catalogação de documentos musicais escritos

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UNIVERSIDADE DE ÉVORA Mestrado em Ciências Documentais CATALOGAÇÃO DE DOCUMENTOS MUSICAIS ESCRITOS UMA ABORDAGEM À LUZ DA EVOLUÇÃO NORMATIVA Maria Clara Rabanal da Silva Assunção Dissertação de Mestrado em Ciências Documentais apresentada à Universidade de Évora. Esta dissertação não inclui as críticas e sugestões feitas pelo júri. Orientadores: Prof. Doutor Rui Vieira Nery Prof. Doutor Rogério Santos 2005

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  • UNIVERSIDADE DE VORA

    Mestrado em Cincias Documentais

    CATALOGAO DE DOCUMENTOS MUSICAIS ESCRITOS UMA ABORDAGEM LUZ DA EVOLUO NORMATIVA

    Maria Clara Rabanal da Silva Assuno

    Dissertao de Mestrado em Cincias Documentais

    apresentada Universidade de vora.

    Esta dissertao no inclui as crticas e sugestes feitas pelo jri.

    Orientadores: Prof. Doutor Rui Vieira Nery

    Prof. Doutor Rogrio Santos

    2005

  • UNIVERSIDADE DE VORA

    Mestrado em Cincias Documentais

    CATALOGAO DE DOCUMENTOS MUSICAIS ESCRITOS UMA ABORDAGEM LUZ DA EVOLUO NORMATIVA

    Maria Clara Rabanal da Silva Assuno

    Dissertao de Mestrado em Cincias Documentais

    apresentada Universidade de vora.

    Esta dissertao no inclui as crticas e sugestes feitas pelo jri.

    Orientadores: Prof. Doutor Rui Vieira Nery

    Prof. Doutor Rogrio Santos

    2005

  • Dedico estes trs anos de trabalho a todos aqueles que me incentivaram com o seu apoio e com a sua confiana: Aos meus orientadores com quem aprendi muito e que me ajudaram a pr alguma ordem no labirinto do meu esprito. Aos meus colegas e amigos (alguns so ambas as coisas) pela minha ausncia e pela sua presena. No C.E.M., uma palavra especial para a Slvia, que identificou e catalogou os manuscritos da Lauriane mesmo a tempo de eu os poder usar. minha famlia, claro, de quem andei to arredada durante tempo de mais. As minhas viagens Sibria acabaram... Uma nota final para aqueles felizmente poucos que estavam espera que eu falhasse. Desiludi-los foi para mim um estmulo nos momentos de maior desnimo. Foi com esse doce pensamento que me algemei ao computador em muitas tardes soalheiras e convidativas das trs ltimas Primaveras.

    Em Lisboa, aos 11 dias do ms de Abril do ano da Graa de 2005

    Last but not least... ao Jorge. Por tudo. Agora a tua vez...

  • O melhor da msica no est escrito na partitura. (Gustav Mahler)

  • WRITTEN MUSIC CATALOGUING: AN APPROACH UNDER THE NEW STANDARD DEVELOPMENT

    ABSTRACT

    This study results from the knowledge of the insufficiency in standards and rules

    used for the identification and description of written musical documents. Enlightened by

    the new standard development, particularly the Functional Requirements for Bibliographic

    Records (FRBR) and recent studies on the concept of a work and bibliographic

    relationships, it must achieve an equilibrium between the music cataloguing rules normally

    used on libraries, much generalist, and the rules usually used by musicologists for the

    description of the same documents, particularly RISM rules, much specific an inaccessible

    to a less specialized public. Some proposals are made in order to contribute to the current

    revision of FRBR, ISBD(PM) and UNIMARC format for music. The final result is

    expectable to be a description model according to the practice and the spirit to the library

    cataloguing, but detailed enough to result in a useful tool to musicians and musicologists.

    The model was tested in a sample of bibliographic records from the opera Lauriane,

    composed by Augusto Machado.

    CATALOGAO DE DOCUMENTOS MUSICAIS ESCRITOS: UMA ABORDAGEM LUZ DA EVOLUO NORMATIVA

    RESUMO

    Este estudo resulta da constatao da insuficincia das normas e regras utilizadas

    para a identificao e descrio de documentao musical escrita. luz da evoluo

    normativa, em particular, dos Requisitos Funcionais dos Registos Bibliogrficos e de

    estudos recentes sobre o conceito de obra musical e relaes bibliogrficas, pretende-se

    conseguir um equilbrio entre as regras de catalogao de msica usadas habitualmente

    nas bibliotecas, demasiado generalistas, e as regras usadas normalmente pelos

    musiclogos para a descrio das espcies que so objecto dos seus estudos, em

    particular as regras RISM, demasiado especficas e inacessveis a um pblico menos

    especializado. Fazem-se algumas propostas que visam contribuir para a reviso em

    curso dos FRBR, da ISBD(PM) e do formato UNIMARC para a msica. O produto final ,

    espera-se, um modelo de descrio conforme s prticas e ao esprito subjacente

    catalogao nas bibliotecas mas suficientemente detalhado para resultar num

    instrumento til para msicos e musiclogos. O modelo testado numa amostra de

    registos bibliogrficos da pera Lauriane de Augusto Machado.

  • SUMRIO

    I VOLUME INTRODUO 1

    PARTE I

    CAPTULO I O percurso das normas de descrio para documentos

    musicais 8

    CAPTULO II Os novos desenvolvimentos tericos 17

    1. O conceito de obra 20

    1.1. Obra e expresso 21

    1.2. Obra e manifestao 24

    2. Relaes bibliogrficas 26

    3. O utilizador e a pesquisa 30

    4. Os FRBR 31

    5. Aplicao dos FRBR a bases de dados bibliogrficos:

    catalogao centrada na obra 42

    5.1. AustLit Australian Literature Gateaway 42

    5.2. Variations2 42

    5.3. MusicAustralia 44

    5.4. Virtua VTLS 44

    5.5. Observaes 44

    CONCLUSES DA PARTE I 45

    PARTE II

    CAPTULO III Catalogao de documentos musicais: problemas e

    especificidades 46

    1. Porqu normas especficas para a descrio de espcies

    musicais escritas? 46

    1.1. Problemas relacionados com a natureza da obra

    musical

    47

    1.1.1. Enquanto unidade literria 47

    1.1.1.1. O ttulo uniforme 51

    1.1.2. Enquanto actividade artstica 54

  • 1.2. Problemas relacionados com a multiplicidade

    documental 56

    1.2.1. Manifestaes e itens 57

    1.2.2. Documentos de arquivo 58

    1.3. Problemas relacionados com aspectos tcnicos 61

    1.4. Problemas relacionados com a utilizao 62

    2. Normas e regras actualmente utilizadas para a

    catalogao de documentos musicais 63

    2.1. ISBD(PM) Norma Internacional de Descrio

    Bibliogrfica para Msica Impressa 64

    2.2. Formato UNIMARC para a msica 67

    2.3. RISM Rpertoire International des Sources Musicales 69

    2.4. As normas e regras e as necessidades de informao

    dos utilizadores

    70

    CONCLUSES DA PARTE II 73

    PARTE III

    CAPTULO IV Contributos para a discusso do actual quadro normativo

    no mbito da catalogao de documentos musicais escritos 74

    1. Contributos para uma reviso dos atributos para as

    entidades do primeiro grupo segundo o modelo FRBR 75

    1.1. Atributos de uma obra 76

    1.2. Atributos de uma expresso 82

    1.3. Atributos de uma manifestao 89

    1.4. Atributos de um item 95

    2. Contributos para uma reviso da ISBD(PM) 97

    3. Anlise da aplicao do formato UNIMARC msica 114

    4. Propostas para registos de obra e expresso 128

    CAPTULO V FeRBeRizando Lauriane 138

    CONCLUSES 144

    BIBLIOGRAFIA 147

  • II VOLUME ANEXO 1 Cronologia comparada das ISBD, AACR, RPC e regras RISM 1

    ANEXO 2 Relaes bibliogrficas aplicveis a documentos musicais

    identificadas no formato UNIMARC segundo os modelos de

    Tillett, Smiraglia, Mey e Vellucci 4

    ANEXO 3 Sntese dos Atributos definidos para as Entidades do modelo

    FRBR 7

    ANEXO 4 Sntese as recomendaes do relatrio final FRBR para o

    registo bibliogrfico mnimo 10

    ANEXO 5 Sntese do Captulo 25 das AACR: Ttulos uniformes msica 11

    ANEXO 6 Quadro-sntese de normas 16

    ANEXO 7 Esquema da ISBD(PM) 36

    ANEXO 8 Sntese das propostas do Grupo de Trabalho UNIMARC para a

    Msica 38

    ANEXO 9 Campos RISM 43

    ANEXO 10 Sntese das propostas do Grupo de Trabalho do IAML para as

    Entradas Bibliogrficas Bsicas para a Msica

    46

    ANEXO 11 Sntese das propostas do Projecto HARMONICA para os

    registos bibliogrficos 52

    ANEXO 12 Sntese das Regras para a Catalogao de Manuscritos

    Musicais 57

    ANEXO 13 Distribuio dos elementos no formato UNIMARC em relao

    s entidades e atributos do modelo FRBR 58

    ANEXO 14 Lauriane: esquema FRBR 61

  • 1

    INTRODUO

    A normalizao a actividade destinada a estabelecer, face a problemas

    reais ou potenciais, disposies para utilizao comum e repetida, tendo em vista

    a obteno do grau ptimo de ordem, num determinado contexto. 1 A

    normalizao prpria das sociedades industrializadas. Antes da Revoluo

    Industrial, j se sentia a necessidade de estabelecer algumas regras,

    particularmente as relacionadas com as medidas (de tempo, espao e capacidade)

    prprias das sociedades agrcolas. Contudo, estas medidas no eram verdadeiras

    normas porque lhes faltavam dois factores essenciais: a conformidade e a

    continuidade2. Tem de haver regras que garantam um resultado conforme a um

    modelo homogneo e repetvel para todos os processos repetitivos e mecnicos.

    Tem, ainda, de ser possvel assegurar a continuidade desse modelo no tempo e

    no espao.

    S a partir da Revoluo Industrial, com a produo em srie, se tornou

    possvel assegurar estes dois factores. As normas multiplicaram-se numa espcie

    de reaco em cadeia: a normalizao dos produtos obrigou das mquinas,

    esta dos procedimentos e esta ltima da informao. O crescimento

    exponencial da produo cientfica e literria, que se deu a partir da 2 Guerra

    Mundial e que ficou conhecido por exploso documental, levaria at ao universo

    das bibliotecas at ento mergulhado em prticas tradicionais que, no obstante

    serem rotineiras, no reuniam as caractersticas necessrias para serem

    consideradas verdadeiras normas a necessidade de normalizao. A fiabilidade

    que as normas proporcionam e que so um factor vital na universalidade e

    exportabilidade dos produtos condio sine qua non da globalizao tornou-

    se tambm um factor essencial na universalidade do conhecimento, em particular

    do conhecimento cientfico, emergindo a procura de meios de difuso da literatura

    cientfica, principalmente a essencial ao progresso tecnolgico. Assim, surgiram

    as revistas de resumos nas reas da qumica, da medicina, da engenharia, e de

    1 NP EN 45020:2001 2 TANGARI, Nicola Standard e documenti musicali, p. 29

  • 2

    outras cincias, e os primeiros esforos no sentido da criao de bases de dados

    bibliogrficas de grande dimenso que reunissem informaes relativas aos

    documentos disponveis em diferentes bibliotecas. Estamos, ainda, a reportar-nos

    a um perodo anterior aos sistemas informticos. Ao mesmo tempo que a

    produo cientfica, cultural e artstica cresceu de forma exponencial, tambm os

    custos de recolher, organizar e disponibilizar toda esta informao se tornaram

    cada vez maiores, tanto mais que tm implicado permanentes adaptaes aos

    novos meios e suportes. A emergncia dos sistemas informticos (primeiro locais,

    depois em redes dedicadas, hoje em sistema aberto) foi decisiva para o triunfo da

    normalizao na catalogao dos documentos a qual, por sua vez, um factor de

    grande importncia para a gesto das bibliotecas, proporcionando a troca de

    registos bibliogrficos, facilitando o emprstimo inter-bibliotecas, estimulando as

    polticas coordenadas de aquisies e, de uma maneira geral, agilizando os

    processos de gesto documental.

    Nos anos oitenta, com o aparecimento dos primeiros computadores de

    secretria, as atenes recaram sobre as aplicaes informticas mais do que

    sobre as normas propriamente ditas3. A aco das organizaes internacionais

    ligadas ao desenvolvimento e cidadania em particular a UNESCO ,

    pressionando polticas de acesso e fruio da cultura, permitiu a democratizao

    destas tecnologias e a sua aplicao em bibliotecas de menor dimenso e em

    pases menos desenvolvidos tecnologicamente. Destas aces, talvez a de maior

    impacto tenha sido a criao de um sistema informtico de criao e gesto de

    bases de dados bibliogrficos (CDS/ISIS), de distribuio gratuita, o qual tem

    permitido que um nmero crescente de bibliotecas pblicas, escolares e

    associativas mantenham bases de dados bibliogrficas a baixssimo custo. O

    desenvolvimento da informtica permitiu tambm o surgimento de bases de dados

    muito volumosas, de envergadura nacional e internacional, contendo registos

    criados e consultados por milhares de bibliotecas envolvidas em programas de

    catalogao partilhada. Estas bases de dados no se desenvolveram como

    consequncia do alargamento das possibilidades oferecidas pelas novas

    3 BUIZZA, Pino Dai Principi di Parigi a FRBR

  • 3

    tecnologias mas, antes, este alargamento que respondeu necessidade

    premente de reduzir os custos de catalogao evitando que as mesmas tarefas

    de catalogao se efectuem simultaneamente em diferentes locais.

    O teorema o tempo gasto no input recuperado no output repetido pelas

    salas de aula dos cursos de biblioteconomia to verdadeiro quanto idealista. Foi

    pensado por bibliotecrios no interesse dos utilizadores. Os gestores no pensam

    assim. Sob a presso econmica nomeadamente devido s restries

    oramentais que levam a polticas de reduo de pessoal , as bibliotecas

    procuram simplificar os procedimentos de catalogao optando cada vez mais

    pela catalogao mnima gastar o mnimo no input a fim de no sucumbir

    evidente desproporo entre os recursos humanos disponveis e uma produo

    editorial crescente.

    Paralelamente a esta viso economicista, e apesar dela, prosseguem os

    esforos no sentido da promoo e divulgao dos bens culturais. Em 1992,

    Nunes 4 chamava a ateno para a urgncia da inventariao do patrimnio

    bibliogrfico: O conhecimento do patrimnio bibliogrfico existente em Portugal,

    a sua inventariao, preservao, conservao e consequente divulgao e

    valorizao so etapas necessrias e urgentes, indissociveis e complementares

    para a afirmao da nossa identidade cultural, quando as fronteiras da Europa se

    vo abrir definitivamente. E continua: O patrimnio das bibliotecas portuguesas,

    [...] encontra-se em perigo de morte ou pelo menos em vias de desaparecimento,

    pela usura do tempo, pela incria dos homens, pelas condies de armazenagem,

    pelo mau estado de conservao dos suportes, pela consulta de que

    constantemente objecto. Impe-se por isso uma poltica nacional de salvaguarda

    do patrimnio bibliogrfico [...].5.

    No mesmo ano iniciavam-se os trabalhos de um projecto de inventariao de

    bens culturais mveis que incluiu os manuscritos musicais iluminados. Por razes

    que no cabe descortinar neste espao, o programa, que pretendia ser exaustivo,

    no foi levado at ao fim. Em 2001, foi promulgada em Portugal a lei do

    4 NUNES, Henrique Barreto Patrimnio escrito em Portugal, p. 126 5 Idem Ibidem, p. 129

  • 4

    patrimnio cultural que, no seu artigo 7, afirma: Todos tm o direito fruio

    dos valores e bens que integram o patrimnio cultural, como modo de

    desenvolvimento da personalidade atravs da realizao cultural. 6 Para tal,

    revela-se essencial a identificao e inventariao dos bens que constituem esse

    patrimnio a que a mesma lei obriga no seu artigo 16: levantamento sistemtico,

    actualizado e tendencialmente exaustivo dos bens culturais existentes a nvel

    nacional, com vista respectiva identificao.7 No artigo 85 define patrimnio

    bibliogrfico, ficando, implicitamente, abrangidos por esta Lei os documentos

    musicais: 1 Integram o patrimnio bibliogrfico as espcies, coleces e

    fundos bibliogrficos [...] bem como as coleces e esplios literrios. [...] a) Os

    manuscritos notveis; b) Os impressos raros; c) Os manuscritos autgrafos bem

    como todos os documentos que registem as tcnicas e os hbitos de trabalho de

    autores e personalidades notveis das letras, artes e cincia, seja qual for o nvel

    de acabamento do texto ou textos neles contidos; d) As coleces e esplios de

    autores e personalidades notveis das letras, artes e cincia, considerados como

    universalidades de facto reunidas pelos mesmos ou por terceiros.. A

    identificao e inventariao do patrimnio documental tornou-se, assim, a partir

    de 2001, uma obrigao permanente e contnua do Estado e no uma mera

    aco pontual no mbito de um programa. Tal inventariao, por urgente, no se

    compadece com o trabalho necessariamente moroso da investigao, no caso

    que nos interessa, a investigao musicolgica, e a divulgao do patrimnio no

    pode passar pelas convenes mais ou menos hermticas da descrio

    elaborada para fins de investigao. O conhecimento do patrimnio musical,

    passa pela sua inventariao de uma forma acessvel, normalizada,

    disponibilizvel em bases de dados de natureza generalista como as das

    bibliotecas e arquivos pblicos.

    O estudo que ora propomos resulta da constatao, em 13 de anos de

    contacto profissional com documentao musical escrita, da insuficincia das

    normas e regras utilizadas para a sua identificao e descrio. Pretendemos,

    pois, com a falibilidade de qualquer trabalho desta natureza, conseguir um

    6 LEI n. 107/2001 (2001-09-08) 7 Idem, art. 19

  • 5

    equilbrio entre as regras de catalogao de msica usadas nas bibliotecas,

    demasiado generalistas, e as regras usadas normalmente pelos musiclogos para

    a descrio das espcies que so objecto dos seus estudos, demasiado

    especficas e inacessveis a um pblico menos especializado. O produto final ser,

    esperamos, um modelo de descrio conforme s prticas e ao esprito

    subjacente catalogao nas bibliotecas mas suficientemente detalhado para

    resultar num instrumento til para msicos e musiclogos.

    Nos ltimos seis anos, as normas internacionais para descrio bibliogrfica

    e para descrio arquivstica tm sido alvo de uma reviso sistemtica luz de

    uma nova lgica focada no utilizador da informao e, tambm, de novas

    possibilidades tecnolgicas, particularmente aquelas associadas ao ambiente

    Web. Em particular, a norma internacional para a descrio de msica impressa

    ISBD(PM) inicia no ano de 2005 um processo de reviso sujeito a propostas

    internacionais. Ao mesmo tempo, esto em reviso as regras de catalogao

    anglo-americanas AACR e o formato UNIMARC para a msica. Esto,

    tambm, a decorrer estudos no sentido de adequar os incipit musicais, usados

    nas regras RISM, aos formatos legveis por mquina usados nas bibliotecas por

    forma a torn-los pesquisveis. So, ainda, numerosos os estudos de natureza

    terica e experimental relacionados com a aplicao dos requisitos funcionais

    para os registos bibliogrficos FRBR identificao de obras musicais. , pois,

    todo um mundo novo de possibilidades que se abre evoluo das normas de

    catalogao de msica.

    Embora muito lentamente, tm sido feitas algumas tentativas no sentido de

    tratar a documentao musical existente nas nossas bibliotecas e nos nossos

    arquivos em particular os das igrejas quer atravs de trabalhos de musicologia,

    quer atravs do trabalho de identificao e inventariao de fundos musicais na

    Biblioteca Nacional e em outros pontos do Pas onde o trabalho, mais ou menos

    solitrio, dificilmente chega a ser conhecido.

    A publicao da traduo da ISBD(PM) pela Biblioteca Nacional, prevista

    para o corrente ano de 2005, tambm um dado que torna evidente a

    oportunidade de um estudo como o que ora se apresenta e de outros,

  • 6

    direccionados para outras reas aplicadas msica, como as linguagens

    documentais, as classificaes, a arquivologia musical e o tratamento de registos

    sonoros.

    Neste estudo abordamos um conjunto de problemas associados ao actual

    quadro normativo, detectamos as suas foras e fragilidades e procuramos, em

    sntese, responder s seguintes questes:

    Em que medida o actual quadro normativo relativo catalogao contempla

    os elementos necessrios representao de documentos musicais escritos, de

    modo a responder s necessidades de informao dos utilizadores em geral e,

    em particular, aos utilizadores especialistas em msica ?

    Quais os elementos relativos a espcies musicais escritas necessrios a

    encontrar, identificar, seleccionar e aceder informao com eles relacionada?

    Debruamo-nos apenas sobre a catalogao de msica escrita, no

    abordando os registos sonoros nem os aspectos relacionados com a indexao

    por assuntos ou com sistemas de classificao. Cada uma destas reas, por si s,

    forneceria material temtico para vrias dissertaes de mestrado.

    A pesquisa seguiu as seguintes fases concomitantes mas intelectualmente

    distintas:

    Reviso da bibliografia j existente, quer impressa quer disponvel em

    linha. Esta fase teve como objectivo, no apenas tomar conhecimento dos

    problemas j levantados por especialistas mas tambm preparar os instrumentos

    de trabalho necessrios s fases seguintes. Dada a profuso de material

    disponvel e o seu crescimento constante, decidimos dar por concluda a pesquisa

    bibliogrfica no final de Janeiro de 2005. Os resultados desta reviso apresentam-

    se na Parte I e distribuem-se pelos Captulos I e II, fazendo, no primeiro, um

    percurso da evoluo das normas de descrio de msica, integrando-as no

  • 7

    contexto geral das normas de descrio de outras tipologias documentais; e, no

    segundo, uma reviso dos estudos tericos e prticos com mais influncia na

    evoluo actual da normativa.

    Identificao dos elementos necessrios recuperao da informao

    relacionada com as espcies musicais escritas com base em estudos prvios

    recolhidos na bibliografia e na anlise detalhada das caractersticas da

    documentao. O captulo III preenche integralmente a Parte II e faz o

    levantamento dos problemas especficos que se colocam descrio de

    documentos musicais integrando-os nos estudos que tm abordado estes

    problemas.

    A Parte III constituda pelos Captulos IV e V. No Captulo IV

    apresentamos um conjunto de propostas que pretendem contribuir para as

    revises do modelo FRBR, da ISBD(PM) e da aplicao do formato UNIMARC

    msica. O Captulo V consiste num exerccio de aplicao das propostas

    apresentadas no captulo IV e que visa testar a sua viabilidade. Escolheu-se um

    conjunto de registos bibliogrficos da pera Lauriane, do compositor portugus

    Augusto Machado.

    A bibliografia apresentada no final do corpo da dissertao, de acordo com

    a NP 405-1. As citaes seguem a mesma norma, tendo-se optado pelo sistema

    de referncia abreviada com localizao em nota (NP 405-1, regra 9.3).

  • 8

    CAPTULO I

    O percurso das normas de descrio para documentos musicais

    No ano em que esta dissertao apresentada, passam 25 anos sobre o

    primeiro texto da norma internacional para a descrio bibliogrfica de msica

    impressa ISBD(PM)8. Em 1980, porm, era j longo o caminho percorrido no

    que respeita s normas de catalogao, em geral, e das prticas de descrio de

    espcies musicais, em particular.

    O primeiro passo sistemtico no desenvolvimento de regras de catalogao

    de msica de aplicao internacional d-se logo a seguir ao fim da Segunda

    Guerra Mundial, ainda antes dos primeiros trabalhos destinados coordenao

    das regras gerais de catalogao. Em 1949, os congressos da IMS9, em Basileia,

    e da IAML10 , em Florena, concluram da necessidade de iniciar um projecto

    exaustivo de descrio de fontes musicais existentes em todo o mundo,

    necessidade que levaria criao, em 1952, do Projecto RISM Rpertoire

    Internationale des Sources Musicales. Nesta altura, ainda no estavam

    estabelecidas quaisquer normas de aplicao internacional para a descrio de

    documentos, pelo que as regras estabelecidas pelo Projecto RISM se

    desenvolveram independentemente de normas biblioteconmicas e se basearam

    nas necessidades de informao especficas da investigao musicolgica.

    Em 1954, a IFLA11 criou um grupo de trabalho encarregue de estudar a

    coordenao das regras de catalogao no plano internacional. Estes trabalhos

    culminaram na conferncia internacional sobre os princpios de catalogao

    (ICCP 12 ) realizada em Paris, em 1961. Nesta conferncia, cujas concluses

    ficaram conhecidas como Princpios de Paris, estabeleceram-se os primeiros

    fundamentos de todas as normas e regras de catalogao a aplicar

    8 International Standard Bibliographic Description for Printed Music 9 International Musicology Society 10 International Association of Music Libraries, Archives and Documentation Centres 11 International Federation of Library Associations and Institutions 12 International Conference on Cataloguing Principles

  • 9

    internacionalmente, particularmente no que respeita aos cabealhos principais e

    secundrios, dando origem, em 1967, primeira edio das regras de

    catalogao anglo-americanas (AACR13) e, em 1969, publicao dos Trabalhos

    Preparatrios das Regras Portuguesas de Catalogao14.

    Ainda nessa dcada, desenvolveram-se os primeiros sistemas informticos

    de processamento de dados bibliogrficos que, j ento, visavam a organizao

    de catlogos colectivos ou partilhados, nomeadamente o programa norte

    americano de catalogao partilhada Shared Cataloguing Program. O objectivo

    final seria a possibilidade de partilhar e transferir dados bibliogrficos. O Shared

    Cataloguing Program deriva da necessidade de gerir grande quantidade de dados

    bibliogrficos provenientes de muitos pases, principalmente os centralizados na

    Library of Congress. Se os dados bibliogrficos de origem pudessem ser

    adoptados sem alterao, no haveria necessidade de recatalogao no destino,

    bastando adaptar os cabealhos e introduzir os pontos de acesso por assunto. O

    uso de formatos comuns seria, pois, de toda a vantagem para a economia de

    meios das bibliotecas encarregues de reunir grandes quantidades de dados

    bibliogrficos, em particular daquelas com funes de agncias bibliogrficas

    nacionais. Para esse objectivo, em 1966, a Library of Congress criava o primeiro

    formato de catalogao legvel por mquina MARC 15 que continua em

    evoluo.

    Em 1969, deu-se um novo passo decisivo na normalizao da catalogao,

    quer na forma, quer no contedo, com a organizao, pela comisso de

    catalogao da IFLA, da reunio internacional de especialistas em catalogao,

    em Copenhaga. Nesta reunio, ficaram definidos os princpios de catalogao

    que esto na gnese das normas internacionais de descrio bibliogrfica (ISBD).

    Neste ponto h que precisar alguns conceitos. O termo catalogao

    usado em biblioteconomia com dois sentidos: no sentido restrito, o termo designa,

    apenas, a descrio formal de um documento; o sentido lato inclui, tambm, o

    13 Anglo-American Cataloguing Rules 14 Publicados pela Direco-Geral do Ensino Superior, como separata do boletim Bibliotecas e arquivos 15 Machine Readable Cataloguing

  • 10

    estabelecimento de pontos de acesso por autores e ttulos. Em qualquer dos

    sentidos est excluda a determinao dos assuntos, seja mediante termos de

    indexao, seja mediante um sistema de classificao. As AACR, bem como as

    RPC16 e, de uma maneira geral, os diversos cdigos catalogrficos nacionais,

    tratam a catalogao no seu sentido amplo, ou seja, determinam as regras para a

    descrio bibliogrfica e as regras para o estabelecimento dos pontos de acesso

    de autores e ttulos. Pelo contrrio, as ISBD tratam a catalogao apenas no seu

    sentido restrito, ou seja, a descrio propriamente dita e constituem, basicamente,

    uma estrutura de dados: prescrevem as fontes que fornecem os dados

    bibliogrficos a serem includos na descrio de um documento, a ordem em que

    so apresentados esses dados e a pontuao que os identifica; estabelecem,

    ainda, as convenes relativas omisso ou incluso de dados por iniciativa do

    catalogador. O objectivo conseguir uma estrutura de descrio suficientemente

    flexvel para se adaptar s prticas e polticas de catalogao particulares mas

    suficientemente rgida para eliminar a ambiguidade, permitir a troca de informao

    proveniente de fontes e em lnguas diferentes e facilitar a converso das entradas

    bibliogrficas em formatos legveis por mquina. Deste modo, torna-se possvel a

    cada biblioteca escolher os elementos que figuram em cada descrio, de acordo

    com a sua poltica de catalogao, na condio de estes serem apresentados

    pela ordem e precedidos da pontuao prescritas pela ISBD.

    A primeira ISBD a ser desenvolvida foi a relativa descrio de monografias

    ISBD(M) 17 - facto que acabaria por condicionar a estrutura das normas

    seguintes. O primeiro texto daquela que viria a ser a ISBD(M) foi publicado em

    1971, ainda sob a forma de Recomendaes. A sua adopo para a elaborao

    de bibliografias nacionais seria rpida e extensiva tendo levado reviso de

    numerosas regras nacionais, nomeadamente, em 1972, o Anteprojecto das

    Regras Portuguesas de Catalogao18. O xito desta experincia levaria, ainda

    durante esse ano, proposta para a criao de uma norma internacional de

    descrio bibliogrfica para publicaes em srie.

    16 Regras Portuguesas de Catalogao 17 International Standard Bibliographic Description for Monographic Publications 18 Separata do boletim Bibliotecas e arquivos

  • 11

    A primeira edio da norma internacional de descrio bibliogrfica para

    monografias ISBD(M) , j com valor normativo, seria publicada em 1974, ento

    j com as alteraes introduzidas pelos trs anos de experincia intensiva em

    muitos pases. No ano seguinte dava-se por concludo, em Portugal, o Projecto

    das Regras Portuguesas de Catalogao.

    J nesta altura se tinha compreendido que a escrita e os materiais

    impressos por processos tradicionais constituam, apenas, uma parte dos

    documentos existentes nas bibliotecas e outros centros de armazenamento,

    gesto e difuso de informao, parte essa cujo peso proporcional tendia a

    diminuir medida que novas e velhas formas de registar a informao cresciam

    em nmero e se desdobravam em complexidade. Ao longo dos anos imediatos

    publicao da ISBD(M), seriam numerosas as propostas de adopo da ISBD

    para outras tipologias documentais de tal modo que se tornou evidente que era

    inadivel a criao de normas internacionais de descrio para documentos que

    existiam em profuso crescente nas bibliotecas mas para os quais a ISBD(M) se

    revelava insuficiente. Eram os casos da cartografia, do livro antigo, dos materiais

    grficos, sonoros e audiovisuais nas suas variadas formas e das partituras

    musicais.

    Para estabelecer um ponto de ordem, afigurou-se essencial estabelecer uma

    norma internacional geral na qual todas as futuras normas internacionais de

    descrio bibliogrfica se baseassem, norma geral essa que, por sua vez, teria de

    ser coerente com a norma especfica j existente e que tinha sido concebida para

    a descrio de monografias.

    Ainda esta norma geral no estava concluda, j a comisso de catalogao

    da IAML propunha, em 1975, a criao de um grupo de trabalho conjunto com a

    comisso de catalogao da IFLA com vista a elaborar uma norma internacional

    de descrio bibliogrfica para msica impressa, grupo que seria constitudo em

  • 12

    1976. Seguiram-se dois anos de trabalho coordenado com os trabalhos

    preparatrios da ISBD(G)19 que seria publicada em 1977.

    Em 1974, na UNESCO Intergovernmental Conference, era definido pela

    IFLA e pela UNESCO o programa de controlo bibliogrfico universal e formato

    MARC internacional UBCIM20 o qual visava tornar universalmente disponveis

    para troca, sob forma internacionalmente aceite, os dados bibliogrficos relativos

    a todas as publicaes. O conceito de controlo bibliogrfico universal discutido

    desde que as primeiras aplicaes informticas o tornaram possvel tendo levado

    a dois tipos de soluo: catalogao centralizada e catalogao cooperativa (de

    que o j mencionado Shared Cataloguing Program da Library of Congress o

    primeiro exemplo, ainda nos anos sessenta).

    Em 1977 eram publicadas as primeiras edies das normas internacionais

    de descrio bibliogrfica para publicaes em srie ISBD(S) 21 para

    documentos cartogrficos ISBD(CM) 22 e para material no-livro (grfico,

    sonoro e audiovisual) ISBD(NBM)23 e as recomendaes relativas forma dos

    cabealhos para nomes de pessoas24. No mesmo ano saa a primeira verso do

    formato UNIMARC, um formato MARC destinado, inicialmente, a funcionar para

    efeitos de converso universal de dados mas que acabaria por se tornar um

    formato de catalogao adoptado por numerosas bibliotecas em todo o mundo.

    Perante a multiplicao de normas internacionais j publicadas decidiu-se,

    durante o congresso da IFLA realizado nesse ano em Bruxelas, que todos os

    textos das ISBD, j publicados ou a publicar, ficariam inalterados durante cinco

    anos no termo dos quais se estudaria a sua reviso no todo ou em parte. Outras

    edies das ISBD, entretanto, continuavam a ser publicadas: em 1978, era

    publicada a primeira reviso da ISBD(M) baseada na ISBD(G) e no mesmo ano

    19 General International Standard Bibliographic Description 20 Universal Bibliographic Control and MARC Format Programme 21 International Standard Bibliographic Description for Serials 22 International Standard Bibliographic Description for Cartographic Material 23 International Standard Bibliographic Description for Non Book Material 24 Guidelines for Authority and Reference Entries

  • 13

    era tambm publicada a edio revista das regras de catalogao anglo-

    americanas, designada normalmente AACR2; as AACR2 contemplavam j a

    descrio de materiais que as ISBD s iriam contemplar nas edies de 1980:

    livro antigo ISBD(A)25 e msica impressa ISBD(PM)26.

    Para assegurar a reviso ao fim dos cinco anos de experincia, foi

    constituda uma comisso de reviso das ISBD ISBD Review Committee que

    se reuniu em Londres em Agosto de 1981, quatro anos depois de sair a primeira

    edio da ISBD(G). Esta reviso visava, principalmente, a letra das normas,

    eliminando incoerncias nas definies e directivas, resolvendo questes de

    pontuao, alargando e melhorando os exemplos e abrindo as ISBD s escritas

    no latinas. O contedo, porm, sofreu poucas alteraes. Depois desta primeira

    reviso eram concludas, em Portugal, as Regras Portuguesas de Catalogao

    sendo publicadas em 1984.

    Apesar de relativamente lento, o processo de reviso, adaptao e

    actualizao das ISBD foi contnuo desde ento. Em 1987 foram publicadas as

    edies revistas da ISBD(CM), da ISBD(M) e da ISBD(NBM), em 1988 a edio

    revista da ISBD(S), no mesmo ano as orientaes para a aplicao das ISBD

    descrio de partes componentes27 e, em 1991, a edio revista da ISBD(A).

    O trabalho sobre a reviso da ISBD(PM) comeou na conferncia anual da

    IAML, em 1984, realizada em Como (Itlia) e teve em conta as sugestes

    emanadas das revises em curso nas outras ISBD. Em Julho de 1987 foi redigido

    e difundido por todo o mundo um projecto definitivo tendo os comentrios

    recebidos sido levados em considerao na preparao da edio revista da

    ISBD(PM), publicada em 1991.

    Em 1990, o seminrio de Estocolmo sobre os registos bibliogrficos, sob a

    gide do programa para o controlo bibliogrfico universal e formato MARC

    internacional (UBCIM28) da IFLA e da seco Controlo Bibliogrfico tambm da

    25 International Standard Bibliographic Description for Antiquarian 26 International Standard Bibliographic Description for Printed Music 27 Guidelines for the application of the ISBDs to the description of component parts 28 Universal Bibliographic Control and MARC Format Programme

  • 14

    IFLA, adoptou uma resoluo no sentido de virem a ser definidos os requisitos

    mnimos para os registos bibliogrficos produzidos pelas agncias bibliogrficas

    nacionais. Esta definio visava clarificar de forma precisa o que se pretende de

    um registo bibliogrfico tendo em considerao a necessidade de reduzir os

    custos de produo dos registos bibliogrficos sem prejuzo da eficcia da

    resposta s necessidades dos utilizadores e tomando em considerao a

    diversidade de necessidades geradas pelos variados suportes bem como a

    diversidade dos contextos de utilizao dos registos bibliogrficos. Dois anos

    depois, no congresso da IFLA em Nova Deli, era aprovado o incio do estudo e

    era constitudo o grupo de trabalho.

    Aps vrios trabalhos preparatrios, o estudo era aprovado, em 1997,

    durante o congresso de Copenhaga, pelo comit permanente da seco de

    catalogao da IFLA e publicado pela Saur em 1998: Functional Requirements for

    Bibliographic Records FRBR. Este estudo acabaria por se revelar o mais

    importante documento orientador jamais produzido desde os Princpios de Paris,

    de 1961.

    Apesar do objectivo inicial dos FRBR ser a definio dos requisitos mnimos

    para os registos bibliogrficos produzidos pelas agncias bibliogrficas um

    objectivo essencialmente econmico a sua repercusso ultrapassou, em muito,

    este objectivo. Ao englobar numa estrutura lgica a descrio, a determinao

    dos pontos de acesso por autores e ttulos e ainda a determinao dos assuntos,

    os FRBR fazem uma abordagem diferente da de Paris, abordagem esta

    abrangente e estruturada prpria anlise do documento, centrando-a no

    utilizador da informao. Esta abordagem, apoiada em trabalhos cientficos

    prvios que sero focados no captulo II, permite olhar para as normas j

    existentes de outra forma e estimula o esforo de aperfeioamento das mesmas

    normas.

    Antes da concluso dos FRBR mas certamente no alheia a estas, a IAML

    avanava, durante o encontro em Ottawa do IAML Council, em 1994, com um

    grupo de trabalho para a definio dos elementos obrigatrios e opcionais nos

  • 15

    registos bibliogrficos de msica e registos sonoros CBR 29 . Este grupo de

    trabalho debruou-se sobre os registos bibliogrficos para trs tipos de

    documentos msica impressa, registos sonoros e msica manuscrita tendo

    apresentado trs relatrios distintos entre 1995 e 1996.

    Os enormes avanos na edio electrnica e na disseminao de

    publicaes em srie bem como a publicao dos FRBR, levam a IFLA a

    desenvolver, a partir de 1998, uma reviso drstica de todas as ISBD, em

    particular da ISBD(G) aquela que mais pode influenciar futuros

    desenvolvimentos em outras ISBD e da ISBD(S) com vista sua substituio

    por uma nova norma internacional destinada a descrever todas as publicaes em

    continuidade independentemente da forma ou do suporte, o que, alm das sries

    e publicaes peridicas tradicionais, permite incluir as revistas electrnicas, as

    newsletters difundidas por correio electrnico e os websites: International

    Standard Bibliographic Description for Serials and Other Continuing Resources

    ISBD(CR). Esta ltima levou mais de trs anos a concluir, tendo sido publicada

    em 2002, no mesmo ano em que saiu a reviso da ISBD(M), e a ISBD(G) foi

    publicada mais recentemente, em 2004, apenas na Internet, por haver a

    conscincia da necessidade de manter o documento sujeito a revises mais

    frequentes.

    Em 2003, o encontro de especialistas sobre o cdigo internacional de

    catalogao 30 , realizado em Frankfurt, estabelece uma nova Declarao de

    Princpios que vem substituir os Princpios de Paris alargando-se a todos os tipos

    de materiais e a todos os aspectos do controlo bibliogrfico e registos de

    autoridade usados nos catlogos. Estes novos Princpios incorporam j o modelo

    e a terminologia definidos no relatrio final dos FRBR.

    No mesmo ano, o UBCIM Universal Bibliographic Control and International

    MARC extinto sendo substitudo pelo ICABS IFLA-CDNL Alliance for

    29 Core Bibliographic Record 30 IFLA MEETING OF EXPERTS ON AN INTERNATIONAL CATALOGUING CODE, 1, Frankfurt, Germany, 2003 Statement of International Cataloguing Principles

  • 16

    Bibliographic Standards o qual herda as funes do UBCIM e do UDT

    Universal Dataflow and Telecommunnications. Esta aliana rene a IFLA, a

    CDNL31, a Library of Congress, a British Library, a Deutsche Bibliothek, a National

    Library of Australia e a Biblioteca Nacional de Portugal, estando esta ltima

    responsvel pelo programa de promoo e desenvolvimento do formato

    UNIMARC.

    Presentemente, esto em estudo as Guidelines for Using UNIMARC for

    Music. Durante o ano de 2005 ser editada pela Biblioteca Nacional de Portugal a

    primeira traduo em lngua portuguesa da ISBD(PM), ainda a partir da edio de

    1991, aguardando-se os resultados da reviso da ISBD(PM), cujo incio a IFLA

    prev para o corrente ano de 2005.32

    31 Conference of Directors of National Libraries 32 Em Anexo 1 Cronologia das normas

  • 17

    CAPTULO II

    Os novos desenvolvimentos tericos

    A catalogao o processo atravs do qual se descreve formalmente um

    documento ou recurso e se estabelece um nmero variado e varivel de pontos

    de acesso com o objectivo de proporcionar ao utilizador final a possibilidade de

    encontrar, identificar, seleccionar e obter o documento ou recurso descrito ou a

    informao nele contida.33 Para a descrio de quaisquer documentos recorre-se

    a critrios sinalticos extrados do prprio documento, mais ou menos

    reformulados: informao sobre a prpria obra (no caso dos documentos musicais,

    gnero, dispositivo, tonalidade, etc.), informao sobre o documento em si

    (tipologia, publicao, dimenses, etc.) e critrios analticos e sistemticos

    resultantes de uma deduo, de uma anlise de contedo (formas, temas,

    funes) expressos pelo meio de terminologias ou thesauri e de sistemas de

    classificao.34

    O registo bibliogrfico identifica e descreve um documento na sua mltipla

    realidade fsica e intelectual funcionando como um seu substituto na medida em

    que permita a um utilizador encontrar, identificar, seleccionar e aceder uma obra,

    uma edio ou um exemplar numa biblioteca, num centro de documentao, num

    arquivo ou num museu. Como explica Howarth 35 : The inherent value or

    usefulness of the bibliographic surrogate resides in its ability to represent each

    entity (item or object) uniquely, permitting different manifestations or formats of the

    title to be distinguished one from another. Entre outras coisas, uma descrio

    documental de qualidade permite poupar tempo ao utilizador ao evitar a consulta

    de documentos no pertinentes, em alguns casos, ao substituir a consulta de

    alguns documentos pertinentes por conter j a informao pretendida e ainda, por

    contribuir para a conservao, ao reduzir o manuseamento dos documentos

    consultados. Isto significa que, quando confrontado com um registo bibliogrfico,

    33 IFLA Functional Requirements for Bibliographic Records : final report, p. 8-9 34 GIULIANI, Elisabeth Des normes aux mtadonnes 35 HOWARTH, Lynne C. Content versus carrier, p. 2

  • 18

    o utilizador deve encontrar nele toda a informao necessria a uma deciso

    quanto sua consulta. Se o utilizador do catlogo no conseguir encontrar uma

    entidade que procura (uma obra, uma expresso de uma obra, uma

    manifestao dessa expresso ou um item em particular) apesar de essa

    entidade existir na biblioteca, ou no conseguir saber com certeza que essa

    entidade no existe na biblioteca, ento o catlogo no cumpre a sua funo. Se

    o utilizador do catlogo, ao analisar um registo bibliogrfico, no conseguir saber

    se a entidade que procura aquela que est descrita no registo, se no conseguir

    saber se vale ou no a pena consult-la (em funo das suas necessidades) ou,

    no limite, se souber mas no tiver meios de a obter (por a sua localizao fsica

    no estar indicada) ento o registo bibliogrfico no cumpre a sua funo.

    Durante muito tempo, o principal foco da teoria da catalogao foi as

    funes do catlogo o produto final do processo. O catlogo era visto como um

    contentor de entradas bibliogrficas, cada uma concebida como uma unidade

    independente descrevendo um determinado item fsico. As bibliotecas tradicionais

    possuam o catlogo como um mero inventrio das existncias, uma forma de

    controlar que livros possuam. Em 1876, Charles Ammi Cutter 36 faz uma

    abordagem diferente ao atribuir ao catlogo de uma biblioteca objectivos

    relacionados com o seu contedo intelectual: encontrar um livro com determinado

    ttulo, autor ou assunto, mostrar o que a biblioteca possui de um dado autor,

    assunto ou gnero e escolher um livro de acordo com a sua edio ou

    caractersticas. Esta abordagem representa uma evoluo importante por fazer

    desviar o foco da existncia fsica do livro, enquanto objecto, para a existncia

    intelectual do livro, enquanto suporte de um determinado contedo. Em termos

    normativos, contudo, so os Princpios de Paris que, em 1961, levam a teoria e a

    prtica catalogrfica para outro nvel conceptual. Os Princpios de Paris focavam

    a descrio aplicada escolha e forma dos cabealhos, diferenciando as funes

    de descrio e de ordenao. As funes do catlogo, contudo, continuavam a

    ser a de um mero contentor de informaes desligadas entre si.

    36 Apud VELLUCCI, Sherry L. Bibliographic relationships in music catalogs, p. 5

  • 19

    Mais recentemente, a teoria tem-se focado nas funes do registo

    bibliogrfico e, paralelamente, no controlo de obras para alm dos seus suportes

    fsicos. A prpria alterao da terminologia de entrada bibliogrfica para registo

    bibliogrfico sinal disto. As Regras Portuguesas de Catalogao (1984)

    definem assim: Dizem-se Entradas as unidades de informao constitudas por elementos, que identificam e por vezes descrevem os documentos [...]. Quando

    agrupadas e ordenadas, as entradas formam catlogos. Mas porqu entradas?

    Porque cada uma tem um cabealho que serve para a ordenao no catlogo e

    pelo qual ser feita a pesquisa. A entrada , pois, isso mesmo: uma porta, um

    acesso, uma forma de chegar a um determinado conjunto de informaes. O

    mesmo sucede com as entradas de uma enciclopdia impressa. Nesta, s h

    uma maneira de chegar a cada unidade de informao: pela entrada, ordenada

    alfabeticamente. A questo que se coloca : uma enciclopdia tem 5000 entradas.

    Mas quantas informaes tem? Poder, no ambiente electrnico, continuar a

    falar-se de entradas quando este nos permite navegar de entrada em

    entrada sem ser pela pesquisa da palavra ou termo que a encabea? E no

    catlogo electrnico? Quantas formas temos de chegar a uma informao?

    por esta razo que o termo entrada, embora no obsoleto, tende a cair

    em desuso. O que temos agora so registos. Cada registo literalmente regista

    um conjunto de informaes seleccionadas e organizadas segundo uma

    determinada lgica; mas as formas de chegar a esse registo so mltiplas. J no

    temos uma entrada: temos um open space, sem portas, sem paredes, mas com

    uma sofisticada arquitectura interior. As funes do registo bibliogrfico so, pois,

    agora, o foco da teoria catalogrfica. Isto reflecte um interesse crescente em

    bases de dados relacionais e orientadas para objectivos.37 O catlogo deixa de

    ser o contentor de entradas bibliogrficas independentes para se tornar numa

    estrutura organizada de registos bibliogrficos com dados armazenados em

    diferentes ficheiros.

    37 VELLUCCI, Sherry L. Bibliographic relationships in music catalogs, p. 254

  • 20

    Desde meados dos anos 80 do Sculo XX, devido a esta evoluo dos

    meios informticos ao dispor das bibliotecas, o debate muito embora no sendo

    novo avolumou-se em torno de vrias questes de natureza terica mas de

    relevante aplicao prtica na organizao da informao, em geral, e na

    catalogao, em particular. possvel distinguir trs temas principais que tm

    funcionado como centros de debate: 1) O conceito de obra; 2) As relaes

    bibliogrficas; 3) O utilizador e a pesquisa.

    1. O conceito de obra

    O conceito de obra e a sua distino em relao a outros conceitos

    importantes para a informao bibliogrfica tm sido debatidos por vrios

    investigadores. O primeiro problema que se coloca em relao ao conceito de

    obra tem a ver com o facto de uma obra qualquer que ela seja, literria,

    cientfica, etc. no ser uma realidade material e tangvel. Nas palavras de A.

    Domanovsky38, an abstraction, an immaterial, intellectual reality. Uma obra

    ainda uma realidade mutvel podendo, ao longo do tempo, desde o momento em

    que criada, sofrer as mais variadas utilizaes, interpretaes e alteraes e

    tornando, por vezes, os seus limites difceis de definir. Ainda para Domanovsky, a

    obra, may change freely it may be revised, enlarged, abridged; its formal marks,

    its title or the name of its author, may be altered; and even the person(s) of the

    author(s) may change without the work losing its identity, without its becoming a

    different, a new, work39

    Alm da discusso do conceito de obra em si mesmo tem ainda sido

    discutido o conceito de obra em relao a outros dois conceitos expresso e

    manifestao:

    O primeiro diz respeito distino entre obra, enquanto criao intelectual e

    a expresso dessa obra ou seja, a sua realizao sob qualquer forma: um texto

    38 Apud SMIRAGLIA, Richard P. The nature of a work, p. 26 39 Idem. Ibidem, p. 26

  • 21

    original e a sua traduo, uma sinfonia e a sua reduo para piano, uma pintura e

    a fotografia dessa pintura.

    Outro aspecto diz respeito distino entre a obra (ou uma das suas

    expresses) e a sua materializao, a sua manifestao fsica: o manuscrito, o

    registo sonoro, a edio em papel.

    1.1. Obra e expresso

    Ao binmio obra-expresso Patrick Le Buf 40 , de forma imaginativa,

    designa com o neologismo workspression. Esta distino entre obra e

    expresso no simples nem pacfica. As distines apresentadas nos cdigos

    catalogrficos no so suficientes. Distinguir quando estamos na presena de

    uma nova expresso de uma obra ou quando estamos na presena de uma nova

    obra baseada numa anterior levanta muitos problemas que, para alm dos

    aspectos puramente tericos cuja discusso cabe s teorias da arte e da literatura,

    filologia e musicologia, se traduzem em questes de ordem muito prtica e

    que se colocam ao catalogador.

    Nas Anglo-American Cataloguing Rules (AACR), o cdigo catalogrfico mais

    amplamente utilizado, estes critrios so explcitos e consideram como mudana

    suficiente para gerar uma nova obra a reescrita de um texto para outra forma (por

    ex., a dramatizao de um conto), a filmagem de uma pea, a adaptao de uma

    obra de arte de um meio para outro (por ex., de pintura para gravura), a mudana

    de ttulo de uma srie, a reviso de um texto acompanhada de uma mudana de

    meno de responsabilidade, a adio de comentrio ou crtica quando este tem

    mais nfase no rosto, a transcrio livre da obra de um compositor, uma obra

    musical baseada em outra (por ex. variaes sobre um tema), a aplicao de

    msica a um texto pr-existente.

    Por outro lado, as AACR consideram como no sendo mudana suficiente

    para gerar uma nova obra a traduo, a adio de ilustraes, a reviso de um

    40 LE BUF, Patrick Brave new FRBR world

  • 22

    texto pelo mesmo autor, o resumo de um texto, uma edio crtica, a adio de

    comentrio ou crtica quando a obra original tem mais nfase no rosto, a

    reproduo de uma obra de arte, o arranjo, transcrio, etc. de obra musical, a

    improvisao, por um intrprete, sobre uma obra musical, a aplicao de

    coreografia a uma obra musical pr-existente, a adio de um acompanhamento

    musical ou partes adicionais a uma obra musical, a aplicao de letra a uma

    msica pr-existente, a execuo de uma obra musical num registo sonoro, a

    republicao com um novo tipo de letra, a republicao com um ttulo diferente no

    rosto e a republicao como parte de uma srie diferente.

    Fcil de ver como alguns destes critrios esto relacionados com

    caractersticas intrnsecas da obra (a transcrio livre da obra de um compositor,

    por exemplo) enquanto outros dizem respeito forma como a obra ocorre no

    documento catalogado (a adio de comentrio ou crtica depende da nfase no

    rosto da publicao para ser considerada ou no uma nova obra). Tais critrios

    nada tm a ver com a natureza de uma obra e no podem ser considerados como

    vlidos para o debate terico.

    Na primeira parte das Regras Portuguesas de Catalogao (RPC), dedicada

    determinao e forma dos cabealhos, percebe-se que as regras se aplicam a

    obras sendo necessrio, para a sua aplicao, determinar com exactido as

    autorias das obras contidas nas edies. Apesar de em local algum das RPC se

    definir a palavra obra percebe-se implicitamente, pelas prprias regras, que, tal

    como nas AACR, h uma distino entre obra original e nova obra baseada numa

    obra original, particularmente quando se trata de estabelecer a autoria em obras

    de autoria mista e em tradues, adaptaes, etc. Nestes casos, tal como as

    AACR, as RPC so explcitas: Desde que se apresentem como modificao

    significante e profunda, quer do contedo, quer do gnero e forma literrios, do

    texto original em que se baseiam, tais como adaptaes, arranjos, dramatizaes,

    cinematizaes, verses livres, comentrios sobrelevando a obra, obras que

    incluem material biogrfico e crtico, tm:

    Entrada principal, pelos elementos da nova obra;

  • 23

    Entrada secundria, pelos elementos da obra original41

    No entanto, na segunda parte das RPC, dedicada descrio bibliogrfica, a

    distino entre os termos obra, edio e publicao no to clara. Alguns

    exemplos (Fig. 1) fazem prova desta afirmao:

    RPC

    D.M. 1.3.5. ttulo original de uma obra

    D.M. 1.5.1. Pessoas [...] que tenham contribudo para a realizao de uma obra

    Obra

    empregue com

    sentido de obra D.M. 1.5.7.2. relao entre a colectividade e a obra

    D.M. 1.5.7.2. Colectividades actuando como responsveis por uma publicao Publicao

    empregue com

    sentido de obra D.M. 5.2.7. Se a publicao se compe [...] de ilustraes

    D.M. 0.7. obra a catalogar

    D.M. 1.1.3. quando na obra aparece mais do que um ttulo

    D.M. 1.1.7. rosto de uma obra

    D.M. 1.5.6. menes [...] colhidas de outra(s) parte(s) da obra

    D.M. 5.1.2. Obra em um s volume

    Obra empregue

    com sentido de

    publicao

    D.M. 5.1.2.9. Se uma obra apresenta [...] numerao

    D.M. 1.4.2. quando outro ttulo aparece na publicao

    D.M. 1.5.1. responsvel de uma publicao

    Publicao

    empregue com

    sentido de

    publicao D.M. 5.1.2.9. Se a publicao tem [...] paginao

    Edio

    empregue com o

    sentido de

    publicao

    D.M. 4.1. lugar da edio

    Fig. 1

    Os exemplos apresentados demonstram bem como, sob o ponto de vista dos

    cdigos catalogrficos essa distino no lmpida.

    41 Regras portuguesas de catalogao. p. 35

  • 24

    1.2. Obra e manifestao

    Directamente relacionada com o binmio anterior est a distino entre

    obra e manifestao. Neste caso, a distino no se coloca ao nvel dos

    conceitos perfeitamente distintos do ponto de vista intelectual mas ao nvel da

    catalogao bastante mais difceis de distinguir do ponto de vista da aplicao

    das regras.

    Este debate muito mais antigo do que o debate sobre obra e expresso.

    Julia Pettee42, em 1936, introduziu o conceito de unidade literria (literary unit)

    a obra em oposio a unidade bibliogrfica (bibliographical unit) o documento

    chamando a ateno para a necessidade de distinguir entre o livro fsico em

    mo e o seu papel enquanto representante de uma unidade literria. Pettee

    considerava essencial que o catlogo reunisse as unidades literrias sob um

    nico cabealho independentemente das vrias formas em que estas pudessem

    ocorrer. O conceito foi desenvolvido, entre outros, por Eva Verona43, em 1959,

    por Seymour Lubetzky44, em 1961, por A. Domanovsky45, em 1974 e tem sido

    retomado nas ltimas duas dcadas por autores como Martha M. Yee46 e Richard

    P. Smiraglia47.

    Numa primeira anlise, podemos dizer que qualquer documento contm uma

    ou mais obras ou apenas partes de obras sendo, de imediato, fcil de perceber

    que descrever um documento no o mesmo que descrever uma obra e que

    estas realidades no so confundveis nem intermutveis. Em termos de

    catalogao, estes conceitos traduzem-se numa diferena fundamental: como

    unidade bibliogrfica, e para a funo repertorial do catlogo, o livro a edio de

    uma obra da qual se apresenta o nome do autor e o ttulo; enquanto unidade

    literria, e para a funo organizativa do catlogo, o livro a obra, dotada de um

    ttolo uniforme e di um nome uniforme do autor (Buizza48).

    42 Apud SMIRAGLIA, Richard P. The nature of a work, p.19-20 43 Idem Ibidem, p. 20 44 Idem Ibidem, p. 22-23 45 Idem Ibidem, p. 25-26 46 YEE, Martha M. What is a work? 47 SMIRAGLIA, Richard P. The nature of a work 48 BUIZZA, Pino Dai Principi di Parigi a FRBR, p. 1

  • 25

    Refora esta distino o facto de a maior parte das pesquisas bibliogrficas

    se realizarem para obras e no para edies49. Por esta razo, muitos cdigos

    catalogrficos estabelecem alguns critrios de distino explcitos ou implcitos

    entre obra e publicao. No entanto, estes critrios so estabelecidos, apenas,

    para efeitos da catalogao ou seja, como meras instrues para o catalogador

    destinadas a auxili-lo na tomada de deciso quanto ao estabelecimento de

    cabealhos de ttulo e/ou de autor.

    Em relao s AACR, explica Michael Heaney 50 : Theoretically, access

    points should arise from the description of the physical item, but in some instances

    they depend upon decisions about the 'nature' of a work: for example, the text

    versus commentary aspect or the original author versus revising author in AACR2

    rule 21.21B. [...] In the end the decision is based on the cataloguer's conception of

    what the work 'really' is. [...] The case where a known author is not named in the

    work. Here the cataloguer is instructed to give the known author as the main entry

    and to add a note identifying the person. Adding the note to the record is access

    determining description.

    Lynne C. Howarth51 chama a ateno para as incoerncias presentes nas

    AACR quanto a este assunto: na primeira parte dessas regras, referente

    descrio bibliogrfica, os elementos descritivos referem-se edio em mo o

    item sendo as fontes prescritas de informao dependentes do formato. Em

    contrapartida, a segunda parte, que trata os pontos de acesso, refere-se a obras e

    no a manifestaes fsicas dessas obras, embora mantenha uma dependncia

    pouco coerente relativa ao documento: While the code makes explicit that the

    descriptive cataloguing is physical object-focused, and access points are work-

    dependent, nonetheless the process involves using the chief source of information

    for the item-in-hand as a starting point for the choice and form of main and added

    entries.52

    49 YEE, Martha M. What is a work?, p. 4 50 Apud HOWARTH, Lynne C. Content versus carrier 51 HOWARTH, Lynne C. Content versus carrier 52 Idem Ibidem, p. 3

  • 26

    2. Relaes bibliogrficas

    Outra parte do debate tem focado as relaes bibliogrficas 53 . Existem

    relaes bibliogrficas quando entidades bibliogrficas isto , quaisquer

    conhecimentos registados num suporte so associados entre si de alguma

    maneira (Vellucci54). Vellucci especifica: Bibliographic relationships should also

    be distinguished from other relationships that exist in the bibliographic universe

    []. While both names and subjects may be related to a bibliographic entity, and

    both name entities and subject entities may be used to help identify bibliographic

    relationships and link related records, it is primarily those relationships between

    two bibliographic entities that are included in the study of bibliographic

    relationships.55

    O estudo das relaes bibliogrficas muito importante para o

    desenvolvimento de catlogos mais eficazes e amigveis, principalmente em

    sistemas automatizados. Pode permitir o melhor cruzamento de informao, no

    apenas no momento da pesquisa (mediante o uso de operadores booleanos),

    mas tambm no momento da visualizao, atravs da navegao entre registos

    bibliogrficos. Estas relaes podem ser explcitas ou implcitas, conforme o

    sistema estabelea, ou no, ligaes de um registo para outro. O formato

    UNIMARC, o mais usado nas bibliotecas Portuguesas, prev trs tipos de

    relaes bibliogrficas expressas atravs dos campos de ligao do bloco 4xx:

    1. Relaes verticais relaes todo-parte, por exemplo, a relao entre uma

    coleco e cada um dos volumes que a constituem.

    2. Relaes horizontais relaes entre verses em diferentes lnguas, formatos,

    meios, etc.

    3. Relaes cronolgicas relaes entre nmeros ou partes sucessivas.

    53 No Anexo 2 apresentamos um quadro que sintetiza os modelos descritos neste ponto. 54 VELLUCCI, Sherry L. Bibliographic relationships, p. 1 55 Idem Ibidem

  • 27

    Na tese de doutoramento sobre o tema, em 1987, Barbara Tillett 56 ,

    estabelece uma nova taxonomia de relaes bibliogrficas. Explicando que as

    trs relaes previstas no formato UNIMARC so insuficientes por no cumprirem

    os dois requisitos essenciais de uma taxonomia ser exaustiva e apresentar

    categorias mutuamente exclusivas , Tillett prope no trs mas sete tipos

    distintos de relaes bibliogrficas que pretendem cumprir esses requisitos:

    1. Relaes de equivalncia entre cpias exactas da mesma manifestao ou

    entre um original e a sua reproduo (facsimile, fotocpia, microforma, etc.). Estas

    relaes so destacadas atravs dos elementos catalogrficos: entrada repetida57,

    notas, ttulo uniforme.

    2. Relaes derivativas correspondentes s horizontais no formato UNIMARC.

    Relao entre um item58 bibliogrfico e uma modificao baseada no mesmo item,

    incluindo variaes ou verses, edies, revises, tradues, adaptaes,

    parfrases, novas obras baseadas em outras obras, etc. Estas relaes so

    destacadas atravs dos elementos catalogrficos: referncias, entradas repetidas

    para novas edies, menes de edio, notas, ttulos uniformes, referncias

    cruzadas, cabealhos de assunto, entradas principais, ttulos de ordenao,

    entradas secundrias. Foram posteriormente desenvolvidas por Smiraglia, como

    veremos mais frente.

    3. Relaes descritivas entre um item bibliogrfico ou obra e uma descrio,

    crtica, avaliao ou resumo dessa obra incluindo edies anotadas, comentrios,

    crticas, etc. Estas relaes so destacadas atravs dos elementos catalogrficos:

    notas, entrada principal, entradas secundrias, entradas de assunto.

    56 Apud VELLUCCI, Sherry L. Bibliographic relationships in music catalogs, p. 20-21 57 Dash entry: Um tipo de entrada exclusiva dos catlogos em papel e em uso apenas nas bibliografias. Um travesso (dash) encabea a ficha (ou a entrada) para indicar repetio do nome do autor seguida de outro travesso para indicar a repetio do ttulo. 58 O termo item, habitualmente utilizado na bibliografia em lngua inglesa e, particularmente, nas AACR, no tem uma correspondncia unvoca com qualquer termo em portugus. Com efeito, o termo item designa, por vezes, o exemplar em mos fisicamente considerado outras vezes uma determinada edio no obstante representada, necessariamente, por um determinado exemplar e outras vezes, ainda, uma verso de uma obra. Ao explanar as teorias produzidas por autores de lngua inglesa, respeitaremos o uso do termo item mas sempre ressalvando esta multiplicidade de sentidos. Neste caso concreto, o termo item abrange uma unidade bibliogrfica passvel de representao num catlogo. Poderamos traduzir por obra mas essa traduo resultaria enviesada em relao ao sentido com que o termo utilizado no nosso estudo.

  • 28

    4. Relaes de todo-parte correspondentes s verticais no formato UNIMARC.

    Relao entre uma parte componente de um item bibliogrfico ou obra e o seu

    todo, incluindo uma seleco de uma antologia, coleco ou srie. Estas relaes

    so destacadas atravs dos elementos catalogrficos: notas de contedo,

    entradas analticas, entradas secundrias, descrio multi-nvel, entradas

    repetidas, ttulos uniformes, referncias explicativas.

    5. Relaes de acompanhamento relaes entre um item bibliogrfico e o item

    bibliogrfico que o acompanha, como quando dois itens se ampliam mutuamente

    ou um item amplia o outro que o principal, incluindo suplementos,

    concordncias, ndices, catlogos, etc. Estas relaes so destacadas atravs

    dos elementos catalogrficos: meno de material acompanhante, notas,

    entradas repetidas, descrio multi-nvel, notas de ligao entre registos distintos.

    6. Relaes sequenciais correspondentes s cronolgicas no formato

    UNIMARC. Relaes entre itens bibliogrficos que continuam ou precedem outros,

    incluindo ttulos sucessivos de uma srie, sequelas de uma monografia, partes de

    sries, etc. Estas relaes so destacadas atravs dos elementos catalogrficos:

    notas, entradas secundrias, ttulos uniformes.

    7. Relaes de caracterstica partilhada relaes entre dois itens bibliogrficos

    pela coincidncia de um autor, ttulo, assunto ou qualquer outra caracterstica

    usada como ponto de acesso. Estas relaes so destacadas atravs dos

    elementos catalogrficos: ponto de acesso, lngua, editor comercial, data.

    Em 1992, em tese de doutoramento, Smiraglia59 desenvolve as relaes

    derivativas subdividindo-as em:

    59 Apud VELLUCCI, Sherry L. Bibliographic relationships in music catalogs, p. 25

  • 29

    1. Derivaes simultneas Obras em duas edies publicadas

    simultaneamente ou quase simultaneamente.

    2. Derivaes sucessivas Obras revistas uma ou mais vezes e editadas com a

    indicao de 2. (3., etc.) edio, nova edio, edio revista, etc., e ainda

    obras editadas sucessivamente com novos autores bem como obras editadas

    sucessivamente sem indicao da derivao.

    3. Amplificaes Obras acompanhadas de ilustraes, verses musicais dos

    textos, crticas, concordncias e comentrios que incluam o texto original.

    4. Extraces Resumos de obras, condensaes e excertos.

    5. Tradues Numa s lngua ou incluindo o texto original.

    6. Adaptaes Simplificaes, verses para cinema, libretos, arranjos de obras

    musicais e outras modificaes.

    7. Execues Incluindo gravaes sonoras ou visuais.

    Smiraglia introduz, ainda, o conceito de progenitor e de famlia

    bibliogrfica: a verso primeira de qualquer obra, uma verso que no deriva de

    qualquer outra e da qual todas as verses derivam.

    Em 1997, Vellucci 60 acrescenta duas novas subdivises das relaes

    derivativas, estas aplicveis apenas s obras musicais:

    Apresentao musical Refere-se s caractersticas fsicas do modo de

    transmisso da obra, ou seja, o tipo de partitura. Pode ser partitura, partitura

    vocal, parte ou outro termo apropriado.

    60 VELLUCCI, Sherry L. Bibliographic relationships in music catalogs

  • 30

    Transcrio notacional Consiste na transcrio da msica de um sistema

    de notao para outro, por exemplo, de notao mensural para notao moderna.

    Em 1998, Mey61 prope outra subdiviso das relaes derivativas as quais,

    de algum modo, reagrupam as propostas anteriores:

    1 Relaes derivativas directas entre as diferentes edies de uma obra, sem

    que haja mudana ou acrscimo de responsabilidade, isto , em que o contedo

    apresente poucas variaes;

    2 Relaes derivativas conexas entre uma obra original e as suas tradues ou

    manifestaes em outro suporte fsico preservando-se o contedo original, por

    exemplo, o texto de uma pea teatral e sua leitura em disco ou uma transcrio

    de msica para instrumento diferente daquele indicado na partitura original;

    3 Relaes derivativas temticas entre a obra original e manifestaes dela

    originadas, com mudana substancial de contedo mas preservao do tema, por

    exemplo, novas edies com acrscimo ou mudana de responsabilidades,

    pardias, adaptaes, entre outras.

    3. O utilizador e a pesquisa

    Estes debates tm tido como pano de fundo o binmio reduo de custos /

    interesse do utilizador. Contudo, este binmio parece-se mais com um antnimo

    porque o primeiro objectivo se atinge com a diminuio do detalhe na descrio

    o chamado nvel mnimo e o segundo com um enriquecimento da descrio e

    das relaes bibliogrficas por esta destacadas.

    61 Apud MEY, Eliane Acesso aos registos sonoros

  • 31

    Em 1997, Yee62 apresenta um estudo sobre o conceito de obra que parte da

    forma como o utilizador lida com o catlogo, baseada na sua observao

    enquanto profissional. Essa observao leva-a a concluir que: 1) os utilizadores

    procuram obras e no edies; 2) partem do princpio que, numa pesquisa, so

    apresentadas todas as edies de uma dada obra; 3) normalmente desconhecem

    edies que no encontram; 4) raramente tm meios de protestar ou lamentar-se

    e, mesmo quando o fazem, no sabem analisar o problema para alm de dizerem

    que no encontram o que procuram.

    Ainda segundo Yee, quando os utilizadores no se queixam, isso no

    significa que o catlogo esteja a cumprir a sua funo: One of the major reasons

    we call ourselves a profession is that we have a kind of expert knowledge our

    users do not necessarily have that allows us to help or harm them without their

    realizing it. Thus, we have a professional and social responsibility to do everything

    we can to help rather than harm, *even though* they cannot evaluate our work.63

    A principal funo da catalogao , assim, para Yee, organizar o universo

    bibliogrfico catico de forma a permitir aos utilizadores seleccionar a edio da

    obra que vai ao encontro das suas necessidades quanto lngua, ilustrao,

    proximidade fonte original, etc.

    Esta reflexo est directamente relacionada com as discusses

    anteriormente expostas e com o ponto que se segue.

    4. Os FRBR

    Em 1990, o Seminrio de Estocolmo sobre os Registos Bibliogrficos 64

    decidiu a criao de um grupo de trabalho visando a definio dos requisitos

    funcionais dos registos bibliogrficos (FRBR65). Para este debate, longe de estar

    encerrado (mesmo depois da publicao dos FRBR, em 1998), tm contribudo

    62 YEE, Martha M. What is a work? 63 Idem Ibidem, p. 4. E prossegue:I particularly want to make this point, because we are a profession under attack by a society that has never grasped the nature of our expertise, and thinks that Bill Gates intelligent assistants are going to solve all the problems they are having finding things on the Internet. 64 Sob a gide do Programa de Controlo Bibliogrfico Universal e Formato MARC Internacional (UBCIM) da IFLA e da Seco de Controlo Bibliogrfico da IFLA. 65 Functional Requirements for Bibliographic Records

  • 32

    especialistas em todo o mundo com maior incidncia nos Estados Unidos da

    Amrica, Canad, Reino Unido, Frana e Itlia. Neste encontro foram adoptadas

    nove resolues, uma das quais deu origem ao projecto de definio dos

    requisitos funcionais dos registos bibliogrficos. Tratou-se de elaborar um quadro

    conceptual que permitisse compreender claramente que informaes o registo

    bibliogrfico visa fornecer e a prpria essncia daquilo que esperamos do registo

    bibliogrfico, em termos de adequao s necessidades dos utilizadores.

    Este estudo aplicou um modelo designado modelao entidade-relao66

    (entity-relationship modelling) utilizado no desenvolvimento de modelos

    conceptuais de sistemas de bases de dados relacionais. O conceito de entidade

    um conceito importado da filosofia para a cincia da informao. Neste modelo,

    entidades so as coisas acerca das quais se recolhe e conserva informao. A

    primeira aco da tcnica de anlise de entidades consiste em isolar os objectos

    fundamentais pertinentes para os utilizadores da informao num domnio

    determinado (no necessariamente bibliogrfico). Por outras palavras, o que o

    utilizador de uma base de dados procura. O utilizador pode procurar diversas

    coisas que o modelo designa por entidades. Este o modelo que o estudo

    aplicou s bases de dados bibliogrficas. O objectivo foi chegar a um modelo

    conceptual a partir do qual fosse possvel estabelecer correspondncias entre, de

    um lado, os atributos e relaes especficos e, de outro lado, as diversas

    operaes efectuadas pelos utilizadores quando consultam os registos

    bibliogrficos. Este modelo conceptual permitiria, por sua vez, adequar os dados

    que figuram nos registos bibliogrficos s necessidades dos seus utilizadores e

    preconizar um nvel mnimo do conjunto das funes que devem ser asseguradas

    pelos registos bibliogrficos que as agncias bibliogrficas nacionais produzem.

    O utilizador pode procurar uma obra67 ou seja, uma criao intelectual ou

    artstica, por exemplo, a obra dramtica Macbeth, de William Shakespeare ou a 9

    66 A tcnica de anlise entidade-relao aplicada pelo grupo de trabalho foi baseada em: MARTIN, James Strategic data-planning methodologies. Prentice-Hall, 1982; SIMSION, Graeme Data modeling essentials. Van Nostrand Reinhold, 1994; PERKINSON, Richard Data analysis : the key to data base design. QED Information Sciences, 1984; ELMASRI, Ramez et NAVANTHE, Shamkant Fundamentals of database systems. Benjamin : Cummings, 1989.

  • 33

    Sinfonia de Beethoven. Trata-se de uma entidade puramente abstracta, destituda

    de qualquer materialidade; no existe qualquer objecto material que possa ser

    designado como obra. A entidade obra apenas uma representao mental. A

    entidade obra pode ainda constituir uma combinao de obras individuais

    reunidas por um editor cientfico (as actas de um congresso, por exemplo), um

    ciclo de canes, uma reunio de documentos privados articulados num nico

    fundo de arquivo. De igual modo, a entidade obra pode representar um elemento

    de uma obra de dimenses mais vastas como uma ria de uma pera, uma

    comunicao num congresso ou uma carta.

    O utilizador pode procurar uma expresso de uma obra, ou seja, a sua

    realizao sob qualquer forma. atravs da expresso que se reconhece a

    obra que lhe subjaz. uma entidade concreta mas ainda imaterial. Uma obra

    pode encontrar a sua realizao em uma ou mais expresses (por exemplo, o

    texto original, em ingls do sculo XVII, da obra Macbeth, uma verso em grafia

    moderna da mesma obra ou ainda uma certa representao teatral dessa obra;

    a partitura integral da 9 Sinfonia de Beethoven, a sua reduo para piano ou uma

    interpretao da mesma obra pela Orquestra Filarmnica de Berlim). Toda a

    alterao da forma (por exemplo, a declamao de um texto escrito) constitui uma

    nova expresso. De igual modo, o facto de alterar as convenes intelectuais

    (por exemplo, uma traduo) ou os utenslios que servem para exprimir uma

    obra (por exemplo, os instrumentos musicais) d origem a uma nova

    expresso da mesma obra. Uma expresso, por seu lado, constitui a

    realizao de uma nica obra pois, quando resultar da fuso de duas ou mais

    obras, constitui uma nova obra.

    O utilizador pode, tambm, procurar uma determinada manifestao, ou

    seja, a materializao da expresso de uma obra, seja a edio princeps de

    Macbeth ou a edio em DVD da sua representao teatral; seja uma edio da

    partitura integral da 9 Sinfonia ou a edio em CD de uma dada interpretao.

    67 Estes termos ocorrero entre aspas sempre que designem as entidades, atributos, relaes ou operaes no contexto do modelo para que no haja lugar a equvocos quando usados com o sentido corrente.

  • 34

    uma entidade concreta e material. Uma expresso pode materializar-se em uma

    ou mais manifestaes (por exemplo, as edies sucessivas de Macbeth). Uma

    manifestao pode representar mais do que uma expresso (por exemplo,

    uma edio contendo Macbeth, Henry V e King Lear). Por vezes, pode existir um

    nico exemplar de uma manifestao (o caso de um manuscrito, por exemplo,

    ou um registo sonoro original de uma apresentao ao vivo). Noutros casos,

    existem mltiplos exemplares da mesma manifestao (o caso dos diversos

    exemplares de uma mesma edio).

    Pode o nosso utilizador, ainda, procurar um item especfico de uma

    manifestao. Item, neste caso, tem um sentido muito prximo do termo

    exemplar mas no designa exactamente a mesma coisa. Um item pode ser

    mltiplo, ou seja, pode ser constitudo por vrias unidades materiais. O conjunto

    completo de todos os volumes do Dicionrio da Histria de Portugal constitui, para

    efeitos do modelo, um item. Um item pode ser tambm um nico exemplar, por

    exemplo, o exemplar de uma edio de Macbeth ricamente encadernado

    existente na British Library ou um exemplar impresso da partitura da 9 Sinfonia

    de Beethoven com as anotaes manuscritas do maestro Herbert Von Karajan.

    Trata-se de uma entidade concreta, material e tangvel. um objecto. Uma

    manifestao pode ser representada por um ou mais itens. Mas um item

    pode representar apenas uma manifestao.

    Esta multiplicidade de relaes entre as entidades expressa no esquema

    da fig. 2.

  • OBRA

    EXPRESSO

    MANIFESTAO

    ITEM

    Realizada atravs de

    Materializada em

    Representada por

    Fig. 2

    Le Buf68 explica assim como a palavra livro entendida na linguagem

    corrente e entendida sob a abordagem do modelo:

    When we say book, what we have in mind may be a distinct, merely

    physical object that consists of paper and a binding; FRBR calls it Item;

    When we say book, we also may mean publication as when we go to

    our booksellers and ask for a publication identified by a given ISBN: the particular

    copy does not matter to us, provided it belongs to the general class of copies we

    require and pages are not missing; FRBR calls it Manifestation;

    When we say book, as in Who wrote that book?, we may have a specific

    text in mind, the intellectual content of a publication; FRBR calls it Expression;

    When we say book, we eventually may mean an even higher level of

    abstraction, the conceptual content that underlies all of its linguistic versions,

    either the original or a translation; the thing that an author may recognize as

    his/her own, even in, say, a Japanese translation and even though he/she cannot

    speak Japanese, and cannot therefore be held as responsible for the Japanese

    text; FRBR calls it Work.

    3568 LE BUF, Patrick Brave new FRBR world, p. 3

  • 36

    No so estas as nicas entidades que o nosso utilizador pode procurar num

    catlogo bibliogrfico. Ele tambm pode procurar num catlogo pessoas ou

    colectividades (organizaes ou instituies) que tiveram ou tm

    responsabilidade intelectual, editorial, material, comercial ou outra na criao,

    realizao, publicao, produo, posse, etc. de obras, expresses,

    manifestaes ou exemplares. Le Buf69 chama-lhes actores.

    Uma obra pode emanar de uma ou mais pessoas e/ou de uma ou mais

    colectividades. Em contrapartida, uma pessoa ou uma colectividade pode

    estar na origem de uma ou mais obras. Uma expresso pode ser realizada por

    uma ou mais pessoas e/ou colectividades. Por seu lado, uma pessoa ou

    colectividade pode realizar uma ou mais expresses. Uma manifestao

    pode ser produzida por uma ou mais pessoas e colectividades que, por sua

    vez, podem produzir uma ou mais manifestaes. Um item pode estar na

    posse de uma ou mais pessoas e/ou colectividades os quais podem possuir ou

    deter um ou mais itens.

    Finalmente, o utilizador pode recorrer ao catlogo para procurar assuntos. O

    modelo distingue apenas quatro conceito, objecto, acontecimento ou lugar

    embora o debate posterior tenha vindo a propor outros. Tambm as entidades j

    mencionadas podem constituir o assunto de uma obra e enquanto tal so

    passveis de ser procurados pelos utilizadores do catlogo.

    Uma obra pode ter por assunto um ou mais conceitos, objectos,

    acontecimentos e/ou lugares . Em contrapartida, um conceito, um objecto,

    um acontecimento e/ou um lugar podem ser assunto de uma ou mais obras.

    Uma obra pode ter ainda por assunto uma ou mais obras, expresses,

    manifestaes e itens, bem como uma ou mais pessoas e colectividades.

    Uma vez isoladas as entidades, o estudo do Grupo de Trabalho para os

    FRBR identificou as caractersticas ou atributos que se ligam a cada uma destas

    entidades. Por outras palavras, em que consiste cada entidade e o que a

    69 LE BUF, Patrick Brave new FRBR world, p. 3.

  • 37

    distingue de outra entidade. Finalmente, procurou as relaes entre as entidades

    e entre estas e os respectivos atributos e em que medida estas podem resultar

    em informao pertinente para o utilizador.

    Foi tambm necessrio determinar o que a informao pertinente para o

    utilizador de acordo com critrios coerentes e pr-definidos. Para determinar a

    pertinncia da informao, o modelo define um conjunto de operaes que os

    utilizadores efectuam no decurso da consulta e explorao de uma bibliografia ou

    catlogo. Quando se diz mais atrs que o utilizador procura obras, manifestaes,

    pessoas ou assuntos, no se especifica o que se entende por procurar. O

    modelo esmiua o conceito ao definir quatro operaes muito especficas que os

    utilizadores do catlogo efectuam no decurso da sua explorao.

    Assim, o utilizador pode utilizar o catlogo para:

    Encontrar as entidades que correspondem aos seus critrios de pesquisa

    (por exemplo, encontrar todos os documentos relativos a um determinado assunto

    ou encontrar uma obra publicada com um determinado ttulo);

    Identificar uma entidade (por exemplo, obter a confirmao de que o documento descrito numa entrada bibliogrfica corresponde quele que o

    utilizador procura ou estabelecer a distino entre dois textos ou dois registos

    com o mesmo ttulo);

    Escolher uma entidade que seja adequada s suas necessidades (por exemplo, escolher um texto redigido numa lngua que o utilizador compreenda ou

    um documento electrnico numa verso compatvel com a verso do sistema

    operativo de que o utilizador dispe);

    Aceder materialmente entidade descrita (por exemplo, fazer uma

    encomenda a uma editora, pedir emprstimo de um item existente numa

    biblioteca ou consultar em linha um documento existente noutro computador).

    O FRBR no uma norma mas um modelo de referncia70. Permite-nos ter

    a mesma estrutura em mente e referir os mesmos conceitos sob as mesmas

    70 LE BUF, Patrick Brave new FRBR world, p. 3

  • 38

    designaes. Permite-nos comparar informao que pode no estar estruturada

    da mesma forma no todo ou em parte71.

    Este modelo tem, entre outros, o grande mrito de colocar em p de

    igualdade sem qualquer espcie de hierarquizao ou valorao a priori a

    maior parte dos elementos passveis de integrar uma entrada bibliogrfica

    permitindo, assim, a sua avaliao em funo do interesse para o utilizador

    enquanto dado pesquisvel e no em funo de qualquer valorao ditada pela

    tradio, pela cultura ou pelo hbito. Este aspecto particularmente importante na

    medida em que a tradio catalogrfica partiu (como j se viu) da descrio de

    monografias e que este facto condicionou todas as normas de descrio que se

    seguiram, at hoje, sem que ainda se tenham libertado dessa condicionante. As

    indicaes geral e especfica da tipologia do documento (msica impressa,

    cassete vdeo, cartaz, etc.) s se d quando no se est a descrever um

    documento textual impresso. A prpria norma de descrio de monografias

    tambm resultou de uma tradio catalogrfica prvia que, por sua vez, resultou

    da adaptao dos catlogos tradio fsica e editorial dos livros. Os primeiros

    tipgrafos, semelhana dos copistas medievais, indicavam por vezes no final do

    texto o clofon72 o seu nome e o lugar e data da impresso. Durante o sculo

    XVI acrescenta-se, no final do volume73, o ttulo exacto da obra e o nome do autor,

    o do tipgrafo/livreiro, o lugar e a data de impresso, seguida por vezes pela

    marca tipogrfica74.

    medida que o livro impresso se vai libertando da tradio do cdice e que

    os impressores vo adquirindo relevo social e cultural simultaneamente editores

    e livreiros, eles prprios so, muitas vezes, intelectuais que conduzem a sua

    poltica editorial por critrios humanistas75 estas indicaes passam para lugar

    mais destacado, na mesma pgina onde se encontra o ttulo e o autor da obra

    71 Idem Ibidem, p. 3 72 As Regras Portuguesas de Catalogao usam o termo Colofo. Do grego kolophn. Na Grcia antiga designava a indicao, situada no final da ltima coluna de um manuscrito em rolo (volumen), do nmero de folhas de que era composto, assim como do nmero de colunas e de linhas nele escritas; este costume transmite-se ao cdice em pergaminho: o clofon medieval contm a data do acabamento do trabalho, lugar onde foi copiado, nome, idade, qualidade do escriba, etc. e o explicit, frmula final que inclua por vezes o nome do autor do texto, do tradutor (no caso de se tratar de uma traduo), o ttulo da obra e o remate. (Cf: Novo dicionrio do livro da escrita ao multimdia) 73 De volumen, manuscrito em rolo. (Cf: Novo dicionrio do livro...) 74 Novo dicionrio do livro... 75 Como, por exemplo, Aldo Manuzio (14-- - 1515), um importante impressor humanista italiano.

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    impressa: a pgina de rosto76. Fonte prescrita de informao para a maior parte

    dos dados catalogrficos, a pgina de rosto , pois, quase to antiga como a

    prpria tipografia. A margem inferior (ou de p) da pgina de rosto, onde os

    impressores inseriam estas indicaes, d origem ao da zona que as Regras

    Portuguesas de Catalogao ainda designam por zona do p d