pagar as despesa do povo. Senhor
de engenho não aguentava e vendia às usina. Até que as usina
tomou conta de tudo. Foram acabando com os sítio. Eles vieram
plantando cana, plantando, plantando e me espremendo. Aqui,
só sobrou eu. Por causa dos direito. A usina tá em falência, não
tem dinheiro pra fazer acordo, quando for me diz. ô moran-
do aqui porque não tem solução (Biu Roque, 2001, depoimento
concedido à autora).
A maioria dos brincadores do Cavalo-Marinho de Biu Roque já re-side nas ruas, como são chamadas as cidades ou aglomerados urbanosda Zona da Mata Norte. Mais especificamente, nos municípios de Con-dado, Itaquitinga e Aliança.
Em meados da década de 1950 e, mais especificamente, após 1964,com a queda do Governo João Goulart, devido ao golpe militar, os mo-
radores começam a abandonar em massa os engenhos, e os proprietá-rios, a recusar sistematicamente novos moradores. Fechado o acesso àmorada, os moradores se dirigem para as cidades da região, não mais emcaráter provisório, mas para lá se instalarem definitivamente, o que vaise refletir no crescimento urbano espantoso que a Zona da Mata entãoconhece (Sigaud, 1979, p.33).
Manoel Soares da Silva, conhecido como Mané Roque, é filho de BiuRoque e nasceu em 1955, no Engenho abajara. ocador de mineiro do
cavalo-marinho, ele enfrenta uma situação muito comum entre os mo-radores das “ruas”. rabalhador fichado da cana, Mané Roque sustentauma família de oito pessoas com praticamente um salário apenas, alémda renda de um comércio informal de alimentos organizado por suamulher dentro da própria casa. Costuma sair para trabalhar às quatrohoras da manhã, voltando somente no final do dia. Segundo Mané Ro-
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32 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
que, uma das consequências desse processo é o aumento da violência,decorrente da natureza do trabalho, assim como da falta dele.
O que eu achava bom mudar nessa região era a violência do
povo, que é demais. Situação de trabalho. Era dar mais emprego
pro povo, que é pouco. A gente trabalha nesse serviço pesado,
mas tem muita gente parada (Mané Roque, 2001, depoimento
concedido à autora).
O agravamento desse processo de proletarização da massa de traba-lhadores rurais da Zona da Mata Norte é decorrente, segundo Andrade
(1986), das transformações de ordem econômica desencadeadas pelaemergência das usinas, da valorização do açúcar no mercado interna-cional e da ampliação do mercado interno. Mas, de acordo com Sigaud(1979), também se deve ao fato de que:
[...] a partir do momento em que a resistência dos traba-
lhadores a um determinado tipo de acumulação se torna efetiva
e passa a contar com um suporte legal, a sua própria presença
dentro da propriedade torna-se incômoda para os proprietários.No processo de luta, os moradores não só haviam rompido com
a relação personalizada com os proprietários, ao se articularem
horizontalmente, como também haviam transformado a relação
com o proprietário em base para reivindicação trabalhista e rela-
tiva ao direito do uso da terra (Sigaud, 1979, p.39-40).
As conquistas jurídicas introduzidas, a partir dos anos 1960, pelo
Estatuto do rabalhador Rural e pelo Estatuto da erra, fruto da reivin-dicação das Ligas Camponesas, movimento social organizado da região,provocaram a reação dos proprietários de forma a criar uma atmosferasocial tensa. Com isso, o número de trabalhadores residentes diminuiu,e o surgimento da figura do empreiteiro, intermediando agora a relaçãopatrão-empregado, passa a colaborar na reconfiguração das responsabi-lidades que o primeiro mantinha com o segundo (Heredia, 1989).
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33Cavalo-marinho — universo em movimento
Se, por um lado, com a saída para as “ruas”, foram assegurados al-guns direitos básicos, como a assistência médica e social e o direito àaposentadoria, por outro acentuou-se bastante o processo de fragmen-tação das relações e a degradação da qualidade de vida do trabalhadorrural da região, que, por falta de opção, se viu, muitas vezes, trabalhandona clandestinidade, sem direitos e sem estabilidade.
Dentro desse modelo de exploração capitalista, a atuação dos sin-dicatos dos trabalhadores rurais nunca assumiu papel muito expressi-
vo, segundo os próprios brincadores. Pelo contrário, são inúmeros oscasos pendentes e os processos engavetados. Além disso, o Estado e osproprietários de terra têm a seu favor um aparelho jurídico consisten-
te, cujas formas de atuação e lógicas discursivas ameaçam o direito dostrabalhadores. Muito provavelmente, não fosse por isso, uma crise degrandes proporções na estrutura social, política e econômica da Zonada Mata Norte pernambucana teria lugar, com a conquista de direitos,indenizações e gratificações por parte dos trabalhadores rurais, além daquebra de várias usinas, cujo sucesso tem dependido em grande partedo descumprimento da legislação trabalhista e da legislação de terras(Sigaud, 1979).
Nesse sentido, a dissolução da relação de morada trouxe implica-ções controversas para o cavalo-marinho. Se, por um lado, houve con-quista de direitos trabalhistas elementares, como o salário, o descanso,a aposentadoria, por outro a falta de acesso à terra, a pouca oferta deemprego, a baixa remuneração, a violência do trabalho, a ausência decuidados assistenciais foram considerados prejudiciais para a sobrevi-
vência de famílias inteiras e de suas práticas festivas. Atualmente, assimcomo os próprios trabalhadores rurais, as brincadeiras têm que disputar
um espaço ao mesmo tempo concorrido e pouco valorizado. O paga-mento cada vez menor por uma brincadeira e a disputa pela atençãodo público, assim como dos próprios brincadores, são alguns sintomasdesse processo.
Hoje, a maior parte dos trabalhadores rurais vive nas cidades, dis-tritos ou bairros da zona canavieira. Sem vínculo empregatício, são ali-ciados por empreiteiros, trabalham por tarefa, cada dia em um enge-
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nho diferente, e recebem de acordo com o serviço prestado. Perderamo acesso à terra e a possibilidade de produzirem para a sua subsistência,dependem exclusivamente de sua força de trabalho e, com a ampliaçãodas terras cultivadas pela cana, com o fim da condição de morador , tra-balham muito mais do que antes.
O trabalho na cana inclui: cavar, limpar, plantar, cortar, amarrar,carregar, entre tantas outras tarefas. Com frequência é realizado ainda
junto a outras atividades, como, por exemplo, a de pedreiro, pintor, car-regador, guarda, vigia, feirante, sapateiro, bodegueiro, entre outras. Aaposentadoria e o trabalho na cana em muitos casos não são suficientespara garantir o próprio sustento e o de famílias inteiras, muitas vezes já
na terceira geração, todos morando na mesma casa. Além disso, o índicede analfabetismo entre a maioria dos trabalhadores da região é tão gran-de que os impede de buscar novas possibilidades de trabalho.
Essa situação fez com que a brincadeira nas últimas décadas tenhaincorporado um novo significado: o de representar mais uma fontede renda no orçamento anual dos brincadores. Embora, muito prova-
velmente, as transações financeiras tenham feito parte da brincadeiradesde os seus primórdios, uma nova maneira de se relacionar com o
dinheiro resultante de uma brincadeira de cavalo-marinho começa ase revelar, atualmente, associada à falta de alternativas de sobrevivênciana região, assim como ao fenômeno da espetacularização das culturaspopulares, aspecto que será discutido mais adiante.
Entre os cerca de vinte brincadores do Cavalo-Marinho de Biu Ro-que, encontram-se crianças, adolescentes, jovens, adultos e senhores. Seé que não trabalham ou já trabalharam no corte da cana, a probabilida-de é grande de que venham a trabalhar um dia. Praticamente a única
possibilidade de emprego da região, a cana ainda é a maior atividadeagrícola local. E, apesar da grave crise pela qual vêm passando as usinas— nos últimos anos, muitas delas em processo adiantado de falência —,essa atividade ainda faz parte da realidade cotidiana dos corpos dessesbrincadores.
O calendário festivo dos trabalhadores rurais da região conta comtrês ciclos comemorativos: o carnavalesco, o junino e o natalino. A brin-
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cadeira do cavalo-marinho costuma ser realizada no contexto das festasreligiosas, principalmente daquelas que se concentram no ciclo natali-no. Embora também ocorra ao longo de todo o ano, porém de maneiraesparsa. Essas datas somaram-se às datas de aniversário de emancipaçãodos municípios e, a cada ano que passa, têm sido motivo também paraatrair artistas, pesquisadores, produtores e turistas interessados nas tra-dições culturais locais.
Nos últimos tempos, a brincadeira tem sofrido mudanças signifi-cativas. Alterações na duração do espetáculo, na sua localização dentrodas festas, no relacionamento entre os brincadores e destes com a brin-cadeira têm contribuído para que essa experiência, assim como a sua
concepção, esteja sendo visivelmente transformada. Aqui todas essasmudanças nos interessam e serão mais adiante discutidas não apenaspelo seu caráter sociológico e antropológico, mas também porque rea-firmam uma das mais significativas características do cavalo-marinho:sua fatalidade móvel 3, capacidade singular de conviver com a alteridade,que contribui para um tipo de identidade em movimento, fazendo comque toda brincadeira seja uma experiência única.
Visões sobre o caValo-marinho
O cavalo-marinho já foi considerado objeto de estudo para diferentesáreas do conhecimento. Esses trabalhos, embora pouco numerosos,apontam para distintas abordagens, que merecem aqui ser discuti-das. O que pretendo apresentar é um esboço de como cada uma delascontribuiu para uma discussão mais ampla sobre as singularidades da
brincadeira. endo em vista a composição desse panorama, baseado nodiálogo de interpretações sugeridas por esses autores, aproveito paracompartilhar, em seguida, minha abordagem, amparada pelo entendi-mento do que vem a ser a brincadeira para aqueles que dela participam,
3 Esse conceito, originalmente elaborado por Auguste Comte, foi discutido por Ortega y Gas-set em A ideia do teatro (1991) com o objetivo de delinear uma condição humana em movi-mento. Mais adiante, voltarei a ele.
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propondo uma reflexão acerca de suas categorias estéticas nativas, o quechamei de uma abordagem antropológica da estética do cavalo-marinho.
Um dos primeiros trabalhos de que se tem registro, tendo por obje-to o cavalo-marinho, O folguedo popular como veículo da comunicação
rural: estudo de um grupo de cavalo-marinho, de Edval Marinho (1984),tem como base uma descrição de personagens, a partir da sistematiza-ção de Hermilo Borba Filho4, um breve histórico sobre a cidade de Fer-reiros e a região da Zona da Mata Norte, a observação das brincadeirase a transcrição literal de boa parte dos diálogos identificados em umadelas. Nesse trabalho, o autor defende a hipótese de que “a brincadeiraexpressa a problemática cultural, social, econômica e política de uma
população rural de baixa renda e ocorre em substituição à comunicaçãode massa” (Marinho, 1984, p.7).A afirmação de que “a vida é contada no espetáculo” (idem, p.111)
encontra-se fundamentada, basicamente, sobre duas questões. Em pri-meiro lugar, a questão da terra ou da propriedade privada, que constituia base da estrutura social dicotômica característica da região. Os quetêm e os que não têm, segundo Marinho, lutam pela posse da terra den-tro da brincadeira. Enquanto Mateus e Bastião, os dois escravos do Ca-
pitão, aproveitam-se de sua ausência para estabelecer uma nova ordeme recusam-se a devolver a administração da roda quando este retornaà fazenda, o Capitão faz uso de forças autoritárias, chamando o Solda-do da Gurita para espancar, prender e expulsar da roda os dois negrosdesobedientes. Ao longo da noite, essa disputa se expressa através deinúmeros episódios em que, de forma às vezes humilhante, outras vezesbem-humorada, Mateus e Bastião apanham, mas nos quais também “apolícia é ridicularizada, com bexigadas, empurrões e risos do público”
(idem, p.109).Ainda com o objetivo de mostrar o quanto o folguedo expressa de
maneira crítica determinados aspectos da realidade local, funcionandocomo um veículo de comunicação rural, outra questão que pretende ser
4 Em Apresentação do bumba-meu-boi (1966), o autor sugere uma divisão dos personagensem três categorias: humanos, animais e seres fantásticos. Essa sistematização tem sidoadotada, até hoje, por muitos autores que trabalham com as brincadeiras da região.
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37Cavalo-marinho — universo em movimento
tratada dentro da brincadeira, segundo Marinho, diz respeito ao papelda mulher nessa sociedade. “Somente a mulher participa do contextocomo objeto de dominação e exploração” (idem, p.111). A ela, não sedá a palavra. O papel da dama é de iniciação e, muitas vezes, vivenciadopor um jovem rapaz, levanta a questão da dominação da mulher poressa sociedade, como também pela família. Se o folguedo expressa umaproblemática cultural específica, este trabalho nos leva a refletir sobre anecessidade de investigar mais detalhadamente o universo do grupo, asua relação com a brincadeira e com o meio de que faz parte.
Dez anos mais tarde, John Patrick Murphy (1994) apresenta, em Per-
forming a moral vision: an ethnography of Cavalo-Marinho, a Brazilian
musical drama 5
, uma resposta aos estudiosos que pretendem compreen-der a brincadeira como veículo de protesto. O autor sustenta a hipótese,ao explorar o significado do cavalo-marinho para os seus praticantese problematizar a continuidade histórica entre antigas e atuais versõesnessa região, de que a brincadeira é multivocal e que seu significado écomplexo (Murphy, 1994). “Incluindo protestos, mas também implíci-tos reforços das relações de poder hierárquicas da região”, a brincadeirapode ser entendida, segundo Murphy, como “uma janela para a visão
moral dos seus participantes, imprensados entre a morte do paterna-lismo tradicional e a sua substituição pela economia da indústria localmoderna da cana-de-açúcar”6 (Murphy, 1994, p.40).
A descrição detalhada do contexto, tendo em vista as condições de vida, o trabalho, a religião, a estratificação social, o nível de alfabetiza-ção, a relação patrão-empregado, ajuda a construir, neste estudo, umcenário consistente para a realidade observada. A ênfase dada ao pro-cesso de violência historicamente vivenciado na Zona da Mata Norte
pernambucana, por sua vez, aponta uma direção para a hipótese quemais tarde será defendida pelo autor.
A contextualização do drama em termos de gênero e a exposição doseu conteúdo musical e textual contribuem para uma análise da conti-
5 A tese de doutorado de John Murphy foi publicada, em 2008, com o título Cavalo-Marinho pernambucano, pela Editora UFMG, tradução de André Curiati de Paula Bueno.
6 Tradução minha do inglês de todos os trechos da tese de John Murphy aqui citados.
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nuidade histórica e dos processos musicais que ligam o cavalo-marinhoàs tradições de performance do Nordeste do Brasil. São elas as dançasdramáticas, tais como o reisado, o bumba meu boi, o maracatu, entreoutras, passíveis de serem analisadas como performances rurais ou ur-banas, apresentando particularidades, em cada um dos casos, no seudesenvolvimento, na relação com a audiência e no conteúdo das piadas.
Ao final do trabalho, Murphy (1994) apresenta sua visão sobre abrincadeira. Se para o autor são muitos os seus significados, três aspec-tos devem ser considerados determinantes na sua especificidade. Emprimeiro lugar, o fato de que a brincadeira articula uma visão moralcamponesa, através da sátira e da comicidade. Em segundo lugar, que
ela expressa uma devoção religiosa, a partir do catolicismo popular queacredita em espíritos e noções de ressurreição e renovação. E, por fim,que, enquanto arte cômica, é criada e apreciada como produto artísticopelos seus integrantes e pela comunidade de maneira geral.
A ênfase dada por Murphy à visão moral camponesa que atraves-sa a brincadeira nos leva a compreender as mudanças no conteúdo e aemergência de novos contextos de performances como resultado de umevidente processo de proletarização experimentado pelos trabalhadores
da cana-de-açúcar da região. Segundo Murphy:
As brincadeiras devem ser entendidas mais como respeito
do que como crítica. A visão moral implica julgamento e puni-
ção de más condutas, de relações irresponsáveis. O “complexo
do patrão” é a base da ideologia hierárquica das relações rurais
brasileiras (Murphy,1994, p.95).
Por isso, para o autor, a crítica social implícita na brincadeira nãoé dirigida ao patrão, e sim ao mau patrão. al como já foi colocado an-teriormente, é importante considerar que a substituição dos engenhospelas usinas e a falência de algumas delas foram responsáveis por boaparte das transformações nas relações sociais na Zona da Mata Norte,sendo uma das principais delas a ruptura com a relação de morada, que
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envolvia um conjunto de relações de lealdade, mas sustentadas por umasólida base hierárquica.
Segundo Murphy (1994), no entanto, a reprodução de relações hie-rárquicas continua podendo ser observada em diversos níveis da brinca-deira: entre os órgãos públicos e o grupo de cavalo-marinho contratado,entre o dono da brincadeira e os demais brincadores, entre os músicos eos dançarinos e assim por diante. Esse processo se encontra acentuadodevido ao fato de que antigamente, ao menos, “se brincava pelo amor dacoisa e hoje só se anda atrás do dinheiro”, segundo o depoimento de umbrincador do Cavalo-Marinho de Mestre Batista, grupo estudado porMurphy, em Aliança.
A presença do cavalo-marinho no sul do Estado da Paraíba tambémgerou reflexões sobre os aspectos que dizem respeito ao universo socio-cultural da brincadeira, presentes nas formas de relacionamento estabe-lecidas entre essa prática e o seu contexto de produção. Preocupado emevidenciar essa relação, O Cavalo-Marinho de Várzea Nova (um grupo
de dança dramática em seu contexto sociocultural), de Werber PereiraMoreno (1997), apresenta a brincadeira inserida num quadro socioeco-nômico, através de uma análise histórica do município de Santa Rita, na
Paraíba, e das condições de vida experimentadas pelos brincadores, emsua maioria, vivendo da agricultura e do roçado.
Definida como “canto, dança e representação dramática que ocorreem meio ao público circundante” (Moreno, 1997, p.16), a brincadeiraé compreendida como um espaço de comunicação simbólica. Assimcomo a feira livre pode ser compreendida como um “local cujos acon-tecimentos sociais ultrapassam os limites do simples comércio de gêne-ros de primeira necessidade” (idem, p.58), a brincadeira também pode
ser compreendida do ponto de vista de sua organização interna, já que“não envolve apenas aspectos relativos ao mundo do trabalho, mas in-clui também os divertimentos que são vivenciados pelos trabalhadoresem seu tempo livre” (idem, p.62). Baseada na hierarquia de saberes, nadivisão de funções especializadas, no trabalho e no divertimento, mastambém na multiplicidade de experiências e modos de aquisição de co-nhecimento, a brincadeira oferece um longo processo de aprendizado
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para os seus integrantes. Os efeitos do crescente processo de urbaniza-ção, envolvendo migrações, violência, abuso da bebida e a consequenteindisciplina por parte dos brincadores estaria dificultando, segundo oautor, esse acúmulo e essa passagem de conhecimento. amanha desar-ticulação ainda seria intensificada por dois outros fatores:
De um lado, a problemática de natureza financeira: a extre-
ma pobreza em que vivem os dançadores não lhes permite fazer
investimentos visando a uma melhor aparelhagem do grupo; de
outro lado, questões referentes às interferências de terceiros: al-
guns representantes de instituições que costumam “incentivar”
a cultura popular [...] nada fizeram além das expectativas quegeraram entre os dançadores (Moreno, 1997, p.80-81).
De acordo com Moreno, o cavalo-marinho não deve ser compre-endido pelo viés de uma perspectiva tradicional que o define, basica-mente, como uma manifestação folclórica pertencente ao ciclo natalino.Segundo o autor, “assim como o critério da tradição não é suficientepara conhecer as manifestações populares, o calendário não imobiliza
as pessoas envolvidas nessas atividades” (idem, p.20). Outros motivose outras datas levam à realização de uma brincadeira. Murphy (1994)
já comentava que o conteúdo crítico presente na brincadeira e sua ca-pacidade de expressar as insatisfações locais dos brincadores faziam docavalo-marinho uma crônica social. Com isso, parece haver um con-senso acerca da relação existente entre o universo da brincadeira e ocotidiano dos brincadores.
Com Moreno, no entanto, a brincadeira volta a ser vista como uma
forma de resistência dos trabalhadores, além de representar uma possi-bilidade de trabalho e aquisição de conhecimento. Murphy (1994), porsua vez, acredita que o fato de estarem ocorrendo mudanças nas rela-ções sociais da região faz com que seja possível encontrá-las, ou pelomenos alguns de seus efeitos, nas performances. Segundo esse autorainda, a vida no engenho no cavalo-marinho parece ideal, com música,dança e inversão de papéis, trazendo também diversas passagens em
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que o corte da cana surge como mote fundamental e a relação pessoal— principal mudança no relacionamento patrão-empregado, interme-diado agora por empreiteiros — passa a ser o tema de muitos episódios.Esse aspecto, a meu ver, utópico da brincadeira, que elabora o passado eprojeta possibilidades de futuro, será retomado mais adiante.
Se cada brincadeira é diferente porque seu conteúdo crítico é o quefaz com que ela se transforme e consequentemente o seu entorno ou, en-tão se ela tem, entre tantas intenções, o objetivo de reproduzir uma de-terminada ordem, mesmo que essa ordem venha passando por profun-das transformações nos últimos tempos, o fato é que, sendo dinâmica,a brincadeira produz acontecimentos dessa mesma natureza. E, assim,
tendo o poder de reforçar uma dada realidade, também tem de trans-formá-la. alvez, por isso, seja tão desafiador estudar essa manifestação.al como afirma Marinho, “A apresentação do cavalo-marinho ja-
mais se repete. Cada apresentação de espetáculo é um espetáculo ím-par”, mesmo porque, “pelo seu caráter de oralidade, o folguedo permitea improvisação” (1984, p.31). “O folguedo é dinâmico, fluido, volátil”(idem). Acontece com base em movimentos de troca incessantes. E,se aqui o autor se refere às mudanças concretas que chegam mesmo a
alterar a estrutura de uma brincadeira, como presença ou ausência dedeterminado brincador, essa reflexão também vale para a construção ereconstrução dos significados que a própria brincadeira admite.
“Brincadeira é coisa inventada”, “o cabra vai tirando e vai modifi-cando”, segundo Seu Neco, brincador do Cavalo-Marinho de VárzeaNova, da Paraíba, grupo que também foi estudado por Joseane SantosMoreno (1998). Em Versos e espetáculo do Cavalo-Marinho de Várzea
Nova, a autora afirma que todas as brincadeiras têm essa base comum.
Justamente porque a cultura “é dinâmica e acompanha o desenrolar dosprocessos sociais” que os estudos de cultura popular não podem com-preender as tradições “como obras do passado sobreviventes no presen-te”, mas como práticas que “se articulam, inseridas no seu contexto deprodução” (Santos Moreno, 1998, p.9). A dança teria um papel impor-tante nesse processo. “A essência do cavalo-marinho e o que faz com queele seja diferente são as inúmeras coreografias” (1998, p.18), afirma Seu
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Neco. Cada cantiga possui uma dança diferente. As passagens, comosão chamados os episódios ou cenas, são marcadas por essa diversidade.Segundo Santos Moreno, o amor ora é cantado em tom sarcástico, oraé cantado liricamente; temas religiosos aparecem de forma sacralizadaou entremeados pelos prazeres da vida profana; a mulher ora é exaltada,ora rejeitada.
Com o objetivo de afirmar a singularidade do cavalo-marinho, San-tos Moreno (1998) defende que existe na brincadeira uma disputa acir-rada entre o sério e cômico. Por isso, as simulações de briga, as danças eos gestos apelativos, o abuso da linguagem de duplo sentido coexistemcom o fato de que o cavalo-marinho é uma festa em homenagem aos
Santos Reis do Oriente, parte de um conjunto de práticas culturais po-pulares que têm como prioridade o culto à figura do Boi. “O objetivodos mascarados é o de arrancar risos da audiência dos mais diversos
jeitos”, alternando esses momentos com “um tom religioso, em clima deoração e prece”. O resultado desse conflito entre o sério e o cômico en-contraria na figura do Boi a sua solução final. Segundo a autora, quando“milagrosamente o Boi ressuscita, a alegria volta a tomar conta do ce-nário. Denunciando, então, que, nessa disputa travada entre o sério e o
cômico, durante toda a brincadeira, é o riso que obtém a vitória” (1998,p.110).
Questões relativas às diferenças e semelhanças existentes entre asbrincadeiras do cavalo-marinho e do bumba meu boi surgem comopano de fundo para análise de um dos instrumentos musicais mais ca-racterísticos do cavalo-marinho, em estudo realizado por Ana CristinaPerazzo (2000). A rabeca no Cavalo-Marinho de Baieux trata do papeldo instrumento dentro do folguedo, através de um estudo de caso que
enfatiza a importância do contexto sociocultural em que o instrumentose encontra inserido. A brincadeira é definida por Perazzo como:
[...] um tipo de espetáculo popular coletivo muito pratica-
do no Brasil, apresentado tradicionalmente no Ciclo do Natal
(24/12 a 06/01), envolvendo poesia, drama, música e dança;
com elementos sagrados, profanos e realização de crítica social.
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É apresentado na forma de quadros independentes (tipo suíte),
com episódios dramáticos, numa sequência de danças prescriti-
vas com coreografia própria, tendo o boi como elemento central
e comum (Perazzo, 2000, p.38).
Segundo Perazzo, “em torno do Boi surgiram lendas, cultos, roman-ces com narrativas heróicas e animais glorificados, além de diversosespetáculos populares, destacando-se entre eles os reisados” (idem).Os reisados se manifestam de diferentes maneiras nas diversas regiõesonde aparecem, apresentando, contudo, “algumas características co-muns como a presença de danças sapateadas, a apresentação de perso-
nagens e o episódio da morte e ressurreição do Boi” (Araújo, 1998 apudPerazzo, 2000, p.39). Apesar de considerar imprecisa a diferença entreas brincadeiras, tal como Santos Moreno (1998), Perazzo ressalta que apresença da rabeca e do pandeiro, as músicas, as danças e um númeromuito maior de figuras caracterizariam o cavalo-marinho, enquanto oBoi teria menos figuras e o bombo ou o violão na sua orquestra. A essadiferenciação, Murphy (1994) acrescenta a presença da cena dos galan-tes e a dança dos arcos, típicas do cavalo-marinho.
Os efeitos da urbanização também são comentados e apontados pelaautora como responsáveis pelas recentes mudanças na performance dabrincadeira. Espetáculos mais curtos, apresentações em palanques, ouso de microfone, a diminuição ou exclusão de episódios dramáticos,o desinteresse do público, a presença de elementos urbanos na tramasão alguns sintomas de uma brincadeira que, se no passado acontecia“relacionada com os ciclos da agricultura (de acordo com o período deplantio ou de colheita de safra)”, hoje faz suas apresentações “em qual-
quer época em que o grupo seja contratado” (Perazzo, 2000, p.126).Sobre a música, também dedicou-se Gustavo Vilar Gonçalves
(2001), em seu Música e movimento no Cavalo-Marinho de Pernam-
buco. No intuito de compreender a brincadeira, o autor descreve umadelas e faz uma análise do papel da música no folguedo. Partindo des-sa linguagem “enquanto elemento social que consegue vencer o tempo,transformando-se muitas vezes de forma lenta” (Gonçalves, 2001:34),
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em direção a uma compreensão mais ampla sobre a própria dinâmica dabrincadeira, são destacados o sincretismo cultural e o sentimento ritual,como base de uma compreensão cíclica da vida. Segundo Vilar:
[...] a música inicia e finaliza o ciclo da brincadeira, permeia
suas estruturas internas, alimenta o espírito dos personagens,
saúda os Santos Reis do Oriente, envolve o público e os folgazões
na roda do mergulhão, é elemento vital para vencer a madrugada
e amanhecer o dia fazendo o Boi morrer e renascer (Gonçalves,
2001, p.34).
Assim como Perazzo e Santos Moreno, Gonçalves também ressaltaque a singularidade do folguedo passa pelo seu caráter dinâmico. “Criar,recriar e transformar são movimentos constantes no cavalo-marinho,onde a interpretação não se opõe ao real, mas apresenta ao público acapacidade da metamorfose mental através da liberdade de imaginar omundo” (Gonçalves, 2001, p.34). No entanto, ao longo de dez anos —intervalo de tempo em que esse mesmo grupo de cavalo-marinho foiestudado por Murphy — as estruturas musicais, como afirma o autor,
não teriam se modificado.Se a ênfase atribuída ao caráter dinâmico da brincadeira, tal como
afirmam tantos autores, é o que faz com que o cavalo-marinho esteja vivo, caberia perguntar afinal o que se modifica e como se modifica.Considerando a quantidade de aspectos que atuam sobre a brincadeira,apontados por Gonçalves (2001), como: as dificuldades de sobrevivên-cia dos brincadores, a perda do caráter ritual, a redução do tempo dasapresentações, a incorporação de mulheres à brincadeira, o interesse
cada vez maior dos artistas da cena musical pernambucana pela riquezaestética do folguedo, poderíamos então nos perguntar até que ponto to-das essas transformações se manifestam na música, na dança, na poesia,na brincadeira de maneira geral? E em que medida refletem, comentam,projetam algo sobre a realidade a sua volta?
Com a intenção de compreender o significado e a dinâmica da brin-cadeira para aqueles que dela participam, uma abordagem antropológi-
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ca da estética do cavalo-marinho é no que consiste a minha contribui-ção a esse debate. Através de um estudo das categorias estéticas nativasque orientam o gosto, essa construção social capaz de revelar os moti-
vos de determinadas escolhas compartilhadas por uma comunidade debrincadores, acredito ser possível atingir uma camada importante parao entendimento da brincadeira.
O prazer estético não é inerente ao objeto. Geralmente, é o resulta-do de uma experiência processual, construída histórica e culturalmente.Seu sentido e valor encontram-se tecidos às próprias relações sociais.Por isso, um discurso genérico sobre a arte ou a estética, principalmen-te em relação às culturas que não compartilham deste conceito ou da
história deste conceito, não parece muito eficiente se não for levada emconsideração a compreensão estética nativa do fenômeno. Assim comoum discurso que nega a existência da experiência estética, em defesa deum relativismo cultural exacerbado, leva ao risco de serem expropriadasdeterminadas sensibilidades que podem estar traduzidas sob outros ter-mos, revelando a transculturalidade dessa experiência7.
Uma abordagem antropológica da estética, portanto, deve ser o re-sultado de um processo de relativização de conceitos e experiências que
permita religar os campos da reflexão e da ação, frequentemente tidoscomo separados, além de uma investigação profunda sobre o significa-do das qualidades sensíveis da percepção, expressão e cognição nativa(Lagrou, 1998).
BRINCADEIRA – entre o DESMANTELO E A CONSONÂNCIA
Se os meios de expressão artística de um grupo encontram-se ligados àconcepção de vida que os anima, estudar uma forma artística significaestudar uma sensibilidade (Geertz, 1983). Com o objetivo de esclarecero significado dessa experiência, através do que ela representa para os
7 O debate aprofundado sobre a universalidade ou particularidade do conceito e da experiênciaestética encontra-se em Aesthetics is a cross-cultural category (Weiner, 1994). Mais adiante,voltarei a ele.
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brincadores do Cavalo-Marinho de Biu Roque, o conceito de brincadei-
ra precisa ser compreendido com base nas categorias consideradas poreles de fundamental importância, dentro e fora de uma roda de cavalo-
-marinho. A brincadeira e a vida encontram-se aqui dispostos de formaatravessada, no que diz respeito aos padrões éticos e estéticos, exigindocuidados semelhantes e reorganizações constantes.
Da Matta (1997), ao referir-se ao Carnaval, já ressaltava que, assimcomo o verbo cantar , “o verbo brincar está cheio de possibilidades me-tafóricas no Brasil. Assim, brincar significa também relacionar-se, pro-curando romper as fronteiras entre as posições sociais, criar um climanão verdadeiro superimposto à realidade” (1997, p.144). Compreender
os traços e as nuances que compõem essa experiência é o objetivo prin-cipal aqui.Sendo assim, em primeiro lugar é importante esclarecer que a brin-
cadeira da qual estamos tratando não consiste num divertimento pro-priamente infantil. O número de crianças participando inclusive é pe-queno se comparado ao de jovens, adultos e senhores. No entanto, aidentificação na própria infância do despertar para a brincadeira, porparte da maioria dos brincadores, aponta para uma característica im-
portante que costuma constituir um vínculo que se inicia na infância,atravessa a adolescência, se consolida na vida adulta e, muitas vezes,chega até a velhice. Outra característica importante e que aponta paraum dilema que ela vem enfrentando atualmente diz respeito ao futuroda brincadeira, uma vez que a falta de interesse dos brincadores mais jo-
vens, associada ao surgimento de novas formas de divertimento locais,tem prejudicado a sua continuidade.
Portanto, nos últimos tempos, o cavalo-marinho se transformou em
“brincadeira de gente velha”, afirma Biu Roque. Demanda muito tempoe interesse para que se adquira algum conhecimento. Muitos brincado-res admitem saber muito pouco diante da enorme quantidade de toa-das, versos, figuras e danças que o cavalo-marinho é capaz de reunir. Porisso, quando se referem à própria juventude, o fazem com certo demé-rito, como sendo um tempo em que não se tinha a verdadeira dimensãoda complexidade da brincadeira.
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Porque exige um considerável grau de interesse, a “brincadeira tam-bém é coisa séria”, segundo Manoel Vicente avares, mais conhecidocomo Mané Deodato8, pandeirista e toadeiro do Cavalo-Marinho deBiu Roque. Ganha conotação de trabalho, obrigação, ofício, saber, he-rança. Muitos brincadores costumam evocar, quando se referem ao seuprocesso de aprendizado, a importância de um parente, amigo, vizinho,responsável por facilitar a aproximação com a brincadeira, deixandocomo legado o compromisso com a sua continuidade. Por isso, ninguémbrinca apenas pelo dinheiro, embora alguma remuneração seja semprebem-vinda, pois, mesmo quando insuficiente, complementa o salário,confere valor simbólico ao brincador e, assim, reforça o seu prazer com
a brincadeira.A falta de reconhecimento, esta sim, costuma ser um dos principaismotivos que faz emergir no discurso dos brincadores algum questiona-mento em relação à continuidade no vínculo com a brincadeira. “Este éo último ano que eu brinco!” é depoimento comum entre os brincadoresde cavalo-marinho. Pagamento atrasado ou considerado injusto torna--se motivo de grandes discussões. É frequente ocorrerem brigas pelafalta de respeito, cuidado ou consideração entre os brincadores e destes
em relação à brincadeira. A política do “quem faz por menos”, posta emprática pelas prefeituras da região, tem sido um dos principais fatoresda disseminação do sentimento de desvalorização do cavalo-marinhoenquanto brincadeira nas cidades da Zona da Mata Norte, onde cos-tumam brincar. Para não perder um contrato, alguns grupos têm acei-tado brincar por quantias tão irrisórias que a manutenção dos trajes,das máscaras, da armação dos bichos e dos instrumentos, assim como opagamento dos brincadores, se torna inviável. Fato que tem repercutido
no compromisso dos brincadores com a brincadeira.“A brincadeira é um divertimento. Uma festa pro povo sorrir e brin-
car”, segundo Mané Roque. A brincadeira encontra-se associada à bo-
8 Mané Deodato nasceu em 10 de maio de 1927, em Aliança, e veio a falecer em 19 de abrilde 2003, em São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do Recife. Junto com Biu Roque,era responsável pelo canto no cavalo-marinho, revelando intimidade e complementaridadede vozes, fruto da forte amizade e longa experiência de tocarem juntos, o que chamava aatenção já no Cavalo-Marinho do Mestre Batista, de Chã de Camará (Aliança, PE).
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emia. Quem brinca aprecia um tipo de diversão que envolve o riso. Obrincador é alguém que, mesmo desejando parar de brincar, quandochega a época não consegue, “porque os nervo agita”, afirma SebastiãoPereira de Lima, mais conhecido como Martelo, Mateus do Cavalo-Ma-rinho de Biu Alexandre, de Condado.
O brincador, aquele que dança, toca ou coloca figura, também é cha-mado de sambador ou folgazão. Esta última categoria, derivada da ca-tegoria folguedo, foi elaborada oficialmente pela Comissão Nacional deFolclore, em 1953. Referindo-se a todo fato folclórico, como imbuído daideia do folgar, acabou por generalizar os motivos e significados dos bai-lados, dos autos, das danças dramáticas e dos espetáculos populares em
geral (Benjamin, 1999). Por ser mais abrangente em significados, masprincipalmente porque é mais utilizada entre os integrantes do cavalo--marinho, privilegiaremos aqui a categoria nativa brincador .
O brincador é aquele que gosta de festa, de farra, de samba. Nãopode viver sem isso. Precisa da ordem e da desordem que a brincadeira coloca a sua disposição. A vadiação, o namoro, a cachaça, a amizade,o fumo, a alegria são elementos recorrentes nas toadas da brincadei-
ra. O Doutor da Bebedeira, uma das figuras da brincadeira, canta essa
condição:
( D B)
O beber me alegra muito, e o fumar me dá prazer
Quem não fuma, quem não bebe, que alegria pode ter?
Pois da vela eu quero a fta, da fta eu quero o caixão
Eu só peço, quando eu morrer, bote um copo em minha mão
Só peço, quando eu morrer, me enterre no meio do terreiro
E bote um braço de fora, pra eu bater o meu pandeiro
Associações do profano com o sagrado, no entanto, também sãomuito comuns entre os brincadores. “A brincadeira é coisa de gente sa-fada”, pelo teor grotesco, irônico, pornográfico e violento das piadas.Ao mesmo tempo, “a brincadeira é coisa divina”. Louva os santos, pede
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bênçãos, entoa rezas. Há quem diga que “o diabo chega até a beirada daroda, mas não entra com medo da rabeca e da bage que rapam em cruz”.
A brincadeira é uma prática que implica cuidado. O cuidado é orien-tado por dois juízos de valor considerados referenciais nessa região: odesmantelo e a consonância. Qualidade negativa que expressa falta decuidado, respeito e amor, o desmantelo é sinônimo de desafinação, de-sagregação, descontrole. Pode abalar o desenvolvimento de uma brin-
cadeira, assim como a própria vida. Crises de alcoolismo, brigas ou de-monstrações de impaciência, agressividade e intolerância, assim como opagamento desigual ou considerado injusto e o descuido com o materialde cena numa brincadeira, são sintomas de uma relação desmantelada.
A consonância, por sua vez, é qualidade positiva que expressa o cui-dado, a atenção e a escuta que a relação entre os brincadores deve en- volver. Manifesta-se também na cadência e no andamento que o sambaprecisa ter para ser considerado um bom samba. Curiosa é a referênciaque essa expressão, utilizada também no cotidiano, faz à linguagem mu-sical, atribuída geralmente ao conjunto agradável de sons, à sua afinida-de, harmonia, conformidade e acordo (Buarque de Holanda, 1986). Ocuidado também orienta a capacidade de improviso:
O improviso é que nem um roçado, porque para se começar
um roçado é daquele jeito ali, oie. á o mato, o roçado e a quei-
mada. E está esperando por quem? Por Deus, que manda a chu-
va. Quando chover, não vai plantar o feijão? E, depois do feijão
plantado, não vai limpar? E, depois de limpo, não quer colher? Se
chama poesia. Sai da memória, sai da cadência, sai da plantação.
Porque a pessoa que não tem poesia, não tem memória, é uma
pessoa sem gosto, sem prazer (Inácio Lucindo, 2001, depoimen-to concedido à autora).
A definição de Inácio Lucindo da Silva, conhecido com Mestre Iná-cio, do Cavalo-Marinho de Camutanga, sugere que a relação com o im-proviso equivale à relação com a terra, passando ambas pelo cuidado.Cuidar da terra e da brincadeira envolve uma capacidade e habilidade
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estéticas. A poesia vem do gosto pela vida, da possibilidade que o sujeitotem, ao perceber a fertilidade ou potencialidade do meio que o cerca,de ser o instrumento do samba9. É uma questão de saber olhar, tratar,cuidar, lidar. É dessa forma que o conhecimento se constrói. O prazerde brincar vem muito do prazer de brincar com o outro. Um sambabem-feito, consonante, é aquele assegurado pela experiência que brincar
junto, há muito tempo, proporciona.O cavalo-marinho é considerado por muitos brincadores uma
“brincadeira de presença”. A capacidade de atrair pessoas para seu en-torno teria sido inclusive o motivo de a roda ter se tornado a sua formade organização espacial por excelência. A abundante quantidade de in-
formação visual, melódica e coreográfica e a constante possibilidade donovo, considerando as dinâmicas condições sob as quais a brincadeira
se organiza, contribuem para a ideia de que o cavalo-marinho é feito porsujeitos em movimento. Versos e gestos novos são sempre bem-vindos.Segundo Martelo:
Um brincador é bom quando sabe brincar. Porque, quando
aprende a brincar, todo mundo dá valor. Um Mateus que só sabe
de uma loa não é Mateus. Que ele brinca ontem e diz aquela loa.Hoje ele brinca e diz aquela mesma loa. Não pode, tem que ser
outra. E outra. E sempre outra (Martelo, 2001, depoimento con-
cedido à autora).
Na brincadeira, a beleza é o resultado de uma relação criativa que seexpressa através do cuidado com a brincadeira. E a brincadeira, o resul-tado de uma relação de cuidado que se expressa de maneira criativa com
a vida. er uma brincadeira, como afirma Biu Roque, significa “ter umaalegria na vida”.
9 Samba, nessa região, é sinônimo de brincadeira, festa, farra, noitada. Também é qualidadedançante, determinada pela energia ou esforço necessário a ser empregado. Nessa região,a palavra também é utilizada para designar um estilo poético de improviso presente no Ma-racatu de Baque Solto, assim como em alguns cavalos-marinhos. É considerado um dosestilos mais difíceis de improvisar e que, geralmente, identica o melhor sambador.
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POSSÍVEIS ORIGENS DA BRINCADEIRA
O cavalo-marinho é uma brincadeira que faz parte do conjunto de reisa-
dos que integram o ciclo de festas natalino, comum a muitos estados doBrasil. A palavra reisado, segundo Mário de Andrade (1982), deriva dereis e foi uma masculinização brasileira da palavra portuguesa reisada,que significa rapaziada ou patuscada, coisas próprias de rapazes ou pa-tuscos. O reisado designaria uma farra ou ajuntamento festivo de genteque se reúne para dançar e cantar. Segundo Benjamin (1989), os reisa-dos são formas de dramatização do cotidiano ou de transposição para aforma dramática de romances e xácaras, formas literárias populares tra-
dicionais em verso. Cada assunto dá origem a um episódio conciso queé representado em meio a uma série de episódios que, por sua vez, vêm aconstituir o folguedo. Um núcleo básico principal vai sendo preenchidopor temas pertinentes ou não ao assunto original, os quais, com a dinâ-mica cultural, muitas vezes passa de principais a secundários, podendomesmo chegar a desaparecer.
A origem do cavalo-marinho reúne algumas hipóteses identificadasno discurso dos brincadores e em trabalhos de autores que se dedicaramao tema. O objetivo aqui não é o de confrontá-las, mas de observar deque forma contribuem para o entendimento dos sentidos da brincadeirano tempo presente. A hipótese mais difundida sustenta-se numa inter-pretação histórica de que a brincadeira teria se originado nas senzalas.Assim como tantas outras danças tradicionalmente atribuídas aos ne-gros, o cavalo-marinho teria surgido, no Brasil, como parte do processode adaptação e resistência dos escravos submissos à violenta realidade
imposta pelo sistema colonial escravista. A brincadeira teria sido a for-ma pela qual se deu a reconstituir as relações de solidariedade entreos negros, vindos de diferentes partes da África, com línguas e costu-mes diversos, através da manutenção ou reelaboração de seus cantos edanças.
Nesse caso, a brincadeira, que costumava ser realizada todos os sá-bados, teria se tornado cada vez mais frequente, a ponto de a “confusão”ter chamado a atenção do senhor, que, em represália, teria exigido a
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retirada de algumas figuras e a inclusão de outras como condição paraque a brincadeira pudesse continuar a acontecer. Essa explicação justifi-ca a presença de um Capitão, que lembra quem é o verdadeiro dono dasterras, e dos Galantes, que, segundo muitos brincadores, representam afamília real portuguesa.
Ligada a essa hipótese encontra-se a justificativa do nome cavalo-
-marinho. De acordo com alguns brincadores, a brincadeira teria sidoassim nomeada por conta da figura do Capitão Marinho, abreviação oucorruptela invertida de Capitão Marinho do Cavalo. A figura, que re-presenta um grande proprietário de terras, tem um papel significativoao longo da brincadeira: organiza a chegada das figuras, representa a
autoridade máxima, possui o apito nas mãos e, na maioria das vezes,é “colocada” pelo Mestre. Com grande apelo entre os brincadores, essahipótese sugere que todas as possíveis coerções sofridas pela brincadei-ra, referentes a espaço e tempo, seriam fruto de uma negociação entrebrancos e negros: a adequação ao calendário cristão, a consequente in-corporação de temas sagrados, a forma da roda e a divisão entre brinca-dores e não brincadores — quando, originalmente, todo espaço possívele todas as pessoas presentes fariam parte da brincadeira.
O humor, nesse caso, seria uma forma de burlar as imposições ouinterdições. O fato de todas as figuras de autoridade, tais como o Solda-do da Gurita (DVD – track 4), o Mestre e o Capitão, serem altamente ri-dicularizadas quando aparecem na roda, através de piadas e bexigadas,é um exemplo disso. Uma interpretação que também sugere a existênciade um acordo firmado entre brancos e negros e ainda explica o papel,às vezes secundário, da figura do Capitão é a que vai considerá-lo nãocomo autoridade máxima, mas como uma espécie de capataz. endo se
interessado pela brincadeira, essa figura na realidade teria aderido aogrupo de brincadores a ponto de dar o seu nome a ela. Cabendo-lhe,no entanto, apenas um papel restrito, como forma de lembrar-lhe que,ao menos no momento da brincadeira, ele não tem o poder que tem oupensa ter.
Outra hipótese sobre a origem da brincadeira diz respeito ao seuaspecto sagrado. É comum ouvir entre os brincadores, quando ques-
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tionados sobre as singularidades do cavalo-marinho, uma oposição aoMaracatu de Baque Solto, brincadeira também muito popular na re-gião. Apesar de ambas as brincadeiras compartilharem muitos de seusbrincadores, o aspecto simbolicamente redentor do cavalo-marinhofaria dele uma brincadeira sagrada ao evocar o nascimento de Jesus,enquanto no Maracatu predominaria o aspecto profano, através da re-lação com a Jurema e a presença dos caboclos de lança. Numa roda decavalo-marinho, o Diabo só chegaria até a beirada, com medo da formacomo são tocados alguns instrumentos, como a rabeca e a bage, “emcruz”. A primeira, espécie de reco-reco cilíndrico, apoiada no ombro,é tocada mediante a fricção de uma baqueta de cima para baixo e vice-
-versa, enquanto a segunda, semelhante ao violino, mas com afinaçãodiferenciada, é tocada com arco que percorre horizontalmente suas cor-das. Ambos os instrumentos, ao serem tocados, invocariam a imagemda cruz, e, por isso, todos os perigos e as influências negativas estariamseguramente afastados da roda.
Essa hipótese encontra-se associada a uma interpretação difusionis-ta de que o cavalo-marinho teria surgido como uma forma de diverti-mento e louvação na corte portuguesa. Chegando ao Brasil, teria caído
nas graças do povo, transformando-se ao assimilar características locaise alterando sua forma e seu significado. A presença de alguns elementos,como a dança dos arcos (DVD – track 5), claramente uma homenagema São Gonçalo do Amarante, santo português casamenteiro e redentordas prostitutas, é um indício que dá corpo a essa hipótese, que encontratambém muita repercussão entre os brincadores.
Utilizando-se de princípios explicativos semelhantes, encontramos,entre os estudiosos do folclore, uma interpretação que enfatiza a relação
de derivação do cavalo-marinho em relação a outras brincadeiras; nocaso, o cavalo-marinho seria uma variante do bumba meu boi. A pre-sença de alguns personagens em comum e a inexistência de um autopernambucano, correspondente ao do Boi presente em outros estados,são os principais argumentos para essa explicação. Outra informaçãorelevante é a de que, embora não se saiba ao certo desde quando e porque exatamente, muitos grupos passaram a introduzir o nome Boi em
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meio ao nome oficial do cavalo-marinho, como, por exemplo, Cavalo--Marinho Boi Brasileiro, Cavalo-Marinho Boi Pintado, Cavalo-MarinhoBoi Matuto, etc. Algumas exceções podem ser encontradas, tais como oCavalo-Marinho Estrela do Oriente, de Mestre Inácio de Camutanga, eo Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, de Biu Alexandre, de Condado, oque revela o quanto no cotidiano ainda permanece o hábito de relacio-nar o cavalo-marinho ao lugar onde costuma ser realizado ou encontra--se sediado, assim como ao dono/Mestre do grupo.
Brincadeira “brasileira por excelência”, segundo Mário de Andrade(1982), o Boi encontra-se presente no País inteiro. Mistura do negro, dobranco e do índio, correspondente ao culto da vaca na Índia, do touro
na Espanha e do búfalo nos Estados Unidos, o bumba meu boi seriauma espécie de tragédia grega brasileira. Celebração da vida e da morte.Ode à fertilidade. Hino à valentia e à liberdade (Cascudo, 1982; Andra-de, 1982; Borba Filho, 1966; Benjamin, 1989).
Essa interpretação, que, pela relação de derivação, não encontra tan-ta repercussão entre os brincadores — que costumam defender muitomais o inverso, se por acaso a relação de derivação existe —, ampara-seem fontes históricas que se referem à brincadeira do Boi, e não à do
cavalo-marinho, mas a partir de elementos que, na maioria das vezes,são comuns aos dois: uma estrutura espaço-temporal semelhante, figu-ras em comum, toadas e versos parecidos e, às vezes, mesmo idênticos.No entanto, a relação de derivação cavalo-marinho-Boi não deve ser detodo descartada. Sem dúvida, o Boi é brincadeira muito mais recorren-te do que o cavalo-marinho na Região Nordeste e no Brasil como umtodo. Câmara Cascudo, por exemplo, descreveu o personagem comopertencente à brincadeira do Boi, citando Pereira da Costa e, em segui-
da, Gustavo Barroso:
O cavalo-marinho, trajando de Capitão, com o seu chapéu
armado e dragonas, aparece montado a cavalo, mas fingidamen-
te, com uma armação que prende a cintura, para representar o
animal [...] É um mestiço alto, de chapéu armado com plumas,
casaco de enfeites dourados, montado num cavalo de pau, com
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saiote comprido que envolve as pernas do indivíduo (Cascudo,
1982, p.262).
Apesar da falta de acordo entre brincadores e pesquisadores e das visíveis semelhanças entre as brincadeiras, são inegáveis as particulari-dades do cavalo-marinho. Em relação aos instrumentos utilizados, sóele possui a rabeca e a bage, por exemplo. Em relação ao ritmo predomi-nante, o pandeiro e a bexiga marcam dois tempos fortes bem caracterís-ticos, o chamado baião de cavalo-marinho, ao longo de toda a brincadei-ra. Mesmo quando outros gêneros musicais são tocados na roda, comoo coco e o samba, logo são enquadrados num ritmo identificado pelos
seus brincadores como cavalo-marinho. Em relação ao papel da dança eda música, a presença do mergulhão e da dança dos arcos enfatiza a di-ferença entre as brincadeiras, que também dedicam espaço e tempo di-ferentes a determinadas figuras. E, principalmente, com relação ao Boi,
já que a ausência de um enredo principal que concentre nessa figura omote da história faz com que todas as figuras da brincadeira tenhamimportância semelhante.
As três hipóteses sobre a origem da brincadeira, combinadas ou
não, podem ser encontradas entre os brincadores de Cavalo-Marinhoda Zona da Mata Norte pernambucana. A defesa de sua singularidadecomo brincadeira, no entanto, parece pertinente em dois sentidos. Pri-meiro, porque o fato de o cavalo-marinho se constituir como um con-
junto de figuras, toadas e danças não deve servir para que o pesquisadorreduza suas características ao que existe nele de semelhante com outrasbrincadeiras. A ênfase num discurso que busca a sua diferenciação deveser considerada, já que o contrário pode levar ao risco de serem obscu-
recidas ou subjugadas especificidades de uma manifestação.
Os autores repetem muito os mesmos títulos de reisados, o
que importa sempre na popularidade maior de alguns. Mas fica
também uma certa sensação de que os descritores dessa parte do
nosso folclore cavalgaram bastante uns sobre os outros (Andra-
de, 1982, p.50).
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Segundo, porque, se no cavalo-marinho chama a atenção a diversi-dade de figuras, toadas e danças que surgem na roda ao longo da noi-te, a variação de estilos elaborada por cada brincador, sob a forma do pantinho, o saber em constante processo de formação e transformaçãoe a própria configuração transitória da brincadeira, parece justo que ocavalo-marinho abandone o status de variante, mesmo que autônoma,do bumba meu boi e passe a ser compreendido a partir do seu própriocorpo, enquanto gênero musical e coreográfico particular. Sem que issosignifique negar o fato de que todas as brincadeiras da região compar-tilham elementos, formando um verdadeiro esquema circular de trocasmelódicas, poéticas, dramáticas e coreográficas. Afinal, nascida de pro-
cessos de negociação, transformação ou derivação, a brincadeira pare-ce envolver sempre uma construção de identidade em movimento, queabrange e incorpora a alteridade.
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UMA BRINCADEIRA DE CAVALO-MARINHO –
RECORRÊNCIAS E SINGULARIDADES
A brincadeira do cavalo-marinho costuma ser realizada durante as fes-tas de cidade, nas ruas, em celebração aos santos católicos ou em datascívicas comemorativas. Concentrando-se entre os meses de dezembroe janeiro, quando os contratos são mais numerosos e garantidos pelas
prefeituras locais da Zona da Mata Norte de Pernambuco, as brinca-deiras acontecem em meio a um conjunto de atividades que envolvemmissas, procissões, jogos de azar, comidas típicas, parques de diversão etrios elétricos, integrando dessa forma o chamado ciclo natalino.
Dentro dos engenhos, o período considerado mais apropriado paraa sua realização se estendia do primeiro sábado de julho até meados domês de março, época da entressafra da cana-de-açúcar e da estiagemdas chuvas, o que facilitava sua realização, uma vez que a brincadeira
acontece ao ar livre (Murphy, 1994).Num passado remoto, no entanto, tal como afirmam alguns brin-
cadores, era comum brincar cavalo-marinho todo sábado, durante oano inteiro, nos terreiros de casa. Nesse contexto, cada brincador tinhadireito a uma brincadeira, os chamados ensaios, que, ao contrário dasapresentações contratadas, não eram remunerados, mas acompanha-dos de comida e bebida, geralmente oferecidas pelo dono da casa. Maisrecentemente, já respeitando o ciclo acima mencionado, a brincadeira
costumava ser contratada por comerciantes locais, bicheiros e pequenosproprietários da região.
O cavalo-marinho costuma acontecer no meio da rua, num espaçode circulação intensa, sobretudo em dias de festa. Não possui duraçãonem lugar fixo para acontecer. É um acordo entre os brincadores e oorganizador da festa, chamado também de dono da casa, que vai de-cidir a sua localização e duração. No caso da duração, é fator determi-
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nante o interesse da audiência, assim como a disposição do grupo debrincadores.
Sua forma de organização privilegiada é a roda. A localização costu-ma levar em conta a proximidade de alguma espécie de comércio, o quecontribui para a permanência do público que, ao longo da noite, conso-me comida e, principalmente, bebida. O banco costuma se posicionarde frente para uma rua comprida, favorecendo a chegada e a saída dasfiguras. O chão considerado mais adequado é o de asfalto ou paralele-pípedo, mas, quando inevitável, a brincadeira acontece num chão deterra batida, para desespero dos toadeiros, que dependem da resistênciada sua voz. Num tipo de brincadeira extensa como essa, “comer poeira”
prejudica muito o desempenho vocal ao longo da noite.A brincadeira raramente ocupa o centro da festa. Não por falta de vontade dos seus brincadores, mas por conta de uma determinação queparte da própria organização da festa, indicando o lugar que cada brin-cadeira terá dentro dela. Esse aspecto possibilita a compreensão sobre olugar simbólico que o cavalo-marinho vem ocupando nas festividadesdas quais ele participa. Seu caráter periférico só costuma perder para aciranda. Ao menos foi isso que pude observar nas festas nas quais estive
presente. A diferença é que a ciranda costuma contar com amplificação,através de carro de som e microfone, o que contribui para reunir bastan-te gente em rodas que variam de tamanho, mas quase sempre dificultamo acompanhamento sonoro da brincadeira vizinha, contribuindo para adiminuição da resistência física dos brincadores de cavalo-marinho aolongo da noite.
O número de grupos de cavalo-marinho em atividade na Zona daMata Norte de Pernambuco varia de acordo com diversos fatores: inte-
resse dos seus integrantes pela sua manutenção, condições de contrato,relações entre os brincadores, entre outros aspectos. No período de re-alização desta pesquisa, foram identificados dez grupos em atividade,dos quais foram contactados apenas cinco. Um de Itaquitinga, um deAliança, um de Condado, um de Camutanga e um de Olinda, RegiãoMetropolitana do Recife. Esses grupos são formados por quinze a vinteintegrantes, ligados por relações de parentesco, vizinhança ou amizade.
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59Uma brincadeira de cavalo-marinho — recorrências e singularidades
A manutenção dos trajes, das máscaras, das armações de bichos,mas também da relação entre os brincadores são de responsabilidadedo dono, que às vezes acumula a função de Mestre da brincadeira. Adiferença entre essas duas funções é que o dono costuma cuidar dasquestões mais administrativas, como fechamento de contratos e reali-zação de pagamentos, enquanto o Mestre atua dentro da brincadeira,como organizador da chegada das figuras, na interlocução com elas ecom os músicos do banco. Embora sejam atribuições muito distintas, écomum encontrá-las centralizadas numa mesma pessoa, o que costumasobrecarregá-la, uma vez que a manutenção de uma brincadeira comoessa é tarefa bastante difícil. As mudanças, no que diz respeito ao tempo
e ao espaço de realização do cavalo-marinho, assim como no seu re-conhecimento, nas festas de cidade, seriam responsáveis pelo aumentona dificuldade dessa manutenção, sempre destacada pelos brincadorescomo verdadeiro obstáculo para sua realização.
Cada brincadeira é única. A ordem das figuras, as loas declamadas,as toadas que vão se sucedendo e anunciando a evolução das danças, aparticipação da audiência, o ambiente festivo são alguns dos fatores quedeterminam a dinâmica de uma brincadeira de cavalo-marinho que,
mesmo respeitando regularidades, é tecida com as linhas do improviso,o que contribui para produção de inesperados. O cavalo-marinho seestrutura a partir de uma constante troca de informações, afinidades ediferenças veiculadas, principalmente pelo trânsito de brincadores. O
vínculo de um brincador com um grupo deve durar ao menos uma tem-porada, ou seja, um conjunto de festas previamente acordada naqueleano. Mas, como esses compromissos são suscetíveis a mudanças inespe-radas, por alterações no contrato por parte das prefeituras, por exemplo,
os brincadores também podem deixar de brincar por motivos variados,que podem incluir desentendimento pessoal com o dono ou Mestre, re-muneração insuficiente ou períodos de maior ou menor envolvimentocom a bebida.
A participação da audiência, interferindo, incentivando, reclaman-do, provocando, também altera o desenvolvimento da brincadeira. Éimportante destacar igualmente que as danças, as músicas e os diálo-
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gos ali presentes costumam ser transmitidos oralmente, o que significaque, mesmo postas em prática técnicas específicas de memorização quegarantem a sua continuidade histórica, essas informações costumamse alterar com relativa facilidade. A maioria dos brincadores é semia-nalfabeta. No máximo, sabe escrever o próprio nome e fazer pequenasoperações matemáticas, geralmente sem reconhecer graficamente osalgarismos. Por isso, a memória, a escuta, o interesse e a dedicação àbrincadeira encontram-se intensamente relacionados e são considera-dos de grande importância durante o processo de aprendizado, fazendocom que o conhecimento e o domínio da escrita e da leitura seja algosecundário.
A estrutura do cavalo-marinho parece falar de uma identidade quese constrói com alteridade. A permeabilidade constitutiva das artes dra-máticas se deve ao fato de que elas dependem da presença dos sujeitosque a integram para acontecer, assim como do contexto no qual se en-contram inseridas e pelo qual costumam ser influenciadas. O surgimen-to de novas formas de diversão na região e o lugar que o cavalo-marinho
vem ocupando no contexto das festas locais também coloca a brincadei-ra num lugar de constante negociação. Sua estrutura, assim, encontra-se
como sempre suscetível a mudanças.A brincadeira é um espaço de experimentação, de transposição de
limites, de reordenação e de reafirmação de valores estéticos que recon-figuram o todo. Por isso, o conceito de fatalidade móvel , discutido porOrtega y Gasset, encontra no cavalo-marinho uma possível representa-ção. Essa noção dá conta de que:
A limitação ou finitude constitutiva do homem não se pa-
rece em nada com as demais finitudes que existem no Universo,mas que tem o paradoxal e inquieto caráter de ser uma finitude
indefinida. Ninguém pode dizer do que o homem é, em absoluto,
incapaz nem correlativamente do que será capaz. Cabe somen-
te delinear em cada instante a fronteira momentânea entre sua
impotência real e a onipotência que imagina (Ortega y Gasset,
1991, p.87).
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61Uma brincadeira de cavalo-marinho — recorrências e singularidades
Esse conceito, “graciosamente contraditório”, articula finitude compossibilidade, impotência com a onipotência, o ser com o não ser paratratar da dimensão criativa da vida. Na mesma obra, o autor afirma quetão antigo quanto o primeiro utensílio de trabalho é a máscara. Isto é,a partir do momento em que o homem adquiriu a consciência da re-alidade na qual se encontrava, deu-se conta também da possibilidadede transformá-la ou percebê-la de uma perspectiva diferente. rabalho,brincadeira, sociedade seriam, portanto, formas de organização movi-das por essa fatalidade móvel , mediante regras ou regularidades criadase recriadas, num processo de constante transformação.
O cavalo-marinho é o resultado de uma interação entre diversos fa-
tores. Uma combinação particular e histórica que propicia, a cada noite,resultados diferentes. A presença e a relação que se estabelece com abrincadeira são condições fundamentais para a sua realização. Por isso,uma transitoriedade estrutural , aqui, deve ser compreendida como ele-mento altamente constitutivo e determinante de um tipo de prática cul-tural que tanto depende dos sujeitos envolvidos.
A partir deste momento, proponho fazer uma relação dos elementosque constituem as etapas que estruturam o ritmo10 do cavalo-marinho.
Ritmo, e não estrutura, pois, apesar de ambas as noções compartilharema ideia de divisão, o fato de as etapas da brincadeira serem chamadas de partes ou passagens e não implicarem necessariamente em uma sequên-cia predeterminada sugere que um dos elementos mais característicosnum cavalo-marinho é a forma como ele é repartido e interligado ou,ainda, combinado e experimentado a cada noite.
Um cavalo-marinho se inicia com o acerto da brincadeira. Os brin-cadores afirmam que já faz muito tempo que a brincadeira acontece
mediante pagamento. Sem dúvida, ele é sempre insuficiente, principal-mente se levarmos em conta a quantidade de pessoas envolvidas e as
10 Por ritmo, entendemos aqui o que Jean-Jacques Wünenburger (1996) chama de organiza-ção diferenciada e repetitiva de um movimento. O ritmo não é somente um objeto de co-nhecimento, mas o sujeito mesmo do pensamento, na medida em que, longe de ser umfenômeno natural já constituído, sobre o qual é preciso estabelecer a causa, a forma e osefeitos, ele é a matriz espaço-temporal do pensamento mesmo na sua autoafecção e autor-representação. No ritmo encontram-se questões de espaço, de tempo, do eu e do outro, deordem e desordem. Seu estudo é uma reexão sobre a vida do pensamento.
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frequentes discussões decorrentes de seu atraso ou valor. O problemado reconhecimento atribuído ao brinquedo sempre foi tema de conflitonas relações entre brincadores, repercutindo na decisão sobre continuarou não a brincar num determinado grupo. Diferente da época em que sebrincava todo sábado, no terreiro de casa, sem perspectiva de pagamen-to ou contando apenas com a contribuição da audiência. Ou quando,antes ainda, o cavalo-marinho era mais uma brincadeira do “tempo denego cativo”, quando se costumava brincar “pelo amor da coisa”.
Com dia e lugar marcados, o dono do cavalo-marinho pode come-çar a espalhar a notícia. Alguns brincadores merecem visita especial.Outros são avisados por recado enviado através de pessoas próximas.
O papel desempenhado na brincadeira e a qualidade da relação com odono, assim como a dificuldade de acesso ao local de moradia de umbrincador, são alguns dos motivos que podem tornar uma visita absolu-tamente necessária. Para aqueles que moram em outras cidades, o reca-do costuma chegar por telefone, geralmente um orelhão compartilhadopor toda a comunidade.
A visita também pode se dar de acordo com o orgulho do brincador,que pode se mostrar magoado quando sabe de uma brincadeira por ter-
ceiros. Relações mais longevas costumam revelar, frequentemente, essetipo de melindre, que o dono do cavalo-marinho procura, com todo ocuidado, evitar. O cuidado, como vimos, faz parte da relação de confiançaque permeia a brincadeira e começa a se desenhar já na fase do seu acerto.
Outro motivo que merece visita é no caso de doença ou estado defragilidade decorrente do abuso da bebida por parte de um brincador.Muito comum na região é o alto consumo da cachaça. Parte considera-da mais suja da cana, retirada do caldo durante o cozimento (Andrade,
1986), a cachaça é muito barata e acessível. É a bebida, por excelência,que acompanha a brincadeira. No entanto, seu consumo exagerado cos-tuma trazer graves consequências, não apenas para a saúde dos brin-cadores, como também para a sua relação com a brincadeira. A faltade responsabilidade em relação às apresentações ou cenas de absolutodescaso com o próprio instrumento já resultaram em quebra definitivade laços de confiança entre um Mestre e um brincador, por exemplo.
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Fato este que não impediu a visita do Mestre de outro grupo ao referidobrincador na esperança de que ele participasse de sua própria brinca-deira. E mais: que voltasse a tocar e parasse de beber, já que era tão bemconsiderado entre os demais tocadores.
Nessa visita, que pude presenciar, mostrou-se evidente o quanto amanifestação de cuidado desse tipo pode desencadear o processo de re-cuperação do vínculo do brincador com a brincadeira. Essa é uma atitu-de esperada de um dono de cavalo-marinho, que tem o dever de cuidar e conquistar seus brincadores. O contrário costuma gerar uma série dedesentendimentos que, se não forem desfeitos, criam fronteiras intrans-poníveis nos relacionamentos, prejudicando, muitas vezes, a realização
da brincadeira.Com os brincadores devidamente informados, já se pode começar apensar nos preparativos materiais. O traje dos galantes é lavado; os ins-trumentos e as máscaras, reunidas; e as armações dos bichos, apruma-das. Essas tarefas são de incumbência do dono do cavalo-marinho oudo Mestre, quando este acumula a função de dono. Já o traje de Mateuse Bastião; os elementos de cena, como bexigas e chapéus; e os instru-mentos, como a rabeca, merecem o cuidado especial de seus próprios
brincadores.O dia da brincadeira é um dia atípico. Parece nitidamente maior. É
um dia de poucos deslocamentos na casa de Biu Roque, que, no máxi-mo, sai para acertar o horário do caminhão. As horas passam vagaro-samente, enquanto os brincadores chegam, ao longo de todo o dia. Osque moram mais longe e os que são mais íntimos chegam mais cedo,
juntando-se aos parentes de Biu Roque, dentre eles, alguns brincado-res. Comem juntos, jogam dominó, fumam, conversam e trocam piadas.
É comum também acontecer uma roda de mergulhão durante a tarde.Com o cair da noite, chegam os demais brincadores.
Quando Biu Roque ainda morava no Sítio abajara11, pertencenteà Usina Sta. eresa, era num escuro quase absoluto, iluminados apenas
11 No decorrer da pesquisa, Biu Roque se mudou do Sítio Tabajara, área rural do distrito deChã do Esconso, em Aliança, onde permaneceu como último morador , e foi viver nas ruas desse mesmo distrito. O termo rua é utilizado para designar as localidades ou aglomeradosmais urbanizados na região.
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pela luz da Lua e de alguns poucos candeeiros, que os brincadores es-peravam o caminhão, sentados do lado de fora da casa, de frente para acidade de Itaquitinga, vista ao longe — cidade onde acontece a maioriadas brincadeiras desse cavalo-marinho.
A impressão de tempo distendido que se percebe nesses dias debrincadeira tem alguns motivos. Um deles é que o dia num bairro rural,como Chã do Esconso, começa realmente bem mais cedo do que na ci-dade. Os netos de Biu Roque, por exemplo, acordam por volta das duase meia da madrugada para trabalhar no canavial, enquanto os outrosmoradores da casa começam a se levantar por volta das três e meia parapreparar o café, alimentar os bichos, lavar roupa, varrer o quintal, cuidar
da lavoura, entre outras tarefas. Por isso, mesmo que nem todos com-partilhem de todas essas atividades, o hábito de acordar e dormir cedosão comuns na região, e o silêncio do cair da noite costuma estar ligadoa um profundo cansaço pelo que se fez durante o dia e à expectativa peloque a noite ainda reserva.
Embora o caminhão atrase, invariavelmente, com o passar do tem-po, o clima de expectativa vai se adensando. Os mais velhos ficam es-pecialmente quietos, enquanto as crianças e os adolescentes ficam cada
vez mais impacientes. Essa situação rendeu boas conversas, envolvendoassuntos geralmente ligados aos sentidos da brincadeira.
A chegada do caminhão desencadeia toda uma movimentação obje-tiva e cuidadosa, tanto com os elementos cênicos quanto com as pesso-as, as que vão e as que ficam. Maria José Antônio, mais conhecida comoD. Maria, a mulher de Biu Roque, acompanhada de uma filha, nunca vaiàs brincadeiras, e isso costuma gerar discussões acaloradas por causa dainsegurança que representa ficar em casa sem uma figura masculina, já
que ninguém se dispõe a tanto, muito menos Biu Roque, apesar de algu-mas tentativas sempre dissuadidas pela maior parte do grupo.
O sítio de Biu Roque, de onde o cavalo-marinho saiu muitas vezes,é o mais afastado do centro de Chã do Esconso, distrito pertencente aomunicípio de Aliança. Fica praticamente cercado por canaviais e nãotem eletricidade, o que dificulta muito o acesso e a solução de possíveis
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imprevistos. Esses fatores é que tornavam, antes da sua mudança para arua, quase toda partida do cavalo-marinho conflituosa, mas inevitável.
A subida no caminhão, com a disputa pelos melhores lugares, re- vela uma distribuição espacial que quase sempre é a mesma: mulheresna boleia, crianças e homens mais velhos em pé na parte da frente eos homens mais jovens nos cantos e amontoados na parte traseira. Ini-cialmente belo e impactante, debaixo de um céu estrelado por entre oscanaviais, o deslocamento em direção à festa vai se transformando. Amaioria dos motoristas corre muito nas estradas, provocando frio, alémde sobressaltos causados pelo impacto dos buracos no chão. udo issoé amenizado quando o samba começa, de forma entusiasmada, ainda
dentro do caminhão.Depois de passar por muitos bairros e municípios próximos parabuscar os demais brincadores, o fim da viagem se dá na entrada prin-cipal da cidade ou perto da rua onde vai acontecer a brincadeira. Umadispersão do grupo acontece nesse momento. Alguns vão reunir o mate-rial de cena na tóda — espécie de coxia onde se troca de roupa, de trajee de máscara — e escolher o lugar do banco junto com os brincadoresda própria cidade, que se reúnem ao grupo nesse momento, enquanto
outros vão beber e comer. As crianças mais novas distraem-se por perto,enquanto os adolescentes, atraídos pela festa da cidade e pelo comércio,desprendem-se mais rapidamente e, às vezes, nem retornam a tempo departicipar da brincadeira.
Nos últimos anos, uma verdadeira invasão de trios elétricos tomouconta da Zona da Mata Norte de Pernambuco nos períodos de festa.Com uma potência de som estrondosa e um apelo comercial fortíssimo,esse tipo de divertimento tem dificultado bastante a realização das brin-
cadeiras, tanto no seu prosseguimento ao longo da noite quanto na horada partida do caminhão. Diversas vezes, Biu Roque teve que abandonaro banco ou deixar o caminhão esperando para buscar os jovens rapazese as moças do grupo que desapareciam na multidão formada em tornodos trios. Com uma potência e amplificação sonora muito menor, mui-tos cavalos-marinhos têm reduzido o seu tempo de duração, acabandoquando os trios começam a tocar, de forma a evitar esse conflito.
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Os trios têm proporcionado um tipo de sociabilidade bastante se-dutora para os jovens da região, e isso tem repercutido na relação com abrincadeira e na transmissão de saberes que ela envolve. A tradição oral,como a expressão indica, encontra-se vinculada a uma especial capaci-dade de fala e escuta. Se essa forma particular de transmissão tem sidoabalada pela presença dos ensurdecedores trios elétricos, a questão quese coloca é de que modo a cultura oral, já subjugada pela cultura escrita,pode sobreviver a um contexto que tem dificultado, cada vez mais, a suaexpressão?
O interesse de pessoas vindas da cidade do Recife com o objetivode estudar ou conhecer a brincadeira é um fator que, atualmente, tem
colaborado para estimular a curiosidade desses jovens e até a do públicolocal, que muitas vezes acompanha um cavalo-marinho “só para assistiro povo de fora dançar”. Essa atitude não costuma ser desmerecida pelos
velhos brincadores, como talvez pudéssemos imaginar, já que, em tornoda sociabilidade, constitui-se também a vontade de brincar. Além doque, como já foi dito, essas trocas culturais integram a própria dinâmicada brincadeira. Mas, se a dança possui uma habilidade especial parasobreviver a determinadas circunstâncias limítrofes, será que o mesmo
se pode dizer dos sentidos que a motivam? Segundo Câmara Cascudo:
As danças, num modo geral, nunca desaparecem. Mudam
de nome. Há uma corrente de interdependência, de troca de ele-
mentos rítmicos, de posições. [...] A permanência rítmica é um
dos mais assombrosos fenômenos de persistência na coreografia
popular. [...] Cada dançarino, inconscientemente, leva uma cé-
lula motora de modificação imperceptível, mas poderosa, como
processo evolutivo, ou dispersível, verificável no futuro (Cascu-do, 1998, p.339-340).
Durante a pesquisa, pude presenciar inúmeras situações em que opúblico expressava um profundo estranhamento relacionado ao fato deque pessoas de fora viessem de tão longe para estudar “uma coisa des-sas”. O que nos faz refletir sobre até que ponto uma brincadeira pode se
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sustentar sobre interesses e motivações de pessoas que não a vivenciamno cotidiano.
Antes mesmo de todos os brincadores estarem reunidos, o cavalo--marinho começa. É a música que marca o seu início. Um ou outro brin-cador se senta no banco e começa a chamar a atenção daqueles que estãopor perto através do toque do seu instrumento. Com o banco completo,isto é, um mineiro (ou ganzá, cilindro metálico carregado de semen-tes), duas bages (espécie de reco-reco feito de madeira de taboca), umpandeiro (circunferência de couro ou lona, com platinelas presas aoaro) e uma rabeca (espécie de violino, feito de madeira de mulungu,com afinação em quintas), as toadas soltas podem começar a acontecer.
Primeiro, apenas instrumentalmente, depois encorpadas pelo canto. Ocanto de início respeita mais ou menos o mesmo princípio na maioriados cavalos-marinhos. Geralmente, é uma saudação às pessoas que aliestão presentes e às que vão chegar, aos santos padroeiros e ao dono dacasa, aquele que contrata a brincadeira.
(T )
Boa noite, meus senhores
Boa noite, lhe dê Deus
Cadê o dono da casa
Por ele, pergunto eu, meu mano
As toadas soltas são momentos em que os brincadores, mas tambémo público, dançam. odos de frente para o banco, individualmente, al-ternam passos variados, que são puxados pelo brincador mais experien-
te. Essa configuração vai se repetir em diversos momentos da brincadei-ra, geralmente no seu início e também nos intervalos, entre uma figurae outra. Uma pequena abertura na parte do arco diametralmente opostaao banco, por onde vão chegar as figuras, é o que geralmente vai deter-minar a frente do banco. É necessário ter bastante espaço para a entradadas figuras, que já se encontram em cena a partir do momento em quesaem da tóda. Por isso, o banco costuma ficar de frente para uma rua ou
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viela, para que as figuras possam chegar de muito longe e também paraque, ao saírem, percam-se de vista.
A forma da roda se transforma bastante ao longo da noite. Dispersa--se e concentra-se dependendo do número e do interesse dos especta-dores, que, em alguns momentos, chegam a abandonar completamentea brincadeira, deixando os brincadores cantando e dançando apenas en-tre si, enquanto, em outros momentos, invadem a roda, deixando cada
vez menos espaço para a cena acontecer. A forma da roda, enquanto dis-posição espacial propícia para o espetáculo, é fator primordial para o es-tabelecimento de uma relação direta com o público, que pode escolhero ponto de vista mais interessante e o grau de intensidade de sua parti-
cipação. Além disso, funciona também como moldura para uma relaçãofundamental no cavalo-marinho, que é a de dançadores e tocadores.Depois de algumas toadas soltas, a figura do Mestre chega e se co-
loca ao lado do rabequeiro. ocando um apito, o Mestre vai partilhar afunção de organizador da brincadeira junto com o toadeiro/pandeirista,alguns outros tocadores, figureiros e o Mateus. Mas isso depende docavalo-marinho. A figura do Mestre costuma ter um papel muito im-portante e condensa funções bastante específicas, como puxar a dança
dos arcos, colocar a figura do Capitão, determinar quais as figuras que vão “sair naquela noite”, seu momento de chegada e de partida. Porém,a dificuldade de encontrar alguém que reúna todo esse conhecimento,hoje em dia, faz com que, ao menos no Cavalo-Marinho de Biu Roque,as tarefas do Mestre tenham sido redistribuídas e incorporadas por ou-tros brincadores.
Junto com alguns figureiros, o Mestre vai organizar o mergulho. Pe-quena roda que se forma bem perto do banco, o tombo do maguio ou
mergulhão (DVD – track 1) é uma dança em forma de jogo, que tem rit-mo binário, passo e toadas próprios, versos mais curtos e uma pequena
variação na acentuação de um para o outro.
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(T )
Oie o tombo do maguio
Nazaré Pitimbu
Tô chamando por maguio
Nazaré Pitimbu
A dança envolve um jogo de olhares e gestos bastante expressivos,que segue o princípio de pergunta e resposta, chamada e recusa, e per-cute com os pés um ritmo que não é tocado por nenhum instrumentodo banco. O tombo do maguio é dança que serve como aquecimento
para a noite. É ali que os brincadores “acordam as pernas e o juízo”. Acomplexidade da dança se encontra no fato de que, quando se é puxa-do por alguém para dentro da roda, deve se responder ao convite como corpo, enquanto o olhar já deve estar direcionado para outra pessoaque, por sua vez, repete a mesma movimentação em relação à outra.Mas nem sempre.
Uma série de variações expressas na negação de uma puxada e nasidas e vindas com um só parceiro — geralmente, como demonstração
de afeição ou proposta de desafio — fazem do mergulhão uma dançabastante vigorosa e provocadora. alvez por isso, mas também por seucaráter de jogo, o mergulhão faz muito sucesso entre os jovens do Recifeque já tiveram a oportunidade de ver um cavalo-marinho. Dominandominimamente a ideia de que o passo e o jogo de olhar são importantes,cada um que entra na roda, por mais rápido que seja, encontra-se emtotal evidência e com a possibilidade de fazer uma provocação, graçaou pantinho12 que, dependendo da ousadia, tem a capacidade de gerarmomentos de grande entusiasmo coletivo. É nesse momento que a rodacomeça a se formar de maneira mais expressiva por parte da audiência,em torno da brincadeira.
12 Esta categoria será discutida mais adiante.
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Quanto ao desenho coreográfico do mergulhão, existe uma interpre-tação defendida por Mestre Manoel Salustiano13, mais conhecido comoMané Salu, do Cavalo-Marinho Boi Matuto de Olinda, de que a dançasugere a imagem de uma estrela no chão. E que, portanto, seria impor-tante, no intuito de respeitar esse desenho, dançar sempre em númeroímpar de brincadores, no máximo onze, e evitar puxar os parceiros la-terais. Em todas as brincadeiras que pude presenciar, a maioria delas naZona da Mata Norte de Pernambuco, não percebi essa preocupação porparte dos brincadores. As interrupções da dança, devido à falta de do-mínio do passo ou perda do ritmo, estas, sim, eram consideradas fatoresde desorganização ou desmantelo da pisada do mergulhão.
Esse comentário de Mané Salu expressa mais um movimento de au-toafirmação do estilo de um grupo perante outros do que uma ideia quese compartilha coletivamente pelos cavalos-marinhos da região. O dis-curso autorreferido, por um lado, e profundamente humilde, por outro,é recorrente em muitos grupos. E aponta algumas características quepossibilitam a identificação de elementos que, conjuntamente, podemcontribuir para a configuração de uma estética do cavalo-marinho, ca-racterizada por uma assimilação e elaboração constante de elementos
externos, mesmo que nem sempre tão evidentes. No caso de Mané Salu,bastante influenciado pela cultura urbana do Recife e pelos discursosem defesa de uma autenticidade cultural, a necessidade de se demarcarfronteiras claras, através de uma produção de intensas “verdades” sobrecavalo-marinho, no entanto, parece mais recorrente do que no interiorda Zona da Mata Norte. Embora, nessa região, também seja possívellocalizar critérios de julgamento que expressam escolhas estéticas muitoclaras e decisivas para a realização de uma brincadeira.
13 Mestre Salustiano é natural da cidade de Aliança, mas muito jovem se mudou para Olin-da, onde desenvolveu um trabalho a convite do Governo do Estado, na gestão do Gover-nador Miguel Arraes, quando o Secretário de Cultura da época era Ariano Suassuna. Combase numa proposta de “resgate da cultura popular”, ações de valorização das tradiçõespopulares do Estado foram implementadas com sua participação. É ele um dos principaisresponsáveis pela divulgação do cavalo-marinho na Região Metropolitana do Recife, onde
junto com sua família organizava um encontro de cavalos-marinhos, todo o nal de ano, noterreiro Ilumiara Zumbi, em Cidade Tabajara, periferia de Olinda. Mestre Salustiano nasceuem 12 novembro de 1945 e veio a falecer em 31 de agosto de 2008.
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A entrada do Mateus é a etapa seguinte ao mergulhão (DVD – track2). Mateus é o palhaço da festa, o responsável pela ordem e desordemda roda, junto com Bastião, que chega logo em seguida. Dupla de pa-lhaços bastante comum em encenações cômicas populares, no caso docavalo-marinho, ambos possuem bexigas de boi14 nas mãos, que têmpor função, além de marcar o ritmo do pandeiro na própria perna, baternaqueles que atravessam inadvertidamente a roda, geralmente embria-gados. São as famosas lapadas, expressão que, curiosamente, tambémsignifica dose de cana.
(T M)
Oi, cadê o nego Mateus, adeus mana
Chega de amolação, leleô, adeus mana iaiá
Leleô, adeus mana Iaiá
A chegada do Mateus costuma evocar a imagem de um nascimento.Nesse cavalo-marinho, o Mateus sempre chega por debaixo das pernasdos músicos do banco. Produz sempre muita surpresa e contribui para
o sucesso do início da noite. Depois de muito pantinho, alcançando aposição vertical, tem início um diálogo bem abusado entre Mateus e oMestre. Nesse momento, o Mestre já se apresenta como Capitão e lhepergunta sobre o desejo e a disponibilidade para trabalhar em sua fa-zenda, assim como para cuidar da roda enquanto ele resolve alguns pro-blemas particulares.
Mateus, espantado pela quantidade de gente ao seu redor, pergunta--lhe sobre os motivos da festa, ao que o Capitão/Mestre responde que
é por conta da celebração aos Santos Reis do Oriente. Essa referênciasurge algumas vezes durante a noite e é um dos principais motivos para
14 O processo de preparação da bexiga é bastante curioso. Segundo Martelo, Mateus de cava-lo-marinho há mais de quarenta anos: “A bexiga, a gente vai pro matador, fala com o cabraque abre o boi e traz a bexiga pra casa. O cabra pega um canudo e deixa aqui. Tira aquelacarne dela, aquela gordura. O mijo do boi trabalha ali dentro. E bota pra secar no sol. Agente bota de molho quando ela seca e ela amolece. Agora aqui a gente sopra e ela cresce.Quando é nova assim, eu passo a noite com uma. Agora, tem Mateus que duas, três não dá.É porque tem a mão amaldiçoada” (depoimento concedido à autora, 2001).
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72 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
a realização da brincadeira do cavalo-marinho. orna-se mais enfáticona dança dos galantes e nas louvações, mas, daí em diante, praticamentedesaparece como assunto principal ou justificativa para a brincadeira.No diálogo com o Mestre, essas referências serão utilizadas por Mateussempre no intuito de fazer piadas de duplo sentido: “Me aceite em suaroda, Capitão!” e “Viva os Santos Reis do cu cinzento” são algumas delas.
Embora a maioria dos brincadores seja fiel à Igreja Católica, sãomuitos os deuses que compõem, visivelmente, o panorama de crençaslocal. O que predomina na região é uma religiosidade baseada num ca-tolicismo popular politeísta que se mistura ainda a outros cultos reli-giosos como o Xangô — versão pernambucana do Candomblé — e a
Jurema — culto indígena popularizado por diversas regiões do Estadode Pernambuco. O que é possível identificar entre os brincadores, noentanto, é uma clara oposição em relação à doutrina evangélica, atravésdas ridicularizações que associam-na com fraqueza, frescura ou equívo-co. Possíveis adesões à chamada “Lei de Crente” surgem entre os brin-cadores quando a vontade de abandonar o cavalo-marinho predomina.
Mestre Inácio Lucindo, do Cavalo-Marinho de Camutanga, comen-ta a ligação de seu filho com a religião evangélica:
Eu penso que ele não sai da Lei de Crente pra cavalo-mari-
nho, não. Só se a coisa mudar. Agora, eu não. No que eu nasci,
eu me crio. No que eu me crio, eu me convenho. No que eu me
convenho, aquilo que eu quero bem, eu estimo e eu não troco. A
Lei de Crente é uma lei bonita, é uma lei de Deus. Mas aquela lei
de Deus também eu vivo. Se Deus é do crente, Deus é meu, é teu,
é de todos nós. E eu vivo na lei de Deus, acompanhando a lei da
cultura, do pagode, do nascimento do folclore de Jesus! (InácioLucindo, 2001, depoimento concedido à autora).
Quando o tom de deboche, característico da brincadeira, se estabe-lece, Mateus aceita a proposta do Capitão de cuidar da roda em sua au-sência, dizendo que “toma conta, mas não dá conta”. E, por isso, precisade um ajudante. Mateus anda no mundo com seu pareia Bastião (DVD
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– track 3). Pareia significa companheiro. Aquele com quem se estabe-lece uma relação de parceria, afinidade. Há toadas de cavalo-marinhoque afirmam “não existir pareia igual” a de Mateus e Bastião e, por isso,quando eles não se afinam, a brincadeira é desmantelo garantido. Serpareia, no entanto, também é considerado necessário para o sucesso dediversas relações dentro de um cavalo-marinho: entre os tocadores, en-tre os dançadores, entre os figureiros. Para a brincadeira ser consonante,“tem que ser pareia”, afirma Mariano elles, puxador de arco e figureirodo Cavalo-Marinho de Biu Roque.
Mas essa relação também admite momentos bastante violentos. Ma-teus e Bastião, ao longo da brincadeira, protagonizam cenas de inten-
sos conflitos, disputas e trocas de insultos. O que permite afirmar que,quanto mais íntima, mais provocadora será a pareia.
Pareia é andar em dois. Um homem e uma mulher dá pareia.
É muito importante, um casal bem unido. Onde tem uma pareia
tem uma amizade, mas onde tem amizade também tem ciúme.
Acontece essas coisas. Porque a pessoa não vai deixar outra pes-
soa tomar conta. Ali se chama pareia. É por isso que tem tanta
violência. É por causa do ciúme (Mariano elles, 2001, depoi-mento concedido à autora).
Ao longo de toda a noite, essa relação será enaltecida através dosgritos de “Viva pareia!”, entoados por Mateus e Bastião. Esses gritos cos-tumam pontuar a brincadeira inteira. al como um grito de guerra ouinterjeição festiva, funciona como estímulo e sinal de aprovação do an-damento da brincadeira.
Não faz muito tempo, a dupla costumava vir acompanhada da Cati-rina, mulher de Mateus, “amigada” de Bastião. Duas explicações tentamdar conta do desaparecimento da figura. Uma delas, segundo algunsbrincadores, diz que a Catirina era uma figura muito demorada, queestendia muito as etapas. O fato de ser representada por um homem ves-tido de mulher, com a cara pintada de preto, de comportamento lascivoe libidinoso, gerava situações muito engraçadas, o que devia realmen-
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te ocupar bastante tempo da brincadeira. Outra explicação, defendidapor pesquisadores (Marinho, 1984; Murphy, 1998), diz que a figura daCatirina teria sido retirada da brincadeira por questões morais. A pre-sença cada vez maior de mulheres na audiência, insatisfeitas com a suarepresentação na brincadeira, teria suscitado uma espécie de pressãono intuito de censurar o personagem. No entanto, talvez seja o caso delevar em consideração que, nesse caso, os próprios homens podem terse privado, diante de uma crescente presença feminina na audiência, doprazer de fazer graça com a representação grotesca dessa personagem,uma vez que não se encontravam mais apenas na presença de homens.
Sobre os motivos da presença em número muito maior ou absoluto
de homens na brincadeira, assim como entre as figuras que chegam àroda, existem algumas hipóteses. Alguns brincadores afirmam que asmulheres, no passado, não gostavam de participar da brincadeira e sórecentemente teriam passado a se interessar por ela. Outros dizem que,nos primórdios do cavalo-marinho, as mulheres não só estavam presen-tes, como também colocavam figuras. O senhor de engenho é que teriaproibido sua participação, de forma a protegê-las moralmente desse tipode brincadeira, assim como no intuito de aumentar a sua carga de traba-
lho dentro da casa-grande.Juntos, Mateus e Bastião armam muitas confusões ao longo da noi-
te. São eles que recebem as figuras que surgem durante a brincadeira,na beira da roda. Dançando, trazem-nas até perto do banco, onde sedesenvolve a maior parte da cena. Acompanhados do Mestre, ou apenasdo banco, que responde ou completa os versos puxados pela figura, Ma-teus e Bastião dançam do início ao fim da noite. São eles que, duranteas toadas soltas, momento que também tem por resultado uma certa
dispersão e descanso dos figureiros, são responsáveis por animar a roda:girando, fazendo graça, distribuindo lapadas e chamando as pessoaspara dançar.
É um papel que exige bastante energia e conhecimento da brinca-deira. Mas parece ser bem recompensado na medida em que, além dodestaque cênico, em alguns momentos, eles interrompem o samba paraarrecadar dinheiro. “Benza a sorte, pareia!” é o que dizem quando o
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seu desempenho, considerado satisfatório pelo público presente, os fazganhar dinheiro para guardar ou beber. O hábito de “pedir a sorte” eramais comum no passado, podendo ser ainda hoje identificado em al-gumas brincadeiras por figuras que não se limitam a Mateus e Bastião.
Não é qualquer um que pode ser Mateus. Essa figura exige muitaagilidade, concentração, criatividade, capacidade de improviso e umdomínio muito grande da brincadeira como um todo. Algo que pareceter sido mais frequente no passado é o fato de os brincadores que brin-cam de Mateus serem filhos de Mateus. Essa relação de herança diretacom um determinado ofício nem sempre costuma ser identificada nosdemais papéis da brincadeira, pelo menos não nessa geração a que tive
acesso. Parece que ser filho de Mateus, mesmo quando não se dá con-tinuidade ao ofício do pai, repercute na maneira de agir, que remete àfigura. Qualquer que seja a função do brincador dentro de um cavalo--marinho, ele é extremamente afiado em seu humor, tem muita energiae guarda muitos segredos sobre a brincadeira.
Já o Bastião não precisa ser uma figura tão perspicaz. Pelo contrário,tendo uma postura mais passiva é que ele consegue arrancar boas gar-galhadas da audiência, estabelecendo uma tensão complementar com
seu parceiro. Porém, quando ele tem uma atitude mais assemelhada àdo Mateus, a temperatura da brincadeira esquenta e a tensão da cenase transfere da dupla, agora cúmplice, para a relação que deve ser esta-belecida com o banco, com o Mestre, com o público ou com as figurasque chegam. alvez por isso também seja de costume na região chamara dupla de “os dois Mateus”.
Ao longo de toda a noite, diversas figuras vão aparecer na roda. Exis-te uma estimativa de que o cavalo-marinho possui setenta e seis figuras.
Segundo Biu Roque, as figuras representam etapas da brincadeira, e nãoapenas personagens. E não necessariamente possuem uma relação deinterdependência entre si. Embora figuras que costumam vir acompa-nhadas ou seguidas de outras, por vezes, deixam de aparecer porqueninguém mais detém o conhecimento acerca de como colocá-las.
udo isso faz com que não exista uma ordem predeterminada ou umencadeamento natural, isto é, uma narrativa preestabelecida no desen-
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volvimento da brincadeira. O que existe é uma tendência, mais evidenteno início e no final, na colocação de algumas figuras. Sobre a hipótesede que as figuras preteridas estivessem causando algum mal-estar, comotalvez seja o caso da Catirina, Mestre Inácio Lucindo afirma que taisfiguras “sumiram porque tinham que sumir. O cavalo-marinho mudaporque precisa mudar. Porque as coisas mudam”.
De qualquer maneira, elas mudam porque as pessoas envolvidascom a brincadeira também mudam. As figuras dependem de quem saibacolocá-las. Do contrário, elas desaparecem, ficando apenas na memóriacoletiva dos brincadores que tiveram a oportunidade de conhecê-las.O que pude identificar, no entanto, ao longo do período de realização
da pesquisa, é um processo de redução no número de figuras, além dotempo de permanência delas na roda. É comum os brincadores atribu-írem essa síntese ao fato de que, atualmente, não existiria mais tempopara colocá-las. Mas, ao serem questionados sobre o motivo da falta detempo, muitos respondem circularmente afirmando que é pelo excessode figuras. Alguns brincadores, porém, atribuem essa redução de figurase, consequentemente, da duração da brincadeira ao fato de que os tem-pos são outros e que ninguém mais se mostra tão disponível para um
tipo de brincadeira de longa duração como o cavalo-marinho. Porém,foi consenso a opinião de que poucas pessoas atualmente sabem colocaras figuras que costumavam aparecer no passado, porque “o saber está seperdendo”.
Uma hipótese sobre a responsabilidade de tais mudanças na brinca-deira é a de que um novo formato de cavalo-marinho, que tem come-çado a se popularizar porque é mais curto e menos dispendioso, estariacontribuindo para o desaparecimento das figuras. Por uma apresenta-
ção de apenas uma ou duas horas, e até mesmo de cinco minutos, jáforam fechados contratos de cavalo-marinho. Esse tipo de apresentaçãoocorre, geralmente, no Recife ou nas demais capitais do País, em mos-tras, circuitos e festivais, onde não se costuma dedicar tanto tempo auma manifestação cultural como essa. Esse novo formato tem garan-tido mais contratos, retorno financeiro, menos desgaste físico e maispopularidade à brincadeira, no entanto, tem feito com que as figuras, e
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com elas boa parte da memória do cavalo-marinho, estejam vivendo umprocesso de transformação dentro da brincadeira.
Como resultado dessa adaptação aos novos contextos de realizaçãoda brincadeira, um movimento de padronização pode ser observado,no que diz respeito às toadas, danças e figuras que devem ser colocadas,levando a uma reflexão acerca do que é essencial num cavalo-marinho.Esses novos contextos de realização possuem como referência parâme-tros estéticos distintos, e, aos poucos, os grupos se veem em situação dedisputa por esses espaços, buscando negociar com outros referenciaise, ao mesmo tempo, tentando adequá-los aos padrões estéticos nativos.Em outros tempos, quanto mais toadas, mais danças, mais figuras, me-
lhor a brincadeira. Atualmente, busca-se atingir a qualidade através deum formato condensado, quase um desfile de figuras e de momentos visualmente impactantes.
As figuras que pude conhecer são mais ou menos as mesmas emtoda a Zona da Mata Norte de Pernambuco. Dentre elas, encontram--se o Soldado da Gurita (DVD – track 4), o Mané do Baile, o Empata--Samba, os Bodes e o Valentão (DVD – track 6); o Cavalo (DVD – track7); o Ambrósio (DVD – track 8); o Babau, o Veio Frio e o Mané aião
(DVD – track 9); o Pisa Pilão e o Bebo (DVD – track 10); a Veia doBambu, o Mané Joaquim, o Padre e o Cão (DVD – track 11); o ManéChorão e o Vila Nova (DVD – track 12); a Margarida, o Mané do Motor,o Bodegueiro, o Mané da Burra e o Vaqueiro (DVD – track 13); o Boi(DVD – track 14), entre tantas outras15.
Apesar de versarem ao pé do banco, sempre com acompanhamentodo choro da rabeca e canto de resposta dos tocadores, as figuras não têmcomo preocupação construir uma narrativa comum a todas elas. Elas
vêm basicamente dançar e cantar. A roda parece ser o meio do caminhoentre o lugar de onde vêm e pra onde vão. Dessa forma, ao chegarem àroda, fazem sua apresentação e, ao saírem, a sua despedida. Algumas
15 O DVD anexo contém imagens de apenas algumas das guras acima mencionadas. Embo-ra todas elas sejam representativas e enriquecedoras para o entendimento da brincadeira,a edição desse material teve como princípio um tipo de recorte que privilegiasse a chegada,o desenvolvimento coreográco e a partida de algumas guras observadas pela equipe deregistro audiovisual, que acompanhou a realização da pesquisa.
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entram em relação direta com Mateus e Bastião e, na maioria das vezes,saem debaixo de lapadas. Outras se aproximam do banco e do Mestre eali permanecem durante o tempo todo de sua apresentação. Outras ain-da desenvolvem sua atuação em interação com o público. O tempo depermanência na roda é determinado pelo figureiro, mas também pelotoadeiro e pelo Mestre, que podem limitar a atuação da figura se ela poracaso não estiver sendo bem colocada. São as toadas que vão expressaresse desejo, chamando-as e mandando-as embora.
Segundo Hermilo Borba Filho (1966), assim como no Auto do Boi,as figuras do cavalo-marinho podem ser divididas em três tipos: os sereshumanos, os seres fantásticos e os animais. No entanto, outras formas
de classificação poderiam ser identificadas com base em minha obser- vação. Algumas figuras vêm trazendo um mote que será desenvolvidopelas figuras seguintes, formando-se uma grande cena. Outras são maisepisódicas. Algumas figuras estabelecem relação direta com Mateus eBastião, enquanto outras privilegiam o banco, o Mestre ou o público.Outras ainda, mesmo sem trocar de máscara ou figureiro, assumem ou-tra atitude, que pode ser entendida como outra figura — o cobrador, porexemplo, que aparece em meio à figura do Ambrósio.
Não chega a existir uma ordem predeterminada de figuras. As va-riações se concentram, principalmente, entre o Soldado da Gurita e oVaqueiro. Embora existam grupos que nem sempre costumam colocaro Vaqueiro, figura considerada necessária para a colocação do Boi. al-
vez seja esse um dos motivos, inclusive, para que o Boi tenha perdidoo papel de figura central ou mote principal da brincadeira se, eventual-mente, considerarmos que o cavalo-marinho seria uma variante do Boi.
odas essas combinações são baseadas nas escolhas dos figureiros,
na sua afinidade com um determinado papel dentro da brincadeira eno seu conhecimento acerca da figura. Mas dependem também da ideiaque se tem de cada figura e do que ela pode desenvolver na roda. Essapartitura dramática encontra-se relativamente em aberto, e é justamentepor isso que cada figureiro tem um estilo muito próprio na sua maneirade colocar uma figura.
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79Uma brincadeira de cavalo-marinho — recorrências e singularidades
As figuras são tipos que falam do trabalho, do amor, do cotidiano e,muitas vezes, referem-se à realidade canavieira. A cana-de-açúcar aindarepresenta um papel importante na economia da região e no cotidianodos brincadores. Seus corpos e suas histórias de vida estão marcadas pelacana, e isso pode ser identificado em muitas toadas de cavalo-marinho.
(T )
Ô, Biu Roque, meu camarada
Ô, vamos correr meu roçado
Vam’ tacar fogo no mato
Deixa tudo encarvoado, mamãeBaiana é hoje, mamãe
Baiana é hoje, mamãe
(T )
Quero ver queimar carvão
Quero ver carvão queimar
Quero ver levantar poeira
Quero ver poeira voar
(T M M)
Senhor de Engenho vai pro inferno
E lavrador vai pras profundas
E o cambiteiro vai atrásCom os cambito nas cacunda
Fogo meu, Fogo!
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(S -)
Corto cana, amarro cana
Deixo tudo amarradinho
Foi você quem me ensinou
Namorar, que eu não sabia
Um bom banco é condição fundamental para a realização de umaboa brincadeira. O banco do Cavalo-Marinho de Biu Roque é conhe-cido na região por ter se formado, quase que integralmente, a partirdos tocadores do banco do Cavalo-Marinho de Mestre Batista. Severino
Lourenço da Silva, nascido em 1932, em Aliança, foi um grande Mestree figureiro de Cavalo-Marinho de Chã de Camará, distrito vizinho deChã do Esconso, Aliança. Reconhecido pela maioria dos brincadorescomo sendo o melhor Mestre do melhor grupo de cavalo-marinho que
já existiu, ele veio a falecer em 1991, deixando muitos herdeiros da suatradição e uma memória viva na região.
A qualidade do samba desse banco é o resultado da afinidade mu-sical e afetiva existente entre Biu Roque (bage e canto), Mané Deodato
(pandeiro e canto), Luís Paixão (rabeca) e Mané Roque (mineiro e can-to). E foi, recentemente, acrescido pela presença de Maria de LurdesSoares da Silva, a Lurdinha (bage e canto), filha mais nova de Biu Roque,que divide essa função com sua irmã mais velha, Maria Soares da Silva,a Maíca, um dos poucos cavalos-marinhos que contam com a partici-pação de mulheres no banco. Ainda tímido como movimento, pode-sedizer que há um aumento da presença das mulheres na brincadeira, sejana audiência, seja na composição dos grupos da região, embora o cava-
lo-marinho ainda seja composto e assistido massivamente por homens.Apesar de se conhecerem a bastante tempo e terem participado de
muitas brincadeiras juntos, os integrantes desse cavalo-marinho encon-tram-se sob essa formação desde o ano 2000, quando Biu Roque e Iná-cio João da Silva, conhecido como Inácio Nobreza, resolveram inventar
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81Uma brincadeira de cavalo-marinho — recorrências e singularidades
um cavalo-marinho16. Apesar de se considerarem um grupo jovem, aexperiência com a brincadeira, participando de outros grupos da região,é levada em consideração ao comentarem sobre a qualidade da brin-cadeira. Musicalmente, os brincadores atingiram um grau de afinida-de particular e assumem um lugar de referência perante muitos outrosbrincadores da região. É raro o samba “quebrar” ou “furar”, como dizem.Isto significa que a uma toada sempre se segue outra, imediatamente,sem maiores interrupções ou dispersão da roda por parte dos dançado-res. Significa também que o rabequeiro tem um bom repertório, que aprimeira e a segunda voz se complementam e que, de forma geral, existeuma boa escuta por parte dos cinco tocadores.
Em relação à cena, no entanto, é um cavalo-marinho que ainda sofrecom a instabilidade dos figureiros que, por serem poucos, ficam sobre-carregados e, assim, impossibilitados de botar as figuras que precisamda presença de outras para brincar. Essa situação, além de fragilizar oencadeamento de figuras, tem promovido a concentração e a dispersãodo saber. É possível perceber alguns brincadores timidamente começan-do a botar figura, enquanto o trânsito dos mais reconhecidos figureirosentre os cavalos-marinhos da região se mostra cada vez mais intenso.
Os figureiros, atualmente, representam uma categoria de brincador quetransita por vários grupos, de acordo com o convite do Mestre e com asua disponibilidade.
Um trânsito entre melodias e versos também é muito comum nabrincadeira. Uma toada pode aparecer com um verso numa noite e, emoutra, já apresentar modificações. Esse fenômeno ocorre mais entre astoadas soltas, que, em sua maioria, cantam versos de trabalho e amor,representando o descanso da cena, mas não o do banco, que nesse mo-
mento se vê mais livre para improvisar. As toadas de figura, tambémconhecidas como toadas amarradas, por sua vez, possuem maior re-gularidade melódica e poética dentro de um mesmo cavalo-marinho.Mas mesmo o São Gonçalo do Amarante, toada que se executa durante
16 Inventar um cavalo-marinho é a expressão utilizada entre os brincadores para identicar oprocesso de formação do brinquedo, que abrange desde a reunião de pessoas até a compraou produção de instrumentos, trajes, máscaras e armações de bichos.
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82 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
a dança dos arcos, apresenta algumas variações tonais de um cavalo--marinho para outro.
(T S G A)
São Gonçalo do Amarante
São Gonçalo do Amarante
Casamenteiro das moça
Casamenteiros das moça, eiááá
Oi, casa-me a mim premero
Oi, casa-me a mim premeroPra poder casar as outras
Pra poder casar, eiááá
Quem não tem cama nem rede
Quem não tem cama nem rede
Dorme no couro da vaca
Dorme no couro da vaca, eiááá
Pra dançar o São Gonçalo
Pra dançar o São Gonçalo
Tem que ter o pé ligeiro
Tem que ter o pé ligeiro, eiááá
O que noite tão bonita
O que noite tão bonita
Com vontade de chover
Com vontade de chover, eiááá
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83Uma brincadeira de cavalo-marinho — recorrências e singularidades
A dança dos arcos tem um desenho coreográfico, cujas mudançasde direção, trançados, avanços, recuos, cruzadas, giros e trocas de ladoentre os dois cordões são propostos pelo Mestre puxador dos arcos(DVD – track 5). Causando enorme encantamento, essa dança chama aatenção da audiência também por conta da beleza que o efeito das fitascoloridas, presas nos arcos de madeira envergados, desenha no espaço.A dificuldade de dançar é grande, pois não são raros os esbarrões, tro-peços, empurrões devido às trocas abruptas de direção propostas peloMestre. O fato de cada vez ser realizada de forma um pouco diferenteno que diz respeito à sequência dos passos e trançados torna essa tarefatambém um pouco mais complicada, tanto para os galantes quanto para
o olhar da pesquisadora, encantada com a beleza da dança.Acerca da origem dessa dança, não se sabe ao certo se ela teria sidoinserida no cavalo-marinho ou se, ao contrário, teria se emancipado aponto de se tornar o que hoje se conhece como Dança de São Gonçalo(Benjamin, 1989), comum em alguns estados brasileiros, onde tambémse dança com arcos, mas cuja ênfase encontra-se nos inúmeros padrõesde pé e saltos17. O fato é que, no cavalo-marinho, a dança é muito apre-ciada, a ponto de retornar, em alguns casos, ao final da brincadeira, de-
pois do Boi e antes dos sambas.Ao longo da noite, figuras seguem-se umas às outras até chegar o
Boi. Segundo alguns autores (Andrade, 1982; Benjamin, 1989; BorbaFilho, 1966), o Boi é tema central de diversas dramatizações brasileiras.Devido à sua importância socioeconômica, na região e no País comoum todo, e também por seus aspectos simbólicos que o relacionam àfertilidade e à festa. É frequente, como vimos, a classificação do cava-lo-marinho como uma “variante autônoma do Boi” ou mesmo como
“o Boi de Pernambuco”, apesar de os brincadores defenderem a suaespecificidade.
Uma questão que deve ser levada em consideração, no entanto, éque no cavalo-marinho, ao menos nas brincadeiras que pude presen-ciar ao longo desta pesquisa, nem sempre o Boi apareceu e, quando ofez, assumia muito mais a função de finalizar a brincadeira, acordando
17 Sobre a Dança de São Gonçalo, ver Queiroz (1958) e Müller (2001).
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a audiência com sua bela e violenta dança, do que servia de mote ouentrecho dramático ao qual se ligavam as suas partes. al como tantasoutras figuras, o Boi vem sendo ressignificado na brincadeira, talvez de-
vido às mudanças experimentadas nas condições de vida dos trabalha-dores rurais da região, que não detém mais o acesso à terra. O fato é queo Boi, mesmo não representando uma figura central, ainda contribuipara a beleza do cavalo-marinho, pois é considerado “uma das graçasda brincadeira”.
A roda grande, onde se cantam as toadas de despedida, propõe umanova configuração espacial e rítmica. O banco encontra-se de pé, no lu-gar onde foi o centro da roda ou mais adiante, formando um semicírculo
completado pelo Mestre, pelos galantes Mateus e Bastião e circundadopelo público presente. O andamento das músicas é bem mais acelerado,e a dança consiste, para aqueles que formam o círculo principal, em semover em fila indiana, um atrás do outro, parando sempre que para amúsica. Essa formação se antecipa ao momento do Boi e o transcende.Quando o Boi dança, ressuscitado pela música, a roda se desfaz por ummomento, para se refazer quando ele vai embora.
(T )
Senhor dono da casa
Adeus, adeus
Até outro dia, assim queremos
Deus analisou nosso brinquedo
Analisou com alegria
Dando viva ao nosso Mestre e à nossa companhia
Analisou nosso brinquedo
Analisou com atenção
Dando viva ao nosso grupo, Catirina e Bastião
al como a toada solta de abertura canta “Boa-noite, meus senho-res!” pedindo licença para dar início à brincadeira, os “Vivas!” corres-
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85Uma brincadeira de cavalo-marinho — recorrências e singularidades
pondem a uma despedida que reverencia a todos os envolvidos e ex-pressa o final do cavalo-marinho. Celebram os brincadores, a audiência,as autoridades da cidade, o dono da brincadeira e respeitam a seguinteestrutura: um ou dois brincadores assumem o papel de puxadores, en-quanto todos os outros respondem em coro gritado. Os “Vivas!” cons-tituem interessante material de análise para a compreensão de quem,afinal, faz parte dessa coletividade representada pela brincadeira e queinclui também as pessoas que estiveram ali presentes assistindo ou dealguma forma colaboraram para isso. É um momento de saudação ealegria, principalmente porque, quando realizado por Mané Roque,este o faz com bastante entusiasmo. Depois que ele mesmo é saudado
por algum outro brincador do coro, costuma-se bater palmas, e acaba abrincadeira.
(V)
Viva o dono da casa, senhor!
Viva!
Viva o dono da cidade, senhor!
Viva!E viva o prefeito também, senhor!
Viva!
Viva os meus meninos, senhor!
Viva!
Viva Mané Deodato, senhor!
Viva!
Viva Biu Roque, senhor!
Viva!
Viva todos os meus amigos, senhor!
Viva!
E viva Mané Roque, senhor!
Viva!
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86 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Os sambas retornam novamente e, aos poucos, vão se diluindo embatidas de pandeiro, choros de rabeca, balanços de mineiro e arrematesdispersos do canto, que vai de fato anunciar a conclusão da brincadeira,que insiste em continuar enquanto houver pelo menos um brincadorcapaz de instigar o toadeiro e os demais tocadores, não necessariamenteaqueles que encarnaram essas funções ao longo da noite.
O recolhimento do material e a subida no caminhão acontecem, namaioria das vezes, ainda em meio à cantoria dos brincadores mais en-tusiasmados, que mesmo durante a viagem de volta sustentam o samba.Nesse momento, o samba já inclui, entre as músicas entoadas, cocos,marchas, baiões e sambas antigos. O cansaço e o término da brincadeira
não chegam a desfazer a sensação de tudo o que aconteceu durante anoite. É curioso como muitas figuras parecem ainda estar presentes nes-se momento, através dos trajes pela metade, do rosto ainda melado detinta derretida de suor, dos instrumentos em punho e dos corpos exaus-tos e embriagados desses brincadores que encaminham-se para casa e,às vezes, dali diretamente para o trabalho.
Pela manhã, chegando ao sítio de Biu Roque, pude presenciar repe-tidas vezes uma cena que me pareceu expressar um tanto da condição
do brincador de cavalo-marinho. Discussões, sempre intempestivas, en-tre Biu Roque e D. Maria questionavam o lugar da brincadeira na vida, oretorno financeiro e a quantidade de energia despendida: “O seu corpose acaba e a brincadeira continua!”, dizia ela. Nessas situações, Biu Ro-que costumava responder que não podia fazer diferente, porque semprefora assim e mesmo velho e fraco não podia deixar de brincar. O tempoe o espaço na brincadeira são apropriados pelo corpo, que experimentasensações que ampliam a dimensão dos seus próprios contornos. Por
isso, a brincadeira é o prazer da vida de um brincador. “er uma brin-cadeira é ter uma alegria na vida”, já dizia Biu Roque. Uma estratégiade permanência, seja na memória de quem viu, seja na imaginação dequem não viu.
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ANTROPOLOGIA DA ARTE OU A ARTE DA
ANTROPOLOGIA: DA TRANSCULTURALIDADE DOSCONCEITOS
Reflexões antropológicas sobre a arte já foram feitas em relação a di- versas culturas. Danças balinesas18, esculturas africanas19, poesias ára-
bes20
, literaturas francesas21
, pinturas italianas22
, músicas brasileiras23
,desenhos ameríndios24 já renderam interessantes discussões sobre apercepção e a expressão estética. Na maioria desses estudos, atribuiu-seà arte um importante papel na discussão sobre identidade e alteridade,natureza e cultura, indivíduo e sociedade, emoção e pensamento, con-tinuidade e ruptura, ética e estética, confirmando o enorme valor dascontribuições que ela reserva à antropologia, através da premissa de que“a arte é boa para pensar”.
Ao refletirmos sobre a relação que o homem estabelece com a arteno mundo contemporâneo e sobre as possíveis conexões com a experi-ência da brincadeira, somos levados a questionar nossa própria defini-ção de arte e os diversos contextos históricos que a produziram. Exis-tiria na experiência artística algum aspecto essencial ou a relação quese estabelece com a arte é o que de fato a caracteriza? Seria uma formauniversal de elaborar a compreensão, reprodução e transformação doque chamamos de realidade, presente de certa forma nas mais diver-
18 Bateson, Gregory e Mead, Margaret (1942).
19 Boas, Franz (1947).
20 Geertz, Cliord (1983).
21 Bourdieu, Pierre (1996).
22 Lévi-Strauss (1993).
23 Vianna, Hermano (1995).
24 Lagrou, Elsje (1998).
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88 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
sas culturas? Ou apenas uma manifestação muito particular, ocidental emoderna de lidar com um determinado tipo de produção estética?
Como tantos outros conceitos, os significados da arte foram cons-truídos histórica e culturalmente e, sem dúvida, reconstruídos na me-dida em que foram capazes de se transformar diante dos desejos e ne-cessidades daqueles que, a partir dela, vislumbraram uma interessantepossibilidade de refletir sobre o seu próprio tempo.
Neste capítulo, pretendo, num primeiro momento, tratar de comoalguns autores buscaram formular teorias que dessem conta de umacompreensão transcultural da arte. Através de diferentes abordagens,ao longo da história da antropologia, diversas foram as tentativas de
compreender “a arte dos outros”. A construção de alguns desses sistemasde interpretação, com perspectivas teóricas e referenciais de análise pró-prios, constituem aqui o primeiro eixo de análise.
Em seguida, me dedico a refletir sobre o pensamento estético deMário de Andrade, escritor, músico e poeta modernista que se preocu-pou profundamente com o destino das artes no Brasil. No ano de 1938,ministrou um curso de Filosofia e História da Arte, na Universidade doBrasil, antecessora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual o
questionamento sobre as diferentes origens da arte e do prazer estéticolevantou interessantes discussões acerca da relação arte-sociedade.
Por fim, discuto aspectos dos estudos de folclore e cultura popular,pioneiros ao dedicarem-se de forma sistematizada a uma reflexão sobreos costumes e a produção artística de um determinado segmento dapopulação brasileira, que se convencionou chamar de povo. Nesses estu-dos, podemos identificar perspectivas analíticas e projetos ideológicosem jogo que me parecem pertinentes serem aqui considerados.
Se neste capítulo predomina uma reflexão de ordem conceitual éporque acredito ser necessário investigar as implicações que uma abor-dagem da brincadeira, em contraponto ao que se entende por arte, nosapresenta. Não foi em todos os tempos e espaços que a arte assumiu opapel de experiência estética isolada de outros campos da vida. Atraves-sando os mais diversos contextos, com formas e sentidos variados, o quea desconstrução desse conceito nos sugere é o quanto a arte já represen-
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89A antropologia da arte ou a arte da antropologia
tou diferentes percepções e expressões da condição humana e, por isso,não é o fato de que determinadas culturas ou segmentos sociais não seutilizam desse conceito que os destitui de uma vontade ou capacidadeestética.
Diante da enorme diversidade de manifestações artísticas, presen-tes na cultura popular e tradicional brasileira, discuto a viabilidade eadequação de uma antropologia da arte para o entendimento das brin-cadeiras. Afinal, não foi por acaso que tantos autores se dedicaram à ela-boração de teorias sobre a criatividade, a forma, a percepção e a funçãosocial da arte no mundo. Alguma coisa a arte parece ter a nos dizer enós a ela.
ARTE E ANTROPOLOGIA
Um aspecto fundamental da trajetória do conceito de cultura na históriada antropologia é quando este começa a estreitar os seus laços com oconceito de arte. Até meados do século XVIII, a palavra arte significa-
va predominantemente habilidade. Cultura, por sua vez, designava uma
tendência ao crescimento natural de investimentos agrícolas e cultu-rais. anto as plantas quanto os seres humanos podiam ser “cultivados”(Williams, 1958 apud Clifford, 1988).
A partir do século XIX, arte passa a designar progressivamente umdomínio especial da criatividade. O artista era visto como alguém do-tado de capacidades especiais. Habitava um reino de sensibilidade re-finada, e, com isso, o padrão de criação artística, e mesmo a estruturada arte, se alterava. Se, numa fase artesanal, o padrão de gosto de umpatrono era o que prevalecia como base para a criação sobre a fantasiapessoal de cada artista, com a transição da “arte de artesão” para a “artede artista”, este, com seus modelos inovadores, passa a apontar para no-
vas direções o padrão de produção e fruição estabelecido de arte. Suaprodução se livrava da dependência de um comprador, ocasião ou estiloespecífico e passava a ser dirigida a um mercado de indivíduos anôni-
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mos, que agora viam, ouviam e liam com base naquilo que indicava opróprio artista (Elias, 1995).
O termo cultura seguia um curso paralelo, vindo a significar aquiloque era mais elevado, sensível e precioso, isto é, mais incomum, na so-ciedade. No entanto, a partir do século XX, emergindo como domíniosde valor mutuamente reforçáveis ou mesmo como estratégias para reu-nir, marcar, proteger as melhores e mais interessantes criações humanas,enquanto o termo cultura referia-se a todas as sociedades existentes nomundo, um número crescente de objetos exóticos, considerados primi-tivos, ou arcaicos, começavam a ser vistos como “arte”. Arte e culturatornavam-se categorias gerais. Mas, se uma definição plural ou antro-
pológica de cultura surgia como uma alternativa humanista em relaçãoàs classificações racistas e classistas da diversidade cultural, ainda assimum considerável resquício das definições anteriores era passível de seridentificado, principalmente no campo da arte (Clifford, 1988).
Numa época em que valores como o individualismo, expresso atra- vés de um apreço formalista e de uma valorização do artista enquantoindivíduo genial, tinham retirado da experiência artística o seu carátersocial, é decretado “o fim da arte” (Moraes, 1999). No contexto de uma
sociedade ocidental moderna, o que se questionava era o papel secun-dário que a experiência artística tinha passado a ter na vida dos homens.Pois, embora a produção de obras de arte fosse relativamente intensa,sua importância tornara-se subalterna e voltada para outros interesses.
A sentença de morte, assinada pelo filósofo Hegel, em seu Lições de
estética, levava em consideração a arte amparada por conceitos comoo belo e o sublime enquanto sustentáculos da experiência estética e aosquais o espaço e o tempo encontravam-se restritos. Obedecendo às re-
gras de um sistema que reduzia todas as coisas, inclusive a arte, a objetosde consumo, a sociedade estaria legitimando o desenvolvimento de ummercado de bens culturais e entretenimento, no qual tinham sido inclu-sas as obras de arte (Moraes, 1999). Se a experiência estética encontra-
va-se manipulada por interesses comerciais e, ao mesmo tempo, restritaa universos particulares como um assunto privado, o papel da arte, aoingressar nesse novo contexto, deveria ser profundamente revisto.
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91A antropologia da arte ou a arte da antropologia
A antropologia nasce em meio a esses questionamentos. O interessepela natureza das diferentes formas e lógicas de organização cultural
veio inaugurar uma discussão sobre a universalidade e a particularidadeda experiência humana. Mas, se o conhecimento acerca da existência deoutras culturas evidenciou o quanto o outro se mostrava um interessan-te objeto de estudo na medida em que representava o novo, o diferente,o original, a ênfase recai num primeiro momento sobre o seu caráterestranho, exótico e desigual. O fato de essa atração pela diferença terservido para a construção de imagens depreciativas do outro muito nosrevela sobre como a arte, em diversas culturas, foi tratada, colocando--o, por vezes, mais no papel de objeto que de sujeito de estudo. O outro
ainda era aquele do qual se falava, e não com quem se falava. E, se asua produção artística era incorporada ao mercado de arte ocidental, omesmo interesse não se manifestava em relação à sensibilidade estéticaque a produzira.
ermos como primitivo, tradicional , autêntico, popular incorpora- vam significados que, num primeiro momento, ao referirem-se às di-ferentes expressões culturais como situadas numa escala de evoluçãohumana bem definida, traduziam o exótico como infantil ou cultural-
mente incorruptível (Price, 2000). Podia-se suportar a diferença com acondição de que ela se restringisse a um outro tempo. Porque, se todoscompartilhavam o mesmo tempo histórico, com particularidades cul-turais, evidentemente, somente a produção ocidental possuía o estatutode arte.
A obra de Franz Boas representou uma tentativa pioneira de pensara diferença fora de uma lógica evolucionista. Um dos primeiros antro-pólogos a utilizar-se do conceito de cultura em contraposição ao de raça
para refletir sobre os comportamentos humanos, Boas rejeitava qual-quer teoria que pretendesse explicar o mundo de forma unívoca, defen-dendo a complexidade de cada sistema cultural, sobre o qual somente arealização de um exame metódico poderia chegar a uma compreensãoadequada. Introdutor do particularismo histórico que, mais tarde, ren-deu à antropologia frutos como o conceito de relativismo cultural , Boasinsistiu em abordar cada costume levando em conta o seu contexto, o
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92 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
que implicou na conclusão de que cada cultura era dotada de um “estilo”particular que se exprimia através da sua língua, das suas crenças, dosseus costumes e também da sua arte (Cuche, 1999).
A arte, segundo Boas (1947), teve sua origem em duas práticas: asatividades técnicas e a expressão das emoções e dos pensamentos logoque estes passaram a desenvolver formas fixas. O gosto artístico basea-
va-se numa reação a essa forma. E o efeito estético da obra, desenvolvi-do a partir de um controle da técnica, encontrava-se ligado ao gosto queengendrava o domínio da mesma e ao prazer produzido pela perfeiçãoda forma.
De uma maneira ou de outra, todos os membros da huma-nidade gozam de prazer estético. Não importa quão diverso seja
o ideal que se tenha de beleza; o caráter geral do gosto que esta
produz é em toda parte da mesma ordem. Porém, cada cultura
deve ser entendida unicamente como um produto histórico de-
terminado pelo ambiente social e geográfico em que cada povo
tem sido colocado e pela maneira que desenvolve o material que
chega a seu poder como aporte do exterior ou como fruto de sua
própria faculdade criadora (Boas, 1947, p.15).
A articulação entre uma compreensão universal da experiência es-tética e particular das manifestações e dos valores expressos por estatinha como objetivo fazer da arte um legítimo objeto de análise, assimcomo um campo de estudos potencialmente crítico à hegemonia de umpensamento que pressupunha a existência de um equipamento mentaldo chamado homem primitivo, diferente daquele do que se entendia por
homem civilizado. Responsável pela disseminação da ideia de uma esca-la de desenvolvimento humano e cultural, o evolucionismo era o projetoteórico de investigadores que, segundo Boas:
[...] esqueciam com demasiada facilidade que a lógica da
ciência — esse ideal inexequível de descobrimento de relações
puras de causa e efeito, não contaminadas por nenhum tipo de
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93A antropologia da arte ou a arte da antropologia
prejuízo emotivo nem de opinião comprovada — não é a lógica
da vida (idem, 1947, p.8).
Para Boas, todas as atividades humanas podiam assumir uma formaque lhes concedesse mérito estético. Um grito ou um movimento coti-diano podiam possuir atributos de beleza, mesmo sendo, muitas vezes,apenas o resultado de um reflexo passivo ou de necessidades práticas.O prazer estético podia também ser desencadeado pelo canto de umpássaro, pela contemplação de uma paisagem ou mesmo por um saboragradável. Mas, afinal, qual seria a diferença do prazer estético obtidoa partir dessas “formas naturais”, por um lado, e a partir de melodias,
esculturas, pinturas, danças, pantomimas, por outro? Boas afirmava queambas as formas possuem valor estético, porém apenas as últimas po-dem ser consideradas arte. Por arte — produção estética criada pelo es-forço humano —, deveríamos entender todo resultado de um processode criação que se desdobra em algo que possui forma. Esta seria a suacaracterística essencial.
Quando o tratamento técnico alcançou certo grau de exce-
lência, quando o domínio dos processos de que se trata é de talnatureza que se produzem formas típicas, damos ao processo o
nome de arte, e, por mais sensíveis que sejam, as formas podem
ser julgadas do ponto de vista da perfeição formal: as ocupações
industriais como as de cortar, talhar, moldar, tecer, assim como
as de cantar, dançar e cozinhar, são suscetíveis de alcançar ex-
celência técnica e formas fixas. O juízo da perfeição da forma
técnica é essencialmente um juízo estético (idem, 1947, p.16).
Essa seria a diferença e a complementaridade entre o artístico e oestético. Assim, sua antropologia da arte tornava-se possível. A ênfaseatribuída ao princípio da forma apontava para as diferentes maneirasexistentes de apreciação estética. Se a forma tinha o poder de se manter,no entanto, o mesmo não acontecia com o significado. Muitas vezes, ofato de determinados traços culturais serem excessivamente tenazes a
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ponto de sobreviver aos tempos modernos deu a impressão de que acultura tradicional era quase estável, permanecendo por muitos sécu-los com uma mesma forma. Segundo Boas, somente uma investigaçãodetalhada poderia levar à identificação do constante fluxo de mudançasque permeia essas manifestações estilísticas, às vezes temporariamenteestabilizadas e outras vezes sofrendo rápidas transformações.
Delineia-se, assim, o lugar ocupado pela arte no projeto epistemoló-gico particularista histórico ou culturalista de Boas. A conexão existenteentre arte e cultura, categorias indissociáveis (Clifford, 1988) tomadascomo fenômenos primariamente humanos, baseia-se numa perspectivaantropológica que se quer cultural , onde a arte representa em si mesma
um campo privilegiado para o exercício da investigação antropológica,porque sua historicidade intrínseca, a um só tempo formal e semântica,condiciona sua especificidade enquanto objeto de “ciência” e demandaprocedimentos analíticos próprios (Almeida, 1998, p.9).
Anos mais tarde, uma comparação entre “arte civilizada” e “arte pri-mitiva”, feita por Lévi-Strauss (1961), não apenas levou a uma críticadaquilo que na arte ocidental moderna parecia ser o obstáculo a sersuperado, como também levou à conclusão de que artes culturalmente
diferentes produzem soluções formais diferentes e, por isso, devem seranalisadas sob referenciais próprios. Marcada pelo academicismo, peloindividualismo e pelo caráter figurativo ou representativo, a arte ociden-tal com sua aparente incorporação e assimilação de elementos externosa ela, segundo o autor, acabou por desenvolver um “jogo gratuito delinguagens” (Lévi-Strauss, 1961, p.94), que só contribuiu para a perdada sua função semântica e para a falta de comunicação entre público eartista.
“É nesta exigência ávida, nesta ambição de capturar o objeto embenefício do proprietário ou mesmo do espectador, que me parece re-sidir uma das maiores originalidades da arte de nossa civilização” (Lévi--Strauss, 1961, p.77). A distinção entre o individual e o coletivo, perti-nente a um tipo de arte que se situa dentro da sociedade como atividade
voluntária, independente e consciente, devia ser considerada somenteentre as sociedades ocidentais modernas, pois “[...] as sociedades di-
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tas primitivas reconhecem com mais objetividade o papel da atividadeinconsciente na criação estética e manipulam com uma surpreendenteclarividência esta via obscura do espírito” (idem, 1961, p.83).
Lembrando-nos de que não existe linguagem que se encontre forada sociedade, Lévi-Strauss desenvolve uma abordagem estruturalista daarte, em que propõe pensá-la como uma reflexão sobre o mundo e que,a partir de suas próprias convenções, exerce um poder de comunicação.Segundo o autor, uma série de fenômenos culturais resulta das mesmasoperações mentais. Por isso, toda criação tem como limite a sua própriatradição. O conjunto de costumes de um povo é sempre marcado porum estilo capaz de criar sistemas. Esses sistemas não existem em núme-
ro ilimitado e então:
As sociedades humanas, assim como os indivíduos — em
seus jogos, seus sonhos ou seus delírios —, jamais criam de modo
absoluto, mas se limitam a escolher certas combinações num re-
pertório ideal que seria possível reconstituir (Lévi-Strauss, 1996,
p.167).
O caráter artesanal aparece, em sua obra, como denominador co-mum de todas as manifestações estéticas. O fato de que, na arte, o artistanunca é capaz de dominar integralmente o material com que se propõea trabalhar, e os procedimentos técnicos de que se utiliza caracterizam ageneralidade do fenômeno. Ademais, se toda arte é linguagem e repre-senta um conjunto de sistemas de significado que elaboram uma reali-dade adicional, é importante lembrar que essa relação não se dá apenasno plano consciente.
O desenvolvimento de uma antropologia da arte tinha se configura-do, até o momento, em torno de uma herança kantiana de interpretaçãoda arte e da estética que — consideradas experiências puras; desprovi-das de apetite, necessidade e vontade; e baseadas na ideia de gosto re-finado — tinham por objetivo a sublimação dos sentidos consideradosmais humanos, cuja transcendência era realizada através da obra de umartista que encarnasse o papel de indivíduo genial. A diferença entre
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forma e conteúdo, prazer e divertimento, belo e bonito, gosto de refle-xão e gosto de sensação encontrava-se na base daquilo que o conceitode um tipo específico de arte, resultado de uma experiência histórico--cultural muito particular, tinha por objetivo realizar, isto é, distinção(Bourdieu, 1979).
A estética pura baseava-se na afirmação de um éthos que pretendiaexprimir oposições sociais enraizadas num mecanismo ideológico queconsistia em descrever etapas de uma evolução, caminhando da natu-reza em direção à cultura. A antítese prazer espiritual/prazer corporalestava na base de uma relação que opunha a burguesia culta, refinadae reservada a um povo inculto, primitivo e espontâneo. Segundo Bour-
dieu, é importante lembrar que Kant era defensor de um aprendizadoescolar da arte e que, portanto, a recusa do fácil , daquilo que podia serconsiderado simples, conduzia à recusa do que era imediatamente aces-
sível . O gosto puro repudiava a violência a qual se submetia o espectadorpopular. O abandono às sensações, a eliminação da distância, a perdado sujeito no objeto, a submissão às referências imediatas do prazerdo ventre e do sexo eram considerados uma redução à animalidade dacorporeidade.
É a própria humanidade, afirma Bourdieu (1979), que se pretendesubtrair com esse tipo de diferenciação. Nesse sentido é que a experiên-cia artística é tomada como fator distintivo. A diferença entre homens enão homens é o que vai caber à arte, nesse caso, realizar. A livre imitaçãoda criação natural, através da qual o artista realiza sua transcendência,faz da experiência artística, entre tantas outras, a mais próxima da ex-periência divina. Por isso, a teoria da beleza como criação absoluta quepermite ao homem imitar o ato divino de criação é a expressão mais
clara da ideologia daqueles que se autodenominam artistas profissionais.
O mundo produzido pela criação artística não é apenas uma
“outra natureza”, mas uma “contranatureza”, não é um mundo
produzido à sua maneira, mas contra as leis ordinárias da na-
tureza — as do peso na dança, as do desejo e do prazer na pin-
tura ou na escultura, etc. — por um ato de sublimação artística
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que é predisposto a preencher uma função de legitimação social
(Bourdieu, 1979, p.573).
Nesse contexto, a atribuição de um poder diferenciado a todo artis-ta, com firme comprometimento em relação à autossuperação e à rup-tura com sua própria sociedade, veio associar arte com transgressão,marginalidade, transformação, o que nem sempre se aplica às análisesque têm em vista o estudo acerca do papel, da função e do significadoda arte em culturas que simplesmente não costumam ser influenciadaspor tais perspectivas.
Segundo Overing (1991), apesar de existir uma antropologia da arte
que afirma e legitima a existência de culturas nas quais não se separama atividade e o julgamento de arte de seu uso, o problema é que “a esté-tica, no Ocidente moderno, desvencilhou-se de quase todos os outrosdomínios: separou-se da religião, da moral e do político, bem como dodomínio do conhecimento e da verdade”. Por isso:
endemos a colocar a arte na esfera da inspiração: é uma
atividade associal, que não pertence ao cotidiano. [...] Somos
influenciados pela remodelação kantiana da filosofia moral, em-presa que purificou a ética de toda estética e de todo desejo. Kant
limitou igualmente a ideia de conhecimento ao uso, teórico e
prático, da razão, de ambos, excluindo assim a estética (Overing,
1991, p.7).
De acordo com Overing (1994), em debate histórico realizado peloGrupo de Debates em eoria Antropológica, na University Library of
Manchester25, sobre a transculturalidade da categoria estética, existemlimitações analíticas intransponíveis na aplicação de categorias comoesta a contextos culturais não influenciados, historicamente, pela mes-ma tradição de pensamento.
25 Esse debate foi realizado no Muriel Scott Centre, John Rylands University Library of Man-chester , em 30 de outubro de 1993, e teve a participação de Howard Morphy, Joanna Ove-ring, Jeremy Coote e Peter Gow. Foi editado por James Weiner, em agosto de 1994.
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Assim, o argumento é que a categoria da estética, que não
pode ser concebida separadamente de inquietações modernas,
deve, mais do que qualquer outra coisa, ser superada pelos an-
tropólogos. Ela ameaça, de forma sutil, a compreensão e a tradu-
ção do conceito que outros povos fazem de beleza, pois carrega
em si as categorias do pensamento moderno (Overing in Wei-
ner,1994, p.10)26.
Essa visão da arte e da estética teve algumas consequências. De acor-do com Lagrou (1998), em primeiro lugar, a compreensão da arte comoum campo de experiências específico, do qual se poderia falar somente
em termos técnicos ou intraestéticos. O que, consequentemente, dificul-taria ao antropólogo realizar algum tipo de análise, a não ser que fosseum especialista, derivando daí a escassa produção de estudos aprofun-dados sobre o tema. Em segundo lugar, o fato de que, se os antropólo-gos resolvem encarar essa dificuldade, o risco de um viés sociocêntricoé tão grande que a arte acaba por ser compreendida como “reflexo econfirmação da estrutura social, algo sensível, sem sentido e estruturapróprios, um código visual confirmando o que pode ser melhor dito
em palavras” (Lagrou, 1998, p.48). O que, por fim, obscurece a maneirasingular e dinâmica com que a arte tem de agir como linguagem dian-te de uma sociedade, articulando instâncias geralmente consideradasopostas, como realidade e fantasia, mundo natural e sobrenatural, corpoe mente, forma e conteúdo.
Essa resistência à análise que confere à obra de arte uma condição
de exceção tem como objetivo, segundo Bourdieu, além de desacreditarpreviamente as tentativas “necessariamente laboriosas e imperfeitas” da-
queles que pretendem submeter esses produtos da ação humana ao tra-tamento ordinário da ciência, afirmar a transcendência espiritual daque-les que sabem reconhecer-lhe a especialidade, remetendo-se novamenteà velha antinomia do inteligível e do sensível. A ameaça que a ciênciaparece representar aos “defensores do incognoscível” quanto ao seu po-
26 Todos os trechos deste debate citados ao longo do livro foram traduzidos do inglês porClarisse Meireles.
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der desencantatório — que, colocando o amor pela arte sob observação,mata o prazer e, almejando compreendê-la, impede o sentir — é peloautor considerada ilegítima. Dado que “a possibilidade de uma liberdadereal em relação às suas determinações é oferecida a todos aqueles quedesejarem e puderem apropriar-se dela” (Bourdieu, 1996, p.13).
A análise científica das condições sociais da produção, da recepção edas instâncias de consagração das obras de arte, segundo Bourdieu, lon-ge de reduzir ou destruir, intensifica a experiência artística. Isso porqueo conhecer é estar em condição de compreender e de sentir.
O amor pela arte, como o amor, mesmo e sobretudo o mais
louco, sente-se baseado em seu objeto. É para se convencer de terrazão (ou razões) para amar que recorre com tanta frequência
ao comentário, essa espécie de discurso apologético que o crente
dirige a si próprio e que, se tem pelo menos o efeito de redobrar
sua crença, pode também despertar e chamar os outros à crença.
É por isso que a análise científica, quando é capaz de trazer à luz
o que torna a obra de arte necessária, ou seja, a fórmula forma-
dora, o princípio gerador, a razão de ser, fornece à experiência
artística, e ao prazer que a acompanha, sua melhor justificação,seu mais rico alimento (Bourdieu, 1996, p.15).
Identificar no campo artístico e na obra de arte o que existe de his-
tórico e trans-histórico é tratá-los como signos intencionais e reguladospor alguma coisa, da qual também são sintomas. Lembrando-nos dascomplexas teorias da musicologia indiana, da coreografia javanesa, da
versificação arábica, dos relevos iorubás, Clifford Geertz (1983) subli-
nhou, no entanto, que o enfoque na reflexão artística não se encontra demodo algum limitado ao Ocidente ou à era moderna. Mesmo os artis-tas mais integrados em sua comunidade analisam sua produção de ele-mentos formais com base em uma enorme gama de representações. Aquestão é que o fazem de outra maneira. É isto que é preciso investigar.
Só na era moderna e no Ocidente, uma minoria se convenceu deque o debate técnico sobre a arte, seja qual fosse seu desenvolvimento,
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era suficiente para uma compreensão completa da experiência artística,isto é, que o segredo do poder estético estava localizado nas relaçõesformais entre os sons, as imagens, os volumes, os temas ou os gestos.
Em toda parte — e mesmo entre nós —, outras formas de
reflexão sobre a arte, cujos termos e concepções derivam de seus
conteúdos culturais, podem oferecer, refletir, questionar ou des-
crever um mostruário de ideias sobre a arte, conectando suas
energias específicas com a dinâmica geral da experiência huma-
na [...]. Isso implica, entre outras coisas, que a definição da arte
de qualquer sociedade nunca deve ou pode ser completamente
intraestética e que, além disso, esse tipo de definição raramentesupera um caráter marginal (Geertz, 1983, p.119).
O principal problema que se apresenta ao analisarmos o fenômenogeral do impulso estético, segundo Geertz, é o de como situá-lo dentrode outras formas de atividade social. Outorgar aos objetos de arte umasignificação cultural deve ser sempre um problema local. Sem se impor-tar quão universais podem ser as qualidades intrínsecas que fornecem
o seu poder emocional, as quais o autor não pretende negar, a arte nãosignificou a mesma coisa em todos os tempos e lugares. A variedade desistemas de classificação documentados até hoje pelos antropólogos re-
velam modos de “estar no mundo” que podem se expressar também emseus tambores, esculturas, pinturas, cantos e danças.
Os meios de expressão de uma arte e a concepção da vida que osanima, segundo Geertz, são inseparáveis, e não podemos compreenderos objetos estéticos como articulação da pura forma, do mesmo modo
que não podemos compreender a fala como um conjunto de variaçõessintáticas ou o mito como uma série de variações estruturais.
A capacidade, tão variável entre povos como entre indiví-
duos, para perceber o significado das pinturas (ou dos poemas,
melodias, edifícios, cerâmicas, dramas e estátuas) é, como todas
as demais capacidades humanas, um produto da experiência co-
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letiva que a transcende amplamente, e onde realmente estranho
seria conceber tal experiência como se fosse prévia (idem, 1983,
p.133).
Para Geertz, a partir da compreensão do sistema geral de formassimbólicas que chamamos cultura, é possível a compreensão do sistemaparticular que chamamos arte. Por isso, a seu ver, uma teoria da artedeve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da cultura, e não uma empresaautônoma.
Estudar uma forma de arte significa explorar uma sensibilidade.Uma formação coletiva cujos fundamentos são tão amplos e profundos
como a própria existência social. O profundo interesse de um artistapela sua arte, segundo Geertz, não deriva das suas propriedades intrín-secas, nem de alguma noção cultural generalizada que se poderia isolarcomo uma espécie de estética nativa. Sua origem encontra-se vinculada“a uma sensibilidade característica, em cuja formação participa o con-
junto da vida — uma sensibilidade na qual os significados das coisas sãocicatrizes que os homens deixam nelas” (idem, 1983, p.122).
Essa abordagem não só nos afasta da ideia de que a estética seja ape-
nas uma ênfase nos prazeres da técnica artística, como também de umaideia funcionalista de que as obras de arte são mecanismos complexospara definir as relações, sustentar as normas e fortalecer os valores so-ciais vigentes. A conexão fundamental entre arte e vida não reside emsemelhante plano instrumental. Mas, segundo o autor, num plano se-miótico, no qual se traça a vida dos signos em sociedade. Por isso, umaantropologia da arte não pode se basear num mundo de dualidades,paralelismos e equivalências.
Pois, se uma aproximação da estética pode se considerar se-
miótica — isto é, se se ocupa da significação dos signos —, isso
significa que não pode ser uma ciência formal como a lógica ou
a matemática, mas que deve ser uma ciência social, como a his-
tória e a antropologia (Geertz, 1983, p.144).
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Geertz não considera sua interpretação um legado a favor da exclu-são da forma, mas da busca de suas raízes no que chama de a história
social da imaginação moral — isto é, na construção e desconstrução desistemas simbólicos com os quais os indivíduos ou grupos de indivíduosdesejam dar algum sentido “ao sem fim de coisas que sucedem a eles”.Por isso, defende o fato de que não temos de nos enfrentar unicamentecom estátuas, pinturas e danças, mas com os fatores que fazem com queessas coisas sejam importantes para aqueles que as elaboram.
ais fatores são tão variados como a vida mesmo. E, se existe algumponto em comum entre o conjunto de artes e os lugares onde elas acon-tecem que justifique incluí-las sob uma única rubrica de origem ociden-
tal, segundo o autor, não é o fato de que todas as artes apelem para umcerto sentido universal de beleza. Muitas vezes, esse sentido até existe,mas o que Geertz sugere como realmente importante é identificar seesses pontos em comum permitem responder ou não às pessoas diantedas artes exóticas com algo mais que um mero sentimentalismo etno-cêntrico, em ausência de um conhecimento do que aquelas artes são ounão de uma compreensão da cultura na qual se originaram.
A obra de arte não é uma forma vazia, nem tampouco, como pen-
sava Platão, uma forma de conhecimento do belo. É ao mesmo tempocriação e reflexão e também ponto de partida de uma outra experiênciaque é aquela do espectador. Um valor não se estabelece como valor pelosimples conhecimento das qualidades intrínsecas do objeto, nem apenaspela satisfação dos sujeitos. É preciso que seja considerada, ao mesmotempo em que o objeto encarna um valor, uma ideia de transformaçãodo sujeito na relação que ele estabelece com o objeto. É na experiênciado valor que se define esse valor, na experiência do belo que se define a
ideia de belo (Fabbri, 1996). Se existe algo de verdadeiramente comumentre todas as artes:
[...] reside no fato de que parece que certas atividades estão
especificamente desenhadas em todas as partes para demonstrar
que as ideias são visíveis, audíveis e tangíveis, que podem ser
projetadas de forma que os sentidos, e através dos sentidos, as
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emoções podem aplicar-se reflexivamente. A variedade de ex-
pressões artísticas provém da variedade de concepções que os
homens têm do modo como são as coisas. ratando-se, com efei-
to, da mesma variedade (Geertz, 1983, p.146).
O que essa discussão parece apontar é para a necessidade de encon-trarmos na arte aquilo que a caracteriza enquanto experiência dinâmi-ca e diversa. Os processos criativos e as escolhas estéticas podem e de-
vem ser qualificáveis. Porém, sempre a partir de categorias nativas queindiquem as tendências gerais do gosto. A antropologia, influenciadapelo evolucionismo, pelo funcionalismo e mesmo pelo estruturalismo,
desenvolveu até então sistemas de interpretação que davam conta damorfologia das manifestações artísticas ou privilegiavam as instituiçõesenvolvidas nos processos de legitimação. No primeiro caso, apegando--se demasiadamente à forma, no segundo, apropriando-se dela comoum simples pretexto para discussões de ordem sociológica.
O modelo estruturalista, ao privilegiar os fenômenos inconscientesinvariantes, os elementos universais, as correlações sincrônicas entresignificados, as mediações abstratas que escapam à temporalidade e re-
legam a diacronia a um plano secundário (Papavero, 2000), inibiu e sub- jugou, curiosamente, um dos elementos mais caros ao pensamento aoqual pretendeu contrapor-se. Como alternativa ao evolucionismo, evi-denciando o potencial contido na transposição do modelo da linguísti-ca estrutural à vida social concebida como linguagem, Lévi-Strauss deucontinuidade ao projeto boasiano de reconhecimento e legitimação deculturas consideradas simples ou atrasadas como objeto de estudo dig-no de análise e provido de complexidade. Porém, se no evolucionismo o
tempo serviu como base sobre a qual repousavam as diferenças culturaispor ordem de evolução, no estruturalismo ele acaba sofrendo um pro-cesso de homogeneização.
Lévi-Strauss acredita que, ao se estabelecerem relações entre
culturas distintas, seja mais correto estendê-las no espaço do que
ordená-las no tempo. O progresso não é necessário nem con-
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tínuo; ou melhor, ocorre através de saltos que não caminham
sempre na mesma direção (Canclini, 1983, p.22).
Em prol da afirmação de uma capacidade humana e universal paraa classificação, com base num equipamento mental comum, diluiu oevento em detrimento da estrutura, obscurecendo singularidades cultu-rais para as quais a disciplina antropológica deveria estar sempre atenta.
Enquanto isso, a antropologia interpretativa, evitando recorrer aelementos universais que pudessem render equívocas generalizações eafirmassem a supremacia do que é perene e totalizador sobre o que éacidental e histórico, procurou interpretar os fenômenos culturais como
“sistemas de significado” resultantes de uma “ação simbólica”, regida por“atores” que “modelam comportamentos transitórios”. Iluminando sen-tidos implícitos, atentando para a delicadeza dos gestos ou para a mi-núcia do significado atribuído a cada comportamento, sem tratar a cul-tura como um sistema de elementos isolados ou como uma elaboraçãoduradoura, situou os indivíduos em meio a uma “teia de significadosculturais que eles próprios teceram e na qual se encontram amarrados”.Sobre os quais, querendo o antropólogo obter alguma conclusão, terá
antes que se deter com problemas de tradução cultural. Mas, afinal, nãoé justamente em torno da transculturalidade de conceitos e experiênciasque essa discussão se constrói?
Vemos a Antropologia como uma disciplina que envolve a
tradução de eventos e comportamentos de uma cultura de modo
que possam ser compreendidos por membros de uma outra, em
termos do valor que tais eventos e comportamentos têm no con-
texto da cultura onde se originam. A Antropologia assim defini-da depende da existência de categorias transculturais, implícitas
ou explícitas, utilizadas no processo de tradução (Morphy in
Weiner, 1994, p. 4).
Estruturalismo e antropologia interpretativa dedicaram-se ambos auma análise do discurso social, mas divergiram quanto ao interesse pela
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105A antropologia da arte ou a arte da antropologia
investigação de aspectos “simétricos” ou “caóticos” da organização docomportamento humano. Salvaguardando a forma ou a força dos pro-cessos culturais, respectivamente, cada sistema procurou salientar as-pectos da realidade que lhe pareciam mais potencialmente expressivos.
A defesa de uma capacidade de classificação e ordenação universaldo mundo, no entanto, nem sempre parece ter dado conta das ambigui-dades, das contradições, das sobreposições que o contato com as dife-renças culturais nos apresenta. Um trânsito difícil de ser delimitado en-tre evento e estrutura revela o quão íntima e mesmo indissociável podeser a relação da estética com a ética, da matéria com a ideia, do corpocom o pensamento, da arte com a vida. O trabalho do antropólogo pa-
rece envolver um esforço duplo.
O discurso ideológico indígena deve ser registrado, analisa-
do, compreendido e talvez explicado, mas da mesma forma os
aspectos estéticos de como as pessoas vivem, experimentam e
criam o mundo em que vivem. O antropólogo deve tentar ver o
mundo como o povo que estuda o vê, tanto de forma ideológica
quando apreendida pelos sentidos. Em ambas as buscas, no en-
tanto, o antropólogo utilizará as categorias da estética transcul-turalmente (Coote in Weiner, 1994, p.21).
Na brincadeira do cavalo-marinho, vida e arte se constituem comodomínios não excludentes. Ao configurar-se como uma festa dentro deuma festa e, mais uma vez, dentro de uma festa27, suas categorias esté-ticas mostram-se permeáveis e contínuas. Do cuidado com os brinca-dores e destes com a vida depende a brincadeira. A expressão máxima
desse cuidado se revela através da arte do brincar, de forma consonante,livre do desmantelo.
27 A Festa do Capitão Marinho, em homenagem aos Santos Reis do Oriente, acontece no inte-rior da roda, isto é, dentro da festa que se expressa na própria brincadeira e que, por sua vez,acontece, atualmente, dentro das festas cívicas, religiosas e de cidade: a exemplo de Natal,Ano-Novo, São Sebastião, aniversários dos municípios da região, além de comemoraçõesparticulares.
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106 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Amparada por fins religiosos, políticos, econômicos, ideológicos, aexperiência artística já foi expressão de transcendência, de sociabilida-de, de lucro, de beleza. Sendo assim, é importante estar atento aos diver-sos e dinâmicos processos que cada cultura desenvolve para lidar coma sua própria produção estética. Uma antropologia da arte só é viávelse for também uma antropologia da vida, na qual por arte não se com-preenda apenas o resultado de uma criação ou o papel destacado e ex-traordinário de um criador, mas a elaboração de uma relação, orientadahistórica e culturalmente pela percepção e expressão criativa que se temda vida. Desse modo, é que arte e brincadeira, de maneira semelhante,representam pontes de acesso aos diferentes mundos que ao homem já
coube inventar, ao se organizar coletivamente em torno de um prazerestético.
O PENSAMENTO ESTÉTICO DE MÁRIO DE ANDRADE
O escritor, músico e poeta modernista Mário de Andrade, influenciadopelo debate inaugurado por Hegel, pela leitura de Kant, por incursões
antropológicas e sociológicas e pelo movimento modernista do qual fa-zia parte, também expressou em sua obra a importância de um questio-namento sobre o papel da arte na sociedade brasileira.
Identificando a perda de sua centralidade, o autor acreditava que aarte encontrava-se completamente desviada de seu propósito, qual seja,o de ser a base da vida dos homens em sociedade. A teoria da arte deMário de Andrade apoiava-se numa apreciação específica da história daarte que, segundo ele, podia ser dividida em dois grandes períodos. Oprimeiro, até o Renascimento ou, de modo geral, até o início da moder-nidade, orientado por um forte critério social, e o segundo, do início damodernidade até os dias de hoje, quando a exacerbação do formalismoe do individualismo, tornando-se notável em todas as artes, demonstra-
va o abandono daquele critério, produzindo um verdadeiro desvio nesseaspecto da história (Moraes, 1999).
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107A antropologia da arte ou a arte da antropologia
O romantismo era o principal alvo das severas críticas marioan-dradinas. A estética romântica, com sua ênfase na figura do gênio e naobra de arte total, era por ele considerada a principal responsável pelasituação em que se encontrava a arte ocidental, caracterizada pelo des-colamento entre vida e arte e, consequentemente, pelo divórcio entre opúblico e o artista. De acordo com o autor, o caos em que se encontra-
vam as artes do seu tempo derivava menos da enorme variabilidade detécnicas pessoais do que da ausência de uma atitude “mais ou menos”filosófica, isto é, de uma profunda consciência artística, que deveria sera única incumbência do artista.
Diante desse quadro, Mário de Andrade atribuiu à adoção de uma
atitude estética a possibilidade de ruptura com o exagero formal pre-dominante, recomendando que a técnica artística fique atenta às exi-gências da matéria, numa espécie de diálogo ontológico com ela, mastambém ao poder comunicativo da obra, numa espécie de recuperaçãodos laços sociais fundamentais para a efetivação da experiência artística.
Vale dizer que a primeira formulação do conceito de atitude estéti-
ca encontra-se presente em A educação estética do homem, de Schiller,autor romântico do século XIX, mencionado por Mário de Andrade em
sua aula inaugural intitulada O artista e o artesão, no curso de Históriae Filosofia da Arte na Universidade do Brasil, em 1938. Inspirada nasteses da Crítica da faculdade do juízo, de Kant, a referência ao caráter de-sinteressado da atitude estética foi o que chamou a atenção de Mário namedida em que caracterizava o juízo de gosto do ponto de vista da suaqualidade, além de ter a função de garantir a comunicação e a unidadedas dimensões sensível e formal que compunham a natureza humana(Moraes, 1999).
Sua compreensão de arte social não coincidia com a posição de-fendida por diversas correntes intelectuais da época que viam na arte apossibilidade de engajamento ideológico. Sua intenção era situar a di-mensão social da arte no interior mesmo do fazer artístico. A soluçãomaterialista era o ponto de chegada de seu percurso reflexivo que, deforma cada vez mais acentuada, buscava libertar a arte de critérios ex-clusivamente estéticos, no que se refere aos efeitos e condições do fazer
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artístico em si, para considerá-la como uma força viva na constituiçãoda vida dos homens em sociedade (Moraes, 1999).
O movimento modernista, do qual foi um dos idealizadores e prin-cipais expoentes, agrupava correntes artísticas distintas, mas todas elastinham em comum o repúdio às tradições acadêmicas. O movimentopode ser dividido em duas fases:
[...] a primeira, entre 1917 e 1924, foi de atualização das lin-
guagens artísticas, heróica, demolidora, carismática e privilegiou
o problema das artes; a segunda, entre 1924 e 1929, foi de cons-
trução nacional, consolidação das conquistas e abertura para
os problemas da sociedade, tendendo à politização (ravassos,1997, p.12).
Nesse contexto, em que se buscava nas tradições brasileiras a auten-ticidade necessária à constituição de uma verdadeira identidade peranteo concerto das nações, Mário de Andrade encontra na cultura popularo alimento para suas discussões teóricas e a solução ideal para a su-peração dessa nova configuração associal da arte, predominantemente
sentimental e virtuose, da época.Por isso, quando esteve à frente do Departamento de Cultura de
São Paulo, de 1935 a 1938, empreendeu, junto a alguns colaboradores,pesquisas de campo com finalidade de registro etnográfico em diversosestados do Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste brasileiros. Estimu-lado pela criação da Sociedade de Etnografia e Folclore (1936–1939)28,tinha como maior objetivo investigar os aspectos formadores da iden-tidade nacional. Mais especificamente o folclore e a música, artes que
para ele possuíam uma força socializante especial e encontravam-se emfranco processo de transformação, devido ao projeto de urbanização eindustrialização que vivia o País.
28 Ligada ao Departamento de Cultura, a Sociedade foi o resultado de um curso de etnograaministrado pela antropóloga Dina Lévi-Strauss. Fundada para orientar, promover, incenti-var, divulgar, manter intercâmbio com outras instituições, realizar conferências, cursos eexcursões de estudo, a Sociedade teve Mário de Andrade como seu primeiro presidente(Azevedo, 2000).
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109A antropologia da arte ou a arte da antropologia
Um dos projetos mais ambiciosos de sua gestão junto ao Departa-mento de Cultura foi a Missão de Pesquisas Folclóricas. Passando pordiversas cidades de Pernambuco, da Paraíba, do Piauí, Ceará, Maranhãoe Pará, a equipe assistiu a representações de bumba meu boi, cabocli-nhos, maracatu, reis de congo, tambor de crioula, tambor de mina, ba-bassuê, toré, xangô, catimbó, dentre tantas outras tradições populares.E, além de gravar, fotografar e filmar essas manifestações, ainda reuniucentenas de objetos, principalmente vindo dos cultos afro-ameríndios,que, apreendidos pela polícia do Estado Novo, foram doados ao acer-
vo da Missão. Num artigo para o Jornal Síntese, de Belo Horizonte, em1936, Mário de Andrade justificava essa empreitada:
É necessário, e cada vez mais, que conheçamos o Brasil. Que
sobretudo conheçamos a gente do Brasil. E então, se recorremos
aos livros dos que colheram as tradições orais e os costumes da
nossa gente, desespera a falta de valor científico dessas colheitas.
Porque a Etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela
tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas
severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos, eles vi-
rão a seu tempo. Nós precisamos de moços pesquisadores, que vão à casa do povo recolher com seriedade e de maneira comple-
ta o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado
pelo progresso invasor (apud Carlini, 1993, p.20).
A busca do “novo no velho” estava na base de um pensa-
mento primitivista paradoxal. Por um lado, a ideia de que certos
aspectos característicos de culturas menos influenciadas pela ci-
vilização moderna podiam ter validade para esta última, numaclara “descoberta do povo” pelos intelectuais, porque “uma arte
nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de ele-
mentos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo”.
Por outro, a ideia de que “o artista tem só que dar pros elemen-
tos já existentes uma transposição erudita que faça da música
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110 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
popular música artística, isto é, imediatamente desinteressada”
(ravassos, 1997, p.162).
Sua teoria da espiral expressava a necessidade de se passar pelo ar-tista o saber que é do povo, como forma de elevar, ao estatuto de arte,conhecimentos e habilidades ainda desprovidas de forma ou funçãoartística, porque regidas por impulsos ainda muito “interessados”. ra-tava-se de uma evolução circular na qual as etapas já percorridas retor-navam sempre de forma diferente, num cruzamento das perspectivasdiacrônica, evolucionista e organicista.
Assim, a ordem evolutiva das artes dos povos, recapitulandoa dos seres humanos individuais, iria da etapa primitiva, anôni-
ma, para a de particularização étnica, equivalente à formação da
personalidade. A esta sucederia a etapa modernista, que tem em
comum com a primeira impessoalidade e particularismos sacri-
ficados em nome de conquistas científicas e teóricas; nela tudo
é pensado, nada é fatal e inconsciente; como a primeira, tende a
uma nova personalização (idem, 1997, p.200).
Por isso, o primitivo não implicava simplicidade, mas uma formadiferente de pensar e agir que o autor chamaria de pensamento paralógi-
co em contraposição ao chamado pré-lógico, das teorias evolucionistas.Valendo-se, no entanto, de termos como tradição, natural e povo, ques-tões relativas à expressão e ao combate do sentimentalismo românti-co davam continuidade à sua busca por manifestações “autênticas” desensibilidade.
Se a arte não podia ser explicada através dos sentimentos, tambémnão podia sê-lo através das sensações provenientes do prazer corpóreo.A satisfação das necessidades do corpo provocava prazer estético, masnão artístico, porque submetido a “interesses”. A satisfação que a belezaartística proporcionava, a seu ver, era considerada distinta das sensuais,que atendiam às necessidades fisiológicas e utilitárias. A “arte pura” era
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111A antropologia da arte ou a arte da antropologia
aquela que produzia obras e objetos belos, inúteis, não funcionais, nãopragmáticos.
Sua hierarquia das sensações produziu uma especialização das ar-tes, que teve como consequência alinhar seu pensamento a um purismoestético. Às sensações auditivas e visuais foi atribuído o estatuto de fun-damento da criação e da apreciação artísticas, enquanto que ao paladare ao olfato não foi dada a capacidade de reconhecer o belo. O tato fica-
va numa condição intermediária, posto que guardava semelhança coma visão, em relação à sensação produzida por objetos tridimensionais.Cada uma com suas propriedades intrínsecas, quando confundidas, tra-íam sua natureza e tornavam-se sentimentais (ravassos, 1997).
Insatisfeito, porém, com a tendência excessivamente subjetivistadessa visão, e mesmo com sua inaplicabilidade diante de uma interpre-tação do Brasil como país em formação, com diferentes matizes e ele-mentos híbridos, de tradição recente e ainda por definir, o autor seguepela direção oposta: valorizando a técnica e a sociedade a que pertenceo artista (Andrade, 1963). Uma definição menos absoluta de beleza, apartir desse momento, passa a ganhar consistência em seu pensamento.Compreender, indiferenciadamente, a beleza como elemento intrínseco
da arte era o mesmo que considerar o individualismo como elementointrínseco do artista. E nada podia ser mais sentimental que o enormedestaque conferido ao indivíduo.
Ao remeter a atividade da arte à sua origem comum, com o artesa-nato, ou seja, a de produto dos primeiros ritos místicos, dos primeirosamores, dos primeiros sofrimentos do homem sobre a erra, Mário deAndrade confere à beleza o lugar de consequência, e não de fim a seralcançado; à necessidade de expressão o objetivo da arte; e, ao artista,
a particularidade de ser aquele que não vive da própria vida, mas da vida da obra de arte. Na adoção de uma atitude estética — coletiva ematerial — estava a maneira pela qual se poderia superar a perspectivaindividualista moderna. Mário de Andrade planejava o reencontro daarte com a sua verdadeira vocação social (idem, 1963). A técnica surge,nessa discussão, como um fenômeno na relação entre o artista e a ma-téria que ele move.
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112 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
[...] Que a arte na realidade não se aprende. Existe, é certo,
dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário pôr
em ação, mover, para que a obra de arte se faça. O som em suas
múltiplas maneiras, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espá-
tula são o material de arte que o ensinamento facilita muito a pôr
em ação. Mas, nos processos de movimentar o material, a arte
se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos
naquilo que se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquan-
to, que todo artista tem de ser ao mesmo tempo artesão (idem,
1963, p.11).
Com o objetivo de devolver a arte ao domínio do “artefazer”, que eraaquilo que dela fazia algo “essencialmente humano”, dedica-se, então, adiscriminar os atributos que caracterizavam a técnica de arte. O artesa-nato é a parte da técnica que mais se pode ensinar. Conhecimento queabrange as exigências, os processos, os segredos do material com o qualse pretende trabalhar é, geralmente, negligenciado, fazendo com que o“artista que não seja bom artesão, não é que não possa ser artista, massimplesmente não é artista bom” (idem, 1963, p.12).
A virtuosidade, outra parte da técnica, é o conhecimento e a práticadas diversas técnicas históricas da arte. ambém é ensinável e muitoútil, mas não deve ser considerada imprescindível. Não somente por-que pode levar a um tradicionalismo técnico, mas também porque podetornar o artista vítima de suas próprias idiossincrasias. Um virtuose éaquele indivíduo que não chega ao princípio estético, “mas que se com-praz em meros malabarismos de habilidades pessoais, entregue à sensu-alidade do aplauso ignaro” (idem, 1963, p.15).
A terceira e última região da técnica é a solução pessoal do artista.De todas, a mais sutil também é considerada, pelo autor, a mais trágica,porque é ao mesmo tempo imprescindível e inensinável. Concretizaçãode uma verdade interior do artista, esta é uma parte da técnica que “obe-dece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o queele é, como indivíduo e como ser social” (idem, 1963, p.13).
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113A antropologia da arte ou a arte da antropologia
Se, no passado, a criação artística era sujeita a ritos e liturgias deordem religiosa e profana, que faziam da beleza uma consequência daobra de arte, “um meio de encantação aplicado a uma obra que se des-tinava a fins utilitários muito distantes dela” (idem, 1963, p.19), só mes-mo com o Renascimento a beleza começa a se impor como finalidade.ornando-se objeto principal de pesquisa e fazendo com que à belezaideal se sobrepusesse o ideal de beleza.
Mas, apesar de nem sempre ter sido o objetivo ou princípio orien-tador da atividade artística, a noção de beleza sempre existiu. Porque“a natureza é como o deus posto em pedaços”. E, então, na tentativa derecompor artificialmente esses pedaços num todo imortal, é que teriam
se desenvolvido as principais formas de agir do homem. A moral, deri- vada do bem; a ciência, derivada da verdade; e a arte, derivada da beleza(Andrade, 1986). ais formas de agir são recomposições e, ao mesmotempo, deformações da natureza em um todo novo, pois “O homemprocura decifrar e ultrapassar a natureza, que é morte, pela ação, que é
vida” (idem, 1986).A arte, portanto, seria uma forma de agir que tenta dar sentido à
incompletude da experiência humana. Algumas hipóteses são sugeridas
pelo autor sobre as primeiras formas que ela teria assumido no mundo.Em uma delas, afirma que as artes teriam nascido todas juntas. Maistarde é que teriam se separado por especialização, para finalmente seconceituarem isoladamente. Num processo que iria da concentração,passando pela diferenciação, até a determinação. Esta seria sua hipó-tese evolucionista. Mas a arte também pode ter nascido do jogo. en-do percebido o prazer estético de certas sensações, o homem brincariacom elas no intuito de aperfeiçoá-las. Esta seria sua hipótese hedonista.
A arte pode ainda ter se originado de interesses práticos. O homem,em sua luta pela vida, agiria e criaria sempre com objetivos utilitários.ornando-se mais hábil, fazendo objetos mais elaborados, especiali-zando-se tecnicamente, chegando finalmente a uma determinação fixade beleza. Esta seria a hipótese realista. Mas a arte pode ainda ter tidosua origem na expressão dos sentimentos. E esta seria a sua hipótesepsicológica.
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114 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Como as artes estão sujeitas a incidentes e acidentes imprevisíveis,nada pode provar a origem exata de seu nascimento. Segundo Mário deAndrade, no entanto, a arte em suas origens sempre foi “uma tendênciade melhoramento, uma procura de aprimoramento do mundo e do ser”(1986). Nunca ambicionou reproduzir, imitar ou apenas representar anatureza, mas basicamente fundir quatro tendências: a da sublimação,tendência biológica de aprimoramento do ser e psicológica de moti-
vação purgatória; a da comunhão, tendência social do homem para oamor, no sentido mais geral dessa palavra, implicando instintos de pos-se, de afirmação narcísica, de comunicação com seus semelhantes; a daexpressão técnico-formal , em que o material deve ser tecnicizado para
tornar-se cada vez mais obediente para a realização das duas tendênciasanteriores; e a do prazer estético, em que, condicionado o material, re-freando as tendências anteriores, de maneira a se manifestar numa for-ma que o revele em sua melhor significância meramente contemplativa,tem-se o material e a forma em si como finalidade.
O valor vital da arte, segundo Mário de Andrade, encontra-se justa-mente no fato de ela ser ao mesmo tempo obra de sentimento e expres-são, com base num esforço de estilo, orientado por um prazer estético.
Sua grande contribuição a essa discussão, portanto, encontra-se no fatode que a arte não pode ser resumida à particularidade técnica e expressi-
va, como vimos em Boas (1947), nem a uma estrutura comum e univer-sal amparada pela linguagem, como vimos em Lévi-Strauss (1961), nema uma sensibilidade estética que atribui valores semânticos diferencia-dos à obra, como vimos em Geertz (1983). A arte, para Mário de An-drade, é sobretudo ação. Uma tentativa de dar sentido às experiênciasaparentemente desprovidas de sentido. Esta seria a característica que
distinguiria a arte de todas as outras atividades humanas. Havendo téc-nica, estilo e pesquisa estética, seria, portanto, incontestável a atribuiçãodo conceito de arte às manifestações mais variadas, identificadas desdeos primórdios da civilização.
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115A antropologia da arte ou a arte da antropologia
ARTE E CULTURA POPULAR
De início, vale destacar que não pretendo, de forma alguma, realizar
uma análise da produção intelectual folclorista realizada no Brasil. Sejapor sua abrangência, seja por sua enorme complexidade, o valor des-sa abordagem é inestimável, e, portanto, serão tratadas aqui somenteas questões que apontam para uma reflexão acerca dos princípios declassificação das formas culturais que os folcloristas convencionaram ounão chamar de arte. O que vem a ser obscurecido ou revelado quandoas artes são adjetivadas, na maioria das vezes, com base em categoriasestranhas ao seu contexto de produção? Até que ponto se pode ampliar
o espectro de um conceito, a partir de sua desconstrução e análise? Artee brincadeira, suas possíveis interconexões e especificidades, ainda sãoos condutores subjacentes desta discussão.
Refletir sobre os termos que visam designar uma enorme gama detipos de arte e cultura parece ser relevante na medida em que descons-trói parâmetros referenciais determinantes do julgamento estético queavalia o que merece ou não ser chamado de arte, em cada tempo e es-paço. O que vem a ser, afinal, a cultura popular e suas ditas manifesta-ções artísticas? Criação espontânea do povo, memória convertida emmercadoria ou espetáculo exótico de situações determinadas que a in-dústria cultural contribui para transformar em curiosidades turísticas?(Canclini, 1983).
A tradição dos estudos de folclore teve papel importante na históriada disciplina antropológica no Brasil. Embora esse campo de estudostenha sido introduzido no mundo intelectual europeu no século XIX,foi somente ao longo do século XX que ganharam corpo as discussõescom ênfase nos aspectos “autênticos” e “comunitários” das culturas do“povo” no Brasil. Refletindo sobre as mais diversas manifestações cultu-rais, os folcloristas fizeram de seu objeto de estudo a base para a defini-ção de um caráter nacional.
Um marco temporal relevante nesse campo de estudo é o da criaçãopelo etnólogo inglês William John Toms do neologismo anglo-saxão folk-lore, em 1848. Adotado com ligeiras adaptações pela maioria das
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116 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
línguas europeias para definir seu objeto, esse termo que designava o
saber do povo, vinha em substituição a outros, tais como antiguidades
populares e literatura popular , que referiam-se à prática, corrente naEuropa desde o século XV, de recolher as tradições preservadas pelatransmissão oral entre os camponeses, identificando nelas uma sabedo-ria incomum (Vilhena, 1997).
Os folcloristas foram os primeiros pensadores brasileiros a formularum discurso sistemático sobre o tema da chamada cultura popular . Oque significou uma reflexão sobre sua produção, assim como sobre oconceito que dela procurava dar conta. O uso de categorias como povo earte foi central nessa discussão.
Povo foi definido a partir de uma leitura purista, segundo a qual otermo apenas incluiria os camponeses, que viviam perto da natureza eestavam menos marcados pelo modo de vida moderno, o que lhes teriapermitido preservar os “costumes primitivos” por um longo período.Isso acabou por negar a condição de “populares” às manifestações daselites, das camadas médias e das massas urbanas de artesãos e operários.Além de obscurecer a circularidade existente entre todas essas classessociais, anulando ou suavizando o conjunto de trocas que incluía domi-
nação, violência simbólica e resistência cultural.Ao termo arte, por sua vez — inicialmente considerado inadequa-
do para a compreensão da produção e concepção estética desse “povo”— foram acrescidos adjetivos como popular , primitiva, ingênua. Nãoconseguindo escapar, igualmente, de uma interpretação erudita das di-ferentes concepções e apreciações estéticas regidas por distintas motiva-ções valorativas. O desafio de tentar compreender os princípios e funda-mentos do que era produzido por culturas não orientadas por categorias
estéticas hegemônicas no cenário ocidental moderno, embora de certaforma influenciado por ele, ainda permanecia latente.
Inspirados por uma perspectiva romântica, o mundo do folclore eda cultura popular era tido como primitivo, rural, comunitário, oral eautêntico, abrigando, assim, “nostalgicamente, a totalidade integrada da
vida com o mundo, rompida no mundo moderno. O povo encarnaria a visão de um passado idealizado e utópico” (Cavalcanti, 2001, p.70).
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117A antropologia da arte ou a arte da antropologia
Amparados por essa visão idealizada da cultura, entre os primei-ros folcloristas, segundo Vilhena (1997), era comum encontrar distor-ções no material coletado. Os versos eram corrigidos e os costumes deseus informantes suavizados para corresponder mais fielmente à ima-gem de ingenuidade e pureza. A interpretação sugerida falava menosda realidade dos grupos estudados do que da ideologia daqueles que osestudavam.
Por isso, apesar dos principais expoentes das ciências sociais daqueletempo terem tomado o folclore como um tema relevante para os debatesde grande repercussão da época, ele nunca chegou a ser considerado umcampo de estudos reconhecido pela existência de trabalhos com distintas
filiações teóricas e méritos intelectuais, mas, sobretudo, como uma fase dodesenvolvimento dos estudos sobre a cultura popular, cuja principal carac-terística seria a sua tendência a descontextualizar os fatos que analisava.
A inclusão de cada vez mais aspectos da vida cultural das cama-das populares no que se designava como folclore foi ainda outro fatorque levou a uma crescente imprecisão em relação ao objeto de estudoque caracterizava esse campo. As primeiras pesquisas registravam prin-cipalmente versos e lendas, transmitidos oralmente pelos camponeses
analfabetos, que pareciam aos seus coletores representar uma herança valiosa e antiquíssima. Gradativamente, o enfoque foi se ampliando,abarcando também melodias, danças, festas, costumes e crenças das po-pulações rurais.
No plano dos estereótipos, o folclorista se tornou o paradigma deum intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seuobjeto, que estudaria a partir de um colecionismo descontrolado e deuma postura empiricista. E os estudos de folclore, consequentemente,
uma disciplina menor com um recorte temático inadequado, praticadafora das instituições universitárias por “diletantes” (Vilhena, 1997).
Antes, porém, que essas considerações venham a relativizar a im-portância da produção intelectual dos estudos de folclore, me pareceimportante refletir sobre quais os motivos que proporcionaram o de-senvolvimento dessa perspectiva e das discussões por ela inauguradas.Essa busca pela cultura folclórica não era inspirada por um interesse
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meramente especulativo. A maioria dos folcloristas buscava, no “povo”,as raízes de uma autenticidade que permitiria definir a cultura nacionale, na “arte popular”, a sua expressão mais contundente. Esse movimentotambém rendeu o surgimento de muitas vanguardas artísticas, emer-gentes nos séculos XIX e XX, na Europa, que da mesma forma procu-ravam elaborar linguagens originais que os libertassem dos parâmetrosacadêmicos da arte ocidental (Lévi-Strauss, 1961).
O fato é que lidar com a produção artística de origem popular sem-pre foi tarefa bastante complexa. As dificuldades em definir parâmetrosdelimitadores desse universo estão referidas a diferentes fatores.
Alguns internos ao próprio campo teórico de conceituaçãode termos como arte e povo, e outros que dizem respeito à dinâ-
mica de transformação social vivida pelo País, sociedade plural
em que convivem os mais diferenciados contextos e dos quais
emanam as mais diversas expressões de arte (Lima apud Lima,
1999, p.111).
Mas a crítica ao prestígio dos estudos folclóricos, românticos e ten-
denciosamente descontextualizantes fez emergir um novo olhar sobrea produção artística popular. E uma outra forma de aproximação, dife-rente daquela empreendida então por folcloristas, que a tomavam ge-ralmente como objeto testemunho de uma tradição ou uma prática de
vida, se impôs, uma vez que:
A criação popular era vista, sobretudo, como documento e
objeto etnográfico. Efeito talvez da disseminação das ideias rele-
vadas dos estudos feitos, em fins do século XIX, por intelectuaisdo nível de Sílvio Romero, para quem as abordagens estéticas
conduziam inequivocamente ao uso artificial e adulterador do
material folclórico (Matos apud Mascelani, 1999, p.128).
Se o interesse pela poética popular, entre os folcloristas, tinha comopremissa fundamental o fato de que a autoria das obras populares era
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sempre coletiva ou anônima, sob essa nova perspectiva, essa questãopassa a ser problematizada.
[...] pelo viés da arte, onde vigora a ideia renascentista de
gênio autoral, integrantes das camadas populares podem ser
vistos como autores: indivíduos com características próprias e
pensamento original. [Porém] ainda que se comece a pensar em
autoria individual, durante muitas décadas, vão coexistir as duas
ideias, pois o conceito de povo como coletividade anônima ain-
da engloba e orienta a maior parte dos projetos ligados à arte
popular brasileira [...] e, em meio à grande diversidade cultural
existente, a arte, tomada como linguagem universal, desempe-nhava papel importante — denominador comum através do qual
os homens de todas as raças, etnias e credos podiam se entender
e reforçar os elos (Mascelani, 1999, p.129-130).
Apesar de essa abordagem ter contribuído para o alargamento dosconceitos de arte e povo, uma visão etnocêntrica vinculada às ideias evo-lucionistas ainda parece continuar operando dentre alguns trabalhos
nesse campo, sugerindo uma gradação de valor que opõe o simples erústico ao sofisticado e complexo. O primitivo, representando o autên-tico e o puro, também evoca certa estagnação e a fixação num estágioinferior. Designar como arte primitiva, folclórica ou popular uma gamaimensa de manifestações expressivas não implica uma evocação às qua-lidades estéticas peculiares dessa produção, mas apenas o fato de seremfeitas por um determinado segmento da população brasileira, compre-endido ainda de forma homogênea, o chamado povo.
Esse conjunto de fatores é o que costuma tornar difícil limitar ocampo específico da arte popular. O que indica, como nos sugere Mas-celani (1999), não somente “que essa é uma noção em fase de elabo-ração, a respeito de formas de arte que ainda estão sendo conhecidase compreendidas, como também que essas definições e a própria pro-dução são dinâmicas, sendo permanentemente alteradas e negociadas”(idem, 1999, p.136).
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Para descrever esse universo, portanto, o termo arte popular nãodeveria ser utilizado para indicar uma categoria explicativa a priori que,como tal, aponta uma realidade homogênea. Pois, além de abrigar rea-lidades diversas e particularidades que são necessárias desvendar paraa compreensão do significado das expressões artísticas e culturais queali residem, é resultante de um fluxo de valores e modelos de comporta-mento, de influências recíprocas que permeiam diferentes estratos dassociedades. Por isso, a abordagem mais adequada parece ser aquela que:
[...] ao atentar para as categorias imanentes aos próprios su-
jeitos sociais, busca entendê-los a partir de seu próprio discurso,
com base em suas visões de mundo, na construção de suas redesde relações sociais e no sentido que atribuem a suas vidas, ações
e representações (Lima, 1999, p.118-119).
Se for possível, a partir daí, desconstruir e ressignificar os conceitosde povo e arte, a ponto de ampliar e distinguir seus significados, serãoconsideradas muitas as culturas, assim como são muitas as artes. Umainvestigação simbólica sobre elas não deve se limitar aos comportamen-
tos observáveis e aos seus fins práticos imediatos. Parece fundamentalincluir no estudo das condições sociais de sua produção o que no inte-rior da cultura e da arte existe de indagação, de contradição e de utópico.
A cultura popular não é apenas o modo como essa arte, feita pelasclasses populares, reelabora as condições materiais e concretas da so-ciedade a que pertence, mas também o modo pelo qual ela imagina oque está situado para além dela (Canclini, 1983). Dessa forma, pareceser possível chegar mais perto do sentido que determinadas expressões
artísticas têm para aqueles que a realizam, assim como dos sujeitos quea realizam e das escolhas estéticas por eles veiculadas.
Soluções românticas que procuraram isolar o criativo e o artesanal,a beleza e a sabedoria do povo, imaginando de modo sentimental comu-nidades puras, sem contato com sistemas capitalistas de desenvolvimen-to, como se as culturas populares não fossem o resultado de processossociais; estratégias de mercado, que enxergaram os produtos, mas não
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121A antropologia da arte ou a arte da antropologia
as pessoas que os produziam, fazendo do popular o outro nome do pri-
mitivo; e o olhar turista, que naturalizou a cultura, espetacularizandoigualmente praias e danças, fazendo de tudo um cenário a ser fotogra-fado, não conseguiram produzir o que, segundo Canclini (1983), seria oenfoque mais fecundo sobre a cultura.
Pensando-a como um instrumento voltado para a compreensão,reprodução e transformação do sistema social, a perspectiva analíticadesse autor tratou de ver as culturas populares como resultado de umaapropriação desigual do capital cultural, da elaboração específica desuas condições de vida e da interação conflituosa com os setores hege-mônicos. Não se resume exatamente a uma reivindicação estética indis-
criminada que considera como bom e belo tudo que vem do povo sim-plesmente porque ele o faz, esquecendo-se de que vários de seus objetos,suas práticas e seus gostos são releituras das culturas que os oprimeme deles se apropriam. Mas a uma proposta de questionamento sobre oscritérios de classificação estabelecidos pela História da Arte, a Estética eo Folclore, abrindo essas disciplinas a um estudo crítico.
Por isso, a importância de serem consideradas muitas as culturaspopulares, assim como são muitas as artes, porque são diversas as suas
expressões e heterodoxos os seus usos. Uma investigação acerca da re-lação existente entre as realidades experimentadas e as imaginadas nãodeve reduzir o mundo a um discurso textual e linear. Pois, se há umadesproporção inevitável entre palavras e coisas (Sahlins, 1990), essa nãodeve ser entendida como sinal de inferioridade ou ausência de capaci-dade estética, mas como possibilidade criativa e espaço de reflexão.
Estudar esse caráter efêmero e variável dos processos culturais leva--nos a um questionamento acerca do que permanece, mesmo que atra-
vés de constantes revisões, e do que existe em toda produção simbólicae diz respeito à invenção de novas realidades, do jogo com o dito real,numa sucessão de tempos, espaços e sujeitos. Só assim parece ser possí-
vel compreendermos “[...] essas refutações ao real que construímos nossonhos, nos simulacros da utopia e da literatura, nos gastos sem retornodas festas e em todas as estratégias do imaginário e nas astúcias retóricasdo desejo” (Canclini, 1983, p.16).
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122 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Sob um prisma relativista, assim como existem múltiplas formas deconcepção e apreciação estéticas, existem também múltiplas formas de“artes”, que se fazem sem qualquer dependência criteriosa dos mundosartísticos instituídos como tais e onde residem alternativas que a arteoficial desconhece (ravassos, 1997). Essas artes não vivem o mesmotempo, mas vivem no mesmo tempo. E mais: dialogam e trocam in-formações entre si. Aquilo que se acredita não poder chamar de arte talvez seja apenas algo que a princípio não aparenta ter as característicasque determinam o que pode ou não ser considerado arte numa culturaespecífica. A sua aparente incomunicabilidade deve-se mais à ausênciade códigos ou referências em comum do que a uma impossibilidade ou
desinteresse em revelar novos mundos e experiências.Portanto, se conseguirmos libertar o conceito de arte da sua cargaelitista e eurocêntrica, incorporada a partir do século XVIII, se puder-mos estendê-lo às formas estéticas, que trabalham de outro modo comas relações sensíveis e imaginárias dos homens entre si e destes com oseu meio, talvez possamos incluir sob o nome de arte, sem risco de ne-gligenciarmos ou reduzirmos particularidades culturais, as manifesta-ções que têm sido enquadradas em classificações estranhas a elas ou que
subestimam o seu sentido de ser. Assim como as palavras podem assu-mir variados sentidos, um sentido pode abranger diferentes palavras.Os conceitos de arte e brincadeira são atravessados por significados eexperiências semelhantes que, à luz de toda esta reflexão, podem vir adevolver o artista à sociedade, além de promover o reencontro de todohomem com a arte e, finalmente, desta com a vida.
Muito mais do que uma reivindicação valorativa daquilo que “me-receria” ser chamado de arte e não é, todo o esforço aqui consiste mais
propriamente numa tentativa de entender a arte como relação ou comoexperiência estética vivenciada das mais diversas maneiras e difundidapor fenômenos que permeiam toda a existência social, e não apenas poraquilo que se expressa no que entendemos por obra, espetáculo ou ma-nifestação artística. E, talvez, quem sabe, mais importante do que atri-buir à brincadeira o estatuto de arte seja justamente o oposto. Isto é, darmais relevância ao fato de que a arte é, em alguma instância, brincadeira.
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123
O CORPO EM MOVIMENTO NO
CAVALO-MARINHO
Porque o que a gente diz na boca, tem que amarrar na munheca.
Mané Deodato, toadeiro e pandeirista do Cavalo-Marinho de Biu Roque
O corpo é um visível que se vê, um tocado que se toca, um sentido
que se sente. Quando a mão direita toca a mão esquerda, há um acon-tecimento observável cuja peculiaridade é a ambiguidade: como deter-
minar quem toca e quem é tocado? Como colocar uma das mãos como
sujeito e a outra como objeto?
Merleau-Ponty
A alma é ideia do corpo.
Espinoza
Neste capítulo, pretendo tratar do corpo da brincadeira. Com base numatravessamento mútuo, brincadeira e brincadores encontram-se envol-
vidos numa dinâmica que articula processos de formação e transfor-mação constantes. À luz de uma abordagem proposta pela antropologiado corpo, em diálogo com uma filosofia crítica da estética, aqui serádiscutido, num primeiro momento, o corpo como eixo de relação como mundo. Em seguida, a dança das figuras, através da relação figura e
figureiro, acrescida de uma breve reflexão sobre duas figuras, a Veia doBambu e o Ambrósio, e sobre a graça enquanto categoria estética nativadecisiva para a beleza da brincadeira. Por fim, os processos de aprendi-zado e transmissão de saberes. Formas diferentes de se mover podemnos revelar formas diferentes de ver e ser. A compreensão acerca do cor-po em movimento na brincadeira apresenta-se aqui como a ponte deacesso para uma análise sensível do cavalo-marinho.
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124 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
O CORPO COMO EIXO DE RELAÇÃO COM O MUNDO
De acordo com Le Breton (1999), a antropologia do corpo é um ramo
da antropologia particularmente dedicado à investigação das questõesconcernentes à corporeidade humana como matéria de símbolo e ob- jeto de representações do imaginário coletivo. Fenômeno social cultu-ralmente vivenciado das mais diversas maneiras, o autor nos lembra deque as ações que constituem a vida cotidiana, das mais particulares atéas mais públicas, são construídas a partir da elaboração de uma facul-dade perceptiva e cognitiva que nos permite ver, escutar, sentir, tocar,saborear e atribuir significados precisos ao mundo que nos cerca.
Portanto, o corpo não é um dado biológico, mas uma experiênciatão construída quanto a própria história que o cerca (Le Breton, 1999).O corpo não se encontra separado do mundo em que vive. Conhece omundo, conhecendo-se a si mesmo, isto é, em movimento. Surge, comisso, em contraposição à noção de corpo enquanto “um amontoado deossos, carne, sangue e pele”, a noção de um corpo que se pensa em ação,no qual o que prevalece é uma experiência de continuidade que se es-tende para a sua relação com as coisas e com os outros (Merleau-Ponty,
1984).
As representações do corpo e os saberes a ele associados são
tributários de um estado social, de uma visão de mundo e, no
interior desta última, de uma definição de pessoa. O corpo é uma
construção simbólica, e não uma realidade em si. Daí a miríade
de representações que busca lhe dar um sentido e seu caráter
heteróclito, insólito, contraditório, de uma sociedade a outra. O
corpo parece evidente, mas definitivamente nada é mais inapre-ensível. Ele nunca é um dado indiscutível, mas o efeito de uma
construção social e cultural (Le Breton, 2001, p.13-14).
O corpo é o eixo de relação com o mundo. É o lugar onde se cons-tituem as significações que fundam a experiência individual e coletiva.Através de sua corporeidade, o homem faz do mundo a medida de sua
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125O corpo em movimento no cavalo-marinho
experiência. Sendo assim, aplicada ao corpo, a antropologia encontra--se, de acordo com Le Breton (1999), diante de um imenso campo de es-tudos que diz que a condição humana é, antes de mais nada, a condiçãoda corporeidade humana.
Mas perguntar-se sobre o corpo significa entrar em contato comum sistema, um conjunto, uma coletividade. Desse modo, é importanteconsiderar que o processo de incorporação dos modos corporais não selimita nem se interrompe na infância. Estabelecem-se pela vida intei-ra, segundo princípios estruturantes e estruturadores, ressignificaçõessociais e culturais impostas pelos diferentes papéis e estilos de vida queassumimos no curso da existência (Bourdieu, 1979).
Além disso, as representações do corpo encontram-se invariavel-mente ligadas às representações da pessoa. Marcel Mauss (1974) foium dos primeiros antropólogos a introduzir, no debate acadêmico, umquestionamento sobre a maneira pela qual os homens — sociedade porsociedade, tradicionalmente — souberam servir-se de seus corpos. Cos-tumes e contextos passavam a ser vistos como intimamente relaciona-dos, estabelecendo um trânsito de informações, como aquele existenteentre ideias e valores, que, da mesma forma, se dava entre os corpos e
suas diversas maneiras de se comportar. Ao construir uma análise his-tórica na qual se constatava, por um lado, o caráter relativo do concei-to de eu e, por outro, a universalidade da experiência subjetiva, Maussafirmava nunca ter existido uma sociedade que não tenha, de algumaforma, representado a ideia da consciência de si, isto é, a consciência dopróprio ponto de vista somada à consciência da ideia que se faz da visãodo outro sobre si.
Louis Dumont (1997), dando continuidade a essa discussão, identi-
ficou, na ideologia ocidental moderna do individualismo, um conjuntode valores baseados em princípios cardinais, tais como a igualdade e aliberdade. Se a experiência da individuação era vivenciada universal-mente, seu intuito era o de apontar a variabilidade dos seus processos.Por isso, era necessário determinar claramente a diferença entre indiví-duo como valor e indivíduo empírico.
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126 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
A difusão de uma noção mais processual e transformacional do cor-po, resultante desses movimentos de relativização cultural, iria contri-buir futuramente para uma compreensão mais abrangente das diversaspossibilidades de experimentar a noção de eu. Não só um homem podiaser muitos, como muitos homens podiam existir num só. A antropolo-gia de Maurice Leenhardt (1971) deu consistentes passos nessa direçãoquando constatou entre os kanák, da Nova Caledônia, a ausência dosdualismos tipicamente ocidentais, o que levava a pensar que o indivíduonão existia fora de suas relações e pronomes substanciais. A ênfase noque sugeria ligação, mais do que diferenciação, caracterizava a expe-riência da pessoa na sociedade por ele estudada, na qual o corpo era
compreendido como suporte intercambiável e a individuação não eraresultante da noção de corpo como unidade total, mas enquanto feixede relações.
A concepção individualista hegemônica que pensava o corpo comoexperiência totalizante a partir da obra de Leenhardt passa a se ver dian-te de outras possíveis interpretações, relacionais e cosmológicas, quepensavam o corpo como parte29, como instrumento30, como lugar domúltiplo31, como algo a ser fabricado e decorado32, como devir33. A an-
tropologia, enquanto ciência que se propunha investigar a relação entreo eu e o outro, passava a ter que se questionar também sobre a próprialegitimidade dessa dicotomia, lançando-se rumo à complexidade e aosinterlúdios conformadores dessas experiências subjetivas.
Vale lembrar que, inicialmente, a estética era um discurso sobre ocorpo. Segundo Eagleton (1993), o filósofo alemão Alexander Baum-garten, em sua formulação original do termo, em Reflexões sobre poesia,de 1735, não se referia à arte, mas, tal como o grego aisthesis, a toda
região da percepção e sensação humanas, em contraposição a um domí-nio mais rarefeito e abstrato do pensamento conceitual. Em meados doséculo XVIII, a distinção que o termo estética fazia não era entre arte e
29 Becker, Anne (1995).
30 Clastres, Pierre (1974).
31 Goldman, Márcio (1985).
32 Lagrou, Elsje (1997).
33 Viveiros de Castro, Eduardo (1996).
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127O corpo em movimento no cavalo-marinho
vida, mas entre o material e o imaterial, coisas e pensamentos, sensaçõese ideias.
Este território nada mais era que a totalidade da vida sen-
sível — o movimento dos afetos e aversões, de como o mundo
atingia o corpo e suas superfícies sensoriais, tudo aquilo enfim
que se enraizava no olhar e nas vísceras, que emergia de nossa
mais banal inserção biológica no mundo e que a filosofia pós-
-cartesiana, por um lapso de atenção, teria conseguido curiosa-
mente ignorar (Eagleton, 1993, p.17).
Enquanto “ciência universal da subjetividade”, em contraposição à“tirania do teórico”, a estética pretendia atingir o sonho de reconciliaçãodos indivíduos tecidos em íntima unidade, sem nenhum prejuízo parasua especificidade (idem, 1993). Mas se, a princípio, seu objetivo erao de inaugurar um fértil terreno para a discussão sobre as sensações,elevada ao nível do conhecimento, a estética acaba por tornar-se umaespécie de “irmã da lógica” (idem, 1993, p.19). Segundo o autor, o pro-cesso de legitimação do sujeito, enquanto objeto, teria colocado o corpo
à disposição de uma colonização da razão que, extirpando-lhe toda asensualidade, teria sacrificado o sujeito ao estender a racionalidade ilu-minista a regiões vitais da experiência humana.
Por tudo isso, tal como já foi explicitado, essa categoria deveria sersuperada, pois “longe de ter um apelo universal, o significado de estéticaé intrinsecamente histórico” (Overing in Weiner, 1994, p.9), tecido poruma tradição de pensamento ocidental moderna, burguesa e elitista. Noentanto, mesmo tendo lugar estabelecido nessa tradição de pensamen-
to filosófica, de acordo com Morphy, a estética pode ser compreendidacomo um campo de discurso que opera processos cognitivos e portanto:
[...] se refere a uma capacidade particular de responder e
a uma forma de agir no mundo tão essenciais à noção do que
é ser humano quanto à capacidade de pensar. Enquanto antro-
pólogos aprenderam a não tomar nenhuma de suas categorias
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128 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
como universais, na prática tais categorias são de grande valor
para a pesquisa comparativa, mesmo se vierem a ser eventu-
almente rejeitadas. Argumentamos que a premissa “seres hu-
manos têm capacidade de resposta estética” é tão desafiadora
quanto “seres humanos têm capacidade de pensar” (Morphy in
Weiner, 1994, p.6).
Sendo assim, estou de acordo que “dar um significado novo aos pra-zeres e impulsos do corpo, mesmo que só com o propósito de colonizá--los ainda mais eficazmente, no entanto, sempre leva ao risco de enfa-tizá-los e intensificá-los para além de um controle possível” (Eagleton,
1993, p.28). Se podemos identificar na estética um potencial “ambíguoe perigoso”, que desafia a ordem social na sua avidez por capturar uma“subjetividade profunda”, deve estar no corpo, organismo sensivelmenteexperimentador de paixões, a capacidade de escapar ou, ainda, de rein-
ventar os domínios da razão. A estética envolve uma capacidade huma-na de classificar, julgar, relacionar, que se desdobra em muitos outroscampos da vida.
[...] tomada aqui no seu sentido mais amplo, não se aplican-do exclusivamente e necessariamente ao conceito de belo, mas
também às noções de justeza e de qualidade da execução, com-
petência dos executantes, maneira de avaliar uma dança e sua
música segundo as normas culturais de uma sociedade. [...] Se o
tamborzeiro toca mal, os jovens que trabalham o piso com seus
pés farão o trabalho sem alegria e sem eficácia. E, segundo as
funções e os destinatários da dança, se a música e a dança são
mal executadas, os ancestrais não apreciarão a oferenda e nãoabençoarão seus descendentes, os deuses não encarnarão pelo
transe no corpo do dançarino, a divindade não terá sucesso, a
alma do morto não poderá partir para o mundo dos mortos, a
terra ou os animais não serão fecundos, os caçadores retornarão
de mãos abanando, os guerreiros serão vencidos, os convidados
para a festa vão brigar ao invés de se ligar pela amizade, a ordem
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129O corpo em movimento no cavalo-marinho
cósmica será perturbada ao invés de ser confirmada. Ou, no caso
de uma dança puramente profana, a noite será um desastre, o
coração do jovem ou da jovem não será conquistado, os especta-
dores não irão encorajar ou remunerar os dançarinos com gritos
de apreço ou com dons materiais (Zemp, 1998, p.18)34.
Com o objetivo de resgatar o mundo da vida de uma certa sobrie-dade racional, que universalizou dicotomias e determinou leis de causae efeito, uma outra natureza humana é proclamada por Bakhtin (1970),a partir da análise da obra de François Rabelais. A incorporação de fi-guras como a do trapaceiro, do bufão e do bobo em seus romances —
máscaras até então ligadas aos palcos teatrais e aos espetáculos ao arlivre — vem trazer à tona uma concepção estética da vida prática quese convencionou chamar de realismo grotesco. Assumindo a função dereunir o mundo que se desagrega, essas figuras constroem sobre ele umanova base comportamental. Esses personagens dão a si o direito de nãocompreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a vida, de fa-lar parodiando, de não ser literal, de não ser o próprio indivíduo, dearrancar a máscara dos outros, tornando pública a sua vida privada. O
corpo e suas necessidades mais urgentes, principalmente alimentares esexuais, passam a ocupar a cena principal (Bakhtin, 1993).Esses personagens cujos corpos não são individuais, mas coletivos
— porque, assim como invadem, são invadidos —, vivem, morrem, re-nascem e mostram-se em toda a intimidade de sua existência. Fazendouma clara propaganda da cultura do corpo, ajudam a devolver-lhe a pa-lavra. E, aos sentidos, a sua realidade e materialidade. Segundo Bakhtin,excedem-se em tudo como forma de se sentirem menos insignificantes
diante do mundo e da sua incompreensão sobre ele (Bakhtin, 1993).
Se o projeto da estética começa no Iluminismo com uma
judiciosa reinserção do corpo num discurso arriscadamente abs-
trato, chegamos, com Mikhail Bakhtin, à consumação revolucio-
nária dessa lógica, quando a prática libidinal do corpo explode as
34 Tradução minha do francês.
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linguagens da razão, da unidade e da identidade em mil pedaços
supérfluos. Bakhtin leva o impulso modesto inicial da estética
a um extremo fantástico [...] numa explosão de riso obsceno,
enquanto o materialismo vulgar e desavergonhado do corpo —
barriga, ânus, genitais — atropela a cortesia da classe dominante.
Por um momento breve e politicamente permitido, a carne faz a
sua insurreição e recusa a inscrição da razão, colocando a sen-
sação contra o conceito e a libido contra a lei [...], transgredindo
as fronteiras do corpo num jogo de solidariedade erótica com os
outros (Eagleton, 1993, p.245).
O corpo do cavalo-marinho guarda algumas semelhanças com essasfiguras. Múltiplo, safado e incipiente, ele denuncia contornos caracterís-ticos da brincadeira. A vadiação e a provocação o tornam um complexode necessidade e vontade. A crença no longo e inacabado processo deaprendizado e transmissão de saberes o coloca na situação de que é pre-ciso estar sempre em movimento para que se consiga alcançar algumconhecimento diante da complexidade da brincadeira. A noção de arte
já teve como um dos seus principais significados a ideia de confusão,
travessura, ato mau (Pereira da Costa, 1976).A seguir, pretendo discutir como a brincadeira propõe um tipode relação com o mundo que atravessa o corpo do brincador, fazendodele um instrumento do samba. A arte da brincadeira consiste nesseatravessamento.
A DANÇA DAS FIGURAS
Uma definição intercultural da dança, proposta pela antropóloga norte--americana Judith Hanna, diz que ela pode ser definida, de forma maiscompleta, como:
[...] um comportamento humano composto, do ponto de
vista do dançarino, por sequências voluntárias que são intencio-
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nalmente ritmadas e culturalmente estruturadas, formadas por
movimentos corporais não verbais, diferentes das atividades mo-
toras e portadora de valores inerentes e estéticos (Hanna apud
Zemp, 1998, p.10)35.
Compreendida como uma das mais antigas manifestações rituaiscoletivas, em devoção às forças sobre-humanas, a dança, segundo Câ-mara Cascudo (1998), teria sofrido modificações no seu caráter sagra-do, imediato e utilitário em função da difusão de um espírito lúdico,fruto de um longo processo de autonomização da arte, que diversificoua sua função social ao longo dos tempos. Às danças evocativas e isoladas
teriam vindo se somar às de domínio coletivo, de participação geral,de colaboração “instintiva”, nas quais cada par ou dançarino passava ater um papel único e fundamental. Danças de divertimento, de alegriaexpansiva, de lirismo estético, de concepções espetaculares que, aindaassim, mantiveram seu caráter ritual e sua capacidade intrínseca de ex-pressar crenças, valores, conceitos e categorias de pensamento de umadeterminada sociedade (Cascudo, 1998).
A dança do cavalo-marinho marca o início e o fim da brincadeira,
além de seus entremeios. É composta pela dança do mergulhão (DVD– track 1), dança dos galantes, dança dos arcos (DVD – track 5), dançadas figuras (DVD – tracks 2, 3, 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14) e rodagrande. De maneira geral, é uma dança com ênfase na unidade inferiordo corpo. Do ponto de vista dos padrões de pé, está basicamente orga-nizada a partir de sete passos, fortes ou leves, mas sempre extremamenterápidos e diretos. As variações são infinitas, mas costumam enfatizar apisada no chão ou a cruzada de pernas. Os braços não têm atividade
muito enfática, funcionando mais como estabilizadores do movimento,que se concentra da cintura para baixo. A exceção fica com a dança dosarcos, composta por desenhos coreográficos realizados por dois cordõesde galantes, em que os avanços, recuos, círculos, trançados enfatizam osdesenhos de braço. À bacia, geralmente, cabe a função de sustentar opeso do corpo, que, se estiver muito direcionado para o chão, inviabiliza
35 Tradução minha do francês.
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a continuidade da dança por tempo prolongado, tamanha a sua veloci-dade. Isso implica em uma grande atividade do centro de gravidade docorpo, mais do que do centro de levitação, fazendo dos passos, muitas
vezes, quase saltos. E, da ativação da região pélvica e abdominal, soma-da à projeção do tronco na dimensão sagital e à soltura da articulaçãocoxofemoral, uma base importante para a movimentação.
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133O corpo em movimento no cavalo-marinho
No cavalo-marinho, dentre todas as suas danças, a dança das figu-ras é aquela que apresenta o maior desafio, em termos de representaçãográfica e descrição detalhada, ao pesquisador interessado em registrarpadrões precisos de movimentação. Mais do que a performance basea-da em desenho coreográfico específico, já que de uma forma geral elaspossuem padrões de pé semelhantes e percorrem basicamente a mesmatrajetória espacial dentro da roda. O que está em jogo aqui é a relaçãosujeito-dança.
As figuras são os personagens do cavalo-marinho. Podem aparecercomo homens, mulheres, jovens, velhos, mas também como animais ouseres fantásticos, em grupo ou sozinhas, de forma episódica ou prolon-
gada, fazendo alusão à realidade e ao imaginário local. São escravos,senhores, bêbados, soldados, comerciantes, médicos, bobos, valentões, velhos doentes, mulheres fogosas. Na maioria das vezes, encontram-semascaradas, mas também podem vir montadas em armações de bambu,munidas de espadas, arcos com fitas coloridas, vassouras, saco nas cos-tas, entre outros elementos cênicos. Possuem um objetivo em comum,ao chegar ao pé do banco, que é o de sambar. Juntas, as figuras contamuma história que é o resultado do entrelaçamento da história de todas
elas em forma de canto, verso e dança.Ao chegarem à roda, no ponto diametralmente oposto ao banco,
são recebidas por Mateus e Bastião que, dançando em direção aos to-cadores, encaminham-na até uma região onde, junto com o Mestre eo banco, a figura vai desenvolver a sua cena: negócios com o Capitão,interrupção e liberação da brincadeira, louvações, dramas pessoais, su-ítes coreográficas e, na maioria das vezes, uma ode a si mesma, semprerespeitando o princípio da chamada e da despedida.
Pode-se dizer que as figuras são tudo aquilo que existe entre a dançae a música, pelo fato de que está com elas a parte mais dramática dabrincadeira. No entanto, como a separação entre as linguagens artísti-cas não se encontra claramente demarcada nesse tipo de brincadeira, épossível entendê-las também como as verdadeiras provedoras da dança,da música e da poesia.
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134 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Sob a forma de personagens, mas, segundo Biu Roque, também en-quanto gêneros musicais — tais como o São Gonçalo e o samba — ouestilos de dança — como o mergulhão, a dança dos arcos, a roda grande—, elas caracterizam momentos específicos da brincadeira. Por isso, nãoé suficiente compreendermos por figura somente os personagens quechegam para sambar na roda do cavalo-marinho. Pois figuras tambémseriam as etapas que se sucedem ao longo da noite.
São as figuras que ditam boa parte do andamento da brincadeira.Primeiro, porque o ritmo de um cavalo-marinho depende do encadea-mento de uma figura na outra, assim como de sua performance. Segun-do, porque figura também é denominação, informalmente utilizada na
referência aos brincadores. O rabequeiro é uma figura; o toadeiro, outrafigura; o Mestre, ainda outra, o que nos permite pensar que são elas en-tão as verdadeiras responsáveis pelo samba, pois, além de organizaremo seu desenvolvimento, a brincadeira é, e não pode deixar de ser, feitapor sujeitos, isto é, por figuras. Reunindo, portanto, três significados —personagem, etapa e brincador —, figura é tudo aquilo que possui sub-
jetividade criadora de atmosferas diferenciadas ao longo da brincadeira.Geralmente, encontram-se vinculadas a uma determinada hora
da noite. Enquanto algumas pertencem ao início dela, outras são maisconstitutivas da alta madrugada ou ainda do amanhecer. E, embora nãoexista uma sequência rigidamente definida que chegue a estabeleceruma ordem predeterminada, o que existe é uma relação de interdepen-dência entre as figuras, que sugere, muitas vezes, o surgimento de umadepois da outra, e que torna mais adequado falarmos, tal como já foiargumentado, em ritmos ou regularidades, em contraposição a umapossível estrutura.
Problemas na transmissão dos saberes, inconstância de brincado-res, trânsito de figureiros por entre vários grupos e escolhas estéticasdiferenciadas são alguns dos motivos que contribuem para a constantereestruturação de uma brincadeira de cavalo-marinho e, dessa forma,para o surgimento de novas combinações, encadeamentos e caracteri-zações das figuras dentro dela. Além disso, o improviso, enquanto téc-nica de representação recorrente nas brincadeiras da região, aliado à
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memorização baseada na versificação métrica, favorece a produção deinesperados dentro de um universo que está sempre por se fazer, porqueé extremamente disponível para a história de vida de cada brincador epara as intervenções do público.
Colocar ou botar figura são as expressões utilizadas entre os brinca-dores para designar a habilidade e a incumbência do figureiro. A apa-rente objetividade das expressões encerra, no entanto, as noções de for-ma e função, simultaneamente. Da mesma maneira que está relacionadaa uma tarefa, obrigação ou papel específico dentro da brincadeira, botar
figura nos remete a uma visão de mundo bem particular, já que a habili-dade para dançar, cantar ou versar de um determinado modo encontra-
-se intimamente ligada a um gosto ou prazer estético específico dentroda brincadeira. “Eu gosto de todas as partes. Mas os dedos da mão nãosão iguais”, afirma José Severino Seabra, conhecido como Mocó, Bastiãodo Cavalo-Marinho de Biu Roque.
Cada brincador e, consequentemente, cada figura tem a sua própriamaneira de dançar. Refiro-me aqui ao pantinho, categoria nativa queprocura dar conta da expressividade ou estilo pessoal que qualifica e in-dividualiza o samba de cada brincador e que poderia ser relacionado ao
conceito de qualidade de movimento elaborado por Rudolf von Laban.eórico, educador, dançarino, coreógrafo e pesquisador do movi-
mento, Rudolf von Laban foi um dos maiores críticos da modernidadeno início do século XX. Com o objetivo de superar a limitação do con-ceito de dança, assim como fizeram alguns antropólogos em relação aoconceito de arte, Laban enfocou o movimento como algo experimen-tado universalmente, mas elaborado particularmente. Sua pesquisa en-tre os operários das fábricas inglesas levou-o a procurar a dança nos
movimentos mais cotidianos como forma de recuperar o elo perdidoentre o sujeito e o seu tempo. Se as festas tradicionais já não eram maistão comuns, isso não significava que o homem tinha parado de dançar.Era preciso procurar a dança onde, em princípio, não se via mais dançaalguma. Isto é, nos corpos em movimento; para o autor, o denominadorcomum de toda e qualquer atividade humana (Laban, 1978).
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Se, por um lado, podíamos entender o movimento como uma sériede ações que traçam trajetórias, apontam direções, evidenciam níveis econstroem planos, o que Laban chamou de corêutica, também podía-mos descrevê-lo em termos de como cada uma dessas ações é realizada,através do que ele chamou de euquinética (Miranda, 1980). Em seu Sis-
tema de análise do movimento, as dinâmicas e os esforços cinesiológicospodiam ser descritos com ênfase em seus aspectos qualitativos. É o con-ceito de qualidade de movimento que pretende dar conta disso.
Se, por um lado, prender-se ao sentimento significava reduzir asparticularidades de cada dança; por outro, separar emoção e moçãotambém não era o melhor procedimento de análise para uma dança.
Por isso, a construção de uma teoria do movimento que recusasse nãoapenas um discurso anatômico-mecanicista como também o seu coro-lário, isto é, um discurso psicologizante, era o objetivo de Laban. Assim,todo movimento deveria ser compreendido como o resultado do tipode relação estabelecida com os quatro fatores que, segundo ele, o cons-tituiriam: espaço, tempo, peso e fluxo. Da combinação de pelo menostrês desses fatores, seria possível obter a descrição de uma qualidade
de movimento que caracterizaria, por sua vez, uma ação básica. Aqui
não vem ao caso detalhá-las minuciosamente. Mas enfatizar que, atra- vés desse sistema de análise do movimento, três questões fundamentaisforam levantadas para um debate mais complexo sobre a dança, nessecaso, viabilizando uma abordagem antropológica.
A primeira questão diz respeito à introdução de uma nova noção decorpo. Um corpo atravessado pelas próprias linhas espaciais que pro-duzia, que era a síntese entre o pensar, o agir e o sentir e que admitiatorções exageradas, giros extáticos e quedas vertiginosas porque as di-
mensões vertical, horizontal e sagital passavam a ser enfatizadas. A se-gunda diz respeito a uma nova noção de espaço. O espaço relativo, emcontraposição ao espaço absoluto do balé — onde o sujeito era objetode forças polares e cuja direção privilegiada era sempre aquela onde selocalizava o público — significava dar um destaque maior para o dan-çarino enquanto sujeito da ação, capaz de criar o seu próprio espaço,dependendo da relação com ele estabelecida.
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Por fim, a introdução de uma nova noção de dança. A desconstru-ção do conceito de dança, até então restrito ao balé clássico e àquelesque se autodenominavam bailarinos, conferiu a faculdade da dança atodo e qualquer corpo que se movia dentro de alguma cultura. O con-sequente destaque dado à categoria movimento, que vinha substituir ade dança, levava à conclusão de que ele era algo experimentado univer-salmente, mas elaborado particularmente, através de combinações va-riadas ou qualidades de movimento, construídas a partir das diferentesrelações e combinações possíveis entre os seus quatro fatores. A capa-cidade universal para a dança encontrava-se, portanto, amparada pelasingularidade que cada corpo experimentava ao se movimentar, como
resultado de um processo histórico e cultural. E, então, se o corpo eraalgo construído, a dança também.Essa perspectiva analítica parece adequada aos estudos de culturas
tradicionais, nas quais as fronteiras entre as linguagens não são tão mar-cadas. Nelas, a dança pode ser entendida também como música, músicacomo dança, que, somadas à poesia, ao drama e ao ritual, sugerem dife-rentes possibilidades de classificação ou conceituação desse tipo de ex-periência. No caso do cavalo-marinho, essa perspectiva também parece
adequada no sentido de que o pantinho é bastante valorizado na brin-cadeira. Categoria que aponta justamente para o aspecto qualitativo damovimentação, o pantinho é o que diferencia e qualifica o samba de cadabrincador. Refere-se à expressividade pessoal e às diferentes maneirasque se tem de transformar em beleza e graça as possibilidades contidasno momento presente, sob a forma de trejeito, mandinga, munganga ougracejo. “Ele já foi e já voltou no samba, chama o pantinho. Bulir. Ele
vai dentro e volta fora. Pantinho é o chamego”, afirma Inácio Lucindo
da Silva, o Mestre Inácio, do Cavalo-Marinho de Camutanga. Espéciede qualidade de movimento em que os elementos a serem combinadospassam pela relação entre figura e figureiro, o pantinho é decisivo, uma
vez que a graça que cada brincador traz à brincadeira é fruto de um en- volvimento muito particular com determinado papel dentro dela. E, porisso, não é qualquer brincador que pode colocar qualquer figura.
Existe uma relação de afinidade entre figura e figureiro que se es-tabelece desde o processo de aprendizado. A capacidade de memoriza-
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ção, de improvisação, de movimentação e o desejo ou interesse que cadabrincador desenvolve de dominar algum tipo de conhecimento que lheproporciona prazer na brincadeira são condições necessárias para de-terminar esse processo. Um figureiro pode colocar muitas figuras numasó noite. Isso será determinado pelo número disponível de figureiros,que pode exigir mais ou menos da versatilidade do brincador, mas tam-bém pelo prazer da experiência que “colocar” determinadas figuras lheproporciona.
O dançarino, quando se movimenta, transporta um mundo consigo.Por isso, ainda de acordo Laban, a experiência do movimento não podeser reduzida a uma combinação de passos ou trajetórias, mesmo que
submetida à mais fina análise (Isabelle Launay, 1992). No cavalo-mari-nho, entrar e sair de cena não chega a se configurar como movimentosclaramente objetivos. Muito da vida de um brincador entra junto comele na roda quando este coloca uma figura. Provavelmente, por isso, asfiguras muitas vezes são chamadas pelo nome próprio ou apelido do fi-gureiro que as coloca36. Saudações, comentários e piadas são feitos entreos próprios brincadores, mas também em relação a eles por parte dopúblico. Nesses momentos, é possível perceber o nível de intimidade e
a relação de continuidade que a brincadeira estabelece com a vida coti-diana dos brincadores.
As figuras são outros dentro de um só eu. A maneira como são co-locadas, na maioria das vezes, sem ruptura ou transição enfática, sugereque a multiplicidade é constitutiva da subjetividade ali em jogo. A defi-nição de máscara proposta por Mariano elles, figureiro desse cavalo--marinho, responsável por fazer as máscaras de diversos grupos da re-gião, parece levar em consideração esse aspecto:
A máscara se movimentando tá como viva. De fato, a pessoa
tá viva. Porque o cabra dançando nela dá vida pra ela. Porque tá
36 Numa brincadeira de cavalo-marinho, é possível ouvir todos esses nomes conviverem semprejuízo do samba. São muitas as maneiras de se chamar alguém na roda, apelidos estesque sempre surgem sob a forma de adjetivações irônicas. A percepção de que eu tambémintegrava essa dinâmica se deu quando comecei a acumular alguns apelidos, assumir papéisdentro da brincadeira e ser alvo de piadas.
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unida com a pessoa. á em movimento. Mas, se tirar e botar num
canto, ela fica quieta, se amostrando. Porque foi um serviço bem-
-feito, bem detalhado. Mas viva é outra coisa. Ela pessoalmente
tá gingando, tá bonita (Mariano elles, depoimento concedido à
autora, 2001).
A figura nem sempre é definida pela máscara ou pelo traje. Muitassão as figuras que se utilizam da mesma máscara ou do mesmo traje. Afigura está no figureiro. Na sua história, na sua forma de se movimentar,de cantar, de improvisar, de pensar, na sua capacidade e habilidade par-ticular para assumir vários papéis. Embora também esteja no momento
da noite e na relação que os brincadores e o público desenvolvem comela, o que contribui para a eventual ausência ou presença de uma ououtra em determinados períodos históricos. A figura é, de fato, uma ela-boração individual e coletiva com base no prazer estético que a música,a dança e a poesia proporcionam.
Existe uma estimativa, dentre os brincadores da região, que afirmacontar o cavalo-marinho com setenta e seis figuras. Um sentimento deorgulho, pela riqueza cultural que esse fato representa, costuma acom-
panhar o comentário. Segundo os mesmos brincadores, no entanto, aausência da maior parte delas, ao longo de uma brincadeira, estaria rela-cionada à falta de tempo e de interesse por parte do público local, assimcomo dos próprios brincadores, geralmente os mais jovens, seduzidospelas novas atrações que têm se popularizado na Zona da Mata Norte.
Nos últimos anos, uma verdadeira invasão de trios elétricos tem to-mado conta da região nos períodos festivos. Com uma potência de somestrondosa e um apelo comercial fortíssimo, esse tipo de divertimento
tem dificultado bastante a realização das brincadeiras. Com uma am-plificação sonora infinitamente menor, muitos cavalos-marinhos, hojeem dia, têm reduzido o seu tempo de realização, acabando quando ostrios começam a tocar. Como resultado desse processo, a brincadeiratem diminuído a sua duração e tem começado mais cedo. Com isso,muitas figuras têm desaparecido. E quanto a um possível retorno delas écomum ouvir dos brincadores um discurso lamurioso e, ao mesmo tem-
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po, resignado diante de uma realidade que vem reduzindo a condiçõesprecárias a realização da brincadeira e a sua transmissão.
Se cada figura tem, relativamente, o seu momento apropriado e umaduração adequada, ela também tem o seu sentido de ser e, no caso, deaparecer ou ser colocada na roda. As figuras, como os brincadores, sãosujeitos do tempo. Hoje em dia, o cavalo-marinho transformou-se em“brincadeira de gente velha, safada e cachaceira”, como afirmam algunsbrincadores. O valor que as novas atrações têm adquirido junto à po-pulação local, somado às dificuldades de reconhecimento, realização emanutenção da brincadeira, parece indicar que em algumas décadas ocavalo-marinho, tal como o conhecemos, pode, talvez, vir a se transfor-
mar em mais uma figura perdida no tempo.
VEIA DO BAMBU E AMBRÓSIO
A Veia do Bambu é uma das figuras mais populares entre os brincadoresde cavalo-marinho (DVD – track 11). Os figureiros que costumam colo-cá-la gostam de explorar a graça de se fingir de mulher e tudo o que isso
proporciona pelo fato de serem homens. É uma “figura quente”, afirmamalguns brincadores. Quando a Veia do Bambu chega à roda, a pretextode estar procurando a Ema, de longe já vem abanando a saia dizendo:“Ô coceira, ô calor!”. Em síntese, a sua dança consiste num abrir e fecharas pernas, cair no chão e escancará-las para o ar e levantar e abaixara saia, sempre tentando colocar homens, mulheres, velhos, crianças eanimais debaixo dela. “Quem quiser saber da minha vida... vem morarmais eu!”, costuma dizer para o público. A figura da Veia do Bambu tem
várias etapas. Sua chegada à roda se dá através da seguinte toada:
Rapaziada, samba eu e samba tu
Eu recebi o recado de chamar a Veia do Bambu
Oia a Veia do Bambu
Cruzeiro maia do sul
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141O corpo em movimento no cavalo-marinho
Segura a Veia do Bambu
Cruzeiro maia do sul
De início, mesmo com o pretexto da procura da Ema, ela deixa cla-ro que veio atrás de samba e, por isso, tem como objetivo ficar bembonita para quando o Veio, seu marido, também conhecido por ManéJoaquim, chegar. Nesse momento, o banco canta uma toada, em que, acada estrofe, dá um presente para a Veia do Bambu. Pulseiras, roupas,relógio:
Sinhá Veia, Sinhá Veia, seu marido vim buscar
Vai dizendo, meu netinho, onde visse ele passar
Vi passar em Rei de França, Reinado de Portugá
Vai dizendo, meu netinho, o que visse ele comprar
Comprou uma saia amarela pra Sinhá Veia usar
Num segundo momento, o Veio chega à roda e, da mesma forma
como se dá o encontro de Mateus com Bastião, eles se abraçam: senta-dos no chão, demoradamente, com as pernas de um por cima das dooutro, num encaixe sugestivo. Nesse encontro, a figura da Morte já vemse anunciando através de toadas, cantadas pelos dois, com o coro dobanco:
Faz um mês e quatorze dias que eu desci do meu Sertão
Eu encontro minha Veia na roda do Capitão
Tava na beira do fogo torrando a minha pipoca
Quando eu oiei pra trás, a Veia tava de coca
Eu queria ver a Morte que eu queria perguntar
Quem morre por mal de amor se vai para algum lugar
Minha Veia põe a cama que eu quero me deitar
A danada dessa Veia não deixa eu me assossegar
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142 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
A Morte me arrespondeu: ocê é muié entendida
Quem morre por mal de amor vai pro céu na corrida
A Morte anda no mundo matando quem quer viver
Quem não tá mais aqui é aquele que quer morrer
Ê, bambu, viva o sapo-cururu
Ao final dessa toada, geralmente, o Veio morre. A cada brincadeirapor um motivo diferente, diagnosticado por Mateus e Bastião ou pelobanco. Segue-se a este momento o canto das excelências, que tradicio-nalmente são cantos rituais de morte, entoados junto com a figura do
Padre Capelão, participação que na brincadeira costuma ser marcadapelo humor, através do abuso de trocadilhos, escrachos e piadas de du-plo sentido que se expressam no canto:
Dois inxelença no pé da sapucaia
Morreu Mané Joaquim com a cabeça cheia de gaia
Olá, morreu; olá, morreuCom a cabeça cheia de gaia
A gaia desse gaiudo, o Diabo tem parte nela
Saúde e felicidade, quem levou minha gamela
Olá, morreu; olá, morreu
Olá, morreu maracanã
Lá do céu desceu dois anjo alemão
Quem quiser tomar cuidado, seja
Olá, morreu; olá, morreu
Olá, morreu maracanã
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143O corpo em movimento no cavalo-marinho
Num terceiro momento, ainda lasciva e provocadora, a Veia doBambu continua tentando agarrar a audiência, agora com o pretexto doluto pela morte do Veio. Até o instante em que a figura da Morte entracuspindo fogo e vem buscar a Veia do Bambu, que sai montada nas suascostas, chicoteando-a como se a figura da Morte fosse um cavalo. A Veiado Bambu é uma figura que envolve e atravessa muitas figuras: a Ema,o Veio, ou Mané Joaquim, o Padre Capelão e a Morte. É uma figura quefaz parte da madrugada. Momento em que a audiência já se dispersoubastante.
Em meio à enorme diversidade de figuras que aparecem ao longode uma brincadeira de cavalo-marinho, o que implica não apenas em
quantidade, mas nas histórias que contam, nos assuntos que tratam enas relações que desenvolvem ao chegar à roda, o Ambrósio parece ser afigura que, através do seu canto e dança, comenta um pouco da própriabrincadeira ao ser colocada (DVD – track 8).
Geralmente, fazendo parte do início da noite, em alguns cavalos--marinhos, ele assume o papel de índice, apresentando as figuras que
vão surgir ao longo da brincadeira. Em outros grupos, aparece maispara o final da noite. Mesmo quando todas as figuras por ele enunciadas
não chegam a ser colocadas, em seguida, por outros figureiros, pode-sedizer que o Ambrósio assume o papel de uma espécie de arquivo, nãopermitindo que essas figuras desapareçam por completo da memóriacoletiva dos brincadores.
Logo de início, uma relação conflituosa se estabelece. O Capitãomanda chamá-lo porque sabe que ele vende figuras e quer comprar al-gumas delas para animar a festa. No entanto, enquanto um quer com-prar, o outro faz de tudo para não vender. Num primeiro momento,
Ambrósio diz que tem figura para todos os tipos de brincadeira — ba-bau, maracatu, ciranda —, mas infelizmente para cavalo-marinho elenão tem. Desde já, é bom atentar para o comportamento dessa figura,que, negando-se prontamente a desenvolver a brincadeira e, consequen-temente, a sua própria condição, parece nos dizer alguma coisa sobreo tipo de humor predominante na brincadeira e, dessa forma, sobre o
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144 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
que é ser figura de cavalo-marinho, estendendo o tempo, moldando oespaço, disponibilizando-se para o conflito.
Seu Ambrósio que vem ver Tem fgura pra vender
Seu Ambrósio venha cá
Tem fgura pra comprar
Depois da insistência do Capitão, o Ambrósio procura com bastanteatenção dentro de seu saco — a figura carrega um bastão nas costas,
onde estão penduradas algumas máscaras como representação do saco— e diz ter encontrado algumas poucas figuras. Surge então um novoproblema. Por pouco dinheiro, ele não vende nada. Parte da graça dafigura encontra-se na inversão de valores que ela propõe. Quando o Ca-pitão lhe oferece uma quantia determinada, geralmente, muito baixa,ele responde que é pouco, que a proposta é absurda e que ele só vendepor menos. E cada vez menos, conforme se desenvolve o diálogo. De-pois de longa negociação, em que finalmente eles entram num acordo,
fica acordado que as figuras serão vendidas por uma quantia ínfima oumesmo por nada, e daí começa a demonstração de danças.
Bota bonzinho, Seu Ambrósio
Bota bonzinho, Seu Ambrósio
Através da figura do Ambrósio, parece ser possível identificar o que
os brincadores entendem por todas as outras figuras da brincadeira. Istoporque, ao longo do processo de venda, o jogo estabelecido entre o Ca-pitão e o Ambrósio é o da representação. Enquanto o Ambrósio dançaenfatizando e sintetizando a forma como cada figura se movimenta, compassos, dinâmicas e gestos característicos, o Capitão tenta adivinhar aidentidade da figura representada. Como ele nunca consegue fazê-lo, aofim de cada apresentação, o Ambrósio ameaça ir embora, dizendo: “Mas
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145O corpo em movimento no cavalo-marinho
o capitão é burro que é danado! Eu vou m’embora e não digo!”. Ao finalde sua performance, depois de dançar inúmeras figuras, vem o momen-to da cobrança. O Capitão não quer pagar porque diz não ter visto nada,nenhuma figura sequer. Ao perguntar sobre o porquê de o Capitão nãoquerer pagar a Ambrósio, João Maurício da Silva, mais conhecido comoDoca Maurício, na época o Mateus do Cavalo-Marinho de Biu Roque,respondeu-me: “E você já viu algum Capitão pagar o que deve?”.
De certa forma, o Ambrósio é uma figura que fala sobre o própriofato de ser ou botar figura. A habilidade que o brincador deve ter paraassumir tantos papéis, dançar de distintas maneiras e memorizar dife-rentes universos subjetivos aponta para a versatilidade acima referida.
ambém fala um pouco do que é ser brincador. Não são poucas as vezesem que o público se dissolve e não se tem nem mais o contorno da roda,apenas alguns poucos tocadores e dançadores, brincando uns para osoutros. Ser figura e figureiro faz parte de um mesmo processo. Figuraé tudo aquilo que não é fundo. É o que se destaca, o que se movimen-ta. Uma forma de se inscrever no tempo, no espaço e de “fazer a noitemaior”.
SAFADEZA OU A BELEZA DA GRAÇA
A graça é um dos elementos que constituem o que se entende por be-leza ou boniteza entre os brincadores de cavalo-marinho. São muitosos momentos em que os brincadores se divertem com o que é dito, ouapenas sugerido, ao longo de uma noite de brincadeira. Numa conversacom Mané Deodato, pandeirista e toadeiro do grupo estudado, o brin-cador afirmava a importância do riso como uma das características fun-damentais da noção de beleza, comentando sobre a figura do Cego, hojedesaparecida da brincadeira. O uso da bengala como símbolo fálico;a declamação de loas ou frases de duplo sentido, como, por exemplo:“Pega na vara, Cego!”; e o seu comportamento aparentemente ingênuo,que o fazia enfiar a bengala em todos os buracos que enxergava pelafrente, justificava o sucesso da figura, rendendo bastante destaque e re-
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conhecimento ao figureiro que a colocava: “O chapéu do Cego ficavacheio de real. Era bonito demais quando a gente achava graça nele”.
O riso é um sinal de aprovação na brincadeira. Retorno que expressa
contentamento em relação à competência do brincador. Existe na graçaum prazer de desmontar, surpreender, transformar o público. “A graçaé fazer o povo rir, procurando, na teoria, o que é importante para botarbem a figura. Eu boto uma tal de uma Velha que, se o cabra tiver comtrês dias de raiva, ele ri. Ela é safada demais”, destaca Mocó.
A graça também é elemento de autotransformação. “odo brinca-dor, se não tiver manha, brinca muito duro, não faz samba”, afirma Ma-riano elles. A “manha” é uma espécie de disponibilidade que o brin-
cador precisa ter, voltada para o momento presente, o que lhe permiteimprovisar, contracenar e transformar tudo o que puder em piada. Mes-mo que ele próprio seja o motivo da piada.
Segundo Severino Alexandre da Silva, mais conhecido como BiuAlexandre, Mestre do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado,“Não tem um sambador de cavalo-marinho que não seja safado. Agora,menos eu”, afirma, às gargalhadas.
Porque, pra ser brincador, tem que ter duas caras: uma dehomem, a outra de safado. Se a gente for fechar a cara, a gente
não brinca. em que abrir a fisionomia. Abrir a vontade, o ca-
ráter. Se não for descarado, a gente não brinca. Mas é safadeza
limpa, não é suja (Biu Alexandre, 2001, depoimento concedido
à autora).
A safadeza limpa a que se refere Biu Alexandre é aquela que está a
serviço da brincadeira e que se resume apenas a ela, embora esse limiteseja sempre um tanto impreciso. E, por isso, o domínio sobre ele é umdos atributos que mais capacitam um brincador para o samba. Espé-cie de “falta de vergonha”, segundo Mané Deodato, que faz com que obrincador vá um pouco mais longe do que de costume. “Agora, tendo
vergonha, espiando pr’ali, pra baixo, pra boca do fogo... Calou!” E assimnão há samba.
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A vadiação e a provocação são os principais elementos que caracte-rizam a safadeza. O gosto pelo jogo, pela festa, pela farra, mas tambémpelo trocadilho, pela inversão, pela denúncia, caracterizam a naturezada graça e do humor no cavalo-marinho. Porque não está apenas noinesperado o motivo da graça. Mas naquilo que a forma e o conteúdoda piada vêm trazer à tona. No caso, geralmente, relacionadas à sexua-lidade e à violência.
A graça consiste também em dizer as coisas pela metade. Aqueleque tem uma boa ideia é melhor que não a diga inteira. Assim, as pes-soas ficam mais à vontade para rir. “Se a senhora tiver dez versos, sea senhora puder dizer só cinco, é melhor. Porque a pessoa aí fica com
vontade de ver de novo. em que levar no ritmo. Não pode cantar tudo,atravessar na frente pra botar”, comenta Mariano elles, numa aparenteafirmação de duplo sentido. A comunicação com o público, no entanto,nem sempre é o maior objetivo. “A safadeza, no cavalo-marinho, a gentediz, mas não diz direto. Às vezes, quem tá de fora não entende e a genteentende. Isso acontece muito no cavalo-marinho”, diz José Grimário daSilva, mais conhecido como Mestre Grimário, do Cavalo-Marinho BoiPintado, de Aliança. O limite entre a beleza e a falta de respeito, no en-
tanto, aparenta ser bastante sutil, mas seguramente orientado pelo saberque o samba proporciona. Um desses saberes diz respeito à medida doconsumo de cachaça durante uma brincadeira. Bebida destilada obtidaa partir da fermentação da cana-de-açúcar, a aguardente de cana é a be-bida mais consumida entre os brincadores de cavalo-marinho.
Presença marcante nas transações comerciais envolvendo
o tráfico de escravos, desde o século XVI, a cachaça contribuiu
para o crescimento desse mercado de exportação. Intrinseca-mente ligada à cultura e aos hábitos dos negros, a aguardente se
constituiu numa exigência protocolar nos cultos afro-brasileiros.
Não se arma um feitiço eficiente sem ela. ambém usada na
medicina popular, associada a outras ervas, a cachaça também
tem papel importante na culinária regional. O folclorista Mário
Souto Maior assinala que, em alguns engenhos, a aguardente era
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148 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
fornecida aos negros do eito como a primeira refeição do dia,
para que pudessem melhor suportar o árduo trabalho nos cana-
viais durante o inverno, pois os escravos trabalhavam seminus,
expostos à chuva e atolados no massapê37.
Nesse contexto, não é de se admirar que o alcoolismo tenha se tor-nado uma doença crônica na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Oíndice de mortalidade em idade adulta está diretamente ligado às seque-las deixadas no corpo dos consumidores de cachaça. O seu uso despertaas mais variadas opiniões, desde a sua exaltação, até a depreciação. Essesextremos indicam a forma como a maioria dos brincadores faz uso da
bebida, alternando períodos de intenso consumo, quando o salário épraticamente todo depositado nas bodegas da região, com períodos dedrástica suspensão da bebida, geralmente quando a fragilidade é tama-nha que começa a gerar as mais variadas complicações, de doenças adesordens na vida familiar e profissional.
Segundo Biu Roque, “A cachaça é malvada. Desmantela quem é vivoe quem é morto, quem bebe e quem não bebe mais. A gente toma ela,ela desce pra barriga e depois sobe pra cabeça”. Incidentes por conta da
bebida são muito comuns em brincadeiras de cavalo-marinho. ContaSebastião Pereira de Lima, o Martelo, que uma vez:
Chegou uma muié bem alta com duas muié baixinha. O
Mateus pegou brincando e soltando graça, piada. Quando foi de
meia-noite, uma hora da madrugada, chegou o marido da muié
com cada foice do cabo desse tamanho. Aí a Veia disse assim:
“Oi, fulano! Aquele Mateus moreno não, mas aquele Mateus alvo
soltou graça às muié a noite todinha”. Os cabra entraram numacasa assim, que era numa casa, beberam umas bicada e voltaram
pra matar o cara. O dono da casa chamou Inácio, pagou o di-
nheiro de meia-noite pra uma hora da madrugada. Saímos desse
37 Essas informações encontravam-se disponíveis na exposição permanente do Museu doHomem do Nordeste/Fundaj, na época de realização da pesquisa. O texto é de autoria deMario Souto Maior.
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cavalo-marinho de uma hora da madrugada nas carreira! Um
cabra que não sabe andar no mundo, rapaz, quer brincar cavalo-
-marinho... Eu já brinquei com esse tipo de gente (Martelo, 2001,
depoimento concedido à autora).
Mas a cachaça tem as suas qualidades. E assume lugar importantedentro da brincadeira. Segundo Mané Deodato, “Bom dançador temque dar umas bicadas, senão as ideia não vêm na cabeça. A primeirabicada dá um manifesto na gente, que vem assunto lá da casa do cacetepra cantar. Não bebendo, eu não sei fazer nada. Agora, bebendo é soirée,matinée e manhã de sol”. É mais uma questão de cuidado, que implica no
modo como os brincadores se relacionam com a brincadeira. SegundoLuís Carlos da Silva, mais conhecido como Luís Rodinha38, figureiro decavalo-marinho:
A cachaça atrapalha muito a coisa. Mas, se o dono do cavalo-
-marinho for se afogar demais com uma bicada, ele vai simples-
mente não brincar mais com ninguém. Mas é aquela história: se
ele souber entender o brincador, souber conversar com ele, antes
dele beber, conquistar ele, ele vai tomar uma lapadinha ou duas,mas não vai totalmente ofender. Mas se partir pra cima dele com
ignorância, ele não vai atender, vai criar raiva, vai beber, e termi-
na não valendo, porque ele vai fazer o que ele quiser fazer (Luís
Rodinha, 2001, depoimento concedido à autora).
Martelo é um caso raro na região. Abstêmio convicto, não bebe café,nem cerveja, nem cachaça. Em dia de brincadeira, ainda tem o costume
de não comer praticamente nada, além de ficar mais quieto e intros-pectivo. Essa conduta, segundo ele, é o que faz com que seja capaz debrincar cavalo-marinho.
38 Luís Rodinha nasceu em 06 de dezembro de 1966, em Condado, e veio a falecer em novem-bro de 2004, na mesma cidade. Luís Rodinha foi gureiro de inúmeros grupos da região. Suamorte foi relacionada às complicações resultantes do abuso da bebida.
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A gente quando tá moço não ousa beber, não ousa fumar,
passar as noites de sono dormindo bem pouco, não anda atrás
dessas muié doida. em que se separar de muitas coisas do mun-
do. E esse povo aí quando é moço não tem moda. Nunca pensa
que fica velho. Ou você acha que, se eu fosse estragar a mocidade,
eu com sessenta e quatro anos eu aguentava brincar cavalo-mari-
nho? Fazer pirueta no corpo que nem eu faço, eu não aguentava
mais (Martelo, 2001, depoimento concedido à autora).
O estilo de vida boêmio, sem dúvida, sempre estabeleceu intensarelação com o estilo de vida de artista. Segundo Bourdieu:
Com a fantasia, o trocadilho, a blague, as canções, a bebida
e o amor sob todas as suas formas, a boemia elaborou-se tanto
contra a existência bem-comportada [...] quanto contra as roti-
nas da vida burguesa. [...] Realidade ambígua, a boemia inspira
sentimentos ambivalentes, mesmo entre seus mais ferozes defen-
sores (Bourdieu, 1996, p.72-73).
Mas a boemia do cavalo-marinho encontra-se diante de um tipode ambiguidade perigosa. Entre a criação e a destruição de si mesmos,seus brincadores veem-se ao mesmo tempo inspirados com o uso dacachaça, mas também abatidos pelo seu abuso. De fato, o alcoolismo éapenas um dos sinais da carência social e alimentar que se expressa tam-bém na fome e na desnutrição, ambas de caráter endêmico nessa região,e que ainda inclui o alto consumo de açúcar como uma das causas daextrema fraqueza e da hiperatividade, alternadamente. “A monocultura
da cana-de-açúcar, que foi se tornando cada vez mais absorvente coma transformação dos antigos banguês em usinas, vem tirando toda apossibilidade de uma dieta alimentar mais adequada na Zona da Mata”(Rabello, 1969, p.55).
O que, por exemplo, o homem do povo absorve em calorias
da única refeição diária, de nenhum modo atende às suas exi-
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gências de trabalho. Igualmente, não tem outra causa o elevado
índice de mortalidade infantil e o das doenças de carência em
todas as idades da grande massa da população nordestina. Pode-
-se dizer que essa população vive permanentemente em crise —
uma crise que não dá na vista porque é um estado normal. Nin-
guém repara que a constituição física da gente do povo apresenta
características de velhice antes dos trinta anos ou que a duração
média de sua vida não vai além dos quarenta e quatro anos, a
partir de zero, considerando-se particularmente o pernambuca-
no (Rabello,1969, p.54).
O corpo, nessa região, passa por um processo de crescimento bas-tante violento. Se parece difícil identificar precisamente a idade dascrianças da região por guardarem um aspecto infantil até a adoles-cência, a mesma dificuldade é experimentada na maturidade, quandorapidamente podem ser percebidos sinais de envelhecimento precoce.A cachaça e o cigarro são os grandes responsáveis por esse processo.Evidentemente, somado à qualidade de vida que o trabalho no corteda cana impõe, principalmente aos homens, mas também às mulheres
dessa região — “mãos e pés da economia canavieira”.Nesse contexto, a farra assume um caráter de experiência extraordi-nária e perda de controle. Apesar de exigir do corpo uma grande quan-tidade de energia, o prazer que a brincadeira envolve é quase tão difícilde evitar quanto o prazer da cachaça.
Brinco porque caí na brincadeira. A gente, quando chega o
tempo que não brinca, fica doente. E, se tiver doente, fica bom.
Fica bom pra brincar, embora depois morra. Porque pega aquele vício. É o vício. E aí, quando chega o dia da pessoa brincar e ela
não vai, fica achando ruim. É os nervo que agita. (Martelo, 2001,
depoimento concedido à autora).
O prazer que a brincadeira proporciona, através da beleza, da graça,da safadeza, portanto, atua quase como uma espécie de proteção contra
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152 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
as tristezas e dificuldades da vida. Ser brincador é estar sujeito a umacondição transitória, sempre ameaçada por forças que o impelem a todoo momento a reagir, negando ou reafirmando a brincadeira, mas voltan-do a ela no ano seguinte, levando o povo às gargalhadas e contribuindo,assim, para o melhoramento do mundo.
DO SABER E DO SAMBAR
Muito comum entre os brincadores de cavalo-marinho, é ouvir, comoresposta à questão sobre a origem do próprio saber, um discurso autor-
referido, que, tanto quanto reverenciar um possível Mestre, preocupa-seem enfatizar o próprio desejo e interesse em dominar um saber especí-fico dentro da brincadeira, como tocar rabeca, colocar figura, puxar adança dos arcos, brincar de Mateus, etc. “Ninguém me ensinou a brin-car. Aprendi pela vontade mesmo. A gente olha pros pés do outro e de-
vagarinho a gente vai chegando”, afirma Inácio João da Silva, o InácioNobreza, figureiro do cavalo-marinho. Ou, segundo Luís Paixão: “O queme ensinou foi ver os meus tios e o meu avô tocando. Levei quatro anos
namorando a rabeca até pegar pela primeira vez”. Ou ainda, segundoLuís Rodinha: “Eu tiro a poesia da minha teoria, da minha cadência”. E,ainda, segundo Martelo: “Aprendi vendo os outros cantar. Daí, eu canta-
va no serviço, trabalhando, e, em casa, dormindo”.Ninguém começa brincando bem. O aprendizado envolve um longo
processo de observação, no qual, no início, o que prevalece é apenas a vontade de brincar: “inha vontade, mas não sabia”, costumam dizer os
brincadores. Geralmente, é importante passar por diversos papéis antesde começar a ser considerado bom brincador. Esse processo é semprelembrado com alguma ironia, como sendo um período difícil em que oprazer de brincar é abalado pela falta de conhecimento sobre a brinca-deira. Esse saber é construído e reconstruído no corpo de cada brinca-dor, a cada noite. Mesmo porque não são comuns os ensaios ou prepara-ções. A brincadeira, esta sim, é a própria preparação para a brincadeira.
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E isso não faz com que seu espaço e tempo sejam menos valorizados.Mas, sem dúvida, quanto mais iniciantes, maior é o risco do desmantelo.
“Quem não aprende é porque não se interessa”, costumam afirmaralguns brincadores. A rabeca, por exemplo, é considerada, pelos rabe-queiros da região, um instrumento diferente do violino porque não temescala. Segundo Antonio elles, no entanto, a questão é que: “A escala éfeita por nós. A gente tem que fazer nota pelos nossos dedos e no nossopensamento pra chegar até o ponto final”. Por isso, “Ninguém ensinaa tocar. Não posso pegar na mão do cabra. É meio ruim de ensinar opovo”.
O interesse é aspecto essencial para o sucesso do aprendizado.
Principalmente porque é bastante recorrente, entre os brincadores decavalo-marinho, a consciência de que o seu saber está sempre por sefazer e que aquilo que se sabe é sempre muito pouco. Comentários dotipo: “Vocês vão me desculpar, que isso aqui é só um arremedozinho” ou“Não sei nada, mas queria tanto aprender”, indicam a importância que a
vontade de fazer tem sobre a certeza do saber nesse tipo de brincadeira.Sendo essa uma das suas maiores sabedorias. O que o cavalo-marinhopode ser, sempre ultrapassa o que ele é.
“O cavalo-marinho é história. Hoje você chega e não acha essa his-tória”, denuncia Mestre Inácio Lucindo. Atualmente, as condições queacompanham a sua manutenção e realização têm feito com que muitosbrincadores sintam-se constrangidos, ao fim de uma brincadeira, portudo aquilo que sabem que poderia estar em cena num cavalo-marinhoe não está. No entanto, apesar dos sentimentos controversos que essetipo de situação proporciona em relação à brincadeira, o fato é que issonão tem impedido efetivamente que esses brincadores continuem brin-
cando ano após ano. Mesmo porque essa é a única forma de aprimorara brincadeira e mantê-la viva. “Nunca tive tanta saudade como tenhodo Cavalo-Marinho de Batista. Hoje saio sempre com vergonha. Brincoporque o povo quer”, confessa Biu Roque.
É o samba que possibilita a aquisição desse saber. Qualidade festiva,determinada pela energia ou pelo esforço necessário durante a dança,o canto e a música — assim como pela história compartilhada entre
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os brincadores —, o samba é histórico. Vem com o tempo. Sambar seaprende sambando, mas como esse corpo que samba está em constantee visível transformação, posto que envelhece com a idade, cansa-se como trabalho, altera-se com a bebida, o conhecimento e a sua transmissãosão obrigados a reatualizarem-se a cada momento, diante das mudan-ças, por entrada ou saída de brincadores, entre tantos outros fatores.
O cavalo-marinho não se explica, mesmo porque ele nunca estápronto. Não se aprende em casa ou sozinho. É uma experiência deaprendizado compartilhada coletivamente. Improvisada a partir de umsaber constituído e vivenciado ao longo dos anos. Pois “se a rosa é pracheirar, a memória é pra trabalhar”, declama Mestre Inácio Lucindo.
Quando depois de dez, vinte ou trinta anos de brincadeira — esse é otempo mais ou menos comum de experiência, entre os brincadores dogrupo estudado — manifesta-se o desejo de que seria realmente muitobom saber brincar, mais uma vez se expressa o fato de que o cavalo--marinho é algo que se encontra permanentemente por se fazer.
Se o cabra diz “Eu sei tudo de cavalo-marinho”, ele tá men-
tindo. Ninguém sabe o fim dele, não. Ele é muito melindroso. O
cavalo-marinho pra nós não tem fim. Porque a gente não sabenem quem foi que fez. Num canto o cabra canta de um jeito, no
outro canto, de outro (Mariano elles, 2001, depoimento conce-
dido à autora).
odas as figuras que surgem ao longo da brincadeira do cavalo-ma-rinho estão em busca de samba. Quando chamadas pelo Capitão, alichegam e ali dançam e dali só vão embora quando seu samba termina.
“Da casa para o samba, do samba para casa”, é o trajeto que Mateus dizfazer diariamente. Os brincadores de cavalo-marinho também estão embusca de samba. A brincadeira é a sua realidade, cuja beleza tem o poderde “fazer amanhecer o dia”.
Processos de transformação corporal também são experimentadospelos brincadores ao longo de seu aprendizado, marcando, geralmente,a conquista de um lugar na brincadeira. Mané Deodato, por exemplo,
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começou tocando pandeiro numa lata de doce. Segundo ele, “foi quan-do a unha avoou de tanto tocar que o finado Batista me chamou prabrincar cavalo-marinho”, dando-lhe um pandeiro.
Mas a importância de que esse aprendizado se dê ao longo do tempoe em espaços onde as relações possam se desenvolver de forma adequa-da aos princípios da brincadeira é o que costuma garantir a consolida-ção da experiência. Mestre Grimário, do Cavalo-Marinho de Aliança,integra um projeto junto a escolas municipais e instituições sociais deOlinda, ensinando a arte de confeccionar trajes de maracatu e de dançarcavalo-marinho a meninos e meninas da periferia da cidade. SegundoMestre Grimário, a diferença do aprendizado na escola, por pessoas que
sabem ler, daquele desenvolvido nos terreiros, pelos brincadores, emsua maioria analfabetos, aponta para a importância da transformaçãodesencadeada pelo desejo de aprender a brincar.
Sabendo ler e escrever tem uma facilidade. Porque lendo e
decorando você aprende mais. Agora tem coisa que se aprende
no terreiro que não se aprende na escola, que é a dança, né? No
terreiro tem que ter a força de vontade maior e ser bom de ouvir
pra poder aprender. (Grimário, 2001, depoimento concedido àautora).
A relação com o próprio instrumento parece vir dessa mesma dis-posição afetiva. “Desde pequeno eu amei a minha rabequinha. Eu es-cutei ela. E amo ela até hoje”, afirma Luís Paixão. Daí, os termos queindicam a qualidade do tocar que faz com que a rabeca se faça chorar, omineiro balançar, a bage rapar e o pandeiro bater com um peteleco, ao
qual se costuma chamar de cafuné .É nesse sentido que o cuidado é um valor tão importante entre os
brincadores de cavalo-marinho. Expressão da escuta, necessária aoaprendizado, o cuidado é o que torna possível a relação com a brinca-deira. er cuidado pelos brincadores, pelo seu instrumento, pelas más-caras é ter cuidado pela própria brincadeira e, portanto, é ter a capaci-dade de desenvolver uma sensibilidade estética que permite ver o que
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não se costuma ver e ouvir o que não se costuma ouvir. É nesse sentidoque o encantamento causado pela beleza do cavalo-marinho, desperta-do nesses senhores quando jovens, parece representar o início de umprocesso de transformação do corpo. O samba é a consubstancializaçãodessa transformação, a partir de uma vontade de produzir beleza comomanifestação de cuidado. É isso que faz da brincadeira uma arte. Umaarte plenamente interessada.
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O AMANHECER DO DIA
Partindo de uma análise da brincadeira do Cavalo-Marinho da Zonada Mata Norte de Pernambuco, busquei contribuir para uma reflexãoacerca da relação arte e sociedade. Ao revelar mais do que o fato de quearte e sociedade se relacionam, predominando entre elas uma relaçãode causa e efeito, propus uma discussão acerca de como se relacionam equanto expressam a própria natureza do vínculo existente entre si. Não
podendo ser resumida a uma relação de reflexo, foi necessário compre-ender o que se expressa ali, sob a forma de reflexão. Uma obra não seexplica somente pela vida, assim como a vida não pode ser explicadasomente pela obra. Para além das visões críticas e reveladoras sobre arealidade, expressas em atitudes de resistência ou de reafirmação da or-dem, encontram-se em jogo projetos de mundo, construídos no atraves-samento entre arte e sociedade, brincadeira e vida, corpo e dança.
Essa relação também encontra-se envolvida por aspectos que dizem
respeito ao que Chauí (1984) chamou de motivação. Dizer que uma obranão tem causa, mas motivo, que ela não se explica pela vida, mas é umaresposta, um deciframento, uma interpretação, uma reflexão sobre ela,significa mudar de registro o tratamento da arte. Significa ampliar o sig-nificado e a abrangência do conceito, lançando um olhar sobre o mo-
vimento desencadeado pelas experiências estéticas mais variadas noscampos da vida. Essa relação de motivação, segundo Merleau-Ponty(apud Chauí, 1984) pode ser compreendida em três sentidos: motivação
no sentido psicológico, pois as coisas não são feitas sem motivo, é preci-so uma razão para fazê-las; motivação no sentido da situação, pois umcontexto cria motivos para que algo seja feito; e motivação no sentidode um padrão que, tal como o motivo de um desenho ou um trajetopercorrido no espaço, representa aquele ponto central a partir do qual otodo vai sendo traçado como fio condutor implícito que pode até chegar
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158 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
a desaparecer, ao fim de uma obra ou com o passar do tempo, no entan-to, guiou a trajetória inteira, dando-lhe sentido.
anto a arte como a brincadeira são formas particulares e históricasde elaboração estética da ideia que se tem de si, dos outros e do meio,sob a forma de sistemas de movimento, som, palavra, imagem e da pró-pria vida em sociedade. Na tentativa de dar conta de tais experiências,gostaria de evocar o conceito de todo, elaborado por Bergson (1979).Segundo o autor, se fosse preciso definir um todo, esse deveria ser sem-pre definido pelas suas relações. É que a relação não é uma propriedadedos objetos, ela é sempre exterior a seus termos. Através do movimentono espaço, os objetos mudam suas respectivas posições. Mas, através
das relações, o todo se transforma ou muda de qualidade. O todo não éum conjunto fechado nem isolado. Mantém-se sempre aberto em algumponto, como se um linha tênue o ligasse ao resto do Universo. “Ondequer que haja alguma coisa viva, haverá aberto, em alguma parte, umregistro onde o tempo se inscreve” (idem, 1979, p.25).
A proposta da brincadeira parece ser que, em meio a um intenso econtínuo processo de proletarização, o cuidado é a relação mais criativaque se pode estabelecer com a vida. Durante um cavalo-marinho, esses
corpos não são apenas mãos e pés para cortar, carregar, queimar e lim-par. Mas se revelam em toda a sua inteireza percorrendo caminhos quelevam a criar, sonhar, reinventar, brincar. A brincadeira é o lugar por ex-celência desse tipo de relação que a vida nos canaviais não proporciona.
Assim como o senhor de engenho, o dono ou Mestre da brincadei-ra tem responsabilidades junto aos seus brincadores. em o dever deconquistá-los para que continuem brincando e cuidando de seus ins-trumentos, trajes, máscaras, assim como de si mesmos. Com a diferença
fundamental de que nessa relação, além de estar em jogo a consonância do samba em contraposição à eficiência do trabalho, numa visível e sen-sível reflexão sobre os processos de mudança na região, a escuta deve serrecíproca para que se produza graça e beleza, e o cuidado precisa se dartanto dentro como fora de uma roda de cavalo-marinho. Porque a vidasem pareia não tem graça.
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159O amanhecer do dia
O cuidado afasta a possibilidade de uma existência desmantelada egarante a consonância. A beleza é o resultado de uma relação criativa,que se expressa através do cuidado com a brincadeira. E a brincadei-ra, o resultado de uma relação de cuidado, que se expressa de maneiracriativa com a vida. Segundo Biu Roque, “ter uma brincadeira é ter umaalegria na vida”, além do poder de “fazer amanhecer o dia”.
Compreender a arte como relação de cuidado ou como experiênciaestética vivenciada das mais diversas maneiras e difundidas por fenô-menos que permeiam toda a existência social, e não apenas por aquiloque se expressa através do que entendemos por obra, espetáculo ou ma-nifestação artística, é uma das principais contribuições deste trabalho.
“Imaginar a diferença (o que não significa, é claro, inventá-la, mas torná--la evidente) continua a ser uma ciência da qual todos nós precisamos”(Geertz, 2001, p.82). Muitos conceitos tiveram que ser desconstruídos,revistos, ampliados, ressignificados, ao longo desta pesquisa, para quese pudesse chegar mais perto do que a experiência do cavalo-marinhotem a nos oferecer.
Concordo com Geertz (2001) quando o autor afirma que é a sim-patia que nos move a conhecer o outro. Já o distanciamento, decorrente
de uma visão etnocêntrica, muito mais do que o envolvimento, advindode uma visão relativista sensível às diferenças, é que tem causado tan-tos “mal-entendidos” históricos. Ainda de acordo com Geertz, “não setrata de que devamos amar uns aos outros ou morrer” (2001, p.81), masque “devemos conhecer uns aos outros e viver com esse conhecimento”(2001, p.82). Cuidadosamente.
Segundo Ianni (1986), a história das Ciências Sociais tem sido vistacomo a história do desencantamento do mundo. O sagrado se dessa-
craliza, o mistério se desvenda e a beleza se relativiza. Aqui, no entanto,procurei “examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nemafogá-los em barris de teoria”, tal como nos sugere Geertz (2001, p. 65)em sua definição de Antropologia. Por isso, não foi o objetivo deste tra-balho construir noções definitivas para o que temos chamado de arte,estética, corpo, dança e brincadeira. O desejo de aperfeiçoamento oumelhoramento do mundo que as experiências aqui em análise envol-
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vem, no entanto, pareceu-me importante destacar. Porém, somente secomprometida com o enaltecimento das mais diferentes percepções,concepções e expressões estéticas, parece possível que essa antropologiada arte, da estética ou da vida, possa dar conta da variedade de formascom que a humanidade tem dado sentido, ao sem-fim de coisas que lhesucede. Porque para se conhecer uma determinada realidade é semprenecessário recontá-la, recantá-la e reencantá-la. Viva Pareia!
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REGISTROFOTOGRÁFICO
F o t o
: R o b e r t a G u i m a r ã e s .
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169Registro Fotográco
Banco do Cavalo-Marinho do Mestre Batista (Foto: John Murphy).
Banco do Cavalo-Marinho de Biu Roque (Foto: Michele Zolini).
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170 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Biu Roque (Foto: Maria Acselrad).
Trabalhadores da cana-de-açúcar (Foto: Xirumba).
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171Registro Fotográco
Paisagens da Zona da Mata Norte de Pernambuco (Fotos: Roberta Guimarães).
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172 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
Público (Foto: Michele Zolini).
Veia e Veio (Foto: Michele Zolini).
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173Registro Fotográco
Sequência da dança dos arcos (Foto: Xirumba).
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174 VIVA PAREIA! | Maria Acselrad
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175Registro Fotográco
O amanhecer do dia (Foto: Michele Zolini).
Na página ao lado, da esquerda para a direita:
Valentão; Mané Taião, Bode; Vaqueiro (Fotos: Michele Zolini).