caso diversidadeetica soniaamorim final-1 (1)

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O combate à violência contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padrões de políticas públicas 1 1. Introdução O caso relata uma situação de violência doméstica vivenciada por uma mulher negra e os obstáculos por ela enfrentados para denunciar o agressor e fazer valer seus direitos. O fato relatado ocorre em 2011 após terem sido sancionadas a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Igualdade Racial, leis pelas quais se procura combater a violência doméstica e familiar contra a mulher e as desigualdades raciais, fatores que produzem exclusão e vulnerabilidade, afetando particularmente alguns segmentos da população, como as mulheres negras. O caso mostra a contradição entre normas e sua efetiva aplicação, quando o comportamento de agentes públicos ainda conserva padrões e valores de um Estado autoritário, patriarcal e escravocrata. O caso é fictício, mas espelha situações reais coletadas em documentos e relatórios da Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Estimula a discussão sobre o problema e possíveis estratégias de ação. 2. Avanços e desafios das políticas de combate à violência contra a mulher e de combate à desigualdade racial no Brasil Durante séculos a agressão às mulheres, principalmente por parte de maridos ou companheiros, foi tratada no Brasil como questão de âmbito familiar, conforme o dito popular: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Essa percepção só começou a ser modificada na segunda metade dos anos 80 quando, sob o impulso do processo de democratização do país e de acordos internacionais, os movimentos sociais de mulheres empenharam-se em denunciar a situação de violência, levantando o manto de silêncio que assegurava invisibilidade Elaborado por Sônia Naves David Amorim (2012)

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Caso Diversidade ética Sonia amorim Final-1 (1)

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  • O combate violncia contra a mulher: aluta entre antigos valores e novos padresde polticas pblicas1

    1. Introduo

    O caso relata uma situao de violncia domstica vivenciada por

    uma mulher negra e os obstculos por ela enfrentados para denunciar o

    agressor e fazer valer seus direitos. O fato relatado ocorre em 2011 aps

    terem sido sancionadas a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Igualdade

    Racial, leis pelas quais se procura combater a violncia domstica e

    familiar contra a mulher e as desigualdades raciais, fatores que produzem

    excluso e vulnerabilidade, afetando particularmente alguns segmentos

    da populao, como as mulheres negras. O caso mostra a contradio

    entre normas e sua efetiva aplicao, quando o comportamento de

    agentes pblicos ainda conserva padres e valores de um Estado

    autoritrio, patriarcal e escravocrata. O caso fictcio, mas espelha

    situaes reais coletadas em documentos e relatrios da Ouvidoria da

    Secretaria de Polticas para as Mulheres (SPM). Estimula a discusso sobre

    o problema e possveis estratgias de ao.

    2. Avanos e desafios das polticas de combate violncia contra a

    mulher e de combate desigualdade racial no Brasil

    Durante sculos a agresso s mulheres, principalmente por parte

    de maridos ou companheiros, foi tratada no Brasil como questo de

    mbito familiar, conforme o dito popular: em briga de marido e mulher,

    ningum mete a colher. Essa percepo s comeou a ser modificada

    na segunda metade dos anos 80 quando, sob o impulso do processo de

    democratizao do pas e de acordos internacionais, os movimentos

    sociais de mulheres empenharam-se em denunciar a situao de

    violncia, levantando o manto de silncio que assegurava invisibilidade

    Elaborado por Snia Naves David Amorim

    (2012)

  • 2 2O combate violncia contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padres de polticas pblicas Elaborada

    por Snia Naves David Amorim

    ao problema. Esses movimentos passaram a pressionar o poder pblico

    a promover aes de proteo mulher vtima de violncia. Assim, foram

    criadas as primeiras delegacias especializadas no atendimento mulher

    entre 1985 e 1986, em So Paulo e na Bahia, seguidas por outros estados.

    No entanto, as Delegacias Especializadas de Atendimento s

    Mulheres (DEAMs) no se expandiram devidamente e, em 2011, eram

    cerca de 450 no pas, nmero insuficiente para atender s necessidades

    da populao feminina brasileira. A grande parte das mulheres vtimas

    de violncias atendida em delegacias comuns, sem preparo adequado.

    Apesar de sua importncia e pioneirismo, a criao das DEAMs na dcada

    de 1980 constituiu uma ao isolada, desenvolvida com o apoio do

    Ministrio da Justia no mbito das secretarias de Segurana Pblica dos

    estados. Outros esforos foram feitos na segunda metade dos anos 1990,

    mas com aes ainda fragmentadas.

    O combate s desigualdades raciais tem uma trajetria ainda mais

    tortuosa. Um dos grandes obstculos tem sido a tradicional crena de

    que no Brasil no existiriam barreiras raciais. A partir da democratizao,

    os movimentos negros tm denunciado a falsidade do mito da democracia

    racial brasileira que presume a igualdade de oportunidades entre brancos

    e negros. Ressaltam que, ao abolir a escravido, o Estado no reparou os

    graves danos causados aos negros, no lhes oferecendo oportunidades

    de acesso educao, sade e emprego, fato gerador do agravamento

    das desigualdades raciais ao longo dos anos. Assim, estudos utilizando

    dados oficiais comprovam a persistncia de grandes diferenas entre

    brancos e negros refletidas nos indicadores socioeconmicos que

    apontam o desfavorecimento da populao negra em itens como taxas

    de desemprego e nveis de renda, dentre outros.2

    Foi a partir de 2003 que as aes de combate violncia contra a

    mulher e de promoo da igualdade racial ganharam amplitude e

    efetividade, articulando, por meio de polticas e programas, vrios rgos

    do governo federal com rgos dos demais poderes e dos governos

    estaduais e municipais. Foram criadas, na Presidncia da Repblica, a

    Secretaria de Polticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Polticas

    de Promoo da Igualdade Racial (Seppir).

    No mbito do enfrentamento violncia contra a mulher, foi instalada

    em 2005 uma central telefnica o Ligue 180 destinada a orientar

    mulheres sobre seus direitos em casos de agresso, os procedimentos a

    adotar e o registro de reclamaes sobre o atendimento prestado pela

    rede de servios pblicos. Entretanto, o marco que consolida essas

    mudanas foi a criao em 2006 da Lei n 11.340/2006, conhecida como

    Lei Maria da Penha, lei especfica para o combate violncia domstica

    e familiar contra a mulher. Amparada no artigo 226 da Constituio Federal

    que, no pargrafo 8 atribui ao Estado a assistncia famlia na pessoa

  • 3 3O combate violncia contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padres de polticas pblicas Elaborada

    por Snia Naves David Amorim

    Veja mais casos em http://casoteca.enap.gov.br

    de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a

    violncia, no mbito de suas relaes, assim como em acordos

    internacionais j firmados pelo Brasil, a Lei Maria da Penha no apenas

    garantiu a punio com maior rigor dos agressores, como criou

    mecanismos para prevenir a violncia e proteger a mulher agredida. A

    Lei foi reconhecida pelo Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas

    para a Mulher (Unifem) como uma das trs leis mais avanadas do mundo

    em comparao com a legislao sobre o tema de 90 pases, e teve

    profundos impactos na poltica de combate violncia contra a mulher,

    ampliando programas e servios de atendimento.

    A ela seguiu-se em 2007 o Pacto Nacional de Enfrentamento da

    Violncia contra a Mulher como parte da agenda social do governo federal.

    A SPM fortaleceu-se. A Central de Atendimento Mulher, em 2009/2010,

    foi reestruturada e boletins bimestrais elaborados pela Ouvidoria da

    Secretaria permitiram levantar informaes sobre a violncia e monitorar

    o desempenho da rede pblica de atendimento mulher vtima de

    violncia. H cerca de um ano a SPM assinou protocolo de cooperao

    tcnica com o Ministrio Pblico Federal e Ministrios Pblicos Estaduais,

    o que possibilita que as denncias sobre a rede de servios sejam cobradas

    dos rgos responsveis e que providncias sejam tomadas.

    Nos seus quase seis anos de vigncia, a Lei enfrentou, entretanto,

    muitas dificuldades para sua efetiva aplicao, inclusive por parte de

    juzes que questionavam sua constitucionalidade, com o argumento de

    que feria o artigo 5 da Constituio Federal, que afirma a igualdade de

    todos perante a lei, pretendendo, com isso, julgar as aes de violncia

    domstica e familiar contra a mulher pela antiga Lei n 9.099/95 (Lei dos

    Juizados Especiais), que trata esses casos como delitos leves,

    merecedores de menor rigor.

    Somente o julgamento em 9 de fevereiro de 2012 pelo Supremo

    Tribunal Federal de duas aes relacionadas Lei Maria da Penha

    encerrou definitivamente tais questionamentos.3

    Os ministros do STF, em julgamento visto como marco histrico no

    combate violncia domstica e familiar contra a mulher, decidiram por

    unanimidade pela constitucionalidade dos artigos 1, 33 e 41 da Lei Maria

    da Penha, eliminando a possibilidade de julgamento de delitos de

    violncia domstica e familiar pela Lei n 9.099/95. Quanto nova

    interpretao dada pelo Procurador Geral da Repblica, a maioria dos

    ministros concordou com a proposta, segundo a qual a ao penal em

    casos de violncia domstica e familiar contra a mulher no depende da

    apresentao de denncia ou de desistncia por parte da vtima, podendo

    o Ministrio Pblico denunciar o agressor. Com esse resultado as aes

    penais no mbito da Lei Maria da Penha ganham maior celeridade e

    efetividade, impondo, entretanto, ampla divulgao e monitoramento.

  • 4 4O combate violncia contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padres de polticas pblicas Elaborada

    por Snia Naves David Amorim

    Outra dificuldade alegada pelos rgos pblicos para implementar

    com efetividade a poltica tem sido a falta de recursos para a implantao

    da rede de atendimentos: DEAMs, casas-abrigo, ncleos de defensoria

    pblica, dentre outros. Para contornar a questo, foi aprovada emenda

    Lei de Diretrizes Oramentrias para 2012, incluindo o Programa de

    Combate Violncia Domstica contra a Mulher no rol de aes no

    contingenciveis.

    No que se refere ao combate discriminao racial, apesar de vigorar

    h mais de 20 anos, a Lei n 7.716/1989, conhecida como Lei Ca, que

    classifica o racismo como crime inafianvel, punvel com priso de at

    cinco anos e multa, pouco aplicada. Muitos analistas e ativistas avaliam

    que a maior parte dos casos de discriminao racial tipificada pelo

    artigo 140 do Cdigo Penal, como injria, que prev punio mais branda,

    j que algumas autoridades policiais, membros do Ministrio Pblico e

    da magistratura consideram a pena para crime de racismo muito alta em

    relao ao tipo de delito.

    O Brasil tem, desde os anos 1960, ratificado vrios documentos

    internacionais contra a discriminao racial.4 Entretanto, a aplicao dos

    princpios de promoo de igualdade racial s veio a ser consagrada com

    a sano do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n 12.288/2010). O Estatuto

    orientou o investimento de longo prazo na mudana dos referenciais da

    ao pblica, incluindo a capacitao dos gestores, de modo a alterar

    padres culturais arraigados e provocar a superao de prticas

    desumanas, naturalizadas e internalizadas ao longo da nossa histria.

    Alm disso, organismos de combate discriminao tm sido criados

    nos nveis estadual e municipal, sinalizando capilaridade de prticas

    administrativas orientadas para a promoo da igualdade racial.

    O cenrio acima complexo e envolve avanos e recuos. As

    dificuldades relativas implementao da poltica de garantia dos direitos

    da mulher e de combate desigualdade racial apontadas pelos rgos

    pblicos destacam muitas questes administrativas, financeiras, polticas

    e jurdicas. Existe algo mais?

    As situaes concretas de atendimento pblico mulher vtima de

    violncia e mulher negra fornecem indcios de outros fatores, de

    diferente natureza. Veja a situao a seguir e tire suas prprias

    concluses.

    3. Ana Carolina, vtima de violncia domstica, busca atendimento em

    uma Delegacia

    Ana Carolina, 32 anos, mulher negra que perdeu a conta das vezes

    em que foi agredida por seu companheiro com quem vivia h oito anos

    e pai de seus dois filhos. No incio eram agresses verbais seguidas de

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    por Snia Naves David Amorim

    Veja mais casos em http://casoteca.enap.gov.br

    tapas, por qualquer descuido ou por cime. Com o tempo as agresses

    foram ficando mais pesadas, sem razo clara, e ocorriam na frente dos

    filhos. Diversas vezes pensou em larg-lo, carregando os filhos, mas

    temia perder a casa, construda durante anos e para a qual contribura

    com seu salrio de professora de escola pblica. Preocupava-se tambm

    com o sustento dos filhos. Sabia que tinha direitos, mas como garanti-

    los, se quando falou em deix-lo, h mais de trs anos, ele a ameaara

    de morte? Permanecia assim sem ao, esperando que ele um dia

    voltasse a ser o homem fascinante que a conquistara.

    Um dia, aps ter sido novamente agredida, uma colega aconselhou-

    a a procurar a delegacia mais prxima, dizendo que agora havia uma lei

    que defendia as mulheres agredidas - a Lei Maria da Penha - e que poderia

    registrar uma queixa contra seu agressor que a polcia a protegeria. A

    amiga dissera que em algumas cidades havia uma delegacia s para

    atender as mulheres, o que era bem melhor, mas que na cidade delas

    no existia isso. Logo teria que procurar a delegacia comum.

    Foi ento que, aps uma nova agresso, decidiu mudar de vez o rumo

    de sua vida. Tomou coragem, maquiou-se bem para disfarar os ferimentos,

    e dirigiu-se para a delegacia. Estranhou a quantidade de pessoas no lugar

    e passou quase uma hora para ser atendida por um dos agentes policiais

    que estavam no balco. Do seu lugar ele chamou-a e foi logo perguntando

    em voz alta: Qual o problema? Diga logo, pois estamos com muito

    trabalho. Sua coragem desapareceu. Como explicar em poucas palavras,

    a serem ouvidas por todos, tantos anos de agresso? Mesmo assim,

    titubeante, relatou a situao de violncia em que vivia, como isto

    assustava seus filhos e afirmou que queria dar queixa do seu companheiro.

    O agente retrucou: No estou vendo nenhum ferimento grave. Voc

    trouxe testemunha? Como isto aconteceu? Voc deu algum motivo?.

    Passou em seguida a fazer perguntas sobre seu companheiro, se j

    havia sido preso, se trabalhava, se contribua para a manuteno da famlia.

    Ao verificar que o mesmo no tinha antecedentes criminais e que mantinha

    a casa, foi logo dizendo: Estou vendo que seu marido um trabalhador.

    No acho que seja o caso de fazer um Boletim de Ocorrncia e autu-lo.

    Temos muito bandido solto por a com o que nos preocupar, para ir atrs

    de trabalhador. Tenha mais pacincia, que as coisas melhoram.

    Ficou aturdida e sem ao. Tentou insistir, mas o agente j chamava

    outra pessoa. Ao virar-se, antes de sair, ainda ouviu-o dizer para o colega:

    Veja com o que temos que lidar: uma negrinha histrica por receber

    tabefes, quem sabe por qual motivo, e ainda metida a importante por

    ser professora....

    Passados dois meses, aps outra agresso, ela ameaou deix-lo

    definitivamente. A reao foi ainda pior, seguida de ameaas de morte.

    Sentindo-se em perigo, decidiu voltar delegacia. Sua amiga no lhe

  • 6 6O combate violncia contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padres de polticas pblicas Elaborada

    por Snia Naves David Amorim

    dissera que a Lei Maria da Penha garantia proteo s mulheres

    ameaadas?

    Dessa vez foi atendida por outro agente, mas a resposta no foi muito

    diferente. Sem prestar muita ateno na sua histria e na sua insistncia

    em um Boletim de Ocorrncia, o agente cortou com impacincia suas

    palavras e afirmou que s um Boletim de Ocorrncia no era suficiente.

    Era um processo longo. Tinha que preencher outros papis para que a

    ao chegasse Justia. Seu companheiro seria procurado para depor e

    poderia ficar revoltado contra ela. Eles no estariam por perto para

    defend-la. E finalizou, olhando-a longamente: Melhor tentar entender

    o motivo de suas brigas e buscar mudar seu modo de agir.

    Saiu arrasada, sem sada e revoltada com os policiais que a atenderam.

    Foi quando sua amiga lhe disse que havia um telefone de atendimento

    mulher, o 180, onde podia reclamar do mau atendimento pela polcia e

    ainda receber orientaes sobre o que fazer. Quem sabe a situao

    poderia mudar?

    Naquele mesmo dia ligou e explicou o descaso com que seu problema

    foi tratado, acrescentando que tinha sentido haver discriminao por

    ela ser uma mulher negra. A atendente ouviu-a com ateno, fez algumas

    perguntas e explicou que este no era o primeiro caso de mau

    atendimento a mulheres naquela delegacia. Tudo estava sendo

    registrado e seria encaminhado para as autoridades.

    4. A Delegacia sob investigao

    O delegado titular da 6 DP, Paulo Roberto, levou um susto. Havia

    sido convocado pelo diretor geral da Polcia Civil do Estado para explicar-

    se sobre reclamaes de mau atendimento a mulheres vtimas de

    violncia domstica e discriminao racial por parte de agentes de sua

    Delegacia. Essas reclamaes haviam sido colhidas pela Secretaria de

    Polticas para as Mulheres e encaminhadas ao Ministrio Pblico para

    investigao. As acusaes envolviam descaso no tratamento do

    problema, sinais de racismo e falta de providncias para situaes de

    agresso domstica. Paulo Roberto pertencia h cinco anos carreira e

    havia participado, na universidade, de movimentos de defesa dos

    direitos humanos. H pouco tempo ocupava o cargo de delegado-chefe

    e, apesar da escassez dos recursos, de espao e de pessoal, achava que

    cumpria adequadamente sua misso. Sua delegacia tinha bons

    investigadores e havia desbaratado vrias quadrilhas que atuavam em

    bairros das imediaes. Decidiu, antes da audincia com o diretor geral,

    reunir-se com sua equipe e fazer sua prpria investigao. No teria

    havido um engano, uma falsa interpretao dos fatos?

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    por Snia Naves David Amorim

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    Defrontados com as denncias feitas, os agentes indignaram-se.

    Argumentaram que eram poucos e que, pelos salrios pagos, j

    trabalhavam e enfrentavam riscos demais ao investigar e prender

    bandidos. Um agente exaltado afirmou: No temos espao adequado

    para atender pessoas, especialmente as mulatinhas do bairro aqui perto,

    que esgotaram a pacincia de seus companheiros, levaram uns tapas e

    depois vieram correndo, pedir ajuda polcia. Outro agente acrescentou

    que a denncia de racismo ainda mais absurda porque no Brasil no

    h esse problema e nem nenhuma lei sobre isso.

    O delegado argumentou que a proteo integridade fsica era um

    direito humano e que a Lei Maria da Penha prescrevia uma atuao firme

    do Estado frente violncia domstica, punindo com rigor o acusado e

    protegendo a mulher. Quanto legislao que pune a discriminao,

    observou que primeiro h a Constituio, que afirma em seu Art. 5.,

    inciso XLII: a prtica do racismo constitui crime inafianvel e

    imprescritvel, sujeito pena de recluso. Alm disso, h a Lei n 7.437/

    1989 que define e pune os crimes resultantes de preconceitos de raa

    ou de cor, e o Estatuto da Igualdade Racial, que busca assegurar s pessoas

    negras o pleno acesso aos seus direitos. Sentiuse falando no vazio. A

    maior parte dos agentes aparentava desinteresse, como se ele estivesse

    fazendo um discurso terico, distante das aes prticas do dia a dia.

    Alguns alegaram no conhecer as leis e questionaram a legitimidade do

    Estado imiscuir-se em tais questes. Um deles chegou a argumentar

    que h muitas dvidas sobre a Lei Maria da Penha e que muitos juzes se

    recusam a aplic-la.

    Terminada a reunio, Paulo Roberto sentiu-se sozinho com seus

    princpios. Mais do que isso, sentiu a necessidade de definir uma

    estratgia para mudar a situao.

    O que fazer? Trocar a equipe? Punir os infratores? Melhorar as

    condies de trabalho? Isso seria suficiente? No fundo ele sabia que o

    que prevalecia eram os velhos valores sexistas e racistas que as novas

    polticas queriam extirpar, mas que permaneciam latentes. Isso seria

    possvel? Como? Que estratgias seriam mais efetivas?

    Notas

    1 Caso elaborado em parceria com as secretarias de Polticas para asMulheres (SPM/PR), e de Polticas de Promoo da Igualdade Racial(Seppir/PR), a Escola Nacional de Administrao Pblica (ENAP) e oPrograma das Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), nombito do Programa Interagencial de Promoo da Igualdade deGnero, Raa e Etnia, implementado no Brasil pela Organizao dasNaes Unidas (ONU).

    2 Retrato das desigualdades de gnero e raa. Instituto de PesquisaEconmica Aplicada ... [et al.]. 4 ed. Braslia: Ipea, 2011.

  • 8 8O combate violncia contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padres de polticas pblicas Elaborada

    por Snia Naves David Amorim

    3 Julgamento do STF em 9/02/2012 de Ao Direta de Constitucionalidade ADC 19, solicitada em um pedido de Habeas Corpus e de Ao Diretade Inconstitucionalidade ADI 4.424, ajuizada pelo Procurador Geralda Repblica, pedindo nova interpretao, consonante com aConstituio Federal, a alguns artigos.

    4 Como exemplo podem ser enumeradas a Conveno n 111 da OITsobre a Discriminao em matria de Emprego e Profisso, ratificadapelo Brasi l em 1965; a Conveno sobre a El iminao de Todas asFormas de Discriminao Racial (Cerd), ratif icada em 1968; aDeclarao e o Plano de Ao da I I I Conferncia Mundial contra oRacismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Formas Conexas deIntolerncia, ocorrida em Durban, frica do Sul, em 2001.