castoriadis c. a crise do processo de identificação

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A crise do processo de identificagao* Os processos propriamente psicanali'ticos e psicossociologi- cos da questao da identificaÿ ao ja foram, senao esgotados (como poderiam se-lo?), ao menos longamente abordados pelos parti- cipantes que me precederam. Assim, eii me situarei de um outro ponto de vista, o ponto de vista social-historico, que nao signifi- ca sociologico no sentido habitual. Contrariamente a Andre NicolaT - se o compreendi bem , penso que existe realmente uma crise da sociedade contem- poranea, e que esta crise, ao mesmo tempo em que produz a crise do processo de identificaÿ ao, e por ela reproduzida e agra- vada. Eu me colocarei, portanto, a partir de um ponto de vis- ta global, afirmando que o processo de identificagao, em. sua especificidade sempre singular para cada sociedade historica- mente institufda, e que a propria identificagao constituem momentos da totalidade social, e ainda que, nem um nem outra, positivamente ou negativamente, fazem sentido quando destacados desta totalidade. Para justificar este enunciado, um * Apresentaÿ ao em um coloquio organizado em raaio de 1989 pela Association de recherche et d'intervention psychosociologique (Arip), "Malaise dans ['identification", cujos anais foram publicados com este mesmo tftulo no n* 55 de Connexions (1990/1). 145

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Castoriadis C. a Crise Do Processo de Identificação

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  • A crise do processode identificagao*

    Os processos propriamente psicanali'ticos e psicossociologi-cos da questao da identificaao ja foram, senao esgotados (comopoderiam se-lo?), ao menos longamente abordados pelos parti-cipantes que me precederam. Assim, eii me situarei de um outroponto de vista, o ponto de vista social-historico, que nao signifi-ca sociologico no sentido habitual.

    Contrariamente a Andre NicolaT - se o compreendi bem-

    , penso que existe realmente uma crise da sociedade contem-

    poranea, e que esta crise, ao mesmo tempo em que produz acrise do processo de identificaao, e por ela reproduzida e agra-vada. Eu me colocarei, portanto, a partir de um ponto de vis-ta global, afirmando que o processo de identificagao, em. suaespecificidade sempre singular para cada sociedade historica-mente institufda, e que a propria identificagao constituemmomentos da totalidade social, e ainda que, nem um nemoutra, positivamente ou negativamente, fazem sentido quandodestacados desta totalidade. Para justificar este enunciado, um

    *

    Apresentaao em um coloquio organizado em raaio de 1989 pelaAssociation de recherche et d'intervention psychosociologique (Arip), "Malaisedans ['identification", cujos anais foram publicados com este mesmotftulo no n* 55 de Connexions (1990/1).

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  • K OIN ON IA

    tan to forte, tomarei alguns exemplos nas materias ja levama-das aqui.

    E bcm verdade que podemos elucidar, senao explicar, a cnse

    da identificaao na sociedade contemporanea em referenda eenfraquecimento ou ao deslocamento do que Jacqueline Palmade chama de escora do processo de identificaao em dive.,entidades socialmente instituidas

    , como a habitaao, a familia olocal de trabalho

    , etc. Mas nao devemos parar por aqui, em vir

    tude de uma considerable muito simples. Tomemos o exemplo

    da habitaao. Conhecemos povos, grandes povos ou pequena:-:

    tribos, que sempre viveram como nomades. A habitacao tern.

    entre eles, um sentido inteiramente diferente.

    & verdade que atenda que e deslocada pelas estepes da Asia Central e um lugarde referenda para o individuo ou a familia; mas em uma socie -dade assim, ve-se imediatamente que a questao esta instituidade forma bem diferente

    , e a possibilidade de encontrar sentido

    no lugar em que se esta depende de outros fatores alem de sua"estabilidade"

    .

    A mesma coisa em relaao aos ciganos, ou entao,

    nas sociedades que conhecemos no passado, em relagao a pes-

    soas como os mercadores ambulantes, que existem ha pelo

    menos tres mil anos, os marinheiros, etc.

    O mesmo em relaao a escora familiar. Nao serei eu, freu-

    diano fervoroso e psicanalista, que subestimarei a importancia

    do meio e dos laos familiares, seu papel capital, decisivo, para

    a hominizagao do pequeno monstro recem-nascido.

    Tambemnao podemos esquecer que nao devemos nos fixar sobre umtipo de familia meio-real

    , meio-idealizada, que pode existir em

    certas camadas da sociedade ocidental durante os ultimos doisseculos, e concluir pela necessidade de uma crise de identifica-cao pelo fato de que este tipo se encontra hoje incontestavel-mente em crise.

    Sem pretender fazer uma excursao historica, podemos lem-

    brar que os espartanos, que nao eram muito simpaticos, erarn

    indivlduos inteiramente "normals", funcionavam perfeitamente

    conquistaram vitorias durante seculos, etc. Mas o "meio am-

    biente familiar" em Esparta era bem diferente do que considera-mos como "normal". A criacjao das criancas,

    exceto no perfodo

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    A CRISE DO PROCESSO Dt I DENT IF IC Ac AO

    de aleitamento, era feita de modo diretamente social e, comodiriam os intelectuais semi-analfabetos modernos, de modo"totalitario".

    Em tercei.ro lugar, todos esses fenomenos, por exemplo, oenfraquecimento da familia, o enfraquecimento da habitacaocomo escora, etc., nao aparecem como condicoes suficientesou necessarias de uma crise, pois vemos esta mesma crise, emacigamente, entre individuos provenientes de meios - e vi-vendo em meios - onde nao existe crise da habitacao, e nemmesmo crise da familia propriamente dita. Se considerarmosas classes medias da sociedade contemporanea, nao podere-mos falar de "crise da habitagao" como tal. Existem, evidente-mente, outros fenomenos: a localidade nao tem mais a mesmasignificaao que tinha outrora, etc. E, todavia, observamosindividuos visivelmente sem bussola na idade adulta, o queremete, na verdade, a problemas mais profundos durante oestabeiecimento de sua identificagao e mesmo de sua identi-dade, sem que possamos recorrer a uma problematica relativaa essas escoras.

    Em surna, estamos falando desta forma porque, em nossacultura, o processo de identificagao, a criagao de um "si" indivi-dual-social passava por lugares que nao existem mais, ou queestao em crise; mas tambem porque, contrariamente ao queacontecia com os mongois, espartanos, mercadores fenicios,ciganos e caixeiros viajantes, etc., nao existe - ou nao emerge- nenhuma totalidade de significances imaginarias sociais quepossa assumir esta crise das escoras particuiares.

    Chegamos assim, por outros caminhos, a ideia que ja temos,ou que pelo menos eu tenho. Se a crise atinge um elemento taocentral da hominizacao social quanto o processo de identifica-gao, isso significa que ela e global. Ja se fala ha tanto tempo --ha pelo menos 150 anos - da "crise de valores", que ela correo risco de lembrar a historia de Pedro e o lobo. Ela foi taocomentada que, quando enfim chegou, reagimos como se esti-vessemos diante de uma velha piada. Mas eu acredito firme-mente que o lobo chegou de fato, e concordo com Jean Maison-Neuve quando afirma que o termo "valor" e impreciso, e isto e

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