catarina de braganca

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Catarina de Bragana: A coragem de uma infanta portuguesa que se tornou rainha de Inglaterra/Isabel Stilwell; Lisboa: Esfera dos Livros, 2008; 614 p. (obra completa) rodap Notas: no tem Isabel Stilwell CATARINA DEBRAGANA A CORAGEM DE UMA INFANTA PORTUGUESA QUE SE TORNOU RAINHA DE INGLATERRA 6. edio a esfera e dos livros A Esfera dos Livros Rua Garrett, n. 19 2. A 1200-203 Lisboa - Portugal Tel. 213 404 060 Fax 213 404 069 www.esferadoslivros.pt Distribuio: Sodilivros, SA Travessa Estvo Pinto, 6 A 1070 - 124 Lisboa Tel. 213 815 600 Fax 213 876281 [email protected] Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor Isabel Stilwell, 2008 A Esfera dos Livros, 2008 1. edio: Outubro de 2008 2. edio: Novembro de 2008 3. edio: Dezembro de 2008 4. edio: Dezembro de 2008 5. edio: Dezembro de 2008 6. edio: Dezembro de 2008 Capa: Compaia Imagens da capa: Getty Images (Catarina de Bragana); Album (imagem de fundo) Fotografia da autora: Pedro FerreiraPesquisa histrica: Joana Troni Reviso: Eurico Monchique e Alexandra Pereira Paginao: Jlio de Carvalho Impresso e acabamento: Grfica Manuel Barbosa & Filhos Depsito legal n.286 900/08 ISBN: 978-989-626-132-0 NDICE PARTE I LUZ DOS MEUS OLHOS (1638-1662) 13 PARTE II CATARINA, RAINHA DE INGLATERRA (1662-1685) 297 Para as minhas queridas filhas Ana e Madalena, to especiais, to sempre presentes, to razo de existir. What are little girls made of? Sugar and spice and all things nice, that is what little girls are made of. De que so feitas as meninas pequeninas? Acar, especiarias e todas as coisas boas, dessa massa que as meninas pequeninas so feitas Rima inglesa inspirada em Catarina de Bragana, uma mulher de estatura pequena, a quem o povo reconhecia uma enorme bondade e pacincia, e que tinha trazido consigo um dote de acar e especiarias, que valiam ouro. PARTE I 1638 - 1662 LUZ DOS MEUS OLHOS 1 Pao de Vila Viosa, 25 de Novembro de 1638 O suor caa-lhe pelo rosto, apesar do frio que se fazia sentir no quarto. Fechava os olhos e assistia sempre mesma cena, uma menina de olhos assustados a partir num barco, as ondas, violentas, a baterem contra o casco, um pas longnquo, uma bandeira ao vento - que cores eram aquelas? Rejeio, dio, intrigas, o corpo doente, o ventre liso, o sangue que escorria sem parar, uma Virgem, o corao despedaado, corpos inocentes pendendo de uma corda, e ela escondida, a guarda pronta para a levar, uma torre, uma torre onde todos morriam... O grito da menina e o impulso de estender os braos e de aproteger faziam-na contorcer-se na cama, para ser logo tranquilizada por duas criadas que lhe diziam: Sossegue minha senhora, sossegue, s mais um bocadinho e j est... j a vem. Quem que vinha?, pensava, em delrio, a gua dos pachos que lhe punham na testa para arrefecer a cabea que estourava a pingar-lhe sobre o rosto, os olhos a fecharem-se, a fecharem-se para afastar a dor, e a alucinao a voltar, aterrorizando-a de novo. A menina e uma coroa, um drago que cuspia fogo e S. Jorge que o desafiava, que o enfrentava para salvar aquela que no passava de uma criana indefesa. Uma criana, uma menina, uma mulher, a luz dos seus olhos, mas perdida e distante, to mal-amada, no merecia as traies e o cime, as lgrimas amargas das convices de que no abria mo. O ventre liso, liso e infrtil, a sua menina, envolvida num crculo de dio e de amor, de admirao e de desprezo, e ela impotente, sem a poder trazer para junto de si. [15] O no saiu alto, soou estridente, quase histrico, e as aias em seu redor assustaram-se, a infuso de laranja que lhe faziam chegar aos lbios derramada sobre a camisa de noite de brocados e rendas, j ensopada de suor, lgrimas e sangue. O gemido de um beb, transformado repentinamente em choro forte, encheu o quarto, atravessou as portas e as janelas, correu os corredores do pao, penetrou nas frinchas das paredes e cruzou o espao para o terreiro onde tanta gente esperava, h tanto tempo, aquele som, as candeias acesas, suportando o frio graas s samarras quentes e aos xailes de l grossa. Um gemido, um choro, um sinal de vida, que pareceu trazer a mulher trmula, dorida e assustada de volta a SI mesma: - Dem-ma, dem-ma, dem-ma - dizia Lusa, sempre to firme, to controlada, to forte, morta e trazida de novo vida. A parteira obedeceu duquesa, pousando-lhe nos braos um beb enrolado em panos, os olhos negros despertos, fixos no rosto da me. Lusa soltou um soluo e apertou-a com fora, como se a quisesse proteger hoje e para todo o sempre. A noite estava ainda escura e gelada quando deram a notcia ao duque, adormecido sobre o seu cravo, onde dedilhara horas a fio, procurando controlar o nervosismo de um parto que parecia no ter fim. A mulher j dera luz trs vezes, a pequenina Ana morrera poucos minutos depois de nascer, mas s aps o Santo Baptismo, que Deus guardasse a sua alma, mas nenhum dos trabalhos fora to comprido e to doloroso como este. Acordado por frei Pedro, o frade da capela do Pao de Vila Viosa, que lhe pousou a mo levemente sobre um ombro, Joo perguntou imediatamente: - Est bem, a minha mulher, est bem? E o beb, e o beb? - Me e filha, as duas bem - disse-lhe o frade, com o seu sotaquealentejano cerrado. - Uma rapariga? -, perguntou o duque, entusiasmado. - Uma menina, sim. Pressentiu, na notcia, mais um calafrio do que uma revelao, de que, se nada tinha sido fcil at agora, nada seria fcil a partir daqui. Afastou o medo com um encolher de ombros, levantou-se e, [16] aparentemente a despropsito, mas o frade sabia que no o era, exclamou: - Mas, afinal, quando que a vida foi simples!?! Com as pernas entorpecidas, seguiu frei Pedro, bem mais acordado do que ele, at aos aposentos de Lusa de Gusmo, senhora de Medina-Sidnia, duquesa de Bragana, com o seu sangue andaluz sempre to flor da pele. Bateu gentilmente porta e entrou, a luz das velas a banhar de uma luz suave a cama de carvalho escuro, grande e confortvel, onde tinham concebido aquela criana nove meses antes. Lusa virou a cabea quando o ouviu chegar e chamou-o, como vida: - Joo, uma rapariga. O duque de Bragana pegou no embrulho que a mulher lhe entregava religiosamente, e os olhos da criana hipnotizaram-no, abertos e fixos, agora no pai, que havia de amar mais do que a todos os homens. Ou a quase todos. - Lusa, que olhos ela tem... A mulher estremeceu e, tocando-lhe com a mo no brao, puxou-o para junto de si, sentando-o na cama ao seu lado, e murmurou: - Joo, temos de a proteger. - Disse num sussurro que mais parecia a revelao de um segredo bem guardado. Mas no falou dos seus sonhos, do drago e do fogo, do dio e do ventre liso. Calou-os durante tantos anos, que houve um tempo em que julgou mesmo que os conseguira esquecer, ingenuamente convencida de que a memria limpa aquilo que alguma vez a marcou to profundamente. Felizmente, os filhos de Deus conseguem deitar para trs das costas os seus receios mais terrveis, e continuar a vida como se nada fosse, pensou para si frei Pedro, que entendera melhor do que o duque aquele apelo da duquesa, lendo nele mais fundo e mais longe. Quanto ao duque, sorriu-lhe, meigo: - Proteger Catarina? Haver muitos que daro a vida por ela, contemplame estes olhos, esta boca determinada. Lusa, descansa, que esta menina no se vai perder... - Catarina? - perguntou Lusa, surpresa. - No lhe amos chamar Conceio, como a Virgem de Vila Viosa? - Catarina - retorquiu seguro o pai, enquanto se levantava e caminhava at janela com a filha nos braos e a virava para que olhasse [17]as laranjeiras naquela noite iluminadas por tachas, para que os cantares de embalar que a gente l fora entoava lhe enchessem os ouvidos. - Nasceu no dia de Santa Catarina - explicou frei Pedro, fazendo uma ligeira vnia ao diz-lo. - Que tonta sou, claro. Ento, Catarina ser - concordou a me, exausta. Para baixinho repetir Catalina, a minha Catalina, a luz dos meus olhos, como se s em castelhano, na sua lngua natal, o nome da filha tivesse o vigor que queria ver naquela criana que a nascer quase lhe levara a vida e ajuzo. Quando Joo regressou dos cnticos e do perfume de laranja, Lusa dormia como um anjo. Com a ajuda da ama, abriu um espao entre os lenis de linho com que a cama acabara de ser feita de lavado e pousou a sua Catarina, que adormeceu ao lado da me, entorpecida pelo cheiro da barrela e do ferro, da alfazema e do alecrim. [18] 2 Pao de Vila Viosa, 16 de Junho de 1640 Lusa olhava pela janela para o claustro de D. Jaime. Um ligeiro sorriso curvou-lhe os cantos da boca, quando reparou em Teodsio, pendurado na borda do tanque de Pedro, as mos dentro de gua na tentativa de apanhar um peixinho encarnado. Joana, com o chapu de palha de abas largas a tapar-lhe o cabelo negro, puxava-o pela jaqueta, e os seus gritos de menina de quatro anos chegavam aos ouvidos da me: - Mano, quero peixe. Peixe para mim. A ama conversava distrada com um dos moos da cavalaria, e no dava por nada. Lusa pensou que havia de a chamar ateno, mas os olhos voltaram-se de novo para o seu primognito. Joo estava sempre a dizer-lhe que o mimava, e Lusa no podia enganar-se a si prpria: adorava o filho, que era simultaneamente meigo e decidido, inteligente e determinado. O que no confessava a ningum que suspirava de alvio por o seu filho mais velho ter muito pouco do pai! Demorara muito tempo a adaptar o seu temperamento de mulher de Medina-Sidnia, com o ferro de uma princesa andaluza, ao feitio generoso, mas demasiado acomodado, do duque de Bragana. Teodsio nunca teria as hesitaes do pai, estava certa disso, e como acontece a qualquer me sempre que um dos seus filhos herda um dos traos de carcter que considera do seu lado, Lusa inchava de orgulho: Teodsio saa ao av materno, e ningum podia desmenti-lo. O filho, agora j completamente ensopado - e aquela parva de olhinhos no cocheiro! -, levantava o brao triunfante e gritava para a irm: - Aqui tens o teu peixe, Joana! [19]O peixinho encarnado contorcia-se-lhe nas mos, tentando escapar dos seus dedos fortes, mas Teodsio no o largava. A me olhava ansiosa, no o queria cruel, mas depois de Teodsio ter deixado que Joana tocasse com um dedo nas escamas suaves do peixinho, os olhos semicerrados e uma cara enojada que contradiziam a vontade de o segurar nas prprias mos, lanou-o de novo ao tanque. A birra da irm voltou a incendiar-se. Teodsio olhava-a, divertido: - Deixa-te de fitas, Joana. O peixe foi ter com a famlia dele. Joana olhou-o com a admirao com que sempre o olharia: - Foi... me? - perguntou. - Sim, foi ter com a me dele - disse-lhe o irmo, passando a mo suavemente pelos seus cabelos grossos e negros. Depois saltou para o terreiro e gritou um No me apanhas! Mas antes de desatar a correr por entre as colunas, qualquer coisa o levou a olhar para cima e, quando viu os olhos de Lusa postos nele, o seu rosto iluminou-se. Lusa devolveu-lhe o olhar mas, com um dedo cmplice colocado frente dos lbios, mandou-o silenciar aquele momento. Teodsio guardou-o. Perdera um filho h pouco mais de dois meses. No era o primeiro que Deus lhe dava e voltava a tirar, mas Manuel fora diferente. Embalara-o no colo, sentira a sua mozinha apertar com fora o seu dedo indicador. Era um beb perfeito, de pele muito branca, uma penugem clara cobria-lhe a cabecinha redonda, e o nariz era pequenino e arrebitado. Lembrava-lhe Duarte, o cunhado, por quem se tinha apaixonado nos primeiros tempos de casada, e que quase arruinara o seu casamento. O marido, habitualmente pacfico, enfurecera-se com os olhares que trocara com ele - no fizera mais do que isso, Santo Deus -, mas a rivalidade entre o duque e o irmo era j tal que no precisava de muito para subir de tom. Duarte entendeu que o seu futuro no passava por Vila Viosa, onde s podia agudizar conflitos. Partira h cinco anos para a Alemanha, nunca chegaria a ver este menino to parecido com ele. Seria por isso que sentira como insuportvel que Manuel lhe morresse nos braos, silenciosamente, como se adormecesse num sono suave mas sem retorno? Como Duarte, que a deixara sem um adeus, para arriscar a vida a combater pelo imperador [20] Fernando III. Que culpa podia ser a sua por se ter sentido atrada pelo irmo errado, quando nunca tivera a oportunidade de escolher? Como sempre, fora o seu confessor, frei Pedro, que a soubera consolar, com aquele jeito de poucas palavras mas directas ao assunto, capaz de ler os cantos mais recnditos do corao. Tinha sido claro quando insistira que no era tempo de Lusa se entregar melancolia ps-parto, pois a agitao do povo em torno da opresso dos Filipes crescia, e mais dia menos dia Joo iria precisar de toda a determinao e fora da mulher para tomar a deciso certa. A decisocerta, como misteriosamente era designada nos corredores do pao, a deciso que, a acontecer, lhe mudaria em absoluto a vida. Era uma mulher de armas. Pelo menos, o marido acusava-a frequentemente de o ser, como se sentisse que a sua determinao servia apenas para fazer sobressair a sua fraqueza. Hoje criticava-a menos, tendo entendido que Lusa queria o melhor para ambos e para os seus filhos, mas os primeiros anos tinham sido complicados. O nascimento de Teodsio, no entanto, pusera um interregno nas suas contendas dirias, como se ambos soubessem que a partir de agora no havia regresso possvel. Dera-lhe um herdeiro, um rapaz como tanto desejava, que baptizaram com o nome do av paterno, o dolo de Joo. Depois do desgosto da pequenina Ana, viera Joana, que recebera o nome da av materna, e, h quase dois anos, Catarina. Mais precisamente Catarina de Bragana, um beb cheio de vigor, nascido um ms antes do Natal, como o Menino que chegava para preencher as palhinhas vazias do Prespio. Lusa voltou a pensar em Joo. Aos poucos entendera que as hesitaes do marido talvez no fossem sinal de cobardia ou medo, mas uma forma disciplinada de ponderar antes de agir, de no entrar em conflitos s porque sim. Aos poucos percebera melhor a histria destes Bragana, orgulhosos do seu mote Depois de Vs, Ns. Aqueles que, no sendo reis, eram os primeiros do reino, com propriedades e riquezas espalhadas por todo o pas, de norte a sul, mas sem a fora da coroa. Primeiros do reino, convictos da pureza e da fora do seu sangue, mas inteligentemente fechados no seu Pao de Vila Viosa, porto seguro na estrada entre Lisboa e Madrid, tinham aprendido desde h muito a acenar com a bandeira branca da paz a todos aqueles que, temendo o seu poder, podiam ser tentados a retir-los de cena. Depois de Vs, Ns obrigara a uma diplomacia imensa, provavelmente [21] aprendida no bero. Lusa franziu o sobrolho, recordando a noite em que o marqus de Ferreira, grande amigo da famlia, lhe contara, enquanto se aqueciam na lareira crepitante, que o pai de Joo o educara para a msica, a caa e as Letras, segundo os avisos dos seus conselheiros, que lhe diziam que quanto mais discreto fosse o perfil poltico e militar do jovem duque, mais seguros estariam todos. Por educao no dissera nada, mas nessa noite no conseguira pregar olho: que conselheiros estes, que, em lugar de prepararem Joo para o lugar que um dia poderia ocupar, tentavam escond-lo na paisagem, de forma que passasse despercebido. Educao to diferente da que lhe tinha sido dada a ela, para que superasse a falha de ser mulher, de no ser to rica como desejvel, de no ter os ttulos suficientes para ambicionar mais alto do que um duque, que podia, ou no, vir a subir acima disso. Decididamente, ningum dissera a Lusa que a sua misso era passar despercebida, e tinha a certeza de que nunca ensinaria os seus filhos dessa forma. Queria o melhor, e apenas omelhor, para o seu Teodsio, para Joana e Catarina, e para todos os que estivessem ainda para vir. Olhou de novo pela janela. A desvairada da ama j fora atrs dos meninos, constatou de repente, e o silncio cara sobre o claustro. Lusa agradeceu a brisa que se levantara e abriu um pouco mais a janela, para que este ventinho de fim de tarde arrefecesse a casa. Recostou-se no seu cadeiro de verga, almofadado para que no sentisse tanto as dores que lhe haviam ficado do parto, e durante uns segundos deve ter dormitado, porque quando acordou viu que o missal que segurara entre as mos estava cado no cho. Dobrava-se apressadamente para o apanhar, pedindo desculpas a Deus pelo sacrilgio, quando ouviu a voz alarmada da ama Carminho: - D. Lusa, D. Lusa, a menina arde em febre. Ai, que nos valha Nossa Senhora da Conceio... [22] 3 Pao de Vila Viosa, 17 de Junho de 1640 Desde que Carminho a chamara aos gritos, Lusa no sara da beira do bero da pequenina Catarina. Joo tambm a visitara de meia em meia hora, tirando-a da cama com o braso dos Bragana embutido na cabeceira, onde tantos duques e duquesas antes dela haviam dormido, embalando-a suavemente nos braos. Lusa seguia-os pelo quarto, as compressas frias aplicadas na testa a ferver. - Arde em febre, Joo, e logo hoje que a noite est to quente... - Temos de ter f, Lusa. J pedi ao padre Antnio de Brito e Sousa e ao frei Pedro da Fonseca que dessem ordens para que se rezasse por ela em todas as igrejas da vila e os sinos j repicaram para afastar o mal. - Mas este mdico um incompetente - vociferava a mulher, ansiosa por encontrar um bode expiatrio para a doena que tomava a sua filha. Os caracis de Catarina colavam-se cabea, ensopados, e os seus olhos enormes abriam-se para o pai, mas como se no o vissem. O sorriso fcil e encantador tinha desaparecido. Catarina no lhe estendia os braos, nem os apertava em redor do seu pescoo, com a fora e o amor que o duque sentia que s ela, apesar de no ter mais de um ano e meio, lhe dedicava. Joo estava desesperado. Senhor, no me leves a minha mourinha, rezava para dentro, as costas das mos procurando arrefecer as bochechas ainda mais encarnadas da criana. Na manh seguinte, Catarina continuava quase inconsciente, num delrio de que se soltavam gemidos dolorosos. Lusa afugentava o medo e a ansiedade dando ordens. [23]- Maria do Carmo, manda fazer um ch de laranja-amarga, que faz descer a febre mais depressa do que o das doces, e que o arrefeam antes de mo trazer dizia num portugus arrevesado de castelhano que no conseguia esconder. - Ceclia, leva-me daqui os meninos, por louvor da Santa. Leva-os para o Convento das Chagas e pede s irms que cuidem deles, que no os quero nem perto deste quarto. Teodsio ainda tentou passar a soleira da porta, habituado a levar a melhor da me, mas a firmeza com que foi empurrado para fora dali deixou-o sem pio. Joana, ao ver o irmo tratado assim, nem se atreveu a protestar e, segurando na mo de Teodsio, puxou-o: - melhor fazermos o que a me diz! O som do cravo no deixava dvidas de onde Joo se tinha refugiado. Lusa no sabia se havia de irritar-se com ele, ou de agradecer que o pobre tivesse uma forma de se distrair desta angstia imensa de assistir doena de um filho sem poder fazer nada. Com o p, baloiava suavemente o bero de Catarina, os olhos nas rvores do jardim, que via sem ver, quando sentiu uma mo pousada discretamente no seu ombro. Virou-se, assustada, mas o sorriso de frei Pedro surtiu o seu habitual efeito. Sempre aquela sotaina coada, os livros debaixo do brao, um olhar com um cintilar cnico, que o seu humor e a sua generosidade disfaravam. As lgrimas to furiosamente contidas soltaram-se. Beijou-lhe a mo e depois escondeu a cara entre as suas. Frei Pedro aproximou-se de Catarina, fez-lhe uma pequena cruz na testa, puxou para trs o lenol e na sua voz serena perguntou: - D. Lusa, posso abrir a janela? Est tanto calor aqui e l fora j corre a brisa... Lusa acenou que sim com a cabea e endireitou-se. Frei Pedro abriu a vidraa, olhou o Sol a pr-se no horizonte, e, de costas viradas para a duquesa, comeou a falar: - D. Lusa, posso repetir-lhe o meu sermo de hoje? Sem esperar por uma resposta, continuou: - Falei de Maria purificada, que quarenta dias depois de ter dado luz o Menino, O apresentou no Templo, como era costume ento, oferecendo dois carneiros e pombas em aco de graas. Lusa sufocou um soluo. Passavam 40 dias desde que dera luz, mas no havia menino para apresentar, que Deus lhe tinha levado o seu pequenino Manuel. [24] - No percebo onde quer chegar, frei Pedro, sabe que esse assunto me magoa, logo agora que me sinto prestes a perder Catarina... - F, D. Lusa, f. Deus escreve direito por linhas tortas. Falei de Nossa Senhora das Candeias, ou da Purificao, a Virgem que d a luz aos que novem... - Mas por que me fala agora de cegueira, frei Pedro? perguntou Lusa, aflita. - O mdico no vos disse que teme que D. Catarina, com estas febres estranhas, perca a viso, como tem acontecido a tantas outras crianas por estes dias? Lusa tremeu. O que deveria temer mais? Que a sua filha to perfeita, de olhos to abertos para o mundo, passasse a viver na escurido, ou que partisse, agora, sem sofrimento? - J sei onde quer chegar, frei Pedro. Acha que me devia apresentar com ela Senhora das Candeias, Nossa Senhora do Tojal, como lhe chama o povo; que me devia juntar peregrinao que parte para Mouro, onde est a imagem da Virgem que dizem fazer milagres? Frei Pedro no se virou, mas inspirou fundo o cheiro a rosmaninho que j estava em flor, e continuou, como se no tivesse ouvido a duquesa: - Vivemos tempos de escurido. Ter f na luz o nico caminho. A luz vir, se acreditarmos nela. Se lutarmos por ela. Lusa voltou a suspirar. Suspeitava que o frade falava de muito mais do que da doena de Catarina, o que se por um lado a sossegava - era como se ele soubesse j que a sua filha seria salva -, por outro a deixava assustada, com medo de que frei Pedro estivesse apenas a prepar-la para seguir por um caminho entre as trevas. Levantou-se, de um salto. No valia a pena fazer-se de tonta, sempre fora inteligente, e, pensando com mais serenidade, sabia bem a que luz frei Pedro se referia. Olhou de novo para a filha e o seu corao deu um salto. - Frei Pedro, frei Pedro, Catarina j sorri. Frei Pedro voltou-se muito devagarinho, como se nada daquilo o surpreendesse, e aproximou-se do bero. Catarina virou para ele o olhar e sorriu de novo, os dentes muito brancos numa cara redonda e rosada. Frei Pedro debruou-se sobre ela, pegou-a e sentou-a no colo da me. - At amanh, D. Lusa. [25] A duquesa no encontrou voz para lhe responder, mas, na sala l do fundo, o cravo deixou de tocar, como se Joo tivesse pressentido tudo, sem ser necessrio que lhe dissessem fosse o que fosse. Os passos apressados do duque soavam no soalho de madeira e escutavam-se cada vez mais prximos, confirmando a sua suspeita. Como soubera? [26] 4 Castelo de Terena, 15 de Setembro de 1640Chovera furiosamente nas primeiras semanas de Setembro e as ervas verdes tinham coberto o campo queimado do sol. O milho estava alto e as vinhas, onde as havia, exibiam os seus enormes cachos de uvas. A comitiva avanava h dois dias. Partira do Pao de Vila Viosa em peregrinao destinada a agradecer a Nossa Senhora das Candeias a sade da pequenina Catarina. E a pedir luz. Catarina recuperara rapidamente da doena e os seus imensos olhos negros continuavam a ver, louvado fosse Deus. Brilhantes e cintilantes, incapazes de esconder uma tristeza, iluminando-se com a mais pequena alegria. A luz dos meus olhos, cantarolava-lhe Lusa, enquanto a fazia saltar nos joelhos. Na primeira noite pararam na vila de Terena, com o seu magnfico castelo, engalanado para os receber, as gentes na rua gritando vivas, dobrando a cabea em vnias a Teodsio e s armas dos Bragana. Depois do descanso na modesta casa da Irmandade da Misericrdia, as armas portuguesas por cima da porta, o que frei Pedro sussurrou ser um bom pressgio, em quartos arranjados com esforo e o maior dos luxos para a duquesa e filhos, a comitiva dirigia-se agora para a vila de Mouro, passando antes, para um momento de orao, na Confraria de Nossa Senhora da Boa Nova. Um santurio to antigo como o prprio tempo, pensou Lusa, ao olhar as paredes sbrias de Pedro, quase um castelo em miniatura, onde uma Santa Catarina, num altar lateral, merecia uma Ave-Maria. As carruagens iam enfeitadas, os cobres luziam, acabados de polir. A guarda vinha a cavalo, e Teodsio montava tambm, mas Lusa, [27] Joana e Catarina seguiam protegidas do p da estrada, luxo que no era partilhado pelo povo que se fora juntando comitiva. A carruagem da duquesa atraa os olhares de todos. Era um presente de casamento e Lusa no se cansava do seu fausto. Nem do simbolismo - fora nela que viajara da sua terra natal, San Lucar, at Elvas, onde casara a 12 de Janeiro de 1633, sete longos anos atrs, na magnfica catedral. O cunhado Duarte e o irmo, com o mesmo nome, um em cada estribo, apesar da chuva torrencial, e a partir da ponte do rio Caia, Joo, a seu lado. O homem que conhecera naquele minuto e a quem iria oferecer a sua vida para sempre. O Castelo de Monsaraz impunha-se do lado esquerdo da estrada, as muralhas contornando o cume, as lascas de xisto empilhadas umas nas outras como lminas. O sol brilhava contra os sinos de uma das torres e D. Lusa teve pena que a imagem da Senhora no estivesse na ermida daquela terra, toda em Pedro escura, num pequeno monte vizinho. Sempre poupava umas lguas de estrada e de calor. Pensava nisto quando ouviu os dedos de Teodsio a bater na vidraa da janela. O filho chegara o cavalo carruagem, para lhe falar: - Me, olhe, v ali ao fundo, muito ao longe, a torre de Mouro? Se no fosse o barulho dos cascos dos cavalos e do ranger das rodas, ouvia a msicaque toca e a brisa nos traz. Mouro est nossa espera. No aguento ir a este passo, posso galopar at l? Lusa endireitou-se, zangada, que o amor ao filho nunca a fazia esquecer a disciplina: - Teodsio, que te livres de sares daqui. O futuro duque de Bragana no abandona a comitiva e as mulheres da famlia, para desarvorar pelos campos como um louco. Senta-te direito nessa sela e cumpre a tua misso, que ests aqui no lugar do teu pai. Joana deitou-lhe a lngua de fora; adorava ouvir a me ralhar a Teodsio. Ia ser sempre assim, uma adorao desmedida pelo seu magnfico irmo mais velho, e uma raiva contida por se ver sempre preterida, ou pelo herdeiro, ou pela mais pequena da famlia, que todos pareciam obcecados em proteger. Desta vez o pai pensara como Joana. Tentara dissuadir Lusa de partir at Mouro, com o argumento de que a devoo dos Bragana sempre fora a Nossa Senhora da Conceio. Mas mesmo enquanto falava, sabia que a batalha estava perdida. Primeiro, porque a mulher fazia sempre o que entendia, e, depois, porque desta vez era secundada por frei Pedro, e contra aquele frade Joo nunca diria uma palavra. [28] O duque hesitara. Deveria acompanhar a famlia ou deixar-se estar no pao? Era bom que os Bragana fossem vistos nas suas terras, e naquelas, como Mouro, que tinham dado o seu apoio aos Filipes. Mouro j fora bastio da independncia, ora nas mos de uns, ora nas de outros, mas, agora, que sentido fazia isso, se o reino inteiro pertencia a Castela e o sangue derramado pelos seus antepassados fora derramado em vo? At pensar nisso lhe parecia perigoso, educado que fora para andar sempre entre os pingos da chuva, praticando a diplomacia suprema de recusar os cargos e lugares que Filipe lhe propunha - sempre ilustres, sempre distintos sem dar a ideia de que o fazia por oposio ao seu poder. Ou, pior, com vontade de o confrontar. Mas nesses primeiros tempos tudo era diferente, como lhe diziam os cpnselheiros. O Juramento de Tomar, feito por Filipe li, parecia garantir a independncia do nosso reino, assegurando que os principais lugares seriam ocupados por polticos e militares portugueses, mas longe iam essas promessas. Se Joo no tinha vontade nenhuma de se meter em sarilhos, no tinha tambm coluna vertebral para suportar os atropelos que iam descaradamente sendo feitos aos direitos dos portugueses. Ainda pensou em falar com o rei de Castela, sugerir-lhe que um bocadinho mais de bom senso o poderia levar longe, mas depressa compreendeu que conversar com Filipe III de Espanha era comprometer-se com ele, e isso no queria. Como frei Pedro lhe dizia enquanto bebiam um copo de vinho quente na sala grande, em frente lareira, com os frescos do tecto iluminados pela luz das50 velas do lustre, os tempos das hesitaes j tinham acabado. Nunca o aconselhava directamente, da mesma forma que no o criticava, optando sempre por falar como que para os anjos no cu ou para os toros de madeira que ardiam no fogo. Assim, ia dizendo que h destinos que um homem no pode recusar. [29] 5 Vila de Mouro, 15 de Setembro de 1640 Joana puxou-lhe pela manga do vestido de seda verde: - Me, me, estamos a chegar. Msica... Lusa voltou ao presente. Endireitou Catarina no colo e procurou alisar os vincos do vestido branco amarrotado pela viagem. - Ai, meu Deus, como que vou apresentar a filha do duque de Bragana Virgem e ao povo com o vestido todo amarfanhado queixou-se a Teresa, que sorriu. - Deixe-se disso, D. Lusa. Viemos em peregrinao. O que importa agradecer a sade de D. Catarina e deixar que a Senhora das Candeias a ilumine para todo o sempre. Que a duquesa veja sempre mais longe e guarde no seu corao a luz da f. Lusa olhou-a meio envergonhada. Escusava de ter ouvido tudo isto da boca da sua aia. Pensou em amuar, mas depois sacudiu os ca belos enfeitados com brilhantes e encostou a cabea ao seu ombro: - Teresa, foste o melhor presente que a minha me me deu. Teresa soltou uma gargalhada divertida: - Melhor ainda do que esta carruagem? Mas a conversa ficou por ali, porque estavam parados na praa principal, frente Igreja da Misericrdia, e nem podiam avanar mais, tal era a multido que os rodeava. O bispo de vora, vindo at aqui para a ocasio, abriu a porta da carruagem e estendeu-lhe a mo a beijar, para depois lhe segurar o brao para a amparar na descida dos frgeis degraus que o pajem se apressara a preparar: - Bem-vinda, D. Lusa de Gusmo. [30] Baixinho, para que s ela ouvisse: - Julgo que o melhor deixar aqui a carruagem e subir a encosta at pequena Ermida de Santa Maria do Tojal, em peregrinao. A luz da tarde era to intensa que Lusa teve de puxar para cima dos olhos o chapu, e s ento percebeu que as ruas estavam cobertas de flores, as janelas decoradas com mantas e colchas bordadas, e homens e mulheres aguardavam-na, em silncio. Sentiam-se muito orgulhosos pela visita daduquesa, senhora daquela terra, mas mais orgulhosos ainda de albergarem no pequeno templo, incrustado na Torre do Relgio do magnfico castelo, fechada e protegida entre as suas paredes altaneiras, no topo do morro de tojo, que tinha dado o nome igrejinha, a imagem milagreira de Nossa Senhora das Candeias. D. Lusa desceu com Catarina presa nos braos; a veste branca smbolo de pureza contrastava com a sua pele morena, os imensos olhos escuros, o cabelo em caracis at aos ombros. Joana, to parecida com a irm, segurava a mo da me, muito direita e digna como a ama lhe ensinara. Teodsio, j pelo seu p, apressou-se a chegar-se prximo das mulheres da sua famlia. Lusa foi cumprimentando as gentes que ladeavam as ruas e quando deu por isso estava frente da procisso que a seguia, compacta, pela encosta. Os canhes, de cada lado do grande porto, revelavam anteriores conquistas - e outras que haviam de vir, disse Lusa para consigo -, e porta a guarda fardada a rigor fez soar salvas duquesa. O padre de Mouro, um homem baixo e bonacheiro, recebia-a vestido no melhor dos seus paramentos e insistiu em ser ele a conduzi-la ao santurio. Catarina olhava em redor, prestando ateno a este e quele, sem medo, nem temores, como se tivesse nascido para atravessar multides. Sorria s pessoas distncia, mas no se debatia para ir para o cho. Dir-se-ia que queria agradar, mas guardando a distncia, pensou Teresa, que a observava de perto. To diferente do seu irmo Teodsio, que apertava mos a torto e a direito, deixando cada pastor de Mouro, cada trabalhador da terra, com a certeza de ser nico. As aias, a rir, diziam umas s outras: - Esta gente j no lava as mos, depois de D. Teodsio lhas ter apertado A verdade que anos depois muitos avs relatavam com entusiasmo aos netos aquela tarde em que o filhinho do senhor duque viera a Mouro. [31] A ermida era pequena, as paredes de xisto sobreposto como fatias de um bolo de bolacha, o tecto abobadado como s os alentejanos o sabiam fazer. Pequenina e escura, como se fosse a caixa aveludada de uma jia preciosa que o sol podia estragar, dela emanava uma serenidade impossvel de encontrar num lugar sem a marca do sagrado. Hoje, a imagem no saa no seu andor, para ser vista e adorada pelos peregrinos. Hoje, a Virgem esperava no seu posto a visita da duquesa e da pequenina Catarina. Eram elas, e s elas, que lhe faziam a genuflexo, lhe acendiam uma vela e se ajoelhavam para orar. Frei Pedro, que se mantivera annimo entre a comitiva, deixando que o bispo fizesse todas as honras da casa, e o prior de Mouro as restantes, avanou para junto da duquesa, segundos antes da sua entrada. Silenciosamente, dobrou um joelho e fez o sinal da cruz na testa de Catarina, empurrando-a suavemente para a porta de carvalho escuro. Lusa seguiu o seu sinal, retirou os sapatos, perante o olhar de aprovao da multido, descalouCatarina e colocou-a no cho. Entregando a mo de Joana a Teodsio, avanou com a filha, de passos j to certos apesar da tenra idade, at junto da imagem. Com um metro e vinte de altura, quase o dobro de Catarina, feita de Pedro de An, que permitia sempre aquela textura leve, branca e sem veios, vestida nos seus trajes brancos de festa, bordados cuidadosamente a ouro, a imagem era imponente. Os seus cabelos negros (To negros como os meus, pensou Catarina) caam em tubos sobre as vestes e os brincos de prata trabalhada reflectiam a luz das velas que a rodeavam. O Menino era rechonchudo e loirinho, aconchegado me, uma coroa na cabea de um e na de outro. As pombas voavam em seu redor no retbulo ao qual se mantinha encostada, onde brilhavam tambm estrelas douradas. O Menino estava virado de frente para quem chegava, como se ele e sua me os acolhessem. Acenderam a vela alta de cera de abelha, rezaram, e depois Lusa ordenou a Catarina que lhe beijasse os ps, em sinal de reverncia e gratido. Mas, levantando a cabea, Catarina pediu: - Colo, me - e apontava com o dedo para o Menino e para as pombas. Lusa ergueu-a altura do Menino Jesus, recomendando-lhe todo o cuidado. Catarina, com o dedinho indicador esticado, percorreu as feies da criana, como se procurasse memorizar todos os seus detalhes. Catarina percebia bem que a Virgem que tinha frente no era um boneco, nem um brinquedo. [32] O silncio foi subitamente interrompido pelo choro de uma criana, e Joana apareceu de repente, as lgrimas a correrem-lhe pela cara, fugida de Teodsio, as mos presas com fora s pernas da me. Porque que toda aquela festa era s para a Catarina, um beb de colo? Lusa, em lugar de se zangar com ela, pousou Catarina, que se sentou de pernas cruzadas, levantando em seu lugar Joana, beijando-lhe a cara molhada pelo calor e pelas lgrimas. Chegando-a mais perto, sussurrou-lhe ao ouvido: - Joaninha, desculpa. A Virgem tem um corao que chega para todos. Queres pedir-lhe a bno? Joana estendeu o corpo para os ps da Virgem e beijou-os. Depois, reconfortada, ajoelhou-se de olhos fechados, benzendo-se como uma boa aluna de frei Pedro. Catarina olhou-a, espantada, e imitou-a. Joana abraou-a: - Desculpa, Catarina. Estou muito contente que aquela doena no te tenha feito mal. Lusa enxugou os olhos, e, baixando-se, ps um brao em redor de cada uma delas, rezando alto: - Luzes dos meus olhos, que a Senhora das Candeias vos ilumine sempre o caminho. Anos depois, nos momentos mais difceis da sua vida, Catarina ouviria sempre no mais fundo de si a voz da me, a entoao nica da me, a pedir Virgem que lhe iluminasse o caminho. Mouro nunca mais saiu do seu corao. [33] 6 Pao de Vila Viosa, 25 de Novembro de 1640 Joana estava mais excitada do que Catarina, que percebia que o dia era de festa e que todos pareciam andar sua volta desejosos de cumprirem as mais pequenas vontades, mas no sabia bem porqu. A ama tirara-a da cama e abraara-a contra si com toda a fora. Deralhe um beijo lambuzado, que Catarina se apressara a tentar enxugar com as costas da mo, e entregara-lhe uma laranja enorme. Catarina apertara o fruto entre as mos e preparava-se para lhe dar uma dentada quando Joana interrompeu a cena: - Ama, ama, a pateta da mana julga que a laranja se come assim. A ama tirou-lhe apressadamente a laranja da mo, e Catarina desatou num pranto de fria e raiva: - Ai, D. Joana, que esta sua irm h-de ter c um feitiozinho. toda sorrisos quando a vida lhe corre de feio, mas se algum a contraria fica a terra inteira a saber que no lhe fizeram a vontade - comentou. Lusa tambm ouvira os gritos da sua filha mais nova, exactamente quando atravessava o longo corredor, batendo com os saltos suaves na madeira polida. Apressou o passo, mas sem medo: conhecia bem aquele choro de Catarina, e, embora lhe repreendesse as birras com uma determinao e uma severidade at provavelmente exageradas, por dentro sorria orgulhosa pela fora do carcter da sua mais pequenina. Lembrava-se bem de como h dois anos o seu parto fora longo e doloroso, corrido pela noite fora. Catarina estava determinada a no sair do conforto da sua barriga, pensou divertida, para se benzer rapidamente, quase como se fosse uma heresia ter esquecido Ana e Manuel, que Deus os tivesse junto de Si. [34] Entrou no quarto de brinquedos e encontrou a filha sentada na sua cadeirinha alta, um enorme guardanapo para proteger o vestido de seda cor-derosa, que a av materna lhe mandara de presente, frente a um prato com uma laranja cortada s rodelas, que insistia em comer sozinha, apesar dos protestos da ama. - Que gritaria era aquela, menina Catarina? - perguntou-lhe, aceitando os braos que a criana logo lhe estendeu e puxando-a para si. - Me, me, era a Catarina que queria comer a laranja que a ama lhe deu de presente de anos, com a casca e tudo... - disse Joana. - Menina impaciente... Ento no sabe que a laranja no se come com acasca, minha pateta pequenina - ia dizendo filha, enquanto a balouava ao colo, como se a fosse deixar cair. Catarina ria a bandeiras despregadas, totalmente confiante nos braos que a sustentavam, sentindo que aquele, sim, aquele era o melhor dia da sua vida. Durante o dia brincou no quarto, mas, s quatro da tarde, a ama veio trocar-lhe novamente o vestido por um de seda pesada, castanho, com rendas bordadas em redor do pescoo, que Catarina bem tentava arrancar. Joana j tinha posto o seu, exactamente igual, e dava voltas sobre si mesma para mostrar irm a roda que o vestido tinha. Teodsio interrompeu a cena, entrando de rompante pela porta, vestido tambm de gala, na mo um badalo de ovelha, preso num cordo de couro curtido. Abanou-o com fora em frente dos olhos da irm mais nova. Joana tapou os ouvidos, mas Catarina sorriu, divertida: - D, d, d mim? - perguntou, enquanto lhe estendia a mo. Hoje isto resulta, pensou, porque todo o dia a mo tinha voltado cheia, e ningum lhe tinha dito o habitual No mexa, ou D. Catarina, isso no para si. Teodsio, divertido, pendurou-lho volta do pescoo e o cordo era suficientemente comprido para que Catarina conseguisse, sozinha, fazer tocar o sino. Depressa percebeu que bastava abanar a cabea para que aquele som, que lhe era to familiar, se soltasse. Joana e Teodsio riam divertidos, mas a ama interrompeu a brincadeira: - D. Teodsio, a fazer da sua irm uma ovelha. Credo, menino. Se os senhores duques aqui entram, eu sou despedida na hora, julgam que fao pouco da menina. Frei Pedro, que dava as primeiras letras a Teodsio, estava sempre a corrigir-lhe o sotaque alentejano, e D. Antnio Brito de Sousa, ento, [35] ficava doente quando o ouvia falar como os midos da terra, com quem brincava sempre que conseguia saltar os muros do jardim do pao. Mas Teodsio adorava aquele tom cantado, e respondeu-lhe na mesma: - Carminho, mas o que so as minhas irms seno ovelhas do meu redil... aqui neste pasto, quem manda sou eu. O sorriso da ama iluminava-lhe a cara, aquele menino tinha tudo para fazer o que quisesse de qualquer pessoa, pensou: era bonito, educado, esperto e meigo. Passou-lhe a mo pelo cabelo, e ele encostou-se por momentos ao seu avental, talvez saudoso dos tempos em que no se tinha de comportar como o filho mais velho do duque, mas apenas como um menino de colo, que podia saltar para o regao da ama e deixar-se embalar pelos seus cantares. Carminho recuperou a compostura: - Os trs direitos, que j ouvi a porta bater por mais de cem vezes, e os convidados de D. Catarina j esto, de certo, na sala vossa espera. D. Teresa surgiu naquele preciso momento e, pegando em Catarina, deu a mo a Joana, enquanto Teodsio, esquecido de qualquer desejo de ser menino de colo, marchava sua frente com a postura de um pequeno duque.Nessa tarde, o primeiro a chegar fora D. Francisco de MeIo, marqus de Ferreira, assim formalmente anunciado pelo mordomo-mor que, vestido com as cores da casa de Bragana, acompanhava os recm-chegados ao topo das escadas. Lusa estendeu-lhe a mo imediatamente, e D. Francisco ajoelhou-se para a beijar. Um dos homens mais poderosos do reino, e que demonstrara sempre uma lealdade imensa por Joo, ao ponto de no parar de lhe dizer que chegara o momento de enfrentar Castela. Joo e Lusa tinham-lhe agradecido a fidelidade, pedindo-lhe que aceitasse ser padrinho de D. Catarina, honra que at o fizera corar, recordava-se agora Lusa, ao v-lo estreitar o marido num abrao apertado. O baptizado fora um acontecimento discreto, na capela do prprio pao, o altar decorado com folhas de cameleira que a mulher de D. Francisco fizera questo de trazer de Sintra para a ocasio. - A 12 de Dezembro - disse uma voz familiar, e Lusa deu um salto. D. Antnio de Brito e Sousa, que j naquele tempo era deo da capela dos Bragana, acabara de chegar, e, com aquela magia que sempre tivera e teria, conseguia ler os seus pensamentos, como se a cabea de Lusa no passasse de um livro aberto. [36] - No a cabea, mas o corao - acrescentou D. Antnio, e Lusa quase sentiu que o seu parara de bater. - D. Antnio, no faa isso, que me assusta. Sei-o abenoado por Deus e pelos anjos, mas essa sua maneira de saber tudo em que estou a pensar, mesmo antes que eu tenha conscincia do que , ainda o leva fogueira - disse Lusa, a mo estendida e os olhos verdes mais verdes ainda. - Pensava ou no pensava no dia do baptizado de D. Catarina? retorquiu o deo, que tinha um gozo imenso na sua capacidade de pressentir o que ia na alma dos outros. Para dizer a verdade, aprendera a arte com frei Pedro, esse, sim, um mestre, e conhecia a duquesa suficientemente bem para que certos olhares fossem inconfundveis. No hesitava em fazer uso do dom, desde que o seu priorzinho no estivesse por perto, porque a sentir-se-ia como um amador a fazer habilidades perto de um mestre. - Pensava, sim, D. Antnio. Na felicidade de Catarina estar hoje aqui. Parecia-me to frgil, aquele novelinho envolto em mantinhas, talo frio que fazia na capela, o Natal porta, e eu cheia de medo de que apanhasse alguma coisa quando o deo lhe fizesse correr a gua gelada da pia pela cabecinha abaixo. - Falta de f, D. Lusa - disse-lhe o padre Antnio, divertido. - F, senhor? - Claro, acha que frei Pedro alguma vez deixaria que baptizasse D. Catarina com aquela gua gelada? Aqueceu-a sem dizer nada a ningum, com a cumplicidade da ama, suponho. S dei por isso quando toquei na bacia, e no ia interromper a cerimnia para perguntar o que se passava. Lusa suspirou, comovida: - Mais uma dvida que tenho para com frei Pedro.Em silncio, pediu a Nossa Senhora das Candeias que abenoasse a sua filha, a quem devia a bno de uma Catarina viva e forte, que aqui estava a celebrar dois anos. A sala estava quente, porque os criados h dias que acendiam as lareiras, de noite e de dia vigiadas para que o seu calor no esmorecesse, mas apesar disso as senhoras mais friorentas chegavam-se ao fogo para aquecer as mos. O ch, moda recente vinda do Oriente, foi servido em chvenas de porcelana azul que as convidadas no se cansavam de admirar. [37] Quando a porta se abriu e Catarina surgiu, ladeada pelos irmos, uma salva de palmas irrompeu entusistica. Catarina estendia as mos, no gesto que hoje lhe parecia to rentvel. O padrinho pegou-lhe ao colo e ela olhou em redor ligeiramente aflita: no se lembrava de o ter visto antes, mas o ar confiante e seguro da me disse-lhe que podia deixar-se estar entre os braos daquele homem alto e que cheirava a ch de lcia-lima, de que tanto gostava. Francisco aproximava-se de Joo com ela, dizendo-lhe numa voz doce palavras que no entendia mas a sossegavam, quando um dos camareiros surgiu porta e, atravessando, sem grandes cerimnias, os grupos de convidados, aproximou-se do duque, saudou-o e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Joo empalideceu ligeiramente mas, procurando recompor-se, puxou pelo brao do padrinho da filha e empurrou-o para o seu escritrio, contguo sala. D. Francisco seguiu-o, to encandeado pelo seu olhar que praticamente no reparou que trazia consigo a pequenina afilhada. Catarina, por seu lado, face ao olhar to invulgarmente srio do pai, achou por bem reduzir-se sua insignificncia e permanecer ao colo do padrinho, to imvel quanto possvel. Mas os seus olhos imensos estavam to abertos que pareciam prontos a cair-lhe da cara. No escritrio de janelas altas, abertas sobre o terreiro fronteiro do pao, j os esperava o conjurado Gaspar Coutinho. Os trs homens cumprimentaramse. Gaspar passou distraidamente a mo pelos cara cis de Catarina, enquanto dizia: - D. Joo, est tudo preparado para enfrentar os espanhis. De seguida, contou tudo o resto: a conspirao, o dio crescente mandatria de Castela e ao seu amante, a deciso de um conselho secreto de nobres dispostos a avanar, com a condio de que o duque de Bragana aceitasse ocupar o trono, que de boa vontade reconquistariam para lhe dar. Catarina virou os olhos para o pai. O pai foi preso por eles, como se sossegar a sua ansiedade naqueles lagos imensos e tranquilos fosse uma forma de encontrar a segurana que no sentia. Gaspar percebeu que D. Joo no tirava os olhos da filha, e no hesitou em utilizar Catarina como uma carta sacada da manga: - Essa criana tem direito a ser princesa. Olhe para ela, D. Joo, para aforma como se senta direita, a seriedade com que ouve esta conversa como se entendesse tudo. Com ela ao seu lado... [38] No teve tempo de acabar a frase, porque D. Lusa acabara de entrar. Surpreendida, olhou para aquele trio de homens, suspensos no olhar de uma criana, e, pegando em Catarina ao colo, virou-lhes as costas, no sem antes dizer: - A resposta sim. Que conste que este o presente de anos que D. Joo d sua filha Catarina, a Joana, e sobretudo a Teodsio. J chega de Castela, e digo-o eu que tinha todas as razes para no o dizer. J chega de vivermos servos de outros, Joo, quando os teus antepassados deram a vida para preservar a independncia deste reino... Fechou a porta suavemente atrs de si. - Como vem, senhores, as mulheres de minha casa respondem por mim. Primeiro Catarina, depois Lusa, que posso eu dizer? Gaspar e Francisco fizeram-lhe uma vnia profunda. O primeiro saiu pela escada lateral por onde entrara, Francisco deu o brao ao compadre e voltou para a sala onde frei Pedro dizia uma orao de aco de graas por Catarina e pela sua famlia. - Que a Senhora das Candeias me ilumine a mim! -, disse Joo ao ouvido da mulher, enquanto se ajoelhavam para receber a bno. [39] 7 Pao de Vila Viosa, 1 de Dezembro de 1640 Joo no conseguira dormir. Sabia que tudo se passaria na alvorada que daqui a pouco nasceria. Estava combinado que os 40 conjurados, como se tinham auto-intitulado, se reuniriam nos jardins de AImada para discutir os ltimos detalhes, na noite de dia 31, ou seja, por esta hora j teriam regressado a casa, se tudo tivesse corrido bem. Sabia tambm que planeavam encontrar-se no terreiro frente ao Pao da Ribeira s nove da manh e ocup-lo, aprisionando a duquesa de Mntua e o seu secretrio Miguel de Vasconcelos. Deteve-se por uns minutos a pensar em Margarida de Sabia, Mntua por casamento com um duque j falecido e cujo nico filho varo morrera em criana, vendo-se obrigada, depois da morte do marido, a refugiar-se em Espanha. Estivera com ela muitas vezes, prima direita de Filipe III, tratava-o, tambm a ele, sempre por primo, lembrando-lhe constantemente que descendia de portugueses. Era uma mulher invulgarmente bonita e muito ambiciosa, pensou deve ser a minha sina, suspirou, lembrando-se de que Lusa no lhe ficava atrs. Quando Filipe a nomeou para governar Portugal, esquecidos emaltratados os princpios do Juramento de Tomar que garantiam uma poltica de no ingerncia, tinha ficado surpreendido. Mas no to espantado como quando a viu gerir o reino com mo-de-ferro, sem considerao por ningum. claro que a m-lngua dizia que no era ela, que no lhes era fcil a humilhao de Espanha, somada humilhao do poder entregue a uma mulher. Preferiam mil vezes acusar Miguel de Vasconcelos, dizendo que, de facto, era aquele que executava [40] as polticas do soberano castelhano e do seu ministro omnipotente, o conde de Olivares. Virou de novo a cabea na almofada, irrequieto e cansado. Mas os pensamentos continuavam a correr, como um fio de um novelo que nada conseguia quebrar. Fosse de quem fosse a culpa, a verdade que havia uma falta de bom senso gritante. Filipe, sempre Filipe. Falava nele e a imagem surgia-lhe na mente, perfeita e definida: Filipe IV de Espanha, Filipe III de Portugal, que fora nomeado herdeiro em 1619, tinha Joo 15 anos. Para dizer a verdade, sentia uma grande empatia por ele: colocado nas mos do perigoso Olivares aos 10 anos, aos 16 carregava sobre os ombros ttulos sem fim - rei de Portugal, de Npoles, da Siclia, rei titular de Jerusalm, rei da Sardenha, prncipe das Astrias, era obra para quem tinha um carcter sedutor (era pai de mais bastardos do que de filhos legtimos!) mas uma grande dificuldade em fazer valer a sua vontade acima daqueles que o rodeavam e abafavam desde criana. Aos 16 anos tinha somado aos cargos o mais complicado de todos, quando o pai morreu e foi aclamado rei de Espanha, herdando um conjunto de Estados, em que Portugal se inclua, todos eles insatisfeitos com a hegemonia de Castela. Quando, ainda h alguns meses, o convocara para ir ter com ele a Madrid, a fim de o acompanhar nas investi das contra a Catalunha, percebera a armadilha, recusara inventando uma desculpa - tinha sido a doena da filha Catarina ou a morte do beb Manuel, j no se lembrava sequer, mas sabia perfeitamente que o rei de Espanha, agora com 35 anos, um ano mais novo do que ele - suspirou! - se tornara, desde a, mais desconfiado do que nunca. Mesmo os maiores no conseguem estar sempre, em todos os momentos, em todo o lado, e Filipe previa, certamente, o que iria acontecer em Portugal, mas contava provavelmente com mais tempo, o tempo suficiente para pisar a Catalunha, que era rica, e voltar depois a sua fora contra os vizinhos ocidentais. Joo estava plenamente consciente, assim como os seus conjurados, de que a oportunidade era esta e mais nenhuma: com Filipe de costas voltadas, com todos os seus homens e canhes apontados para norte, era tempo de agir. Os espies dos conjurados sabiam onde estava cada peo no tabuleiro do xadrez poltico de Castela e garantiam que era o momento certo para agir, abrindo o caminho para o rei de Portugal. Para o xeque-mate final.[41] A duquesa de Mntua tornara-se odiada pelo povo, o smbolo de uma mulher que se amantiza com um criado do seu senhor, e tudo isso para benefcios pessoais. Bastava ajudar o povo a lembrar aquela outra Leonor Teles, que com o conde de Andeiro pusera em risco a independncia, usando a bonomia do marido para favorecer Castela. Bastava colar as duas, e a raiva cresceria por si. Joo s esperava que os seus homens, ou aqueles que lutavam por ele, sem que lhes tivesse pedido nada, no dessem a Vasconcelos o mesmo fim que o mestre de Avis oferecera, pelas suas prprias mos, ao conselheiro espanhol. Tapou a cabea com a almofada. Lusa tambm no dormia. Cansada de dar voltas na cama, decidiu levantar-se, cobrir-se com o manto de pele de urso e ir ver se Catarina no tinha piorado da constipao que h dias a afligia. Pediu criada que lhe levasse uma infuso de cidreira ao quarto de brinquedos e, com a vela na mo, encaminhouse para l, mandando deitar de novo as camareiras que, aflitas, se tinham levantado para lhe prestar servio. Lusa tapou Catarina melhor com a manta quente tecida pelas gentes de Monsaraz, depois de se assegurar que a sua testa estava fresca. A filha remexia-se no sono, como se nem a noite lhe trouxesse descanso. Com que sonharia?, pensou, sorrindo ligeiramente. Soprando a vela que a filha tinha na mesa-de-cabeceira e mandando de novo para a cama a ama e a cria dita que se tinham levantado para se colocarem ao seu dispor, Lusa aproximou-se da porta para sair. Mas, num ltimo impulso, virou-se e olhou as suas duas filhas adormecidas. A partir desta noite, as suas duas princesas! Ou talvez no, pensou de repente, angustiada. [42] 8 Pao de Vila Viosa, 3 de Dezembro de 1640 Nunca trs dias tinham demorado tanto a passar. Joo estava mais magro, saltava as refeies, escondia-se na sua sala de msica e compunha. Tentava pensar no Natal que estava a chegar, numa msica que o marcasse, que marcasse as crianas, e as folhas de pauta voavam pelo quarto, j sabia que teria de ouvir um raspanete da mulher que o acusava de ser uma criana desarrumada. Lusa decidiu trazer-lhe, ela mesma, um tabuleiro com o almoo. Estava frio, sabia que a ansiedade o obrigava a esta viglia e que os dedos nas teclas e a cabea a traduzir sons em notas eram a nica forma de conter a angstia que o tomava. Que os tomava a todos, que Teodsio e frei Pedro estavam na mesma, ainda agora passara na sala de estudo e os vira debrua dos sobre os livros, mas com o olhar no infinito. Mas no havia maneira de saber - osmensageiros estavam a postos, passariam a notcia, boa ou m, de uns para os outros, em locais pr-combinados, mas era impossvel fazer aquela distncia em menos de dois dias. Lusa nem sequer bateu porta, porque, primeiro, no era um hbito seu, e, segundo, Joo no a ouviria, imerso como estava na sua composio. Pousou o tabuleiro na mesinha junto do cravo e num gesto contido, mas cheio de significado - ento vindo dela, passou-lhe a mo pelo cabelo. Olhou para a letra da msica escrita na caligrafia certa e segura do marido, uma composio que j parecia muito adiantada: Adeste Fidelis, vinde triunfantes, leu. - para as crianas cantarem na noite de Natal- sussurrou o duque, passando a mo pela testa, subitamente consciente de que no comia h horas. [43] - Interessante - disse Lusa. - Vinde, fiis, vinde triunfantes, vinde ador-lo - leu alto, com a voz comovida. Joo percebeu a insinuao e irritou-se: - No confundas os nossos problemas terrenos com os do Cu. ao nascimento de Cristo, e ao nascimento do Menino apenas, que me refiro. - Que o Senhor me fulminasse j, se estivesse a brincar com uma coisa to sria. Mas pensa, Joo, o Menino veio trazer uma nova vida ao mundo, cortou com o poder institudo, nasceu numa manjedoura e foi rei. - Chega, Lusa. Deixa-me comer em paz. Se vires a Joana e o Teodsio, pede-lhes que passem aqui. Frei Pedro tambm, por favor. Lusa fez-lhe a vontade. Seria melhor para todos se estivessem ocupados. Uma hora depois, o pao enchia-se com as vozes das crianas, com o pai e frei Pedro em contratenor, e quem escutasse com ateno reconheceria a voz suave de Catarina, porque at ela tinha sido includa no programa, por benevolncia do pai e dos irmos mais velhos, que despacharam a ama Carminho com a promessa de que tomariam conta dela. Teodsio passou a composio a limpo, com a sua letra perfeitinha e redonda. Catarina olhava fascinada enquanto ele soprava para as folhas e tentou imitar o sopro com a boca. O pai pegou em Catarina ao colo enquanto Teodsio lhe passava a partitura para a mo, e Catarina aproveitou o facto de o pai ter o papel para soprar para cima dele, como vira Teodsio fazer. - Pai, o que diz a msica? - perguntou Joana. Teodsio aproximou-se da pauta para mostrar como j dominava o latim. O pai deixou-o ler, tudo de seguida, corrigindo-lhe a pronncia: Adeste Fideles Laeti triumphantes Venite, venite in Bethlehem Natum videte Regem angelo rum Venite adoremus, Venite adoremus, Venite adoremus, Dominum[44] Catarina ouvia atentamente e franzia a testa com ar de quem no estava a perceber nada. - Pai, conta histria! - pediu. - Sim, pai, e em por-tu-gus! - indignou-se Joana. Joo e frei Pedro sorriram, divertidos. - Cristos, vinde todos, com alegres e triunfantes cantos, vinde, vinde, at Belm. Vinde ver o Menino, nascido o rei dos anjos, vinde, adoremos, Cristo Senhor. - Mais, pai! - insistia Catarina. - Mais s quando vocs as duas perceberem latim e conseguirem ler sozinhas! - Mais, pai! - repetia Catarina, enquanto puxava a manga do duque. - Ento conto-vos uma parte que ainda no est aqui sobre as ovelhinhas, como aquelas que se v do vosso quarto, sabem? - Mems? - perguntou Catarina. - Sim, mana, deixa o pai contar - disse Joana, impaciente. Catarina sorriu, meteu o dedo na boca para o chuchar e refastelou-se no seu canto do colo. Joo sorriu, pensando em como podia estar ali, em sua casa, no seu pao, na sua querida sala de msica, com as suas filhas ao colo e o reino a desmoronar-se sua volta. Talvez fosse hoje o ltimo dia em que podia ser assim, estar em famlia, com a cabea posta numa simples cano de Natal. Nesse momento, o mordomo entrou, apressado, e com muitas vnias murmurou que D. Pedro de Mendona e D. Jorge de MeIo subiam as escadas com um recado urgente. O que lhe vinham dizer j o povo na rua gritava: - Viva o rei! - ouviu pela primeira vez. - Viva o rei! Viva o rei! - perdeu a conta das vezes que as gentes o repetiam. Teodsio, Joana e Catarina precipitaram-se para o banquinho de Pedro junto da janela e, sem que o mordomo tivesse tempo de os impedir, o irmo mais velho abriu a janela e todos se penduraram para olhar melhor aquela multido reunida porta de casa. Lusa, que acordara da sesta com o barulho, ia tendo um ataque de corao quando viu os seus trs filhos, e logo Catarina ainda to pequenina, debrua dos daquela altura. Silenciosamente, para no os assustar e precipitar alguma queda, aproximou-se por trs e prendeu Joana e Catarina com as duas mos, gritando a Teodsio: [45] - Filho, que loucura esta? E onde esto as vossas amas? Mas Teodsio nem a deixou acabar: - Me, o pai rei de Portugal. Ganhmos aos espanhis.- Ganhmos, filho? Isso no maneira de falar e lembra-te sempre que a tua me anda luza - apressou-se a dizer Lusa, cheia de medo que a Restaurao no estivesse segura e a famlia ainda tivesse de pagar por aquilo que aos olhos de Filipe seria sempre uma traio. Mais valia agarrar-se aos seus costados, como bia de salvao. - Me, a me rainha - exclamou Teodsio. E virando as costas multido, com a elegncia que s ele tinha, ajoelhou-se e beijou-lhe a mo. Depois levantou-se e procurou com os olhos o pai. Mas Joo tinha sado da sala ao aviso da chegada dos conjurados, e j estava noutra a assistir a uma cena semelhante. Mal entrara para cumprimentar as suas visitas, ambas lhe fizeram a vnia mais solene que algum jamais lhe tinha feito, e D. Pedro, estendendo a mo para a sua, trouxe-a aos lbios e beijou-a: - Sua Alteza! Joo gostou do que ouviu. A partir de agora teria de decidir. Decidir, sabia-o bem, tinha sempre custos, e era por no conseguir distanciar-se dos sentimentos dos que ficavam a perder que lhe custava tanto optar. Mas Lusa estaria ao seu lado. Lusa, Teodsio, Joana e Catarina, no fundo eram essas as nicas pessoas que lhe importavam realmente. Teria de partir no dia seguinte para Lisboa, com a conscincia clara de que ser rei de Portugal implicava comear uma guerra contra Espanha, uma guerra dura e difcil. Que Deus estivesse com ele, um homem de paz. [46] 9 Pao de Vila Viosa, 18 de Dezembro de 1640 Catarina era pequenina de mais para saber explicar por palavras o que sentira ao deixar Vila Viosa, mas percebia perfeitamente que o humor daqueles que lhe eram mais prximos se alterava a cada dois segundos. Ora a deixavam mexer em tudo e a encorajavam a lanar brinquedos para dentro da grande arca onde todos os objectos do seu quarto estavam a ser armazenados, ora se zangavam, furiosos, porque decidira galgar para dentro dela para recuperar a boneca que, pensando bem, preferia levar ao colo. Ouvia falar em partir, deixar tudo, ir embora, e isso assustava-a. As criaditas choravam pelos cantos, mas a ama parecia entusiasmada com a ideia de abalar para Lisboa, a grande cidade, onde a gua j corria em torneiras e havia bailes e festas. A ama contava-lhe, enquanto se sentava com ela ao colo para lhe dar a sopa de legumes, que o Natal naquele ano iria ser numa casa ainda maior do que o seu querido Pao de Vila Viosa, frente a um terreiro imenso, onde toros de madeira ardiam noites a fio, ainda mais noites do que os da Igreja da Misericrdia. Joana tambm lhe contava muitas coisas. Dizia-lhe que o pai era rei e as duas eram princesas, ou melhor, infantas, explicou, frisando sempre, com um sorriso de orgulho, que ela era um bocadinho mais princesa do que Catarina,porque era mais velha. Teodsio, se por acaso ouvia a conversa, endireitava-se todo e explicava que importante, importante era ele, porque era prncipe herdeiro, j que o pai j fora aclamado rei no dia 15 de Dezembro, em Lisboa. Catarina recordava-se de nesse dia ter sido vestida a rigor, num vestido adamascado [47] e pesado, uma gola de rendas, em tudo igual ao de Joana e jaqueta do irmo, para que todos assistissem a uma missa solene na capela do Pao de Vila Viosa, rezada pelo deo, e a que toda a gente da casa, do mais importante ao mais humilde dos serviais, tinha assistido. Depois da bno final, as vozes tinham-se levantado em coro para um Viva D. Joo N de Portugal. Era hora de partir. Naquela sexta-feira, bem cedo de manh, o nevoeiro ainda cobria a paisagem, enregelando os ossos por dentro e fazendo desaparecer da vista os campos verdes, os rebanhos de ovelhas, os cavalos a pastar e at as laranjeiras. Apesar do frio, o povo juntara-se no terreiro, em redor das carruagens engalanadas e prontas frente porta principal, enquanto as carroas que levavam as arcas recheadas com tudo o que Lusa achara essencial ainda estavam a ser carregadas nos portes da cozinha e das entradas secundrias. Lusa desceu as escadas, com as duas princesas pela mo e Teodsio com a sua nova armadura vestida a rigor (nem as explicaes da me de que viajar assim por trs ou mais dias seria desconfortvel o tinham demovido de se vestir como um soldado pronto a lutar contra o inimigo). A famlia foi acolhida com uma ovao imensa - os seus duques transformados em famlia real eram uma alegria que o povo de Vila Viosa tinha de festejar. Os guardas, no entanto, estavam nervosos. Sabiam que a notcia da aclamao do duque j chegara h muito a Madrid e temiam que algum assassino a soldo castelhano atentasse contra a vida da rainha, ou das filhas, mas, sobretudo, contra a do herdeiro. Quando perceberam que D. Teodsio se preparava para ir montado, o nervosismo cresceu e o capito da guarda chegouse janela da carruagem, pedindo a D. Lusa que fizesse o favor de ordenar que o prncipe viajasse numa das carruagens fechadas, seguindo assim mais protegido. Lusa sentiu um sbito aperto no corao. Que ingenuidade a sua, levada pelo entusiasmo das multides esquecera o que o militar percebera de imediato, que o prncipe herdeiro passara a ser um alvo a abater, nestes tempos que prometiam ser da maior instabilidade poltica. Mas convencer Teodsio a perder a emoo de cavalgar entre as pessoas, de ser aclamado pelas gentes do seu Alentejo, parecia-lhe tarefa impossvel. Sorriu para o militar, agradeceu-lhe o seu cuidado, mas foi firme quando explicou que naquele dia no tiraria esse prazer ao filho. [48]No dia seguinte, ou talvez depois da recepo em casa dos marqueses de Ferreira, em Montemor, convenc-lo-ia a resguardar-se, explicando-lhe que era a Ptria que lhe pedia esse sacrifcio. O militar baixou a cabea em respeito, prometeu-lhe que escoltaria a criana pessoalmente e afastou-se, com a certeza de que, se o rei fosse contagiado com a determinao da sua rainha, talvez os Filipes no voltassem, de facto, a dominar Portugal. Lusa olhou pela janela, julgando que ia ver Teodsio subir para o seu alazo preferido, mas para seu espanto deu com ele a medir a fachada a passos, para em seguida vir a correr at sua janela e exclamar: - Me, Joana, Catarina, fixem isto para sempre: a fachada do nosso pao mede 450 ps dos meus. Aposto que no h nenhum no mundo maior do que o nosso! Estranhamente, Catarina lembrar-se-ia daquela cena para sempre. Talvez porque a emoo que rodeava todo aquele momento tivesse tornado a sua memria to permevel, tudo se gravou nela a ferro e fogo. Era princesa, filha de reis, e nascera numa casa com urna frente de 450 ps de Teodsio, medida pelo seu adorado irmo. Da vida nunca espera na menos. [49] 10 Vendas Novas, 24 e 25 de Dezembro de 1640 Catarina tinha pouca experincia de natais, mas durante os ltimos meses tinha ouvido incessantemente Joana, e at Teodsio, falar sobre os presentes, o Prespio, e percebia, pelo ar amuado de Joana, que este ano tudo isso no ia acontecer. Sentia-se moda, cansada e farta de estar h dias e dias enfiada numa carruagem, sem que a deixassem correr vontade. Mesmo a me, a quem toda a gente se dirigia agora por Sua Alteza, e Teodsio a tratavam com uma rispidez pouco habitual: Pra-me com esses ps, Catarina, no vs que os teus sapatos magoam as pernas de quem vai tua frente. Bolas, nem os ps podia mexer. - Presentes, me? - perguntou Catarina, com uma voz sedutora, porque, para dizer a verdade, se o Prespio ainda no lhe dizia grande coisa, presentes sabia perfeitamente o que era, e comeava a sentir a falta de pelo menos um... Lusa sorriu, um sorriso triste. Que difcil era trocar o conhecido pelo desconhecido. Nunca se imaginara a passar a noite da Consoada numa casa que no a sua, separada do marido, de que s tinha recebido uma breve carta, onde a chamava com urgncia a Lisboa, incumbindo-a de trazer o que pudesse, porque o Pao da Ribeira estava tristemente mobilado. De facto, apetecia-lhe perguntar o mesmo a Joo. Onde estavam os presentes? Lusa ficara assustada: que palcio de reis era aquele, que tinha menor riqueza do que um pao perdido no Alentejo? Depois, lembrou-se de que h 60 anos que a Ribeira no era habitada por reis portugueses e que, apesar de algumas obras feitaspelos monarcas espanhis, pelo menos nos ltimos anos tudo tinha [50] sido deixado gesto da duquesa de Mntua, com os cordes da bolsa fortemente apertados pelo poder castelhano. Agora, Lusa levava as carroas carregadas com o tesouro dos Bragana, e depressa trataria de torn-lo um pao altura de todos os outros paos europeus! Consolava-a, no entanto, a notcia da glria com que Joo fora aclamado solenemente. Tinham-lhe contado como haviam construdo uma imensa varanda contgua ao palcio s para a ocasio e como os nobres portugueses em peso se apresentaram, para lhe prestarem a devida vassalagem. Pela primeira vez iaram a nova bandeira, a bandeira da Restaurao, que substitua a dos Filipes, queimada em enormes fogueiras em todos os adros das igrejas. Estavam l todos os membros do recm-criado Conselho de Guerra, um dos primeiros conselhos nomeados por Joo, com dez experientes militares, que tinham a rdua tarefa de preparar a defesa, um juiz e um secretrio, responsveis por gerir a defesa do reino contra Castela e as divergncias entre os nobres que se tinham aliado ao novo rei e aqueles que continuavam ligados a Filipe, e de quem se poderia esperar uma traio. Estava, afinal, tudo por fazer, num reino que h 60 anos no tinha um exrcito prprio, ou que pelo menos o deixara chegar a um estado miservel, sem ordem nem comando. Havia muito que fazer, e os nobres acorriam ao pao ansiosos por preencher os lugares vagos, desejosos de deixar bem claro o lado em que se colocavam. Lusa era obrigada a reconhecer que o marido no era um homem que se comprasse com lisonja ou que necessitasse de adulao: quem no quisesse estar com ele teria de ter a coragem de lho dizer na cara e sofrer as consequncias. Joo via mais longe e o que o preocupava era a reaco violenta do primo Filipe, que j comeara a atacar todas as fronteiras, felizmente apenas com as escassas tropas que no lutavam em Barcelona, e de que forma iria ele, agora rei de Portugal, angariar fundos para sustentar a defesa do territrio. Os cofres do Estado estavam vazios - a estrutura financeira tinha sido pensada para reverter para Espanha e era preciso vencer esses obstculos e outros tantos. Acima de tudo, Lusa sabia que o que lhe tiraria o sono era a imensa responsabilidade que sentia por tudo e por todos. O horror de ter assumido um posto para o qual no estivesse preparado. No podia desiludir os que tinham apostado nele. Era esse o seu pesadelo, suspirou a mulher, e no suspiro sentia-se o seu [51] prprio medo de que Joo no fosse, de facto, capaz de segurar o poder com o pulso-de-ferro que a situao exigia. Por enquanto, e apesar das dissidncias, contava com o apoio da Igrejae de grande parte da nobreza. Sabia tambm que Joo iria precisar dos seus constantes conselhos, do seu apoio e da sua fora - e mesmo que no precisasse, sorriu num instante de autocrtica, dar-lhos-ia na mesma. Naquela manh de 25 de Dezembro, que nascera gelada mas transparente, iluminada por um sol radioso e um azul como nunca vira, Lusa chamou os filhos ao quarto para lhes desejar um feliz Natal e lhes pendurar ao pescoo um fio com uma medalha de Nossa Senhora da Conceio. At Catarina pressentiu a solenidade do acto. Lusa, olhando cada um deles nos olhos, e ajoelhando-se para ver os negros faris da sua filha mais pequenina, disse-lhes a todos, com a sua voz mais determinada: - Vo ser tratados como prncipes, rodeados de gente que vos querer fazer todas as vontades, mas no se esqueam de que os prncipes e os reis s servem a Deus. Partiram, logo cedo, para a Aldeia Galega. - O pai, Catarina, o pai vai estar nossa espera - sussurrou-lhe Joana ao ouvido, enquanto se tentava soltar da mo frrea da sua ama Carminho. - Presentes, o pai d presentes? Agora? - perguntou Catarina, sorridente, virando-se para a irm, cheia de esperana. - Presentes para mim e para o beb? - insistiu, mostrando a Joana a boneca de porce lana que no deixara nem por um segundo desde que partira de casa. Joana sorriu: - Hoje no sei, Catarina, o Natal mais estranho que alguma vez tivemos. Esperava que Carminho encorajasse a ideia de que, no final daqueles dias de viagem, um enorme embrulho as esperaria nas mos do pai, mas a ama nem teve tempo de responder. O som de trombetas irrompeu pelas janelas da carruagem e Teodsio deu um salto at janela que dava para o rio Tejo: - o bergantim real. o pai, o pai! A carruagem estacou e, antes que a me o pudesse conter, Teodsio precipitou-se pela porta fora, seguido de Joana. Lusa pegou em Catarina ao colo, penteou-lhe os caracis e virou-a para a janela: [52] - Vs, Catarina, vamos naquele barco, com o pai, para Lisboa. Catarina nunca vira tanta gua junta, e o reflexo das rvores e dos juncos encandeavamna. Um rio, disse-lhe a ama. Um rio chamado Tejo... Catarina juraria, anos e anos mais tarde, que aquela imagem se fixara para sempre na sua cabea. Um rio, chamado Tejo. Um pai que era rei. Uma me que seria para ela a maior rainha de todas. Um irmo prncipe herdeiro, uma irm e princesa, um bocadinho mais do que ela, e ela, Catarina, que s queria era ser a princesinha de todos, e no crescer nunca. Ah! Era preciso no esquecer, uma princesa nascida num pao com 450 ps de comprimento, como no havia outro igual em todo o mundo, de certezinha absoluta. Ao colo da ama, a boneca presa com fora contra o peito, entrou nobarco para depois desembarcar no cais da Casa da ndia, em Lisboa, entre aplausos e gritos de gente, tanta gente como nunca vira, que dava vivas ao pai e me, de senhoras gordas, que a beijavam nas bochechas to reconchudas quanto as delas, furando todos os cordes de segurana que os guardas do rei tentavam criar em redor da nova famlia real. Aps 60 anos de Filipes, o povo de Lisboa no podia perder este dia memorvel por nada deste mundo. O primeiro rei da dinastia de Bragana ocupava o trono de Portugal. Se Filipe assim o quisesse, suspirava Joo, enquanto tentava impedir a multido de atropelar a rainha, que descia a custo da carruagem. Durante segundos, Lusa desejou com todas as foras que a sua mezinha a estivesse a ver l do Cu. [53] 11 Cortes em Lisboa, 28 de Janeiro de 1641 Quando tudo fora desempacotado das arcas e colocado nos stios, Catarina dera um suspiro de contentamento. Agora sim, esta casa estranha parecia de novo a sua. Mas o Pao da Ribeira s era semelhante ao de Vila Viosa para uma criana pequenina, que continuava a viver dentro dos seus aposentos, como depressa foi descobrindo medida que os irmos a arrastavam para conhecer salas desconhecidas ou a desafiavam a escorregar de pantufas pelos longos corredores de quadrados de mrmore pretos e brancos. Teodsio fora aquele que sofrera uma mudana mais radical no seu diaa-dia, obrigado a responder perante uma mo-cheia de tutores que o pai j lhe tinha destinado. Mas Teodsio adorava mudanas e aventuras, no tinha nem um grozinho dos temores do rei, seu pai, e sonhava com o dia em que o deixariam partir para uma qualquer fronteira, de espada em punho, para defender o reino contra aqueles que no conhecia e a quem nem tinha dificuldade nenhuma em chamar de inimigos. A presso das atenes e das expectativas que todos pareciam depositar nele s o deixava ligeiramente nervoso, porque lhe transmitiam a impresso de que o pai poderia desaparecer de um momento para o outro, como acontecera com o seu tio Duarte, que quisera voltar para estar perto do irmo aclamado rei, mas que Filipe de Espanha mandara cruelmente prender como retaliao contra o usurpador Joo. Para dizer a verdade, o que mais lhe custara fora habituar-se ao mau cheiro que penetrava at pelas frinchas da janela e ao barulho [54] constante que de dia e de noite parecia encher as ruas. Mas tinha compensaes: as aulas eram l em cima, na torre mandada construir por Filipe II,sobre o rio, e abrindo as janelas de par em par, mesmo nos dias frios de Inverno, o vento norte trazia um cheiro de maresia, de um mar que diziam to prximo mas que ainda no tivera oportunidade de ver. Um mar que sabia ter sido a porta de partida para descobertas de outros mundos, a porta que agora era preciso vigiar com todos os olhos, porque o inimigo tentaria franque-la, ou pelo menos impedir que os barcos que chegavam do Brasil e da ndia desembarcassem em Lisboa com as suas mercadorias preciosas, que constituam a nica esperana de financiar a guerra da Restaurao, como ouvira os conjurados chamar-lhe. Alm do mais, percebera que a escolha do Pao da Ribeira, pelo menos deste lado do pao, no era pacfica entre o pai e a me. D. Lusa ficara desiludida com o palcio vazio e sem qualquer esplendor, mas o marido fizera questo de que fosse aquele, porque o Pao da Ribeira era o pao dos reis, e era fundamental que a famlia Bragana assumisse, de cabea erguida, a sua continuidade, defendendo a sua legitimidade para assumir o trono. Joo concordava, no entanto, que o palcio precisava de obras, e Teodsio e Joana riram com o ar arrogante com que a me dissera E de tudo o resto!, para logo de seguida ordenar a um secretrio que a moblia, os quadros e as tapearias que haviam ficado para trs em Vila Viosa fossem imediatamente empacotados e trazidos para Lisboa. Para depois rematar ao marido estupefacto: - O rei de Portugal no pode receber ningum neste pao decrpito at que tudo esteja pronto! [55] Pao da Ribeira, 28 de Abril de 1641 A notcia chegou corte rapidamente - naquele prprio dia desembarcara em Peniche, vindo da Baa, o padre Antnio Vieira, o jesuta cujos sermes j h muito tinham ressoado no pao. Vinha em misso, acompanhado do filho do governador do Brasil, para apresentar ao novo rei o apoio da colnia. Ao jantar, Antnio Vieira foi tema de conversa. Como sempre, Joo desconfiava de tudo o que era novo, pessoas includas: seria mesmo to leal como diziam, valeria a pena ouvir mais algum, quando j havia tantos conselheiros para opinar, mas Lusa e Teodsio, fascinados h muito pelos relatos de coragem e inteligncia do padre da Companhia de Jesus, insistiam. Era preciso no esquecer, recordava Lusa de Gusmo, que o senhor padre conhecia, e ao que parecia tinha a pulso forte, o territrio que mais podia contribuir para encher os cofres delapidados do reino, e que j tinham obrigado a uma sangria da riqueza pessoal dos Bragana. Teodsio, que lera alguns dos seus escritos e sabia quase de cor o sermo do Dia de Reis, em que Antnio Vieira exprimia a sua lealdade Restaurao, sonhava mesmo que aquele que pescava homens, tal como pescava peixes, conseguisse conquistar o corao do pai, incit-lo a uma contra-ofensiva mais forte contra os espanhis e, quem sabe, que Deus era grande, torn-lo tutor do prncipe!A impacincia da rainha e do prncipe bem foi posta prova, porque Joo, teimoso quando queria, marcou uma audincia com a comitiva chegada do Brasil apenas para dia 3 de Maio. Foi a primeira [56] vez que D. Joo IV de Portugal e o padre Antnio Vieira se viram cara a cara, e a empatia foi imediata. Joo, no final de horas de conversa, mandou chamar a rainha e o prncipe herdeiro e, apresentando, com orgulho, o seu filho mais velho, insistiu: - Padre, o prncipe pede insistentemente para ter a honra de receber lies suas... Antnio Vieira gostou do que viu: o prncipe erguia a cabea alto e encarava-o directamente, com os seus olhos cinzento-esverdeados que revelavam uma inteligncia invulgar. Mais ainda, deixavam perceber uma grande generosidade e, meu Deus, que raro era encontr-lo, sentido de humor! Correspondeu ao pedido com uma vnia, que repetiu a D. Lusa, mas bem menos inclinada, e na sua voz baixa, mas segura, sem sombra de subservincia, respondeu: - Se Sua Majestade concordar, comeamos amanh! [57] 13 Pao da Ribeira, 21 de Agosto de 1643 Espanha, Espanha, Espanha, Espanha, ou Castela, como a me preferia dizer, orgulhosa do seu sangue andaluz. No lhe importava que nome lhe davam, mas sentada ao lado do padre Antnio Vieira, obrigada a contemplar o mapa e a dizer os nomes e as cidades mais importantes, Catarina no conseguia despegar a ateno daquele quadrado gigante, que da parede parecia olh-la como se estivesse vivo. Pequenina para os seus quase cinco anos, os cabelos a cada dia mais negros a carem-lhe sobre os ombros, e as bochechas sempre rosadas, dando a impresso de estarem ligadas aos olhos por fios invisveis, j que sempre que estes brilhavam de fria ou alegria, as mas do rosto tornavam-se igualmente incandescentes. Catarina tinha raiva de ambos os sinais exteriores que a impediam de esconder os seus sentimentos, mesmo dos seus piores inimigos. Agora, encavalitada num banquinho, para conseguir apontar com o dedo os locais que Antnio Vieira lhe solicitava que indicasse, sentia, de novo, que os seus sentimentos estavam expostos, prontos a serem usados e abusados por quem o quisesse fazer. Bateu com o p, zangada, e ia caindo do banco se a mo de Teodsio no a segurasse: - Catarina, ests maluca? Achas que altura de danares em cima deum banco? O padre Antnio Vieira atirou a cabea para trs e riu: - Infanta, a fria com quem? [58] Catarina olhou-o a direito, e numa voz surpreendentemente suave, Consigo controlar a voz, pensou para consigo, satisfeita, respondeu serenamente: - Na raiva que me mete Espanha, Castela, como a me quer que os filhos digam. No me lembro de mim sem me lembrar dessa gente, que no sossega enquanto no fecharem na mo o nosso reino. At tentaram matar o senhor meu pai, padre, s porque querem ter o que no deles! Teodsio levantou-se e bateu-lhe palmas. Era uma alma gmea da irm: rpido na generosidade e na fria. Joana manteve-se sentada e calada, sentiase sempre ligeiramente de fora deste par, que, apesar da diferena de idades, comungava uma sintonia que a desesperava. Antnio Vieira estava divertido. Tinha imenso prazer em ensinar o prncipe, um aluno brilhante e interessado, mesmo o tipo de discpulo de que precisava para esgrimir com ele as suas ideias, e no podia fingir que no se orgulhava de sentir que, mais do que a me ou o pai da criana, era ele que estruturava, por dentro e por fora, aquele que seria o rei de Portugal. Um rei a srio, confiava o padre, porque Teodsio era inteligente e rpido como a me, com a generosidade e a ponderao do pai. Acreditava, sem modstia (que, pensando bem, no era o seu forte), que Vieira e Teodsio de Bragana iriam ficar para a Histria, e talvez mudar de vez o rumo desta nao sempre to frgil e dependente. Mas hoje o dia era especial, e isso divertia-o: as aias das infantas, e at o autntico drago que era a mestra, tinham sido chamadas ao servio da rainha D. Lusa, e ele oferecera-se para dar as aulas da manh a Joana e a Catarina. Agora, a fria de Catarina e a fora com que se expressava francamente deliciavam-no: eram de boa cepa, estes prncipes. - Infanta, e como que princesa acabava com esta guerra que, estou plenamente de acordo consigo, dura para l do razovel? - Eu sei, eu sei - disse logo Teodsio, com o dedo no ar. Mas Antnio Vieira apontou para a infanta, que continuava encavalitada no banco, encostada ao mapa: - Padre, eu pegava nas casas, nas jias, nos coches, at nas roupas de todos os portugueses, e mandava-os de forquilhas, facas e pistolas para as nossas fronteiras, e matava todos os espanhis que c quisessem entrar. S no vendia os barcos, porque precisvamos deles para defender a nossa costa... [59] Joana no aguentou mais fingir que no ouvia nada, e deu umagargalhada: - Os portugueses de ceroulas a lutarem contra os castelhanos de armadura. Catarina, ainda bem que no tens o Ministrio da Defesa a teu cargo... Catarina desceu devagarinho do banco, sentou-se numa cadeirinha baixa, e os olhos brilhavam tanto que se percebia que continha as lgrimas com esforo. Era difcil defender as suas posies perante manos to mais velhos e mais espertos. J com oito anos, e muito mais alta do que ela, Joana parecia a me, sabia tudo, e era to, to bonita, sem dentes espetados coelho como os dela, e Teodsio, com dez, ainda por cima prncipe herdeiro de Portugal, o menino querido do pai e da me, era imbatvel. Sabia que se o irmo se risse dela, como Joana fizera, sairia disparada por aquela porta, correria pelas escadas abaixo, atravessaria o corredor imenso sem parar e desceria fonte do Jardim dos Buxos, para se esconder atrs dos arbustos. Mas nem Teodsio nem o padre Antnio Vieira se riram, ou melhor, no se riram para fora, porque acima de tudo no a queriam magoar. Em lugar disso, Antnio Vi eira passoulhe a mo pelo cabelo e comentou: - Se todos fossem to generosos como a infanta, tenho a certeza de que esta guerra j estava ganha. Teodsio, pegando no fio meada, protestou: - Somos to poucos e mesmo assim os nobres dividem-se, cheios de medo de que se D. Filipe voltar a invadir Portugal, os pendure num pelourinho. Preferem jogar pelo seguro, dando uma no cravo e outra na ferradura. Joana, j envolvida na discusso, no resistiu: - O pai bom de mais para eles. Para todos eles. Se o pai lhes tirasse as terras e os mandasse alistarem-se no exrcito de Castela, percebiam logo que tinham de escolher... - O pai no mau! - gritou Catarina, enfurecida. No se lembrava de ouvir falar seno desta guerra, era verdade, mas parecia que todos se deleitavam em pr em causa a capacidade de D. Joo IV, rei de Portugal, lhe pr um fim. J bastavam os comentrios da me e das damas e das aias e, s vezes, mesmo de Teodsio. - O padre Antnio Vieira conhece bem o meu pai, sabe que ele no tem medo de nada, no gosta de ser injusto - continuou Catarina, virando-se para o jesuta espera de apoio. [60] - Que disparate, infanta, o seu pai rei de Portugal, um homem sensato, generoso, forte quando tem de o ser, mas no segue impulsos s por seguir. Sabe bem que no pode brincar com a vida das pessoas que dependem dele... - Vs, Joana - disse Catarina em desafio. Antnio Vieira ficou subitamente aliviado quando as crianas se distraram com o som dos sinos que repicavam por toda a cidade. Esquecidas de Espanha, do mapa e das desavenas, precipitaram-se para as janelas do torreo: - Toca o sino da s - comentou Teodsio.- E o de Santos - corroborou Joana. - Tocam todos ao mesmo tempo, mas no de medo, de alegria constatou Catarina, maravilhada. O calor seco de Lisboa permitia que o som vindo de todos os campanrios desaguasse no Pao da Ribeira, como se fosse esse o seu destino final. A porta abriu-se e D. Mariana de Lencastre, a aia das princesas, entrou e exclamou: - Infantes, Deus seja louvado, nasceu o vosso irmo. um varo, e est de sade. Antnio Vieira benzeu-se, mas, estranhamente, as crianas sentaram-se e ficaram em silncio. Olhando-lhes para as caras, era impossvel entender o que sentiam. D. Mariana dobrou os joelhos e ao nvel dos mais pequeninos sossegouos, convencida de que temiam pela me: - A rainha est bem. Foi um parto fcil, o beb pequeno, o primeiro infante nascido no Pao da Ribeira. - O primeiro que nasce j infante, filho de um rei e no apenas filho de um duque, num pao longnquo de Lisboa - resmungou Joana. D. Mariana lanou um olhar de splica a Antnio Vieira: o que sucedera a estas crianas, sempre to expansivas? Nem sequer perguntavam o nome do irmo; ser que D. Lusa escondera to bem a sua gravidez, nos seus puritanismos que a dama achava excessivos (mas quem era ela para a criticar, a sua rainha!), que a levavam a envergonhar-se desse smbolo exterior de uma vida amorosa ntima, de tal forma que os prprios filhos haviam ficado espantados com a notcia? - O pai j sabe? - perguntou Teodsio, retomando a compostura. D. Mariana suspirou de alvio, as crianas pareciam regressar normalidade, e fez questo de responder numa voz leve e descontrada: [61] - Sim, D. Teodsio, Sua Majestade esteve sempre no quarto ao lado, de joelhos dobrados em orao, e j viu o infantezinho... - Como que se vai chamar? - perguntou Catarina, seguindo o exemplo do irmo. - Devem ser os vossos pais a dizer-vos o nome que escolheram para o infante. O rei mandou que lavassem as mos e descessem comigo para ver a rainha e o beb... Catarina deu um salto e estendeu a mo aia, e Teodsio, subitamente solidrio com Joana, estendeu-lhe a sua. Em fila indiana desceram as escadas de mrmore. Virando-se para observar o rio, com as mos atrs das costas, Antnio Vieira ficou de olhos no infinito. Sabia bem porque que as crianas tinham reagido assim, e tinha pena. Semanas antes, percebera que os infantes haviam escutado uma discusso enraivecida entre o rei e a rainha. Pensando bem, fora to violenta e to invulgar que no era possvel que ningum na Ribeira earredores no a tivesse ouvido. D. Lusa acabara de saber, por uma daquelas almas hipocritamente bondosas, que se escudam na falsa lealdade apenas para ferir o corao dos outros, que uma outra mulher em Lisboa dera luz uma filha do rei, a que fora dado o nome de Maria. Confrontado com o facto, o rei no negara, nem por um segundo, a paternidade da criana, e, com aquela sinceridade quase ingnua que lhe era prpria, recusara qualquer insinuao de que a criatura, como lhe chamava a rainha, fosse uma vulgar mulher da rua, ansiosa por gerar o filho de um rei, para da tirar dividendos econmicos e polticos. Para espanto de quem espiava a discusso por detrs de portas, a voz serena do rei no podia deixar de provocar admirao. No, no descartara a criana, nem se fingira de usado, e era sobretudo essa sua atitude, quase apaixonada, que enlouquecia a rainha. Grvida, a barriga empinada, batera com a porta e sara da sala de cabea erguida, mas as aias e as criadas comentaram, entre si, que D. Lusa chorara dias a fio, fechada no quarto, sem ver ningum; pela primeira vez na vida desinteressada do governo do pas, dos problemas da nao, ou mesmo dos filhos. Teodsio, Joana e Catarina sabiam que era assim porque, como cachorrinhos assustados, tinham permanecido junto da porta dos seus aposentos, de onde chegavam soluos de cortar o corao. Absolutamente impotentes, recordou, com um suspiro, Antnio Vieira, enquanto coava a barba rala. Sabiam que tinham uma nova irm, que o pai fora infiel me e que o [62] irmo agora nascido era como que um sucedneo da tal Maria, que D. Joo com tanto orgulho favorecia. Ainda por cima, pensou Vieira, o beb era varo, e Teodsio, por muito soalheira que fosse a sua disposio, sentir-se-ia naturalmente ameaado, pelo menos um bocadinho, at que a criana passasse a olh-lo como o irmo mais velho e heri, altura em que, o padre tinha a certeza, o prncipe lhe daria toda a ateno e cuidado. D. Mariana levava os infantes aos pais, mas o seu corao tambm ia pesado. Entendia bem o sofrimento de D. Lusa. Joo nunca fora como os outros, nunca tirara os olhos dela (e dos filhos e da msica), nunca cedera a sedues, nem aos joguinhos das damas da corte (que alm do mais temiam as represlias da rainha), e, por tudo isso, o facto de ser pai de uma criana nascida fora do casamento no podia deixar de ser um choque terrvel. De facto, Lusa vacilava entre o desgosto e o desejo de vingana: como se atreviam a desafiar a filha e a irm do duque de Medina-Sidnia, rainha de Portugal? Infelizmente, no fora possvel poupar as crianas a estas cenas, e os segredos, muito menos os de alcova, como estava farta de saber, nunca se mantinham guardados... Por muito que a Sua Senhora desejasse resguardar as princesinhas da realidade, no conseguia, nem podia, evitar que aprendessem os caminhos do mundo. Talvez at fosse melhor assim, dissera-lhe na altura o padre Antnio Vieira. Porque ambos acreditavam que o futuro das infantas, se a dinastia deBragana sobrevivesse a esta guerra da Restaurao, seria casar e viajar para longe. Ambos sabiam, Antnio Vieira melhor do que ningum, que a corte portuguesa era modesta - e bem controlada pela rainha -, mas as de Frana ou de Inglaterra, para onde inevitavelmente estavam destinadas as infantas, pouco mais eram, na opinio do jesuta, secundado pela dama, do que bordis de luxo. Joana e Catarina, insistia o padre, no podiam ser educadas numa campnula de vidro, precisavam d