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Sesc | Serviço Social do Comércio

Presidência do Conselho NacionalAntonio Oliveira Santos

Departamento NacionalDireção-GeralMaron Emile Abi-Abib

Coordenadoria de Educação e CulturaNivaldo da Costa Pereira

CONTEÚDOGerência de Cultura GerenteMarcia Costa Rodrigues

Assessoria de CinemaMarco Aurélio Lopes FialhoNadia Moreno

TextoMarco Aurélio Lopes Fialho

PRODUÇÃO EDITORIALAssessoria de ComunicaçãoDiretorPedro Hammerschmidt Capeto

Supervisão editorial e edição Fernanda Silveira

Projeto gráficoAna Cristina Pereira (Hannah23)

DiagramaçãoClaudia Duarte

Revisão de textoClarisse Cintra

Produção gráficaCelso Mendonça

As imagens inseridas nesta publicação foram retiradas dos filmes relacionados neste catálogo.

©Sesc Departamento NacionalAv. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJCEP: 22775-004Tel.: (21) 2136-5555www.sesc.com.br

Impresso em agosto de 2014. Distribuição gratuita.Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departa-mento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Sombras que assombram : o expressionismo no cinema alemão : mostra de cinema. -- Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2013.

92 p. : Il. ; 27 cm.

ISBN 978-85-8254-032-9.

1. Cinema alemão – Catálogo. I. Sesc. Departamento Nacional.

CDD 791.43

Page 5: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Sesc | Serviço Social do Comércio

Departamento Nacional

Rio de Janeiro

2014

MOSTRA DE CINEMA

Page 6: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc
Page 7: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

“Em torno de nós vê-se o monstruoso, fruto da insanidade, imprudência, inépcia

e completa degeneração. O que essa exposição oferece inspira horror e

aversão em todos nós.”Adolf Ziegler. Discurso de abertura da exposição expressionista Arte Degenerada, 1937.

Page 8: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Criado e administrado há mais de 60 anos por representantes do empresariado do

comércio de bens e serviços e destinado à clientela comerciária e a seus dependentes,

o Sesc vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do desenvolvimento e

bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, esforço que

conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional.

Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como democrático

disseminador de conhecimento, importante ferramenta para a educação e transfor-

mação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da

itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema.

Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais, seja no cinema, como também

nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou na música, o Sesc incentiva a produção

artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas,

acima de tudo, promovendo a formação e qualificação do público que habita os quatro

cantos do Brasil. A credibilidade alcançada pelo Sesc nesse âmbito faz da entidade

referência nacional, o que revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais

necessidades de sua clientela.

Antonio Oliveira SantosPresidente do Conselho Nacional do Sesc

Page 9: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

O Sesc é uma entidade de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove

o bem-estar dentro das áreas de Saúde, Cultura, Educação e Lazer, com o objetivo de

contribuir para a melhoria das condições de vida da sua clientela e facilitar seu aprimo-

ramento cultural e profissional. No campo da cultura, a atuação do Sesc acontece no

estímulo à produção cultural, na amplitude do conhecimento e no fortalecimento de sua

identidade nacional, condições essenciais ao desenvolvimento do país.

Nesse cenário, a mostra de cinema Sombras que Assombram — O Expressionismo no

Cinema Alemão oferece a oportunidade de se conhecer o movimento expressionista, que

teve seu auge na Alemanha arruinada pela Primeira Guerra Mundial e se caracterizou

pelo uso de imagens fantásticas e assustadoras e ao mesmo tempo pela exposição de

uma sociedade imersa em um cenário desolador e extremamente mecanicista.

O caráter histórico e documental deste projeto viabiliza a proposta do Sesc dentro da

ação programática de cultura ao se constituir como ferramenta de enriquecimento in-

telectual dos indivíduos, propiciando-lhes uma consciência mais abrangente e aberta a

meios mais estimulantes e educativos de aquisição da cultura universal.

Maron Emile Abi-AbibDiretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc

Page 10: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

IMPULSOS IRRACIONAIS DE UMA ÉPOCA, 10 Contexto histórico para o expressionismo, 12O cinema nos conturbados anos 1920, 13

A RELAÇÃO DO FANTÁSTICO COM O EXPRESSIONISMO, 15

ESTÉTICA DO EXPRESSIONISMO NO CINEMA ALEMÃO, 18

Robert Wiene, 22O gabinete do Dr. Caligari, 26As mãos de Orlac, 32

Paul Wegener, 36O golem, 40

Paul Leni, 44O gabinete das figuras de cera, 48O homem que ri, 52

F.W. Murnau, 56Fausto, 60Nosferatu, 64A última gargalhada, 68

Fritz Lang, 74Metropolis, 78

NOTAS, 82

REFERÊNCIAS, 82

Page 11: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

SumárioInstruções para leituraNeste sumário, os links levam direto à página referenciada.Para voltar ao sumário, clique na palavra no canto inferior à direita em cada página. Boa leitura.

VOLTAR

Page 12: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Impulsos irracionais de uma época

Page 13: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Roger Cardinal, um dos mais conceituados estudiosos do expressionis-

mo nas artes, descreve sinteticamente o expressionismo como

um encontro da criatividade do artista com seus impulsos emo-

cionais e instintivos mais profundos. A expressão da obra adqui-

re então um caráter subjetivo, pois a forma artística resulta das

angústias humanas do indivíduo criador.1

No início do século 20, o mundo assombra-se com as obras de Freud,

seus estudos complexos sobre a libidinosa psique humana e, mais

adiante, com Franz Kafka, já em 1915, que investe nos proces-

sos de aprisionamento humano, com seu sinistro e metafórico

homem-inseto em A metamorfose. Essa atmosfera cultural per-

meia e cria o estofo necessário para o desenvolvimento do expres-

sionismo na Alemanha. No plano político, a República de Weimar

rapidamente frustra a esperança de transformação social mais

profunda, após massacrar o movimento revolucionário liderado

por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e se tornará um estorvo

às mentes mais críticas desse conturbado momento histórico.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 11VOLTAR

Page 14: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Contexto histórico para o expressionismo

Segundo o historiador Eric Hobsbawn (1997), o século 20 foi marcado por posições

políticas extremadas e, em síntese, foi breve e intolerante. Diz ainda que o

principal acontecimento desse período foi a Primeira Guerra Mundial, “que

assinalou o colapso da civilização (ocidental) do século 19”.2

A década de 1920 marcou, antes de tudo, o ápice do modelo liberal e da ilusão de

prosperidade econômica; o auge da produção se deu graças às novas tecno-

logias desenvolvidas. Os países vencedores da Primeira Guerra Mundial im-

puseram acordos humilhantes às potências derrotadas, como a Alemanha e

a Itália. A decrepitude moral tornou-se parte da vida cultural desses países e

um sentimento de inferioridade contaminou a sociedade. O expressionismo

no cinema manifestou maciçamente o horror psicológico desse momento que

antecedeu a escalada nazista na Alemanha, no entanto, não pode ser reduzido

a apenas isso.

Em momentos de crise e abalo social é comum vermos as artes se apresentarem de

modo mais contundente, interpondo como elemento crítico e participativo.

Mesmo não sendo o expressionismo cinematográfico explicitamente contra o

sistema político vigente, esse movimento conseguiu criar uma atmosfera em

seus filmes que hoje muito nos diz sobre a vida na Alemanha dos anos 1920.

A segunda metade do século 19 foi marcada por uma forte industrialização dos pa-

íses europeus – sobretudo Inglaterra – e Estados Unidos, no período conhecido

como Segunda Revolução Industrial, sendo também a era do aço, do telégrafo, do

trem e do motor à explosão, transformações que alavancariam a criação de equi-

pamentos utilizados nas artes, como o próprio cinematógrafo. Iniciou-se então

12 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 15: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

uma busca por matéria-prima e mercados entre as maiores potências

mundiais. Alemanha e Itália se uniram tardiamente, mas também se

lançaram nessa briga. O resultado desse acirramento foi a eclosão da

Primeira Guerra Mundial (1914-1919), que abalou a vida dos habitan-

tes do planeta, e o cinema, assim como as artes em geral, também

sofreu profundamente.

O cinema nos conturbados anos 1920

Em 1919, O gabinete do Dr. Caligari demonstrou que o cinema atingira a ma-

turidade artística. Trata-se de um filme inaugural, que demarca um mo-

mento de clivagem. Existe o cinema antes e o cinema depois de Caligari.

O cinema alemão dá um passo estético irrevogável ao adentrar nos

meandros da psicologia humana, ao mostrar que as histórias poderiam

ir além da narração; abriam janelas para se perscrutar a interioridade

dos pensamentos e do agir humanos. O expressionismo alemão con-

tribuiu, de uma só vez, tanto como fenômeno estético quanto como

revelador da alma. Daí a necessidade de tratarmos rapidamente sobre

o cinema da década de 1910.

Na década de 1910, o norte-americano David W. Griffith mostrou ao mundo

as possibilidades de sistematização do aparato cinematográfico: por

meio de aproximações da câmera em objetos e pessoas em determinado

momento, poderia ser acentuado, por exemplo, o caráter dramático de

uma cena, contando ainda com os recursos da montagem que o aparato

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 13VOLTAR

Page 16: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

então oferecia. No entanto, o experimento de Griffith representa um

pouco mais do que isso, pois se consolida no cinema nascente a no-

ção de significado (ao reafirmar a sua capacidade de narratividade), e

vai mais além ao imbuí-lo de uma faceta significante, isto é, deixan-

do clara a importância também de como narrar uma história. Assim,

Griffith demonstra de uma só vez que o cinema podia não só contar uma

história, mas também se constituir como uma linguagem específica.

O expressionismo no cinema situa-se em um contexto da história da lin-

guagem cinematográfica em uma encruzilhada: caminhos artísticos

os mais diversos estavam sendo experimentados, e talvez ele repre-

sentasse, devido à própria situação da Alemanha nos anos 1920, não

exatamente uma síntese estética, mas uma síntese da indefinição de

rumos, da dúvida que pairava nesse momento acerca de qual seria a

serventia do cinema para a humanidade.

Seria o cinema uma linguagem específica, munido de códigos próprios, inte-

resses estéticos definidos, voltado sobremaneira para despertar sen-

sações profundas e inovadoras nos seres humanos? Ou uma mera ex-

tensão da narrativa literária e/ou teatral? Uma arma ideológica usada

pelo governo? Uma ferramenta de entretenimento? Um bem cultural

a serviço da educação? A consolidação da indústria de Hollywood e a

interferência moral do estado nos enredos dos filmes, o uso do cine-

ma pelo Terceiro Reich, o papel educativo dado pelo governo inglês e

político-partidário dado pelo governo soviético serão respostas para

algumas dessas perguntas.

14 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 17: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

A relação do fantástico com o expressionismo

Page 18: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

De acordo com o crítico literário Tzvetan Todorov, o fantástico pode ser entendido

como tal quando se põe em dúvida a noção de real de determinado fenôme-

no, isto é, quando não se consegue explicá-lo pela lógica, mas somente sob a

regência de outras leis que desconhecemos. Para Todorov, normalmente um

fenômeno “se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo

natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o

efeito fantástico”.3

O fantástico nasce na literatura e tem o cultuado escritor Edgar Allan Poe como íco-

ne, mas a sua concepção é muito bem assimilada pelo cinema ainda em seus

primórdios. O ilusionista e cineasta francês Georges Méliès é considerado um

dos precursores do cinema fantástico, com o seu célebre filme Viagem à lua

(1902), momento em que o cinematógrafo ainda era mais uma curiosidade do

que um aparelho apto a criar uma linguagem autônoma.

Mas é no cinema alemão que o fantástico surge com maior vigor, antes mesmo da

eclosão do expressionismo alemão, já nos anos 1910, com a incorporação de

escritores do gênero fantástico como roteiristas de filmes. Somente no final

da década de 1910 e início dos anos 1920 que o fantástico alcança uma força

incontestável no cinema, com o sucesso de O gabinete do Dr. Caligari, filme de

Robert Wiene.

Nesse filme, vem à tona todo o potencial expressionista ao revelar uma Alemanha góti-

ca, demoníaca, com seus pesadelos mais obscuros. O mais incrível na película de

Wiene é a sua capacidade de tornar o gênero fantástico, até então essencialmen-

te literário, totalmente palpável para o gênero cinematográfico. O viés fantásti-

co em Caligari se impõe por meio da criação de uma temática típica dos enredos

de terror, em especial o tema da manipulação de mentes e do sonambulismo.

Desde os primórdios do cinema há registro de filmes de terror. No primeiro ano do

cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou um pequeno curta-metra-

gem com a temática. As histórias de terror foram sendo filmadas nas décadas

16 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 19: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

posteriores, mas somente no expressionismo alemão o terror adquiriu

uma maior presença e vigor. O golem, O gabinete do Dr. Caligari, Nosfe-

ratu, Fantasma e outros serviram de fonte para diversos filmes a partir

dos anos 1930.

Contudo, se analisarmos a incorporação do terror ao gênero cinematográfico

veremos que seu ponto de partida, de maneira mais sistematizada, é o

próprio expressionismo alemão. No expressionismo encontramos uma

exacerbação dos elementos imagéticos, eles representavam uma exte-

riorização de um estado interior, uma materialização espiritual, e a sua

potência estética vinha dessa confrontação do externo com o interno.

O que caracterizaria então o terror expressionista seria a assimilação

expressiva de um elemento psicológico.

O período histórico do nascimento do expressionismo o localiza imediatamen-

te após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-1919).

O gabinete do Dr. Caligari, por exemplo, foi produzido em 1919-1920.

Muitos críticos relacionam o expressionismo como uma resposta da

vanguarda alemã à atmosfera de decadência e crise moral do período

compreendido como República de Weimar (1919-1933), o prenunciador

do nazismo. Hoje essa ideia não deve ser tomada de modo absoluto,

outras questões são também apontadas como influentes, tais como o

gosto pelo medievalismo (gótico) e a tradição romântica alemã.

Segundo a professora e pesquisadora Laura Cánepa, um grande êxodo de ar-

tistas, atores e técnicos alemães dessa época, causado pela ascensão

do nazismo, difundiu uma considerável influência da “estética expres-

sionista” pelo mundo, mais precisamente nos Estados Unidos, onde a

indústria hollywoodiana avançava a passos largos. Basta assistir aos

filmes de terror dos anos 1930 e os chamados filme noir para saber que

isso não é exagero.4

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 17VOLTAR

Page 20: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

A estética do expressionismo no cinema alemão

Page 21: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Acreditamos que sem essa contextualização bastante abrangente, uma análise

sobre o cinema na década de 1920 seria estéril e inócua. Isso se deve à

grande efervescência das artes desde o final do século 19, e em especial

a partir dos anos 1910, com as interferências modernas. Sem dúvida a

Primeira Guerra Mundial tem um peso incomensurável nesse contexto.

Ela fez renascer elementos adormecidos na alma alemã. No início de seu

magnífico livro sobre o expressionismo alemão, Lotte H. Eisner afirma:

Misticismo e magia — forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães

se abandonaram com satisfação — tinham florescido em face da morte nos

campos de batalha. As hecatombes de jovens precocemente ceifados pare-

ciam alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes

tinham povoado o romantismo alemão, reanimavam-se tal como as sombras

do Hades ao beberem sangue.5

Misticismo, fantasmas, sobrevivência, sangue, morte, hecatombes de jovens e

sombras são palavras utilizadas nessa pequena citação, a qual corporifi-

ca o sentimento expressionista. Os filmes trazem inequivocamente esse

peso, como um carma que recai sobre seu destino artístico.

Na definição de Roger Cardinal o expressionismo

representa uma versão peculiarmente urgente da necessidade perene do artis-

ta de se expressar sem restrições. Seus antecedentes imediatos são as declara-

ções irracionalistas e instintuais de um Nietzsche, as transcrições poderosas

da vida íntima agitada nas últimas pinturas de Van Gogh, os gestos altamente

cênicos de Strindberg. Quando Nietzsche afirma orgulhosamente que “eu sem-

pre escrevi meus trabalhos com todo o meu corpo e minha vida, não sei o que

querem dizer com problemas intelectuais”, está oferecendo, na sua maneira

mais simples, um princípio exemplar do expressionismo: a confiança irrestrita

na expressão direta dos sentimentos que se originam na própria vida do cria-

dor, sem a mediação e a interferência provável da racionalidade.6

Quando o mundo objetivo não inspira confiança, o artista se utiliza da subje-

tividade, de sua expressão mais soturna, avisa ao mundo que o tempo

está nublado, que as sombras e os personagens sinistros estão em profu-

são e que algo precisa ser feito para transformar a sociedade, antes que

precisemos lhe extrair um membro.

Os filmes do período comumente chamado de expressionistas (1919-1927) es-

pelham demais a nebulosidade de seu tempo. Há um cruzamento consi-

derável, em especial na Alemanha derrotada no pós-guerra, entre reali-

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 19VOLTAR

Page 22: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

dade sinistra e visão sinistra do artista. A distorção aflorada no olhar do

artista não deve ser descartada e, mais do que isso, deve ser sublinhada,

enfatizada, pois é difícil viver uma hecatombe social e não expressá-la.

Pensemos então em um ponto crucial para o expressionismo: a distorção. Como

falar de temas sublimes quando o que vemos ao redor não é tão inspi-

rador assim? A guerra distorceu os corpos. Os artistas viram isso, não

podiam passar incólumes. Há a degradação moral, quando a morte e a

mutilação dos corpos passam a existir em profusão, os jovens são abati-

dos e com eles o futuro de um país. Ainda há a alteração da paisagem, a

destruição de aldeias, cidades, a improdutividade do campo.

Os cenários dos filmes expressionistas, em especial das primeiras obras, tal

como O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras de cera, O golem e

Nosferatu, tendem à claustrofobia, faltam-lhes profundidade, são acacha-

pantes e tortuosos, apresentam uma estilização artificial que beira ao

grotesco. A maquiagem dos atores foi concebida de maneira exagerada,

sinistra, que os fazem parecer mortos-vivos, como se vagassem à deriva

pelo mundo. Seus corpos são pesados, com movimentos bruscos, não na-

turalizados, como se fossem impedidos de se locomover com desenvol-

tura por uma força maior. Os figurinos também lhes pesam, dificultam o

movimento, dando-lhes uma aparência soturna.

Nosferatu e Orlac, por exemplo, são quase personagens de outro mundo, cin-

didos e alheios à vida social, imersos no seu mundo, pouco dialogam

com o exterior, vivem as suas tragédias interiores, são seres alienados,

um tanto inumanos. Não à toa os temas mórbidos perpassam os filmes

expressionistas, pois são comumente seres que habitam um terreno

sombrio da existência. Há uma concepção labiríntica dos cenários, que

muito expressam uma vertigem, inerente também aos conflitos emocio-

nais dos personagens.

A imagem expressionista também dialoga com os personagens e com os cená-

rios predominantemente em contraste entre partes muito escuras (mais

nas bordas) e muito claras (no centro da imagem). Há ainda o resgate do

medievalismo, uma aproximação com a estética gótica, assim como uma

recuperação dos valores românticos nítidos na exacerbação dos senti-

mentos dos personagens.

20 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 23: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Um dos alicerces que colaborou para escorar o cinema alemão dos anos 1920

foi o teatro de Max Reinhardt, escola para diversos profissionais que de-

pois migraram para o cinema, entre eles cenógrafos, atores, diretores,

figurinistas, fotógrafos. Se o teatro formou profissionais, a UFA (Univer-

sum Film Aktiengesellschaft) — produtora privada fortemente assen-

tada economicamente, composta por uma fusão de diversas produto-

ras — solidificou o cinema alemão como produto fora do país, mercado

que antes estava em crise. A adesão da Decla Biocosp, empresa de Erich

Pommer, principal produtor alemão, foi decisiva para a UFA alçar voos

extraordinários. Em consequência, o cinema expressionista espirraria di-

retores para fora da Alemanha. Atualmente todos são nomes cultuados.

Qual amante do cinema nunca ouviu falar de Fritz Lang, Murnau, Paul

Leni, Ernst Lubitsch, Pabst e Robert Wiene?

Ressalta-se ainda a qualidade técnica dos profissionais de cinema existente na

Alemanha dos anos 1920. Do roteiro ao acabamento das imagens, o ex-

pressionismo foi pródigo de artistas. Destacam-se como roteiristas Carl

Mayer (A última gargalhada e O gabinete do Dr. Caligari), Henrik Galeen

(O gabinete das figuras de cera, O golem e Nosferatu) e Thea von Harbou (Me-

tropolis). Entre os diretores de arte há nomes como Robert Herlth e Walter

Rohrig (Fausto e A última gargalhada), Walter Reiman e Hermann Warm

(O gabinete do Dr. Caligari). Fotógrafos e câmeras, Fritz Arno Wagner (Nos-

feratu), Carl Hoffman (Fausto) e o magistral Karl Freund (A última garga-

lhada, Metropolis, O gabinete do Dr. Caligari e O golem). Pode-se ainda citar

os excepcionais atores Conrad Veidt (O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete

das figuras de cera, O homem que ri, As mãos de Orlac), Emil Jannings (A

última gargalhada, Fausto e O gabinete das figuras de cera), Werner Krauss

(O gabinete das figuras de cera e O gabinete do Dr. Caligari) e Wilhelm Die-

terle (Fausto e O gabinete das figuras de cera). Soma-se a esses preciosos

profissionais um organizador de peso, o já citado produtor Erich Pom-

mer, que comandou os maiores orçamentos da época e trabalhou com

os diretores e técnicos mais significativos da indústria cinematográfica

alemã à época da República de Weimar, entre eles, Murnau, Wiene, Lang,

Freund, Hoffman e Mayer. Vários desses artistas tiveram passagem por

Hollywood, em especial no período do nazismo, em que o controle ideoló-

gico dos filmes alemães passava pelo crivo do regime totalitário comanda-

do por Hitler e Goebbels.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 21VOLTAR

Page 24: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Robert Wiene

Page 25: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Robert WieneO gabinete do Dr. Caligari

As mãos de Orlac

Page 26: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

BIOGRAFIA

Nasceu na antiga Breslau (na época, parte da Alemanha, sendo hoje Wroclaw, na Po-

lônia), filho do famoso ator de teatro Carl Wiene. Seu irmão mais novo, Conrad,

também se tornou ator. Robert inicialmente estudou Direito na Universidade de

Berlim, mas desde 1908, já estava envolvido em atividades artísticas como ator

em pequenas participações no teatro. Sua primeira investida no cinema foi em

1912, com seu roteiro para Die Waffen der Jugend. Sua memorável participação no

cinema acontece como diretor de O gabinete do Dr. Caligari (1919), que veio a se

tornar um marco do expressionismo no cinema.

Depois que Hitler tomou o poder na Alemanha, Robert Wiene deixou Berlim, primei-

ramente por Budapeste, onde dirigiu One Night in Venice (1934), posteriormente

para Londres, e finalmente para Paris, onde tentou produzir com Jean Cocteau

uma reprodução sonora de O gabinete... Wiene morreu em Paris dez dias antes do

fim da produção de um filme de espiões, Ultimatum, vítima de câncer. O filme foi

terminado por seu amigo Robert Siodmak.

24 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 27: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

FILMOGRAFIA

1938 | Ultimatum

1934 | Eine Nacht in Venedig

1933 | Polizeiakte 909

1933 | Le procureur Hallers

1931 | Panik in Chicago

1931 | Der Liebesexpreß

1930 | Der Andere

1928 | Unfug der Liebe

1928 | Leontines Ehemänner

1928 | Die Frau auf der Folter

1928 | Die große Abenteuerin

1927 | Die berühmte Frau

1927 | Der Gardeoffizier

1927 | Die Geliebte

1926 | Die Königin von Moulin Rouge

1925 | Cavalheiro das rosas

1925 | Pension Groonen

1924 | As mãos de Orlac

1923 | I.N.R.I.

1923 | Der Puppenmacher von Kiang-Ning

1923 | Raskolnikow

1922 | Die höllische Macht

1921 | Das Spiel mit dem Feuer

1921 | Die Rache einer Frau

1920 | Die Nacht der Königin Isabeau

1920 | Genuine (curta)

1920 | Die drei Tänze der Mary Wilford

1920 | O gabinete do Dr. Caligari

1919 | Ein gefährliches Spiel (curta)

1919 | Der Umweg zur Ehe

1919 | Der verführte Heilige

1918 | Gräfin Küchenfee

1917 | Veilchen Nr. 4 (curta)

1917 | Der standhafte Benjamin (curta)

1917 | Der Liebesbrief der Königin (curta)

1917 | Furcht

1916 | Lehmanns Brautfahrt

1916 | Der wandernde Blumentopf (curta)

1916 | Die Räuberbraut (curta)

1916 | Das wandernde Licht

1916 | Der Sekretär der Königin

1916 | Das Leben ein Traum

1916 | Der Mann im Spiegel

1916 | Frau Eva

1915 | Der springende Hirsch oder Die Diebe

von Günstersburg

1915 | Die Konservenbraut

1915 | Er rechts, sie links (curta)

1914 | Arme Eva

1913 | Die Waffen der Jugend (curta)

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 25VOLTAR

Page 28: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

O gabinete do Dr. Caligari

Das Kabinet des Dr. Caligari

1919

62 min

P&B

Elenco: Werner Krauss,

Conrad Veidt, Friedrich

Feher, Lil Dagover

Page 29: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Analisado em uma perspectiva histórica, o filme é um dos mais significativos, não só

no campo do cinema como no da cultura. Hoje, sem dúvida, trata-se de uma refe-

rência estética para vários artistas das mais variadas linguagens.

Antes de tudo, Caligari é desbravador, considerado um marco do expressionismo no

cinema, criador de um estilo calcado sobretudo em seu poder imagético, mas não

só. Sua força também impregna tematicamente, abre uma janela sem igual para a

aventura do fantástico no cinema. Enfim, depois de Caligari, o cinema nunca mais

foi o mesmo.

De um ponto de vista mais abrangente, Caligari representa o próprio cinema, seja pelo

uso da hipnose, seja por assumir sua inevitável artificialidade por meio de cená-

rios falsos que denunciam a “mágica” cinematográfica e seus truques ilusionistas.

Em razão dessas concepções, o filme sublima-se, nasce então o caligarismo, o estilo

visual que expõe ao mundo distorções advindo de um extravasamento emocional.

Como bem define Massaud Moisés, o expressionismo filosoficamente “propõe co-

locar de novo o homem no centro do mundo, não o indivíduo em particular, mas o

Homem como espécie”.7 Essa capacidade de abordar a natureza humana traduz o

alcance de Caligari como obra universal para além de sua época. Mesmo passados

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 27VOLTAR

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quase cem anos, o filme continua inspirando gerações (e pensar que quando reali-

zado o cinema não tinha sequer 25 anos de existência).

Surpreendentemente, apesar da exuberância de Caligari e de sua influência incon-

teste, que paira para além dos anos 1920, até hoje há dúvidas se Robert Wiene é

realmente o criador da obra. Muitos boatos foram criados em torno desse filme,

inclusive que a estética expressionista dos cenários não foi pensada por ele. Um

dos roteiristas chegou a se pronunciar como o autor responsável pela concepção

imagética do filme. Somente quando se pôde ter acesso ao roteiro ficou comprova-

do que não havia indicações quanto a como seriam os cenários.

O filme encaixa-se no contexto histórico conturbado da Alemanha do pós-guerra, o da

República de Weimar, mas está imerso também em um passado mais distante ao

resgatar a melancolia gótica e o romantismo de outros séculos. Caligari evoca o

irracionalismo, uma crítica ao método cientificista e anuncia, como uma sombra,

um porvir de pesadelo a entravar o espírito alemão.

O enredo de O gabinete do Dr. Caligari fascina por trazer elementos fantásticos. O filme

inicia com a narração de um jovem sobre um estranho acontecimento ocorrido em

sua pequena cidade natal envolvendo um médico (Caligari) que manipula as ações

de um sonâmbulo (Cesare). O jovem conta que Caligari se inspira em uma narrativa

sueca, na qual um homem com este mesmo nome domina a mente de um sonâmbulo.

28 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 31: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

• Os cenários artificiais expressionistas só não aparecem quando o jovem está narrando a his-tória. A paisagem que assistimos ao fundo é a de um quintal

arborizado do manicômio, um ambiente com predomínio da natu-

reza. Esse detalhe é pouco comentado na historiografia dedicada

ao expressionismo, pois o mundo distorcido que vemos em todo

o filme é tal e qual o vê o narrador esquizofrênico. Assim, Wiene

nos coloca à mercê, durante toda a projeção, dessa subjetividade

específica, a do louco, como se estivesse nos condenando a essa

visão de mundo.

• Será que o jovem está enclausurado no mani-cômio por saber a verdade sobre o passado es-cabroso do médico Caligari, que assim controla seus

passos enquanto vive incólume apesar dos crimes passados? Essa

versão traz elementos sinistros na mensagem do filme por pres-

supor que o mundo é controlado por loucos algozes enquanto os

sãos e honestos estariam presos por saberem a verdade acerca

dos criminosos.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 29

expressionismos

VOLTAR

Page 32: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

• Deve-se considerar a complexidade narrativa do filme, repleta de minúcias

e referências literárias, de imbricações, de uma história dentro de outra e que por sua vez é sustentada por outra história situada na época medieval e em outro país. São tempos diversos que se interpenetram, se confundem e assinalam ao

espectador a riqueza que pode conter uma história e que por trás de um

mero acontecimento reside, ou pode residir, uma multiplicidade temporal

e espacial. Caligari nos desperta para o quão difícil é elaborar uma análise

sobre o mundo e seus fenômenos.

• A criação de um mundo fantasmagórico e artificial, com cenários pinta-

dos e acachapantes, com predomínio de ambientes repletos de sombras,

escadas e pontes, somados com as maquiagens exageradas, atuações

insinuantes dos atores, em especial de Conrad Veidt, no papel de Cesare,

fazem do filme uma angustiante visão da República de Weimar.

• O sucesso do filme se espalhou incontrolavelmente pelo mundo até os

nossos dias. A metáfora de uma sociedade produtora de sonâmbulos permanece viva, a crítica sobre a rela-ção entre autoridade e loucura também. O personagem

de Cesare ainda nos cria algum assombro; sua existência, mesmo quando

sabemos que se trata de uma figura pertencente ao universo fantástico,

é uma sombra a nos lembrar de que algo está deslocado.

• É fascinante e marcante a cena em que Cesare corre esgueirando-se pelas

paredes dos cenários como um autêntico sonâmbulo estabanado. E não poderia Wiene filmá-la de outra maneira, e por uma razão: uma sombra jamais poderia gerar outra. Não é

à toa que os ambientes de sombras anunciam o terror, e terror era o que

não faltava na República de Weimar.

30 Sesc | Serviço Social do Comércio

expressionismos

VOLTAR

Page 33: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

O médico que trabalhava em um manicômio fica transtornado quando surge um

sonâmbulo como paciente e resolve dar vazão a seu furor cientificista, testando se

um sonâmbulo pode realmente ser manipulado a ponto de cometer atos atrozes,

inclusive assassinato, tal como lera na história sueca.

O médico e o sonâmbulo se instalam em uma feira de atrações em uma pequena

cidade alemã e instauram o pânico entre seus habitantes. Depois de alguns assas-

sinatos, chega-se à conclusão de que Cesare matava e aterrorizava, mas era regido

pela mente do médico Caligari. Wiene nos surpreende com a informação de que o

jovem narrador sofre de distúrbios mentais e que o Caligari de sua história é seu

médico no hospício.

Ao final, o filme sugere duas perguntas: será que apenas a mente embaçada de um

louco é capaz traduzir nossa existência no mundo terrível em que vivemos? Sere-

mos sistematicamente condenados à manipulação superior, e que pouco seríamos

além de sonâmbulos a vagar, longe de sermos indivíduos autônomos?

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 31VOLTAR

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As mãos de Orlac

Orlac Hände

1924

110 min

P&B

Elenco: Conrad Veidt, Fritz

Kortner, Alexandra Sorina

Page 35: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Ao assistirmos a As mãos de Orlac temos a prova de que Robert Wiene não foi um dire-

tor de apenas uma obra, a icônica O gabinete do Dr. Caligari, como muitos críticos

defendem. O filme carrega uma força e uma beleza que não foram apagadas pelo

tempo. Inseri-lo em uma mostra sobre o expressionismo alemão dos anos 1920

serve para fazer justiça tanto ao autor quanto à obra em si.

As mãos de Orlac marca o reencontro da dupla Wiene/Veidt, diretor e ator de O gabinete

do Dr. Caligari. Trata-se de um filme deslumbrante, em vários aspectos impregnado

da estética expressionista. Wiene reafirma seu talento para o cinema fantástico,

tomado pela inquietação e a assombração humana.

Um pianista apaixonado pela esposa perde as mãos em um acidente e aceita participar

de uma experiência de transplante de mão, a fim de poder retomar sua bem-suce-

dida carreira como concertista. Tudo transcorre bem até que ele descobre que as

mãos transplantadas eram de um assassino. O pianista fica então transtornado e

passa a acreditar que está tendo os mesmos impulsos do antigo dono das mãos.

Quanto mais o personagem mergulha em dúvidas, mais o universo expressionista se

manifesta, o uso de sombras e elementos obscuros ficam latentes na tessitura do

filme. Apesar de resgatar o clima de terror de seu filme mais exemplar e conhecido,

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 33VOLTAR

Page 36: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Wiene se inspira muito mais em Nosferatu, de F.W. Murnau, em especial na atmos-

fera gótica e na imagética predominantemente tomada pelas sombras.

O terror está presente mais no aspecto psicológico do personagem Orlac, portanto

ele é de ordem mais subjetiva, centrado no caos em que se transforma sua mente.

Desde que estava internado no hospital, ele tem visões do assassino, que surge

envolto em nuvens, daí vem o assombro, o tormento psicológico do personagem,

que em suas visões nebulosas acredita estar cometendo assassinatos apenas por

ter adquirido as mãos de um assassino. A perturbação do personagem transforma-

-se no maior protagonista do filme, mas, assim como em Caligari, ocorre uma

manipulação a ser descoberta no final.

As interpretações dos atores ainda sofrem forte influência do estilo expressionista

de atuar. O exagero nas reações e nos gestos, como a cena em que a esposa fica

sabendo sobre o acidente do marido. O movimento acentuado dos corpos também

pode ser lembrado, já que eles verdadeiramente falam nas obras expressionistas,

e Conrad Veidt é um dos grandes mestres nessa arte de representar com o cor-

po. Dentre diversas cenas, como não destacar a que ele acorda no hospital com

um bilhete em seu colo denunciando que suas mãos eram de um assassino que

fora executado. Veidt interpreta com reações no rosto e no corpo inteiro, em um

movimento de separar/isolar suas mãos do restante de seu corpo. Só Veidt daria

tamanha significação a essa cena. A partir desse momento, inicia-se a exasperação

34 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 37: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

do personagem, perdido, enojado com suas mãos. Como tocar no corpo amado de sua

esposa e nos teclados do piano com aquelas mãos maculadas pelo crime?

O que chama atenção positivamente é o cuidado da produção. Logo no início do filme a

sequência do acidente de trem é muito bem construída. Destaca-se o ritmo criado pela

montagem, com muitos cortes, cenas rápidas, uma mise-en-scène com muitos figurantes,

uma filmagem realizada em um misto de estúdio e locação, algumas inclusive à noite,

ângulos surpreendentes, cenários com trens retorcidos muito bem realizados e fotogra-

fia impecável. Um desafio, sem dúvida, em 1924.

As mãos de Orlac é um típico filme do terror fantástico, sustentado por uma história impro-

vável e irreal, ainda influenciado por uma estética expressionista, assim como o é no

desenvolvimento de temas e na construção de personagens atormentados psicologica-

mente, sujeitos às visões assombrosas. Antes de tudo, uma obra fluente, bem filmada,

coerente com seu autor e com uma atuação preciosa de Conrad Veidt.

expressionismos

• Quando descobre que as mãos transplantadas são de um assassino, Orlac passa a minguar como sujeito e Wiene acentua seu aspecto inferiorizado con-

trastando seu corpo frágil com um cenário amplo, com um pé-di-

reito imenso, pouco uso de mobília, iluminação no centro da cena

e predomínio de sombras pelos cantos.

Page 38: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Paul Wegener

Page 39: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Paul WegenerO golem

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Paul Wegener nasceu em 11 de dezembro de 1874 e morreu em 13 de setembro de

1948. Após fazer um pequeno papel em um filme despretencioso, Wegener foi

convidado a atuar, com apenas vinte anos de idade, na companhia teatral de Max

Reinhardt, a mais expressiva da Alemanha na época. Wegener teve importante

papel nos primórdios do cinema alemão dos anos 1910. Foi roteirista e ator da

primeira versão do filme O estudante de Praga e realizou em 1917 o filme O flautis-

ta de Hamelin, em que priorizou os acabamentos exteriores dos cenários em vez

da decoração abstrata usual nas artes desse período.

No todo, sua obra é considerada irregular, marcada por um início triunfante e arre-

batador, de grande promessa artística, mas frustrante, já que não conseguiu

confirmar seu talento promissor tão esperado. Acabou sendo mais reconhecido

como ator que como diretor de cinema, apesar de ter realizado grandes traba-

lhos como diretor.

Sua derrocada aconteceu nos anos 1930, quando realizou trabalhos para os nazistas,

convertendo-se em um dos principais atores oficiais do regime totalitário implan-

tado por Hitler.

Morreu desacreditado em Berlim, três anos após a queda do regime nazista. Na tomada

de Berlim pelo exército soviético, em 1945, foi poupado por ser reconhecido por

um soldado, que pendurou na porta de sua residência uma placa onde se lia:

“Aqui vive Paul Wegener, o grande artista, amado e adorado em todo mundo.”

BIOGRAFIA

38 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

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FILMOGRAFIA

1936 | Augustus the Strong

1920 | The Golem: How He Came into the World

1917 | The Golem and the Dancing Girl

1915 | O golem

1913 | The Student of Prague

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 39VOLTAR

Page 42: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

O golem

Der Golem

1920

68 min

P&B

Elenco: Paul Wegener,

Albert Steinrük,

Lyda Salmonova

Page 43: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Antes que qualquer análise é necessária uma breve explicação sobre o título do fil-

me. Golem é um ser mítico, associado à tradição do judaísmo, particularmente à

cabala, que pode ser trazido à vida por meio de um processo mágico. O filme de

Wegener inicia com um imperador de certo reino, que parece ser da Idade Média,

baixando um decreto contra os judeus que perturbavam a ordem pública com seus

rituais místicos, ordenando que eles deixassem o reino urgentemente sob pena de

serem severamente punidos. Enquanto isso, o líder espiritual judaico prevê, ao ler

a cabala e os mapas astrais, que a posição das constelações mostra que se trata de

um momento delicado para o seu povo e vê a necessidade de chamar o golem para

defendê-lo. O líder espiritual, uma espécie de rabino, concebe rapidamente o ser de

barro inanimado, e aguarda o instante favorável do alinhamento das constelações

para poder dar vida ao seu monstro de barro, ao mesmo tempo que as negociações

com o imperador não avançam.

Por meio de um ritual eles conseguem dar vida ao ser monstruoso, um servo do povo

judeu. O rabino controla o sono do golem retirando a estrela de Davi de seu peito.

O monstro passa então a circular pelas ruas, fazer compras e ajudar nas tarefas

domiciliares. Até que o rabino resolve levá-lo a uma audiência com o imperador,

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 41VOLTAR

Page 44: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

que decidirá sobre o futuro do povo judeu. Na audiência, o rabino, com seus pode-

res mágicos, causa um desastre e o castelo começa a ruir. Com a ajuda do golem, o

palácio é poupado e o decreto contra os judeus é anulado.

O golem percebe que quando a estrela de Davi é retirada de seu peito ele adormece, e

passa a protegê-la. O problema acontece quando o monstro de barro perde o con-

trole, não aceitando mais apenas seguir ordens alheias. Apesar de toda perseguição

ao monstro de barro, Wegener nos brinda com um final sutil e singelo. O diretor não

constrói seu golem com atributos de caráter, ele não é bom ou ruim, apenas irra-

cional. O golem segue a tradição romântica alemã, herdada pelos artistas dos anos

1920. Reafirma o uso do estilo fantástico no cinema alemão, e como seu contempo-

râneo, O gabinete do Dr. Caligari, ratifica o gosto pela estética expressionista, pela

história de terror fantástica, pela interpretação exagerada e pelo uso de cenários

artificiais e assustadores, além de contar com a exuberante fotografia contrastada,

feita pelo célebre artista expressionista Karl Freund.

42 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 45: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

expressionismos

• É o próprio diretor Paul Wegener quem protago-niza o filme, no papel do golem.

• No hebraico, a palavra golem significa “tolo”,

trata-se de uma derivação da palavra gelem (matéria-prima).

• Na literatura, há diversas histórias sobre golens, e sua apari-ção pode ser algo bom, mas carregado de pro-blemas. As mesmas características do golem podem ser encon-

tradas no Frankenstein de Mary Shelley.

• Wegener filmou duas vezes O golem. A primeira versão data de

1914, já a segunda, foi lançada em 1920 e ficou imortalizada como

um dos marcos do cinema expressionista ale-mão dos anos 1920.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 43VOLTAR

Page 46: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Paul Leni

Page 47: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Paul LeniO gabinete das figuras de cera

O homem que ri

Page 48: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Leni tornou-se um pintor avant-garde aos 15 anos. Estudou na Academia de Belas-Artes

de Berlim e depois trabalhou como desenhista de cenários teatrais. Em 1913,

começou a trabalhar com a indústria de filmes alemã desenhando cenários e figu-

rinos para diretores como Joe May, Ernst Lubitsch, Richard Oswald e E.A. Dupont.

Durante a Primeira Guerra Mundial, começou a dirigir filmes como Der Feldarzt – Das

Tagebuch des Dr. Hart (1917), Patience (1920), Die Verschwörung zu Genua (1920-21)

e Backstairs (1921). A partir de 1925 desenhou prólogos curtos para estreias de

festivais de filmes em cinemas de Berlim.

Em 1927, mudou-se para Hollywood, aceitando um convite de Carl Larmmle para se

tornar diretor nos estúdios da Universal. Lá, Leni estreou como diretor com The

Cat and the Canary (1927), o qual serviu como influência para filmes de terror da

Universal e foi refilmado várias vezes. No ano seguinte, dirigiu O homem que ri,

um dos filmes mais estilizados do período do cinema mudo, um clássico aclama-

do pelos fãs do gênero.

Paul Leni morreu devido a um envenenamento, em Los Angeles, aos 44 anos.

BIOGRAFIA

46 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 49: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

FILMOGRAFIA

1929 | The Last Warning

1928 | O homem que ri

1927 | The Chinese Parrot

1927 | O gato e o canário

1926 | Rebus Film Nr. 4 (curta)

1926 | Rebus Film Nr. 5 (curta)

1926 | Rebus Film Nr. 6 (curta)

1926 | Rebus Film Nr. 7 (curta)

1926 | Rebus Film Nr. 8 (curta)

1925 | Rebus Film Nr. 1 (curta)

1925 | Rebus Film Nr. 2 (curta)

1925 | Rebus Film Nr. 3 (curta)

1924 | O gabinete das figuras de cera

1921 | Hintertreppe

1921 | Die Verschwörung zu Genua

1920 | Patience

1919 | Prinz Kuckuck – Die Höllenfahrt eines

Wollüstlings

1919 | Die platonische Ehe

1918 | Das Rätsel von Bangalor

1917 | Dornröschen

1917 | Prima Vera

1916 | Das Tagebuch des Dr. Hart

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 47VOLTAR

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O gabinete das figuras de cera

Das Wachsfigurenkbinett

1924

83 min

P&B

Elenco: Conrad Veidt,

Wener Krauss, Wilhelm

Dieterle, Emil Jannings

Page 51: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

O gabinete das figuras de cera, conforme o próprio título sugere, foi realizado ainda sob

a égide estética do caligarismo. Seu diretor constrói imensos cenários tridimensio-

nais, tipicamente expressionistas, calcados nos exageros das formas. Tal como em

O gabinete do Dr. Caligari, é em uma feira que o museu está instalado como atração;

tal feira pode ser entendida como uma metáfora do caos e da desorganização polí-

tica presentes na República de Weimar.

No filme, vemos um jovem sendo contratado por um museu de cera para escrever as

histórias de três de seus personagens: o califa Haroun Al-Haschid; Ivan, O Terrível;

e Jack, O Estripador. Nesse filme, mais uma vez o fantástico invade o cinema ale-

mão de maneira surpreendente. Paul Leni consegue reunir os três maiores atores

alemães da época (Werner Krauss, Conrad Veidt e Emil Jannings), cada um repre-

sentando uma das figuras de cera.

Os cenários tridimensionais causam uma terrível estranheza no espectador, as partes

internas do palácio são labirínticas, com escadas tortuosas e irreais que mais pa-

recem um formigueiro do que um interior palaciano. As casas, assim como seus

interiores, têm uma aparência disforme e claustrofóbica.

Enquanto a atmosfera cômica predominava no episódio do califa, a aparência sombria

e aterrorizante dá o tom no episódio dedicado a Ivan, O Terrível, interpretado por

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 49VOLTAR

Page 52: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Conrad Veidt, que utiliza o corpo todo em sua construção do personagem. Nenhum

detalhe parece fugir de Veidt: cada andar, gesto ou olhar conduz a cena e o espectador

para onde bem entender. Demonstra ser um ator que compreende com plenitude a

estética idealizada pelos realizadores expressionistas, e por isso foi um de seus ícones.

Assim como Veidt, as expressões faciais dos outros atores também são exacerbadas,

além de seus gestos nos momentos mais dramáticos da trama.

No episódio sobre Ivan, O Terrível, Paul Leni faz uso de uma temática recorrente nas obras

expressionistas, e em especial a caligarista: promover uma mistura sinistra de ciência

e misticismo, com estranhos rituais envolvendo tubos de ensaio, ampulhetas e práti-

cas de magia. O clima pesado que Leni imprime nesse episódio é salientado por um

artificialismo que beira o grotesco, com chapéus maiores do que o normal, vestuários

ornamentais, assim como a concepção dos cenários. Tais como o personagem brilhan-

temente encarnado por Veidt, todos os elementos de cena são falsos, o mal-estar se

instaura como inerente a esse episódio sobre Ivan, sua personalidade doentia parece

conferir o tom desejado pelo diretor.

Jack, O Estripador entra na trama mais como um epílogo do que como um personagem a

ter a sua história contada. Talvez Leni tenha se aproveitado de sua reconhecida imagem

assassina para realizar uma grande brincadeira com o universo onírico do cinema. Já

cansado de escrever as outras duas histórias, o personagem escritor imerge no sono e

Leni nos brinda com as imagens mais belas e enigmáticas de todo o filme: as imagens

50 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 53: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

passam a se duplicar e o personagem de Jack adquire vida para atormentá-lo, perse-

guindo sua pretendente, a filha do dono do gabinete das figuras de cera. As imagens

são impressionantes, com cenários repletos de formas geométricas, tais como em Ca-

ligari, numa atmosfera onírica, fantástica.

Paul Leni cria um curioso paralelo entre as histórias narradas até então no filme e o pró-

prio cinema, ambos manipuladores de emoções, e assim como a feira, uma diversão

barata, escapista e ilusória, um sonho que vale a pena ser vivido.

expressionismos

• O exagero permeia a estética de O gabinete das figuras de cera, tal e qual na maioria dos filmes expressio-

nistas alemães. A caracterização do personagem do califa é um

ótimo exemplo. A natureza obesa de Emil Jannings é aumentada

com enchimentos em sua roupa na região do abdome.

• A começar pelo cartaz do filme, são quatro vilões que aparecem como figuras de cera, porém apenas três foram retratados. Reza a lenda que a quarta figu-

ra, Rinaldo Rinaldini, personagem do romance do escritor alemão

Christian August Vulpius, não teve sua história contada por falta de

dinheiro para sua produção.

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O homem que ri

The Man who Laughs

1928

110 min

P&B

Elenco: Conrad Veidt, Mary

Philbin, Olga Baclanova,

Sam De Grasse

Page 55: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Apesar de O homem que ri ter sido produzido nos Estados Unidos pela Universal Stu-

dios, em 1928, o filme conserva ainda traços característicos do expressionismo

alemão. Seu diretor já havia filmado na Alemanha o clássico O gabinete das figuras

de cera, e morreu um ano depois de realizar essa madura obra de arte.

O lastro expressionista já acontece na própria escolha da temática: um homem com

o rosto deformado. Apesar de não ser um filme de terror, O homem que ri trata em

especial da criação de um monstro. O mais impressionante no filme é o fato de a

monstruosidade não ser do monstro, mas sim de quem o deformou. Durante o fil-

me, esse personagem luta contra a própria imagem, já que um homem que parece

estar rindo o tempo todo é inevitavelmente trágico.

O filme baseia-se na obra homônima do escritor romântico francês Victor Hugo. A es-

colha de Leni por filmar essa história de traços humanistas profundos muito revela

sobre sua atração pelos personagens marginalizados, transformados brutalmente

em monstros e tratados como se fossem restolhos pelo poder estabelecido.

Bem afeito ao estilo expressionista, o personagem deformado pelo riso, vivido por Veidt,

é acolhido por um filósofo e torna-se um artista mambembe. Veidt sobressai mais

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 53VOLTAR

Page 56: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

uma vez com seu talento para a arte da representação e tal como fez em As mãos de Orlac

e O gabinete do Dr. Caligari dá ao personagem um magnetismo surpreendente.

Aqui, o espaço da feira continua a seduzir os cineastas alemães dos anos 1920, e mais

uma vez o terror transformado tanto em espetáculo quanto em um meio de sobre-

vivência. O ambiente de feira novamente evoca o caos e simboliza a desorganização

social. Leni faz uso de câmeras em movimento, cenas com muitos figurantes e cor-

tadas muito rapidamente para evidenciar uma atmosfera confusa, enfim, um grande

circo de horrores.

Como grande cenógrafo, Paul Leni, aluno de Max Reinhardt, abusa na construção dos

cenários artificiais primorosos, que tinham beleza sim, apesar de não abrir mão de

seus aspectos mais sinistros, típicos da concepção expressionista, mas dispensando o

exagero estilístico marcadamente caligarista.

Há uma visível e bem-resolvida isometria estilística entre o realismo norte-americano e

o expressionismo alemão. A cena final, por exemplo, está repleta de cenas típicas do

cinema de aventura de Hollywood, mas os cenários e as interpretações dos atores

não omitem sua genética expressionista. Além dessa obra, pode ser mencionado

como outro exemplo bem-sucedido dessa mistura estilística o filme Aurora (1927),

de F.W. Murnau.

54 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 57: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

• A atuação de Conrad Veidt no papel do bizarro protagonista é um

dos seus trabalhos mais marcantes. Cabe mencionar que sua carac-

terização em O homem que ri impressionou de tal modo o universo

artístico que é impossível não lembrar sua visível in-fluência na construção estética da maquiagem do personagem Coringa, vivido por Jack Nicholson, 70 anos depois, no filme Batman, dirigido por Tim Burton.

• Esta foi uma das primeiras produções da Uni-versal de transição do cinema silencioso para sonoro, trazendo como trilha sonora When Love Comes Stealing,

de Walter Hirsch, Pollack Lew e Rapee Erno.

Paul Leni dirige os atores com métodos nitidamente calcados no expressionismo: atuações

gestuais exageradas e movimentos bruscos, rostos comunicativos com olhos esbuga-

lhados cheios de angústia permeiam o filme. Uma das características mais evidentes

em O homem que ri é a do contraste entre a aparência e a essência. O personagem de

Conrad Veidt tem uma essência bondosa, que não coincide com sua aparência mons-

truosa. Outra dicotomia construída por Paul Leni foi estabelecida entre o clima de agi-

tação da rua e a monotonia da corte. Enquanto na feira imperava a desordem, do outro

lado, dentro do palácio da rainha, predominava uma música de câmara sonolenta.

Em O homem que ri essas dicotomias são constantes, os animais assumem características

mais humanas, enquanto os homens tomam atitudes mais animalescas. O nome do

cachorro é Homo, a duquesa mais parece uma vampira à espreita de sangue, o filósofo

tem o curioso nome de Ursus. Para o espectador, tudo soa muito estranho, em especial

essas inusitadas inversões que ocorrem sistematicamente no filme.

Ao final, como na maioria dos filmes expressionistas, o bem supera o mal, como se a

ficção tivesse a missão redentora de salvar um mundo que está em frangalhos, e

Paul Leni não abre mão desse poderoso recurso dramatúrgico de colocar a plateia

a seu favor.

expressionismos

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 55VOLTAR

Page 58: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

F.W. Murnau

Page 59: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

F.W. Murnau Fausto

Nosferatu

A última gargalhada

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Friedrich Wilhelm Murnau, ou simplesmente F.W. Murnau, nascido Friedrich

Wilhelm Plumpe, foi um dos mais importantes realizadores do cinema mudo,

do cinema expressionista alemão e do estilo Kammerspiel (mais detalhes so-

bre o estilo, veja página 69).

Nosferatu, de 1922, uma adaptação pessoal da novela Drácula, de Bram Stoker,

é o filme mais conhecido da sua obra (em boa parte perdida), juntamente

com A última gargalhada, de 1924 e Fausto, de 1926. Em 1926, emigrou para

Hollywood, onde, antes de morrer prematuramente aos 43 anos, realizaria o

aclamado Aurora, de 1927. Vários de seus filmes estão perdidos. O seu último

trabalho, Tabu (correalização com Robert Flaherty), foi filmado nos mares do

sul, longe dos grandes estúdios e estreado postumamente. Atualmente é um

filme cultuado, e marca uma quebra com a estética dos seus filmes anteriores.

BIOGRAFIA

58 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 61: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

FILMOGRAFIA

1931 | Tabu

1930 | O pão nosso de cada dia

1928 | 4 Devils

1927 | Aurora

1926 | Fausto

1925 | Tartufo

1924 | A última gargalhada

1924 | Die Finanzen des Großherzogs

1923 | Die Austreibung (curta)

1922 | Phantom

1922 | Der brennende Acker

1922 | Nosferatu

1922 | Marizza, genannt die Schmuggler-Madonna

1921 | Schloß Vogeloed

1921 | Sehnsucht

1921 | Der Gang in die Nacht

1920 | Abend – Nacht – Morgen

1920 | Der Januskopf

1920 | Der Bucklige und die Tänzerin

1920 | Satanas

1919 | Der Knabe in Blau

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 59VOLTAR

Page 62: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Fausto

Faust

1926

118 min

P&B

Elenco: Emil Jannings,

Camilla Horn, Wilhelm

Dieterle

Page 63: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Se Fausto for comparado a A última gargalhada, Nosferatu e Aurora, três outras obras

de Murnau, sua potência estética pode ficar abalada. Definitivamente, Fausto não

é a obra-prima desse cineasta fantástico, que morreu prematuramente aos 42

anos, mas configura-se como característica do cinema alemão dos anos 1920 e da

sua estética expressionista, e situa-se muito acima de tantas obras realizadas em

sua época.

Fausto é um velho cientista seduzido pelo demônio, Mefistófeles, interpretado por

Emil Jannings. Primeiramente, o cientista obtém poderes para curar a peste, mas

como esses poderes vinham das forças obscuras, ele não conseguia curar perante a

imagem da cruz e logo o povo o vê como encarnação do diabo e o rechaça. Depois,

Fausto é seduzido para ter de volta a sua juventude, e o diabo lhe apresenta a ima-

gem de uma linda princesa e lhe promete intervir para fazê-la ficar apaixonada por

ele. Depois de experimentar novamente a juventude, Fausto não quer mais voltar

a ser um velho e faz um pacto eterno, vendendo sua alma. Entediado, Fausto pede

ao diabo para voltar para sua aldeia, onde se apaixona pela bela Gretchen. Ao se

apaixonar por ela, Fausto perde o controle dos seus sentimentos, mata o irmão da

amada e é obrigado a fugir deixando-a grávida e desonrada em sua cidade. Toda

essa tragédia foi arquitetada pelo diabo.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 61VOLTAR

Page 64: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Como em todo filme alemão dos anos 1920, o bem triunfa sobre o mal. Não se trata necessa-

riamente da vitória do mocinho, tal como o personifica o cinema de Hollywood, mas sim

um sucesso do ideal sobre as pessoas. Essa distinção é fundamental, porque não existe

no cinema alemão a imagem do mocinho redentor que personifica o bem, crucial é que o

bem supere o mal. Trata-se da supremacia do bem coletivo sobre o indivíduo.

O tema do endemoninhamento é mais uma vez encarnado nos filmes alemães dos anos

1920. A atmosfera fantástica também domina essas histórias, inclusive com a perso-

nificação humana do diabo salientando seu aspecto mágico. Se pensarmos no filme

O sétimo selo, de Ingmar Bergman, podemos enxergar nítidas marcas da estética de

Fausto, em especial, a construção da imagem do inferno na Terra e a opção em situar a

história na Idade Medieval. Mas, evidentemente, Bergman, produzindo sua obra trin-

ta anos depois, aprofundou o tema da contradição inerente à ideia de Deus e do diabo.

Apesar de não flertar com a estética caligarista, em Fausto observa-se ainda assim uma

preservação do artificialismo da imagem. Surpreendentemente, esse filme se desen-

volve como uma fantasia, um delírio, e se afasta da narrativa realista de A última

gargalhada, mas aproxima-se da tragédia. Essa tragédia, em parte, está explicitada

na narrativa, na mise-en-scène e na interpretação dos atores, mais exagerada do que

em outras obras de Murnau. Os traços medievalistas, tão típicos das obras expressio-

nistas, encontram eco também nesse filme, no decór, nos figurinos e na temática do

diabo influindo na vida humana.

62 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 65: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

• Murnau imprime em seu Fausto algumas imagens impressionantes.

Trabalha com a superposição de imagens, técnica muito utilizada

por ele em outros filmes, que cria no espectador um clima vertiginoso, como se uma imagem só não bas-tasse, e outras clamassem por estar ali. Efeitos de ventos e de

seres voadores fantásticos também são gritantes no filme.

• A fotografia de Carl Hoffmann se sustenta pelo excesso de preto,

e a atmosfera dos ambientes é sempre sinistra. O desequilí-brio do preto é fundamental nessa obra: ele ajuda

a direcionar o olhar do espectador para elementos de cena e per-

sonagens com os tons de cinza e branco. Claro que o predomínio

do preto muito nos diz sobre o domínio do diabo em nosso mundo

terrestre, que impede uma nítida visão do todo. O cenário de Wal-

ter Rohrig e Robert Herlth também colabora para formar uma iden-

tidade imagética: o quarto do velho cientista Fausto é entulhado

de livros, assim não conseguimos distinguir com clareza o espaço,

que apenas nos parece soturno e infeliz.

Já a ideia do Kammerspiel, implementada em A última gargalhada por Murnau dois anos

antes, não foi levada em consideração em Fausto. Há muita utilização de diálogos por

meio de intertítulos e a câmera também não se movimenta tanto, apenas em poucas

cenas. O realismo também é abandonado, o universo fantasioso e fantástico predomi-

na sobremaneira.

Em Fausto, nota-se a influência do romantismo alemão do século 19, a começar pela es-

colha de Murnau por realizar uma adaptação da obra mais célebre de Goethe, escritor

ícone do romantismo alemão. Essa herança do romantismo no expressionismo se faz

presente não só fisicamente, na produção das imagens, mas também é de ordem espi-

ritual, incrustada e firme, tal como a marca inconteste de um carimbo.

Como um típico filme expressionista, ele explora cenários construídos, artificiais. Até a na-

tureza é concebida de maneira ornamental e reforça o artificialismo de Fausto. Tudo,

incluindo também o inferno, surge, na tela como um ambiente que nos suscita um

estranhamento. A imagem final que fica de Fausto é a de uma experiência sensorial,

mítica, irreal e delirante.

expressionismos

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 63VOLTAR

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Nosferatu

1922

94 min

P&B

Elenco: Max Schreck,

Alexander Granach,

Gustav von Wangenheim,

Greta Schröder

Page 67: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Em 1922, o mundo se renderia ao talento de F.W. Murnau. Nosferatu tornou-se um dos

filmes mais influentes da história do cinema com uma fábula de terror baseada em

uma adaptação não autorizada da famosa obra Drácula, de Bram Stoker.

O filme narra a vida de um corretor de imóveis jovem e ambicioso que vende uma casa

abandonada ao estranho Conde Orlock, um vampiro que tem como objetivo fazer

como presa a esposa do corretor. Orlock sairá da Transilvânia para ser vizinho de-

les e conquistar de vez a mulher pretendida. Mas, no caminho entre a Transilvânia

e a grande casa adquirida, o Conde Orlock deixa um rastro de destruição e morte,

o que faz todos pensarem que se trata de uma nova peste que assola a região.

Murnau é um dos primeiros diretores a se desgarrar dessa obsessão pelos cenários, mas

o apego à faceta sinistra e mórbida dos enredos expressionistas ele ainda mantém

nesse poderoso filme, que o alça entre os grandes criadores do cinema alemão.

Sem dúvida, a atmosfera fantástica de Nosferatu o aproximaria à concepção espiritual

do expressionismo, em detalhes expressivos como o apreço decadentista medieval

na figura diabólica do Conde Orlock, no abuso fotográfico das sombras e na inter-

pretação hiperbólica dos atores.

O papel da maquiagem é fundamental na construção imagética do filme, já que con-

fere expressividade na atuação dos atores. Max Schreck, o intérprete do Conde

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 65VOLTAR

Page 68: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Orlock, muito faz valer dessa maquiagem para salientar seu aspecto sinistro. O olhar

também se configura como um poderoso recurso cênico: olhos esbugalhados, típicos

da estética expressionista, realçam a atmosfera lúgubre da história.

Apesar de o elemento mórbido ser muito acentuado, Murnau consegue extrair de sua

mise-en-scéne momentos poéticos e belos. Com uma simples, rápida e singela imagem

de um galo cantando, ele nos revela o nascer do dia e a impossibilidade da fuga de

Orlock, por exemplo. Para Murnau, até as criaturas mais sinistras se perdem por amor.

Inebriado por seu sentimento pela bela moça, Orlock esquece o nascer do dia e ao

olhar para os raios solares evapora como fumaça no ar.

Mesmo trabalhando em locações em vez de cenários, a obra de Murnau ainda guarda

algumas características do período caligarista, mas o parentesco pode ser admitido

mais no espírito do que na parte visual do filme. Talvez as semelhanças físicas que

mais nos saltam aos olhos sejam a atuação de Max Schreck como Nosferatu e o uso de

sombras como artifício cênico.

Esse impressionante Nosferatu de Murnau serviu de inspiração a diversos filmes de hor-

ror, em especial os de vampiros e de outros monstros fantásticos, que se tornaram

um filão significativo na indústria do cinema em todo o mundo, em especial na de

Hollywood. Mais de 50 anos depois, em 1979, um dos maiores representantes do novo

cinema alemão, Werner Werzog, realizou uma pródiga homenagem ao imortal gênio

de Murnau, com uma refilmagem desse memorável clássico.

66 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 69: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

expressionismos

• Apesar de a história do filme ser descaradamente inspirada na obra

de Bram Stoker, a produção não tinha os direitos para a filmagem,

portanto não o credita. Mas para quem assiste ao filme não resta

dúvida, não há referências ou inspiração, mas sim adaptação ao pé da letra do famoso Conde Drácula, de Stoker.

• O trabalho corporal de Max Schreck também funciona na composi-

ção do personagem. Gestos lentos, passos curtos e corpo curvado

fazem parte do escopo do personagem, além dos braços colados ao

corpo, como se ainda estivessem presos ao caixão. Nosferatu tem

uma aparência frágil, esquelética, mas o seu poder vem da hipnose, por isso também um enfoque necessá-rio nos olhos, parte do corpo onde se localiza o exercício de seu poder.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 67VOLTAR

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A última gargalhada

The Last Laugh

1924

91 min

P&B

Elenco: Emil Jannings

Page 71: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

A última gargalhada talvez seja uma das mais sublimes e impecáveis obras de Murnau.

Com esse filme, o diretor alemão afasta-se mais substancialmente da estética cali-

garista e reafirma a tendência do Kammerspiel, com a utilização de mais locações

do que de cenários, enredos mais realistas do que fantásticos, poucos intertítulos e

movimentos de câmera ousados e bem mais rebuscados, aprofundando o estilo já

apontado em Nosferatu, dois anos antes.

Com Murnau o expressionismo dilata-se ao libertar o cinema alemão do esteticismo

do caligarismo, desviando-se para uma vertente mais realista, mas sem abrir mão

do uso da metáfora social e humana, típica da verve expressionista. Foi o que acon-

teceu com este filme. Do roteiro à montagem, A última gargalhada vai deixando

para trás o caligarismo. A começar pelo excepcional roteiro de Carl Mayer, o mais

expressivo escritor alemão para cinema dos anos 1920. Logo na primeira sequên-

cia, somos tomados por uma profunda admiração pelo velho porteiro, interpretado

por Emil Jannings, que apesar da chuva torrencial, dedica-se como um novato a

recolher as bagagens dos clientes que chegam ao hotel, mas após carregar um

enorme e pesado baú senta para descansar um pouco. O gerente do hotel vê a cena

e resolve que ele não tem mais condições de trabalhar na função, transferindo-o

para a função de servente do banheiro masculino.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 69VOLTAR

Page 72: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Murnau elege o elegante uniforme do porteiro, em especial o seu pesado casaco,

como o objeto a simbolizar sua autoestima. Existe todo um cuidado ao filmar

essa peça do vestuário, de modo a relacionar a decadência profissional com o

seu uniforme.

Lotte H. Eisner, a maior especialista em filmes alemães dos anos 1920, escreveu com seu

conhecimento apurado que

Mayer e Murnau se empenham nessa tragicomédia que é o destino de um por-

teiro de hotel, orgulhoso de sua libré engalanada, admirado pela família e pelos

vizinhos do pátio interno como se fosse um general. Tendo ficado muito velho

para carregar bagagens pesadas, ele é removido e encarregado dos lavatórios

dos homens; precisa, pois, trocar sua roupa de gala por um simples avental

branco. A família sente-se desonrada, ele se torna motivo de escárnio dos vizi-

nhos, que descontam assim a adulação que prodigalizaram outrora. Trata-se de

uma tragédia alemã por excelência, que não se compreende senão na Alemanha,

onde o uniforme é rei, é Deus. Um espírito latino tem grande dificuldade em

conceber seu alcance trágico.9

A estruturação do roteiro é fundamental no filme. Sem utilizar intertítulos, Carl Mayer

constrói sequências bem definidas, com ideias claras. Primeiro, a relação do persona-

gem com o trabalho. Depois, com os vizinhos e a família. No dia seguinte, ele volta ao

trabalho e recebe o comunicado da perda da função e que exercerá outra. Sequência

a sequência, a decadência do porteiro vai se tornando um fato indissolúvel; o roteiro

vai esmiuçando a dor e a tristeza desse homem.

70 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 73: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

expressionismos

• Uma das sequências mais criativas e surpreendentes de A última

gargalhada é a do casamento da filha do porteiro, que acontece no

mesmo dia de sua mudança de função no hotel. Com um misto de

felicidade e tristeza, mas ainda mantendo o uso do uniforme para

os vizinhos e familiares após roubá-lo no hotel, o personagem de

Emil Jannings bebe demais e dorme sentado. Murnau então pene-

tra nos desejos mais profundos do personagem, reconstruindo em

sonho seu trabalho como porteiro, a levantar baús pesadíssimos

como se fossem plumas, jogando-os para o alto, fazendo malaba-

rismos impressionantes e sendo aplaudido por uma multidão que

reconhece seu incrível talento como porteiro. Murnau nos mostra

nessa sequência uma beleza onírica e a intimidade desse perso-

nagem que só queria ser reconhecido profissionalmente. Mas o

mais incrível nessa cena é a sua construção. Por um breve momento Murnau deixa que os sonhos do por-teiro nos guiem a uma atmosfera surreal, levan-do-nos aos seus pensamentos mais recônditos. Murnau faz a câmera de Freund realizar um bailado inebriante e

nos conduz ao inconsciente desse homem simples e cheio de vida

interior.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 71VOLTAR

Page 74: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Um dos pontos mais fascinantes do filme é justamente o trabalho do ator Emil Jannings,

preciso da primeira à última cena. A direção de Murnau aposta todas as suas fichas

no trabalho de Jannings, que enfrenta a tarefa com muito talento, explorando cada

olhar e gesto que lhe cabe. Jannings consegue atuar com todo o seu corpo, cativan-

do e atraindo a atenção do espectador. Quando veste novamente o garboso uni-

forme de porteiro e tenta demover o gerente de sua decisão, entretanto, ele soma

mais uma derrota. Depois, enquanto um funcionário começa a tirar seu uniforme,

a face de Jannings nos diz tudo, parece que estão extraindo sua pele, e, de tabela,

sua alma e a dignidade. Está tudo ali, representado no corpo de Jannings.

No decorrer do filme, o andar do ex-porteiro ralenta e o seu corpo se curva. A fotogra-

fia de Karl Freund também acompanha essa degradação do personagem: de início

radiosa, fulgurante, depois, há predominância das sombras, a luz fica progressiva-

mente mais rarefeita. Uma cena a qual vale mencionar é quando o novo uniforme

lhe é dado e ele se dirige lentamente da luz para a escuridão do subterrâneo ba-

nheiro masculino. Freund constrói essa cena magnificamente, e Murnau só a corta

quando Jannings mergulha em definitivo nas trevas do seu futuro inferno.

72 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 75: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

O espetáculo visual ofertado por Murnau continua na sequência posterior, quando

vemos o porteiro indo para o trabalho e o contraste entre a sua visão do mundo

distorcida pela bebida com a nossa de espectador, nítida. Essa cena é totalmente

inspirada no expressionismo, em que prevalece não só o olhar fantasmagórico do

personagem, mas o situa como indivíduo em mundo demoníaco e trágico.

A última gargalhada se constitui em uma obra máxima do cinema, de um diretor que

como poucos conseguiu dignificar o cinema como arte. E o resultado imediato foi

o convite recebido por Murnau para filmar em Hollywood. E o resultado foi outra

obra-prima, Aurora.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 73VOLTAR

Page 76: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

Fritz Lang

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Fritz LangMetropolis

Page 78: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

BIOGRAFIA

Considerado um dos mais famosos nomes da escola do expressionismo alemão, Fritz

Lang nasceu em Viena, na Áustria, filho de um engenheiro civil, que desejava que

ele seguisse a mesma carreira. Aos 21 anos mudou-se para Munique (1911), onde

estudou pintura e escultura.

Participou na Primeira Guerra Mundial e foi gravemente ferido em um dos olhos. No

hospital, onde permaneceu por longo tempo, começou a escrever roteiros para

Joe May, os quais eram dotados de um forte grafismo, no campo do fantástico e

do demoníaco.

A efervescência cultural, política e social da Berlim do pós-guerra se reflete nas suas pri-

meiras obras. Em 1919, estreou na direção com um filme chamado Halbblut, que

hoje se perdeu e acerca do qual se sabe muito pouco. Alcançou o primeiro sucesso

com Os espiões, do mesmo ano.

Em 1921, casou-se com a roteirista Thea Von Harbou, que escreveu os argumentos de

quase todos os filmes da primeira fase de sua carreira. As películas que Lang

dirigiu ainda na fase do cinema mudo ficariam para a história como alguns dos

maiores expoentes do expressionismo alemão.

A crítica, que unanimemente tinha enaltecido os seus filmes alemães, era agora tam-

bém quase unânime a subvalorizar as obras que realizava nos Estados Unidos,

argumentando que Lang teria se subjugado aos produtores norte-americanos,

desperdiçando talento em filmes comerciais. Só na década de 1950 se percebeu

a injustiça, quando uma boa parte dessa crítica começou a reconhecer a grande

qualidade da maioria dos filmes dirigidos pelo cineasta alemão em Hollywood.

Ele foi um dos primeiros cineastas a dirigir Marilyn Monroe no filme Só a mulher

peca, de 1952. Atuou ainda no filme O desprezo (1963), de Jean-Luc Godard. Logo

voltaria para os Estados Unidos, onde morreu.

76 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

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FILMOGRAFIA

1960 | A jornada para a cidade perdida

1960 | Os mil olhos do Dr. Mabuse

1959 | O sepulcro indiano

1959 | O tigre da Índia

1956 | Suplício de uma alma

1956 | No silêncio de uma cidade

1955 | O tesouro de Barba Rubra

1954 | Desejo humano

1953 | Os corruptos

1952 | Só a mulher peca

1952 | O diabo feito mulher

1947 | O segredo da porta fechada

1946 | O grande segredo

1945 | Almas perversas

1944 | Um retrato de mulher

1944 | Quando desceram as trevas

1943 | Os carrascos também morrem

1941 | O homem que quis matar Hitler

1941 | Conquistadores

1940 | A volta de Frank James

1938 | Casamento proibido

1937 | Vive-se uma só vez

1936 | Fúria

1933 | O testamento do Dr. Mabuse

1931 | M, o vampiro de Dusseldorf

1928 | Os espiões

1927 | Metropolis

1924 | A vingança de Kriemhilde

1924 | Os Nibelungos – A morte de Siegfried

1922 | Dr. Mabuse, der Spieler – Ein Bild der Zeit

1921 | A morte cansada

1921 | Corações em luta

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 77VOLTAR

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Metropolis

1927

124 min

P&B

Elenco: Rudolf Klein-Rogge,

Brigitte Helm, Gustav

Fröhlich, Alfred Abel

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Metropolis é sempre lembrado como um filme conciliador, uma obra que busca um

mundo harmônico entre empregados e patrões. Apesar dessa crítica ainda ser

coerente, o que mais marcou esse trabalho visionário e ousado de Fritz Lang foi

o seu apuro visual, traço típico da estética expressionista.

A magnitude visual de Metropolis, produzido em 1927, é assustadora, até para os

olhos do século 21. Fritz Lang havia visitado Nova York e ficara impressionado

com o cosmopolitismo e os prédios modernos e altos. A maquiagem também

merece destaque, as faces dos ricos destacam-se pela limpidez e retidão, as dos

operários salienta a dureza de suas vidas. Por sua vez, o cientista, com seu cabe-

lo desgrenhado, explicita sua personalidade volúvel, pronto a ser seduzido pelo

poderoso dono da cidade.

A fotografia do mestre Karl Freund colabora na concepção de Lang desse mundo belo

na superfície, mas triste em suas profundezas. Freund lança mão de tomadas de

cenas realizadas em mosaico, com a projeção de vários olhos, rostos e elementos

da modernidade que tão bem espelham a sensação vertiginosa impressa na nar-

ração de Lang, efeito que também utilizou em A última gargalhada, de Murnau.

Em alguns momentos do filme, a alucinação das imagens parece dar a imprecisão

necessária para a sequência continuar.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 79VOLTAR

Page 82: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

A história se passa no século 21, numa grande cidade governada com mão de ferro por

um poderoso empresário. Seus colaboradores são de classe alta e vivem em um lindo

jardim, tal como Freder, único herdeiro do líder de Metropolis. Já os trabalhadores são

escravizados pelas máquinas, e condenados a trabalhar e viver em galerias no subsolo

da cidade. Entre os operários, destaca-se a jovem Maria, que conclama os trabalhadores

a reivindicar seus direitos. Metropolis demonstra uma preocupação crítica com a meca-

nização da vida industrial nos grandes centros urbanos, questionando a importância do

sentimento humano, perdido no processo. Como pano de fundo, a valorização da cultu-

ra, expressa no filme pela tecnologia e, principalmente, pela arquitetura.

Em Metropolis há uma opção clara de Lang pelo espetáculo, antes de tudo, um espetáculo

visual, incontestavelmente imagético. O filme não se sustenta propriamente no de-

senvolvimento dos personagens. Mas, o que está realmente em jogo é o desequilíbrio

entre as classes. Lang prefere assumir um discurso social, coletivo. O diretor vê o

mundo como um lugar de extremos inconciliáveis: patrão contra operários; a huma-

nização contrastada à robotização; o patrão humano e o desumano; solo e subsolo; o

pai e o filho; Maria humana e Maria robô.

Apesar desses deslizes ideológicos, Metropolis se afirma ainda hoje como uma obra visual-

mente muito bem-acabada, uma produção ousada e que ratificou o nome de Fritz Lang

como um cineasta importante para os estudiosos do cinema. Poucos anos depois, Lang

viria a realizar M, o vampiro de Dusseldorf, uma obra magnífica, que muitos apontam

como premonitória do nazismo, que já estava batendo à porta da Alemanha.

Notas80 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

Page 83: Catálogo Sombras que Assombram (PDF) - Sesc

expressionismos

• Metropolis carrega consigo uma marca registrada do expressio-

nismo, em especial do caligarismo, que pode ser visto no arti-

ficialismo dos cenários. Apesar disso, em Metropolis não acontece a distorção dos cenários, mas sim o predomínio das linhas retas e um exagerado ar-tificialismo modernista. Tudo nele é construído. Há uma

ambiência característica do fantástico, uma preocupação em in-

corporar intervenções e criações científicas no enredo, tais como o

robô construído à imagem e semelhança da líder operária Maria.

• A interpretação dos atores é típica da estética expressionista, os gestos bruscos e a encenação, quando o corpo todo do ator é colocado à disposição do diretor em busca do sentido almejado. Os movimentos cor-

porais do dono da cidade expressam a dureza e a frieza de sua

inflexibilidade, já os movimentos rápidos de seu filho espelham

sua angústia em direção a uma maior harmonia entre os homens,

assim como o seu urgente senso de justiça.

• Ao conceber sua história no futuro, Fritz Lang e Thea Von Harbou

instauram uma profecia sombria de uma mecanização social exa-

cerbada, de um mundo dividido, rachado, onde poucos se diver-

tem, fazem esportes, enquanto a maioria trabalha insone, como

máquina, para sustentar os poucos privilegiados. No final do fil-

me, Lang promove a necessária união entre as classes antagônicas e aceita a possibilidade da confraternização, sendo chamado pejorativamente de “con-

ciliador” por vários críticos e artistas.

• Hitler admirava tanto Lang que o convidou para ser o cineasta oficial do nazismo. De imediato, o cineasta arrumou suas malas e partiu para Hollywood, onde faria uma bela carreira. Sua esposa, a ro-

teirista Thea Von Harbou, preferiu ficar e aderir ao projeto mega-

lômano de Hitler.

Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 81VOLTAR

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Referências

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LAWSON, John Howard. El processo creador del filme. Havana: Arte y Sociedad, 1986.

Notas

1 Cardinal (1988).

2 Hobsbawn (1997, p. 16).

3 Todorov (2008. p. 31).

4 Canepa (2008).

5 Eisner (2002, p. 17).

6 Cardinal (1988, p. 25).

7 Moises (2004, p. 181).

82 Sesc | Serviço Social do Comércio VOLTAR

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Sombras que assombram | O expressionismo no cinema alemão 83VOLTAR

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Este catálogo foi produzido com as fontes Oranda BT, Bahiana e HVD Bodedo. Capa em papel duodesign 250 g, miolo em

papel couche matte 150 g.

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