catalogos de tipos m veis-cidi 2011

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Catálogos de tipos móveis: contribuições para a história (tipo)gráfica brasileira Movable type specimens: contributions to Brazilian (typo)graphic history Edna L. Cunha Lima, Isabella R. Aragão, Priscila L. Farias tipografia, tecnologia gráfica, catalogação Pouco se sabe sobre os artefatos produzidos no primeiro século de impressão tipográfica no Brasil, e, principalmente, sobre um gênero de publicação em particular: os catálogos de tipos móveis. Este artigo descreve o conteúdo e a organização informacional de 4 catálogos de tipos publicados entre o século XIX e o início do século XX, revelando os materiais tipográficos da época, e o modo como eram disponibilizados. typography, graphic technology, cataloguing Little is known about the artefacts produced in the first century of printing in Brazil, and especially about one particular genre of publication: type specimens. This paper describes the content and the informational organization of 4 type specimens published between the 19th and early 20th centuries, revealing the typographic materials of the time, and how they were made available. 1 Introdução Durante o primeiro século da indústria gráfica brasileira, a impressão com tipos móveis foi a principal técnica utilizada para reproduzir textos. Apesar da existência de pesquisas que abarcam a produção e o desenvolvimento da tecnologia gráfica no país ao longo dos anos, pouco se sabe ainda sobre a forma dos elementos utilizados nos impressos. Uma investigação realizada em julho de 2010, junto ao acervo da Biblioteca Nacional, permitiu a localização de 8 catálogos de tipos móveis publicados no Brasil entre o século XIX e o início do século XX. Tendo como foco 4 destes catálogos, este artigo descreve e analisa a organização e conteúdo dessas publicações, composto principalmente pelos materiais tipográficos (tipos e clichês) disponíveis para reprodução dos impressos da época. São eles: Amostras de Typos, Flores, Linhas e Emblemas da Typographia Americana, publicado por I. P. da Costa, no Rio de Janeiro, em 1839 Specimen da Imprensa Industrial, publicado por João Paulo Ferreira Dias, no Rio de Janeiro, em 1879 Spécimen de Caractéres e Ornamentos Typographicos do Livro do Commercio, publicado por João Cardoso & Comp., no Pará, no final do século XIX Specimen da Fundição de Typos Henrique Rosa, publicado por Henrique Rosa, no Rio de Janeiro, entre o final do século XIX e início do século XX Em meados do século XIX, o Brasil já estava produzindo seus impressos com a tecnologia e qualidade encontradas no exterior. A tipografia e a litografia, instaladas em 1808 e em 1818, respectivamente, eram os processos de impressão mais utilizados para reprodução industrial dos artefatos gráficos da época. Os estabelecimentos tipográficos tinham o costume de imprimir publicações que serviam como mostruário de seu acervo, normalmente denominados catálogos, specimens ou amostras, de tipos. Nestas publicações encontram-se os tipos móveis de metal e madeira utilizados para a impressão textual, formados por caracteres alfabéticos, números, sinais de

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catálogos, tipografia.

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  • Catlogos de tipos mveis: contribuies para a histria (tipo)grfica brasileira Movable type specimens: contributions to Brazilian (typo)graphic history

    Edna L. Cunha Lima, Isabella R. Arago, Priscila L. Farias

    tipografia, tecnologia grfica, catalogao Pouco se sabe sobre os artefatos produzidos no primeiro sculo de impresso tipogrfica no Brasil, e, principalmente, sobre um gnero de publicao em particular: os catlogos de tipos mveis. Este artigo descreve o contedo e a organizao informacional de 4 catlogos de tipos publicados entre o sculo XIX e o incio do sculo XX, revelando os materiais tipogrficos da poca, e o modo como eram disponibilizados. typography, graphic technology, cataloguing Little is known about the artefacts produced in the first century of printing in Brazil, and especially about one particular genre of publication: type specimens. This paper describes the content and the informational organization of 4 type specimens published between the 19th and early 20th centuries, revealing the typographic materials of the time, and how they were made available.

    1 Introduo

    Durante o primeiro sculo da indstria grfica brasileira, a impresso com tipos mveis foi a principal tcnica utilizada para reproduzir textos. Apesar da existncia de pesquisas que abarcam a produo e o desenvolvimento da tecnologia grfica no pas ao longo dos anos, pouco se sabe ainda sobre a forma dos elementos utilizados nos impressos. Uma investigao realizada em julho de 2010, junto ao acervo da Biblioteca Nacional, permitiu a localizao de 8 catlogos de tipos mveis publicados no Brasil entre o sculo XIX e o incio do sculo XX. Tendo como foco 4 destes catlogos, este artigo descreve e analisa a organizao e contedo dessas publicaes, composto principalmente pelos materiais tipogrficos (tipos e clichs) disponveis para reproduo dos impressos da poca. So eles:

    Amostras de Typos, Flores, Linhas e Emblemas da Typographia Americana, publicado por I. P. da Costa, no Rio de Janeiro, em 1839

    Specimen da Imprensa Industrial, publicado por Joo Paulo Ferreira Dias, no Rio de Janeiro, em 1879

    Spcimen de Caractres e Ornamentos Typographicos do Livro do Commercio, publicado por Joo Cardoso & Comp., no Par, no final do sculo XIX

    Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa, publicado por Henrique Rosa, no Rio de Janeiro, entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX

    Em meados do sculo XIX, o Brasil j estava produzindo seus impressos com a tecnologia e qualidade encontradas no exterior. A tipografia e a litografia, instaladas em 1808 e em 1818, respectivamente, eram os processos de impresso mais utilizados para reproduo industrial dos artefatos grficos da poca.

    Os estabelecimentos tipogrficos tinham o costume de imprimir publicaes que serviam como mostrurio de seu acervo, normalmente denominados catlogos, specimens ou amostras, de tipos. Nestas publicaes encontram-se os tipos mveis de metal e madeira utilizados para a impresso textual, formados por caracteres alfabticos, nmeros, sinais de

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    pontuao, e tambm por outros elementos, pictricos e esquemticos, da linguagem grfica: emblemas, vinhetas, flores, linhas, imagens com costumes da poca, etc.

    Segundo Cardoso (2009, p:106), os manuais tipogrficos e catlogos de espcimes so uma fonte preciosa e pouqussimo explorada para se conhecer melhor a histria grfica brasileira. Ao mostrarem caracteres, fontes, fios, vinhetas, ornatos e smbolos disponibilizados por impressores comerciais, eles revelam no somente o estado da evoluo tcnica em cada poca, como tambm as linguagens predominantes e os costumes contemplados.

    De fato, encontramos uma riqueza formal na linguagem grfica desses impressos, fruto dos diferentes elementos disponveis para impresso tipogrfica. importante mencionar que os catlogos no so publicaes grficas nobres, como livros, enciclopdias, entre outros, e, por conseguinte, no geraram o mesmo interesse em serem guardados em bibliotecas Brasil afora. Poucos so os exemplares encontrados, por exemplo, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, uma das dez maiores bibliotecas do mundo.

    O artigo foi subdividido nos quatro catlogos, e em cada um deles apresentamos informaes sobre o impressor, o contedo da publicao (quantidade de fontes, diversidade da amostra, nmero de pginas, etc.) e a organizao informacional (organizao da pgina, formato das amostras, sequencia, etc.).

    2 Amostras de Typos, Flores, Linhas e Emblemas da Typographia Americana

    O catlogo da Typographia Americana o mais antigo entre os aqueles localizados pelas autoras nos acervos da Biblioteca Nacional. O impresso informa que este estabelecimento era propriedade de Ignacio Pereira da Costa, e estava situado Rua da Candelria, nmero 4. A empresa publica este volume com o ttulo de Amostras... em 1839, mas, conforme indicam os Anais da Biblioteca Nacional, a Typografia Americana estava em atividade pelo menos desde 1832, quando imprime documentos para a Sociedade Defensora da Liberdade e Independncia Nacional (Galvo, 1881, p:659)1.

    Anncios encontrados no Almanak Laemmert2 a partir de 1844 demonstram que na dcada de 1840 o estabelecimento j havia mudado de endereo, situando-se ento no nmero 43 da Rua da Alfndega. O dono ainda era Igncio Pereira da Costa e assim continuaria a ser at 1850. No ano seguinte, muda para a rua da Assemblia, 27, para, logo aps, desaparecer por dois anos da lista. Igncio Pereira da Costa foi o editor de dois dos livros que o Padre Luis Gonalves dos Santos (17671844), o Padre Perereca, publicou fazendo violento ataque aos missionrios metodistas que se estabeleceram no Rio de Janeiro. Entre seus editados temos ainda o poeta lvares de Azevedo, cuja Lira dos Vinte Anos, livro pstumo e inaugural, foi publicado em 1853 pela Typographia Americana.

    A grfica reaparece no Almanak Laemmert, sob a direo de Jos Soares de Pinho. Em 1869, o comando passa para o Dr. Sizenando Barreto Nabuco de Arajo, irmo mais velho do poltico abolicionista Joaquim Nabuco. Vai passando em vrias mos no decorrer do sculo XIX, tendo, em 1875, Jos Maria da Silva Paranhos, o Baro do Rio Branco, como seu dono, brevemente. Estas mudanas parecem indicar que a tipografia passou a ter um papel poltico que no desempenhara anteriormente.

    Contedo

    O catlogo da Typographia Americana, com 53 folhas impressas em preto e branco, est num razovel estado de conservao, com algumas pginas apresentando pequenos rasgos. A publicao formada por 75 fontes, entre as quais encontram-se tipos cursivos, gticos e fat faces, e um peculiar tipo apenas numrico ornamentado com rostos barbados (figura 1).

    1 Os mesmos Anais indicam que entre 1833 e 1939 a Typographia Americana imprimiu ao menos trs peridicos e um livro, cuja imprenta menciona I. P. da Costa (Galvo, 1881, p:112, 332, 371, 442). 2 O Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, conhecido como Almanak Laemmert, um peridico com os nomes e endereos dos participantes do setor produtivo do Rio de Janeiro, foi publicado de 1844 a 1930.

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    Figura 1: Tipo numrico ornamentado encontrado no catlogo Amostras ... da Typographia Americana.

    Afora o contedo alfanumrico, a Typographia Americana tambm tinha em seu acervo flores, linhas e emblemas, como o ttulo do catlogo indica. Destacam-se, neste aspecto, os signos astronmicos e matemticos, as linhas de lato e clichs de brases de pases estrangeiros, como o Peru. Clichs representando animais, comidas, profisses e at negros fugitivos fazem aluses ao Brasil oitocentista.

    Organizao informacional

    As pginas do catlogo Amostras ... da Typographia Americana so impressas apenas de um lado e no apresentam numerao. Medindo 21cm x 12,5cm, algumas pginas esto na posio retrato, outras em paisagem.

    Figura 2: Folha de rosto do catlogo Amostras ... da Typographia Americana.

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    A folha de rosto (figura 2) apresenta uma mancha de texto simtrica e centralizada, composta exclusivamente com tipos serifados em caixa alta, cercada por uma moldura ornamentada com motivos geomtricos e florais. Atravs de variaes de tamanho, dado destaque para as expresses Amostras, Typos, Flores, Linhas e Emblemas e Typographia Americana. Uma variao tipogrfica mais condensada utilizada na terceira linha, permitindo a ampliao da altura das letras apesar do maior nmero de caracteres. A cidade e o ano compem um bloco de texto separado do restante, e com quebra de linha enfatizada pelo uso de fio.

    O contedo do catlogo organizado por funo, estilo e tamanho, iniciando com fontes escriturais, seguidas por fontes de texto e de ttulo, finalizando com vinhetas e ornamentos. As pginas do miolo contm entre 1 e 5 fontes, dependendo do tamanho de corpo.

    As fontes escriturais e de texto (figura 3) so identificadas, quase sempre em ingls, pelo nome de seu tamanho (great primer, leitura, long primer, brevier, nonpareil, gata)3, e s vezes tambm por estilo (script, secretary, bold face). As pginas com estas fontes apresentam texto justificado ou centralizado, cercado por molduras. As amostras so compostas em caixa alta e baixa, com texto em latim (o clebre discurso de Ccero, Quosque tandem ...) ou textos em portugus, que variam de acordo com o estilo da fonte (texto sobre a educao para fontes escriturais, texto sobre liberdade da imprensa como amostra para tipos negritos serifados). Algumas amostras incluem exemplos de letras maisculas, nmeros e sinais.

    Figura 3: Pgina do catlogo Amostras ... da Typographia Americana com tipos de texto.

    3 Correspondncias para o sistema de pontos: great primer 18, leitura (ou pica ou ccero) 12, long primer 10, brevier 8, nonpareil (ou nonpareille) 6, gata (ou agate) 5,5 (Low de Vinne 1899, p:54).

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    As fontes titulares so numeradas, organizadas da maior para a menor, e agrupadas por nomes de tamanhos (quatro linhas brevirio, duas linhas great primer)4. Dependendo do tamanho das fontes, elas so apresentadas em amostras que formam pequenos textos ou palavras (figura 4). A partir do n. 22, apenas algumas letras nmeros ou sinais so mostrados.

    Figura 4: Pgina interna do catlogo Amostras ... da Typographia Americana com tipos titulares.

    3 Specimen da Imprensa Industrial

    A Imprensa Industrial desponta no Almanak Laemmert em 1877, sendo ento propriedade de Lino de Almeida, funcionando na Rua Sete de Setembro, nmero 142. No ano seguinte, muda-se para a rua Nova do Ouvidor, nmero 18.

    Em 1879, a direo passa para Joo Paulo Ferreira Dias, e a empresa muda novamente de endereo, estabelecendo-se na rua da Ajuda, nmero 75. Estes so o ano, dono, e local mencionados no Specimen. Segundo os Anais da Biblioteca Nacional, em 1879 a Imprensa Industrial foi responsvel pela publicao do jornal dirio Correio da Tarde, e pelo peridico Echo das Damas (Doyle, 1965).

    Ferreira Dias continuar anunciando sua empresa no Almanak at 1888, acrescentando que localiza-se no nmero 75, sobrado.

    Contedo

    O catlogo da Imprensa Industrial, encadernado com capa dura, tem o melhor estado de conservao dos quatro analisados, com apenas algumas pginas amassadas ou levemente rasgadas. As 88 folhas impressas em preto e branco, com 26,2 x 17,8 cm, apresentam 179 fontes, quinze das quais parecem ser de madeira, alm de vinhetas e emblemas. Algumas fontes muito ornamentadas, como os tipos 59 e 62 da pgina 2 (figura 5), tem baixa legibilidade, e provavelmente eram utilizadas em ttulos.

    4 Os termos quatro linhas brevirio e duas linhas great primer so tradues de medidas anglo-saxs que correspondem a 32 e 36 pontos, respectivamente (Low de Vinne 1899, p:54),

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    Figura 5: Pgina 2 do catlogo Specimen da Imprensa Industrial.

    Figura 6: Tipos raros do Specimen da Imprensa Industrial.

    As fontes em corpos maiores, provavelmente destinadas a peas publicitrias, apresentam grande variedade de desenhos. A pgina 22 do catlogo (figura 6), por exemplo, exibe dois

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    espcimes interessantes: o primeiro segue um estilo similar a tipos franceses do incio do sculo XIX, porm com ornamentao mais rebuscada; e o segundo tem uma rara perspectiva superior. Os dois tipos no foram encontrados nem no levantamento feito por Gray (1976) nem nos volumes de Jong, Purvis & Tholenaar (2009, 2010).

    Aps a apresentao dos tipos, o catlogo exibe vinhetas, ensaios de composies, traos de pena, cantos e emblemas. Estes ltimos aparecem nos mais variados temas: fnebres, coroas (brasileiras, portuguesas e diversas), navios a vapor, entre outros. Nos emblemas da figura 7 encontram-se pequenas variaes imagticas de um mesmo assunto, como os emblemas de cachorros da primeira fileira, e algumas repeties. A segunda fileira, composta por emblemas de escravos com a sacola no ombro, muito usados em anncios de escravos fugidos nos jornais, composta pela mesma imagem com mudanas to insignificantes que no conseguimos identificar, a olho nu, se aconteceram no momento da fundio ou da impresso.

    Figura 7: Emblemas diversos do Specimen da Imprensa Industrial.

    Organizao informacional

    A folha de rosto do catlogo Specimen da Imprensa Industrial (figura 8) apresenta praticamente o mesmo texto e configurao visual da capa: composio centralizada destacando as expresses Specimen e Imprensa Industrial, com uma vinheta entre os blocos de texto superior e inferior, circundada por moldura. Tanto na capa quanto na folha de rosto so utilizados tipos diferentes a cada linha, predominando os tipos serifados e ornamentados. Tipos gticos so utilizados para grafar o nome do impressor na capa, e da cidade na folha de rosto. Tipos sem serifa aparecem na expresso de, tanto na capa quanto na folha de rosto, e uma variao que sugere tridimensionalidade utilizada na primeira linha da folha de rosto.

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    Figura 8: Folha de rosto do catlogo Specimen da Imprensa Industrial.

    Figura 9: Pgina do catlogo Specimen da Imprensa Industrial com typos communs.

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    As pginas do catlogo no so numeradas. Os tipos so organizados em tabelas com 3 colunas, circundadas por molduras compostas por diferentes tipos de ornamentos (ver figuras 5, 6, 9 e 10). A coluna da esquerda, intitulada Numeros dos typos apresenta numerao crescente, em algarismos arbicos, que identifica as fontes. A coluna central, mais larga, indica a classe qual o tipos daquela pgina pertencem (typos communs ou typos floridos); o tamanho (corpo do tipo, medido em pontos) e uma amostra (uma linha com texto, palavra ou letras).

    Para os typos communs (figura 9), o catlogo tambm indica se a fonte est disponvel em corpo francez ou americano. A coluna da esquerda, intitulada Numeros das caixas e estantes, ocupada somente nas pginas de typos floridos (figura 10) e indica um nmero e uma letra, ou s uma letra, que provavelmente auxiliariam na localizao dos tipos dentro da oficina. Tanto os tipos communs quanto os floridos so apresentados em ordem crescente de tamanho de corpo. As sees de vinhetas e de emblemas (figura 7) no apresentam molduras. As peas so agrupadas por tema, e identificadas por nmeros.

    possvel observar que, independentemente de seu nmero de ordem, na coluna da esquerda, os tipos de grande formato so identificados na coluna da direita com as letras E e F, e que vrios tipos com serifas triangulares so identificados com a letra M. Podemos, assim, formular a hiptese de que a numerao da esquerda segue uma ordem cronolgica de incluso de tipos no acervo da grfica, enquanto que a da direita reflete uma tentativa de agrupamento por tamanho e estilo nas estantes e gavetas da oficina. O Appendice, includo a partir da pgina 28, refora esta idia, ao apresentar tipos floridos em corpos pequenos depois de uma pgina com tipos em corpo 274.

    Figura 10: Pgina do catlogo Specimen da Imprensa Industrial com typos floridos.

    As amostras de uso dos tipos ocupam 2 linhas para alguns dos typos communs, e 1 linha para os demais. Elas apresentam frases em diferentes idiomas (francs, italiano, ingls, alemo,

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    espanhol), palavra ou letras. No caso dos 'typos floridos', as amostras muitas vezes so nomes ou sobrenomes de pessoas, algumas bastante conhecidas (ver figuras 5 e 10).

    4 Spcimen de Caractres e Ornamentos Typographicos do Livro do Commercio

    Pouco se sabe a respeito de Joo Cardoso, responsvel pela publicao do catlogo Spcimen de Caractres e Ornamentos Typographicos do Livro do Commercio. Segundo Pamplona, a casa tipogrfica Livro do Commercio iniciou suas atividades em 1876, imprimindo os relatrios provinciais do governo Paraense (Pamplona, 2010, p:44).

    Os Anais da Biblioteca Nacional registram a presena de um documento da Assemblia Legislativa da Provncia do Par impresso pelo Livro do Commercio em 1877. A empresa apresentada como sendo de propriedade de Theophilo Schlogel & Comp., e administrada por Antonio Ribeiro dos Santos. O registro afirma que a capa do exemplar impressa a trs cores e a impresso do texto caracteriza-se pela nitidez e regularidade do trabalho typographico. exposto como specimen do estado actual da arte typographica na provncia do Par (Saldanha da Gama, 1885, p:434). Em outro volume, os Anais registram tambm a existncia de um documento referente a duplicatas eleitoraes, publicado em 1880, e cuja imprenta indica Antonio Braule F. da Silva como proprietrio (Galvo 1881, p:816).

    Antonio Braule Freire da Silva consta do Almanak Laemmert de 1883 como proprietrio de livraria e de tipografia. O mesmo Almanak indica que a Typographia do Livro do Comrcio, localizada na Rua da Industria, era responsvel pela publicao de um peridico intitulado Hahnemann, que estava em seu terceiro ano. No mesmo Almanak, Cardoso & C. aparece na lista de comerciantes da provncia.

    Na dcada de 1880, segundo Pamplona (2010), a empresa era responsvel pela publicao e distribuio de vrios peridicos relevantes para a sociedade local, entre os quais a Revista Amaznica, editada pelo escritor Jos Verissimo. Estimamos que o catlogo tenha sido impresso em 1884, pois esta data aparece quatro vezes nas amostras de tipos, sendo a nica data citada. Conjecturamos que Joo Cardoso tenha sido o terceiro proprietrio da empresa, e possivelmente um cmplice do movimento de renovao mental e intelectual belenense promovido por Verssimo e descrito por Pamplona.

    Contedo

    O catlogo paraense tem 109 fontes distribudas em 53 folhas, medindo 30,2 x 22,7 cm, impressas em preto e branco. Com capa e algumas folhas soltas, a publicao necessita de cuidados para que o manuseio no deteriore mais seu estado de conservao. Os tipos apresentados eram destinados aos mais variados usos, desde textos corridos, com tipografias mais legveis; notas e legendas, em corpos muito pequenos (4pt); at ttulos, com grande oferta de tipos maiores em estilos grotescos, com serifas egipcianas, cursivos, gticos, ornamentados com flores, sombras e volumes, entre outros. Atravs da comparao com as referncias tipogrficas do sculo XIX reunidas por Gray (1976), identificamos que a fonte de corpo 88 usada na palavra duqueza (figura 11) reproduz desenhos de caracteres desenvolvidos em 1860 por Robert Besley, criador da famosa Clarendon.

    O catlogo tambm inclui bordas, cantos, coroas, emblemas e vinhetas, estas ltimas subdividas por tema (religiosos, navios, meses, signos, etc.). H muitos com textos em ingls, alguns em francs, e apenas um contendo palavra em portugus. No final do catlogo algumas composies com textos em diferentes lnguas utilizam tipos que no parecem ser os mesmos das pginas anteriores, com molduras ornamentadas, remetendo a cartazes de espetculos de teatro (figura 12).

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    Figura 11: Tipos em corpo 88 encontrados no catlogo Spcimen ... do Livro do Commercio.

    Figura 12: Exemplo de composio encontrado no catlogo Spcimen ... do Livro do Commercio.

    Organizao informacional

    O catlogo de Joo Cardoso apresenta, na capa, o desenho de um livro no qual, alm do ttulo e nome do impressor, podemos ler, na lombada: O Livro do Commercio | PARA | Joo Cardoso & Comp. (figura 13). Atravs de variao de tamanhos e estilos, dado destaque para as expresses Spcimen, Caractres e Ornamentos e Typographicos. Estas apresentam letras serifadas, como no restante da capa, mas modificadas pela condensao ou incluso de ornamentos.

    A composio toda centralizada, com exceo do bloco de texto superior da lombada. A mancha de texto da capa, com 6 linhas, completada por um bigode. O desenho do livro rodeado por uma moldura que se repete, complementada por cantos com motivos florais, na capa do livro dentro da ilustrao.

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    Figura 13: Capa do catlogo Spcimen ... do Livro do Commercio.

    As pginas internas do catlogo so impressas somente de um lado e no tem numerao. A primeira pgina, com tipos em corpos menores, diagramada com duas colunas (figura 14), as demais com uma (figura 15). At a pgina 6, as pginas incluem cabealho com o ttulo do livro.

    Figura 14: Primeira pgina do catlogo Spcimen ... do Livro do Commercio.

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    Os tipos so agrupados por corpo, identificados pelo tamanho em pontos, e apresentados dos menores aos maiores. Bigodes so usados para separar os grupos de fontes de mesmo tamanho (figura 14 e 15). Dentro destes grupos, os tipos so organizados em seqncia na qual as escriturais costumam ficar no final. A fontes no so identificadas individualmente, a no ser as de corpo 8, que so subdivididas em N.1 e N. 2.

    Os textos utilizados nas amostras so curtos, ocupando apenas uma linha. So utilizados nomes de pessoas, nomes de estabelecimentos comerciais (Banco Commercial do Par, Companhia de Bonds Paraense), datas e frases ou palavras em portugus ou em francs.

    Figura 15: Pgina do catlogo Spcimen ... do Livro do Commercio.

    5 Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa

    A primeira vez que Henrique Rosa aparece no Almanak Laemmert em 1880, como scio de J.L. Schroeder na Fundio Universal de Typos, instalada na Rua do Hospcio, nmero 227. Trata-se de uma lista com apenas trs fundidoras alm desta: a Fundio Franceza de Typos, de Bouchaud & Sobrinho, no mercado desde 1848, a Nova Fundio de Typos, de Lopes & Pacheco, anunciantes do Almanak desde 1869, e a empresa de E. J. de Arajo, que opera exatamente no mesmo endereo que Schroeder e Rosa.

    No ano seguinte, Rosa aparece ao lado de novos scios da Fundio Universal de Typos: Schroeder substitudo por Julio Augusto Arajo Santos e Manoel Sabino Coro, sendo que este ltimo d nome companhia responsvel pela empresa.

    Saindo desta firma, Rosa abre sua prpria empresa e imprime, provavelmente na virada do sculo XIX para o sculo XX, este que, embora no tenha data, o mais recente dos oito catlogos encontrados durante a pesquisa. Diferente dos demais, este um catlogo de uma fundidora de tipos, no de uma grfica.

    Contedo

    O contedo do catlogo de Henrique Rosa o mais robusto e diversificado dos quatro analisados, j que pertencia ao segmento comercial que fornecia mercadorias ao setor impressor. A publicao, que se encontra num estado precrio de conservao, formada por quase 300 folhas, de 21,5 x 17 cm, que apresentam tipos, mquinas e materiais tipogrficos. Entre as 1085 fontes encontramos tipos com fins especficos, como o typo mecnico, que

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    imita letras de mquina de escrever, e era anunciado com a vantagem de economizar os seus manuscritos inglezes, sempre muito frageis e custosos (figura 16, esquerda).

    Os tipos e as iniciais das figuras 16 e 17, impressos em duas cores, exigiam o uso de duas matrizes, e impresso cuidadosa. Algumas dessas coloridas fontes so bastante similares a desenhos encontrados em catlogos europeus do final do sculo XIX, como a famlia Beatrice da fundio italiana Nebiolo, apresentada em catlogo de 1895, e as iniciais Sechsunddreissigste, do alemo Wilhelm Gronau, de 1891 (Jong, Purvis & Tholenaar 2009).

    Figura 16: Pgina dupla (100B e 100C) do catlogo Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa, mostrando seus tipos mecnicos e iniciais com duas cores.

    Figura 17: Pgina do catlogo Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa mostrando tipos em duas cores.

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    Uma vez que a fundidora tambm comercializava mquinas e materiais para impresso, algumas pginas indicavam no rodap quais as tintas utilizadas (figura 18). A publicao ainda apresenta colchetes, bigodes, traos de pena, fios simples, ornamentos, vinhetas e clichs diversos, com destaque para as ltimas novidades art nouveau. Interessante perceber que a empresa dedicava diversas pginas do catlogo para se auto-promover, ao mesmo tempo em que demonstrava seus recursos e tcnicas refinadas, como nos rebuscados clichs da figura 19, seguindo moda americana do artistic printing (Clouse & Voulangas 2009) que tem seu auge na dcada de 1880.

    Figura 18: Pgina dupla do catlogo Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa, mostrando impresso bicolor e vinhetas.

    Figura 19: Clichs publicitrios da Fundio de Typos Henrique Rosa.

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    Organizao informacional

    O Specimen de Henrique Rosa o nico, entre os encontrados, a apresentar pginas em policromia. As pginas em preto e branco so impressas de ambos os lados, e a maioria das pginas coloridas so impressas somente de um lado. Trata-se de um volume complexo, com um grande nmero de folhas soltas, presas com 3 fitilhos.

    A folha de rosto (figura 20) impressa em 3 cores. A mancha de texto circundada por uma moldura fartamente ornamentada, e sobreposta por uma faixa com o nome do impressor. As letras usadas variam a cada linha, privilegiando formas sinuosas, sendo a mais sbria aquela com o nome da cidade, composta em caixa alta com uma fonte serifada de ar neoclssico.

    Figura 20: Folha de rosto do catlogo Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa

    Figura 21: Pgina do catlogo Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa, mostrando coleo de vinhetas com trs cores.

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    As pginas, contendo um cabealho com o ttulo corrente, so numeradas com dois ordenadores, um numrico e um alfabtico, permitindo a insero de folhas intercaladas conforme o lanamento de novas fontes (por exemplo, uma folha com numerao 1c entre as folhas 1b e 2a'). A numerao centralizada no p de pgina.

    Antes de cada exemplo de aplicao, o catlogo informa o tamanho do corpo em pontos, o nmero de identificao da fontes, e seu preo por quilo (figuras 16 e 17) ou por alfabeto (no caso de capitulares, figura 16, direita). As amostras apresentam textos em portugus ou em francs, freqentemente acompanhados por nmeros. As colees de ornamentos e as vinhetas tambm so identificadas por nmeros (figura 21).

    6 Consideraes finais

    Uma busca por catlogos de tipos brasileiros no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, resultou na localizao de oito volumes, metade dos quais so descritos e analisados neste artigo. Grande parte do contedo destes impressos composto por amostras de letras e clichs imagticos, porm, algumas destas publicaes, como o Specimen da Fundio de Typos Henrique Rosa, apresentam outras informaes, tais como mquinas vendidas e anncios publicitrios, revelando dados importantes sobre os recursos disponveis para impresso na poca de sua divulgao.

    Ao contextualizar os impressos, verificamos que havia contato entre as grficas e autores de todo o pas, que usavam servios de impresso fora dos limites de suas provncias. H tambm indcios de que as grficas se abasteciam diretamente no exterior, tais como a indicao de tamanhos de fontes em ingls. A escolha de tipos refletia o que se usava internacionalmente. Os temas de alguns emblemas e vinhetas mostram que se tratava de um Brasil escravista. A fundidora de Henrique Rosa, em particular, demonstra a atualizao do gosto grfico, com forte influncia Art Nouveau.

    A anlise da organizao dos catlogos, por outro lado, revela a maneira como os tipos eram dispostos e apresentados aos usurios. O catlogo mais antigo, Amostras de Typos, Flores, Linhas e Emblemas da Typographia Americana utiliza nomes, como leitura, great primer, brevier, nonpareil, long primer e agata, no lugar de nmeros, para identificao dos tamanhos de corpo. De fato, somente durante o sculo XIX que o sistema de pontos tipogrficos, originalmente proposto, na Frana, no sculo XVIII, se torna popular, e mesmo na Europa, ainda era relativamente comum encontrar catlogos oferecendo tipos com medidas nominais at o incio do sculo XX (Jong, Purvis & Tholenaar 2009 e 2010). A terminologia encontrada no catlogo brasileiro, muito prxima da anglo-sax, indica uma provvel origem para os tipos e vinhetas utilizados pela empresa, hiptese que as autoras pretendem investigar a seguir.

    Percebe-se tambm que todos os autores dos catlogos realizam um esforo para agrupar os tipos em categorias, e que em todos eles os tipos adequados para textos longos so posicionados nas primeiras pginas, geralmente denominados tipos comuns, e as vinhetas e ornamentos so dispostos no final.

    A descrio e anlise de catlogos de tipos brasileiros do sculo XIX e incio do sculo XX imprescindvel para uma melhor compreenso das formas e materiais disponveis aos impressores da poca que marca o auge da tipografia no Brasil.

    Agradecimento

    As autoras agradecem a CAPES (projeto PROCAD Memria Grfica Brasileira), CNPq (bolsas PQ para Edna Cunha Lima e Priscila Farias) e FAPESP (Apoio Regular Pesquisa para Priscila Farias) pelo apoio oferecido s suas pesquisas, a Biblioteca Nacional pela permisso de realizar os registros fotogrficos dos catlogos, e Almir Mirabeau da Fonseca Neto pela execuo dos registros.

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    Referncias

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    PAMPLONA, Alessandra Greyce Gaia (2010).Revista Amaznica: a concretizaode um projeto periodstico. In: Anais do II Congresso Internacional de Estudos Lingusticos e Literrios na Amaznia. Organizao. Belm: UFPA.

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    Sobre as autoras

    Edna Lucia Cunha Lima, Dra. PUC-Rio: Professora Adjunta do Departamento de Artes e Design da PUC- Rio, Bolsista de Pesquisa da Biblioteca Nacional e Pesquisadora nvel 2 do CNPp com a pesquisa Fundidores de Tipo no Rio de Janeiro. autora de captulos de livros e de artigos sobre litografia e tipografia brasileiras.

    [email protected]

    Isabella Arago, Ms. UFPE: Professora assistente da Graduao em Design e pesquisadora do Laboratrio de Prticas Grficas da UFPE. Organizadora do livro Imagens Comerciais de Pernambuco: ensaios sobre os efmeros da Guaianases, autora de captulos de livros e artigos sobre tipografia e linguagem grfica de impressos do sculo XX, cinema e web.

    [email protected]

    Priscila Lena Farias, Dra. USP e Senac-SP: Coordenadora dos Laboratrios de Pesquisa em Design Visual (FAUUSP) e de Tipografia e Linguagem Grfica do (Senac-SP). Editora do peridico cientfico InfoDesign, autora dos livros Fontes Digitais Brasileiras, Advanced Issues in Cognitive Science and Semiotics, Tipografia Digital, e de diversos artigos sobre tipografia, design e semitica.

    [email protected]