catolicismo e ciências sociais no brasil. steil, carlos a. & herrera, sonia r. (artigo, 2010)

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STEIL, C.; HERRERA, S. R. Catolicismo e ciências sociais no Brasil: mudanças de foco e perspectiva num objetivo de estudo. Sociologias, Porto Alegre, ano 12, nº 23, jan./abr. 2010. p. 354-393 Um olhar sobre a paisagem religiosa brasileira deixa transparecer mudanças significativas nos últimos anos tanto no meio rural, onde as capelinhas de beira de estrada vão dar lugar aos pequenos templos de diversas denominações pentecostais, quanto nos centros urbanos, onde as catedrais católicas e as igrejas paroquiais disputam em ostentação com novos e modernos templos neopentecostais. Esta impressão visual, por sua vez, é reforçada quotidianamente por notícias da mídia que destacam o crescimento dos evangélicos e a perda da hegemonia do catolicismo no interior do campo religioso. A favor desta imagem concorrem os dados estatísticos dos últimos censos que constatam a evasão constante de fiéis católicos para as religiões pentecostais e para os “sem religião”. Mas, se esta observação da paisagem religiosa e os dados estatísticos apontam para um descompasso entre o catolicismo e as tendências dominantes de configuração atual do campo religioso brasileiro, pesquisas etnográficas focadas nas práticas e experiências chamam a atenção para processos internos ao próprio catolicismo que estariam conferindo-lhe um novo vigor, disputando com os evangélicos a mobilização de multidões em performances rituais, assim como a ocupação de espaços na mídia. Ou seja, se desde uma perspectiva geral poder-se observar que o catolicismo perde sua hegemonia, enquanto um sistema religioso e moral dentro da sociedade brasileira, no âmbito das práticas ele se renova, configurando-se como um locus, entre outros, de produção de sentidos e crenças para indivíduos e grupos que encontram aí um contexto adequado para a experiência religiosa e moral (STEIL; HERRERA, 2010: 354). A crença de que uma vez existiu um “país encantado”, que sobrevive nas práticas religiosas das comunidade rurais e nos movimentos milenaristas dos sertões, resulta do movimento romântico de construção de uma identidade nacional que vai imaginar, em retrospectiva, um passado pré-moderno, dominado pelo mito, pelo mágico e pelo sagrado. Essa imaginação idealizada do passado, por sua vez, torna-se essencial para a elaboração de uma narrativa capaz de oferecer à nação brasileira um passaporte de entrada, ainda que subalterna, na ordem capitalista. Uma ordem que tem a ver não apenas com a consolidação de um sistema político fundado sobre a constitucionalidade e a soberania [...], mas sobretudo com uma maneira diversa de habitar o mesmo país, com a aquisição de novas sensibilidades, de novas experiências de espaço e tempo, de convivência e violência, de trabalho e lazer, de dor e saúde, de conhecimento e arte (STEIL; HERRERA, 2010: 358). A ideia de um campo religioso plural e diversificado, onde cada denominação religiosa possui sua autonomia e identidade, contrasta com a paisagem religiosa interior, em que o catolicismo encompassava a diversidade dos grupos e tradições que, embora presentes desde a origem da formação histórica da sociedade brasileira, eram como que invisibilizados pelo predomínio católico. Ou seja, antes da diversificação do campo religioso brasileiro, o catolicismo se apresentava como uma meta-religião que incorporava múltiplas tradições de origem europeia, indígena e africana. Neste contexto, o sincretismo, que se efetua na prática cotidiana dos fiéis, acabava sendo subsumido por um modelo religioso hegemônico

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  • STEIL, C.; HERRERA, S. R. Catolicismo e cincias sociais no Brasil: mudanasde foco e perspectiva num objetivo de estudo. Sociologias, Porto Alegre, ano12, n 23, jan./abr. 2010. p. 354-393

    Um olhar sobre a paisagem religiosa brasileira deixa transparecer mudanassignificativas nos ltimos anos tanto no meio rural, onde as capelinhas debeira de estrada vo dar lugar aos pequenos templos de diversasdenominaes pentecostais, quanto nos centros urbanos, onde as catedraiscatlicas e as igrejas paroquiais disputam em ostentao com novos emodernos templos neopentecostais. Esta impresso visual, por sua vez, reforada quotidianamente por notcias da mdia que destacam ocrescimento dos evanglicos e a perda da hegemonia do catolicismo nointerior do campo religioso. A favor desta imagem concorrem os dadosestatsticos dos ltimos censos que constatam a evaso constante de fiiscatlicos para as religies pentecostais e para os sem religio. Mas, seesta observao da paisagem religiosa e os dados estatsticos apontam paraum descompasso entre o catolicismo e as tendncias dominantes deconfigurao atual do campo religioso brasileiro, pesquisas etnogrficasfocadas nas prticas e experincias chamam a ateno para processosinternos ao prprio catolicismo que estariam conferindo-lhe um novo vigor,disputando com os evanglicos a mobilizao de multides emperformances rituais, assim como a ocupao de espaos na mdia. Ou seja,se desde uma perspectiva geral poder-se observar que o catolicismo perdesua hegemonia, enquanto um sistema religioso e moral dentro da sociedadebrasileira, no mbito das prticas ele se renova, configurando-se como umlocus, entre outros, de produo de sentidos e crenas para indivduos egrupos que encontram a um contexto adequado para a experinciareligiosa e moral (STEIL; HERRERA, 2010: 354).

    A crena de que uma vez existiu um pas encantado, que sobrevive nasprticas religiosas das comunidade rurais e nos movimentos milenaristasdos sertes, resulta do movimento romntico de construo de umaidentidade nacional que vai imaginar, em retrospectiva, um passadopr-moderno, dominado pelo mito, pelo mgico e pelo sagrado. Essaimaginao idealizada do passado, por sua vez, torna-se essencial para aelaborao de uma narrativa capaz de oferecer nao brasileira umpassaporte de entrada, ainda que subalterna, na ordem capitalista. Umaordem que tem a ver no apenas com a consolidao de um sistema polticofundado sobre a constitucionalidade e a soberania [...], mas sobretudo comuma maneira diversa de habitar o mesmo pas, com a aquisio de novassensibilidades, de novas experincias de espao e tempo, de convivncia eviolncia, de trabalho e lazer, de dor e sade, de conhecimento e arte(STEIL; HERRERA, 2010: 358).

    A ideia de um campo religioso plural e diversificado, onde cadadenominao religiosa possui sua autonomia e identidade, contrasta com apaisagem religiosa interior, em que o catolicismo encompassava adiversidade dos grupos e tradies que, embora presentes desde a origemda formao histrica da sociedade brasileira, eram como que invisibilizadospelo predomnio catlico. Ou seja, antes da diversificao do camporeligioso brasileiro, o catolicismo se apresentava como uma meta-religioque incorporava mltiplas tradies de origem europeia, indgena eafricana. Neste contexto, o sincretismo, que se efetua na prtica cotidianados fiis, acabava sendo subsumido por um modelo religioso hegemnico

  • que se mantinha e se reproduziu graas a sua relao orgnica com oEstado colonial e monrquico (STEIL; HERRERA, 2010: 359-360).

    [...] a identidade catlica no pode ser encontrada no somatrio das suasdiferentes formas particulares. Se certo que sua busca devenecessariamente passar pela anlise cuidadosa das suas mltiplas formas, tambm certo que a identidade no uma espcie de mximo divisorcomum dessas formas. Trata-se de saber o que torna o catlico o catlico(OLIVEIRA; LENZ, 1986, p. 3, apud STEIL; HERRERA, p. 377, 2010).Na tentativa de uma caracterizao das ltimas dcadas aqui apresentadas,poderamos dizer que, se nos anos 1960, desde a perspectiva dasecularizao e da ideologia de classe, se buscou compreender a funo docatolicismo no processo da modernizao e seu lugar no contexto dopluralismo religioso, nos anos 1970, a preocupao est colocada sobre opapel poltico que a instituio e as prticas catlicas vo desempenhar nombito da sociedade civil frente ao autoritarismo da ditadura militar. J osanos 1980 foram marcados por uma crescente aproximao entre IgrejaCatlica e movimentos sociais no Brasil, repercutindo, no campo acadmico,numa reordenao ideolgica das relaes entre o pensamento moderno e aintelectualidade catlica (STEIL; HERRERA, 2010: 380).

    Ainda no horizonte dos balanos realizados sobre o perodo, h de se referirao trabalho de Paula Monteiro que aponta para uma especializao dosestudos da religio no pas que deu origem a uma certa diviso que seestabeleceu entre a antropologia e a sociologia (MONTEIRO, 1999). Naavaliao da autora, coube sociologia weberiana ocupar-se das religies protestantes, a marxista, dasrelaes entre Igreja catlica, Estado e sociedade, enquanto antropologiadedicar-se anlise dos ritos, crenas e prticas da religiosidade ditapopular [...] as religies afro-brasileiras [...] e o catolicismo (MONTEIRO,1999, p. 330).(STEIL; HERRERA, 2010: 381).

    [...] as transformaes e o reordenamento do campo religioso desse perodo[1990-2005], ao mesmo tempo em que trouxeram para o centro da cena osgrupos e instituies protestantes, especialmente os pentecostais eneopentecostais, tambm colocaram numa zona de sombra o que sepassava no campo catlico, fazendo com que diminussem o interesse e osgrupos de estudo sobre o catolicismo (STEIL; HERRERA, 2010: 382).

    Essa invisibilidade do catolicismo, no entanto, parece se romper pelaemergncia da Renovao Carismtica Catlica (RCC) na cena pblica ereligiosa dos anos 1990, dando origem a um novo interesse pelo estudo docatolicismo. [...] Mais recentemente, especialmente na rea da antropologia,podemos registrar alguns trabalhos que, na perspectiva da antropologiafenomenolgica e do paradigma da corporeidade (embodiment) (CSORDAS,1994, 1997), tm buscado relacionar a RCC com processos de construo dasubjetividade e o lugar do corpo na experincia religiosa (MAUS, 2002;STEIL, 2004) ou ainda com outros movimentos emergentes no camporeligioso catlico, como as aparies marianas (STEIL, 2001; STEIL; MARIZ;REESINK, 2003) ou mesmo de movimentos que transcendem as fronteirasdenominacionais, como a Nova Era (STEIL, 1999) (STEIL; HERRERA, 2010:383).

  • Na rea da antropologia h uma mudana significativa a registrar nosestudos do catolicismo que se deslocam da anlise sistmica para a daprtica. Ao colocar o foco nas prticas dos atores, as fronteiras entre ocatolicismo popular e os demais subsistemas que compem o campocatlico se diluem e perdem seu sentido heurstico. Essa perspectiva vaiaparecer, por exemplo, nos estudos que tomam as peregrinaes menoscomo uma forma de reproduo e resistncia do catolicismo popular e maiscomo uma arena ou vcuo religioso (EADE; SALLNOW, 1991) em quediferentes prticas, expresses e experincias podem se manifestar numasituao de negociao e disputa de sentidos dentro do campo catlico(STEIL, 1996). Mas, desde a perspectiva da prtica, torna-se possvelperceber que os sentidos que so negociados e disputados em espaos eeventos catlicos, na verdade, ultrapassam no somente o sistema catlico,mas o prprio campo religioso, na medida em que os sentidos e asexperincias associados a outras esferas da vida social so acionados pelosagentes sociais e amalgamados com os religiosos. Assim, a ideia desistema cede lugar pouco a pouco de trnsitos e fronteiras queremetem menos a uma totalidade integrada e coesa e mais a umasituao definida por Jacques de Matre como de uma nebulosa deheterodoxias diversas (MATRE, 1987, p. 359) (STEIL; HERRERA, 2010:383).

    Neste sentido, a dicotomia tradicional e moderno passa a ser analisadadentro de uma nova chave de leitura que vai destacar a articulao entrepolos que coexistem com tenses vividas na prtica por aqueles que seposicionam dentro do campo religioso. Essa perspectiva ter especialincidncia, por exemplo, nos estudos que buscam relacionar catolicismo e aNova Era. O catolicismo se apresenta como lugar privilegiado dos rituaisdevocionais do culto aos santos e anjos s das experincias msticassegundo o modelo da Nova Era, passando pelo tipo-ideal das religies deconverso, que se destaca nos catolicismo de libertao e carismtico(CAMURA, 1998; STEIL, 2004). Passa-se, ento, a chamar a ateno para apluralidade interna do catolicismo, capaz de compatibilizar prticas e rituaispr-modernos com experincias modernas de comunidades de base, comformas ps-modernas, centradas na religiosidade do self, especialmente naexperincia da Renovao Carismtica Catlica (STEIL; HERRERA, 2010:384).

    A paisagem religiosa brasileira que emerge com a diversificao doseu campo religioso aponta menos para o desencantamento domundo e mais para a emergncia de novos padres e modos doreligioso se instituir tanto no espao pblico quando na experinciados indivduos. Neste sentido, impe-se aos cientistas sociais aeducao da sensibilidade e da percepo, assim como oaprimoramento do seu instrumental conceitual terico emetodolgico, para identificar para alm das instituies religiosas muitas vezes em seu prprio mbito as novas configuraes doreligioso na sociedade (STEIL; HERRERA, 2010: 386).

    COMENTRIOS:Neste artigo os autores buscam fazer uma breve anlise sobre odesenvolvimento dos estudos sobre o campo religioso brasileiro, focandoprincipalmente nos estudos que, de diversas formas, abordaram ocatolicismo. Passando por diversos autores e abordagens, Steil e Herrera se

  • aproximam dos estudos contemporneos sobre o catolicismo, deparando-secom anlises sociolgicas e antropolgicas que visualizam o campo religiosobrasileiro em um momento onde a emergncia de novos modalidades deexperimentar a religio, com a diversidade religiosa, a secularizao e asrearticulaes institucionais confluem para um panorama reflexivo para oscientistas sociais, por isso, a educao sensvel e o aprimoramento do seuinstrumental terico e metodolgico precisam ser revitalizados para umantida compreenso das transformaes da sociedade.