catalisando o processo perceptivo

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#07 – Ago/Set 2010 Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #07 | Ago/Set 2010 Catalisando o processo perceptivo Renan Marcondes 1 Vivemos em uma época onde há que se considerar um fato: Não se pensa mais em produção contemporânea sem se pensar em estranhamento. Na verdade, talvez esse seja um pensamento decorrente de todas as transições de períodos artísticos, afinal, ao se pensar a arte como um sistema em constante transição e alteração de seus próprios conceitos e propostas, sempre se colocando em dúvida, é de se pressupor essa quebra constante de seus próprios padrões para o surgimento do novo. Mas a obra de arte, por estar inserida em um contexto de inter-relação entre produtor e observador, sofre interferência direta da reação do público que, de acordo com Leo Steinberg: “ao confrontar com um novo trabalho de arte, essas pessoas (o público) podem se sentir excluídas de algo que supunham ser parte – uma sensação de ser impedido ou destruído de alguma coisa.” 2 . Sem dúvida é muito difícil - mesmo para quem possui contato direto com as constantes transições de produção - lidar com o novo, que certamente trará consigo uma quebra de conceitos pré-estabelecidos e gerará discussões que ainda não foram totalmente solucionadas. A situação é considerada mais delicada quando o público que tem contato com a produção-ruptura é o considerado leigo, o que na verdade é um conceito totalmente errôneo, pois todos possuímos nossa própria visão e interpretação de determinado objeto com base em nosso repertório pessoal, seja ele artístico ou não. Mas afinal, como é a resposta aos estímulos visuais que a obra infere no observador? Sabe-se que a questão da percepção parte inicialmente de uma reação visual de sujeito para objeto para depois chegar-se a reação motora (sensação) e afetiva, onde está inserida a experiência estética. Partindo desse pressuposto, concluímos que todo e cada ser humano 1 Renan Marcondes é graduando do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. 2 STEINBERG, Leo. A arte contemporânea e a situação de seu público. In:_______Outros critérios: confrontos com a arte do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Pp. 25

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Artigo de Renan Marcondes

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Page 1: Catalisando o processo perceptivo

#07 – Ago/Set 2010

Revista Bimestral de Arte Panorama Crítico | ISSN 1984-624X | Edição #07 | Ago/Set 2010

Catalisando o processo perceptivo

Renan Marcondes1

Vivemos em uma época onde há que se considerar um fato: Não se

pensa mais em produção contemporânea sem se pensar em estranhamento.

Na verdade, talvez esse seja um pensamento decorrente de todas as

transições de períodos artísticos, afinal, ao se pensar a arte como um sistema

em constante transição e alteração de seus próprios conceitos e propostas,

sempre se colocando em dúvida, é de se pressupor essa quebra constante de

seus próprios padrões para o surgimento do novo. Mas a obra de arte, por

estar inserida em um contexto de inter-relação entre produtor e observador,

sofre interferência direta da reação do público que, de acordo com Leo

Steinberg: “ao confrontar com um novo trabalho de arte, essas pessoas (o

público) podem se sentir excluídas de algo que supunham ser parte – uma

sensação de ser impedido ou destruído de alguma coisa.” 2. Sem dúvida é

muito difícil - mesmo para quem possui contato direto com as constantes

transições de produção - lidar com o novo, que certamente trará consigo uma

quebra de conceitos pré-estabelecidos e gerará discussões que ainda não

foram totalmente solucionadas.

A situação é considerada mais delicada quando o público que tem

contato com a produção-ruptura é o considerado leigo, o que na verdade é um

conceito totalmente errôneo, pois todos possuímos nossa própria visão e

interpretação de determinado objeto com base em nosso repertório pessoal,

seja ele artístico ou não. Mas afinal, como é a resposta aos estímulos visuais

que a obra infere no observador? Sabe-se que a questão da percepção parte

inicialmente de uma reação visual de sujeito para objeto para depois chegar-se

a reação motora (sensação) e afetiva, onde está inserida a experiência

estética. Partindo desse pressuposto, concluímos que todo e cada ser humano

1 Renan Marcondes é graduando do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. 2 STEINBERG, Leo. A arte contemporânea e a situação de seu público. In:_______Outros critérios: confrontos com a arte do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Pp. 25

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terá sua experiência pessoal com cada objeto visto, que no caso do objeto

artístico, dependendo do grau de contato que o indivíduo possui com a arte

como um todo, gerará níveis diferentes de relações. Porém, devemos ter muito

cuidado para não hierarquizar esses níveis citados, afinal a experiência com a

obra que remete a um forte fato pessoal pode ser considerada muito mais

significativa do que a experiência onde uma obra remete a um trecho de livro

ou artista que a influenciou. Percebe-se a fragilidade desse nivelamento tão

comumente feito entre tipos de relação ao nos aprofundarmos nesses

pensamentos, afinal a obra artística, apesar de estar composta de signos que

exprimem um pensamento de seu autor (pessoal ou conseqüente do externo)

possui interpretações visuais plurais e decorrentes de fatores também plurais

que gerarão diferentes experiências estéticas. Temos aqui uma multiplicação

de fatores que levam as possibilidades de interpretação ao infinito.

Reforçando a idéia do contato pessoal e da percepção inerente a cada

um, cito Maurice Merleau-Ponty em seu livro “O visível e o invisível”:

Ora, é claro que no caso da percepção a conclusão vem antes das razões, que só estão aí para manter o lugar e socorrê-la quando abalada. Se procurarmos as razões é porque já não conseguimos ver, ou porque outros fatos, como a ilusão, nos incitam a recusar a própria evidência perceptiva. Sustentar, entretanto, que ela se confunde com as razões que temos para devolver-lhe algum valor depois que foi abalada, é postular que a fé perceptiva sempre foi resistência à dúvida, e o positivo, negação da negação.3

Dessa forma, vemos o conceito da percepção como algo instintivo e que

não necessita de explicação, sendo ela decorrente de uma necessidade de

afirmar o que se pensa com base em funcionalidades teóricas. Pensando

desse modo, podemos colocar em cheque a posição do arte-educador e sua

função dentro de um espaço expositivo, principalmente quando se trata de uma

exposição sobre arte contemporânea mundial de grande proporção como a

Bienal. Qual o papel da mediação para um objeto que oscila entre a repulsa e a

resposta emocional instantânea do observador?

Como exemplo, vejamos o elemento químico Platina: hidrogênio e

oxigênio gasosos são virtualmente inertes à temperatura ambiente, mas

reagem rapidamente quando expostos à platina, que por sua vez é o agente

3 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2000. Pp. 57-58

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catalisador da reação4. O mediador possui, portanto, a mesma função da

platina, ou seja, o papel de catalisador, sendo um agente que facilita e acelera

as relações sem delas participar diretamente. A interferência dele na relação

espectador/obra é de instigador e propositor, com o objetivo único de facilitar e

desenvolver a relação que a pessoa ou grupo já estabeleceria naturalmente.

Até mesmo porque grande parte da produção apresentada não possui a

conceituação suficiente para uma apresentação formal da poética de cada

artística e, se possui - como no caso de Flávio de Carvalho - é muito extensa

para o tipo de contato de arte-educação realizado em uma visita monitorada.,

que geralmente dura em média 1h30/2h.

Refere-se à transformação do contato passivo para o ativo, revelando a

percepção e “reconhecimento das idéias artísticas como uma das maiores

contribuições para a sociedade (...)”5. Robert Ott, escritor da citação anterior,

possui uma visão de transmissão de arte em museus não como ensino de

conceitos técnicos e históricos, mas como momento de se contemplar e de se

pensar sobre arte. Desenvolvendo seu conceito e pensando na Bienal, a

proposta é de se contemplar e pensar não somente a arte, mas também toda

nossa estrutura social e política e como elas se inter-relacionam, assim como

estão apresentadas através dos meios presentes na mostra.

Não somente, o papel do educador também se refere à contextualização

das propostas curatoriais e artísticas de cada grupo de obras ou de cada obra

em si. Pensando na temática principal da mostra: “Arte e Política”,

naturalmente é necessária a apresentação da possibilidade de aproximação

entre esses dois conceitos que, apesar de não possuírem relação direta podem

ser conjugados em diferentes instâncias por serem polissêmicos, como

afirmado por Miguel Chaia em palestra dada durante o curso de formação de

arte-educadores da 29ª Bienal. Há que se pensar também nesse

estabelecimento de relações não apenas no âmbito informativo e conceitual,

mas como experiência fornecida ao observador enquanto ser humano. Jorge

Larossa cita a importância da palavra em nossa existência, remetendo à

4 In: <http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20060803131642AAo8YrE> Acesso em:16 Jun. 2010 – 9h 5 OTT, Robert William. Ensinando crítica nos museus. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte Educação: leitura no subsolo. – São Paulo: Cortez, 1997 – pp. 112

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definição de zôon lógon échon dada por Aristóteles ao homem, ou seja,

tratando-o como um vivente com palavra. Acredito, porém, que a vivência de

uma BIENAL deva transcender essa característica intrínseca e – porque não? –

limitadora que está contida em todos nós, sendo uma experiência de contato

com a arte que é - em seu limite – uma experiência sinestésica e

transformadora.

Por se tratar do primeiro contato que muitos grupos terão com arte

contemporânea, acredito ser ainda mais forte essa representatividade da visita

guiada como experiência, pois nossa situação em relação à criação da cultura

de se relacionar com cultura desde cedo ainda é precária. Existe, por parte da

crítica especializada, curadores e público de arte em geral, a necessidade de

uma teorização para qualquer tipo de produção que tiver a premissa de ir ao

público e ser difundida na sociedade. Tanto já foi visto e discutido pela arte,

incluindo sua própria função e utilidade, que a busca por temas e conceitos

tomou níveis que simplesmente não correspondem com a outra parcela da

sociedade que não “vive” arte. Ao tratar desse tema, é necessário abrir um

parenteses para o Brasil e sua relação com a arte, pois possuímos uma cultura

popular onde a arte contemporânea não está incluída como deveria, alias, todo

o tipo de arte passada durante os anos de formação é, ao meu ver,

parcialmente deturpada e ocidentalizada, muitas vezes focando em conceitos,

épocas e estilos que visam somente na aprovação em um vestibular e que não

oferecem ao aluno a amplitude da arte e, portanto, não despertam o interesse

dos jovens em se aproximar da arte. Por vir de uma longa data esse tipo de

ensino que limita o desenho logo na primavera do desenho infantil - como

estudado por Edith Derdyck no seu livro “Formas de se pensar o desenho” - e

que apresenta a arte de forma totalmente maçante e desestimulante (salvo

raríssimas exceções de professores conscientes que se auto-estimulam para a

pesquisa de arte-educação, visto que toda essa teoria e informação está muito

direcionada apenas a quem tem o interesse prévio de procurá-la); há a criação

de um ciclo vicioso, onde os pais também não estimulam esse tipo de interesse

dentro de casa e que termina por criar um distanciamento da grande massa da

arte e da busca da sua compreensão pessoal do que ela representa. Há,

principalmente nessa geração, um enorme “pré-conceito”, que deriva tanto

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dessa metodologia precária e mal-estruturada de uma sociedade que visa

muito mais outras áreas do conhecimento em detrimento das artes, quanto da

situação já mencionada do desconhecido, do estranho, que em qualquer

situação, gera um primeiro afastamento e receio por parte do homem.

Cito novamente a catalização do contato com arte contemporânea para

facilitar a ruptura de alguns conceitos já estabelecidos e oriundos de diversos

fatores pessoais e históricos de cada visitante. Devemos, como arte-

educadores, quebrar todas as barreiras possíveis de serem quebradas no

período de uma visita e tentar, através da boa mediação (que é passível das

mais diferentes configurações e propostas) criar vínculos entre o

observador/grupo e a produção contemporânea, de modo a fazê-lo perceber

que uma obra vista diz muito a respeito dele próprio como observador e da

sociedade e contexto no qual está inserido e, desse modo, instigá-lo a estreitar

esse contato, tornando sua relação com a arte, exposições e mostras mais

freqüente e, conseqüentemente, mais rica.

Referências Bibliográficas

STEINBERG, Leo. A arte contemporânea e a situação de seu público. In:_______Outros critérios: confrontos com a arte do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Pp. 25

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2000. Pp. 57-58 OTT, Robert William. Ensinando crítica nos museus. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte Educação: leitura no subsolo. – São Paulo: Cortez, 1997 – pp. 112

COLI, Jorge. O que é Arte? 2.ed. São Paulo : Brasiliense, 1982 DERDYCK, Edith. Formas de se pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. 2.ed. São Paulo : Scipione, S.d. BARBOSA, Ana Mae T.B. Arte educação no Brasil: Das origens ao modernismo. São Paulo : Perspectiva, 1978 BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução por João Wanderley Geraldi. Barcelona. 2002. Disponível em: <http://www.miniweb.com.br/atualidade/info/textos/saber.htm> Acesso em: 26 Jun. 2010