catharsis: about the antigone of lacan

13
VANESSA DA CUNHA PRADO D’AFONSECA Psicóloga pela Universidade de São Paulo vanessadafonseca @hotmail.com Resumo O artigo retoma o comentário lacaniano de Antígona e a articulação, dela derivada, de uma ética do desejo puro, para tra- zê-la engajada a um dos níveis da verdade do “Kant com Sade”: a de que o aparecimento do objeto a no lugar da causa delimita uma nova Crítica da Razão pela via do impuro. A partir de uma leitura retroativa do percurso lacaniano, propõe-se a indecisão quanto à pureza-impureza do objeto da ética para a psicanálise como uma leitura possível da ética trágica lacaniana, especificamente a partir da atenção a duas das formas do objeto a: o olhar e a voz. Argumenta-se no sentido de demonstrar que da consideração de tais objetos advém um jogo temporal propício à consideração da tragédia, em Lacan, como evento estético de uma experiência transcendental – termo improponível no rigor da crítica kantiana –, o que traria consequências para a compreensão, tanto do final da análise, quanto do desejo do analista. No percurso, mostram- -se relevantes os conceitos de paradigma, vel e fascinação. Palavras-chave: Lacan; Antígona; desejo puro; objeto a; ética. Abstract The article recapture the lacanian commentary about Antigone and the articulation, rendered from it, of a pure desire ethic, to bring it attached to one of the levels of “Kant with Sade” truth: which says that the appearing of object a in the place of the cause would establish a new critic of the Reason at the unpure center line. From a backward reading of the lacanian route, we propose the indecision relative to the ethical object purity-impu- rity for the psychoanalysis as a possible reading of the lacanian tragic ethic, especificaly from the atention to the two forms of the object a: the looking and the voice. We argue towards the demonstration that considering such objects appears a temporal game propitious to the consideration of the tragedy, in Lacan, as an aesthetic movement of a transcendental experience – an impossible concept for Kant criticism – what would bring con- sequences to the understanding of the analysis and the analyst desire. Paradigm, vel and fascination are relevant concepts in this argument. Keywords: Lacan; Antígone; pure desire; object a; ethics. A ÉTICA DE UM TEMPO AMONTOADO EM UMA CATARSE INDECISA: SOBRE A ANTÍGONA DE LACAN The Ethics of a Piled up Time in a Undecided Catharsis: About the Antigone of Lacan

Upload: others

Post on 14-Jul-2022

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Catharsis: About the Antigone of Lacan

Vanessa da Cunha Prado d’afonseCa

Psicóloga pela Universidade de São Paulo

[email protected]

Resumo O artigo retoma o comentário lacaniano de Antígona e a articulação, dela derivada, de uma ética do desejo puro, para tra-zê-la engajada a um dos níveis da verdade do “Kant com Sade”: a de que o aparecimento do objeto a no lugar da causa delimita uma nova Crítica da Razão pela via do impuro. A partir de uma leitura retroativa do percurso lacaniano, propõe-se a indecisão quanto à pureza-impureza do objeto da ética para a psicanálise como uma leitura possível da ética trágica lacaniana, especificamente a partir da atenção a duas das formas do objeto a: o olhar e a voz. Argumenta-se no sentido de demonstrar que da consideração de tais objetos advém um jogo temporal propício à consideração da tragédia, em Lacan, como evento estético de uma experiência transcendental – termo improponível no rigor da crítica kantiana –, o que traria consequências para a compreensão, tanto do final da análise, quanto do desejo do analista. No percurso, mostram--se relevantes os conceitos de paradigma, vel e fascinação.Palavras-chave: Lacan; Antígona; desejo puro; objeto a; ética. Abstract The article recapture the lacanian commentary about Antigone and the articulation, rendered from it, of a pure desire ethic, to bring it attached to one of the levels of “Kant with Sade” truth: which says that the appearing of object a in the place of the cause would establish a new critic of the Reason at the unpure center line. From a backward reading of the lacanian route, we propose the indecision relative to the ethical object purity-impu-rity for the psychoanalysis as a possible reading of the lacanian tragic ethic, especificaly from the atention to the two forms of the object a: the looking and the voice. We argue towards the demonstration that considering such objects appears a temporal game propitious to the consideration of the tragedy, in Lacan, as an aesthetic movement of a transcendental experience – an impossible concept for Kant criticism – what would bring con-sequences to the understanding of the analysis and the analyst desire. Paradigm, vel and fascination are relevant concepts in this argument.Keywords: Lacan; Antígone; pure desire; object a; ethics.

A éticA de um tempo AmontoAdo em umA cAtArse indecisA: sobre A AntígonA de LAcAn

The Ethics of a Piled up Time in a Undecided Catharsis: About the Antigone of Lacan

Page 2: Catharsis: About the Antigone of Lacan

44 Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

Em um artigo denominado “Katharsis”, o filósofo Jonathan Lear implica a psica-nálise na transmissão de uma tradição,

segundo ele, equivocada de interpretação da catarse aristotélica como efeito de purgação e purificação das emoções. Lembrando a influ-ência de Bernays sobre Freud, cita quase todos os nomes que fazem a escola da psicanálise da sua fundação até os nossos dias: Freud, Bion, Melanie Klein como porta-vozes de uma leitu-ra, operante já há pelo menos um século, de correspondência entre catarse e a metáfora corporal de descarga afetiva, ou ainda, entre catarse e a metáfora religiosa de purificação.1

Lacan, em seu texto, não aparece. Con-tudo, é possível afirmar que o debate teórico da ética da psicanálise lacaniana também se faz pelo posicionamento crítico dos autores em dois eixos relativos à tradição instaurada pela conceituação da catarse como purifica-ção, ainda que, desta vez, atravessado por uma significação kantiana para o que pode ser entendido, na modernidade, como puri-ficação ou puro. De um lado, desejo puro que se sustentaria em Lacan com Antígona e o das Ding de Kant mesmo após a teorização do objeto a e, inclusive, pela teorização do objeto a. De outro lado, desejo puro que se negaria com a teorização do objeto a e a visa-da do “Kant com Sade”.

Safatle, por exemplo, concebe “Kant com Sade” como ponto de viragem no pen-samento lacaniano. Para ele, na teorização de um objeto puro para o desejo puro de Antígo-na estaria guardada à psicanálise a mesma pretensão kantiana de que a forma da lei, lei do desejo, pudesse garantir um campo ético em que o vazio de normatização de uma lei negativizada como pura forma evitaria o infi-nito-ruim das proposições positivas do supe-reu freudiano. A “Lei simbólica seria apenas uma cadeia fechada de significantes puros desprovidos de significado. Ela seria, na ver-dade, uma pura forma vazia incapaz de enun-ciar uma norma sobre o gozo ou sobre o objeto adequado ao gozo”.2 Operação, segundo ele,

1 LEAR, 1998, p. 297-302.2 SAFATLE, 2003, p. 198.

de desalienação do desejo da ordem narcísica do Imaginário.

Se essa estratégia é depois abandonada por Lacan, continua, é porque Sade também traria “a verdade de Lacan, ou ao menos da Lei lacaniana”, com a perversão colocando “em xeque uma racionalidade analítica funda-mentada no reconhecimento do desejo puro através da pura forma de Lei”.3 Isso porque a crítica no “Kant com Sade” se fundamentaria na observação de que o agente do tormento sadiano é o perfeito sujeito da experiência moral kantiana, puro executor da máxima universalizável do gozo e, paradoxalmente, nada além do que objeto-instrumento da lei do Outro.

Baas, ao contrário, argumenta no sen-tido de uma manutenção do que ele deno-mina Crítica do Desejo Puro como causa no arcabouço teórico lacaniano ainda após esse escrito. Para ele, se Sade atua o avesso da operação transcendental com a encarnação do objeto a, é ainda a sustentação lacaniana do objeto a “entendido estritamente como objeto transcendental” o que emerge, cons-tituindo-se tal objeto como mediador entre a faculdade de desejar a priori (desejo puro) e o objeto sensível do desejo: “Na ordem do co-nhecimento e na ordem do desejo, a unidade necessária do a priori e do empírico é realiza-da pela articulação do sujeito dividido ao ob-jeto transcendental, aqui esquema da síntese, aí objeto a do fantasma”.4

Na mesma direção argumenta Zizek:

[...] a principal intenção do seminá-rio A Ética da Psicanálise, de Lacan, é precisamente a de romper o círculo vicioso de “Kant com Sade”. Como isso é possível? Somente se, con-trariamente à asserção de Kant, a capacidade de desejar não for con-siderada necessariamente “patoló-gica”. Ao contrário, Lacan afirma a necessidade de uma “crítica do de-sejo puro”: em contraste com Kant,

3 Ibid. p. 219.4 BAAS, 2001, p. 91.

Page 3: Catharsis: About the Antigone of Lacan

45Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

para quem nossa capacidade de de-sejar é inteiramente patológica [...], Lacan advoga a existência de uma “faculdade pura do desejo”, uma vez que o desejo tem seu objeto não-patológico, um objeto causa do desejo a priori, este, é claro, é o que Lacan nomeia objeto pequeno a.

Nossa argumentação traz outra hipó-

tese. A partir de uma leitura retroativa do percurso lacaniano,5 propõe-se a indecisão quanto à pureza-impureza do objeto da ética para a psicanálise como uma leitura possível da ética trágica lacaniana, especificamente a partir da atenção a duas das formas do objeto a: o olhar e a voz.

Argumenta-se no sentido de demonstrar que da consideração de tais objetos advém um jogo temporal propício à consideração da tra-gédia, em Lacan, como evento estético de uma experiência transcendental6 – termo impropo-nível no rigor da crítica kantiana –, o que traria consequências para a compreensão, tanto do final da análise, quanto do desejo do analista.

Vejamos como isso se dá:

Trata-se, no ato de Antígona, diz Lacan: “da evocação do que é, com efeito, da ordem da lei, mas que não existe em nenhuma cadeia sig-nificante, em nada”.7

5 Marcadamente, a decisão metodológica foi a de tomar Antígona como paradigma de um impasse já atual no momento da apresentação do seminário VII: a teorização de das Ding quando, pela via inicialmente de Freud e, posteriormente, de “Kant com Sade”, este objeto já guardava ambiguidades em relação ao seu estatuto de objeto puro.

6 O filósofo italiano Giorgio Agamben – de quem tomamos de empréstimo tal expressão –, em seu livro Infância e História, também interroga a voz quando propõe ao universo kantiano algo da ordem do que Lacan denominou, a partir da teorização do objeto a, como uma instauração do impuro em uma nova Crítica da Razão (LACAN: 1998a, p. 786). Em um sentido bastante próximo ao lacaniano, Agamben afirma a necessidade de teorização de uma experiência transcendental, o que significaria, em seus termos: “a redefinição do conceito de transcendental em função de suas relações com a linguagem” (2005, p. 11).

7 LACAN, 1997, p. 337.

Isso que está para além da cadeia signifi-cante, Lacan reconhece na duração inflexível do é. Tomando sua teorização ao pé da letra, poderíamos pensar que se não há nada a fa-zer deslanchar de um significante a outro, ali onde Polinice não é nada mais do que aquele que é o irmão, o sujeito Antígona não apare-ce. Sua condição é, por isso, de na-finda-linha, de morta-viva – esse sujeito que justamente fracassa no que um significante poderia re-presentá-lo para outro significante. O que An-tígona sustenta de si e do irmão, diz Lacan: “é o valor de seu ser”.8

Essa pureza, essa separação do ser de todas as características do dra-ma histórico que ele atravessou, é justamente esse o limite, o ex nihilo em torno do qual Antígona se man-tém. Nada mais é do que o corte que a própria presença da lingua-gem instaura na vida do homem.Esse corte é manifesto a todo ins-tante pelo seguinte, a linguagem escande tudo o que ocorre no mo-vimento da vida.9

Tal pureza, conforme compreendemos, não se confunde com o puro que adjetivaria a moral em Kant, Sade e Creonte em um pri-meiro momento da tragédia. Mais do que sig-nificantes puros a conformarem uma lei sim-bólica para o seu desejo puro,10 Antígona tem à sua frente o posicionamento de si diante do tempo e da própria linguagem. Tanto que o movimento seguinte da tragédia é o de como-ção do Coro. Somente após ter se colocado sem mediação diante da linguagem, afirman-do a qualidade de seu ser naquilo que desde sempre se é – Antígona sou, Polinice meu ir-mão, Jocasta minha mãe, Édipo meu pai – é que o desejo de Antígona se vê encenar. Essa encenação, não por acaso, se faz como la-mento. O tempo do ser se foi em um instante. Aí, já não é mais ao Outro como linguagem que Antígona responde, mas a esse Coro que 8 Ibid. p. 338.9 Ibid. p. 338.10 SAFATLE, 2003.

Page 4: Catharsis: About the Antigone of Lacan

46 Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

já Creonte, com sua demanda, quisera fazer desejo de seu desejo. “E o Coro não [quis] tê--lo, esse personagem, como parêstios, como companheiro ou vizinho de casa [...]. Com aquele ali, ele prefere não ter relações de pró-ximo, nem tampouco ison phronon, ter o mes-mo desejo. É desse desejo do outro que ele separa seu desejo.”11

Se Antígona é agora um desfilar de de-mandas – “Durante um longo tempo Antígo-na vai queixar-se de partir átaphos sem tumba [...]. Ela evoca até mesmo que não terá o leito conjugal, o laço do himeneu, que não terá fi-lhos. Isso é muito longo na peça”12 –, o Coro, dessa vez, se compadece.

O momento de fascínio por Antígona é bem esse, diz Lacan. “Nada é mais comoven-te do que esse hímeros enarges, esse desejo visível que se depreende das pálpebras da admirável moça. A iluminação violenta, o cla-rão da beleza coincidem com o momento de franqueamento.”13

Por outro lado: “Hímeros enarges, é aí que está a miragem central que, ao mesmo tempo, indica o lugar do desejo na medida em que é desejo de nada, relação do homem com sua falta a ser, e impede de ver esse lugar”.14

Com isso, é possível afirmar que a or-dem da purificação não seria tão absoluta já na leitura lacaniana de Antígona. Ao menos, ela não se faz, no Seminário VII, sem que a de-manda recubra, com seus objetos sempre-fra-cassados na satisfação da pulsão, esse desejo nomeado desde-sempre-puro da heroína. Tal desejo, notemos, não se presentifica a não ser pela estruturação metonímica que passa a circundá-lo com o lamento de Antígona. Daí, talvez, a afirmação de Lacan de que não há contrassenso quando ela, desde sua inflexibi-lidade, vê-se conduzida à queixa. Para Antígo-na, afirma nosso autor: “a vida só é abordável, só pode ser vivida e refletida a partir desse li-mite em que ela já perdeu a vida, em que ela está para além dela – mas de lá ela pode vê-la,

11 LACAN, 1997, p. 334.12 Ibid. p. 339.13 Ibidem – grifos do autor.14 Ibid. p. 357 – grifos do autor.

vivê-la sob a forma do que está perdido”.15 Dois tempos, então, de visibilidade-invi-

sibilidade do desejo – hímeros enarges –, mas dois tempos que não necessariamente se co-ordenam em uma temporalidade cronológica. O tempo, Lacan o desdobra na tragédia. Nela, há o tempo da ação, da encenação e do enca-deamento do desejo.

O herói e o que está a sua volta situam-se em relação ao ponto de visada do desejo. O que ocorre são desabamentos e amontoamentos de diversas camadas da presença dos heróis no tempo. É isso que fica indeterminado – no desabamento do castelo de cartas que a tragédia representa, uma coisa pode fixar-se antes de uma outra, e o que se re-encontra no final quando se desvira o total pode apresentar-se de dife-rentes maneiras.16

Além disso, afirma Lacan: “a questão da temporalidade, da maneira pela qual se reúnem os fios já prontinhos, é decisiva, essencial”.17

Esse amontoamento temporal corres-ponde já à fascinação de Lacan por Antígona. Uma fascinação marcada, segundo a compre-ensão de alguns autores, pelo abandono la-caniano de uma interpretação da tragédia tal qual a aristotélica, que entendia o encenado como uma apresentação da ação e de suas vicissitudes, em favor de uma leitura suposta-mente carregada de idealismo alemão, e que a leria “por uma perspectiva da manifestação da verdade do Ser, do desejo e do Dasein do sujeito”. Essa perspectiva, por sua vez, expli-caria o “privilégio absoluto consentido à figu-ra de Antígona”.18

Nós, ao contrário, gostaríamos de su-gerir que esse tempo que entendemos des-dobrado em Lacan implica uma temporalida-de propícia ao pensamento sobre a ação, tal como a temporalidade da aproximação do 15 Ibidem – grifos do autor. 16 Ibid. p. 321.17 Ibid. p. 322.18 VAN HAUTE, 2006, p. 290.

Page 5: Catharsis: About the Antigone of Lacan

47Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

sujeito daquilo que corresponde ao seu dese-jo. Se estivermos corretos, talvez seja por isso que Lacan tenha trazido tão próximos o pon-to de visada do desejo e essa noção de amon-toamento temporal advinda com a tragédia. Notemos, por exemplo, como essas noções se encadeiam no trecho citado: o herói, que está às voltas com os pontos de visada de seu desejo, vem mostrar que esse às voltas se faz como um amontoado de suas voltas com o desejo no tempo. Talvez, nesse contexto, também o tempo do desejo possa ser dito amontoado, embora lógico, pelas voltas da retroação significante.

No Seminário XI, essa hipótese parece se confirmar e, ainda, estender ao fascínio sua complexidade. A este, por exemplo, vemos corresponder a teorização lacaniana sobre as diferentes modulações do tempo lógico. Não só o tempo, neste caso, se relativizaria diante de uma ordem que desdobra o olho e o olhar, mas também a dimensão da fascinação.

Com a teorização do olhar como objeto a, o campo da apreensão visual se vê redimensio-nado pelo visível e o invisível. Um visível que se dá a ver como representação e a partir do qual o sujeito se reconhece como sujeito da repre-sentação, mas que está encoberto pela oculta-ção de uma dimensão de si que é ocultação do olho como objeto a – o olho como aquilo que, justamente, não se representa e sobre o qual Lacan se expressa marcando o efeito do enga-no. “A relação do olhar com o que queremos ver”, afirma, “é uma relação de logro. O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como objeto a, quer dizer, no nível da falta (- )”19

Um desdobramento do tempo, por sua vez, que acompanha essa cisão do campo es-cópico e que faz desdobrar como represen-tação (visível) e real (invisível) o fenômeno do fascínio. Há, nesse sentido, um tempo do olhar, momento terminal do efeito fascina-tório, e um instante de ver, momento que se conclui quando do efeito fascinatório, fazen-

19 LACAN, 1964, p. 102.

do cindir esse fenômeno geralmente criticado pela anotação de sua exclusiva determinação na relação imaginária com o que, do Outro, é dado a ver – o fascínio sendo, então, apresen-tado exclusivamente como alienação.

Ao contrário, veremos, será absoluta-mente necessário tomar em conta a cisão temporal guardada na fascinação para aden-trar a temática da tragédia, principalmente como teorizada por Lacan com Antígona. Ade-mais, em relação à pulsão escópica, Lacan afir-mará que “o sujeito é [...] determinado pela separação mesma que determina o corte do a, quer dizer, aquilo que o olhar introduz de fascinatório”.20

Esse tempo do olhar, terminal, que completa um gesto, eu ponho es-treitamente em relação com o que digo [...] do mau-olhado. O olhar, em si, não apenas termina o movi-mento, mas o cristaliza. [...] O que é essa estancada, esse tempo de parada do movimento? Não é nada mais que o efeito fascinatório, no que se trata de despojar o mau--olhado do seu olhar, para conjurá--lo [...]. No momento em que o su-jeito pára suspendendo seu gesto, ele é mortificado. (..) O instante de ver só pode intervir aqui como sutu-ra, junção do imaginário e do simbó-lico, e é retomado numa dialética, essa espécie de progresso temporal que se chama precipitação, arrou-bo, movimento para frente, que se conclui no fascinum.21

Notemos, de início, que, na leitura laca-niana do fascínio pela imagem de Antígona, a dimensão catártica (ou de purificação) da tragédia já não exclui pulsão ou sentimento. A formulação de Lacan quanto a isso é to-talmente ambígua: o pathos é o que purga o pathos. O imaginário que se vê purificado foi purificado pelo quê? Por uma imagem.

20 Ibid. p. 114.21 Ibidem – grifos do autor.

Page 6: Catharsis: About the Antigone of Lacan

48 Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo.Essa visada se dirige a uma imagem que detém não sei que mistério até aqui não articulado [...].É do lado dessa atração que deve-mos procurar o verdadeiro sentido, o verdadeiro mistério, o verdadeiro alcance da tragédia – ao lado dessa comoção que ela comporta, do lado das paixões certamente, mas das paixões singulares que são o temor e a piedade, já que por seu intermé-dio di 'eleou kai phobou, pelo inter-médio da piedade e do temor somos purgados, purificados de tudo o que é dessa ordem. Essa ordem, podemos desde então reconhecê-la – é a série do imaginário propriamente dita. E somos dela purgados pelo intermédio de uma imagem entre outras.22

Uma dimensão da imagem, portanto, não apenas alienante. A função do belo que Lacan nos mostra é ambígua. “Há uma certa relação do belo com o desejo”, diz: “essa re-lação singular é ambígua. Por um lado, parece ser possível que o horizonte do desejo seja eliminado do registro do belo. E, no entanto, por um outro lado, ele não deixa de ser ma-nifesto”. 23 E mais adiante: “O belo em sua função singular em relação ao desejo não nos engoda, contrariamente à função do bem. Ela nos abre os olhos e talvez nos acomode quanto ao desejo, dado que ele mesmo está ligado a uma estrutura de engodo”.24 Nessa ambiguidade, ademais, é que o belo teria a função de nos apresentar a segunda morte sa-diana por uma barreira que a recobre. Belo, daí, como sublimação. Um belo que não se faz sem um posicionamento “numa certa re-lação temporal”.25 Por um lado, porque se dá a apreender “na pontualidade da transição da vida à morte”.26 Por outro, porque, “como o

22 LACAN, 1997, p. 300-301.23 Ibid. p. 290.24 Ibid. p. 291. 25 Ibid. p. 356.26 Ibidem.

demonstrou admiravelmente Claudel [...], é na medida em que a natureza morta mostra--nos, ao mesmo tempo, e esconde-no o que nela ameaça – desenlace, desenrolar, decom-posição –, que ela nos presentifica o belo como função de uma relação temporal”.27

Belo, portanto, como instância do ambí-guo na relação do sujeito com a morte. Daí, talvez, ser irreconciliado o Édipo em Colono que Lacan nos apresenta.

Irreconciliação como uma ambiguidade que não se resolve? É o que gostaríamos de propor. Acreditamos que tal leitura permita outra posição do leitor em relação ao desejo do analista. Uma posição irreconciliada, sus-tentada na existência de um resto – talvez o resto propriamente ético – entre catarse e exemplaridade moral a impedir que o analista deseje o impossível. Nos termos do Seminário VII, a impedir que o analista não se prevenisse das idealizações marcadas de heroísmo na re-lação com o paciente.

Desde que o manifesto na tragédia é sempre irreconciliação, não haveria equiva-lência entre o pouco de purificação alcançado pelo espectador e algo a ser tomado, do he-rói, como modelo para a ação. Lacan, de fato, nos apresenta duas ordens de posicionamen-to frente ao desejo: o plano do herói e o plano do homem comum. Esses planos não estão separados absolutamente e há heroísmo no homem comum. No entanto, é somente ao herói que é possível não ceder de seu desejo, proteger-se da traição e, ao mesmo tempo, ser aquele que é traído impunemente.28

Por sua vez, esses planos da ação que se condensam, sem que deles se possa fazer uma síntese, tornariam menos incompreen-síveis afirmações também aparentemente irreconciliáveis de Lacan. No Seminário VII, quanto ao desejo de Antígona, por exemplo, lemos, em parágrafos que seguem imediata-mente um ao outro, que ele é puro e, ao mes-mo tempo, realizado em um total acoplamen-to ao desejo do Outro materno. Antígona, então, seria aquela que imortaliza sua Até ou aquela que ultrapassa sua Até? Que atraves-

27 Ibid. p. 357.28 Ibid. p. 384-385.

Page 7: Catharsis: About the Antigone of Lacan

49Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

sa das Ding, com tudo o que esta implica de morte ao desejo, ou que passa ao ato com das Ding, conduzindo-se ao que necessariamente é encontro com o Juízo Final?

Com a irreconciliação, é como se Lacan nos dissesse que não deveria haver ou nessas interrogações, mas sempre e. E aquilo em que esse e implicaria seria justamente em uma derrisão da equivalência suposta entre exem-plaridade e modelo.

A diferenciação é relevante. Pode ser capaz, por exemplo, de responder a questões como estas:

Essa comparação entre os heróis da tragédia grega e os analistas (lacanianos?) contemporâneos le-vanta involuntariamente nossas suspeitas. A saber, não se pode se-não perguntar como os inevitáveis efeitos idealizantes de tal compa-ração podem se manter em verifi-cação. [...] Será que Lacan via a si (em analogia com Antígona) como um mártir da causa analítica, como o verdadeiro herói da psicanálise contemporânea?29

29 VAN HAUTE: 2006, p. 303. Leia-se também Roudinesco: “[...] simbolizado pelo martírio de uma mulher ao mesmo tempo heroicizada por seu ato de resistência e destruída por sua intransigência, Lacan deduzia que a psicanálise moderna não podia construir sua ética senão sobre um princípio oriundo da inumanidade de Antígona: não ceder quanto a seu desejo. A ética da psicanálise, dizia ele, substancialmente, não é um arranjo a serviço dos bens, mas uma experiência trágica de vida. [...] Antígona demasiado humana e demasiado inumana [...]: nem anjo nem demônio, mas transmissor de verdade, transparente ao mundo de tanto se consumir [...]. Confesso jamais ter aderido muito a essa ética da psicanálise da qual Lacan quis ser porta-voz [...] vimos desenvolver-se durante trinta anos, em nome da filha maldita de Édipo, tratamentos intermináveis, ao longo dos quais o analista, versado na religião do “não ceder quanto a seu desejo”, termina por se transformar no agente de uma verdadeira farsa [...]. Pior do que isso, do alto de sua arrogância, alguns psicanalistas puseram-se a acreditar que sua doutrina bastava-se a si mesma e que ela era capaz de isentá-los de todo engajamento político, de toda escolha social” (2011, p. 132).

Se estivermos no rumo certo em relação a nossa hipótese, ao contrário, afirmaríamos que Antígona é exemplar à psicanálise, é pa-radigma, mas não modelo, não ideal.

Aqui, um comentário que o filósofo Gior-gio Agamben faz sobre a condição lógica dos exemplos talvez nos ajude a entender o que está em jogo em tal diferenciação. O exemplo, explica-nos, ao fazer-se indicação de pertenci-mento a uma classe, coloca a expressão ou a palavra enunciada em uma relação de inclusão exclusiva com o contexto em que esta se enun-ciaria de forma normal e não exemplar.30 Na relação com as leis da denotação, diríamos que ao pronunciar-se como exemplo, o que vem enunciado deixaria de seguir as orientações de sentido que o acomodariam em uma relação normal com tais regras. “Se perguntarmos – diz Agamben – se a regra se aplica ao exemplo, a resposta não é fácil, visto que ela se aplica ao exemplo só como caso normal e não, evidente-mente, enquanto exemplo.” Tal compreensão faz que ele entenda o paradigma na literalida-de de seu sentido etimológico: “aquilo que ‘se mostra ao lado’, e uma classe pode conter tudo, mas não o próprio paradigma”, diz.31

Não por coincidência encontramos o mesmo tipo de reflexão no Seminário XI, para explicar a dinâmica do ou, do vel da aliena-ção. Este, afirma Lacan: “se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião [marcada pelo ou] um elemento que comporta que, qual-quer que seja a escolha que se opere, há por conseqüência um nem um, nem outro”. Com a escolha aí se tornando apenas de saber “se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso”.32

A relação com o exemplo, contudo, tal-vez não tenha ficado evidente. Se tomarmos um excerto que veio um pouco antes na or-dem do argumento de Lacan, ela ficará mais clara. Antes de dizer no que consiste o tal do vel, é a palavra obsoleta que Lacan toma como exemplo para recobrir o caso normal de

30 AGAMBEN, 2002, p. 29.31 Ibidem.32 LACAN, 1998b, p. 200.

Page 8: Catharsis: About the Antigone of Lacan

50 Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

um uso comum da palavra obsoleta. A ordem do problema lógico que tal relação implica é o que dá entrada à explicação sobre a forma do vel que lhe interessa.

Leiamos o trecho: “A palavra obsoleta no que pode significar que a palavra obsole-ta é ela própria uma palavra obsoleta, não é a mesma palavra de um lado e do outro. Isto nos deve encorajar a precisar esse vel que in-troduzo a vocês”.33

Ora, que vel é esse? Justamente aque-le em que está presente o fenômeno enten-dido por Lacan como de afânise do sujeito: “Escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não senso – escolhemos o sentido, e o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é, falando pro-priamente, o que constitui na realização do sujeito, o inconsciente”.34

Antígona e Édipo, ou o herói em todo caso, ao fazerem-se paradigma, se mostra-riam, contudo, ao lado, para usar o termo de Agamben, dessa forma do vel. Nos amonto-amentos de sua presença no tempo, o que sustentariam, ao contrário, seria uma forma de reunião de opostos irreconciliáveis e arti-culados não por um ou, mas pelo e.

Ao tomarmos os extremos a que se diri-gem os heróis na tragédia, com o tudo de mor-te, e de segunda morte, que encarnam, muito mais do que a escolha pela liberdade ou pela vida – “Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele perde as duas imediatamente. Se ele escolhe a vida, tem a vida amputada da liberdade”35 –, estaria sustentada a injunção liberdade ou a morte!, que Lacan reconhece como uma fór-mula mais próxima do e:

Aí, porque a morte entra em jogo, produz-se um efeito de estrutura um pouquinho diferente. É que, nos dois casos, terei os dois [...] Coi-sa curiosa, nas condições em que lhes dizem a liberdade ou a mor-te!, a única prova de liberdade que

33 Ibid. p. 199.34 Ibid. p. 200.35 Ibid. p. 201.

vocês podem fazer nas condições que lhes indicam, é justamente a de escolher a morte, pois aí, vocês demonstram que vocês têm a liber-dade de escolha.36

Nesse jogo, o que se descortina, quando posto ao lado da outra forma de vel é, justa-mente, como diríamos com Lacan, o fator le-tal guardado na pulsão de morte.

Por sua vez, o efeito trágico, se não con-duz o espectador ao Terror – em uma atuação da pulsão de morte como assassínio ou sacri-fício –, parece possível apenas nesse tempo amontoado encenado por seus heróis, anti-he-róis e homens comuns de que falávamos. Com efeito, a relação do ser com o tempo aparece referida, em Lacan, a uma oposição temporal entre as personagens cujo maior exemplo tal-vez se vislumbre na marcação das dimensões diversas em que se situam, em relação à lingua-gem e ao desejo, Antígona e Creonte.

Antígona, diz Lacan, instantes antes de sua fala transformar-se em lamento – o la-mento que citamos –, responde a um tempo sincrônico em relação àquele diacrônico atua-lizado por Creonte.37

Na enunciação de um reconhecimento de si como aquela que é filha e irmã, o que se interrompe é a diacronia em um vislumbre de que este sou responde não mais à ordem cro-nológica, mas à duração do eterno como desti-no. Nenhum desses tempos poderia se manter sem que se esgotasse aquela dimensão huma-na que é justamente a de fazer-se tempo na História. A sincronia respondendo à origem, guardando-se do inefável em uma enunciação necessariamente mítica porque só passível de se representar imutável, e a diacronia pontuan-do-se pelos sentidos cambiantes advindos do desdobrar dos efeitos da ação.

A Antígona de Lacan resigna-se diante da origem, seu Creonte transforma-se dian-te das consequências terríveis de seus atos, mas um só se faz temporalidade na oposição temporal trazida de um ao outro. Não fosse

36 Ibidem.37 LACAN, 1997, p. 334.

Page 9: Catharsis: About the Antigone of Lacan

51Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

assim, teríamos, por um lado, somente mal-dição, por outro, somente destino. Definitiva-mente, não é isso que se dá a ver na tragédia.

O tempo trágico de Lacan não seria, portanto, um tempo somente de Antígona. Tempo de uma verdade que suspenderia o inconsciente em sua descontinuidade, algo que, aliás, só se proporia como enunciação improponível em termos lacanianos: a coloca-ção de Antígona na sustentação incondicional do valor de seu ser, no lugar de um sujeito de uma afânise que dura.

É contra isso, ao menos, que entende-mos articular-se a teorização sobre o vel da alienação:

Escolhemos o ser, o sujeito desa-parece, ele nos escapa, cai no não senso; escolhemos o sentido, e o sentido só subsiste decepado des-sa parte de não-senso que é, falan-do propriamente, o que constitui na realização do sujeito, o incons-ciente.38

Ao mesmo tempo, a forma estática pela

qual o vel nos é representado sugere um tem-po de inde-cisão, de não escolha, entre ser e sujeito, esse tempo que Lacan denomina, com Antígona, de tempo do ser suspenso à lin-guagem – “essa relação com o ser suspende tudo o que tem relação com a transformação, com o ciclo das gerações e das corrupções, com a própria história, e nos leva a um nível mais radical do que tudo, dado que, como tal, ele está suspenso à linguagem”.39

Um tempo, em outros termos, em que o ser ainda não se enunciou como mito, nem o sujeito do desejo se viu representar pelos signi-ficantes da demanda. O que poderia vir aí onde há algo que está-ainda suspenso à linguagem e que ainda-não se transformou em demanda?

Nossa hipótese é de que poderia vir a voz. Voz como um está-ainda e um ainda-não muito próximo ao que Dolar escreveu sobre a voz em Lacan: “Os usos pré-simbólicos da voz têm um aspecto em comum: [...] o de repre-38 LACAN, 1998b, p. 200.39 LACAN, 1997, p. 334 – grifos do autor.

sentar o gesto da significação precisamente por não significar nada em particular, estes apresentam a fala em seus mínimos traços, tra-ços que, posteriormente, podem vir a ser obs-curecidos pela articulação [significação]”.40 Mais ainda, para Dolar, as modalidades da voz nesse estatuto pré-simbólico, o grito, o solu-ço, o tatibitate, o silêncio seriam os agentes da modulação temporal entre necessidade, demanda e desejo: “Se o intradutível grito mítico foi, no início, causado por uma neces-sidade, depois ele, retroativamente, transfor-mou-se, em uma demanda que sobrepujou a própria necessidade. [...] Então, a voz é trans-formada em um apelo, um ato de linguagem, no mesmo momento em que a necessidade é transformada em desejo”.41

Estaríamos, com isso, novamente, no campo da indecisão quanto ao puro na rela-ção com Antígona. Campo agora não mais da pulsão escópica, mas da invocante. Apare-cimento de uma voz que, em sua dimensão de corte, enodaria, por uma suspensão da linguagem, necessidade, demanda e desejo. Fenômeno de um apelo ao Outro purificado de sua objetificação por um significante, sem, contudo, deixar de ser indicação do tempo e do lugar de uma certeza de significação, tem-po de vir a ser objeto. Experiência transcen-dental, para retomar uma expressão crítica de Agamben, do resto entre o ouvido e o es-cutado. Experiência transcendental como ex-periência de uma puri-objetivação do ouvido. Puri-objetivação como experiência de um cor-po que só sabe a diferença entre ter ouvido e ter (um) ouvido quando o grito faz do ouvido um órgão – tenho ouvido porque tenho ouvi-do. Equivocidade de um ouvido que se chama ouvido naquilo que a voz lhe faz chamado.

Mas disso, pouco se fala no seminário VII. Há, no entanto, a indicação de Lacan de que é justamente quanto ao escutado que se pode saber sobre a catarse.

[...] na tragédia, há o Coro. O Coro, o que é? Dir-lhes-ão – São vocês. Ou então – Não são vocês. A questão

40 DOLAR, 2006, p. 28. Em inglês, no original.41 Ibidem. Em inglês, no original.

Page 10: Catharsis: About the Antigone of Lacan

52 Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

não é essa. Trata-se de meios, meios emocionais. Eu diria – O Coro são pessoas que se emocionam.Portanto, observem-no duas vezes antes de dizerem que são as emo-ções de vocês que estão em jogo nessa purificação. Elas estão em jogo, quando, no final, não apenas elas, mas muitas outras devem ser, por meio de algum artifício, apazi-guadas. Mas nem por isso elas são colocadas diretamente em jogo. Sem dúvida alguma elas estão em jogo, e vocês ali se encontram em estado de matéria disponível – mas, por outro lado, de matéria totalmen-te indiferente. [...] – portanto, não confiemos tanto em vocês. Toma--se conta da emoção de vocês numa saudável disposição de cena. O Coro se encarrega disso. O comentário emocional é realizado. Essa é a maior chance de sobrevivência da tragédia antiga – ele é realizado. Ele é tolo jus-to o necessário, ele tampouco deixa de ser firme, ele é mais humano.Vocês estão, portanto, libertos de toda preocupação – mesmo que não sintam nada, o Coro terá sentido por vocês. [...] Na verdade, não estou certo de que o espectador sinta tan-ta palpitação. Em compensação, te-nho certeza de que ele fica fascinado pela imagem de Antígona. Aqui ele é espectador, mas, ainda lhes pergunto, espectador de quê? Qual é a imagem que Antígona apre-senta? Essa é a questão.Não confundamos essa relação com a imagem privilegiada e o conjunto do espetáculo. O termo de espe-táculo, habitualmente empregado para discutir o efeito da tragédia, parece-me totalmente problemá-tico se não delimitamos o campo daquilo que ele trata. No nível do que ocorre no real, ele é preferen-cialmente o ouvinte. E quanto a isso,

não poderia facilitar-me por demais por concordar com Aristóteles, para quem todo o desenvolvimento das artes teatrais se produz no nível da audição, o espetáculo estando, para ele, disposto à margem. [...] O espe-táculo é aqui um meio secundário.42

Este, um ponto de nossa hipótese em relação à voz. Outro, obteríamos ao buscar entender o que faria da voz, na diferença guardada daquilo que advém com(o) signifi-cante, um elemento que, paradoxalmente, suspenderia e causaria a diacronia – o tempo do acontecimento.

Ao inverter o dito de Lacan no Seminá-rio VII sobre a impossibilidade de o significan-te funcionar como o que pontua, ao mesmo tempo, verdade e acontecimento, proporía-mos a voz como o possível desse impossível.

O significante introduz duas ordens no mundo, a verdade e o aconteci-mento. Mas querendo-se mantê-lo no nível das relações do homem com a dimensão da verdade não se pode fazer com que sirva, ao mesmo tempo, para a pontuação do acontecimento. Na tragédia em geral, não há nenhuma espécie de verdadeiro acontecimento.43

Expliquemos: Enquanto com o aparecimento da voz

(está-ainda, ainda-não) suspende-se a diacro-nia por um atravessamento do sincrônico no encadeamento cronológico dos acontecimen-tos, segue indefinido, na tragédia, se a causa daquilo que aparece como consequência de um acontecimento é o acontecimento que a precedeu ou a verdade trazida à cena como um enigma mais ou menos mal-entendido porque proposto pelo grito, pelo silêncio ou pelo murmúrio. Voz que suspende a diacro-nia? Ou voz que causa a diacronia?

42 LACAN, 1997, p. 305-6.43 Ibidem, p. 321.

Page 11: Catharsis: About the Antigone of Lacan

53Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

“CORIFEU: Ó amargo Tirésias, adivinho fatal! Tu prevês a desgraça ou a provoca?”44

Mas, onde se apresentaria a voz em An-tígona? Na própria forma de manifestação da heroína trágica “[...] com a aproximação do obscurecimento total, do cataclisma, é aí que se manifesta a pequena Antígona. Ela reapa-rece ao lado do cadáver soltando, diz o texto, os gemidos do pássaro cujos filhotes foram arrebatados”.45 Lacan marca a preposição meta nessa metamorfose que faz de Antígo-na figura do inumano. Meta, significando, em grego, corte, “esse traço indica-nos de manei-ra significante o modo de presença cortante, decidido de nossa Antígona”.46

Importante notar que esse grito atrela--se àquele que é o ato de Antígona – o desa-cato às ordens de Creonte pela cobertura do corpo de Polinice e o cumprimento dos ritos funerários. É metamorfoseada pelo grito que Antígona se revela autora do ato que inter-rompia a condenação de seu irmão à segunda morte. Precisamente, é após a visão de que seus ritos foram desfeitos sob ordens de Cre-onte que Antígona torna-se meta, corte.

Agora, ao se tratar em seu ato “da evo-cação do que é, com efeito, da ordem da lei, mas que não existe em nenhuma cadeia sig-nificante, em nada”,47 essa revelação de si como voz não poderia deixar de nos indagar na ordem do questionamento que fizemos. Retomemo-lo: “enquanto com o aparecimen-to da voz (está-ainda, ainda-não) suspende-se a diacronia por um atravessamento do sincrô-nico no encadeamento cronológico dos acon-tecimentos, segue indefinido, na tragédia, se a causa daquilo que aparece como consequ-ência de um acontecimento é o acontecimen-to que a precedeu ou a verdade trazida à cena como um enigma mais ou menos mal entendi-do porque proposto pelo grito, pelo silêncio ou pelo murmúrio. Voz que suspende a dia-cronia? Ou voz que causa a diacronia?”

44 SÓFOCLES, 2003, p. 63. 45 Ibid. p. 320 – grifos do autor.46 Ibid. p. 321.47 LACAN, 1997, p. 337.

Aqui, a compreensão do objeto a como objeto causa do desejo leva-nos à considera-ção da noção de causa na equivocidade que nela incide no Seminário XI.

Causa, nessa aproximação, como aquilo que, da descendência necessária da reação que segue a ação, faz de sua expressão sinô-nima – causa e consequência – um engodo. So-bre isso, lemos: “a causa se distingue do que há de determinante numa cadeia, dizendo melhor, da lei”.48 Em outro lugar: “entre a cau-sa e o que ela afeta, há sempre claudicação”,49 há sempre buraco. Mas, paradoxalmente, so-bre a causa Lacan afirma, ao mesmo tempo: “estou, certamente, agora, na minha data, na minha época, em posição de introduzir no do-mínio da causa a lei do significante no lugar onde essa hiância se produz”.50

Se é, então, ainda pela lei que Lacan re-mete à causa, podemos solicitar, ao menos, que de um significante a outro, não exista algo que conduza à ordem da determinação. É tal coerência que parece explicitar-se na convocação de figuras tais quais a da descon-tinuidade, a da vacilação, a da barra, no que é a descrição lacaniana do inconsciente. Ao in-vés disso, só haverá sujeito em Lacan quando outro significante o apresentar a um primeiro numa relação que não o aprisione em uma continuidade capaz de sustentar o nome de ser. Pela voz, Antígona não é ser, mas meta.

Em relação à voz, porém, não há, na lei-tura lacaniana de Antígona, nada mais além disso. E, no entanto, não é apenas Antígona que por ela se manifesta. É também pela voz que Tirésias se implica no amontoamento temporal que levará ao final trágico da peça em questão. Dirigindo-se a Creonte, afirma:

Tu saberás uma e outra coisa se de-cifrares bem os sinais da minha arte. Estava eu sentado no rochedo dos augúrios, no local onde costumam se reunir todas as aves, quando ouvi um barulho aterrador vindo do céu. Eram os pássaros se atacando uns

48 LACAN, 1998b, p. 27.49 Ibidem.50 Ibid. p. 28 – grifos do autor.

Page 12: Catharsis: About the Antigone of Lacan

54 Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

aos outros em desespero, com o bico e com as garras se rasgavam as carnes mutuamente, e as vozes de todos, que em geral entendo, como se fossem humanas, tinham-se trans-formado numa indecifrável algara-via. Tomado de pavor fiz acender logo a pira do holocausto. Mas ne-nhuma chama se ergueu do sacrifí-cio. A gordura das coxas de animal pingavam sobre as brasas produzin-do borrifos violentos e uma fumaça negra. O fígado explodiu soltando o fel. E os ossos descarnados apare-ceram mais brancos que o normal.[...] Os deuses não estão aceitando nossas orações e nossos sacrifícios. Nenhuma ave do céu solta um grito feliz de bom augúrio desde que pro-varam a gordura de um defunto. [...] Não apunhala quem já não tem vida. Perdoa o morto. Poupa o cadáver.51

O que aí vem como voz não articulável, voz como objeto a, torna-se voz articulada no discurso de Creonte, recobre-se de sentido: a ética de Tirésias é posta em dúvida pela asso-ciação dos significantes pássaro e dinheiro. O estranho encoberto pelo familiar de uma éti-ca do bem (dos bens):

Velho, [...] a tribo dos videntes há muito que me usa, é uma raça que não me tem poupado. Conheço muito bem esses teus pássaros. Eles voam ao sabor de teu interes-se. Sei que se abrir meus cobres eles voarão também de acordo com a minha vontade.52

Finalmente, será mais uma vez pela voz que Creonte alçará a verdade das desgraças amontoadas na história de seu ato. A argu-mentação de Tirésias fizera efeito e, finalmen-te, Creonte decidiu oferecer ao morto sepultu-ra e a Antígona o perdão. Ao direcionar-se ao local onde ambos encontram-se, é surpreendi-

51 SÓFOCLES, 2003, p. 52-3 – grifos do autor.52 Ibid. p. 53.

do pela presença de Hémon. Presença que lhe advém por um gemido. A interpelação do filho pelo pai engendra uma tentativa de assassi-nato do pai pelo filho. Esta, ao fracassar, vem seguir-se do suicídio de Hémon e, ao suicídio do filho, vem juntar-se o suicídio da mãe.

O mensageiro narra da seguinte maneira as ações de seu rei a Eurídice, esposa de Creonte:

Partimos então em direção da câ-mara nupcial de Antígona, onde a donzela esperava a morte empare-dada viva. Alguém que ia na frente ouviu um gemido de homem par-tindo da masmorra e veio, apavo-rado, avisar nosso rei. Quando nos aproximamos, o clamor saído das pedras se tornou ainda mais confuso enquanto o rei, desesperado, gemia e gaguejava angustiado: “Desgraça-do de mim! Mil vezes desgraçado se o que pressinto for verdade. Essa é a voz do meu filho ou os deuses en-ganam meus ouvidos?”53

Agora, também a Creonte ocorre escu-tar aquém do significado – “o clamor saído das pedras se tornou ainda mais confuso”. A voz desta vez, comparecendo como fora do significado, faz enigma: “Essa é a voz do meu filho ou os deuses enganam meus ouvidos?”

“Ó amargo Tirésias, adivinho fatal! Tu prevês a desgraça ou a provoca?”54 Voz como instauradora da verdade ou reveladora da ver-dade? A vidência de Tirésias adveio da decifra-ção do que as vozes dos pássaros já traziam como sinal do destino, ou, ao contrário, foi a interpretação de Tirésias que inscreveu a des-graça na ordem do possível? Voz como verda-de ou como acontecimento?

Enigma, de qualquer forma, atravessa-do em todo e qualquer ato trágico desde que, como voz, não se articula mais a um sentido. Experiência da voz em Antígona e Tirésias e Creonte e Hémon e Eurídice e Corifeu e Men-sageiro. “A senhora saiu sem uma palavra, boa ou má, como se a tragédia não a atingisse. 53 Ibid. p. 64.54 Ibid. p. 63.

Page 13: Catharsis: About the Antigone of Lacan

55Impulso, Piracicaba • 25(63), 43-55, maio-ago. 2015 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767

DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v25n63p43-55

Como interpretam isso?”, pergunta o Corifeu.55

O mensageiro responde: “Estou também per-plexo. Talvez que já tão dilacerada pela calami-dade anterior esteja incapaz de sofrer mais...”56 O Corifeu, então, prossegue, assemelhando silêncio e grito: “Que sei eu? A continência ex-cessiva é tão excessiva quanto o desespero. Vai e procura protegê-la de si própria”.57

Posto isso, reafirmamos: o tempo trági-co de Lacan não seria, para nós, um tempo so-

mente de Antígona. Tempo de uma verdade que suspenderia o inconsciente na desconti-nuidade da ordem sincrônica, algo que, aliás, só se proporia como enunciação improponí-vel em termos lacanianos: a colocação de An-tígona na sustentação incondicional do valor de seu ser, no lugar de um sujeito de uma afâ-nise que dura. De fato. Não é isso que se dá a ver e a escutar na tragédia.

55 Ibid. p. 65.56 Ibidem.57 Ibid. p. 66.

ReferênciasAGAMBEN, G. O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2002.______. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2005.BAAS, B. O Desejo Puro. Rio de Janeiro: Editora ReivinteR. 2001.DOLAR, M. A Voice and Nothing More. Cambridge: MIT Press books. 2006.LACAN, J. Seminário VII. A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar. 1997.______. “Kant com Sade.” In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar. 1998ª.______. Seminário XI. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Edi-tora Jorge Zahar. 1998b.______. Seminário X. A Angústia. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar. 2005.LEAR, J. “Katharsis.” Phronesis. Vol. 33, n. 3. p. 297-326. 1998.ROUDINESCO, E. “Antígona.” In: ROUDINESCO, E. Lacan, a despeito de tudo e de todos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar. 2011.SAFATLE, V. “O ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano.” In: SAFATLE, V. (orgs.). Um Limite Tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo: Editora UNESP. 2003.SÓFOCLES, A. Antígona. São Paulo: Editora Paz e Terra. 2003.VAN HAUTE, P. “Antígona: heroína da psicanálise?” Discurso – Revista do Departamento de Filosofia da USP, 2006, nº. 36, p. 287-311. 2006.ZIZEK, S. (1998). “Kant and Sade: The Ideal Couple.” 1998. Disponível em: <http://www.lacan.com/zizlacan4.htm>. Acesso em: 23 jun. 2014. Submetido em: 8-8-2014Aceito em: 29-1-2015