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1 CASAL 01 MÃE CRIANÇA SOBREVIVENTE Z. M. E1: Mais uma vez muito obrigada por nos receber Mãe 1: Obrigada também eu E1: E gostaríamos então de falar um pouquinho sobre as suas experiências em relação quer ao diagnóstico quer à vivência actual do cancro do seu filho. Quando se lembra do momento do diagnóstico qual é que é a primeira imagem que lhe vem? O que é que se lembra daquela altura? O que é que é para si mais relevante daquela altura? Mãe 1: Olhe…para já achei impressionante como é que um filho de 8 anos… Eu ainda me comovo. E eu creio que eu me lembro…Lembro-me do apoio dos médico incondicional e parecia que estavam…que nós eramos as únicas pessoas do mundo que interessávamos e que existíamos…O apoio deles quando entramos. E1: Como é que foi o diagnóstico? Foi algo que apareceu assim de um momento para o outro? Vocês tiveram suspeitas de que algo se passava? Mãe 1: Nada… Entrei com ele no hospital a achar que era uma gastroenterite. Não tivemos suspeitas de nada… nada! Ele entrou para o hospital e com mais 2 horas não sobrevivia. E eles não sabiam como é que ele andava em pé. E nós íamos fazer uma viagem e eu por descargo de consciência achei que se acontecesse qualquer coisa lá fora que era uma chatice. Mas ele tinha 37,3 e eu nunca ia ao médico porque eles são 5 e não sou… via-os crescer, ia às consultas básicas e foi olhe…por descargo de consciência: coincidência ou providência. Cada um lhe dá o seu sentido. E1: Entrou num hospital… Entrou numa urgência ou… Mãe 1: Entrei numa urgência… Aliás, eu falei como ia viajar, falei para o pediatra a dizer se não o queria ver, mas ele tinha febre desde manhã e era à tarde e ele disse: “Como é que quer que eu o veja se ele tem febre à menos de 24 horas?” E eu disse: “Mas eu vou viajar e é só por descargo de consciência”. E ele próprio disse: “Mas eu nem a conheço, porque você está sempre a despachar (a despachar num bom sentido) mas não é nada de se preocupar e agora com uma febre…”. Olhe eu nem lhe sei explicar, mas foi uma intuição…mas longe de ser um problema destes! E por acaso o meu marido trabalha em gestão hospitalar e fui eu ao Santos Pinto, ao consultório, fazer umas análises completamente por descargo de consciência, à tarde. E… e ele veio para casa à tarde e de repente lá do Dr. X. é que nos telefonam, dão-nos a entender que pode ser qualquer coisa complicada, mas nós longe. E percebemos que quando

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CASAL 01 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – Z. M.

E1: Mais uma vez muito obrigada por nos receber

Mãe 1: Obrigada também eu

E1: E gostaríamos então de falar um pouquinho sobre as suas experiências em relação quer ao

diagnóstico quer à vivência actual do cancro do seu filho. Quando se lembra do momento do

diagnóstico qual é que é a primeira imagem que lhe vem? O que é que se lembra daquela

altura? O que é que é para si mais relevante daquela altura?

Mãe 1: Olhe…para já achei impressionante como é que um filho de 8 anos… Eu ainda me

comovo. E eu creio que eu me lembro…Lembro-me do apoio dos médico incondicional e

parecia que estavam…que nós eramos as únicas pessoas do mundo que interessávamos e que

existíamos…O apoio deles quando entramos.

E1: Como é que foi o diagnóstico? Foi algo que apareceu assim de um momento para o

outro? Vocês tiveram suspeitas de que algo se passava?

Mãe 1: Nada… Entrei com ele no hospital a achar que era uma gastroenterite. Não tivemos

suspeitas de nada… nada! Ele entrou para o hospital e com mais 2 horas não sobrevivia. E

eles não sabiam como é que ele andava em pé. E nós íamos fazer uma viagem e eu por

descargo de consciência achei que se acontecesse qualquer coisa lá fora que era uma chatice.

Mas ele tinha 37,3 e eu nunca ia ao médico porque eles são 5 e não sou… via-os crescer, ia às

consultas básicas e foi olhe…por descargo de consciência: coincidência ou providência. Cada

um lhe dá o seu sentido.

E1: Entrou num hospital… Entrou numa urgência ou…

Mãe 1: Entrei numa urgência… Aliás, eu falei como ia viajar, falei para o pediatra a dizer se

não o queria ver, mas ele tinha febre desde manhã e era à tarde e ele disse: “Como é que quer

que eu o veja se ele tem febre à menos de 24 horas?” E eu disse: “Mas eu vou viajar e é só por

descargo de consciência”. E ele próprio disse: “Mas eu nem a conheço, porque você está

sempre a despachar (a despachar num bom sentido) mas não é nada de se preocupar e agora

com uma febre…”. Olhe eu nem lhe sei explicar, mas foi uma intuição…mas longe de ser um

problema destes! E por acaso o meu marido trabalha em gestão hospitalar e fui eu ao Santos

Pinto, ao consultório, fazer umas análises completamente por descargo de consciência, à

tarde. E… e ele veio para casa à tarde e de repente lá do Dr. X. é que nos telefonam, dão-nos a

entender que pode ser qualquer coisa complicada, mas nós longe. E percebemos que quando

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viemos, para virmos logo para São Francisco, para a urgência, que tínhamos o staff todo à

nossa espera, e depois percebemos que ele estava no limite.

E1: Mas ficou internado nessa altura?

Mãe 1: Ficou logo internado

E1: Mas disseram nessa altura que ele tinha….

Mãe 1: Leucemia… disseram! Demoraram algum bocadinho a dizer porque eu, depois a fazer

a retrospectiva, percebi que o impacto de eles dizerem aos pais é duríssimo. Nós começamos

a perceber que havia ali muita… muito movimento, muitas…de repente uma transfusões…

senti-me num filme americano, naquelas séries de… as urgências, um staff enorme…

Lembro-me que ela disse: “Está tudo em cima da mesa!” Mas eu continuava longe…longe.

Não sei se inconscientemente, ou por defesa ou por não estar nem ai…porque me

passou…Achei sempre que estas coisas são sempre aos outros que acontecem. Que eu acho

que é uma frase que eu oiço muito no IPO. E… e de repente…quando houve qualquer coisa

que elas disseram “Medula”. E quando elas disseram esta palavra eu acho que me esvai

completamente e ai percebi. E depois quiseram falar connosco, pediram para irmos a uma sala

e a sensação que eu tenho é que os nossos pés estavam colados ao chão… Eu não queria

ouvir!

E1: Não queria ouvir…

Mãe 1: Ai sim…quando eu percebi que era qualquer cosia grave!... E pronto…e depois o que

é que eu me lembro?! Ah pois…Foi em São Francisco! Isso também acho que foi brutal

porque de 1 minuto para outro, de uma família inteira, nós não tivemos tempo para pensar

nada. De repente aquilo fez um crash ali. Portanto, nem nós os 2…gerir…já nem digo

organizar…mas transmitir alguma emoção… Nós temos óptima relação de casal. Isso é que

foi…para mim foi duríssimo.

E1: Entre vocês? Transmitir…

Mãe 1: Não… entre nós. Quer dizer: de repente termos um impacto de uma notícia destas e

somos obrigados a separar-nos porque um tem de dar resposta a uns filhos e outro resposta a

outros. E a vida a partir desse minuto, tivemos de responder não é?!

E1: Quando fala em responder…

Mãe 1: Em responder à doença e a este filho porque nós entramos no IPO e aquilo foi 24

horas sobre 24 horas…

E1: Entraram imediatamente no IPO,

Mãe 1: Não. Entramos no dia seguinte. É isso que eu estou a tentar-lhe transmitir. Nós em

São Francisco quando nos deram a notícia, olhámos um para o outro e não tivemos tempo

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nem de nos expressar, nem de nos organizar… percebe?! Isso foi duríssimo… a partir desse

momento, olhámos um para o outro…um ficou aqui o outro foi para casa, e depois durante 2

anos e meio alternámos.

E1: Um ficava com…

Mãe 1: Com os outros… com um suporte que eu percebi que era importantíssimo e elas foi a

primeira coisa que me perguntaram lá no IPO - “como é que era a nossa estrutura familiar e

de casal”. E eu percebo lindamente que se não tivesse uma estrutura… se não tivesse

construído a relação de casal que construí até ai, percebo lindamente que as pessoas não se

aguentem, porque nós deixamos de ter o nosso espaço…porque no fundo o Z. M., ele tinha

tratamentos… só 3 dias por mês é que não tinha… mas também teve um processo

complicado. Mas, portanto, nós estávamos sempre em cima não é!? E depois, entre um

marido, outros filhos saudáveis, ou uma mulher, outros filhos saudáveis, nós concentrámo-nos

num filho pequenino a morrer, não é?!

E1: Claro…claro… que idade é que ele tinha nessa altura?

Mãe 1: 5

E1: 5 anos. Está-me então a dizer que foi obrigatória essa gestão, essa mudança completa de

rotinas?

Mãe 1: Foi imposta. Exacto. Eu acho que nós deixámos… a sensação que eu tenho é que

soubemos a notícia, olhamos um para o outro…quer dizer…primeiro é gerir-nos a nós

próprios não é?! Com o impacto! E depois eu vim para casa, porque tinha os outros em casa,

só um é que podia ficar ali, e no dia seguinte reencontramo-nos no IPO…e quer dizer ai

tivemos a sensação que o mundo caiu sobre nós. Portanto, foi primeiro o impacto de nós nos

gerirmos sozinhos, os dois e perante o Z. M., que no mesmo minuto tínhamos que dar

resposta.

E1: “Gerirmos” está-me a falar da parte emocional?

Mãe 1: Emocional…emocional

E1: Ou Também…da parte cognitiva de perceber o que se estava a passar? Foi mais…

Mãe 1: Tudo junto eu acho que foi tudo junto… tudo junto…

E1: Todas misturadas…

Mãe 1: Tudo junto… mas a nível emocional um impacto enorme. Porque acho que a partir do

momento em que nos dão a notícia eles dizem: “À partida o prognóstico é este, têm uma

percentagem de 80% ou de 70%, nunca sabemos se… nem que fosse de 98% eu lutava por

aqueles 2%, mas atenção que está em cima da mesa uma doença mortal portanto eu acho que

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o impacto destas doenças, o desgaste, é nós termos que alimentar uma confiança e uma

esperança a par (inconscientemente ou não) de equacionar uma morte.

E1: Estou a perceber…

Mãe 1: E Portanto este é um desgaste…é um desgaste

E1: Mas o que é que pensou? Consegue te ruma frase ou uma palavra do eu é que pensou na

altura?

Mãe 1: Quando soube a notícia?

E1: Sim

Mãe 1: Olhe acho que tenho uma cosia que me ajuda imenso – sou super otimista e… de

repente quando elas me disseram: “das leucemias é a melhor” – eu agarrei-me logo a essa

frase. Pensei “Pronto, que sorte”. Ajuda-me imenso na vida tirar o partido das situações. Eu

lembro-me que com o Z. M. e entre nós todos cá em casa tínhamos o exercício, até de uma

maneira inconsciente mas – agradecer o bom do dia. E mesmo quando ele estava a morrer

(porque ele saiu do IPO para morrer para a Estefânia) eu pensei quando voltei para o IPO,

pensei - “Que luxo estar no IPO!” e um mês antes tinha sido a coisa pior do mundo. Percebe?!

E quando estava na Estefânia e ele a morrer, eu disse assim “mas que bom termos médicos,

que bom ter uma campainha para chamar alguém…” Portanto… a sua pergunta era…se

E1: O que é que pensou….

Mãe 1: O que é que pensou… foi “que bom ser a melhor das piores, a leucemia ser a melhor

das piores”. Embora, depois tenha vindo a perceber com o tempo que isto não quer dizer

nada, porque não há doenças, há doentes… e as reacções podem ser as melhores e o desfecho

as piores, e os prognósticos os piores e a pessoa conseguir sobreviver.

E1: Quando é que vocês falaram sobre a doença? Quando é que vocês falaram em família

sobre a doença? Foi logo a seguir? Demorou algum tempo?

Mãe 1: Não, não…Primeiro…Com os filhos? Está a dizer em família com os filhos?

E1: Sim com os filhos

Mãe 1: Demoramos tempo… demoramos tempo e ai a Dr.ª M. J. teve um impacto

importantíssimo porque quando eu entrei para o IPO, passados 3 dias, perguntaram-me se nós

queríamos apoio psicológico, e eu tenho uma irmã psicóloga, e também já tinha conseguido

desmontar aquela ideia que eu nasci que os psicólogos é para os tontinhos e para os doentes,

portanto, pensei “os saudáveis ainda pedem ajuda”. E quando elas me perguntaram se era

preciso ajuda, eu pensei assim: “Cinco filhos, um marido, um hortelão, duas casas e dois cães

e uma mulher-a-dias, acho que vou precisar de ajuda”. E acho que isso foi uma atitude óptima

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da nossa parte pedir. E ai a Dr.ª M. J. ajudou-me imenso a gerir cada um, com a sensibilidade

de cada um e na idade de cada um.

E1: Pois estava-me a dizer tem 5 não é?!

Mãe 1: Pois e uns diferentes. A tentação ao princípio foi protegê-los do impacto

E1: Hum hum

Mãe 1: E depois foi a preocupação de como dizer. Mas depois foi a consciência de que eles

começavam a ouvir por fora e nós ainda não tínhamos tido a coragem de dizer porque nós

próprios nos estávamos a gerir a nós, e por outro lado a gerir como é que se diz uma…uma

brutalidade destas a uns irmãos (emociona-se).

E1: Acha que isso foi uma das suas tarefas depois de…

Mãe 1: O ir ao encontro dos filhos?

E1: Sim

Mãe 1: Ai sim…sim

E1: Que outras tarefas é que acha que teve? Já me disse, uma delas foi gerir-se a si própria…

Mãe 1: Gerir o… eu gerir o marido e o casamento achei mais tarde. Acho que nós ganhámos

imenso como temos uma óptima relação e sempre conversámos sobre tudo, falávamos e desde

o primeiro dia nos apoiamos imenso. Não houve revolta, não houve cobrança. Isso acho que

foi uma graça enorme que nós tivemos, que tenho a sensação que os valores e a maneira como

nós fomos construindo as coisas, suportou-nos.

E1: Foi isso que fez o seu suporte

Mãe 1: Suportou-nos! O que é que foi outra tarefa? Olhe, achei que as pessoas querem

imenso ajudar, mas querem ajudar naquilo que elas acham que é preciso. E não é nada do que

nós estamos a precisar… Se calhar já ouviram isto… Não é nada do que estamos a precisar,

portanto eu dei por mim a ter que gerir mães, sogras, cunhadas. A ter de gerir as ofensas em

cima… Isso foi uma escola de vida também, mas deu muito trabalho.

E1: Ou seja é esta ideia de que o suporte que se tem, as fontes de suporte muitas vezes

acabam por ser um peso também?

Mãe 1: De certa maneira, por outro lado é evidente que nos suportam

E1: Claro, claro…

Mãe 1: Mas também são. Também são porque de repente as pessoas (e eu acho que isso

depois até consegui fazer essa análise e que acontece comigo também e se calhar noutras

circunstâncias) querem ajudar mas inconscientemente elas têm a necessidade de ser o centro.

Portanto, querem ajudar como elas acham, e de certa maneira até me deu imenso para pensar

como nós seres humanos também somos afectivamente tão carentes e precisamos e quando

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temos uma oportunidade de sermos uteis, aquilo também é importante para as pessoas. Eles

nem têm consciência mas é o importante mesmo, com óptima vontade, mas é o que lhes dá o

impacto e o retorno é também sentirem-se úteis.

E1: Pois pois.

Mãe 1: Mais do que… sendo o foco ser o outro

E1: Pois, pois. Compreendo. E estava-me a dizer há um bocadinho que uma das coisas

importantes para si foi a maneira como vocês tinham construído por exemplo a família….

Mãe 1: Sim sim

E1: Que outras coisas é que foram importantes? Ou seja como é que acha que se ajudou a si

própria? O que é que acha que utilizou para se ajudar a si própria?

Mãe 1: Olhe à partida a minha fé, depois… eu acho que a minha fé, a maneira como fui

escolhendo… os amigos… Acho que no fundo os valores que nós trazemos de casa, também

que eu trago, a resiliência, a luta pelas coisas, o andar para a frente, o não desistir, o

acreditar…

E1: Mas… muito fundamentado numa fé…que…

Mãe 1: Eu acho que numa fé que me ajudou imenso, porque nunca me perguntei o porquê,

nunca me deu nenhuma revolta, nunca me perguntei um porquê… inconscientemente acho

que as coisas têm sempre um sentido e que eu vou aprender com elas.

E1: Ou seja a fé deu-lhe um sentido por um lado e permitiu que fizesse comparações

positivas.

Mãe 1: Não

E1: …Ou seja, ter uma ideia positiva da situação

Mãe 1: Sim… Dar um sentido, a situação haveria de ter um sentido. Depois mais tarde

percebi-o. Até costumo dizer a brincar: ao princípio rezava e pedia coisas, depois percebi que

a vida não me dava tudo o que eu pedia e que me dava outras que eu nem pedia e pensei mas

pelo menos o mínimo era eu perceber as coisas, já não era as que eu queria, mas percebê-las.

Depois passei outra fase e pensei isso também não acontece. E depois pensei, não… No fundo

hoje em dia rezo para ter capacidade e sabedoria para fazer aquilo que me é devido como

tarefa na vida, não é?! Portanto, eu acho que ajudou-me… ajudou-me… a acreditar que as

coisa têm um sentido e que eu vou crescer com a situação.

E1: Hum hum

Mãe 1: Agora racionalmente na altura eu não conseguia pensar nisto e nem tinha espaço…

não é?! Mas ajudou-me… mas que me ajudou também a minha estrutura que eu trago de casa,

ou seja, o acreditar sempre, o…

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E1: Esta ideia positiva

Mãe 1: sim sim…

E1: que me estava a dizer que tem… Há-de correr…

Mãe 1: …Há-de correr pelo melhor… e eu acho que…

E1: Mas depois não correu muito pelo melhor por aquilo que me diz, não é?! Ou seja…a

situação piorou.

Mãe 1: A situação piorou mas eu acho que consegui sempre ver o positivo de cada situação…

acreditar sempre.

E1: Estava-me a dizer há bocadinho que depois ele foi para a Estefânia e…

Mãe 1: Porque o Z. M.. sim…ele da quimioterapia teve os efeitos secundários todos supostos

menos o AVC e eu dizia “mas que bom já não teve o AVC”. E os médicos diziam “mas teve

tanta coisa complicada”. Eles até a brincar diziam que deviam ganhar o dobro com ele porque

supostamente, das… das leucemias era a com melhor prognóstico mas ele teve todos os

efeitos secundários, portanto quando a coisa estava a melhorar aquilo caia tudo outra vez. E

depois como o primeiro impacto da primeira fase da doença, não sei se vocês estão dentro

disso…

E1: Sim, sim…

Mãe 1:...que ele queima completamente, ele ficou com os órgãos todos queimados, com uma

infecção respiratória, uma infecção pulmonar, uma infecção intestinal…Portanto entrou em…

termos técnicos…

E1: Falência…

Mãe 1: Falência orgânica. Não é?! Pronto, exactamente… em falência orgânica. E tive

durante 15 dias… sim 10 dias a dizerem-me todos os dias que ele tinha 2 horas de vida e nós

dizíamos “Está bem, mas o que é que se pode fazer, o que é que se pode fazer?” E depois foi

engraçado que nós dissemos…”Então se ele tem tão pouco pedimos a (?15:30) dos doentes”,

que tradicionalmente era para quem estava a morrer e hoje em dia não – é para dar forças para

a pessoa reagir. E eu lembro-me dos médicos, de uma médica que me disse que ele

praticamente ia morrer nesse dia, e que eu a puxei pelo casaco e disse “Não, mas vai ficar

aqui na (?15:47) dos doentes (?15:48) connosco”, e ela disse “Ai isso não vou”. E eu sentia:

“Vai sim senhora porque isso faz parte deste processo” e puxei-a pelo casaco e ela fez e

agradece-o, e são momentos que nos unem porque são duríssimos… e uma enfermeira a

mesma coisa. Essa tinha mais sangue frio e disse logo que queria estar ali. Portanto, eu acho

que estas coisas também nos… a mim ajudam-me a dar força e energia e… e não tenho

dúvida nenhuma que acho que a oração de imensa gente me suportou.

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E1: Hum hum… E o que é que não ajudou? Já vimos que aquilo que não ajudou foi a própria

evolução…pelos vistos o Z. M. teve tudo…

Mãe 1: Sim… sim…

E1: (?16:23)

Mãe 1: E o que é que não ajudou em termos de doença ou…

E1: Em termos de lidar com a doença

Mãe 1: De lidar com a doença…

E1: Quais foram os maiores obstáculos?

Mãe 1: Os maiores obstáculos… (pausa) Sabe que eu ahh… eu senti-me uma privilegiada

porque… senti que cheguei lá, tinha família, tinha dinheiro, tinha amigos…ah…tinha fé… O

que é que me ajudou? O que é que…

E1: … pode ter sido pior?

Mãe 1: Estava a falar na altura da doença eu acho…

E1: Na altura…

Mãe 1:...que tive mais dificuldade no “a seguir”.

E1: Pronto, nós vamos falar no a seguir.

Mãe 1: Aliás (?16:59)

E1: Vamos falar no a seguir mas…

Mãe 1: Na altura…

E1: Naquela altura há, … houve alguma coisa que pudesse ter sido diferente?

Mãe 1: Difícil…Foi a gestão do tempo, não ter tempo para parar, não ter tempo para parar e

para equacionar as coisas. Não ter tempo para… Embora ache que…foi isso. Embora alguma

cosia me tenha ajudado, por exemplo falar com a Dr.ª J… ahhh…se calhar ela também me

ajudou a ver que por esta educação que eu tenho de nós andarmos sempre para a afrente, que é

super positivo e não nos deixarmos cair. Mas, se calhar, hoje em dia já me dava um bocadinho

mais de espaço… a que eu também caísse, se calhar chorasse mais… se calhar chorasse mais.

Por outro lado, também não vejo isso como uma coisa negativa no processo.

E1: Mas acha que era…

Mãe 1: Acho que (?17:50)…

E1:…preciso algum tempo para chorar naquela altura…

Mãe 1: Eu acho que não me senti prejudicada por isso no processo, não me senti. Agora eu

acho que se tivesse tido tempo para me arrumar, se calhar tinha mais paz interior e mais calma

e eu portanto, nós não conseguimos olhar para nós, eu não conseguia olhar para mim própria,

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não é?! E reequacionar porque não havia espaço, não havia espaço não é?! Entre IPO-casa e

casa-IPO, isto era uma sobrevivência autêntica.

E1: Quanto tempo é que ele esteve internado? Foi muito tempo que esteve?

Mãe 1: Não ele não esteve muito tempo internado, mas teve 1 mês e tal só que realmente o

sair do IPO para ir para a Estefânia 3 semanas, eu acho que isso valeu por 100 anos…

E1: Claro…

Mãe 1: E depois voltar para o IPO…ahh… Eu acho que isso foi… depois não esteve muito

tempo internado, estava internado como havia suspeitas de alguma coisa…Portanto lá

cobrávamos nós mais qualquer coisa… ahh os extras… Olhe, uma coisa que para mim foi

difícil de gerir era os extras, porque ele tinha de repente, eu já dizia, não era a doença em si,

era o impacto de… de repente era os diabetes, de repente era a osteoporose, de repente era a

hipótese de manucrose na cabeça do fémur, de repente era o cateter. Os extras!!! A gente já

não tinha folego, sabe? Já não tínhamos folego para os extras. Mas depois tínhamos… Eu

agora até dizia a brincar, o impacto para a notícia eu já não conseguia aguentar o impacto.

Depois arranjávamos forças sem saber aonde para gerir…mas…

E1: Humhum… A sua família, a sua família, a vossa família teve um impacto também muito

negativo? … Nessa altura…(?19:22)… Acha que conseguiu funcionar? Acha que se…

Mãe 1: Acho que conseguiu funcionar…

E1: (?19:27)

Mãe 1: Acho que conseguiu funcionar. Acho que a Dr.ª J., dai a minha comoção porque este

tema no fundo tem a ver com a M. que é a primeira. Lembro-me que a M. agarrou

completamente a família e deu uma estrutura enorme, mas fez com que ela se anulasse porque

ela também é uma pessoa super emotiva e afectiva, e fez com que ela também se anulasse,

retardasse a adolescência…e…lembro-me de a Dr.ª M. J. dizer “Ela tem uma estrutura e um

suporte fabuloso para ter… para agarrar isto tudo”. Porque ela agarrou a família… Por outro

lado, eu mais tarde percebi que isso também lhe saiu caro a ela, e a nós porque gerir uma

adolescência aos 16 anos não é a mesma coisa que aos 19. Portanto, isto tem sido difícil…

E1: Ela tinha que idade na altura?

Mãe 1: A M. tinha 13. E foi fabulosa e tem uma estrutura fabulosa, mas no fundo também a

acalmou…

E1: Claro…

Mãe 1: E ainda hoje uma parte desta minha comoção é por exemplo, ainda hoje de manhã eu

disse à M., por causa de uma discussão que tivemos ontem, ela queixa-se muito que eu...que,

que… e eu sou uma mãe muito presente, e nós somos uns pais muito presentes… e… que eu

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no fundo, que não consigo chegar a ela, que eu não lhe dou atenção. E eu por exemplo falava

com essa minha irmã psicóloga e…e ela dizia “Como é que ela no fundo…?”. Ela ainda hoje

de manhã me dizia, porque a mãe, a mãe não, a mãe pensa de uma maneira que é impossível

trabalhar consigo, a mãe pensa que é impossível. E eu tenho a consciência que tenho imenso

limites, imensas lim…defeitos, mas também sou um potencial de coisas boas, não digo isto no

sentido de soberba, mas percebo perfeitamente que há aqui coisas que ainda não estão

digeridas e que ela ainda tem muito mais necessidade minha do que eu própria me apercebo e

percebo que são lacunas que ainda vêm de trás porque depois não é só os 2 anos e meio no

IPO que ela deu resposta, foi o ano a seguir em que nós de repente estávamos exaustos,

exaustos… e que ainda íamos todos os meses ao IPO. O outro ano a seguir ainda

íamos…Portanto nós depois também não nos conseguíamos desprender da ideia, não era?!

E1: E conseguiram-se desprender da ideia? Trazendo-a agora para o presente?

Mãe 1: Ai, eu acho que só há pouco tempo, no sentido em que o espaçamento do Z. M. foi

sendo maior e que agora já vai lá de ano a ano e de repente isto já nos dá um espaço de

manobra para pensarmos noutras coisas, porque 2 anos e meio foi aquilo, o terceiro ano era

aquilo todos os meses. Nós sabíamos que ele tinha hipótese de recaída, portanto, não era

aquele mês, era os quin…a semana antes. “O que é que vai ser?” – era a semana antes, era a

descompressão e sobravam 15 dias que não era nada para quem vinha estoirado de 3 meses e

tinha que ir gerindo isto tudo, não é? Também, porque a vida continuava e…

E1: Claro

Mãe 1: …eles continuavam a crescer, o casamento continuava…

E1: Claro

Mãe 1:… a acontecer

E1: E hoje? Como é que…como é que vive a doença hoje? O que é que pensa da doença

hoje?

Mãe 1: Acho que foi uma mais-valia na vida (emociona-se)

E1: Mais-valia… Como?

Mãe 1: Acho que amadureci imenso… (emociona-se)

E1: hum hum…

Mãe 1: Acho que cresci mundos, que já existiam e que eu nem tinha a consciência. Lembro-

me que às vezes ia a brincar que achava que até nem era uma pessoa muito má que já tinha

construído muita coisa e tinha alguma sabedoria dentro de mim e esta consciência de

limitação do que é que é o mundo, acho que me pôs muito no meu lugar, de humildade e de

(emociona-se)… Ao mesmo tempo, como é que eu hei-de explicar?! De…do potencial e das

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graças que eu tenho, a par de tanta coisa que… que eu não agradeço e não dou valor, que têm,

que dava como quase que direito adquirido para existir, percebe?

E1: Mas considera que a doença está controlada? Pensa nela?

Mãe 1: Não me preocupa em relação à doença… não

E1: Não?

Mãe 1: Não porque acho que hoje em dia também amadureci tanto com isto. Eu lembro-me

de na altura pensar assim: “Se um filho meu morresse, como é que eu conseguia gerir isto?” E

acho que amadureci imenso e acho que deu-me muito mais tranquilidade também com a vida,

acho que nesse aspecto acho que foi uma mais-valia, acho que amadureci, consegui confiar

mais e perceber que apesar de tudo a par da limitação que eu senti, senti imensa

potencialidade também, por isso…

E1: Quer dizer então que sente que… que tem noção que a doença do Z. M. está controlada…

Mãe 1: Eu não sei se está controlada mas eu já percebi que na vida nada está controlado,

portanto não é uma coisa que me preocupe.

E1: Hum hum…Ou seja… Há sobrevivência, mas essa sobrevivência não quer dizer…

Mãe 1: Não quer dizer…

E1: …exclusão

Mãe 1: Não, não, nem pensar! Mas eu também não tenho, eu aprendi com esta doença que

também não controlo nada, eu hoje também posso pensar que estou controlada e amanhã

posso ter o mesmo impacto que tive quando soube da doença dele.

E1: Não controla nada em termos físicos mas se calhar aprendeu a controlar outras coisas…

Mãe 1: Ai isso sim…sim! Mas em termos físicos exacto! Ai isso sim, isso sim. Isso

amadureci muito, é isso que eu lhe estou a dizer. Amadureci e sinto que às vezes ao meu lado

há um stresse enorme com imensas coisas na vida e acho que de certa maneira já não me

deixo stressar com imensa coisa que acontece. Até cá em casa há sempre a conversa que nós

somos uns desorganizados e que não planeamos. E eu estou sempre a mostrar a eles que isso

tem uma vertente, não é desorganização, é a capacidade da pessoa estar aberta para o

imprevisto. Porque às vezes fazer planos e o desmontar também é exigente.

E1: E o que é que pensou? Hoje pensa alguma coisa sobre as causas? De onde é que veio a

doença? Pensa nisso?

Mãe 1: Sobre as causas? Não, não. Quando ele entrou lembro-me de perguntar: “Mas donde é

que isto vem?” Lembro-me que ninguém respondeu porque não há as causas certas. Ninguém

respondeu que há imensas causas de de de…no fundo das alimentações, das tensões, das redes

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magnéticas, de tudo. E eu estou a fazer agora um mestrado em, um master em Psicologia

Positiva…

E1: Hum hum

Mãe 1: E… e acho que se foca muito ahh…as…também as causas de tensão emocional, de…

de algum… como é que hei-de explicar?! Tensão emocional, de alguma debilidade que

possa…ahh…proporcionar que a doença se desenvolva…

E1: Mas sentia isso no seu filho? No Z. M.? Ele era mais

Mãe 1: Não, não… Eu a única coisa, à luz do que eu tenho aprendido e ouvido, a única coisa

que, a nível emocional se calhar que eu possa dizer… do Z. M.… Nós vivíamos no campo,

portanto, ele teve uma vida, sobre imenso pontos de vista, muito mais saudáveis que os

outros, porque nasceu no campo. Teve, ele aos 3 anos veio para Lisboa, e teve 1 ano que lhe

custou imenso entrar na escola, aliás, eles andavam numa escola que é o B., não sei se

conhece?

E1: Sim…

Mãe 1: Portanto, a sorte foi que o Beiral é uma quinta, portanto o Z. M. vivia na rua, ele tinha

imensa dificuldade em entrar na sala de aula porque eu acho que... Lembro-me de pensar que

ia fazer uma horta na varanda porque ia uma vez por semana com ele ver as galinhas e os

porcos. Ai acho que ele teve um impacto enorme. Pronto, é assim o único que eu encontro,

mas assim além desse…

E1: Pois

Mãe 1: Por outro lado, também é curioso que dos 5, é o que tem um carácter mais acentuado

e forte e acho que se não fosse isso, ele não tinha conseguido sobreviver.

E1: Ou seja isso não foi consequência da doença…isso foi…

Mãe 1: O carácter dele?

E1: Sim

Mãe 1: Ai não…

E1: Nada

Mãe 1: Era dele desde o princípio, que é o que me dá mais trabalho e continua a dar. (risos)

Desde o princípio que eu dizia “Este miúdo dá mais trabalho do que dar de mamar aos 5 ao

mesmo tempo”. Eu vejo as mamadas como uma fase extraordinária e óptima mas também

exigentíssima. E dei de mamar a todos até tardíssimo. E digo sempre isto a brincar, mas a

sério também, ainda hoje em dia digo…”O Z. M. dá mais trabalho do que dar de mamar aos 5

ao mesmo tempo.” Mas foi este carácter que o.. que eu acho que o safou. Porque por exemplo

na pediatria da Estefânia, na UCI, diziam que em 18 anos de de de… de UCI, parece-me,

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nunca tinham tido uma criança dos 0 aos 18 em que não fosse preciso amarrá-lo depois de o

ventilarem. Porque eles ventilam e eles ficam 24 ou 48 horas e nunca foi…Este miúdo tinha

imensa consciência do que era preciso! Tinha imensa... Ele, ele com 5 anos tinha aquelas

coisas que eles põem para medir as tensões…

E1: Sim

Mãe 1: ...e os batimentos cardíacos e ele dizia-me assim, com 5 anos acabados de fazer: “A

mãe mude isto de dedo mas não diga a ninguém que eu quero ver se eles são bons médicos e

estão com atenção ao que eu preciso. É impressionante, é impressionante…

E1: Quer dizer que ele também ajudou?

Mãe 1: Ajudou, ajudou…ajudou, ajudou. É impressionante… ele próprio com os médicos…

era impressionante. Eu fazendo agora a retrospectiva do que é que acho impressionante até a

potencialidade que o ser humano tem, porque nós como pais, eu como mãe, e nós como pais,

no fundo a tendência é protegê-los e sobre protegê-los, e com estas doenças a par do que isso

tem também de negativo, mas também se percebe o potencial que eles têm porque ele teve de

ser um homem de repente não é? Depois também está outro que também está em

reajustamento (risos), também está em reajustamento mas… mas o potencial do ser humano e

das crianças é brutal. Como é que ele próprio nos ajudava a gerir?! E foi uma coisa que eu

ouvi imenso as mães dizerem e as médicas comentarem: “Os filhos é que nos ajudam a reagir

também”. E era impressionante como é que ele tão pequeno a meio da noite dizia “Oh Mãe,

desculpe lá agora tenho que acordá-la, que agora é que já não aguento mesmo.” E é

impressionante, nós achamos que eles são uns bebés, eu olho para os meus sobrinhos com

estas idades, são uns bebés, e se calhar os meus outros filhos também foram… E penso assim

“Mas com esta idade, o que é que o Z. M. já pensava e já reagia?!”

E1: Hum hum… e estávamos a falar de consequências da doença… Que outras

consequências é que acha que…

Mãe 1: Mais tarde ou na altura?

E1: Agora, agora, neste momento.

Mãe 1: Acho estas pelas quais ainda me comovo, que é: o trabalho entre aspas que me dá e

que nos dá…o trabalho é, é pela dificuldade de relação de nós nos reajustarmos, de… de

feridas…Ou seja, de coisas que foram, como estava a dizer à bocado…

E1: Sim…

Mãe 1: Difíceis…

E1: Mas que se arrastam ou que ficaram alguma coisa…?

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Mãe 1: Que nós vamos resolvendo mas que não são automáticas, nem como nós queríamos

porque nos marcaram e nos feriram mais do que nós pensávamos.

E1: Estávamos a falar da sua filha mais velha, que outras feridas…?

Mãe 1: Por exemplo, esta mais velha, pela primeira vez há seis meses me conseguiu dizer

“Oh mãe, a doença do Z. M. foi duríssima” (emociona-se). E eu, pela primeira vez (…) há

oito anos… Está a ver o que isto implica? E eu comovo-me porque a relação ainda é difícil

por causa disso. Ou seja, eu acho que o impacto é os reajustamentos porque nós todos tivemos

que nos anular em prol daquela circunstância. E acho que se há filhos que, que estão

emocionalmente… não sei se se diz emocionalmente melhores…

E1: Sim

Mãe 1: … porque também tiveram… a par… elas tiveram… eu também como mãe vou

aprendendo e vou aprendendo a gerir e aprendendo o que é também os feitios e o que somos

nós como seres humanos. E enquanto que eu, por exemplo, com a mais velha, ajudou imenso,

eu dizia imenso que ela era impecável… por exemplo, a mais valia de ter vários filhos é que

eu também tenho várias perspectivas não é?! E vou aprendendo com vários temperamentos ou

várias características diferentes. E tenho uns mais emotivos e uns mais racionais, não é?! E se

eu, por exemplo, há 8 anos, os emotivos se integravam completamente, se anulavam para

abarcar a causa, se por um lado era óptimo e eu dizia que eram impecáveis, tenho outro que é

o terceiro que também é como a primeira, que se for preciso anulam-se em prol dos outros e o

nosso papel como pais é ajudar a que isso não aconteça. Mas eu hoje em dia com a

maturidade que tenho e com os conhecimentos que tenho já consigo intervir ai. Portanto vejo

que o outro… não sei se é suposto dizer nomes ou…

E1: Claro… Pode dizer nomes, não vai passar…

Mãe 1: Mas pronto…vejo que por exemplo… Eu digo nomes que para mim é mais fácil.

E1: Sim claro

Mãe 1: Vejo que por exemplo o X. que é muito como a M., como são muito afectivos e muito

emotivos, a tendência é porem os outros à frente, e eu aqui no terceiro já consigo dizer “não”!

E para mim, é importante e vejo que o meu papel é se calhar não pedir tanta ajuda mas que ele

se estruture.

E1: Esse terceiro tem que idade?

Mãe 1: 17

E1: Ou seja, tem a M., depois tem…

Mãe 1: Tenho a M. com 22, a M. com 21, o X. com 17, o Z. M. com 14 e a M. com 10.

E1: Pois havia uma M...

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Mãe 1: …que tinha 2 anos e que a M. foi a mãe da M. A M. ainda hoje em dia se for preciso,

já não é bem de colo, mas sair do meu colo para ir para o da M., vai… Acho que já estamos

equiparadas mas durante anos ela saia do meu colo para ir para o da M.. Quer dizer, eu acho

que voltando um bocadinho atrás, aguentou-nos, num bom sentido, toda a estrutura que nós

tínhamos para trás. Eu tinha abdicado de uma vida profissional para, com a consciência que

tinha de os estruturar. Portanto apesar de tudo, a M. foi apanhada com 2 anos, mas já tinha 2

anos de estrutura em cima dela. E isso foi uma mais-valia enorme a par de uma coisa que a

Dr.ª J. me dizia imenso e que é verdade – “São famílias super sólidas e unidas, mas também

quando há qualquer coisa dura sofremos o dobro todos”. E eu senti também, vivíamos muito

uns com os outros, temos esse suporte e essas interligações e esses vínculos que são

importantíssimos, mas se há um que sofre, abala a família toda. Podia haver outras

emancipações que não houve.

E1: Claro, claro… Está-me a falar então da ferida, do reajustamento…

Mãe 1: Do reajustamento…

E1: …no fundo do reajustamento em termos dos próprios seus outros filhos e em termos da

vossa parentalidade não é?

Mãe 1: Exacto, exacto

E1:…de como é que lidar com…

Mãe 1: Exacto, exacto

E1: E outras vê outras?

Mãe 1: Por exemplo eu lembro-me que no 2º ano do IPO, portanto ainda estava intensa

actividade e nós já muito cansados porque eu acho que nós chegamos o ponto do fim das

reservas. Portanto entrámos numa de sobrevivência… de sobrevivência…Ahhm…Lembro-me

que alternava o IPO com psicólogos na Estefânia doutros 2, porque lembro-me que a Dr.ª J., a

Dr.ª M. J., quando nós entramos dizia-me daqui a 1 ano (ainda nem eu sabia o que é que isso

significava não é?)… daqui a 1 ano dizia tenha atenção ao filho que está antes e ao que está

depois do Z. M. E eu percebi, o que estava depois passado 1 ano, o X. acordava todos os dias

a chorar, ou seja, era o que dormia no quarto com ele, que muitas vezes ele não estava na

cama porque estava no hospital e quando estava na cama ou chorava com dores porque tinha

dias de quimioterapia e de cortisona, de corticóides, aquilo tudo é um potencial que ele não se

mexia com dores. Portanto, o outro estava ali a par, era o rapaz, a M. com 3 anos tinha uma

mentalidade de 10, portanto foi isto também. Foi uma psicóloga extraordinária porque eu

acho que a nossa facilidade de comunicação e também de nos posicionarmos perante os

problemas, ajudou imenso na relação com os médicos e lembro-me que, não… quando saímos

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da Estefânia, pedimos aos médicos da UCI e lembro-me de falar com a Dr.ª J. que eu

precisava de ajuda também para os outros 2, para nos irmos gerindo, nós não conseguimos,

não tínhamos tempo nem espaço para gerir e lembro-me de às vezes até para ir levar às

psicólogas ou era uma avó ou era até amigas minhas porque eu não tinha tempo nem

físico…eu acho que emocional esticava-me, estiava-me…

E1: Pois, pois…

Mãe 1: …mas nem tinha espaço físico para ir. E lembro-me que isso também… estávamos

todos em sobrevivência, mas por outro lado, com uma sorte enorme…

E1: Pois

Mãe 1: …porque…de conseguirmos pedir ajuda, poder ter ajuda, chegar a ajuda… Portanto,

eu não vejo isso, era como eu lhe dizia há bocado… Eu não vejo isso como uma coisa

negativa. Eu vejo a doença como, se isto não tivesse acontecido…eu não escolhia…

E1: Claro

Mãe 1:…humanamente não escolhia, mas agradeço porque não eramos o que somos hoje.

Mas… mas com sofrimento como vê. E com dificuldade de reajustamento…

E1: E com, e com necessidade de tratar algumas feridas não é?! Que estávamos a falar…

Mãe 1: E com necessidade de tratar, eu vejo. Eu tive também que ser ajudada a como é que

me posicionava…

E1: Mas ainda hoje… ou acha que hoje…

Mãe 1: Eu acho que ainda hoje, ainda às vezes vou falar com a Dr.ª J. Às vezes tenho uma

psiquiatra que nos ajudou na altura, tínhamos uma médica nossa que era da oncologia de

Coimbra e que já devia saber do impacto que isto tinha e com toda a confiança e sabendo que

nós também estávamos abertos e que não eramos, nem soberbos nem negativos a isso,

também delicadamente nos encaminhou, nós depois percebemos, também para uma psiquiatra

que nos ajudou até, até a nível de antidepressivos de nós sobrevivermos, porque nós tínhamos

que reagir.

E1: Mas… ainda durante a fase de doença?

Mãe 1: Sim

E1: Não neste momento… E a fase de doença logo de início ou um pouco depois?

Mãe 1: Não, passado uns meses…

E1: Meses…

Mãe 1:… nós começámos a perceber. Aliás, essa que nos ajudou que era nossa…ela já sabia

que nós íamos que ter energia para sobreviver a tudo isto

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E1: Pois… Ou seja vai precisar de um apoio mais medicamentoso na altura em que considera

que a sua energia estava…

Mãe 1: Eu não tinha consciência mas lembro-me que quem estava a ajudar já tinha essa

consciência. Portanto, nós, o que eu hoje em dia olho para trás e vejo perfeitamente que as

minhas reservas psíquicas, anímicas, pedagógicas, cognitivas…

E1: Pois…

Mãe 1: … foram todas consumidas, foram todas consumidas. E depois mais tarde precisámos

de ajuda no sentido em que de repente houve o espaço para a descompressão…

E1: Hum hum

Mãe 1: …porque até ali nós não podíamos pensar nas coisas.

E1: Hum hum

Mãe 1:Nós não tínhamos espaço. Eu lembro-me de falar com a Dr.ª J. sobre isso e eu dizia

“Mas como é que as pessoas aguentam?”. E ela dizia “Oh J. tem que haver os momentos e

muitas vezes não se consegue desmontar porque se a gente desmontar não tem, não consegue

reagir e andar para a frente, portanto a defesa é não desmontar a situação”.

E1: A defesa é não desmontar a situação…

Mãe 1: Eu acho que sim…

E1: Explique, ou seja, não ter consciência absoluta, explique-me

Mãe 1: Eu acho que é não ir ao fundo. Eu acho que a defesa em termos não é de nós não

querermos, é de não haver espaço para isso. A vida não permitia.

E1: E isso é bom…Isso também é bom?

Mãe 1: Olhe, nunca tinha pensado nisso. Pode ser bom…no sentido em que me obriga a

reagir

E1: Sim e por isso protege…

Mãe 1: E protege… e protege. Por outro lado, não foi bom porque eu tive de desmontar o

acumulado, não é?! Porque eu sentia muito que, uma coisa que eu sentia era que a vida,

precisava que a vida parasse para me organizar mentalmente e psiquicamente para reagir.

E1: Mas se tivesse desmontado na altura, quando diz desmontado, diz-me pensar nas

consequências absolutas da doença?

Mãe 1: Não… é desmontado era se calhar, pensar o que é que era a doença…

E1: Pronto

Mãe 1: … integrar, integrar, porque era o que eu lhe dizia, havia um desgaste enorme que

inconscientemente ou latentemente havia… que era a luta e a crença e o acreditar a par da

hipótese de como isto vai acabar.

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E1: E quer dizer que havia tanta coisa para fazer que esta, este…o tempo para pensar nas

coisas mais negativas quase que não havia?!

Mãe 1: Não havia, não havia…não havia

E1: E isso é de alguma maneira um bocadinho protector?

Mãe 1: É protector por um lado, por outro lado mais tarde tive de desmontar e sarar as

feridas.

E1: Claro… E que acha que é aquilo que ainda continua a fazer hoje? Este sarar?

Mãe 1: Ai eu acho que sim… Continuo, continuo, nomeadamente… até na relação de casal,

digamos que o reajustar de coisas que na altura, nós no fundo não tivemos tempo um para o

outro, não é? E nem tínhamos consciência e mais tarde, nós que nunca, nunca cobrámos nada

e vimos nesse aspecto, eu dizia como um tempo privilegiado de amor, e de acarinhamento, e

de pôr o outro à frente, mas no fundo viemos-nos a aperceber que também nos anulámos. E

no fundo demos tanto tanto tanto que mais tarde viemos a cobrar e não nos conhecíamos a nós

próprios.

E1: Estou a aperceber. Pode-me explicar isso um bocadinho mais? É que é um aspecto

extraordinariamente importante… essa dualidade… quase que toca a ambiguidade

Mãe 1: Sim

E1:…a dualidade…foi muito bom, foi muito importante mas… mas deixou…mas estava ao

mesmo tempo a acontecer, estavam a acontecer processos…

Mãe 1: Por que eu acho que, olhe. Eu por acaso não sei do pouco que eu sei que não sou

psicóloga (acabei de entregar ontem um trabalho sobre a resiliência e crescimento pós-

traumático) e o que eu consegui aclarar na minha cabeça é que nós crescemos com a situação,

mas a par disso, a dor e o desgaste existe e o crescimento faz sentido se a mim faz-me sentido

em que eu com a situação cresci, mas a par disso houve dor e houve feridas. Portanto, eu

cresci, mas ainda estou a sarar algumas feridas e algumas complicações.

E1: Hum hum

Mãe 1: Agora, se me desse a escolher pode parecer se calhar estranho ou ridículo, mas eu

agradeço o caminho

E1: Sim… esse caminho de grande crescimento…mas uma coisa pode não excluir a outra

Mãe 1: Exacto… não exclui, não exclui

E1: Claro

Mãe 1: E acho que a minha tarefa se calhar hoje em dia não é a que eu tinha pensado ou que

eu tinha gostado. É desmontar e sarar

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E1: Hum hum…Ou seja é perceber exactamente o que aconteceu, perceber as

consequências…

Mãe 1: Os impactos que isso teve em cada um…

E1: Em cada uma da família…

Mãe 1: …da família e em nós…

E1: E em vocês próprios, na vossa estrutura quer de casal, quer na estrutura… E o que é que a

ajuda hoje a lidar com isso? Quais são, o que é que faz para lidar com o “sarar”?

Mãe 1: Ahh… Então, ajuda-me… ajuda-me…Dá-me sentido à minha tarefa como… como

pessoa, como mãe, como mulher, como educadora ahh… ajuda-me, dá-me sentido em que eu

percebi a vida, a minha tarefa ou a minha, como é que eu hei-de explicar?! A minha missão,

digamos, na vida… não é se calhar (Oh Inês, desculpe que eu estou sempre a olhar para a

Margarida e nunca olho para si) … Não é se calhar aquilo que eu pensava, é aquilo que a vida

me oferece…

E1: Hum hum… Está-me quase a começar a dizer que a ajuda também alguma aceitação, é

isso?

Mãe 1: Sim…

E1: Esta noção que… (?43:28)

Mãe 1: Ai isso ajuda-me imenso, ajuda-me imenso… ajuda-me imenso o desafio que a vida

provoca, o que é que eu posso potenciar e tirar para mim e para os outros à minha volta, o

desafio que a vida me provoca. E percebi lindamente que eu cresço e me realizo a dar resposta

e a não perder tempo porque é que não é de certa maneira e porque é que é desta. Isto é uma

aprendizagem que eu tenho feito.

E1: Ou seja então temos aqui uma parte de aceitação e uma parte de resolução…

Mãe 1: Exactamente

E1: …não é?! Há uma aceitação e uma resolução

Mãe 1: E uma resolução

E1: Uma resolução com algum sentido, com o sentido positivo de resolução

Mãe 1: Exacto, exacto. E eu acho também que eu de repente, não sei se acontece com todas

as pessoas, acho que sim, mas pelo menos comigo agente tem assim uns projectos cor-de-rosa

não é!? E depois vai percebendo que a vida vai desmontado, e acho que a mim se calhar

desmontou-se de uma forma um bocadinho mais abrupta como dizia um padre amigo nosso:

“A vida antecipou-se”. A vida connosco antecipou-se.

E1: Pois, fez umas pintarelas… Muito bem. E as redes de suporte são as mesmas de

antigamente, tem outras?

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Mãe 1: Ah, olhe eu acho que com este processo todo, houve várias coisas que eu tinha muito

o hábito que me ajudou imenso, também de escrever e de ir pensando parar muito. Eu tinha

muito, trazia muito de trás e que ajudou-me imenso neste processo o hábito de escrever e de

pensar sobre a vida. Tinha sempre a preocupação de eu levar a vida e a vida não me levar a

mim, ou seja, no sentido de “quais são as minhas prioridades e o que eu quero aprender e

deixar de legado como a vida e aprender com as circunstâncias”. E… e desculpe…

E1: Estávamos a falar das suas redes de suporte…

Mãe 1: Ah das minhas redes de suporte…

E1: Hoje, são as mesmas, são outras? Algumas…

Mãe 1: São outras porque percebi, ao escrever e ao reflectir sobre as coisas, percebi as

prioridades mudam completamente, o cenário muda não é?! Perante uma doença destas as

prioridades passam a ser completamente diferentes. O suporte em relação aos amigos, acho

que me vinculei a outros que nunca tinha conhecido mas que encontrei empatias e criámos

vínculos em situações de adversidade grande, não é?!

E1: Outros também com crianças doentes, ou não?

Mãe 1: Sim, sim! Com crianças doentes.

E1: Outros com crianças doentes.

Mãe 1: Sim, outros com crianças doentes. Outros que eu se calhar não dava tanto valor,

porque eu se calhar estava num fase de superficialidade de vida maior e com quem eu hoje em

dia tenho uma empatia muito grande Portanto, por um lado penso, tive este caminho mas já

outros o percorriam…

E1: Ou seja os amigos mudaram um bocadinho…

Mãe 1: Mudaram um bocadinho…

E1: A relação com a família mudou ou não? Eles continuam a ser rede de suporte? São

menos? São mais?

Mãe 1: Continuam a ser rede de suporte…

E1: Mas cada um já ficou no seu lugar ou ainda continua?...

Mãe 1: Eu acho que isto também a mim…Esta doença ajudou-me a desmontar uma coisa que

para mim não era fácil, que, eu tive uma educação muito tradicional, no sentido em que, se era

bom dar resposta a tudo, e ser resiliente, e ser proactiva, e ser optimista, isso também me

anulava um bocadinho porque tinha de dar sempre uma resposta positiva e era por educação

posta em mim, também sempre uma bitola muito alta. E esta doença obrigou-me a dizer que

não a muita coisa e também posicionou-me no sítio certo, foi bom para mim. E em relação às

famílias, acho que me ajudou a perceber perfeitamente que havia imensas coisas que nós

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tínhamos laços e ambientes muito simpáticos, mas que nós pais, e falo muito disto com o meu

marido, eramos de certa maneira manipulados pela estrutura e pela rede e pelas formas.

Portanto, acho que houve algum embate que nesse aspecto até foi privilegiado pela doença,

mas que hoje em dia me percebo e me posiciono muito melhor com isto que, quando eu dizia

que não podia ir às coisas porque ia ao IPO ou porque estava cansada – as pessoas percebiam.

Se eu dissesse que não podia ir a acontecimentos familiares porque ia a uma aula de ténis,

ninguém percebia…

E1: Pois… e agora acha que ficou mais afirmativa e mais autónoma…

Mãe 1: Ah muito mais. Acho que foi uma das mais-valias. Fui obrigada também a desmontar

porque a situação também é tão impactuosa e tão forte, que por muito que nós tenhamos laços

afectivos, não há ninguém que nos compreenda, somos só nós. E se calhar, olhe, eu acho que

nas únicas pessoas – a Dr.ª J. – porque percebe e lida com isto e tinha reacções e nós tínhamos

que gerir também os impactos. Embora também tivéssemos muito colo, tivemos muito colo,

mas também que aturar muitas observações das pessoas. E isso ajudou-me imenso hoje a lidar

também com as pessoas porque a tentação é que eu própria que aprendi, amadureci muito,

quando a coisa começa a correr bem, já começo a opinar imenso sobre os outros e é horrível.

E1: Ou seja, nessa altura houve também, então, observações das pessoas, opinações das

pessoas que não ajudaram nada…

Mãe 1: Irritar, irritar, eu não sei se me irritava porque não tinha força para me irritar, mas não

me acolheram e eu não me aproximei delas.

E1: Essas pessoas são quem? Profissionais de saúde? Outros pais?

Mãe 1: Ai profissionais de saúde não, não, isso não…

E1: Outros pais?

Mãe 1: Ah, eu acho que dentro dos próprios amigos

E1: Pessoas que (?49:03)

Mãe 1: Eu acho que dentro dos próprios amigos… sim, sim…

E1: Os próprios amigos…

Mãe 1: ...na própria família

E1: Ou seja esta vontade de opinar…

Mãe 1: Ou seja dos próprios pais, eu aqui sou suspeita, até vejo mais sogra (risos)

E1: Pois

Mãe 1: Porque acho que as pessoas estão de fora e de repente fazem comentários em que não

há o direito…

E1: Pois

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Mãe 1: Mas eu própria hoje em dia tenho um irmão com uma situação gravíssima e dou por

mim a fazer um comentário, às vezes, que ele devia reagir de certa maneira e eu disse: “ Mas

que horror, mas isto foi o que eu nunca aceitei”. Não é que nunca aceitei, achei horrível. E

isso tem-me ajudado, que aprendi com o meu processo, a posicionar-me no meu lugar, não sei

se isto é claro para vocês.

E1: Claro que sim

Mãe 1: A posicionar-me no meu lugar

E1: Claro que sim

Mãe 1:…e isto também acho que eu precisava. Eu às vezes até dizia a brincar, comigo

própria, eu era tão dura também de cabeça, precisei disto…

E1: Tão formatada…

Mãe 1: …e dura, com a mania que sabia, e que devia ser, e dona da verdade e tudo. Que isto

me ajudou imenso a vergar (risos)

E1: A flexibilizar pelo menos, não é?!

Mãe 1: Exacto, e a tolerar…

E1: Conseguir perceber…

Mãe 1: …e a tolerar, exacto

E1: Por último, só mesmo uma questão. Consegue descrever-me o Z. M., consegue-me

descrever o seu filho?

Mãe 1: Como?

E1: Como quiser

Mãe 1: Ai consigo! (risos) Tem um potencial humano brutal…brutal…Eu acho que é um

rapaz fortíssimo, carácter acentuadíssimo, vincadíssimo, e com um potencial humano brutal,

inexplicavelmente aos 5 anos, ai, com uma luta pela vida e pela dignidade, fantástica, que eu

de repente pedia-me um roupão para ir à casa de banho e eu achava isto fantástico ao mesmo

tempo os valores até de dignidade e de pureza que eu tinha incutido com 5 anos, isso acho

fantástico e acho que o melhor que o descreve é que ele adorava o Ricardo, que era um

guarda-redes da selecção (que eu nem percebia nada de futebol) e na altura, há imensa gente

também a par que é pesada, também imensa gente que ajuda não é?!

E1: Claro

Mãe 1: Portanto, havia logo alguém que se mexia, que conhecia o Ricardo e o Ricardo foi vê-

lo à Estefânia. E lembro-me dele, que é uma coisa que eu fico impressionada ainda hoje em

dia – com 5 anos, que são uns bebés, não permitir, mas que ele fez força… (porque eu disse

“Oh Z. M., não temos tempo…”) …que o Ricardo o visse de fraldas e nu, porque ele estava

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de fraldas, com cateter e ligado às máquinas todas, e é montes de aparelhos, isto nos cuidados

intensivos. E as fotografias que ele tem, ele disse, ele mandou em mim com 5 anos, neste

sentido e disse: “Eu quero aqui os meus calções de futebol” (porque ele jogava futebol), “Eu

quero aqui os meus calções de futebol e o meu equipamento para ele me ver”. E o

equipamento foi esterilizado. Ele não permitiu, é uma coisa que eu fico de boca aberta… E

mandou vir um boné para ele não o ver careca. Isto é impressionante.

E1: Hum hum

Mãe 1: E ele tem essas fotografias porque ele não se permitiu. Como é que uma pessoa? Nem

eu tive esta consciência! Tem um carácter fortíssimo e passado um ano quando ele… ele

depois deixou, quer dizer o mundo dele passou a ser outro. Não era a escola, foi uma cosia

que passou para segundo plano. E passado um ano, ele foi ao Carnaval da escola, porque eu a

falar com as educadoras e com as psicólogas e com as médicas, achamos que podia ser o Z.

M. começar a ir aos bocadinhos. Ia vestido de homem-aranha porque ia encapuçado. E ele

com, ai já com 6 anos, no meio de toda a gente, que é uma coisa que ainda hoje as educadora

e as directoras falamos sobre isso – no meio de toda a gente, de amigos, de escola, de

directores, na festa do Carnaval – tira o carapuço do homem-aranha e olha para nós como

quem diz “Como é que vocês vão reagir?” Portanto isto era de uma potencialidade de carácter

que ao mesmo tempo nunca, nunca, nunca se deixou tratar nem nunca se assumiu como “o

doente” ou “o coitadinho”, nem se deixou permitir a isso. Portanto isto é que o potenciou

também, nunca. E eu ia busca-lo à escola e ele vinha cheio de dores, dos tratamentos e dizia

assim: “Oh mãe eu quase não aguentei, mas resisti”. Era impressionante.

E1: Estava-me a descrevê-lo… fisicamente como é que ele?

Mãe 1: Hoje em dia…Ah é um adolescente insuportável (risos) E o que eu me ri quando a

Dr.ª J. (agora fui lá outra vez com ele) porque acho que também é raro esta preocupação com

ele. Outro dia queria que eu fosse para a urgência porque estava mordido de uma melga ou de

uma pulga e eu disse “Oh Z. M., isso é uma pulga.” “A mãe é indecente porque sabe que eu

não posso arriscar nada.” Então queria que eu fosse para a urgência porque estava cheio de

borbulhas. Disse “Oh Z. M.…” E é um miúdo que arrasta também o mundo com ele, em que

se por um lado tem este potencial humano, autonomia enorme, que desde pequenino ia

sozinho para a salas de tratamentos e fazia tudo e… e vai e entra no IPO e vai para…Eu fico

quase no carro e ele vai ao laboratório fazer as análises sozinho, mas desde pequenino. Se por

um lado tem este potencial, para… (agora tinha qualquer coisa que me esqueci…)

E1: Falávamos da personalidade dele… Estava a dizer que, se por um lado que ele é muito

preocupado com ele com todos os sinais físicos dele…

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Mãe 1: Sim, sim…

E1: de facto tem o potencial de ser muito autónomo, por outro lado…

Mãe 1: Ah não, eu estava a brincar, agora como adolescente é insuportável. Ai que eu dizia,

às vezes digo com a Dr.ª J., que lutei tanto por esta vida que agora só tenho momentos que só

me apetece mandar pela janela (risos)

E1: mandá-lo pois… (risos)

Mãe 1: … pela janela (risos). Porque… é uma coisa que me dá sentido ao desafio que ele faz

está a ver? Entrar na adolescência… em que no fundo é teimoso, teimoso, teimoso!!! E se isto

por um lado, este carácter tão forte é bom nas adversidades, ai dá imenso trabalho, dá

imenso… Mas vejo com um potencial enorme. Agora também no reajustamento que muito

maduro por um lado, mas muito infantil por outro…

E1: Muito infantil…

Mãe 1: Muito infantil por outro… Vejo, por exemplo, e mesmo a nível de desenvolvimento,

ele está-se a recuperar academicamente e cognitivamente. Por exemplo, estamos no

supermercado e ele está com a M. no supermercado. Isto, ele não tendo nenhum atraso,

porque com a Dr.ª M. de J. também fizemos testes com outra psicóloga, com a Dr.ª S., não sei

se conhece?

E1: Sim, sim…

Mãe 1: Pronto, para ver os níveis dele, que está nos 50%, ou seja, nós também temos sempre

alguns mais altos, que nos dão alguma…compensam-nos não é?

E1: Sim, sim…

Mãe 1: Ou seja, o Z. M. mal falha ali qualquer coisa e acho que ele se está a deparar, sempre

teve imensa, tem imensa auto-estima, imensa autoconfiança, que foi o que o potenciou e o fez

sobreviver. Por outro lado, a nível académico ele está a perceber que, que não é aquele herói

que pensava, porque a matéria vai sendo mais exigida e isso dá-lhe alguma insegurança. E

essa insegurança a par com alguma imaturidade, dá-lhe um bocadinho para ser o palhacinho,

o palhacinho. Por outro lado, é um miúdo que sobrevive bem, porque por exemplo, veio para

casa todo escrito de (está no 8º ano não é? Aquele ano que não devia existir - risos) mas todo

escrito de esferográficas, “Oh Z. M., mas o que é isto?”, “Oh mãe, são elas”. (risos) Que ele é

um menino estrela, é um charmoso, é um menino estrela. “São elas”. “Oh Z. M. mas são elas

como? Não há lá mais rapazes?”. (Ele mudou de escola, estava no liceu e não se aguentou,

precisava desta conjuntura toda. Foi para um colégio.) E eu disse: “Oh Z. M. mas não há lá

mais rapazes?”, “Oh mãe mas eu é que sou a novidade”. (risos) Toda esta auto-estima, este

(?57:09) dele, o ajuda a sobreviver. Por outro lado, é um miúdo que está bem em qualquer

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sítio, tem imensa relação social, imensa facilidade com crianças, com adultos, com bebés, tira

o partido de qualquer situação, por outro lado, como viveu muito numa fasquia de

sobrevivência, a fasquia dele é baixa. Portanto, nós estamos…”tem de estudar”, “Oh Z. M., se

não estuda vai apanhar papéis”, “Oh mãe é muito melhor apanhar papéis do que não fazer

nada”. Mas a fasquia tem de ser um bocadinho mais alta e nos estudos é um bocadinho isto.

Adorava ser homem do lixo porque vai ali atrás a apanhar ar e tem uns coletes especiais

florescentes.

E1: Ou seja, adapta-se… Exactamente, adapta-se a qualquer coisa…

Mãe 1: Adapta-se a qualquer coisa…Portanto, nesse aspecto eu acho que ele vai ser um

vencedor, muito mais do que outros que são uns… uns “introspessivos” e pensam tanto, tanto,

tanto. Eu acho que o Z. M. vai ser e já é um lutador, mas nesse aspecto temos de o potenciar e

mesmo nos estudos tem dado imenso trabalho porque quero mostrar que é importante e que é

preciso subir a fasquia. Nos outros 4, eu nunca precisei de estudar com ninguém, nunca,

nunca. E eram todos autónomos e muito bons alunos e eu própria, nós cá me casa, preferimos

que eles tenham um 3 ou um 4 por eles, do que um 5 à nossa custa…

E1: Claro, claro…

Mãe 1: Isso não…

E1: E o que é que lhe tenta ensinar?

Mãe 1: Ao Z. M.?

E1: Sim

Mãe 1: Que é importante ele ser exigente com ele próprio. Eu acho que isso é a nossa…o

ponto hoje em dia. Nomeadamente nos estudos. Ser importante, ele exigente. Que de futuro,

que ele vai conseguir e que ele pode potenciar depende daquilo que ele está a construir agora.

E ele está a começar a perceber isso agora. E a nível académico, também mostrar que ele

consegue porque houve aqui uns anos que foi difícil de gerir entre o que era suposto no

sentido, o que era permitido exigir e o que ele podia dar…

E1: Pois

Mãe 1: …porque ele também estava em reajustamento, nós também…

E1: Acabaram por ser um bocadinho mais tolerantes, será isso?

Mãe 1: Sim, sim…

E1: E por isso vocês próprios baixarem um bocado a fasquia…?

Mãe 1: Baixarmos a fasquia, porque no fundo também, sem darmos por isso, e hoje em dia

vamos tendo essa clareza até falar com os professores, no fundo…quer dizer…nós no fundo

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por um lado bom que ele é um herói, porque eu lembro-me de na altura em que ele estava

doente, tudo o que ele fazia tinha de ser potenciado não era?! Portanto…

E1: Claro…

Mãe 1: …ele era óptimo, ele era mesmo óptimo. E de repente a exigência foi para outros

níveis, foi para a sobrevivência não era?!

E1: Claro…

Mãe 1: Portanto, a sobrevivência estando assegurada entre aspas - nunca está, de repente

existem outras coisas como a Dr.ª J. noutro dia dizia e que eu assisti à conversa e me ajudou

imenso, ao Z. M. Porque isto dá-lhe alguma tensão interior. É um miúdo um bocadinho

agitado porque no fundo eu acho que ele, por um lado ele acha que é um lutador, por um lado

adapta-se às circunstâncias, por outro lado arrasta a preocupação também com ele – tem uma

dor no calcanhar, joje tem uma ecografia disse “Oh Z. M., que chatice uma ecografia”, “Que

chatice mãe?! A mãe sabe lá o resultado que aquilo vai dar. E não é uma ecografia é uma

ecografia e um raio-x”. E é capaz de falar do colégio para perguntar ao meu marido se não

está esquecido de marcar a ecografia, portanto eu acho que ele arrasta alguma preocupação.

E1: Pois

Mãe 1: E se por um lado nós também temos alguma dificuldade em às vezes falar no termo

cancro porque é pesado, mas por outro lado, ele existe e nós estamos sempre a gerir entre o

que ainda é pesado. Eu há bocado quando a M. estava aqui (daí esta minha comoção toda,

vem destas feridas que…) eu pensar assim: “É preciso ela querer também falar das coisas

porque se calhar da mesma maneira que eu estou a falar, eu choro, mas não tenho dificuldade

em falar”, percebe?! Porque estou muito habituada. Ainda estou a sarar algumas coisas mas…

eu acho que…

E1: Está-me a dizer nesse sarar então que é também ainda falar da doença. Ainda é necessário

falar da doença?

Mãe 1: Eu acho que não é da doença no sentido em que como eu ainda me sinto em família

em processo de reajustamento, é no sentido do impacto e do que a doença potenciou e no

fundo nós tivemos de acumular coisas mal resolvidas com a doença, nomeadamente acho que

a doença nos obrigou a que nós nos anulássemos também…eu vejo isso muito também

E1: Pois com os mais pequenos

Mãe 1: Quer dizer eu vejo isso, por exemplo, eu vejo isso na M. A M. era a segunda, como

era uma pessoa que já tinha mais… Enquanto que…(deve saber isso como psicóloga, não sei

se como mãe, mas como psicóloga) …que no fundo, há uns com tendência para fora não é?

E1: É, é…

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Mãe 1: ...e que a gente tem de os puxar para dentro, e esses têm tudo assegurado. Há outros,

que era ao que eu dizia, é diferente, puxam tudo para dentro e nós temos que ajudá-los, olhe,

para fora um bocadinho, não é? Pronto, a outra segunda que, parece-me também, pelo que eu

vou aprendendo, também faz características, parte de característica de ser segunda também,

não é?! No fundo, tinha tudo para fora: fazia ginástica de alta competição, portanto, nós, sem

termos hipótese de pensar eramos arrastados para os campeonatos. E ela foi ao campeonato do

mundo e a família toda foi para o campeonato do mundo. Portanto, a M. é muito mais

estruturada do que a M.

E1: Pois

Mãe 1: Percebe? É uma pessoa que eu posso ter discussões, mas estamos bem resolvidas, e

ela está bem resolvida. E posso ter as maiores discussões com a M., mas a parte afectiva, os

laços emocionais estão estruturados. E com a M. não! E eu a falar da M. não me vêm lágrimas

neste sentido. A falar dos outros não vêm. Só da M. é que vem. Porque é o que ainda estou…

E também como ela já tem 22 anos, quer dizer, não é a mesma coisa que eu falar com o X.

que tem 15.

E1: Claro

Mãe 1: Eu acho que neste momento as minhas lágrimas também vêm da M. e como foi ela

que apareceu aqui, vocês apanharam-me com este impacto mas que faz parte da vida…

E1: Sim, se calhar era importante falar com ela…

Mãe 1: Exacto e se calhar foi importante, exacto. Se calhar se fosse outro e ela não tivesse

aqui, se calhar eu até dava uma impressão que algumas coisas até eram mais fáceis do que ao

que na realidade até são, se calhar até foi providencial.

E1: E por último, se falasse com famílias que tiveram agora o diagnóstico de cancro, o que é

que lhes dizia? O que é que acha importante transmitir?

Mãe 1: Que é duro. Que é duro… Mas que vale a pena o caminho. Tira-se partido.

Acreditem!!!

E1: Que se consegue tirar partido…

Mãe 1: Acreditem que se consegue tirar partido

E1: Qual é que é o ponto aqui em comum?...

Mãe 1: Eu acho que vale a pena o caminho, parece um paradoxo, mas o que eu lhes dizia, e é

o que às vezes. Não sei, houve uma altura que me pediam para eu ir falar. De repente nós

estamos neste mundo e começa imensa gente a aparecer que conhece mães. E eu lembro-me

de alturas e dizia: “Acreditem no caminho que vocês vão sair fortalecidos do caminho”.

E1: E dar-lhe-ia alguns conselhos para elas fazerem melhor esse caminho?

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Mãe 1: Ah, o primeiro era pedir ajuda

E1: Pedir ajuda

Mãe 1: Pedir ajuda…Pedir ajuda… E eu conheci uma mãe que era amiga de umas amigas

minhas e fazia-me imensa impressão como é que ela geria as coisas à luz dos vieses dela.

Percebe? E como é que ela, no fundo, punha na cabeça dela como os filhos estavam a

pensar…

E1: Hum hum

Mãe 1: E não correspondia nada ao que eles estavam a sentir, pelo que eu fui desmontando

com a minha vida. Portanto, a primeira coisa era pedir ajuda e por coisas muito mais…

E1: Pedir e aceitar não é? Porque…

Mãe 1: Pedir e aceitar sim. A pessoa para pedir tem de querer, não é?

E1: Pois pois

Mãe 1: Ah isso era logo a primeira coisa, porque eu acho que ai, os avós, os pais, os tios, os

amigos, os próprios maridos e mulheres, nós não sabemos, isto ultrapassa-nos. Nós não

sabemos, não estamos preparados. Eu lembro-me que esta psiquiatra que nos ajudou dizia

assim: “Uma família com 5 filhos não precisa de extras para precisar de ajuda, não é?” (risos)

E para gerir a vida, não preciso de extras nenhuns, já tinha trabalho até morrer. E com estes

extras também agora é um trabalho diferente. É nesse aspecto que eu me conformo e que me

dá sentido. É um trabalho diferente e nesse aspecto ajuda-me a vergar também na

simplicidade.

E1: Hum hum…

Mãe 1: A vida é o que é, não é o que eu gostava que fosse. E eu sou heroína entre aspas se

conseguir dar resposta e deixar dar aquilo que me é proposto. Acho que a grandeza está nisso.

E1: Então, peçam ajuda, aceitem ajuda, mais alguma ajuda?

Mãe 1: Peçam ajuda… Ai sim, e tenham simplicidade a gerir as coisas. Eu acho que isso é…

Porque eu acho que foi, no fundo, com quem eu consegui desmontar foi com profissionais e

não é, também acho importante isso, não é psicóloga amiga, nem a tia que é queridíssima… é

quem sabe, quem está dentro destes assuntos. Porque eu hoje em dia, por exemplo, lembro-me

de estar com o Z. M., numa consulta com a Dr.ª J., já afastada mais uns anos do impacto e da

doença, e lembro-me dos pais na sala de espera dizerem: “Ai que a Dr.ª J. diz que é tão

importante eu ir buscar, mas como é que eu consigo ir buscar com a minha filha a sofrer

assim?” E é muito difícil nós conseguirmos tirar 5 minutos que sejam, sentimos que não nos é

devido.

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E1: E acha isso importante, ou seja, dizer também aos pais: “giram a vossa vida

independentemente da doença”.

Mãe 1: Acho importantíssimo... ai sim, sim…porque…

E1: Que haja gestão da doença…

Mãe 1: Nós sentimos quase como culpabilidade, nós sentimos como culpabilidade ter 5 ou 10

minutos para nós. Mas é fundamental porque o tema e repor energia e eu por exemplo, isso

também para mim foi difícil. Hoje em dia percebo isso e percebi perfeitamente aquele pai a

dizer-me e lembro-me que ela dizia-me “Oh J., pelo menos”…

INTERRUPÇÃO CORTADO [1:07:31 – 1:08:15]

E1: A culpabilidade

Mãe 1: Olhe, foi uma coisa que a Dr.ª J. também me ajudou imenso foi que uma vez me

disse: “J., nesta sala não há culpabilidades, portanto, ou não temos ou sai porta fora”. Porque

foi a culpabilidade que eu tive de não chegar aos outros.

E1: A culpabilidade que sente agora…

Mãe 1: Não! Que senti na altura

E1: Na altura…

Mãe 1: Na altura…

E1: Na altura não conseguiu chegar…

Mãe 1: E o seguir também…

E1: E o a seguir…

Mãe 1: Agora é que já não sinto, agora começo a ter resolvido.

E1: Hum hum…Mas então essa culpa também precisa de ser resolvida

Mãe 1: Ah precisou! Eu de repente senti que não dei razão, não… Como é que de repente

eduquei pessoas assim? Como é que eu com tão bons princípios e boa formação, e boa

estrutura como pessoa humana, e bons valores, de repente, e misturou-se isto com

adolescências, que era o meu primeiro impacto. Olhe, isto também é uma coisa importante. É

que, de repente, eu estava… ainda não tinha e tive que mostrar o primeiro impacto de

adolescências com esta gestão toda… Eu tive a sensação que houve um gap familiar e um gap

na minha vida. E que os tinha deixado pequenos e dei por mim a dizer, a querer fazer um

piquenique e da M… com pessoas quase adultas e eu estava na fase em que elas eram umas

crianças… Ainda ontem eu falava com o meu marido e dizia-mos assim…Eu lembro-

me…Olhe, por exemplo, aquela fotografia que tenho uma tela ali no hall de entrada deles 5…

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E1: Sim…

Mãe 1: ...foi 3 meses antes do IPO. E durante anos eu olhava para a fotografia, eu não …Quer

dizer, eu sou toda emotiva, portanto, este impacto, as coisas, durante anos eu não me

continha, não era?! Não fomentava o negativismo nem a dor, mas corriam-me as lágrimas a

olhar para a fotografia e pensar que aquilo houve um gap. Eu acho que perdi… Nós ainda

ontem eu falava sobre isto, eu sou um bocadinho melancólica também a par desta energia

toda… Acho que perdemos aqui uns anos, porque de repente, a M. era a 5ª e tinha 2 anos e,

portanto, nós estávamos naquela fase das mamadas, deles pequeninos… Ia começar a gozar a

vida nesse aspeto...

E1: Claro

Mãe 1: Ia começar a gozar as viagens familiares e de repente isto…Além dos 2 anos terem

sido duríssimos, não foram os 2 anos, foi o até agora. E de repente dei por mim a ter que gerir

adolescências e que, por isso eu digo, que a M. foi a primeira, foi muito cobaia, porque, por

exemplo, eu própria ter de gerir, tinha tido uma educação, mas também ai como casal nós

equilibrávamos imenso porque eu era a primeira de uma família muito tradicional e muito

tradicional e o X. era o último de uma família completamente disfuncional no sentido em que

o pai morreu, ou a mãe casou-se, a mãe separou-se. De muito mais autonomia, mas de certa

maneira de mais alguma liberdade interior. Portanto, ai nesse aspecto nos equilibramos

imenso, mas lembro-me das histórias das saídas – um achava que devia sair mais, o outro

achava que não devia. Nós não… Como é que isto, que já é um impacto para os pais que

aprendem a lidar com adolescentes, eu ainda me estava a gerir a mim própria, portanto, foi

difícil, isso aliás acho que é dos pontos fundamentais, é esse - este reajustamento todo. E senti

que houve um gap, um gap. Só que o gap não foram aqueles 2 anos, foi…

E1: Pois, foi muito mais…

Mãe 1: …tem sido, eu acho que…Agora se calhar tenho que aprender a que não foi um gap, é

a vida…

E1: Faz parte

Mãe 1: É… Exacto!

E1: Faz parte da história, é uma continuação de história

Mãe 1: Pronto, está a ver eu ainda estou agarrada ao gap (risos)

E1: Exactamente, é uma continuação de história

Mãe 1: Exactamente, ainda me estou a reposicionar, não é o gap, é a vida… É isso

E1: Muitíssimo obrigada!

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CASAL 01 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – Z. M.

E1: Mais uma vez muito obrigada por aceitar trabalhar e discutir connosco este tema. E a

minha questão de partida é uma questão do início está bem? Do início de todo este processo e

aquilo que lhe pedia era que se relembrasse, ou seja, quando pensa na fase de diagnóstico, o

que é que lembra? O que é que lhe vem à cabeça imediatamente? Imagens, pensamentos…

Pai 1: Na fase inicial são momentos…

CORTADO

E1: Sim, aquele primeiro momento…

Pai 1: Duro! Bom… O primeiro momento foi ainda não no IPO, em São Francisco Xavier. Eu

trabalho na médico, como já perceberam não é?! Portanto, na altura nós íamos viajar no dia

seguinte ou… penso que era no dia seguinte mesmo, ao termos sabido e… a J com a sua

perspicácia de mãe acho que ele estava com uma cor que não gosto e ligou-me, eram 5 da

tarde, ligou-me para dizer “Oh X, acho que eles está…vamos viajar, vamos para a Madeira,

não vamos ter médicos na Madeira e acho que ele está amarelo, pode estar com icterícia,

pode… não arranja ai alguém que lhe faça análises?”. Nós estávamos a viver no Pinhal Novo,

na altura, disse: “Olhe traga-o para Lisboa rapidamente, mas às 6 da tarde fazer análise não

vai ser fácil, mas vou aqui ligar para alguém”. E liguei para o Santos Pinto, que tinha aqui

este laboratório, por incrível que pareça, em frente ao IPO, o destino é tramado. E foi o

próprio David Santos Pinto que estava lá no laboratório, disse “Olhe traga-o que eu estou cá e

tiro eu o sangue e não sei quê…”. E portanto quando fui lá com o miúdo, o próprio David

Santos Pinto teve logo um pressentimento e eu percebi qualquer coisa, que havia qualquer

coisa não é? Nem por sombras que era o que é não é? Mas portanto, eu quando fui, quando

saio das análises com o miúdo que supostamente ia para fazer uma bateria normalíssima, o

David liga-me logo para o carro a dizer “Importa-se que faça mais análises do que aquelas

que falamos aqui, porque fico mais descansado”. “Faça o que quiser”. Mas vim logo

preocupado que mais qualquer coisa ia aparecer. Se calhar a dita icterícia, nunca mais que

isso. E pronto, depois há aqui um, nem chega a 2 horas, eu na altura trabalhava no Instituto

Coração, fui para o Instituto Coração. Mal cheguei…saí ligou-me outra vez o David a dizer:

“Pega já no miúdo, vai já para o Francisco Xavier, já estou à tua espera, ele tem de ser visto

já”. E portanto, quando eu entrei no São Francisco Xavier… o Z. M. é o 4º não é? Nós já

estamos muito habituados a ir para o hospital a correr, com cabeças partidas, com… Portanto,

já não há qualquer tipo de pânico, nem, já há algum hábito. E também a noção das reacções…

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E1: Claro

Pai 1: Quando chegamos ao São Francisco Xavier e eu percebi que estava quase uma… alas

abertas para eu entrar com ele, já a directora dos Cuidados Intensivos, dos Cuidados

Intensivos… das Urgências, à espera tudo coiso. Já o Santos Pinto ao telefone com ela,

portanto, tudo aquilo foi preparando para alguma coisa complicada que ai vinha…

E1: Claro

Pai 1: Quando às onze e meia, portanto aquilo eram para ai seis da tarde, seis e meia quando

aquilo se passa. Nós fomos logo para um sítio isolado com ele, ele faz uma transfusão de

sangue. Fica logo outro em termo de cor. Quando às onze e meia para ai, sim, da noite, onze,

nos chamam para dizer que… de facto isso é inesquecível. É, ainda hoje, dói pensar. Mas

pronto, mas… a primeira sensação é que se tem que aguentar uma família…

E1: Hum, hum…

Pai 1: Primeiro a J não é?!

E1: Sim

Pai 1: Depois o miúdo

E1: Hum hum

Pai 1: E depois os outros

E1: Hum hum

Pai 1: Que estavam em casa, que ligaram. Fui ao carro, descarreguei, sozinho… Chorei,

chorei, chorei… (emociona-se). Depois…

E1: Ou seja, afastou-se, a sua explosão emocional foi afastada, para depois voltar… O que

quer dizer que processou a informação imediatamente, ou seja, teve logo consciência que isto

é uma situação muito severa…

Pai 1: Logo…

E1: …logo! Não houve nem tempo para dizer “Estão doidos isto não pode ser!”… nada, não

é? Isto é assim…

Pai 1: Perfeitamente

E1: É esse processamento que obviamente o levou a sentir-se muito mal na altura. Como é

que conseguiu resolver, resolver no sentido, como é que conseguiu voltar do carro? Como é

que foi de carro outra vez para o… Foi já a pensar: “Tenho que fazer coisas, há coisas a

fazer!”…

Pai 1: Sim

E1: … Ou foi “Vamos ver no que é que isto vai dar”

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Pai 1: Eu sou muito objectivo nas coisas. Portanto, precisei de tempo, tive perfeita

consciência de que precisava de descarregar. Também a consciência que não queria

descarregar ali, não é?

E1: Claro

Pai 1: Porque também tinha a consciência que eu tinha de ser a força. Por isso, essa ida ao

carro… Liguei à minha mãe, liguei à minha mãe porque… nem lhe disse naquele momento,

penso que ela me tinha ligado, portanto, houve ali uma coisa que me fez ligar, e depois

obviamente descambei. Mas, a verdade é que, depois de ter respirado fundo, voltei e fui

bastante racional naquilo que eu tinha de fazer, a quem é que ligar, a mandar a J para casa. O

que é que dissemos aos outros, é que eu já não me lembro exactamente o cartaz do que nós

dissemos aos outros, mas não pôr o pânico. Portanto, a consciência também que tinha de ser

eu naquele momento a decidir…

E1: Pois… Ficou com ele? Ficou com o Z. M.?

Pai 1: Fiquei, fiquei…nunca mais o larguei

E1: Ficou ali, portanto a J veio para casa

Pai 1: Sempre

E1: E iam-se revezando ou ficou sempre o pai?

Pai 1: Fiquei sempre eu…

E1: Sempre. A fazer o apoio. Lembra-se dele? Como é que ele estava? Como é que ele

reagiu? Ele sentiu?

Pai 1: Sim

E1: Sim, ele sentiu que alguma coisa séria…

Pai 1: Não, eu acho que ele sentiu…Viu o filme “A vida é bela”?

E1: Sim

Pai 1: Eu acho que ele sentiu, ele naquele dia percebeu que algo de complicado estava a

acontecer, mas nunca teve noção da realidade. Nós ali também, não lhe sei dizer se eu achei

que ia ser 1 dia, 2…

E1: Pois… Achou só que havia um diagnóstico e que havia uma situação…

Pai 1: …muito complicada… Depois, a transferência no dia seguinte. Portanto, ali também

não nos dizem muito mais. Dizem às onze e meia: “Olhe, ele tem isto assim, assim, assim, vai

ter de ser transferido para o IPO no dia seguinte”. Ouvir falar em IPO é duríssimo… Portanto,

é naquela altura, eu estou-me a pôr no momento, por isso…

E1: Claro, claro, isso é que é importante.

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Pai 1: Agora, na altura… Eu em miúdo morava ali nas Avenidas Novas… Eu sempre tive

dificuldade em passar na Pombã, na Pombã, quer dizer… pensar… “este aqui é o hospital

com mais pena, mais peso que a gente tem em Lisboa…” Sempre tive dificuldade em passar

ali, nunca tinha entrado no IPO, e naquele dia quando ela me disse “amanhã de manhã vão

para o IPO”, eu nem pensei se o problema era a rua, o entrar no IPO. Era “IPO, o que é que

vou fazer para o IPO?” Mas como tinha que se desmistificar aquilo com o Z. M., que era

quem ia, não é?! Consegui fazer… já não sei o que lhe disse, mas esperei pela manhã, para lhe

dizer “Olhe, o pai conseguiu que vamos para um hospital muito melhor que este. Onde há

meninos da sua idade, ainda bem, conseguimos que vamos numa ambulância, vamos a

apitar…” Tudo aquilo que tinha de ser, portanto, pintei aquilo numa manta engraçada e

fomos. Depois a entrada no IPO é tramada…

E1: Tramada…

Pai 1: É tramada, é tramada pela carga que a gente leva.

E1: Pois

Pai 1: E depois quem quer… quer dizer, a gente sabe ao que vai, não é?! Agora aquela gente

é extraordinária, lembro-me perfeitamente, desde o primeiro dia, da primeira entrada. Toda a

gente que está ali dentro é extraordinária. Agora, a verdade é que é muito duro aquilo que a

gente vai ali fazer. Não é?! E eu lembro-me a primeira coisa que o Z. M. teve de fazer foi uma

pulsão…

E1: Uma pulsão lombar

Pai 1: E eu tive de entrar com ele para dentro da sala e quis ficar com ele ao colo até lhe

darem o…

E1: Sedativo

Pai 1: O sedativo… E ele caiu completamente nos meus braços. São tudo sensações

seguidas… Pronto, que a gente pensa “Com uma criança de 6 anos isto é de mais!”, não é?!

E1: Pensa para a criança e pensa também que sente alguma impotência?

Pai 1: Não, a mim não

E1: Não…ou seja nunca pensou….

Pai 1: Nunca tive o mínimo sentimento de culpa por exemplo. Zero, zero! Nunca pensei

“Porquê em mim?” Nunca! Pensei se calhar: “Porquê ele?”. Se calhar pensei, mas também

pensei, se calhar este porque dos que eu tenho lá em casa, era o que mais facilmente, não não

é o que mais facilmente, é o que de melhor maneira passaria por isto. Isto pensei desde muito

cedo e depois veio-se a verificar ao longo dos 2 anos que eu tinha razão naquele meu

diagnóstico.

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E1: Hum hum

Pai 1: O Z. M. é terrível de, de… Já com 5 anos, percebi que ele tinha um feitio para a frente

e virado para a vida, não é?

E1: Grande resiliência, capacidade de resposta…

Pai 1: Sim, sim, sim, sim… Capacidade grande de resposta, refilão…Um homem da terra. O

Z. M. levantava-se de manhã, em pijama, nós vivíamos no campo. Ele vestia as botas de

borracha em cima do pijama, abria a primeira porta que visse à frente e ia para a hora com o

hortelão. Portanto, ele era um miúdo cheio de saúde. Aliás, os médicos não entendem o estado

em que ele chegou ao São Francisco Xavier, como é que ele estava sequer de pé, sequer de

pé… Como é que este miúdo andava de pé, com os valores que tinha? Agora ele não estava

de pé, ele estava a jogar futebol no jardim. Ele à tarde tinha jogado futebol no jardim com o

irmão. Portanto, ele no fundo, tinha uma força fora de série, e mesmo a forma com que ele

acabou por aceitar a mudança do hospital… Tudo aquilo que ele tinha de fazer…eu também

nunca vi aquele miúdo refilar… Ele nunca refilou, ele próprio também nunca me disse “Oh

Pai, porquê eu?” não… nunca o vi… nunca o vi….

E1: Hum hum

Pai 1: Portanto, isto foi também para mim uma força enorme de eu também não me queixar…

Eu não tinha direito a queixar… Se ele próprio também não se queixava não é?

E1: Quer dizer, quer dizer que não sentiu culpa, não sentiu revolta. Sentiu impotência? Não?!

Pai 1: Não sei, acho que não senti muita impotência, porque também nunca me virei para esse

lado de ser… Eu não tinha ali nada para resolver. Eu esse aspecto é assim, eu queria ter a

consciência tranquila de que eu estava a fazer tudo aquilo que eu precisava, estava a fazer.

E1: E estava a fazer…

Pai 1: E estava a fazer aquilo que eu tinha para fazer – estava ali ao lado dele sempre. Por

outro lado, manter sempre o resto da família segura, de pé, não é? Principalmente a J e

portanto, não foquei muito a minha atenção em mim…

E1: Considera não ter sido… as suas tarefas era controlar emocionalmente o Z. M., controlar

e dar alguma estabilidade à sua família, sobretudo à sua mulher…

Pai 1: Sim

E1: Era esse o seu panorama

Pai 1: Sem dúvida

E1: E de si para si? Alguma coisa?

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Pai 1: Não me lembro de pensar muito nisso. Percebo a sua pergunta mas não me lembro de

ter muito essa preocupação, de como é que eu me vou orientar. Não me lembro de ter muito

isso. Há sempre um mais preocupado em conseguir manter o…

E1: Alguma estabilidade da família…

Pai 1: A estabilidade do resto. Principalmente preocupado com os 4 que estavam em casa

E1: Pois

Pai 1: Bom, a preocupação no momento é aquela sempre, é o Z. M. que está ali…

E1: Claro

Pai 1: Mas depois tentava manter calma nos que estão em casa, e manter a calma na J. E ai

acho que a J também teve uma atitude extraordinária, sempre… Acho que da parte dos dois

sempre houve uma calma muito grande mesmo. Porque o Z. M. depois passou. Ele é puridade

pelos extras não é? Teve todos os extras e mais alguns, houve ali partes muito duras,

principalmente naquele dia em que nos dizem que ele está com uma hipoglicemia e que tem

de sair dali e ir para a Estefânia em Janeiro. Portanto, nós já tínhamos quase 1 mês de IPO. Já

estamos habituados ao hospital, já estamos habituados ao quarto, já estamos habituados aos

enfermeiros, já estamos habituados aos médicos… E depois ainda por cima, por algo que fui

eu que identifiquei. Não foram as enfermeiras, não foram as médicas. Comecei a achar, lá

está, nós conhecemos melhor que ninguém o que está ali não é?! Eu comecei a achar que ele

estava a ficar com a barriga inchada e chamei… “Não há nada, isso é uma impressão”. E

voltei a chamar, e voltei a chamar, e voltei a chamar. E às tantas tanto chateei que foram ver a

sério e ele estava mesmo com um problema sério. Isto a meio da noite. No dia seguinte,

mudou logo a meio da noite para uma parte privada cá dentro do… lá acima no 7º andar no

IPO, mais juntinho às enfermeiras. Depois, no dia seguinte… Essa mudança de hospital é

terrível. É terrível para nós, é terrível para ele. É porque é o caminho para o pior, para uma

nova realidade, uma realidade de cuidados intensivos, e portanto essa parte é se calhar mesmo

a mais complicada do filme todo. Mas pensar em mim, propriamente dito, quer dizer, não

sei…

E1: Ele depois volta para o IPO?

Pai 1: Sim, ele vai para a Estefânia, 10 ou 11 de Janeiro… não! Talvez uns dias antes, porque

ele depois vai piorando, piorando, piorando… e a 12 de Janeiro entra em coma… Temos que

o desligar, há uma… Até ai eu tinha ficado sempre com ele, nunca deixei a J ficar. Porque

também identifiquei rapidamente que a J precisava de sair, a J precisava de e sair, precisava

de… A noite para ela, era mais complicada que para mim lá…

E1: Hum hum

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Pai 1: E por outro lado, eu trabalhava na altura, tinha que, durante o dia, tinha que ir dar o

mínimo de apoio ao Instituto Coração, que era onde eu trabalhava. E portanto, e tinha essa

fuga durante o dia, umas horas, também nunca saia muito tempo seguido, talvez essa fosse...a

minha defesa passava por nunca estar muito tempo fora dali… portanto…

E1: A sua defesa…

Pai 1: A minha defesa passava por não estar muito tempo fora, de perto do Z. M…Sempre

percebi que eu era a segurança dele, portanto, ele sentia-se muito inseguro quando eu não

estava por perto. Um bocadinho, penso eu, a imagem do pai e da, a fraqueza que ele tinha não

é? Ele agarra-se àquilo e estava muito mais seguro, mesmo que entrassem para fazer qualquer

tratamento ou… Se eu tivesse ali…E portanto…

E1: Mas diz-me que é a sua defesa… ou seja, foi algo de importante para si?

Pai 1: Acabou por ser… acabou… sim, sim…

E1: Ou seja este envolvimento no cuidado do seu filho acabou por ser estabilizador para si

Pai 1: Sim, sim…

E1: Sentia-se muito pior fora do que perto…

Pai 1: E… quando fomos para a Estefânia…

E1: Está-me a falar no dia 12 de Janeiro?

Pai 1: Estou-lhe a falar ainda antes, quando fomos…talvez a 9, a 10, porque, eu sei que houve

ali um período ainda se calhar de uma semana, portanto ele pode ter ido antes, pode ter ido a 3

ou 4. Eu sei que a 12 foi o período em que ele foi ao fundo, e nós já lá estávamos há uns dias.

E1: Hum hum

Pai 1: E nessa... Portanto, as condições até para nós mudavam completamente. Como sabe, na

Estefânia nem uma cama tínhamos, ali no IPO ainda tínhamos uma camita, ou um sofá, um

sofá meio cama. Ali na Estefânia era uma cadeira mesmo.

E1: É

Pai 1: E portanto aquilo ao final de 8 dias, o cansaço era relativo. É como na tropa, passa-se

por tudo e não… Mas a verdade é que, é terrível quem estava a vê-lo mais pele e osso, cada

vez mais pedaço de gente. Mas um miúdo fantástico, sempre a ir procurar a vida onde não a

via. E nesse dia, a dada altura, uma equipa médica chama-me e diz-nos que ele já tem os

antibióticos todos, que ele já tem os soros possíveis e imaginários e já não podem dar mais

nada, e ele não está a reagir a nada. Isso é que foi o famoso dia 12. E perguntou o que é que a

gente quer fazer: se quer ligar à máquina, desligar a máquina. Tentei-me perguntar um

bocadinho o que é que queria dizer uma coisa, o que é que queria dizer a outra. Lembro-me de

me dizerem que o ligar à máquina incluía basicamente dizer que o íamos deixar de ouvir não

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é? Ele gemia…Tinha pelo menos a sensação que ele estava ali, que nós estávamos ali,

portanto isso ia desaparecer não é?! Mas por outro lado, as probabilidades de vida começavam

a ser cada vez menores e pronto eu fiquei ali com o menino nas mãos para decidir se deixava

ligar à máquina ou não ligar à máquina e a reacção foi dizer... Perguntei lá ao médico, ao

chefe da banda se tinha filhos. Disse-me que tinha. “Então olhe, faça como se fosse um filho

seu. Imagine que é o seu filho que está ali ligava à máquina ou não ligava à máquina?”. “Por

uma coisa assim”. Disse: “É a única maneira que eu tenho de lhe pôr a coisa, não lhe vou pôr

nenhuma responsabilidade amanhã, nem… só lhe quero perguntar se fosse o seu filho o que é

que fazia? Diga-me que eu depois digo-lhe o que é que se faça a esse. Agora estou a pedir

para decidir sobre o meu”. “Ah, se fosse um filho meu eu ligava”. “Então, olhe, ligue o meu

filho.” E ai foi muito, muito, muito difícil porque no fundo estamos a tirar o Z. M. deste

mundo, portanto, a induzi-lo em coma, não é?! Perfeita consciência que a atitude que aquela

ordem de ligarem, era uma ordem minha, mas desse para o que desse, eu não ficaria com

peso, portanto, eu quando tomo uma decisão em tudo, seja na escola, nos miúdos, seja o

mudar de casa o não mudar de casa… Eu sempre que tomo uma decisão, é muitíssimo raro

arrepender-me delas porque tenho a teoria que quando a tomei pensei sobre ela. Portanto, não

tenho esse síndroma que imensa gente tem, e é natural, muitas vezes, até em casal, temos essa

conversa porque a J às vezes tem tendência a pôr em causa uma atitude que tomou antes e eu

vou sempre pelo mesmo caminho. Não, não! Recuso-me a por em causa, decidimos nesta

altura, porque se decidimos foi pensado, se foi pensado foi conversado. Fizemos o melhor que

sabíamos. Foi errado? Paciência. É a vida! Foi errado… Portanto, na altura tive a consciência

que tinha que tomar uma decisão, tomei a decisão. Naturalmente conversei com a J mas a J

não estava sequer capaz de tomar decisões nessa altura. Tomei-a conscientemente e ainda por

cima, salvo erro, duas noites antes, penso que foi nessa altura, duas noites antes, pela primeira

vez deixei a J ficar de noite, pela primeira noite a J ficou, desde que o Z. M. foi internado e,

nessa noite morreu um miúdo do quarto ao lado. O miúdo tinha entrado todo queimado, uma

coisa qualquer, e morreu assim, de algo que até nem era suposto. Mas uma coisa trágica

mesmo! E a J acabou por ser um apoio enorme para a mãe do miúdo que lá estava, mas por

outro lado duríssimo. Mas, aquilo para mim foi tramado. Fiquei até hoje sem deixar a J. ficar.

Hoje que a J tanto insistiu, e no fundo também era importante, lá está, para os outros também

que eu fosse um dia a casa, dormir etc., etc… cedemos e foi nesse dia que morreu uma

criança. Mas, acabamos por deixar depois muito difícil vir embora e deixar lá o Z. M.

Portanto foi a primeira noite, depois… não então a morte do miúdo há-de ter sido depois

quando o Z. M. já recuperou. Porque foi a primeira noite que eu não fiquei lá e não fiquei

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porque os médicos disseram mesmo… E ai lá está, é preciso não ser casmurro. Eu nunca tinha

saído de ao pé dele, nunca tinha deixado uma noite… Naquela tarde, eram “prai” 8 da noite,

ligaram à máquina, um silêncio brutal, e ele não ia saber sequer se estava ali alguém, não ia

nada…

E1: Pois, claro

Pai 1: E os médicos chamaram-nos, explicaram, disseram “Oiça, você pense em si…” Hão de

ter dito “pense também na sua família”, não me lembro mas sei que foi mais um bocadinho

“pense em si”. “Você não vai ficar aqui a fazer nada, vai ficar aqui sentado a olhar para uma

máquina, vá descansar, saia, apareça amanhã. Amanhã vem cá, ele vai estar no mesmo sítio,

mas pronto, mas percebo que queira vir cá amanhã”. E pronto e assim…

E1: E depois ele recuperou…

Pai 1: Ele recuperou 2 dias depois, portanto o dia 13, foi um dia em qu enão o ouvimos, não

se passou nada. E só houve noticias de ele começar a arrebitar, mesmo ligado à maquina, no

dia 14.

E1: Hum hum. E neste processo desta primeira adaptação, não é? Teve de haver uma primeira

adaptação. O que é que foi para si mais difícil? O que é que foi mais complicado? Foi gerir as

coisas em casa, foi… O que é que considera ter sido o mais complicado?

Pai 1: Acho que o mais complicado é assimilar que aquela criança vai ter de estar ali fechado,

durante aquele tempo todo. Portanto, o mais difícil foi pensar no que é que ele ia sofrer, no

que é que ele tinha à frente para sofrer, no que é que ele ia estar limitado durante tanto tempo,

uma incógnita de tempo, não é?! Porque a gente não sabe e a única coisa que pode fazer é

olhar para o lado e ver os casos que lá estão, portanto, sabe-se que os casos que lá estão, que

estão ali em tratamento, que se tudo correr bem 2 anos. Os que lá estão internados, que estão

meses, portanto, o que mais custa é pensar: “Esta criatura que ontem estava a jogar futebol no

jardim, agora vai ficar fechado aqui, vai ficar a ser picado diariamente, vai ter…” Pronto, o

sofrimento que para uma criança é diabólico, é… Eu acho que esse é claramente o que mais

custa.

E1: Acha que se tivesse tido mais informação em relação a isso, teria tido menor sofrimento,

ou não?

Pai 1: Não sei se eu tive pouco informação. Por um lado também estamos… Não sendo

médico, estou muito ligado à medicina não é?

E1: À medicina

Pai 1: Trabalho com médicos desde os anos 90, mas, portanto, não é que isso…que isso, que

isso…

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E1: (?27:11)

Pai 1: (?27:12) Mas… por outro lado, eu também já tinha tido duas, duas não, na altura só

uma… tive uma operação grande à cabeça quando me casei, também tive um problema

complicado, também ultrapassei com alguma, com alguma calma, não é?!

E1: Hum hum

Pai 1: Não é com sabedoria, que estas coisas não trazem sabedoria, mas… Eu não sei se a

questão da informação, acho que nós tivemos muito boa informação no IPO. Lembro-me

perfeitamente naquele dia de entrada, de nos sentarem e de nos explicarem tudo como é que ai

ser. É duro, mas tem que ser assim. Aquela consulta de entrada, quando eles dizem: “Bom…”

Não me lembro já, se calhar a J lembra-se de tudo e de mais alguma coisa, porque ela nesse

aspecto tem melhor memoria. Mas tenho a noção que nos ensinaram como é que iam ser os

nossos próprios dias, os nossos próximos meses. Disseram tudo como é que isto funciona

aqui, quais são as regras, quais não são, de uma forma muito clara. E o que é que o Z. M.

podia sofrer, o que é que não podia sofrer.

E1: Ou seja, tudo isso foi dito e acabou por…

Pai 1: Foi dito, foi importante, não senti falta informação.

E1: (?28:23) Muito bem…e em termos do que dificultou, dos obstáculos? O que é que foi, o

que é poderia não ter lá estado, e que esteve, e que dificultou?

Pai 1: O que é que dificultou?

E1: Para além dos extras, não é? Do Z. M. com os extras dele.

Pai 1: Não, pois, basta isso…

E1: São imensos.

Pai 1: Estava a pensar em termos de…

E1: Sim, sim…

Pai 1: …portanto, a questão, um bocadinho em termos logísticos não é?

E1: Não, e em termos da pessoa, da vida… O que é que acha que pode ter dificultado o

processo de adaptação?

Pai 1: Mas que tenha a ver com o IPO?

E1: Não, não… Que tenha a ver com a sua vida… Tem a ver com tudo

Pai 1: Ah sim…

E1: Ou seja extra, intra, familiar, não familiar, amigos que pressionaram, outros que… O que

seja…

Pai 1: O que é que dificultou?... Bom, dificultou a época que foi não é? Estávamos nas

vésperas de Natal portanto, dificultou… Agrava ainda mais a situação. Anhm... Dificultou…

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Eu não consigo ver… não consigo ver nada que me tenha dificultado…Porque acho que estou

tão fechado naquilo não é?! Estou tão fechado no, no, no…

E1: Estava tão dirigida não é?!

Pai 1: Estava tão dirigido, aquela coisa tao concreta…

E1: Com a questão do planear - resolver, resolver- planear…

Pai 1: Pronto, se calhar o mais difícil ali terá sido a consciência de que tinha de ser uma coisa

muito firme, dentro do que havia ali para ter controlado, perceber o que é que os outros, os

irmãos estão a saber e como é que estão a gerir, e depois… tenho melhorado, mas se calhar na

altura ainda andava sempre assim…Tenho um bocadinho a mania que tenho de ser eu a fazer

para estar bem feito. E, portanto, aquela ideia de que, apetecia-me ser eu a ir a casa para falar

com eles, mas apetecia-me ser eu a estar com eles, mas apetecia-me ser eu a fazer tudo, mas

eu não posso fazer tudo, portanto, agora é que tenho mesmo de aprender aqui…Portanto…

E1: A partilhar, a delegar…

Pai 1: A delegar, delegar, a ter de deixar alguém ir falar com eles, a ter de deixar, depois,

também a gerir quando é que eles podem vir visitar o Z. M., se vêm ou não vêm e quando é

que vêm, por outro lado, depois havia a questão do cabelo do Z. M., que ia cair o cabelo… O

Z. M. tinha um vicio, que era fazer isso, estava sempre a enrolar o cabelo, portanto a enrolar,

tinha um penacho aqui, estava sempre nisto. E quando ficou doente ainda mais, estava sempre

deitado na cama a fazer assim e aquilo ia-lhe cair tudo e é das primeiras coisas que acontece

quando começam a levar uma dose grande de quimioterapia. E portanto, foi das primeiras que

eu fiz, foi ir eu rapar o cabelo, fui ao meu barbeiro e rapei o cabelo à máquina 0. E depois

cheguei ao pé dele, para lhe dizer que me tinha lembrado daquilo, se ele não queria fazer o

mesmo. Porque assim se ele ficasse à máquina 0, já não ia ter a sensação do cabelo. Mas

depois fiz aquilo, mas depois tive de explicar aos outros porque é que fazia aquilo. O pai

nunca rapou o cabelo na vida, agora aparece com o cabelo à máquina 0. Portanto, quer dizer,

há assim umas dificuldades que vão aparecendo… as mais difíceis se calhar, cada vez que

havia uma mudança… As mudanças de quarto era uma coisa que me custava imenso. Isso

custava imenso. O ter de habituar a um novo espaço físico dentro daquilo, lembro-me que

dentro do IPO, lá está, ele tinha de estar… Quando ele teve de ir para o isolamento, depois

para entrar e sair, havia que lavar as mãos e não sei quê… Não podiam os irmãos, depois

iam… Por outro lado, a Dr.ª Ju dizia que era bom que eles o fossem vendo. Portanto iam

vendo mas através de um vidro. Portanto, há aqui coisas que de facto são duras, se bem que,

um bocadinho a minha forma também de passar isso era viver cada dia, e esquecer

rapidamente o dia anterior e olhar para o da frente…

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E1: Chegou a ter alguma explosão emocional como teve aquela primeira? Tornou a chorar a

sério?

Pai 1: Ah isso sim.

E1: Sim? Mas sentia que se permitia fazer isso num determinado espaço para depois voltar a

esta orientação muito para resolver problemas ou não? Sentia que despejava, vinha,

despejava, vinha, ou…

Pai 1: Talvez… Se calhar nunca tinha pensado nisso assim, mas talvez. Porque normalmente

despejava sozinho.

E1: Pois o despejar é sozinho, o primeiro foi sozinho. Normalmente quando é assim são todos

assim.

Pai 1: E ai se calhar ganhava… sim, ganhava, ganhava fôlego, que era importante.

E1: Hum hum. Alguém sabia dessa sua …

Pai 1: A J com certeza…

E1: Sim, sim

Pai 1: Eu não tenho problemas nem vergonha de chorar. Quer dizer, a questão aqui é mais, eu

não podia estar a trazer mais, mais…Uma coisa é dizer…

E1: Emocionalidade para a situação…

Pai 1: Exactamente…Uma coisa é dizer “Ontem fui-me a baixo e não sei quê”… Fazer e

depois contar tudo bem.

E1: Pois, pois

Pai 1: Agora à frente…

E1: Poderia destabilizar…

Pai 1: Poderia estar a destabilizar ainda mais e evitava. No momento provavelmente

aconteceu, não sei, com os meus irmãos, é possível…

E1: Claro… E que outras fontes de suporte é que tiveram? Lembra-se de família?

Pai 1: Se tivemos, vamos lá ver… a nível… Nós suportamo-nos muito um ao outro, portanto,

em termos de casal, suportámos imensíssimo não é?! E somos quase auto-suficientes nessa,

nessa… sempre fomos muito independentes, sempre fomos um casal muito pouco pendurado

nos pais, muito pouco ou nada… Tanto que íamos passar o Natal fora sem os pais, o que tinha

sido uma bomba para as famílias católicas como as nossas. De repente estes dois lembram-se

de ir embora, na altura da família, com os filhos e saem… E aquilo para nós é importante

porque sempre dissemos que gostaríamos de um dia passar o Natal só nós, só nós os 7 e

acabámos por não ir. Mas, até por ai, eu penso que o telefonema para a minha mãe teve a ver

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com isso. Porque a minha mãe estava extraordinariamente amuada e coiso com a saída no dia

seguinte.

E1: Pois pois

Pai 1: E pronto, isso foi por ai, mas… Nós tivemos um…Nós, por exemplo, nós somos seis

irmãos, eu sou o mais novo. Não nos damos diariamente, nem pensar. Cada um tem a sua

vida, bastante independente, mas quando existe uma coisa destas, aterramos todos no mesmo

sitio, não é?! E portanto, tive a perfeita consciência do apoio dos meus irmãos. Aquilo que era

preciso e que é possível, estavam lá sempre não é? Estavam lá sempre que era preciso, não

é?…

E1: Sim, sim…

Pai 1: Os da J damo-nos mais no dia-a-dia, portanto, era mais do mesmo. E depois tínhamos

muito amigos, e temos, uma rede de oração muito grande, isso sim, e temos a perfeita

consciência que tínhamos… apareciam-nos com comida feita, que é uma coisa que ajuda

imenso as alturas, com uma tarte, com não sei quê… Então quando fomos para a Estefânia,

um amigo meu que é padre, todos os dias, às seis e meia, sete horas, lá vinha a enfermeira –

“Está ali o seu amigo”. E estava ele cá fora com um pão-de-leite com queijo e um copal que

era o meu pequeno-almoço favorito.

E1: Ah está-me a dizer às seis e meia da manhã.

Pai 1: Seis e meia da manhã. Todos os dias, aquele santo homem, aparecia com… Porque

sabia que era a hora que eu acordava… com o compal… que eu acordava, que eu me

levantava da cadeira… com o compal… Portanto, tivemos assim exemplos de amigos fortes.

Tivemos outros casais, todos os dias iam lá à hora de jantar, para o jantar. Assim, pequenas,

pequenas não, são grandes coisas… Essas grandes coisas.

E1: Hum hum

Pai 1: E depois é importante porque às vezes, ai eu e a J tínhamos esse feeling um com o

outro, que era, às vezes eu enviava, dizia “J, hoje vai você jantar”. Nunca íamos os dois. O Z.

M. não, quase não deixava. Por acaso a determinada altura, há um grande amigo nosso que é

médico, esse entrava sempre pelos cuidados intensivos a dentro e tal, porque como era médico

ia e… sempre se deu muito bem com o Z. M. e às tantas conseguíamos, uma vez ou outra, que

ele, ficava ele com o Z. M. e o Z. M. deixava-nos ir os dois jantar. Mas aconteceu uma vez ou

outra só. Mas pronto, íamos ali jantar qualquer coisa a um café, pronto era óptimo, saíamos do

ambiente.

E1: Ou seja… tiveram um apoio, um apoio importante

Pai 1: Tivemos um apoio grande, grande e importante, sem dúvida.

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E1: E hoje? O que é que pensa da doença hoje? Agora é um salto enorme.

Pai 1: Hoje penso que foi… Eu sou um optimista nato, portanto acho que as coisas nunca

aparecem por acaso, não é?! Acho que a doença fez-nos crescer muito. A nós os dois

claramente, aos miúdos lá em casa não tenho a mais pequena das dúvidas que mexeu com

cada um deles à sua maneira, a uns fê-los crescer mais cedo e ter que rebentar mais tarde, a

outros fê-los pensar… A M., que é a mais velha, fê-la passar ali uma parte da adolescência

que ela não teve, porque a M. como miúda híper responsável que era aos 14 anos ou 13, ficou

a dona da casa, mesmo com os avós presentes, mesmo… Ela tinha a perfeita consciência que

era ela que liderava os irmãos, porque lá está, como nós eramos muito independentes e,

portanto, não havia o hábito de uma avó dentro de casa, ou de um avô, ou de um tio, seja o

que for… Não, estávamos…Portanto, de repente, imagino, não lhe sei dizer mas imagino que

tenha havido…Eles nunca saíram de nossas casa, portanto imagino que a minha sogra tenha

ido para lá, se não morar, quase, porque o Z. M. tinha 5, a M. teria 12 ou 13, sim a M. tinha

13. Portanto, alguém há-de se ter mudado para lá, isso passou-me ao lado como eu não ia lá

dormir… (risos)

E1: Pois

Pai 1: Não teria ideia, mas… Lembro-me quando o Z. M. entrou, quando foi para casa, do

IPO, ele não sabia andar. Quando ele saiu do IPO para ir para casa, passados para ai 3 meses,

quando ele foi a primeira vez a casa, eu chegar com ele ao colo, praticamente carequinha,

pegava-se assim e era osso, pele e osso…

E1: Pois… pele e osso…

Pai 1: E por isso nós tivemos que levar os irmãos, para o verem…

E1: Claro

Pai 1: …para não terem aquele choque, portanto… Mas nunca o tinham visto assim a chegar.

Portanto, eu a disfarçar, sentava-o ao meu colo para que eles não percebessem que ele de

facto não sabia andar, tinha deixado de saber andar, não é?! Uma criança com 6 anos, 5, 5 e

meio. Mas aquilo foi impressionante, o sorriso dele…

E1: A volta a casa…

Pai 1: A volta a casa…

E1: … Ele tinha emagrecido fisicamente, mas a cabeça funcionava…

Pai 1: …a cabeça funcionava…

E1: …completamente…

Pai 1: E radiante…Mas hoje, hoje acho que, que eu não sei o que seria ao Z. M. sem, hoje,

sem ter passado pelo que passou. Eu acho que com o feitio dele, ele é uma pessoa que nos vai

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dar muito trabalho para a vida, claramente. Mas, acho que, tenho a grande fé e uma quase

certeza de que a doença passou, que… não sei se é bom ou mau mas…

E1: Acha que a doença está controlada?

Pai 1: Acho que está control... Não, que ela está controlada está…

E1: Sim, mas acha que está resolvida?

Pai 1: Eu diria que ela está resolvida, tem uma grande probabilidade minis dela estar

resolvida. Eu tive uma coisa no ano a seguir de ter casado, em 93, um tumor benigno na

cabeça, que tirei, era muito grande tinha 7,5 cm de diâmetro…

E1: Bolas, que dor de cabeça…

Pai 1: Tirei logo no ano a seguir a ter casado, estava a J. à espera da M… E voltou agora em

2013, portanto, 20 anos depois. Eu por acaso, fui fazer uma revisão um ano antes, ou seja,

nem sei porque razão é que foi e quando vi que aquilo estava lá enorme, a primeira reacção

que eu tive… Percebi logo que ia ter de ser operado, ia ter de tirar isto outra vez e tal, mas a

primeira reacção foi “Bolas, antes a mim do que ao Z. M.!”. Portanto, eu queria tudo…

E1: Pois, claro

Pai 1: Menos sentir…

E1: Que podia haver alguma coisa…

Pai 1: Claro, que podia haver (?42:42) Portanto…

E1: Sente então a doença controlada. Controlada no sentido de resolvida ou com uma grande

probabilidade de resolução?

Pai 1: Sim, sim…

E1: E consequência para a sua família, acha que teve?

Pai 1: Quer dizer, claro que sim. Claro que sim, consequências teve, agora se foram positivas

ou negativas…

E1: Acha que houve de umas e de outras?

Pai 1: Claro, houve de umas e de outras. Claro que ninguém nos tira aqueles 2 anos que

passámos, ninguém tira aquela parte do crescimento dos 5, que nós não acompanhámos tão

bem quanto gostaríamos. Ninguém nos tira os cabelos brancos que ganhamos com aquele

sofrimento todo, mas também tem a parte da medalha, não é?! Tudo aquilo que se calhar,

crescemos e que nos unimos uns aos outros à conta deste miúdo, e à conta desta doença.

Portanto, se me dissesse assim: “Queria que não tivesse acontecido?”. Não!!! Estupidamente

não. Aconteceu… aconteceu… faz parte.

E1: Portanto, a história de vida, acha que as consequências que houve, são consequências que

podem ser resolvidas…

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Pai 1: Perfeitamente, perfeitamente

E1: …ou seja fazem parte de um caminho que tem (?43:58)

Pai 1: Não acho que tenha minimamente uma vida pior, se é que eu posso dizer assim hoje,

por aquilo que aconteceu nessa altura. O difícil foi o que aconteceu na altura, sem dúvida,

muito difícil.

E1: Hum hum

Pai 1: Agora, hoje, a minha vida é pior ou melhor? Não! Não! Como digo, há-de haver…

Sinto, por exemplo, a M., sinto claramente isso na M.. Sinto que a M.…lá está eles são todos

diferentes... Eu sempre aprendi a lidar com eles assim, não é?!

E1: Pois…

Pai 1: Sinto que a M. fugiu por outro lado. Sinto que o X. por outro lado ainda…Porque todos

eles tinha… O X. era o único rapaz, fugiu-lhe o rapaz de casa; a M. era a mais velha teve a

coiso…, a M. que era um piolho com 3 anos, fugiu-lhe o irmão que brincava com ela.

Portanto, eu não tenho dúvida nenhuma que aquilo na altura aquilo foi duríssimo para eles e

que ao longo de…. Cada um à sua maneira sofreu com aquilo.

E1: Mas que ainda sofre?

Pai 1: Não…

E1: Não!

Pai 1: Não!

E1: Acha que estão todos nas suas vidas…

Pai 1: Hoje tenho a certeza que já nenhum sofre com isso

E1: Mas acha que ainda há feridas por tratar? Acha que ainda há gaps por resolver, ou acha

que as coisas estão…

Pai 1: Pode haver, se calhar um ou outro, se calhar… Não sou psicólogo, não sei ver isso,

mas admito que…

E1: Não, não… Mas como pai…(?45:17)

Pai 1: Não, como pai, como pai não sinto, sinto que até se calhar já… Eu não acredito que

eles tenham esquecido…

E1: Pois, pois, integraram.

Pai 1: Se calhar nenhum deles esqueceu…

E1: Claro

Pai 1: Se for falar com eles, nenhum deles se esqueceu, mas a verdade é que a vida para as

crianças então, é ainda mais comprida do que para nós, quer dizer, se isto para mim já foi há

muito tempo, para qualquer um dos meus filhos isto já foi há uma eternidade. E portanto,

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todos eles têm o tema quase como ultrapassado. Todos eles sabem que o Z. M. vai lá de 6 em

6 meses fazer as coisas mas se calhar nenhum deles pensa que alguma vez, que aquilo possa

dar mau resultado quando lá for… Mas se calhar todos eles, na semana que o Z. M. lá vai,

dormem um bocadinho pior, não é?! Portanto, eu diria que não se pode dizer que está

ultrapassado.

E1: Mas que faz parte da vida dele, sem que interfira com o funcionamento…

Pai 1: Faz parte da vida deles…Sim, sim… Acho que eu sim…

E1: Ou seja, que estão a fazer o seu caminho sem que haja interferências…

Pai 1: Acho que se calhar, a pessoa que ainda mais pode ter isso mais complicado ainda

dentro da cabeça, é a J…

E1: Pois

Pai 1: É sem dúvida aquela que ainda, até pela sua maneira de ser, pelo seu feitio… Pode ser

ela aquela que mais tem ainda isso mais marcado, mais em causa… Admito que seja a J, por

aquilo que eu conheço de todos lá em casa.

E1: E explique-me, só porque é importante para nós puder passar isso. Como é que faz para

pensar, para fazer assim? Como é que… Quais são as suas estratégias para puder pensar

assim?

Pai 1: Eu tenho uma maneira de estar na vida que eu acho que é … Eu sou um católico não

é?! É importante dizer isto, na medida em que eu não sou católico teórico. Tenho muitos

amigos padres e portanto falo muito com eles e gosto… Acho graça o meu estatuto de ser

católico que é, eu gosto de parecê-lo para sê-lo. Ou seja, não sou um católico de me pôr aqui

de joelhos a rezar Aves Maria à frente dos outros, ou de ter de mostrar seja o que for, eu sinto

isso, eu sinto, sinto que existe Deus e que Deus pensou para mim numa história de vida que

eu estou cá para a cumprir da melhor maneira, não é?! E portanto, quando os desafios me são

postos, eu tento resolver, aceitá-los à partida, e depois resolve-los de uma forma mais

tranquila e que tiver mais ao meu alcance. Sei que tive uma serie de dons que acredito que me

foram dados, e portanto eu tenho é de pôr esses meus dons a render, de alguma forma ao

serviço dos outros e quando me é pedido que tenha uma tumor na cabeça e trate o tumor, ou

quando o meu filho aparece com um tumor, ou quando a J. agora aparece com um tumor no

olho. E portanto, é-me pedido isto. Assumo com alguma tranquilidade, sem fazer grandes…

Acho que mesmo aqui dentro, quer dizer, eu levo muito o trabalho para a família e a família

para o trabalho, neste sentido, os mundos não são diferentes, não é?! Eu tenho uma grande

preocupação com as pessoas aqui dentro. Como administrador de um grupo que tem muitas

pessoas, preocupo-me muito com a parte humana das pessoas.

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E1: Hum hum

Pai 1: E acredito numa série de valores que por acaso chamam católicos, mas que são os

valores em que eu acredito e portanto, eu gosto de funcionar com base nesses valores, e

portanto, se os valores é… Quantas pessoas não batem aqui a esta porta diariamente porque

precisam de falar – “Oh Dr. Posso? Precisava mesmo de falar consigo?”, “Entre, sente-se”. As

pessoas precisam de ser ouvidas eu estou aqui, às vezes, para o que digo. Dio 2 ou 3 palavras

e eles agradecem 10 vezes. Porque eles precisavam de alguém que os ouvisse. Ou porque o

chefe não ouve, ou porque não sei quê… E isto para mim é um bocadinho… Pronto, o que é

que eu posso dizer em ter sido pedido isto ou…

E1: Por aquilo que me está a dizer, eu acho que é uma aceitação por um lado, e uma resolução

por outro. Ou seja, aquilo que eu tento fazer (veja se eu percebi bem), é por um lado aceitar,

aceitar no sentido de dizer “Ok, está na minha vida”…

Pai 1: Sim

E1: E por outro lado é como é que eu posso resolver da melhor maneira com aquilo que me

foi dado…

Pai 1: Claro, faz bem dizer isso, porque é assim, não é a questão de aceitar passivamente,

não…

E1: Não aceitar passivamente… Exactamente…É um aceitar

Pai 1: Não, porque se não assim eu estava tramado

E1: Claro, claro…É aceitar e resolver

Pai 1: Lá esta a minha parte muito pragmática, que é, isto aconteceu, o que é que me interessa

a mim ficar agora aqui a desarrar sobre esta matéria, não vou a lado nenhum, vou piorar o

meu, o dos outros que me rodeiam. O etc., etc., etc., vou por ai fora… Portanto, a situação

acontece, eu posso evitá-la ou não posso evitá-la…Primeira questão.

E1: Pois

Pai 1: Posso, então vou fazer tudo para a evitar, se achar que quero evitar, também posso

achar que não quero evitar. Se me perguntassem “Tens aqui um tumor para o teu filho, queres

evitar?” Epa, eu vou até ao fim do mundo para evitar. Posso evitá-lo? “Ah ainda vais a

tempo” – vais a correr. “Ah não vais a tempo” – bolas, então calma. O que é que vais fazer

agora? Ele já existe, vamos pelo melhor caminho não é?! Pronto, isto para mim é a maneira

de ver as coisas na vida, quando se podem tratar, seja profissionalmente, seja situações de ser

posto na rua, de empresas, assim de um dia para o outro, porque veio um americano, porque

chegou, porque és tu que vais para a rua, porque és tu que és escravo. Está tudo bem, és tu que

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vais para a rua, então vamos lá. Se não tens razão vais-me pagar uma indemnização, vais não

sei quê, não é?!

E1: Claro

Pai 1: Portanto nós vamos à luta, não vamos “está bem, vais-me mandar para a rua eu vou

para a rua”. Não é assim. Queres-me meter para a rua porque queres que a empresa ganhe

mais dinheiro, vais ter de levar comigo, com os advogados, com não sei quê, não sei que

mais… Depois vou estar na rua… Agora, como boa gente diz “Ah, vou para a rua e tal…”

Não faz nada por isso…

E1: Ou seja neste caso, nós podemos dizer que a sua religião acaba por não ser um refúgio da

aceitação, ou seja, é sobretudo uma maneira de pensar, um conjunto de valores, que o levam a

acção. Porque há um bocadinho, esta… Nós podemos ter o recurso espiritual, neste caso o

recurso espiritual recurso de uma forma muito passiva – entreguei a Deus, entreguei, aceitei.

Pai 1: Ainda bem que diz isso. Porque isso é o oposto mesmo. E há outra questão que para

mim também é importante que é: eu não concebo, na minha religião, um Deus mau. Portanto,

para mim, Deus não foi mau porque deu uma doença para o filho, uma doença para mim, uma

doença para a minha mulher, o meu pai morreu quando eu tinha 4 anos. Deus é mau, não é?!

Se eu quiser ver assim. Eu não vejo minimamente assim, calma, eu vejo, Deus deu-me n

coisas óptimas, óptimas! E depois agora, cabe-me mim, saber pô-las a render, saber viver bem

com elas, ou saber viver mal com elas. E portanto, das coisas boas que me deu, tem-me

ajudado a viver. Todas estas vicissitudes da vida, todos estes obstáculos que a vida me vai

pondo, como me deu coisas maravilhosas. Deu-me capacidade para trabalhar, deu-me

capacidade para ter bons empregos, deu-me uma belíssima família, deu-me… A gente tem

que sempre olhar para aquilo que está bom lá. Epa, deu-me aquela doença, está bem, mas

também me deu uma data de coisas. Deu-me a capacidade para lidar com aquela doença. Deu-

me… Por ai fora… Isto são exemplos que podem… Pode ir por ai fora em tudo. E depois, isto

é importante na medida em que, às vezes vêm os miúdos com qualquer coisa, com o futebol,

ou com… É preciso olhar para as coisas como elas são. O que é que interessa esse…o futebol

correu mal, pronto. Azar! Mas o azar faz parte da vida não é? Se calhar jogou mal. Nós em

casa somos os fanáticos do sporting. O sporting perdeu o jogo com o benfica agora neste

Domingo no futsal. Chega ao fim diz o Z. M. “Isto ó pai, é o árbitro”. Disse “Oh Z. M., não

diga nada do árbitro! Estamos os dois a ver.”. “É óbvio que ele deu um passo, o guarda-redes

deu um passo para a frente. A regra diz que ele não pode andar”. “Falhou, portanto, não há

problema nenhum no árbitro, não vamos fingir que o árbitro, vamos assumir que falhámos,

fomos uns nabos, falhámos, perdemos o campeonato. Agora não vamos arranjar aqui coisas

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dos árbitros, que são injustos”. “Não é objectivo, você não está a ser objectivo”. “Como não

estou? Você não vê? Olhe vamos por para trás, deu um passou ou não deu um passo?”. Esta

objectividade é importante porque se não vamos estar todos a dizer que o árbitro é um

malandro. O árbitro é malandro muitas vezes, mas desta vez não foi. Este é um critério

objectivo, e sempre que tivermos critérios objectivos vamos lá…Um amigo meu disse: “Eu

não rezo muito, tenho algumas dificuldades e tal de rezar o terço”. Mas eu gosto é do dia-a-

dia, que muitas vezes estou numa reunião, a ter que tomar decisões complicadas sobre

matérias e começo a ver, a malta toda a discutir isto e aquilo. E eu olho para aquilo a pensar

assim: “Se Jesus tivesse aqui no meu lugar, como é que ele ia resolver isto?”. E tento resolver

com base nisso. Portanto, eu sou um prático e faço da minha religião uma coisa prática. Então

quando me entram por aqui… Eu tive de despedir gente, tive de despedir gente, tivemos de

despedir como muitas empresas. Tínhamos 700 pessoas e tive de despedir gente. Quando eu

tive de despedir gente, sentei-me e pensei “Como é que eu vou despedir essa gente? Quem é

que eu vou despedir?”. Então eu vou despedir, vou tentar saber, nesta área… são casados, não

são casados, os maridos têm trabalho, não têm trabalho, têm filhos, em que condições, etc.,

etc., etc… E vou por ai fora. Ou seja, vou tentar fazer o meu melhor dentro…

E1: …do menos mal

Pai 1: daquilo que eu tenho que fazer

E1: Clar

Pai 1: …que é despedir, porque se eu não despedir, eu vou acabar por despedir 700. Porque a

empresa morre, não tem dinheiro para pagar ao banco e vai tudo para a rua. Portanto, é o

chamado despedir com dignidade. E aqueles que têm de ser despedidos, vai-se dar tudo aquilo

a que têm direito - as indemnizações, a oportunidade de fazer um currículo, a oportunidade de

ir trabalhar para outro sítio, ajudá-los à procura do sítio, recebê-los, ouvi-los, dizer-lhes o que

têm de fazer. Isto para mim é…é este a minha noção de católico, portanto, não é o… lá está, à

bocado disse “os psicólogos pronto têm essas coisas de saber explicar essas coisas que a gente

sabe”. A minha cunhada é psicóloga, estou-lhe sempre a dizer isso. Mas é isso, é sermos… a

religião deu-me os valores que eu defendo e por isso…

E1: Coloca-os

Pai 1: Coloco-os

E1: E hoje a sua rede de suporte é quem? Continuam a ser as mesmas pessoas? Modificaram-

se?

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Pai 1: Bom, a minha rede de suporte é muito Nossa Senhora, porque eu sou um adepto de

Nossa Senhora, e sou, e portanto tenho a consciência que todos os dias lhe peço ajuda com

muita coisa e portanto, basicamente para, os valores, para que ela me ajude sempre a…

E1: … a utilizar da melhor maneira os valores que tem

Pai 1: a utilizar da melhor maneira os valores que tenho e a saber pô-los me prática e nesse

diálogo que tenho com Nossa Senhora, ajuda-me porque paro, porque me ponho um

bocadinho em silêncio, porque penso um bocadinho naquilo que tenho para fazer, porque isto

são muita frentes não é?!

E1: Claro

Pai 1: Isto é os filhos, é a mulher, empresas, as casas, enfim… Há aqui… E portanto às vezes,

e depois eu não sou muito organizado, mas hoje não está mau. E preciso de ter…

E1: Reflectir

Pai 1: Esta reflexão, portanto, muito por ai e depois adoro os meus filhos, sou um fã dos meus

filhos. Sou um fã! Almoço muito com eles individualmente. Convido um para almoçar,

convido o outro. É um programa a muito giro porque em casa onde há vários, esta sensação

de estar… chego a casa e adoro sentar-me no quarto deles a perguntar e a falar, então com

elas, mais velhas, é todos os dias, portanto… Esse é o meu refúgio claramente. E depois a

minha casa de campo e de ir apanhar ar puro…

E1: Apanhar ar, um bocadinho de ar

Pai 1: Chego todo…

E1: Uma última só questão. Como é que descreveria o Z. M.? Se tivesse de o descrever,

imagine que nós não ouvimos, e não ouvimos mesmo… Consegue descrever o seu filho?

Pai 1: Tenho aqui uma fotografia…

E1: Antes de eu ver a fotografia…

Pai 1: Antes de ver a fotografia, não mas como é que o descrevo como?

E1: Como quiser

Pai 1: Mas fisicamente, como pessoa?

E1: Fisicamente, se puder ser tudo um bocadinho.

Pai 1: Como é que eu descrevo o Z. M.?! É um miúdo muito esperto, mais esperto que

inteligente. Muito esperto! Vivo. É um desenrascado mor, portanto, ele vai ser, vai-se safar na

vida. Sabe levar bem o moinho… a água ao moinho, portanto, ele encosta-se aos outros com

uma pinta desgraçada, é o que faz menos lá em casa. Consegue fazer menos ainda, bem a

mais nova faz imenso coitada, mas encosta-se…Portanto, preguiçoso ao mesmo tempo, mas

um miúdo que joga muito também com o que já passou…

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22

E1: Pois

Pai 1: Agora um miúdo muito sensível, ficou com uma sensibilidade extraordinária, um líder

ao mesmo tempo. Por exemplo, ele joga futebol federado. Há aqui 2 ou 3 pormenores que

traçam bem o Z. M.. Um foi quando ele estava ainda no IPO em tratamento, portanto ele

depois às tantas vai para casa, não é?! Mal ele vai para casa, ainda nesse ano lectivo, ele mal

começa a andar, quer logo ir às aulas… Nos dias que estava nas aulas ia ao tratamento, o

tratamento acabava às duas e meia…, as aulas dele acabavam às quatro e meia. Ele, por mais

que doesse, por mais que fosse, que estivesse maldisposto e tal, ele queria ir ao colégio,

porque não queria perder mais a tarde de colégio… Portanto, ele tem uma força interna

extraordinária.

E1: Não queria perder a matéria ou os amigos, ou o estar com os amigos?

Pai 1: Eu acho que era as duas coisas…eu acho que era as duas coisas

E1: As duas coisas

Pai 1: Nem era tanto o estar com os amigos. Porque ele ai… Ele tinha era consciência que

não podia perder mais matéria e tinha que ter aquilo.

E1: Pois

Pai 1: Tanto que ele perdeu muitas aulas do 1º e 2º ano. Muitas! E segundo as professora, ele

passou sempre de ano, sem qualquer tipo de favor, ou seja, ele sabe tudo para passar. Aliás,

ele teve sempre acima da média da turma.

E1: Hum, hum

Pai 1: Sempre… então no 1º ano perdeu muito tempo não é?!…

E1: Pois, imagino

Pai 1: Foi até Dezembro… Depois Dezembro para a frente, só foi para ai Abril. Portanto, é

um miúdo com uma gana fora do normal, com esta… depois o próprio futebol, ele nunca quis

deixar completamente o futebol. Ia muito magrinho para lá, como era guarda-redes, aquilo ia-

se gerindo, mas era a força da equipa, quer dizer, ele puxava pela equipa, portanto foi… É

uma pessoa com um perfil de liderança grande, é um vaidoso, agora começa a chegar aos 13

anos e começa-se a perceber isso, penteasse, tem um penteado que irrita imenso a mãe que eu

já disse que não vale a pena irritar-se com um penteado de um menino de 13 anos, porque não

é com os cabelos para cima, é uma franja que ele mete ali, vai buscar os cabelos não sei

aonde. É uma maneira de pentear só diferente, que não é nada de especial, mas que se nota.

Adora, sempre, desde pequenino, que a gente tinha aqueles frascos de água de colonia…de

água de colonia…

E1: Sim, sim…

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Pai 1: Enche-se daquilo, mas desde que me lembro do Z. M. para ir sair para as aulas. As

professoras da primária diziam sempre: “Este miúdo cheira sempre tão bem.” E era ele, não

éramos nós. Era ele que se enchia com aquela coisa. Portanto, adora sair a cheirar bem.

Portanto, é vaidoso consigo mesmo. Como é giro que se farta tem as…

E1: É giro?

Pai 1: É muito giro. É giríssimo. O miúdo é giríssimo. É bonito mesmo. Não digo por ser meu

filho.

E1: Pois, pois

Pai 1:Também por ser meu filho, como disse sou vaidoso com eles, mas… Outra

característica, a J imensas vezes em casal, “Porque eles são isto e porque eles são aquilo,

porque não ajudam, porque são uns mal-educados, porque estão tortos à mesa…”. Aquelas

coisas das mães, às vezes. Ela chega ao fim, e eu digo assim: “Não concordo nada”. (risos)

“Oh você não educa…”. Não concordo nada, acho que eles são impecáveis, acho que eles

são… (risos) Portanto eu sou péssimo… péssimo não, acho que aperto noutras coisas. Acho

que eles são óptimos. Mas acho que ele, que ele…Pronto, acho que é isso o Z. M., portanto

um vaidoso… Adora… agora está…

E1: Um sedutor

Pai 1: Um sedutor, um sedutor, Porque agora teve que ir para o colégio, tivemos que o tirar

do liceu. Ele foi no 7º para o liceu, não estuda, muito fácil de desencaminhar também

porque…lá está…

E1: Acha que ele tem uma baixa expectativa em relação a ele próprio, em relação aos estudos,

ou não? Ou é só mesmo por preguiça?

Pai 1: Não sei, não sei se…

E1: Ele acha que se fizer os mínimos já fez qualquer coisa…

Pai 1: Ele acha que se fizer os mínimos já fez qualquer coisa. Há alguma insegurança com

esta história da quimioterapia porque sempre lhe foi dito que ele… sempre foi dito, não sei se

lhe foi dito a ele, se ouviu, se percebeu, se que é que foi… que isto intelectualmente, muito

deles não conseguiam ir muito longe, a cursos superiores, etc., porque a quimioterapia…

E1: Ele ouve isso como desculpa?...

Pai 1: Eu não sei se ele não terá ouvido isso… Também, ele não estuda nada. E também para

o nada que estuda, porque não consegue estar quieto, porque tem sempre de estar com uma

bola nos pés, tem sempre de estar… É um activo! Portanto, tivemos de o tirar no 7º ano. Não!

Fez o 7º ano no liceu e agora no 8º tirámo-lo para um colégio, que é onde anda a M. e, no

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colégio, quer dizer, as meninas todas do 8º babam-se, quer dizer, basta lá ir e percebe-se logo

– “Ui este miúdo vai-me dar um trabalho”.

E1: Mas tiraram para ver se ele ficava um bocadinho mais centrado porque…

Pai 1: Não, mais centrado. Porque é assim, para já, porque o Z. M. precisa de muito mais

controlo. Porque é um miúdo muito mais… é um aventureiro, isto é que é uma boa

característica dele - ele é um aventureiro. Com o que já passou, epa… Venha o que vier que

eu dou cabo disto tudo não é? Portanto, tem uma boa auto-estima, portanto, ele acha que

controla tudo e todos e isto é que vai ter de perceber com a vida também, que não controla

tanto como pensa, não é?!

E1: Hum hum

Pai 1: Ultrapassou a história da doença, o que também foi importante mas…

E1: Mas ultrapassou? Acha que ele ultrapassou?

Pai 1: Eu acho que ele acha que ultrapassou

E1: Hum hum… Mas ficou mais sensível, por exemplo em relação aos sinais?

Pai 1: Ele acha que ultrapassou

E1: Mas ficou mais sensível, por exemplo, em relação aos sinais?

Pai 1: Ele é muito sensível…

E1: Ao corpo…

Pai 1: A tudo o que tenha a ver com o corpo. Mal lhe dói… Houve o caso agora, a dor no

tornozelo a jogar futebol. Ele parou no mesmo dia e não parou quieto enquanto não lhe tava a

dizer (?1:05:46) É de uma sensibilidade enorme às doença dos outros. Fica m pânico se

alguém está doente ao pé dele. Lembra-se como ninguém o que é que comeu na véspera de

ficar doente, o que é que lhe aconteceu, como é que se sentiu, portanto, isso tudo está lá, tudo

lá…

E1: Está lá…

Pai 1: Tudo lá, portanto, pronto é isso, quer dizer…

E1: E o que é que tenta ensinar ao Z. M.? O que é que tenta ensinar aos seus filhos?

Pai 1: Ao Z. M. ou aos meus filhos?

E1: Ao Z. M., vamos falar em relação ao Z. M.

Pai 1: O Z. M. tento acima de tudo que ele pense mais no que lhes estão próximos, nos

outros… Ele é muito egoísta para os de casa. Portanto, ele é um óptimo miúdo, lá está, é o

que eu digo à J – “Eles são óptimos, eles só têm cá em casa, isto…”. É sempre assim, fora de

casa se tiverem o mínimo de educação e tal, chegam foram de casa são extraordinários.

E1: Claro

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Pai 1: Ele é um miúdo com uma sensibilidade enorme para as crianças. Para as crianças mais

novas que ele, uma sensibilidade enorme. Muito sensível com os amigos também, portanto a

sensibilidade dele é qualquer coisa que ficou ao longo… Eu acho que tem muito a ver como o

que ele passou…

E1: Pois

Pai 1: E portanto ai, o que é que eu lhe digo?… Digo-lhe que ele tem de se esforçar. O que

me preocupa mais com o Z. M. neste momento é ele estudar o mínimo, não quero que o Z. M.

seja nenhum doutorado porque o Z. M. gosta tão pouco de estudar como eu, não é?! Mas eu

acredito, quer dizer “Olhe eu também tive que estudar para ser alguém hoje em dia, não é?! E

eu não tinha um pai que andasse atrás de mim para eu estudar porque o meu pai morreu

quando eu tinha 4 anos. Portanto, você tem a sorte de ter um pai que está aqui a massacrar

todos os dias, portanto por mais que refile, eu não vou deixar de…”. Porque ele detesta

quando a gente entra no quarto “Oh Z. M., desculpe lá, o que é que estudou, o que é que não

estudou?”. “Lá está, ó paiii…”. Portanto, é um miúdo que refila, dá trabalho nesse sentido.

Portanto o que é que eu me preocupo em dizer ao Z. M.? Preocupo-me em fazê-lo ver que ele

tem uma vida pela frente, às vezes digo “Olhe, ainda por cima tem muita sorte porque ainda

cá está”. Tipo, já te safas-te, portanto agora tens que…

E1: Diz-lhe isso?

Pai 1: Assim no, no…

E1: Que engraçado, que coisa tão positiva…

Pai 1: Há uma coisa que é muito importante na relação que eu tenho com eles. Eu brinco

muito com eles, mas eles também sabem que eu brinco de uma forma séria não é?! E portanto

não sou um palhaço… Mas brinco muito com eles…

E1: Mas dizer isso mostra que sente que a temática cancro e a doença está resolvida dentro da

família…

Pai 1: Sim, sim…

E1: Ou seja que é possível falar sem se ter uma conotação de drama…

Pai 1: Sim, sim, sim, sim, sim…

E1: Sente isso…

Pai 1: Sim, sim. Isso tem que ser, isso tem que ser…

E1: E só por último, o que é que diria? Imagine que nós…E nós vamos falar com pais que

souberam que os filhos foram diagnosticados ontem. O que é que acha que deve ser

transmitido a estes pais? Qual é que acha que seria a mensagem que nós deveríamos ter

enquanto psicólogas, ou como alguém que quer ajudar? O que é que para si é importante que

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estes pais pudessem ter acesso? Quais é que foram as suas necessidades na altura? O que é

que nós podemos fazer para melhorar e o que é que se pode dizer a estes pais?

Pai 1: Eu acho que a primeira coisa é ser muito verdadeiro, não vir com aquela história… É

claro que não vão dizer isto mas, não vir com paciência, não vir com… “Pronto, olhe, deixe

lá, tudo se vai resolver”.

E1: Pois

Pai 1: Eu acho que sito é o pior que as pessoas podem ouvir. Portanto, eu acho que a primeira

coisa é dizer assim “Bolas, já chorou, já deu um murro na mesa, já chamou nomes à vida, já

fez isso tudo, isso é fundamental que o faça, agora, nada está perdido, quer dizer… Isto é uma

nova fase… INTERRUPÇÃO Eu acho que o importante é ajudar a pessoa a perceber – Ok,

aconteceu uma coisa que nem ela, nem ninguém escolheria. Primeira coisa, não é? Dizer:

“Olhe você esta aqui, está metido numa coisa onde, obviamente, ninguém gostaria de estar,

nem eu, nem ninguém no mundo… e que você não escolheu para estar! Portanto oiça…”

E1: Nem tem culpa…

Pai 1: Nem tem culpa nenhuma… Pois! O desculpabilizar é importantíssimo também, Eu

nunca tive esse problema, graças a Deus, mas é importantíssimo porque, sei lá, o meu caso é

um caso, mas pode haver outro caso em que imagine, uma criança comeu não sei o quê, o pai

pode ficar paranóide, foi o pai que lhe deu, foi de ele ter comido, sei lá. E portanto, culpa

zero, ter escolhido também não. Portanto, o que é que você pode ser agora? “Olhe, pode ser

uma grande parte da solução”. Eu iria sempre por aqui, aliás já tenho falado com alguns,

porque depois lá no IPO foram-nos pedindo quando nós lá estávamos. Quantos é que nós não

acolhemos à entrada, quantos é que nós não… com toda a humildade e carinho, porque, de

facto, quem melhor que nós para saber o que uma pessoa sente quando lá está…Já sentimos,

não é?!

E1: Claro

Pai 1: E portanto, eu acho que a questão é: “Você pode ser parte da solução”. Portanto, chore

sobre isso, desespere sobre isso, mas levante-se não é? E é importantíssimo para o seu filho

que você esteja bem e que você esteja levantado, e que você seja uma parte boa, uma parte da

solução, não uma parte do problema. E vai sempre estando para o seu filho, vai sempre

estando para a sua mulher, se for, hão-de ser cassados, ou mesmo que não seja, há-de ser,

portanto, para a mãe do seu filho, não é?! Portanto, isto é que eu acho que é importante as

pessoas perceberem. E depois ajudá-las, porque há-de haver temperamentos muito mais

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complicados de lidar com isto, mas pronto. E portanto tentar perceber o que é que estas

pessoas precisam de ajuda para este…

E1: E para a resolução de problemas não é? Parece-me que há aqui uma…

Pai 1: E para a resolução do problema

E1: … não é?! O problema não é o problema, são pequeninos problemas

Pai 1: São pequeninos problemas e depois como é que a pessoa se vai organizar? Diga-me lá

como é que se vai organizar?

E1: Pois

Pai 1: Eu vou ajudá-la a organizar

E1: Pois

Pai 1: Onde é que você mora, como é que você vem para cá, como é que vai de lá,…

E1: Como é que se planeiam as coisas…

Pai 1: …como é que está a pensar fazer com a sua mulher, tem mais filhos, não tem, tem

emprego, não tem… Como é que está a pensar fazer no emprego… Porque a pessoa também

pode, e é perfeitamente normal que isso aconteça… Desorientado!… Está tudo

desorientado…

E1: Claro

Pai 1: Mas para onde é que hei-de ir, agora já não sei... E portanto…

E1: Acha que há esta necessidade de organização não é? Ou seja, esta necessidade de…

Pai 1: Ah uma pessoa fica completamente desorganizada

E1: Necessidade de organização, de planear…

Pai 1: De um dia para o outro, quem não pensou que não escolheu, que não imaginou sequer

que fosse capaz.

E1: E sentiu essa necessidade de organização?

Pai 1: Sim, sim, sim…

E1: Alguém que ajude a planear

Pai 1: Mas depois a verdade, e nisto, mais uma, se calhar vem o meu catolicismo ao de cima.

Mas isto é mesmo assim. Nós somos capazes de tudo aquilo que nos é posto à frente.

E1: Hum hum

Pai 1: As coisas se nos são postas à frente, é porque nós somos capazes de enfrentar.

E1: Hum hum

Pai 1: Agora nós é que temos saber como é que havemos de lidar com elas. Se ele me é posto

à frente, se ele me é posto, eu vou conseguir ultrapassar, melhor, pior, mais difícil, menos

difícil, com mais dificuldade, com mais tempo, com menos tempo. Agora, sou eu que vou ter

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de ultrapassar. Portanto, quanto mais me ajudarem a identificá-lo e a…, não é?! E a

reorganizar-me, pá melhor. Eu tive de ir buscar ajudas para o emprego, tive que ir buscar

ajudas para a família, tive que organizar, tive de perceber também para mim o que é que era

melhor. Para mim era claramente melhor estar próximo do Z. M. Se calhar para outro pai é…

E1: É melhor centrar-se no trabalho.

Pai 1: Centrar-se no trabalho

E1: Para depois puder voltar

Pai 1: Mas atenção, temos depois também a mãe. Se isso para ti é importante, guarda umas

horas para isso, mas guarda umas horas também para coisa não é?…

E1: Claro, claro… Ou seja, vai buscar ai umas forças para depois fazer o resto que é preciso

fazer, não é?!

Pai 1: Escrever, não escrever…

E1: Pois, sim…

Pai 1: …há pessoas que gostam de escrever. A J escrevia imenso… E portanto…

E1: Muito bem. Muitíssimo obrigada. Muito obrigada pela…

E2: Eu ia buscar uma coisa que ficou lá atrás e que eu fiquei um bocadinho com aquela coisa

de perguntar, mas estava a deixar que…

E1: Claro

E2: que é a questão da culpa que falava no início da entrevista…

Pai 1: Sim

E1: Sente que a culpa é vivida de forma diferente para si e para a sua esposa, para a J? A

questão da culpa

Pai 1: Não! Nenhum de nós tive o mínimo sentimento de culpa

E1: Em relação à doença da... pois

Pai 1: Aliás, penso que cientificamente, está provado que não há qualquer justificação para

uma leucemia. Portanto por mais que admita que se calhar noutros cancros possa haver… Se

há um cancro nos pulmões e a gente fumou a vida toda, quer dizer pode haver ai um

sentimento de culpa… Sei lá, um cancro na pele, pode haver um sentimento de culpa porque

se apanhou sol, não é?

E1: Pois

Pai 1: Agora num caso destes não pode haver sentimento de culpa. Eu já nos outros, quer

dizer, acho que há maneira de gerir os sentimentos de culpa, quanto mais num que não há

como provar que aquilo... Aliás isto foi uma coisa que se teve de desmontar depois com os

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outros que foi quase “Se ele apanhou, porque é que nós não vamos apanhar?”. Não é?! E

depois houve uma altura que, sem eles perguntarem, eu repsondi…

E1: Pois

Pai 1: Portanto, é bom que todos saibam que não há razão nenhuma para ter sido, razão

nenhuma explicável, não é?

E1: Pois

Pai 1: à luz humana, que tenha sido aquele senhor a ter aquela doença…

E1: Pois, pois

Pai 1: Portanto, não é por ele ter sido, com este sangue, que agora vai ter os outros todos à

volta dele, não é?

E1: E que não há contaminação não é?

Pai 1: Não há contaminação. Nãom, não… Isso depois lá… depois a parte da contaminação é

importante quando ele voltou para casa e tudo…

E1: Pois, pois

Pai 1: Portanto, e na verdade todos tiveram que saber lidar com as quimioterapias, todos

conheciam as quimioterapias e essas coisas todas…

E2: E por último, queria só perguntar: este humor que referia à bocado, em falar com o Z. M.,

aquela piada que lhe dizia à pouco, que nos contava. Sente que de certa forma, este humor não

é? Facilita-lhe ainda hoje…

Pai 1: Humor?

E2: Sim, humor, diria humor

Pai 1: Ah o humor foi metade desta, o humor foi utilizado desde a primeira hora, como lhe

disse à bocado.

E1: Com a história mesmo do internamento não é?

Pai 1: Com a história do internamento, coma saída do hospital com a coisa, até à saída, até à

saída não… Eu uso muito o humor para tudo, confesso

E1: Pois

Pai 1: Portanto, ainda hoje em dia. Acho que é muito importante... O humor é parte da cura,

não é?!

E1: Pois

Pai 1: Portanto, quantas vezes não estávamos a contar anedotas no meio das coisas, ao ponto

dele próprio também se meter depois. Lembro-me que ele um dia entrou no… (não sei se a J

contou isto)… ele tinha que entrar sempre, tirar as calças e picar por todo a lado e tal. Um dia

entrou lá ele, miúdeco de 6 anos a entrar nos coisos das enfermeiras, no IPO, cá em baixo, nos

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tratamentos: “Minhas senhoras, hoje são as senhoras que tiram as cuecas para baixo que eu

não tiro as minhas!” (risos) “Hoje são as senhoras a tirar as cuecas para baixo” E eu olhava e

disse: “Epa, então companheiro” Tudo a rir, mas pronto… Há uma parte de, de …

E1: A não dramatização, não é?

Pai 1: A não dramatização. Exactamente e depois também trazer o humor mesmo, acho que é

importante, levar a vida também de uma forma mais leve

Pai 1: Mais leve

E1: Muito obrigada.

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CASAL 02 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – T.

E1: Bom, antes de mais anda, muito obrigada. É o casal 2, mãe 2. De novo, muito obrigada

por participarem, e por nos ajudarem a entender melhor como é que é a vivência parental

numa situação de cancro pediátrico e eu gostava de lhe pedir que voltasse à fase em que… de

diagnóstico e que me dissesse, quando pensa nessa fase, o que é lhe vem à cabeça? Quando

lhe vem o momento do diagnóstico, o que é que lhe vem?

Mãe 2: Foi, foi muito complicado porque, quando isto começou, um bocado antes, pronto,

isto teve tudo uma sequência, embora tenha sido rápida, mas foi uma sequência, pronto,

começou com uma ida ao hospital. E os gânglios do T. aumentaram e pronto e depois um

recolheu e o outro mano. Pronto, e ele estava na altura com uma operação marcada ao nariz, à

garganta e aos ouvidos. Pronto, ia a um médico nosso particular e depois quando eu comecei a

ver o gânglio a aumentar, falei com o médico e o médico naquela altura disse: “Ah isso faz

tudo parte da infecção que ele tem, isso é tudo completamente normal.” Mas pronto, eu não

sei se é aquele sexto sentido, se é o ser mãe, havia ali qualquer coisa que não me estava a

assentir bem em relação ao diagnóstico. E então depois encaminhei outra vez para o pediatra

dele e quando ele o viu também naos gosto. E pronto, andamos ali para ai uma semana e

depois encaminhamos para um cirurgião, fizemos todos os exames possíveis e imaginários e

nada acusava, nem análises, nem ecografias cervicais, nada acusava, nada. Até que o pediatra

resolveu pedir uma biopsia, pronto e logo no próprio dia, foi o tempo de chegarmos a casa,

tivemos logo o resultado, pronto. E foi muito complicado, pronto. Porque embora eu,

pessoalmente, já estivesse a desconfiar, depois comecei a ler coisas e comecei a pensar,

pronto, que seria alguma coisa dentro de um cancro… mas depois o enfrentar a realidade foi

muito complicado, pronto, foi… (risos) …doloroso

E1: Doloroso

Mãe 2: Pois

E1: Lembra-se do que sentiu, o que pensou?

Mãe 2: É assim, foi um balde de água fria, de água fria…porque

E1:Foi pelo telefone?

Mãe 2: Foi pelo telefone porque nós viemos a Lisboa, viemos aqui fazer, portanto…

E1: A biopsia

Mãe 2: A biopsia. E depois o meu marido foi trabalhar e eu fui para casa com o meu filho. E

depois quando chegamos a casa tinha uma mensagem no telefone do pediatra. Pronto, eu

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ainda demorei algum tempo porque sabia que era hora de almoço e depois liguei-lhe de volta

e quando ele me diz “já temos o resultado da biopsia”. Que eu nunca pensei que fosse logo

tão rápido. “É um linfoma e amanhã às 9 da manhã, vocês têm de estar às 9 horas no IPO”.

Pronto, foi telefonar ao meu marido a pedir para ele ir para casa porque eu estava sozinha com

ele e pronto, e depois foi o…

E1: Ele tinha que idade?

Mãe 2: 3, 3 anos

E1: 3 anos. Tinham mais filhos na altura?

Mãe 2: Não, na altura não

E1: Er ao único

Mãe 2: Era o único filho

E1: Ficou sozinha até chegar o seu marido?

Mãe 2: Sim

E1: Lembra-se o que é que pensou?

Mãe 2: Pronto, pensei: “Agora, e agora? Porquê?” É o que a grande maioria dos pais se

pergunta “Porquê a ele? O que é que vai acontecer amanhã?” Pronto, o meu medo era,

portanto, o deparar-nos com, já com uma parte do diagnóstico e depois saber, não saber como

é que se ia desenrolado o processo a partir dai. Pronto isso foi muito assustador, até ao dia

seguinte. Quando entramos e começamos a ser aqui acompanhados, foi complicado.

E1: Lembra-se como é que reagiu o seu marido?

Mãe 2: Eu telefonei-lhe e disse-lhe pelo telefone, pronto, depois ele… Ficámos… Foi um

colega que o foi depois levá-lo a casa. Pronto, ficámos de rastos e ainda pro cima porque

nesse dia é o dia em que nós fazemos anos de casados (risos) Portanto, foi assim, ainda hoje,

pronto, nós lembramo-nos mas quase mais ou menos recordamos principalmente que faz anos

que nós soubemos que o diagnóstico era aquele.

E1: E no dia seguinte vieram ter com o pediatra?

Mãe 2: Viemos aqui logo para o Hospital de Dia

E1: O pediatra de oncologia, não com o vosso pediatra?

Mãe 2: Não, pois, nós depois entretanto trouxemos uma carta do nosso pediatra, e depois para

entregar aqui no Hospital de Dia, pronto e fomos logo directos ao Hospital de Dia e ficamos a

aguardar para sermos… entregar a carta…

E1: Como é que foi? Já vos explicaram o que é que se passava? Aumentava a vossa

ansiedade, diminuiu?

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Mãe 2: É assim, para mim foi um choque porque é o chegar aqui ao hospital, ir logo para o

Hospital de Dia, portanto e não perceber nada, como é que funcionavam as coisas. Ver as

crianças no Hospital de Dia foi logo, portanto, um choque. Porque eu percebi, que dai a uns

dias o meu filho estaria como aquelas crianças.

E1: Hum hum

Mãe 2: Depois foi o não conhecer ninguém, pronto, porque e foi a primeira vez que estava

num hospital com o meu filho. Pronto, porque ele felizmente nunca tinha tido assim grandes

problemas e foi sempre assistido pelo pediatra, a nível particular e então chegar aqui, não

conhecer ninguém e olhar para as crianças foi mesmo, foi… também muito complicado.

Chorava, chorava, chorava… E depois foi até alguém que me disse: “Oh mãe, não chore à

frente das crianças”. Até foi uma educadora aqui do IPO e disse “ Tenha calma. Vai tudo

correr bem, mas não chore à frente nem do seu filho nem das outras crianças”. E então, o ter

que aguentar foi…

E1: Foi pior ou melhor? O ter de aguentar… Serviu para alguma coisa ou…?

Mãe 2: Pronto, é complicado não é? Uma pessoa a querer chorar, depois lembrar-se que estão

outras crianças e depois que nos vêm a chorar, ou ao nosso próprio filho, não é? Também

tentamos, percebemos e quando estávamos mais aflitos, vínhamos cá para fora, não é?! Mas

essa parte foi difícil.

E1: Sim senhor. Está-me então a dizer, que as coisas que foram para si mais complicado

nesse primeiro momento foi, chegar aqui, não conhecer as coisas, pensar como é que iria

correr

Mãe 2: Sim

E1: Como é que iria ser o futuro

Mãe 2: Sim

E1: Ver as crianças sem o cabelo…

Mãe 2: Cabelo…

E1: …pensar que ele ia passar a mesma coisa, foi um bocadinho…

Mãe 2: foi, foi o aperceber da realidade do que ia acontecer

E1: Do que ia acontecer aqui no hospital… Depois falou com o pediatra cá

Mãe 2: Sim

E1: E diminuiu a sua ansiedade, aumentou…?

Mãe 2: É assim… foi tudo muito… não foi confuso mas foi tudo muito, umas coisas a seguir

às outras. Portanto, nós tivemos aqui 2 dias praticamente a fazer exames

E1: Ele entrou então logo para ser internado?

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Mãe 2: Ele entrou logo, então, portanto, nós viemos numa 5ª feira, ele fez exames, que era

para saber que tipo de…

E1: De linfoma

Mãe 2: … de linfoma é que ele tinha. E depois na 6ª feira disseram-nos logo à tarde que ele ia

ficar já internado. Nós não vínhamos preparados com roupas nem anda. Pronto, quando

depois ficámos internados, para mim foi um misto de, pronto, o querer ir para casa e estar na

nossa casa, mas depois, por outro lado, fiquei aliviada porque aquele primeiro processo já

estava passado…

E1: O primeiro processo…

Mãe 2: De… Pronto de fazer os exames, o ser, e depois nos terem dito o que é que era…

Pronto, foi…

E1: foi para si um alívio…

Mãe 2: foi, foi. Pronto, porque nos disseram… Fizemos os exames todos, deram-nos a

hipótese que podia ser um determinado tipo de linfoma ou uma leucemia e que as coisas em

termos de tratamento seriam diferentes. Pronto, e quando nos disseram que era um linfoma,

um bocado egoísta, não sei, mas pronto, fiquei um bocado mais descansada entre aspas, não

é?

E1: Mas porque saberia que…

Mãe 2: A leucemia que se iria prolonga por muito mais tempo em termos de tratamentos.

Depois pronto, foi o iniciar uma nova etapa que era o estar no hospital.

E1: Uma nova etapa de estar no hospital, pois. Quer-me explicar um bocadinho como é que é

essa etapa?

Mãe 2: pronto, nós largamos tudo e logo naquele dia, depois de estarmos aqui, praticamente

os 2 dias inteiros a fazer exames, já não voltar para casa. Pronto, já ficarmos aqui, sem sem as

nossas coisas e ter que organizar com o que tínhamos. Pronto, e também foi duro.

E1: O que é que foi o mais difícil dessa…? Que necessidades é que sentiram nesse momento,

nessa altura?

Mãe 2: É assim…

E1: O que é que foi o mais complicado?

Mãe 2: Para mim foi o estar à espera, de não ter a possibilidade de ir a casa organizar as

coisas e depois voltar, pronto. Mas pronto, também não pensei muito nisso. Como me

disseram “tem que ficar”, pronto, nós ficamos e como o meu marido, estávamos os dois

juntos. Pronto, ele, dissemos, “pronto ficamos com o que temos e depois amanhã, quando

vieres ter connosco, logo nos organizamos em termos de…”

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E1: E nessa fase, nesse tempo todo, pronto, ficou hospitalizada e depois viveu o diagnóstico e

hospitalização que demorou quanto tempo?

Mãe 2: Foram praticamente, ora , entrada em Março, Abril, Maio, Junho. Junho, junho - 3

meses

E1: 3 meses. Ou seja teve 3 meses internada?

Mãe 2: Praticamente

E1: Esse tempo todo, vamos pensar nele de forma geral… Quais foram os momentos piores,

o que é que aconteceu de pior? Quais foram as necessidades que sentiu? O que é que correu

melhor, o que é que correu pior nesses 3 meses?

Mãe 2: É assim, na altura, pronto agora as condições são muito diferentes na pediatria,

pronto, em termos de organização, do espaço, não tem nada a ver com há 10 anos atrás e

então quando entrámos, tudo muito, via-se, muito hospital. Custou-me, pronto, não estar

assim num sítio que fosse mais amigo, mais delicado para as crianças. Mas que isso agora já

está completamente ultrapassado porque não tem nada a ver. Outra coisa que pronto, na altura

me custou muito foi porque, nós mães, só tínhamos, também na altura só existia uma casa-de-

banho. Agora já não acontece isso, já há várias possibilidades para os banhos. E então de

manhã era um stresse porque se eu queria tomar banho tinha de me levantar antes para

conseguir ir tomar banho, mas tinha de o deixar sozinho, então às vezes eu tinha de fazer era

arranjava-me como podia e depois eu esperava que o meu marido chegasse para ficar com ele

e depois então ia eu tomar banho e fazer as minhas coisas, pronto, na altura isso custou-me

imenso, não ter, pronto, um sítio para pudermos à noite ou de manhã, puder… ser só uma casa

de banho para tanta gente…

E1: Claro

Mãe 2: …E isso foi… custou imenso

E1: E outras coisas?

Mãe 2: Assim na altura, pronto…

E1: Correu bem, correu bem o tratamento, ele começou imediatamente a recuperar?

Mãe 2: Sim, começou imediatamente, depois tivemos assim alguns, pronto, ele depois logo,

passado pouco tempo pôs logo o cateter, depois tivemos problemas logo, o cateter ao fim de,

já não me lembro bem se foi umas horas ou uns dias, depois entupiu e teve que voltar a pôr

outro, pronto… Depois o segundo foi complicado porque depois ele teve o dia inteiro sem

puder comer porque havia problemas atrás no bloco operatório, então ele teve quase até às 8

da noite sem comer, à espera para puder ir par o bloco, e nem sequer havia certeza que ainda

fosse… Então foi um dia muito complicado. E depois ele trazia a t-shirt a dizer que não podia

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comer e nós a vermos as horas a passar e ele sem comer… Pronto isso…”Vai por ou não vai

pôr?” Pronto, foi uns dias, foi difícil.

E1: E em relação à informação sobre a doença, sobre o tratamento, Sentiu que estava bem

informada ou sentiu que às vezes tinha dúvidas e que…

Mãe 2: Não, na altura eu acho que, no início adotei uma postura que era, não queria saber as

coisas com grandes detalhes, pronto. Eu, disseram-me, iam-me dizendo o que é que ia

acontecendo e eu, pronto, fui aceitando sem questionar, nem por em causa nada, pronto e

porque depois logo, como ele no primeiro fim-de-semana, o alto desapareceu, pronto, eu fui

pensando assim “bem, isto se formos fazendo assim aos bocadinhos, se calhar é mais fácil,

vamos por etapas”. E então, fui, depois ao longo do processo questionei algumas coisas,

porque depois a médica que o segue, até inclusive nos mostrou o protocolo, o que é que, que

tipo de protocolo é que era seguido. Mas eu nunca questionei assim grandemente as

operações.

E1: Muito bem, o que me está a dizer é que de início, se a tivessem chamado para dar a a

informação toda, tinha aumentado a sua ansiedade?

Mãe 2: Sim, acho que era muita informação de uma só vez, pronto.

E1: Aquilo que foi para si importante, é que a informação fosse dada devagarinho…

Mãe 2: Devagarinho, à medida que as coisas fossem acontecendo. Sim, sim…

E1: Muito bem… Então foi-se envolvendo devagar não é?!

Mãe 2: Devagar, exatamente. Porque, pronto, acho que naquela altura. Lembro-me que à

noite, no primeiro dia logo do internamento, houve uma enfermeira que veio ter connosco,

comigo ao quarto, as perguntas pessoais, o que fazia, o que não fazia… Pronto. Depois foi-me

explicando, mais ou menos, portanto até mesmo o funcionamento das rotinas no próprio

internamento. Pronto e depois quando conheci a médica que o iria acompanhar, assim como

todos os outros que depois estariam lá de serviço não é?! Pronto, fui fazendo as coisas assim

devagarinho, também porque eu vi que havia pais, e conheci a mãe de uma menina na altura,

que não sobreviveu, que sabia tudo e mais alguma coisa. Ela era completamente especialista

em tudo o que acontecia com a filha. E eu sabia alguma coisas, tomava nota, mas depois

também não quis, isto não é a minha, acho que na devo saber tanto como os médicos.

Portanto, interessa-me é estar com ele e depois a outra parte

E1: Interessa-me o estar com ele”. Então agora vou-lhe pedir duas coisas. Uma coisa tem a

haver com os aspetos do tratamento mais práticos, outra coisa tem a haver com os aspetos de

bem-estar do seu filho…

Mãe 2: Hum hum

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E1: Como tal, o cuidado mais de, em termos de higiene, de bem-estar do seu filho. Ai sentia-

se envolvida completamente ou também isso deixava para os enfermeiros?

Mãe 2: Não, não, sempre fiz tudo. Sim…

E1: Então digamos que dividiu e pensou: “Em termos médicos é com eles, eles é que sabem,

o resto…”

Mãe 2: … o resto era sempre connosco, tudo. Pronto, até começamos a adotar um sistema

porque ele não comia a comida de lá, ele não gostava e então eu tinha o cuidado de deixar,

pedir à minha sogra que nos fizesse comida, para depois o meu marido de manhã trazer, para

depois lhe dar à hora de almoço, porque comecei a ver que não estava a funcionar e então,

portanto ele não comia as coisas de cá e então começamos nós a trazer, como tínhamos

frigorifico e podíamos usa-lo, começamos, adotamos assim.

E1: Imagine a seguinte situação, imagine que naquela altura uma enfermeira lhe tinha dito:

“Não, não. Não pode dar banho ao seu filho, tem de dar desta maneira.” E imagine que sabia

que ele não gostava nada de tomar banho daquela maneira não interferia em nada. Era só a

enfermeira que achava que se devia dar banho daquela maneira. Como é que faria?

Mãe 2: Eu acho que seguiria. Eu acho que seguiria porque tenho um bocado essa postura, não

sou muito de… Quer dizer, dependendo das situações, mas eu sou um bocado, faço nestas

circunstâncias, faço aquilo que me dizem (risos)

E1:E à medida que ele foi melhorando? Foi sentido que ele já tinha mais qualquer coisa para

dizer? Começou a dizer…

Mãe 2: Nunca achei necessário, não, porque lá está, como nós tivemos sempre, acho que

também ajuda-mos um bocado, portanto, nunca tivemos ralhetes, nunca, pronto aquelas coisas

que às vezes acontecem, pronto, ou porque os pais não estão a fazer bem ,ou… Acho que

nunca tivemos isso e sempre adotei aquilo que me disseram. Portanto…

E1: Mesmo que achasse que aquilo podia não ser muito adequado…

Mãe 2: Porque as coisas que me disseram…

E1: Faziam sentido

Mãe 2: Faziam sentido. Por exemplo…

E1: E se não fizessem…? Acha que era capaz de dizer…

Mãe 2: Talvez. Pois ai não sei…

E1: “Olhe que, não sei, se calhar…”

Mãe 2: Acho que não…

E1: Não…

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Mãe 2: Não porque eu tive uma situação que ele teve em isolamento, e esteve uma semana, e

estava com morfina e ai eu estava desesperada porque já estávamos à imensos dias e os níveis

cada vez desciam mais e então quase que o obrigava a comer e dizia-lhe: “Tens que comer,

nem que sejam iogurtes”. Nós trazíamos essas coisas todas de casa, que era para ver se ele

começava a recuperar alguma coisa. E ele não queria, e chorava. E um dos dias a médica

passou e depois foi lá e disse: “Não lhe dê nada, porque ele está a ser alimentado por via

endovenosa.”. E então, pronto eu aceitei, pronto, porque eu vi que ela tinha razão. Tinha toda

a razão. Era mesmo a minha preocupação de mãe… E se calhar já um bocado desespero vê-lo

quase há uma semana no isolamento e querer sair um bocado dali para fora, mas depois fez

todo o sentido porque ele não conseguia, mas eu, porque eu também depois na altura, ou

também o obriguei um bocado a mantermos determinadas rotinas como se tivéssemos em

casa.

E1: Hum hum

Mãe 2: Que era o levantar, o lavar, o vestir, ir até à sala para brincar, ver bonecos, andar um

bocadinho pelos corredores, portanto eu tentava que ele não ficasse, pronto, quando ele dizia:

“Mãe estou cansado, quero ir para o quarto” ou então “ver televisão”, pronto, não o obrigava a

estar onde ele não quisesse…

E1: Claro, claro. Mas tentou dar-lhe uma rotina?

Mãe 2: Mas tentei dar-lhe dentro do hospital uma rotina, que era para, pronto, para ele não

esquecer e não se desabituar daquilo que estava em casa, não é?!

E1: Lembra-se de se ter sentido cansada, demasiado… estoirada… exausta…

Mãe 2: Ah… sim. Algumas vezes (risos)

E1: O que é que fazia nessa altura para ficar melhor?

Mãe 2: Falava com outros pais… às vezes, eu tinha uma rotina à noite, andava, por exemplo,

quando ele já estava a dormir, que era olhar pela janela e ver, nalguns quartos dá para ver

estes prédios aqui de frente, então ficava a olhar e via as pessoas no seu dia-a-dia ou a

jantarem ou a verem televisão, ou… E eu pensava assim, distraia-me mas depois pensava

assim: “Olha, podíamos nós estar também em casa e estamos aqui.”. Mas pronto, sempre

encarei as coisas…

E1: Sempre encarou… Como é que encarou? O que é que a ajudou? O que é que a si a ajudou

a…?

Mãe 2: Pronto, no início, embora claro, nós nunca sabemos…o prognóstico era bom, era

positivo, e como ele começou, reagiu bem, foi reagindo bem, ultrapassando as etapas, isso a

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mim também me dava força porque eu via que, pronto, tudo o que se estava a fazer, que era,

estava a ter resultados, portanto, arranjava sempre a força era ai…

E1: É ai…

Mãe 2: Ai, sim

E1: Ou seja, pensava: “Isto vai melhorar, isto melhorou até agora, vai melhorar”. Era isto que

pensava?

Mãe 2: Sim, sim, sim.

E1: Sim senhor. E que momentos difíceis, houve alguns assim que me diga: “Aquilo foi

mesmo difícil”. Falou há bocadinho do cateter, houve mais…?

Mãe 2: No último tratamento, porque ele fazia, portanto uma pulsão lombar em cada entrada,

em cada saída. E no último tratamento que ele fez, na última pulsão lombar que fez, veio um

resultado positivo com células neoplásicas, portanto, no sistema nervoso. E depois nós

ficamos, completamente…porque ele nunca tinha acusado nada. E eu assim: “Mas como é

que é possível, no último tratamento aparecer agora”. E então, depois a médica também que o

segue, disse: “Não é possível, há aqui qualquer coisa”. Então, chegou-se à conclusão que

deveria ter havido um engano em termos de frascos, na análise, e depois repetimos, e depois,

já não me lembro bem em termos temporais como é que foi, mas sei que repetimos quando

depois, pouco tempo depois de ele ter saído. Depois nós até inclusive, fomos de férias e

depois voltamos para repetir novamente. Pronto, e depois quando vieram os resultados

repetidos ficamos, mas, ai foi muito muito complicado, porque tinha corrido tudo muito bem

até ao fim, não tínhamos apanhado nenhum susto assim…

E1: Nada

Mãe 2: … que houvesse ali algum, portanto, algum retroceder da doença

E1: pois, pois

Mãe 2: e logo no último, quando ele estava pronto para a acabar, veio aquele resultado, foi, ai

foi foi tudo, pronto…

E1: E a família, como é que reagiu?

Mãe 2: A família foi, ai foi uma parte que eu hoje vendo de fora, que, é assim, às pessoas

mais próximas, por exemplo, eu já não tenho pai, a minha mãe, como vivia no Porto e era

uma pessoa doente, eu ocultei, não lhe disse.

E1: Hum hum

Mãe 2: Consegui gerir as coisas de maneira a nunca lhe dizer, nunca lhe disse. Depois, em

relação aqui à nossa família mais próxima, portanto aos meus sogros, eles foram

acompanhando e a minha madrinha, que é a pessoa mais próxima que eu também tenho. Eles

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nunca vieram cá porque nós dissemos que achávamos que não, não valia a pena porque se

calhar ainda tínhamos de gerir as emoções de uns e de outros, e então dissemos: “pelo tempo

que é, não vale a pena”. Pronto e depois como ele tinha muitos internamentos, muitos

isolamentos, não se justificava pronto e quisemos também poupá-los um bocado ao virem cá.

Em relação aos amigos, ai foi muito mais complicado porque os amigos afastaram-se muito.

Foi na altura que nós mais precisávamos é que foram-se afastando e depois e porque agora

não podemos e não tivemos ninguém a vir, que eu me lembre veio cá uma pessoa visitar-nos

neste período e isso a mim é daquelas coisas que eu até hoje não esqueço. Não…

E1: Então quer dizer que não só não houve apoio, como houve afastamento?

Mãe 2: Exatamente. Não sei se as pessoas estavam com medo que se pegasse, ou não sei…

E1: Tinham filhos?

Mãe 2: Sim, alguns sim. Alguns com filhos, outros não. Mas apesar também de serem assim

um grupo pequeno, pronto, mas nessa altura acho que o que haveria para, como se diz,

descambar, descambou naquela altura, depois eu própria depois também dizia é assim, pronto.

Quer dizer também não me preocupei naquela altura se vinha ou não vinham. Nós estávamos

cá os dois e era isso que interessava.

E1: Ou seja, foram vocês os dois que aguentaram tudo sozinhos?

Mãe 2:Sim, sim

E1: E não houve desgaste? Não houve…

Mãe 2: É assim, nós na altura tivemos, portanto, apoio psicológico marcado, só que depois

com estes pequenos, pronto, depois tínhamos a consulta marcada mas ele tinha que ir fazer

uma pulsão marcada, depois tínhamos a consulta marcada, tinha de ir pôr o cateter. Portanto,

isto foi tudo um processo muito preenchido porque depois ele também fazia os ciclos dele,

eram 7 semanas, 7 dias, com 24 horas, portanto e nós não queríamos sair de ao pé dele. Nós

não queríamos. E fomos adiando, agora não dá, e acabamos até por desmarcar e aguentámos.

E1: Mas quem é que marcou? Foram vocês?

Mãe 2: Foi o próprio serviço…

E1: Foi o próprio serviço

Mãe 2: …de pediatria

E1: Mas tinham sentido necessidade disso? Ou seja, teria sido bom?

Mãe 2: É assim, naquela altura, a mim não me fez, não, portanto não… Não ter, não ter tido

não me fez diferença mas vendo hoje as coisas, acho que se fosse hoje, preferia ter tido.

E1: Porque…

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Mãe 2: Não sei, talvez só para, sei lá, desabafar e dizer coisas que às vezes nós não dizemos a

mais ninguém, porque há muita coisa que nós falamos entre nós e com os médicos, mas que

não falamos com a família. Porque eu acho que as pessoas, é assim, por exemplo, eu tenho o

caso da minha cunhada que, também agora já não há proximidade, mas na altura se nós

falávamos alguma coisa – “Ah isso já passou, já passou”. Não nos davam a hipótese de

falar…

E1: O que sentiam…

Mãe 2: O que sentíamos… Pronto, e as pessoas têm essa… e se calhar nós antigamente

também se calhar fazíamos isso, que era: “pronto já passou, não vamos falar sobre isso”. E eu

agora penso as coisas um bocado ao contrário. Como vivi esta experiência, acho que é

importante falar quando as pessoas estão preparadas. Se as pessoas não estiverem e não

quiserem pronto…

E1: Claro

Mãe 2: … mas acho que é importante falar quando as pessoas estão preparadas…

E1: E pensando nessas emoções que se calhar gostaria de ter dito… Foram emoções de quê?

O que é que gostaria de ter falado com alguém?

Mãe 2: Eu… que eu…

E1: Há ai uma revolta, ansiedade, tristeza…?

Mãe 2: Seria talvez mais um conselho, se estaria a fazer as coisas bem

E1: Ah, sim

Mãe 2: Se, pronto, porque às vezes se calhar estaria a ser muito exigente com ele

E1: Estou a perceber

Mãe 2: Se nós estaríamos também se calhar, ou, tão focados nele, também se estaríamos a

ajudá-lo o estando tão focados nele, pronto às vezes essas pequenas coisas que depois com o

passar dos anos e também com a experiencia, nós vamos aprendendo.

E1: Ou seja, questões mais educativas de apoio dele, de parentalidade, de como é que é…

Mãe 2: Sim, sim… Porque eu gostei, nós uma altura, uma enfermeira, tinha fama de refilona,

que entretanto esqueci-me o nome, mas que depois eu gostei imenso dela, porque ela uma vez

disse-me assim: “Os meninos estão doentes e estão a ser tratados, mas nem por isso deixam

de ser educados, têm de deixar de ser educados”. E na altura disse: “controlo plenamente”.

Pronto e nunca me esqueci da própria enfermeira dizer porque depois lá está, as pessoas às

vezes, quando não estão dentro das situações, às vezes diziam: “Ah, coitadinho do menino!”.

Isso irritava-me imensamente, embora à vezes claro, olhasse para ele e me fizesse, me sentisse

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que se pudesse trocava, não é?! Como é lógico, mas sempre afastei isso e sempre tive essa

postura.

E1: Mas acha que gostaria de puder ter trocado impressões sobre isso e puder falar sobre

esses aspetos que não são tao médicos assim?

Mãe 2: Sim, sim, exatamente, sim, sim

E1: E há bocadinho estava-me a falar de vocês os dois, permanentemente a tentarem gerir

isto. Houve alguma, algum desgaste entre vocês?

Mãe 2: Não

E1: Casal. Não.

Mãe 2: …não, não.

E1: Conseguiram aguentar isso?

Mãe 2: Sim, conseguimos

E1: Nenhuma situação de stresse em que tenham sentido…?

Mãe 2: Não…

E1: Não.

Mãe 2: …talvez se calhar agora, depois de ter…(risos) …dos anos, com o passar dos anos se

calhar agora somos mais intolerantes em relação a algumas coisas, mas entre nós, pronto,

como nós decidimos as coisas sempre em conjunto e estávamos permanentemente os dois

com ele e era isso que nos interessava…

E1: Mas a mãe é que esteve aqui o tempo todo de internada com ele o tempo todo?

Mãe 2: Com ele, sim. E o meu marido vinha de manhã e ia embora à noite.

E1: E nunca saia do hospital?

Mãe 2: Eu? Acho que sai uma vez… para…

E1:Uma vez apenas

Mãe 2: Sim, às vezes íamos a casa, conseguíamos às vezes um fim-de-semana e pronto, às

vezes saíamos à sexta e voltávamos logo na segunda-feira. Pronto, então ai era muito bom.

Mas depois também há aquela, a sensação quando saia, ficava contente por ir para casa, mas

depois sentia-me um pouco desprotegida porque não tinha os médicos, as enfermeiras ao pé

de nós. E, pronto… Mas sabia que qualquer coisa que acontecesse, que era só ligar e

vínhamos a correr. Mas tinha essa sensação…

E1: Ia perguntar agora o que é que tinha ajudado a lidar com a situação? Há bocadinho

falava-me que pensou de uma forma positiva, que a evolução da doença ajudou

Mãe 2: Sim

E1: Que a disponibilidade dos médicos, a possibilidade de ter… de ser ajudada também

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Mãe 2: sim, sim, sim… E pronto, todo o cuidado que nos diziam, vai para casa, com todas as

recomendações e sempre a dizerem-me que, portanto, qualquer febre que ele tivesse, contactar

logo o hospital, pronto. Isso é, pronto…

E1: Muito bem. E agora, Vamos passar para ao momento de agora. Passaram 10 anos.

Mãe 2: 10 anos

E1: Neste momento o que é pensa da doença do seu filho? Acha que ela esta curada? Está

completamente controlada?

Mãe 2: É assim, acho que como mãe, nós temos sempre o receio que volte a acontecer não é?

Pronto, acho que nunca mais na vida ficarei totalmente sossegada não é? Portanto, quando nós

vimos cá às consultas, fico sempre muito mais, um bocadinho ansiosa, embora também já vá

controlando

E1: Vem de quanto em quanto tempo?

Mãe 2: Nós agora, na pediatria, de ano a ano. Também começamos a ver a endocrinologia de

6 em 6 meses.

E1: Pois, tem 13 anos

Mãe 2: Pronto, mas pronto no início ficava sempre muito nervosa. Pronto, agora já vou

relaxando…

E1: Mas há sempre aquela sombra…

Mãe 2: Mas há sempre uma sombra que eu acho que nos vai acompanhar até ao fim.

E1: Acha que a doença do seu filho é a coisa mais severa que já… é a doença mais severa ou

acha que é doença?

Mãe 2:Ai, acho que sim. Eu às vezes não digo, mas quando às vezes, oiço as pessoas, vao,

pronto, cada um sente as coisas à sua maneira e eu também as sentiria mas pronto, quando às

vezes oiço as pessoas falarem: “Ai, estou muito preocupada porque o meu filho tem isto”. Eu

às vezes ponho-me a pensar: “Então se as pessoas tivessem numa situação como à nossa,

como reagiriam não é?”. Mas pronto, acho que faz tudo parte.

E1: E em relação às causas? Pensa sobre isso?

Mãe 2:Penso, penso, penso muitas vezes o que é que terá despoletado esta situação e não…

pronto

E1: Como é que se responde?

Mãe 2: Não sei, não responde, não sei…

E1: O que é que lhe vem à cabeça quando pensa?

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Mãe 2: Porque lemos, por exemplo, naquelas coisas da internet, que isto é um… um

problema de quem vem de África, eu nasci em África, pergunto-me se terei sido eu a passar,

poderá ter sido um medicamento. Pronto, não…

E1: Alguma vez falou com o médico sobre isso?

Mãe 2: Nós falamos…Uma altura no início, nós perguntámos, mas depois como era uma

incógnita, nunca fizemos…

E1: Mas isso ficou… Estou a ver que a incógnita ficou sempre

Mãe 2: Sim, sim… ficou sempre, sempre. Não sei se existe uma resposta para a minha

dúvida, mas…

E1: Mas vive com ela…

Mãe 2: Sim, fico sempre com ela

E1: E em termos de consequências, que consequências é que acha que o cancro teve para o

seu filho, para vocês?

Mãe 2: É assim, para ele, penso que não muitas porque ele já nem se lembra. Agora tem mais

a noção porque vem cá às consultas, não é?! E depois na altura em que ele começou a fazer

perguntas, pronto, nós nunca escondemos, sempre, pronto. Porque quando ele até estava

internado, nós às vezes levávamos as coisas numa brincadeira, dizer que o xarope era de

chocolate e de morango e se ele fizesse mais, se o chichi, se ele enchesse o boião do chichi

mais rápido todo, ganhava um prémio, pronto fazíamos assim essas brincadeiras porque ele

era tão pequenino e não percebia não é? Mas fizemos assim, tivemos essa preocupação. Ah,

agora, pronto, a partir do momento em que ele começou a fazer perguntas nós sempre

respondemos muito naturalmente. Pronto, e falamos com ele muito naturalmente. Da primeira

vez que ele perguntou, nós viemos cá à consulta e eu disse: “Olha tiveste isto, depois

perguntas à Dr.ª”. E ele perguntou, a médica explicou o que ele tinha tido, o que tinha feito e

ele nunca fez assim grandes… aceitou, aceita, acho, pelo menos a nós não demonstra que

tenha ficado de alguma maneira traumatizado…

E1: Perturbado…

Mãe 2: Traumatizado sim, pronto

E1: E em termos físicos de funcionamento, de saúde, o que é que acha? Acha que houve

consequências?

Mãe 2: Em termos de saúde, pronto não sei, isto sou eu pronto a falar. Ele mudou um bocado

em termos de personalidade…

E1: Sim

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Mãe 2: Porque ele era uma criança completamente alegre e às vezes punha os médicos a

correrem lá no 7º piso, portanto, ele era sempre, completamente, muito ativo, e muito

simpático, e muito brincalhão. Depois com o crescer, ele começou-se a tornar mais

introvertido, pronto, agora…

E1: Mas acha que foi a doença?

Mãe 2: pois não sei… Penso que não. Não… Penso que tem mais a ver com ele. Agora em

termos físicos, eu não sei se às vezes…

E1: Mas pensa que a doença também interferiu ou pensa que mesmo que ele não tivesse a

doença, ele seria hoje mais introvertido?

Mãe 2: Ahhh… Não sei… Não. Penso que talvez ficasse na mesma

E1: Na mesma

Mãe 2: Acho que tem a ver… a única coisa pode é ter, não sei se o nível dos próprios

tratamentos que tenha de alguma maneira…

E1: Interferido

Mãe 2: …interferido no crescimento, que sabemos que sim. E depois tantas pulsões lombares

que também de alguma maneira, o sistema nervoso…

E1: …dele tenha sido alterado…

Mãe 2: …tenha ficado alterado e que por isso talvez, ele também é assim um bocadinho mais

E1: Mais vulnerável por causa disso, é isso que pensa?

Mãe 2: sim, talvez, penso que sim, que de alguma forma…

E1: E os miminhos que ele teve na altura, acha que também ajudava que ele ficasse um

bocadinho diferente?

Mãe 2: (risos)

E1: Ou não, ou acha que não?

Mãe 2: Não, eu acho que não. Pronto, eu acho que conseguimos, lá está, eu acho que com

essas conversas que íamos tendo às vezes, pontualmente, com os profissionais…

E1: Pois. Conseguiram manter…

Mãe 2: Conseguimos… pronto, quando era para dar miminhos, porque às vezes lembro-me

que, ele ainda hoje se lembra que, dormia, adormecia agarrado à minha mão, quer dizer ele

estava na cama em cima e eu deitada em baixo, com a mão assim, depois às vezes até dizia

“Oh T. eu tenho de tirar a mão porque já não aguento”. Pronto, eu acho que quando ele

precisava, estávamos lá para ele. Quando, pronto, quando ele também fazia asneiras, não

deixávamos de o castigar, de o reprender, porque, não deixávamos de o fazer por ele estar

doente.

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E1: Muito bem. E para vós, para a vossa vida?

Mãe 2: para a nossa vida, nós mudamos, pronto, depois tentamos mudar um bocado porque

tanto eu como o meu marido tínhamos, pronto, eu trabalhava em Lisboa e ele também mas

com horários difíceis, e depois deste processo quisemos estar mais perto dele. Como nós

moramos na Ericeira e estávamos os dois trabalhar em Lisboa, quisemos mudar isso e ficar

mais próximos do sítio onde ele estava, porque nos fazia na altura muita confusão, pronto ele

depois entretanto em Setembro, retomou a creche e fazia-nos muita confusão estarmos em

Lisboa e ele estar lá e nós não estarmos ao pé dele, e então mudamos a nossa vida profissional

toda. Agora estamos um bocado a sofrer, digamos assim, por isso, mas voltava a fazer

novamente

E1: A mesma coisa…

Mãe 2: Sim

E1: Ou seja a sua vida profissional mudou

Mãe 2: Fomos, portanto, tentamos arranjar, deixámos os trabalhos que tínhamos e tentamos

arranjar…

E1: E em termos de vida familiar? Mudou alguma coisa?

Mãe 2: Não, mantivemos.

E1: Nada. Nunca pensou ter um segundo filho?

Mãe 2: Temos

E1: Têm

Mãe 2: Temos, não foi planeada, mas temos

E1: Pronto, ou seja, não impediu, o seu primeiro ter tido cancro, não impediu…

Mãe 2: eu na queria…

E1: não?

Mãe 2: Já estava calejada, tinha medo, e pronto, porque também já tínhamos decidido à

partida que, eu, pessoalmente já não queria mais filhos. O meu marido sempre quis ter outro,

mas eu depois daquilo disse mesmo “não”, porque o medo que eu tinha sentido na altura era

que ele voltasse a ficar doente e depois ter 2 era complicado e sempre me debati por não ter,

mas depois…

E1: Engravidou

Mãe 2: Depois engravidei pronto… (risos)

E1: Quanto tempo depois?

Mãe 2: Portanto em 2008, foi 5 anos, ahh, 3, 4, 5, 6….Pois

E1: 5 anos

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Mãe 2: 2005, 3 anos depois

E1: E acha que a criança que veio, sofreu consequência por o irmão ter tido?

Mãe 2: Não, nada.

E1: Não há um tratamento preferencial pelos…

Mãe 2: Não, nada. Pronto, o que aprendi lá está, é porque tentei foi… Pronto, quando só o

tínhamos a ele, era tudo muito centrado nele, toda a nossa vida era só centrada nele. Quando

ela nasceu, comecei, ele também já estava noutra fase, já estava na escola, mas já tente não

cometer, não ser tão, não estar tao em cima dela como estive dele, pronto. Já, ela, fez as coisas

muito mais, às vezes saiamos e eu nem mudava a muda de roupa. Pronto, porque já estava tão

prática, ele já não precisava, depois voltar a fazer tudo, mas pronto, tentámos ser mais

ligeiros, digamos assim, com…

E1: Muito bem e para si? Mudou alguma coisa de si para si? Estava-me a dizer à bocadinho:

“Aprendi que se calhar não tem de se dar tantas, tantas opiniões quando o outro tem…”

Aprendeu qualquer coisa, aprendeu mais alguma coisa, houve alguma coisa que mudasse?

Mãe 2: Sim, aprendi, Acho que todas as experiências nós aprendemos.

E1: Mas aprendeu coisas positivas, ou coisas negativas? Ou…

Mãe 2: Não, aprendi, por exemplo, uma das coisas que também aprendi foi a respeitar os que

estavam comigo, para mim foi muito importante, portanto, às vezes dai eu também dizer que é

importante nós termos alguém com quem falar, porque às vezes os pais dos outros não são as

melhores pessoas para nós falarmos porque cada um está na sua, a viver o seu problema e

acho que se nós estamos muito pessimistas ou muito otimistas depois influencia também a

outra pessoa. Pronto e na altura quando nós tivemos cá, eu tentei sempre não falar muito sobre

a situação porque, como era uma situação que estava a correr bem e havia casos que estavam

a correr bem e que de repente correram mal, eu achava que no tinha o direito de estar contente

porque a minha situação estava a correr bem mas não me podia esquecer que o outro estava a

correr mal, portanto, tentei sempre respeitar e isso, que era, porque achava que seria mau da

minha parte se estivesse… “ah está tudo a acorrer tão bem, que bom”. Quando a pessoa do

lado está a sofrer mais que eus e calhar. Pronto, e aprendi isso e aprendi que, pronto, nestas

alturas é… aprendemos acho que a desvalorizar outras coisas menos importantes, mas que

fazem parte do nosso dia-a-dia, porque nós dizemos “Ah, não quero mais me preocupar com

isto”. Mas passado uns tempos essas preocupações voltam, Mas, pronto, acho que o pensar

nos outros para mim tornou-se muito, muito importante.

E1: e o que é que a ajudou nesta adaptação toda que teve à doença e a viver? O que é que

acha? Se pudesse dizer assim: “Olhe, o que me ajudou foi isto, isto e isto…”?

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Mãe 2: (risos) Não sei, não sei se a minha maneira de ser, não sei, sinceramente

E1: A sua maneira de ser

Mãe 2: Sim… porque foi difícil, foi muito difícil, mas eu acho que nós aprendemos e nós

conseguimos. Fomos buscar forças onde nós pensamos que elas não existem e…

E1: Pensou então que tinha uma força?

Mãe 2: Sim

E1: Como é que era essa força? Era uma força de pensamento?...

Mãe 2: O estar todos os dias presente, o estar todos os dias, portanto, em cima das coisas,

para mim foi fundamental. Pronto, porque por exemplo esta lei que existe que a partir dos 12

anos, que as crianças já não podem estar acompanhadas com os pais nos internamentos, para

mim é completamente desumano porque as crianças precisam…

E1: …e os pais também

Mãe 2: …e os pais também porque, podermos estar envolvidos…

E1: É fundamental

Mãe 2: Sim

E1: E agora? Neste processo todo de adaptação já depois de, enfim, já não estamos na

primeira fase, já estamos na fase de sobrevivência

Mãe 2: hum hum

E1: Acha que ainda hoje há alguma cosia que a preocupe e como é que faz para lidar com

isso?

Mãe 2: Agora já são coisas mais, pronto, o… O que me preocupará sempre é se ele voltará,

mas isso… a ter a doença mas não há resposta, não é?!

E1: Como é que faz então? Pensa: “Não vou pensar nisso”? Tenta não pensar?

Mãe 2: Sim, vou-me agarrando ao facto de como ele já passou esta etapa, pronto, que acredito

que ele já teve a dose dele e que já chega, pronto. E que, agora, as minhas preocupações com

ele são doutras… (risos) O futuro e os estudos e que ele seja uma pessoa correta, pronto…

E1: São preocupações de mãe de um rapaz de 13 anos?

Mãe 2: Exatamente

E1: Sim senhor… E consegue descrever… E hoje tem algum suporte? Hoje tem alguém que

vos ajude ou continuam a ser…?

Mãe 2:Não, continuamos a ser nós os 4 agora (risos)

E1: Agora são 4. Consegue descrever-me o seu filho? Como é que o descreveria?

Mãe 2: Ah, ele, é assim, acho que ele é uma criança, na altura, pronto, falando agora só pro

etapas… Pronto, ele era completamente eufórico, sempre foi uma criança muito alegre, muito

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brincalhão, não parava quieta, era cansativo que ele às vezes para dormir a sesta, adormecia

eu, quando dava conta, já ele estava não sei aonde. Pronto, sempre foi muito enérgico, tinha

uma energia para dar e vender

E1: E agora? Como é que…?

Mãe 2: e acho que isso foi um bom pilar para ele, acho que essa energia o ajudou, pronto na

altura, acho que o ajudou e deu-lhe força para isso. Hoje, vejo um bocado mais cabisbaixo,

mais, não com essa força e às vezes eu digo-lhe mesmo assim: ”Tens de voltar, queria-te ver

outra vez com a força que tinhas quando eras mais pequeno”. Mas pronto, como também está

na fase da adolescência…Pronto, nós estamos a aprender e a lidar e a…

E1: Então descreve-o como uma pessoa mais cabisbaixa, um bocadinho mais não é?!

Mãe 2: Agora nesta altura…

E1: E outras coisas? Que outras coisas evidencia?

Mãe 2: Mas com os colegas não. Depois com os colegas acho que é brincalhão, refilão

também, acho que é…

E1: Brincalhão… Refilão

Mãe 2: Refilão

E1: Um bocadinho parado, um bocadinho triste…

Mãe 2: Sim, mas e… mas acho que tem um bom coração…

E1: Acha que tem bom coração

Mãe 2: Sim, sim e acho que tem as ideias, embora ele às vezes, não nos diga isso, mas eu

acho que ele tem, em relação a algumas coisas, as ideias bem definidas.

E1: O que é que lhe tenta ensinar, por último? O que é que lhe tenta ensinar?

Mãe 2: É assim, o que eu lhe digo, para mim, o mais importante é que ele, pronto, seja

correto, e seja educado e que tente chegar o mais longe que possa. São os conselhos e que

batalho todos os dias por isso…

E1: Acha que a doença pode ter perturbado esse, o sítio onde ele quer chegar?

Mãe 2: Humm..não sei, eu… É assim, porque ele sempre gostou muito da escola, sempre

gostou imenso e agora, como temos estado com a Dr.ª Inês, vejo um bocado a perder esse

gosto. E pronto, isso a mim entristece-me muito, ainda pro cima sabendo eu ele tem imensas

capacidades, porque não sou só eu como mãe que digo, mas os professores. E pronto, e tenho

algumas queixas dele da escola, pronto e o meu medo maior é que ele se perca por aqui,

porque… não queira…

E1: Acha que isso pode ter sido, mais uma vez, dos tratamentos? Pode ter tido alguma

coisa…?

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Mãe 2: Não sei porque é assim, ele, pronto, como…quando acabou, depois fez a creche, a

escola…

E1: Tudo normal

Mãe 2: Tudo normal, sempre com boas notas… Agora é que de há 1 ano para cá tem estado

assim, pronto, pode ter a ver com a fase em que ele está, também com as dúvidas que ele

também certamente terá…Pronto e talvez a pressão que nós agora também pomos um bocado

neles, que é sempre, temos que trabalhar porque estás a ver como é que as coisas estão, não há

empregos, não há nada… As situações estão difíceis e pronto…

E1: Tudo junto

Mãe 2: tudo junto, pronto. Mas gostava que ele não se perdesse (risos)

E1: Muitíssimo obrigada!

Mãe 2: De nada.

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CASAL 02 – PAI

CRIANÇA SOBREIVENTE – T.

E1: Obrigada!

E2: Obrigada!

Pai 2: De nada

E1: Bom, pedia-lhe então que voltasse um bocadinho, àquela fase terrível de há 10 anos atrás

Pai 2: 10 anos atrás

E1: 10 anos atrás e quando pensa nessa fase, na fase em que o seu filho foi diagnosticado, o

que é que vem à cabeça imediatamente? Quais são as primeiras imagens? O que é que pensa?

O que é que é assim para si…

Pai 2: Foi um choque, um choque muito grande. Porque, pronto, eu não tive conhecimento da

situação porque estava a trabalhar e tive que saber pelo telefone, pela minha mulher e pronto,

e logo nessa altura foi…desabou tudo, ficou tudo, não sei, parecia que estava noutro mundo,

noutra realidade, não estava a acreditar em nada, não… Pronto, foi, foi um choque muito

grande, foi uma coisa que nunca tinha, nunca tinha experienciado, nunca…Porque felizmente

sempre tive uma, um crescimento sempre, a minha família nunca teve muitos problemas deste

tipo e pronto, e não estava à espera, não…

E1: Lembra-se o que é que pensou?

Pai 2: A primeira coisa que pensei foi logo que podia perder o meu filho, pronto. Ele era

muito pequenino, tinha 3 anos e um filho para mim, no meu caso particular, sempre foi uma

coisa que eu sempre desejei, sempre quis ter filhos e adorava, e adorava e adoro como é

logico, não é?! O meu filho. E não naquela altura foi logo o que pensei: “Olha vou ficar… um

trauma enorme”. Pronto, foi o que pensei na altura…

E1: Chegou a pensar “Eu vou perder o meu filho”. Isto é o princípio do fim da…

Pai 2: Sim, sim, sim, sim. Da minha felicidade e de…

E1: “O fim da minha felicidade!”

Pai 2: Sim, sim.

E1: Está-me a dizer que foi uma coisa muito repentina, não tinha pensado até ai…

Pai 2: Não!

E1: …que pudesse acontecer uma coisa destas

Pai 2: Não, não.

E1: Nem com os sinas que o… nada?

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Pai 2: Não, não. Ele tinha, pronto, o sinal que ele tinha era só um inchaço e sempre pensei

que aquilo, pronto, fosse uma coisa que passasse. Não pensei que fosse uma coisa má e

terrível. Nunca pensei nisso.

E1: Hum hum. Lembra-se como é que isto foi vivido pela sua mulher?

Pai 2: Anhm… Também, também foi muito duro para ela…

E1: Foi um choque

Pai 2: Foi, foi.

E1: O que é que fez naquela altura? Soube e fez o quê? Ficou parado…?

Pai 2: Fiquei parado, pronto, começaram-me a correr, pronto, eu lembro-me que estava no

meu escritório, estava com um colega meu ao pé, atendi o telefone. Porque ele tinha vindo

fazer as análises, a biopsia e lembro-me que estava, e ouvi a notícia e pronto, só me lembro de

me sentar e parece, lá esta, parece que tudo ficou muito escuro e muito…pronto e foi uma

sensação… enfim

E1: E depois foi para casa?

Pai 2: Depois fui para casa, depois fui para casa. Um colega, pronto, tinha carro nessa altura,

um colega meu foi-me levar a casa e pronto, e fui para casa e quando cheguei ao pé da minha

mulher, pronto, foi um desabar, pronto, tudo.

E1: Vieram a seguir para o hospital, vieram pouco tempo depois?

Pai 2: Sim, foi… Já não me recordo se foi nesse dia, se foi no dia a seguir. Não, foi no dia a

seguir. Na noite não dormi nada…

E1: Claro, claro. E nessa altura como é que foi o acolhimento cá? Lembra-se? Houve alguma

coisa que correu bem ou alguma coisa que corresse menos bem?

Pai 2: Não. Não. Correu tudo espetacular. Sim, sim.

E1: Veio, foi informado do que é que se passava…

Pai 2: Sim

E1: E o pequenino ficou internado

Pai 2: Ficou internado logo nesse dia.

E1: Hum hum. Desse período, ele vai ser internado, vai ser internado depois durante algum

tempo…

Pai 2: hum hum

E1: …grande, não é?

Pai 2: Sim, esteve… normalmente estava sempre uma semana a receber tratamento e depois

dependendo da reação do organismo é que…

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E1: E dessa altura o que é que se lembra de ter sido pior? E o que é que se lembra de ter sido

menos mal?

Pai 2: Em relação…

E1: Em relação à vivência que teve nesse período

Pai 2: O pior era o sofrimento dele, às vezes em sofrimento, que havia alturas em que pronto,

o efeito da quimioterapia causava mal-estar, principalmente queimaduras na boca e eu

lembro-me, pronto, da aflição, porque ele não conseguia comer, era uma aflição para ele, para

ele comer, que pronto, agente estava e queria que ele melhorasse e queria era que ele ficasse

bem depressa, então, o ele, o querer que ele pudesse comer e que ele estivesse… recuperasse

bem, isso foi das coisas piores, foi das coisas piores…

E1: E o que é que fazia para não se sentir tao mal? Lembra-se?

Pai 2: Acho que tentava-me abstrair um bocadinho, tentava passar um bocado de calma para

ele e para a minha mulher, também, que ela também vivia muito, pronto, com muita

dificuldade, porque ela também passava, ficava cá com ela. E eu ia a casa e vinha, mas

quando chegava cá, tentava fazer com que as coisas parecessem um bocadinho menos más.

E1: Ou seja, explique.me, isso é importante. Tentava que as coisas parecessem menos más,

ou seja, tentava passar-lhes uma ideia positiva, mais positiva…

Pai 2: Sim sim… na altura…

E1: E como é que fazia isso de si para si?

Pai 2: De mim para mim não sei (risos) se quer que lhe diga ia buscar forças não sei a onde.

Mas a ideia que tinha era que quando chegava aqui, parecia que ficava outra pessoa, parecia

que tinha noção do problema e do sítio onde estava

E1: Mas ficava melhor? Sentia-se mais capaz?

Pai 2: Sentia-me… sim. Sentia-me com forças para dar mais forças. Lembro-me que deram

ao meu filho um livro de… do circo e tinha umas bolas para fazer malabarismo e nessa altura

aprendia a fazer malabarismo para ele (risos). E era uma maneira se calhar de, de eu também

me abstrair da situação, mas também dar força a eles, para eles também escaparem um

bocadinho àquilo tudo.

E1: Diga-me, o que em está a dizer então, é que o seu envolvimento não ajudava só a eles,

mas que o ajudava a si próprio.

Pai 2: Sim, eu acho que sim…

E1: Sentia que era mais difícil durante o dia, era isso? Era mais complicado quando tinha de

estra afastado?

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Pai 2: Sim, sim… sim. Quando vinha para cá, e quando ia, e quando ficava em casa a noite

inteira…

E1: Ficava sozinho?

Pai 2: Sim, ficava sozinho

E1: Lembra-se o que é que pensava nessa altura?

Pai 2: Pensava que queria estar ao pé deles e que pronto. E muitas vezes desejava que nada,

que nada disto se tivesse passado, e tivesse acontecido, principalmente com ele.

E1: Está-me a dizer que desejava… Sentia-se revoltado com isso? Fazia perguntas? Dizia:

“Porquê o meu filho?”

Pai 2: Sim, “porquê o meu filho”, “porquê ele?”, “porque não eu?,” “porquê uma criança,

porque uma criança com 3 anos que não tinha feito mal a ninguém, não tinha nada…” Pronto,

porque até à altura, até essa altura nunca tinha pensado nisso, nunca tinha pensado porque é

que uma criança tinha de te rum problema assim e sofrer aquilo que ele sofria…

E1: E como é que se respondia a isso?

Pai 2: Não sei…

E1: Ficava só com isso, ficava só com a questão da revolta? Só com isso?

Pai 2: ficava… ficava com isso

E1: Só com isso… Nesses momentos, nesses tempos, nesses primeiros tempos, estava a dizer

que se sentia bem quando vinha para cá… e sem ser essas situações? Viveu outras situações

me que se sentisse menos mal?

Pai 2: Nessa altura… acho que não. Acho que não

E1: Era só mesmo quando vinha que as coisas melhoravam?

Pai 2: Sim, sim…

E1: Sim senhor e o que é que acha que houve que possa ter acontecido, que possa ainda ter

piorado mais a situação, ou seja, o que é que considera que foram assim os momentos piores

dessa fase? Lembra-se de alguns?

Pai 2: Não. Era só mesmo… Era, não sei, era mesmo só isso. A aflição dele…

E1: O sofrimento dele… Era? E dela, e da sua mulher, não é?!

Pai 2: E dela, e da minha mulher, sim. Pronto, há muita cosia que se calhar já guardei lá

muito no fundo, mas não sei. Eu lembro-me, porque eu tive de o levar, quando ele foi, ele

teve de pôr um cateter e tive de o acompanhar, mesmo, mesmo a primeira vez, quando ele

teve de fazer os exames, eu levei-o ao bloco para lhe fazerem uns exames, pronto. E há um

momento que eu me lembro que lhe deram a anestesia, ele estava ao meu colo, pronto, era a

primeira vez que ia ser anestesiado, e deram-lhe a anestesia e ele estava bem, estava-se a

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mexer e de um momento para o outro, ficou… Pronto, foi uma sensação, pronto, perdi o meu

filho, pronto é uma sensação…

E1: Horrível…foi daqueles momentos duros?

Pai 2:Foi, foi, foi…

E1: E como é que reagiu a sua família?

Pai 2: Ah…foi muito duro para eles também. O meu pai também, principalmente… A minha

mãe não é uma pessoa que exteriorize muito os sentimentos, mas o meu pai, pronto, é uma

pessoa que parece-me, é muito sensível também, e na altura custou-lhe muito também, custo-

lhe muito. Ficou desorientado, ficou… Teve 1 dia ou 2 que não saia da cama, também foi

muito duro…

E1: Nessa primeira fase, quem é que foi a vossa rede de suporte? Quem é que vos ajudou?

Houve alguém? Famílias, amigos…?

Pai 2: Acho que não foi, não me recordo de…

E1: De ninguém…

Pai 2: Não…

E1: Foram só vocês os dois?

Pai 2: Sim. Na altura, pronto, tínhamos alguns amigos e parece que nessa altura que as

pessoas todas se afastaram. Agente comunicou a algumas pessoas que falavam connosco,

tínhamos amigos e tínhamos família, eu tinha primos e parecia que, cada pessoa que agente

comunicava que as pessoas começaram a afastar mais e não sei, é a ideia que, pronto. E hoje

estamos praticamente, somos nós os 4.

E1: Ou seja, então viveram muito intensamente vocês os 2?

Pai 2: Sim

E1: Acha que siso teve consequências para vocês? Para a vossa relação e para a vossa vida?

Pai 2: Consequências positivas!

E1: Positivas…podem ser positivas ou negativas

Pai 2: Positivas!

E1: Positivas

Pai 2: Sim

E1: Pode-me referir algumas?

Pai 2: pronto, não consigo bem explicar mas acho que nos uniu mais, principalmente na luta

pela saúde dos nossos filhos e um pelo outro também. Acho que nos apoiamos muito um ao

outro.

E1: Apoiaram-se… Explique-me um bocadinho o que é que é apoiaram-se?

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Pai 2: Ah… Falávamos muito

E1: Falavam

Pai 2: Falávamos muito… quando, quando tínhamos a possibilidade, porque nem sempre

tínhamos, estávamos muito tempo com ele quando ele estava internado. Mas quando não

estava, quando estávamos só os 2 falávamos muito um com o outro.

E1: Falavam como? Tentando desabafar?...

Pai 2: Desabafar, tentando ajudar…

E1: Desabafar…

Pai 2: Desabafar sim, chorar porque quando estávamos com ele não podíamos chorar, não

podíamos liberta-nos, pronto, tínhamos de estar a fazer, em pose… E quando nós estávamos

com ele, quando estávamos só os dois desabafávamos um com o outro

E1: E isso tudo é importante? Sentiu isso como importante?

Pai 2: Sim, sim

E1: Té mesmo para reagir à doença, adaptar, foi importante isso?

Pai 2: Sim, sim…

E1: E que outras coisas foram importantes para reagir melhor à doença? O que é que o ajudou

a adaptar-se?

Pai 2: Não sei…

E1: A evolução dele, por exemplo…

Pai 2: A evolução sim

E1: Ele ter melhorado, acha que…?

Pai 2: Sim, sim, sim

E1: A reação dele a vocês quererem brincar com ele, acha que isto também ajudou, ou seja,

sentir que ele não estava assim tão...

Pai 2: Sim, sim, sim muito. Porque ele era uma criança. Pronto, ele hoje em dia está diferente,

mas na altura era uma criança que tinha muita vida, tinha muita força de viver mesmo. E isso

também ajudou.

E1: Ajudou

Pai 2: hum hum

E1: E o que é que dificultou?

Pai 2: E o que é que dificultou? (risos)

E1: Se houve alguma coisa… Estarem sozinhos, não terem tido apoio…

Pai 2: Sim, Sim, embora na altura… Nós, ou pelo menos eu, não senti isso. Não. Talvez

tenha, tenha criado uma capa qualquer em que me fez superar tudo e não ter precisado de

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ninguém, até porque, pronto, quando chegámos também nos ofereceram apoio psicológico,

aqui do próprio hospital e nós na altura não precisámos…

E1: Na altura…

Pai 2: Sim

E1: E hoje quando pensa na altura, acha que…?

Pai 2: Sim, certas alturas penso. Penso que se tivéssemos tido algum apoio, hoje em dia…

não é porque… sinto-me uma pessoa forte e acho que isto me tornou muito forte, mas acho

que podia ter encarado, hoje-em-dia certas situações podia encarar de outra maneira se nessa

altura tivesse tido apoio…

E1: Porquê? O que é que esse apoio lhe podia ter trazido?

Pai 2: Não sei. É o apoio de uma outra pessoa que tivesse feito, não sei, ver as coisas de outra

maneira,..

E1: Falar as coisas se calhar

Pai 2: Sim, sim…

E1: Algumas dúvidas que pode ter tido na altura, se calhar…

Pai 2: Sim, sim… Na altura não consegui verem explicadas e pronto…

E1: Lembra-se de uma? Que pode dizer assim: “se calhar na altura deveria ter tido apoio por

causa disto ou deveria ter perguntado isto…” Sei lá, coisas educativas, como apoiar o seu

filho, coisas deste estilo…

Pai 2: Não, era a parte do conforto, era só mesmo do conforto…

E1: Do conforto, poder falar, poder deitar cá para fora, poder falar… Era isso que tinha sido

para si…

Pai 2: Sim, eu acho que sim…

E1: Naquela altura achou que não queria mexer mais?

Pai 2: Não, achei que estava bem assim e que tinha força para aguentar tudo

E1: Pois, sim senhor. E hoje? O que é que pensa da doença do seu filho?

Pai 2: Não sei, muitas vezes falo disso com a minha mulher, hoje não sei como é que

conseguiria reagir, se iria conseguir reagir da mesma maneira, se seria ter a mesma

força…Porque na altura tudo correu, pronto e tinha força para ir daqui fazer 50km, aguentar

uma noite inteira sozinho e vir para aqui, estar aqui, porque vinha muito cedo, acordava, nem

me lembro se dormia se não dormia, e aguentei isso tudo e hoje-em-dia, não sei se ia ter a

mesma capacidade e força.

E1: Mas acha que a doença do seu filho está controlada? Acha que curou? Acha que não vai

haver mais?

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Pai 2: Sim

E1: Sente isso ou pensa isso ou quer pensar isso?

Pai 2: Quero pensar e já na altura também queria pensar isso, infelizmente não foi como eu

pensei e hoje em dia às vezes tenho esse medo…

E1: Infelizmente não foi como pensou?

Pai 2: Não, porque eu nunca pensei que fosse uma coisa…

E1: Cancerígena

Pai 2: Cancerígena, sim

E1: Mas agora acha que as coisas estão controladas?

Pai 2: Acho que sim.

E1: Hum hum. E as consequências? Acha que houve consequências para o seu filho? Estamos

agora a pensar no momento de agora, pensando tudo o que aconteceu até hoje. Acha que a

doença teve consequências, ou para ele, ou para vocês?

Pai 2: Sim. Para nós teve. Para nós marcou-me, marcou pelo menos para mim marcou-me

muito, pela positiva porque acho que me tornou uma pessoa mais forte e também pela

negativa por toda a tristeza e por tudo o que vivi na altura, que, vivi tudo à volta, pronto.

E1: Mas acha que esta tristeza fez de si uma pessoa mais triste?

Pai 2: Sim

E1: Mais preocupada

Pai 2: Sim

E1: Sim? Ou seja ficou aqui qualquer coisa…

Pai 2: sim, sim sim…

E1: Foi uma marca digamos?

Pai 2: foi uma marca foi. Lembro-me na altura… Pronto, eu também tinha uma profissão que

me permitia ver a vida de uma forma muito, muito leve e muito ligeira e tudo… E a tristeza e

a desgraça passava tudo assim um bocado, um bocado ao lado. E isso foi mesmo um murro na

mesa e disse assim: “A vida não é…”

E1: “…não é isso”

Pai 2: “…não é isso”

E1: Em termos de vida profissional? Também alterou?

Pai 2: Alterou, foi uma conjugação, penso que foi tudo. Pronto, também foi numa altura que o

país também deu uma volta, foi em 2005, pronto. Também começou a haver uma certa

dificuldade, na empresa. Tinha uma certa dificuldade mas foi sobretudo querer ficar mais

perto do meu filho. Porque tinha uma vida que passava uma semana inteira fora e só vinha a

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casa ao fim-de-semana. E na altura também pensei: “Não, não quero isso, quero estar mais

perto dele”. Tinha que vir várias vezes, mês a mês e depois começou a espaçar mas queria

estar mais perto dele. Na altura sentia que, se lhe acontecesse alguma coisa, não estava…

E1: Pois… tão perto

Pai 2: … tão perto

E1: Estou a perceber. Teve então consequências para si, teve consequências pessoais,

profissionais e para a sua família? Para a sua mulher, para o seu filho? Acha que houve

consequências?

Pai 2: profissionais?

E1: Ou pessoais

Pai 2: Pessoais… Sim, acho que a minha mulher também se tornou uma pessoa mais triste,

mais amargurada. O meu filho não sei, não sei… Na sei se foi a doença que o tornou uma

pessoa… Não sei, porque ele na altura, eu acho que ele viveu isto, ele era pequenino, pronto,

tinha uma vida, era diferente, acho que ele não viveu isto com a mesma intensidade que n´so

vivemos…

E1: hum hum

Pai 2: Acho que não o transferiu assim, acho que não.

E1: Portanto acha que aquilo que o seu filho é hoje, não tem nada a ver?

Pai 2: Não, penso que não, pronto, embora ele venha cá, tem de vir todos os anos, pronto, é

diferente da maior parte dos amigos dele que não têm nada disso, não têm de fazer análises

todos os anos, não têm nada disso, mas acho que isso não…

E1: Acha que isso não tem consequências para a maneira de ele ser? Ou para a maneira de…

Pai 2: Acho que não…

E1: Que não. E em termos cognitivos acha que ele funciona bem?

Pai 2: Sim, sim, sim…

E1: …E também não teve nenhum problema?

Pai 2: Não, não, acho que isso não.

E1: E para a sua filha?

Pai 2: A minha filha também acho, acho que não. Ela também é pequenina ainda, acho que

não percebe bem. Acho que ainda não percebe bem aquilo que o irmão passou e também

não…

E1: Vocês falam pouco em casa ou às vezes fala-se daquilo que se passou?

Pai 2: Fala-se, fala-se… Ela sabe que ele teve uma doença, que teve no hospital, mas acho

que não tem bem a consciência do que… do que foi. Pronto.

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E1: Hum hum. Mas vocês costumam falar sobre isso em casa? É normal falar?

Pai 2: Abertamente, sim, sim.

E1: Por exemplo uma semana, numa semana, no espaço de uma semana quantas vezes falam

sobre a doença?

Pai 2: Ah, numa semana se calhar não.

E1: Não! Num mês?

Pai 2: Num mês se calhar somos capazes de falar 1 vez 2 vezes.

E1: De que estilo é essa conversa? É dizer: “Quando estiveste no hospital” ou “tem cuidado

não faças isso porque podes ficar doente”… Ou…

Pai 2: Não, é mais que estiveste no hospital e pronto.

E1: Mais coisas deste estilo

Pai 2: Sim, sim

E1: Quando vem, não é nada de dizer: “Tens de ter mais cuidado, tu ainda vais parar ao

hospital outra vez”

Pai 2: Não, isso não

E1: E causas? Pensa sobre isso? O que é que terá causado esta doença?

Pai 2: Sim, sim… Eu pronto, como lá está, eu como nunca, nunca pensei que fosse uma cosia

má, talvez na altura, na altura e agora, não penso que tenha sido isto ou aquilo que causou…

Não, não. Surgiu porque…

E1: Porque surgiu…

Pai 2: porque surgiu… acho eu (risos)

E1: Sim senhor. Muito bem. E o que é que hoje o ajuda a viver melhor com a doença? O que

é que acha que…?

Pai 2: É vê-lo bem

E1: “Vê-lo bem”

Pai 2: É vê-lo com saúde e a crescer…

E1: É aquilo que faz com que…

Pai 2: sim

E1: … quando se sente mais preocupado pensa: “Ele está bem,…”

Pai 2: Sim

E1: É esta comparação positiva dele – ele esteve tao mal e agora está tao bem

Pai 2: Sim

E1: Sim senhor. E como é que descreveria o seu filho?

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Pai 2: (risos) Agora está a passar uma fase da adolescência, mas acho que ele é uma criança

muito inteligente, é uma criança que tem uma capacidade muito, muito grande. Acho que em

relação a outras crianças tem uma capacidade acima da média da apreensão, de compreensão.

E é um bocadinho…fechado.

E1: Hum hum

Pai 2: Não sei se derivado agora à adolescência, não sei mas é muito…

E1: Introvertido

Pai 2: Introvertido, introvertido…

E1: Mas acha que é da adolescência, não é da doença, não é do tratamento…

Pai 2: Não, isso acho que não…

E1: Acha que é de uma fase da adolescência…

Pai 2: Acho que sim

E1: Sim senhor. O que sente que ele se modificou um bocadinho nos últimos tempos?

Pai 2: Sim, nos últimos tempos. Nos últimos 2 anos, 3 anos e acho que é essa fase, penso eu.

E1: hum hum

E2: E em que contexto é que ele manifesta essa introversão? Em casa, na escola, onde é que

viu?

Pai 2: Ahh… Com os outros, na relação com os outros.

E2: mesmo com os amigos?

Pai 2: Sim, mesmo com os amigos. Agora, não consigo saber na escola, mas pronto, às vezes

encontra um amigo na rua, pronto, e vejo que os outros falam, são mais extrovertidos, são

mais abertos e ele não é…É uma criança assim mais fechada, mais contida, parece-me (risos)

E1: Só uma pergunta que eu esqueci-me atrás. Nessa primeira fase, no internamento, teve

necessidade de alguma coisa? Se pudesse dizer assim aos profissionais de saúde: “Olhe vocês

deviam ter pensado nisto e não pensaram”…

Pai 2: Não

E1: Não

Pai 2: Não, não, acho que…

E1: Sentiu que ia tendo a informação toda que precisava

Pai 2: sim

E1: Achou que devia ter tido mais informação?

Pai 2: Não, não… acho que foi tudo…foi tudo explicado…

E1: E hoje? Sente isso?

Pai 2: Não, também não.

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E1: Não.

Pai 2: eu acho que foi tudo…

E1: E achou que tinham sido muito exigentes, que tinham exigido muito de si enquanto ele

teve internado, em termos de perceber a informação que estava a ser dada, ou a envolver-se,

ou a tomar decisões… sentiu isso ou não?

Pai 2: Não, não…

E1: Também não. Ou seja, sentiu-se acolhido, sentiu-se cuidado, sentiu-se confortável!

Pai 2: Confortável! Sim.

E1: Uma situação de conforto.

Pai 2: Sim

E1: Sim senhor. Muitíssimo obrigada. Inês, mais alguma coisa?

E2: Acho que não, acho que não.

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CASAL 03 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – C.

E2: Então queria começar por agradecer a participação. E queria agora, pedia-lhe para recuar

Mãe 3: hum hum

E2: …à fase de diagnóstico, que foi, exatamente à quanto tempo?

Mãe 3: Foi em 99, portanto já foi, 99, 2009, quase à 20, quer dizer não foi há 20 anos,

estamos em 2015. Portanto ela tinha 9 meses, agora tem 15 anos sensivelmente

E2: E o diagnóstico na altura foi…

Mãe 3: Uma leucemia linfoblástica aguda

E2: E portanto, pedia-lhe que realmente recuasse a este tempo e perguntava-lhe, quais é que

são as imagens e as experiências que mais rapidamente lhe vêm à cabeça?

Mãe 3: Ahh… Bem, as imagens e as experiências. As imagens, a primeira, muita ansiedade,

muito nervosismo, muito medo, muita angústia. A primeira ideia que, a primeira… o

diagnóstico, o pré-diagnóstico foi feito no Hospital de Santa Maria, porque foi por lá que ela

entrou. Na altura não tínhamos ideia de qual era a doença. Podia ser qualquer coisa, podia ser

uma leucemia, podia ser um mieloma, como podia ser uma…um….

E2: Um linfoma

Mãe 3: Um linfoma sim e pronto, e a ideia seria vir para o IPO para fazer novos exames. E a

primeira ideia que eu tenho é: “IPO? Que horror!”. Oncologia, cancro, sempre tive pânico um

bocadinho deste espaço. Eu circulava aqui quando era nova, quando ia para a escola e IPO ser

assim, tinha uma carga negativa, muito negativa. Foi a primeira ideia, foi, nunca tive, tive

sempre a ideia de sofrimento, nunca tive ideia de morte. Que é que eu posso dizer mais de

ideias que me assoaram no momento?! Acho que muito medo, angústia,

E1: Medo de…

Mãe 3: Do sofrimento, do que é que ia acontecer… O que é que ia acontecer, basicamente.

Como é que eu poderia estar, como é que eu poderia ajudar a minha filha, como é que eu

poderia ajudar a minha família… Se calhar morte, se calhar morte estava lá por trás, apesar de

eu nunca aceitar, sempre achar que não, mas se calhar sim, já que me pergunta…

E1: Angústia… angústia

Mãe 3: Angustia muita angústia, muita ansiedade

E1: Ansiedade, relaciona isso com…

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Mãe 3: Minha ansiedade, não sei explicar, mal-estar, não estar bem, chorar muito, nos

primeiros momentos, muitas taquicardias, basicamente é o que eu me recordo, mas ao mesmo

tempo recordo-me de uma vontade enorme, sobretudo aqui no IPO, de lutar (emociona-se)

E1: Ao mesmo tempo. Muito bem… Não é muito normal acontecer, as coisas ao mesmo

tempo…

Mãe 3: Sim, eu sempre… Há uma coisa que me marcou, que foi uma conversa que eu tive

com o médico dela que ele disse-me assim olhos nos olhos… (emociona-se) que ela

eventualmente poderia morrer, portanto era um cenário que os tratamentos eram muito

intensos, ela tinha 9 meses era muito novinha e que podia morrer (emociona-se) e eu lembro-

me perfeitamente de olhar-lhe nos olhos e dizer: “ela não vai morrer!”. Ai que horror, peço

desculpa…

E1: Não… Nós é que pedimos desculpa…

E2: Sinta-se à vontade

Mãe 3: Que horror, desculpem!

E1: Não, nós é que pedimos desculpa por estar a perturbar

Mãe 3: Pronto ao mesmo tempo foi isso, é a sensação de que, ela não vai morrer, é nos a

explicar porquê, sempre tive essa ideia, sempre houve qualquer coisa aqui dentro de mim que

me dizia, ela não vai morrer, ela vai sobreviver. Inclusive, o ultimo internamento dela, ela fez

os tratamentos todos muito certinhos e correr bem, o último internamento dela não sei

explicar porquê, nem como mas eu sai do IPO a dizer: “Ela nunca mais vai ficar aqui

internada, saiu lá de cima, foi o último tratamento, é o último internamento”. E foi a

convicção que eu, como mãe, sentia e não sabia explicar de onde é que vinha e graças a Deus

foi um bom pressentimento, não é?! Agora recuando os sentimentos, aquilo que eu tive de

facto foi, resumindo, ansiedade, angústia, medo…

E2: Ao mesmo tempo um sentimento de esperança?

Mãe 3: Sim e muita união

E1: União

Mãe 3: União de família, muito, muito, muito…

E1: Mas vieram todos em vosso auxílio, foi isso?

Mãe 3: Sim, a minha família e a do meu marido sempre muito presente e sentimos em todo o

processo, desde início senti isso, mas em todo o processo ela vinha, inclusive as enfermeiras

comentavam isso. Ela vinha rodeada com a família toda. É engraçado, nós vínhamos para o

hospital, vinha a minha mãe, vinha o meu pai, os meus sogros não tanto como poderiam

porque são pessoas que na altura eram doentes, neste momento já não estão entre nós. Mas ela

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sempre muito acompanhada, sempre e eu senti que esse elemento da família foi-me muito

muito importante em todos os momentos. Em todos os momentos, sim.

E1: Digamos que foi uma coisa que ajudou, ajudou muito?

Mãe 3: A nossa ligação de família sim. Não nos afastou, pelo contrário, ligou-nos muito.

Inclusive, isto é uma coisa que não devia acontecer, mas acontece e ainda hoje sentimos isso

como casal e como família. Nós passámos a viver os 3 muito depois, em casa, quando não

estavam os meus pais ou os meus sogros, os três muito intensamente e isso passa por:

dormíamos em conjunto, a C. dormiu connosco até os 5 anos, 5/6 anos. E as pessoas diziam

“ah, esta na altura”. Porque ela, ela seguiu o percurso normal, portanto, quando nasceu teve os

primeiros tempos no bercinho ao nosso lado, aos 3 meses foi para a caminha dela, no quarto

dela, mudamos de casa, o quarto era mais longe mas ela ficou no quarto dela. Ela adoece e a

partir desse momento não existia quarto da C. nem quarto dos pais, era o quarto de todos. E

deixamos de fazer programas, tenho amigos nossos que nos dizem “Ah, vocês não fazem nada

sozinhos”. Passámos a fazer férias, nunca tiramos férias como casal, nem tenho necessidade.

Há pessoas que dizem: “Ah mas isso faz mal, isso afecta-vos!”. Não! Nós criamos ali um

núcleo duro, de pais da C. e da C. muito firme e muito forte. Isso uniu-nos muito.

E1: foi uma consequência da doença quase?

Mãe 3: Eu acho que sim, eu acho que sim

E1: E só vê coisas positivas nisso, não viu nada

Mãe 3: A doença dela?

E1: Em relação a essa união vossa, não vê nada negativo? Ou de mais pesado, ou de mais…?

Mãe 3: Se calhar deixamos de fazer coisas que poderíamos ter feito, eventualmente, os dois e

podíamos ter gozado os dois como casal mais. Mas não é uma coisa que, que eu tenha, que

olhe para trás e diga: “ai que pena, não fiz isto”. Porque aquilo que eu queria mesmo era

estarmos todos juntos, que ela tivesse connosco e que sobrevivesse e que tivesse bem.

E1: Vamos recuar então atrás…

E2: Ainda no momento do diagnóstico, quando recebeu o diagnóstico estava a referi à pouco

que estava a falar com o Dr. Chagas. Lembra-se do que é que fez imediatamente?

Mãe 3: Lembro. Eu lembro-me de uma cosia. Quando nós saímos de Santa Maria e viemos

para aqui, uma coisa em particular – houve uma informação que a médica, quando me disse

que não sabia se era um linfoma se era uma leucemia, mas que era alguma coisa, ela disse:

“Mas há 1% mãe d enão ser nada. Há 1% que podia ser uma virose”. Eu não sei se ela disse

virose mas, “há 1% de não ser nada”. E eu agarrei-me àquele 1%, acho que toda a gente o

faria. Pronto, agarrei-me àquele 1%. Eu sou muito cristã, tenho uma relação muito especial

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com Deus, pronto, que é minha e eu lembro-me quando ele me disse isso… Ah, houve uma

altura em Santa Maria que eu quis ter uma bíblia. E quando cheguei aqui, quando soube isso,

a primeira coisa que eu fiz foi pedir a Deus ajuda e agarrar-me à bíblia.

E2: Foi algo que a ajudou?

Mãe 3: Sim, a minha espiritualidade ajudou-me em todo este processo, muito.

E1: Depois de saber a notícia pediu…

Mãe 3: Sim

E1: É disso que se lembra, depois de ter a notícia? De isso e de que mais? Estava sozinha?

Mãe 3: Estava com a minha mãe

E1: Ou seja, isto foi uma situação aguda, ou seja, a C. era pequenina, teve uma situação aguda

de sintomatologia aguda?

Mãe 3: Não, ela teve uma coisa muito simples, teve febre alta e uma tosse que não

desaparecia e eu levei-a ao hospital, levei à Estefânia e quando fizeram análises viram que

tinha os valores todos alterados. A única coisa, ela como era muito pequenina, tinha os dentes

a nascer, achei que ela estava os dentes a romper porque estava com uma febre muito ligeira.

Ela não estava doente, não estava com sintomas de doença. A primeira coisa que eu senti

então, recuando mesmo mesmo ao início, se calhar é importante, Hospital da Estefânia, eu

estava sozinha com ela e eu ia para a igreja, aqui perto do hospital da Estefânia e decidi não ir

à igreja, ir ao Hospital da Estefânia porque ela tinha estado com tosse durante a semana e não

comia. Pronto, e os médicos quando a viram achavam que ela estava muito branca. A C., já

conhece, mas não conhece, ela muito loirinha, olho azul, pele clara. Eu não percebi que tinha

havido ali uma mudança, depois percebi quando olhei para as fotografias claro, como é que eu

não notava que ela estava tao amarelada. Mas, pronto, não percebi. E os médicos decidiram

fazer análises, e ai, quando veio os resultados das análises, claro que eles perceberam que

havia qualquer coisa de grave mas não disseram nem demostraram que era grave. Eu estava

sozinha com ela, aquilo que me disseram, era Sábado, a única coisa que me perguntaram era

se eu poderia ir, se tinha contacto com o pediatra dela. Eu disse que eventualmente que sim e

escreveram lá no, naquele caderninho dela que era uma pancitumínia viral, ou uma coisa

assim. E eu, aquilo que me lembro, e olhei para o resultado das análises, não percebia nada.

Agora, se fosse hoje já percebia um bocadinho mais. Achei que havia ali qualquer coisa que

não estava bem. A primeira coisa que eu faço a sair do hospital, ligo para uma amiga que é

enfermeira e ela diz-me: “Isso não são bons resultados, tenta falar com o pediatra”. Liguei

para uma prima minha que é médica, e disse: “Cristina, prepara-te porque isso não está bem,

fala com o pediatra.” Falei com pediatra, o pediatra ainda, ai já começou a minha angústia, a

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minha ansiedade e o mais impressionante é que na semana anterior tinha estado a ver um

telefilme na SIC sobre uma criança que tinha tido uma leucemia. E a primeira coisa que me

sugou foi: “Ela está com uma leucemia, isto é uma leucemia”. Foi a primeira coisa. E depois,

aliás quando entrei no consultório da médica, na segunda-feira, eu disse: “Dr.ª isto é uma

leucemia?” e ela olhou para mim e disse-me: “Calma mãe, vamos ver a falar com o Santa

Maria, os meus colegas de hematologia vão ver.” E vivia muito angustiada e quando eu sai de

casa, pronto estava muito nervosa, muito angustiada, com muito medo e a achar que poderia

ser qualquer coisa muito grave mas sem ter a certeza não é?

E1: Mas já ia com um rastilho digamos, não é?

Mãe 3: Sim, sim…

E2: Portanto, quando acaba por receber a notícia, disse-me que estava com a sua mãe na

altura, qual foi a reação imediata?

Mãe 3: É assim, já tinha interiorizado não é? Pronto, já tinha interiorizado porque já tinha

saído do Santa Maria com a ideia que era uma coisa grave. Quando ela entra e o médico me

diz que realmente aquilo que eles dizem, é, pronto, ai, digamos que aquilo que eu senti de

mais duro, o mais duro foi em Santa Maria.

E2: Hum hum

Mãe 3: Lembro-me daquela médica me dizia e posso dizer, foi horrível, tanto a forma fria

como aquela médica falou comigo, muito fria, e eu estava sozinha, ai nessa altura estava com

o meu pai, o meu marido estava a trabalhar e a médica só quis falar comigo. Eu quando sai

agarrei-me ao meu pai a chorar, pronto. E lembro-me depois estar a dizer por telefone às

pessoas, ao meu marido, para virem porque pronto, era grave. Digamos que aqui depois era a

confirmação daquilo que eu já sabia. Tinha aquela expectativa de 1%, não…mas pronto, foi

por água abaixo, desapareceu e de facto se confirmou.

E2: A forma como a médica comunicou o diagnóstico dificultou?

Mãe 3: Sim, muito. Sim, sim. Ela foi muito dura, foi a forma como… Mais, até lhe vou dizer

uma coisa, isto é impressionante e para si calhar é importante porque é psicóloga, para vocês.

Eu só me recordo de ter uma psicóloga atrás de mim no Santa Maria, que eu não sei o nome

dela, que eu pedia: “por favor tirem daqui esta mulher”. Porque ela em vez de me acalmar ela

ainda me punha mais nervosa: “Mãe, não sei quê, não sei que mais…” Era eu e o meu marido,

por favor, eu só não disse à senhora: “cale-se”… “Porque eu não quero falar consigo, eu não

quero”. Eu não sei se era uma recusa, eu não sei porquê, mas aquilo que eu me lembro é: “Eu

não quero falar com esta mulher, eu não quero”. Eu não sei se isto é normal…?

E1: É normalíssimo, a psicóloga não devia sequer lá estar

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Mãe 3: É? Pois…Mas isso…?

E1: A psicóloga tem de ser disponibilizada, não pode ser introduzida aos pais assim… Muitas

vezes os pais nesta primeira fase, aquilo que querem é que as crianças, os filhos, fiquem

saudáveis…Porque é que há psicólogos, para que… (?14:21)

Mãe 3: Sim sim…e a abordagem, já não me lembro, mas à partida sei que a abordagem não

foi feliz porque não foi uma conversa agradável… Gostei mais de falar, por exemplo, com a

enfermeira chefe que se sentou ao meu lado e me contou as experiências dos resultados:

“Mãe, olhe, é assim, a leucemia é uma coisa grave, ninguém quer mas, pronto, há estes casos,

estes e estes e estes de sucesso não é?!”

E1: Ou seja, coisas mais concretas e que não envolviam abordar o estado de humor em que

estava…

Mãe 3: Sim. Estava-me a falar de dor, de sofrimento, quer dizer…

E1: Para quê?! Deixem-me ter o meu sofrimento agora…

Mãe 3: Sim, sim, sim…

E1: Para nós este…(?15:53)

E2: E para além disso, o que é que dificultou a adaptação ao processo de doença?

Mãe 3: Eu vou-lhe dizer, eu fui uma privilegiada no acompanhamento da minha filha. Em

todos os aspetos, inclusive a nível profissional porque eu consegui estar 9 meses em casa e

acompanhei-a. Essa foi a vantagem da doença da C., se há algum ponto positivo, costumo

dizer, foi esse, porque eu sempre quis acompanhar os primeiros anos de vida intensamente e

consegui fazê-lo de uma forma dura, não é? Mas consegui porque tive com ela, durante 9

meses pus baixa e depois tive a trabalhar em part-time muito tempo e sem ter reflexão

nenhuma a nível salarial, a nível… Obviamente que se calhar se eu tivesse mais presente

durante aquela fase da minha vida, hoje em dia estaria num patamar superior. Eu trabalho no

banco, sou bancária, se calhar estaria a ganhar mais algum valor, não sei, porque apanhei ali

uma altura de promoções e eu não estava presente, mas eu olho para trás e isso não me

interessa, não é?! Hoje em dia o dinheiro é importante, não é?! Mas ter a minha filha ao meu

lado, via, é muito melhor. Portanto, ai, a nível profissional foi muito bom. A nível pessoal

tinha por trás a família que me ajudava, a minha mãe sempre presente apesar de ela trabalhar,

mas conseguiu estar sempre presente, desde refeições, quando ela estava inclusive aqui

internada, trazia coisas para ela, as papas de vitaminas… Aqui no IPO eu gostei de tudo. A

ideia que eu tinha quando aqui cheguei era: “Que horror”, como já vos disse – “IPO horrível.”

E quando eu saí de Santa Maria e entrei aqui, eu senti literalmente, eu sai do Inferno, entre no

Céu. Mas foi mesmo! Porque eu tive uma coisa que marcou imenso e à C. deve lá estar no

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subconsciente dela. Foi desde que entramos na sala ela ficou isolada, numa sala horrível, sem

condições em Santa Maria, não sei se conhece, é lá em cima…

E1: Sei, sei…

Mãe 3: Sei condições nenhumas, eu dormi num cadeirão ao lado dela, tivemos lá duas noites,

tivemos lá 2 ou 3 noites já nem me recordo. A última noite eu tive de me deitar no chão. Disse

à minha mãe: “Traga-me um saco de cama que eu durmo no chão”. Que eu já não tinha

posição. E quando eu disse que ia dormir no chão as enfermeiras dizem-me: “Mas cuidado

que andam ai baratas!”. Mas como é que é possível? Uma sala de isolamento com baratas?

Estão a brincar comigo…Isto é… Sem condições, pronto. Espero que entretanto as coisas

tenham melhorado. Horrível! Andei sempre com aquela coisa que se põe aqui à frente para

não contaminar e aquilo foi horrível. A primeira cosia que me lembro, quando cheguei aqui e

a Dr.ª Filomena disse: “Mãe tire isso. Não vai andar mais com isso porque s enão tínhamos

que andar todos aqui. Está fora de questão, tire isso”. A primeira pessoa que tive contacto foi

a Dr.ª Filomena, depois é que foi o Dr. Chagas porque era ela a médica de serviço, mas esta

tal minha prima que é médica achou que o Dr. Chagas era a pessoa mais competente, pronto,

é a tal cunha ou conhecimento ou quê, falou com ele… Obviamente hoje olho para trás e vejo

que os médicos tratam bem todos os meninos, não era preciso nada disto. E pronto, senti aqui

no IPO espetacular.

E2: Portanto, ao início além da comunicação do diagnóstico, o espaço físico em si do Santa

Maria, também foi algo que dificultou o seu equilíbrio emocional, tendo em conta tudo…

Mãe 3: Sim, tudo. Sim, sim, sim, sim…

E1: Portanto há aqui realmente um conjunto de coisas não é?! Temos uma psicóloga que

dificultou, uma médica que dificultou, o espaço que dificultou…

Mãe 3: Hum hum

E1: Houve ali… que não é incomum, digo-lhe…o que me está a dizer

Mãe 3: Pois. Também nos Estados Unidos?

E1: Sim, às vezes de hospitais para hospitais as coisas são muito diferentes. Mas nós temos

alguns pais, bastantes, pais que vêm de Santa Maria para aqui, ou que vêm de um hospital

mais geral para o hospital mais específico – IPO – e é raríssimo não termos aquilo que me

está a dizer, não é?! Já ouvimos…

Mãe 3: Hum hum. Pois.

E1: Por isso há aqui alguma orientação um bocadinho diferente não é?! Sentiu isto… Então

isso tudo facilitou… Dizia-nos há bocadinho que a sua religião e a sua espiritualidade a

ajudou…

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Mãe 3: Hum hum

E1: Quer dizer que também houve coisas suas que ajudaram? Não foi só exterior?

Mãe 3: Sim, sim, sim. Coisas minhas que ajudaram, sim.

E1: Quer me falar um bocadinho sobre essas?

Mãe 3: Sim, posso. Eu, a minha personalidade é assim, eu vou-me muito abaixo, tenho uma

noticia assim dura, vou mesmo cá ao fundo e fico sem forças e achar que ano consigo e…

mas depois quando venho cá abaixo, volto para cima e dou a volta ao mundo e faço tudo,

pronto. E acho que essa minha forma de estra na vida me ajudou porque tive forças para mim,

tive forças para o meu marido, tive forças para os meus pais, para a minha fila e também

este… o ser positiva e este relacionamento sem dúvida com Deus, aliás, o relacionamento

com Deus é importante em todos os aspetos da minha vida, mas nesta fase especial foi muito

muito importante e foi o meu alicerce, foi quem me deu forças, foi quem me permitiu suportar

muitas angustias, muito sofrimento, muitas dúvidas que eu tinha, muita… Sim e acho que

essa minha personalidade, “Ok, vamos à luta”, me ajudou anos mais tarde, senti na pele um

bocadinho isso porque depois fui-me abaixo, mas já foi muito depois, muito depois. Passou

tudo, entretanto tive uma segunda filha e pouco antes de ter a minha segunda filha comecei a

ter ataques de ansiedade que eu nem sequer sabia que existiam. Não sabia, pronto. De repente

dou por mim com um pico de tensão a entrar no hospital e o médico depois de fazer os

exames disse assim: “quer dizer você não tem um problema de coração.” Porque eu tinha

medo de ter algum problema cardíaco. “Você tem é uma crise de ansiedade, uma crise de

pânico como muita gente tem, tem de perceber porque é que tem”. Pronto e cheguei à

conclusão que deve ter sido do desgaste emocional que tive que me provocou isto.

E1: está a dizer que a sua relação com Deus… Pode explicar-nos um bocadinho melhor o que

é que foi buscar a Deus? Foi buscar força para lutar, foi buscar a certeza de que as coisas se

iam curar… Como é que é? O que é que foi buscar a Deus, à sua espiritualidade. Temos duas

coisas não é?...

Mãe 3: É… Isto é, está a falar de uma cosia que nós não vemos mas sentimos, não é?

E1: Claro

Mãe 3: Pronto. E para mim é um Deus que ele apesar de não estar aqui fisicamente eu sinto-

o, sinto a presença dele, inclusive, houve coisas em concreto que aconteceram depois de muita

oração, muito meditação de… não estou a falar de coisas sobrenaturais, entenda-se

E1: Sim

Mãe 3: Estou a falar de coisas que eu acredito que aconteçam. Havendo um percurso e

havendo dois percursos sobre inspiração eu consegui perceber - este é o percurso certo.

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E1: Ou seja, conseguiu, essa meditação, essa ligação a Deus, acaba…digamos que facilitou

algumas tomadas de decisão?

Mãe 3: Eu se lhe for contar algumas coisas…Sim, sim muito.

E1: e permitiu um pensamento mais claro sobre as coisas?

Mãe 3: Sim, tornou-me… abriu-me as janelas como se costuma dizer, abriu-me, tornou-me a

mente mais clara…

E1: Deu luz…

Mãe 3: Sim. Desde ai até outras coisas simples, eu vou-lhe dizer uma coisa. O meu marido,

por exemplo, tem uma visão diferente da minha porque ele não é crente. Mas há coisas que

aconteceram. Noutro dia uma amiga falava comigo porque partilhei isto com ela e é um

bocado estranho o que lhes vou dizer, mas aconteceu…

E1: Hum hum

Mãe 3: Eu tenho um jardim e era uma altura que não havia flores, não havia nada. Eu não sei

o que é que pedi, já não sei o que é que eu pedi… eu queria um sinal, o que é que eu vou

fazer? E tinha a ver com a C. e com a doença dela e com alguma coisa. Eu só disse: “se tiver

que acontecer aquilo, amanhã está aqui uma flor”. E a flor estava lá. Agora vai-me dizer: “Isto

é…” Para mim é crença

E1: Exatamente

Mãe 3: para mim é confiança, eu confiei, confio em Deus e um dia Deus ainda me vai dizer

porque é que a C. ficou doente… (risos)

E1: Isso é uma conversa para a eternidade…

Mãe 3: Sim, sim…Sim, sim…

E1: e se calhar…(?23:26)

Mãe 3: Não… ahh o confiar em Deus tornou-me mais forte também…

E1: Mais forte… Porque há uma maneira de confiar em Deus que é: “Olha, entrego-te e não

faço nada”

Mãe 3:Não, não, não, não, não foi nesse aspeto

E1: “Olha tu vais clarificar o meu caminho”

Mãe 3: Sim, sim, sim. “Vais-me mostrar, vais-me dar clarividência para eu perceber o que é

que eu tenho que fazer, qual é o caminho correto”. Não cai naquela de, permita-me se vou

ofender alguém mas pronto, esta coisa de fazer peregrinações a fatiam e ter os ex votos… e

não sei quê, não tem nada a ver com isso, eu não acredito em nada disso, está bem?!

E1: Pois, estou a perceber

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Mãe 3: Tem a ver mais com, aliás, Deus não se compra, na minha forma de ver, Deus está

aqui quer o meu amor e a partir dai ele é o meu pai, e foi nesse sentido que eu pedi. Deus é

pai ele sabe o que e que é melhor.

E1: portanto, nem por isso eu deixo-me de mexer e ter que fazer, nem por isso…

Mãe 3: Sim, sim, sim…

E1: Ou seja, não é um Pai que é omnipresente…

Mãe 3: Sim

E1: É omnipresente mas não é aquele a quem se dá tudo e eu não faço mais nada…

Mãe 3: Eu a determinado momento, eu quis, por exemplo, para vos mostrar, para perceberem,

eu queria fazer um tratamento alternativo com a C. porque acho que a alimentação é muito

importante e a componente natural, vida mais… Há remédios naturais que podem ajudar a

combater o cancro. E eu queria ir para alguém que soubesse, que não fosse um charlatão. Uma

pessoa que soubesse e pedisse muito a Deus que em mostrasse, que me levasse até essa

pessoa. Isso aconteceu. Por exemplo. Falei com muita gente e de uma conversa com o acaso

depois de muito eu pedir a Deus através da oração, eu conheci uma pessoa que me disse:

“Olhe, eu conheço este senhor, que é uma pessoa que é de confiança…”. E pronto, de facto

era uma pessoa e é uma pessoa de confiança.

E1: Muito bem. E a própria C. ajudou alguma coisa? Como é que ela reagiu? Como é que

sentiu a sus filha?

Mãe 3: É assim, ela era bebé, ela era muito pequenina…

E1:Acha que ela teve… ela regrediu de alguma maneira? Continuou a ser…

Mãe 3: Sim ela regrediu, tem sequelas infelizmente…

E1: Tem sequelas…

Mãe 3: E é essa parte quando eu aqui venho e falo sobre sito me deixa com lágrima e com,

ela está viva está bem, e quando aqui venho, ainda agora há tempos, a consulta dos duros. Eu

saio daqui a pensar: “Cristina, o que é que queres mais? Ela está viva, está bem”. Mas, ela vai

ficar pequenina, ela tem deficiências cognitivas grandes, mais do que eu imaginava e isso

obviamente que nós queremos o melhor para os nossos filhos, não é?! E ter uma filha com

limitações cognitivas que até condiciona na sua vida… este foi um ano complicado nessa

matéria… Não é fácil!

E1: Claro

Mãe 3: Não é fácil! E sobretudo ela que está agora na adolescência, está a ser complicado,

mas… falando sobre a doença, sobre as sequelas… A Dr.ª Ana Teixeira ainda nos dizia na

última consulta que ela é um caso de sobrevivência, assim quase único, porque eu só soube

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isso há pouco tempo – crianças com leucemia com menos de 1 ano de vida, ela disse que a C.

é única aqui no IPO. E eu penso, ai tem a ver com a minha espiritualidade, há aqui qualquer

coisa não é?

E2: Portanto, estas características pessoais, esta crença em Deus, esta fé, aliada às

características temperamentais que me estava a falar há pouco, do seu modo de estar na vida,

da sua força para suportar esta fase toda, foram facilitadores não é? Foram facilitadores do

período de vivência, forma…

Mãe 3: Sim, foram muito facilitadores

E2: Aliada à coesão familiar também que sentiu na altura…

Mãe 3: Hum hum

E2: Que mais facilitadores se lembra que sentiu? Lembra-se de mais alguma coisa?

Mãe 3: Bem, a própria C., tirando a fase em que estava, e que levava os tratamentos e estava

aquela semana em baixo, ela própria era uma criança alegre, divertida e isso também, quase

que me esquecia um bocadinho, quase…porque pronto estava sempre presente o tema.

Digamos que ai talvez a personalidade da C. tenha ajudado. Não estou a ver que outro

elemento facilitador.

E2: Hum hum

E1: E necessidades? O que é que sentiu? Sentiu alguma necessidade específica? Achou que

todas as necessidades estavam a ser tidas, acompanhadas?...

Mãe 3: Quando fala em necessidade?

E1: Necessidade do que quer que seja – emocional, físico, o que seja… das necessidades que

pode ter tido

E2: Falou há pouco da necessidade profissional, por exemplo, portanto, teve facilitadores de

trabalho que se calhar também foram simultaneamente uma necessidade, não é?! Para puder

acompanhar a C. aqui. Portanto, que outras necessidades é que sentiu?

Mãe 3: hum hum

E1: Lembre-se do tempo de tratamento, o tempo que esteve aqui…

Mãe 3: Sim, deixe-me pensar… Eventualmente a necessidade de falar com pessoas que

estavam a falar o mesmo que eu, eventualmente, porque tinha muita necessidade. Isso é uma

coisa que fica. Tinha necessidade de chegar aqui e falarmos e todos vivíamos intensamente,

toda a gente. Acho que não sei se é inconsciente ou consciente, havia essa necessidade.

E2: Partilhava com os outros pais a sua experiência?

Mãe 3: Sim, eu tinha essa necessidade

E2: E ouvia as experiências?

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Mãe 3: Ouvia. Fora daqui do IPO, eu sou uma pessoa muito aberta e conto muito, falo de

mais, não consigo guardar assim coisas minhas, partilho muita coisa e eu tinha necessidade de

falara da doença da C., não sei porquê. Se calhar ajudava-me, aliviava-me falar. Era uma

forma de sair cá para fora. Estava a conhecer pessoas e ao fim de se calhar pouco tempo

falava. Depois…

E1: Nunca com um psicólogo?

Mãe 3: Nunca com um psicólogo.

E1: Ficou marcada?

Mãe 3: Não. Não sei se foi por isso.

E1:Hum Hum

Mãe 3: Eu lembro-me a determinado momento com o médico banco, porque era o médico do

banco que me passava as baixas e ele falava muito comigo e ele dizia-me, ele próprio dizia:

“A C. precisa de fazer um tratamento. Precisa de tomar qualquer coisa porque um dia vai-se a

baixo”. Eu sempre recusei tomar medicamentos, antidepressivos, sempre recusei. Hoje teria

sido diferente, acho que se eu naquela altura tivesse ouvido o médico, eu tinha ficado, para já

não tinha tido as sequelas que tive depois e se calhar nos momentos em que eu não tive

paciência, houve muitos momentos em que eu não tive paciência. Houve momentos sobretudo

quando a C. estava a fazer tratamento e os dias a seguir era horrível, era horrível. Nós tivemos

2 ou 3 episódios de muito horrível. De eu achar: “eu não consigo, eu não consigo…”.

Chorava imenso, não havia nada que acalmasse e depois eu entrava em rutura e chorava. E ai

precisava de uma medicação e recusei e se calhar teria sido melhor para mim. Essa se calhar

foi uma necessidade.

E1: Falava da medicação, deveria ter sido um psicólogo mais diretivo…

Mãe 3: Sim, sim…aquela terapia se calhar, a terapia, acho que era importante para os pais, no

futuro, que tenham estas situações que haja tipo aqueles grupos de apoio…

E1: Estou a perceber

Mãe 3: …e que se pudesse ir lá e se exteriorizasse o sofrimento. Eu falava muito e se calhar

exteriorizava o meu sofrimento com os meus amigos, com os meus colegas quando ia ao

banco, quando voltei…Mas há pessoas que se calhar não conseguem fazê-lo não é?!

Precisavam de alguém que…

E1: Hum hum, estamos a perceber.

E2: Pronto, em termos de necessidades

E1: Está tudo

E2: Está tudo

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E1: Sim senhor. Vamos falar agora para o presente. Há só aqui uma coisa que eu penso que é

importante. Disse que ficou grávida da sua segunda filha

Mãe 3: hum hum

E1:Quanto tempo depois?

Mãe 3: 7 anos… 7 anos e…

E1: 7 anos, ou seja teve 7 anos sem filhos. Despropositadamente?

Mãe 3: Não, não, não…

E1: Não.

Mãe 3: Não. Eu tenho dificuldade em engravidar, tenho falta de progesterona.

E1: Ah pronto! Muito bem.

Mãe 3: E isso é outra prova pedida a Deus (risos)

E1: Pediu ter um filho?

Mãe 3: Não, eu queria muito ter outro filho nem que fosse pela questão de ela precisar de um

transplante e de ter um dador. Podia não ser uma irmã mas pronto.

E1: Pois

Mãe 3: E disse: “Se tu achares que ela precisa de um transplante, faz-me um filho” (risos) E

não quis para nenhum médico, e não fiz nenhum tratamento. Queríamos muito, tanto eu como

o meu marido queríamos muito. E depois ao fim deste tempo, e acho que foi importante ela

ter…

E1: E foi durante a gravidez que teve esse momento de maior ansiedade?

Mãe 3: Não, foi um pouco antes de ficar grávida.

E1: Quanto antes?

Mãe 3: Prai 1 ano antes eu comecei a ter…

E1: …estados de ansiedade

Mãe 3: Sim, estados de ansiedade

E1: Nunca conseguiu saber a que é que estavam associados?

Mãe 3: Eu, eu… depois fui a uma psicóloga na altura. Foi uma única consulta que foi de

psicóloga, e que também infelizmente não gostei dela. Não houve ali empatia. Se calhar

também deveria a ter procurado mais. Ah, e eu consegui perceber depois, consegui perceber

porque é que ficava ansiosa, porque é que eu tinha aqueles ataques de ansiedade e tudo tinha a

ver com a C.. Houve um dia… e durante a gravidez também senti isso, houve uma altura que

eu estava feliz, tranquila, estava gravida, era acompanhada na CUF descobertas e eu chegava

ao hospital, estava bem e ao fim de um bocado começava a ficar nervosa e eu assim: “mas

porque é que eu estou nervosa? Não percebo.” E houve um dia que eu estava em casa e pus-

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me a pensar sobre isto – “mas porque é que eu fico nervosa quando vou para o hospital?” E

um dia… eu não consegui perceber… um dia estava na consulta e aquilo tinha um sistema de

altifalantes e o sistema de altifalantes incomodava-me. E eu percebi – “já percebi porque é

que eu estou assim nervosa”. Porque esta espera de, entre… agora já não é assim que as

coisas mudaram, mas nós saiamos do pavilhão Lions e íamos para ali, para o consultório. E

então era: “C. Leal chamada ao corredor”. Esta frase era horrível. Começava a tremer,

ansiosa, à espera pelo resultado das análises e eu acho que aquilo funcionava tudo. Assim

como eu ir de viagem. A primeira vez que sai com a minha filha mais nova, saímos todos, eu

preparei as coisas todas e acabamos por não ir. Porque eu fiquei muito ansiosa, muito nervosa,

porque era muita coisa, não sei quê. Depois comecei a relacionar – eu estou nervosa porque

eu tinha sentido o mesmo que sentia quando arrumava as coisas para ir com a C. para o

hospital. Eu acho que nós somos também um bocadinho médicos de nós próprios. Temos de

refletir e tentar de alguma forma.

E1: É um dos papéis do psicólogo, é ajudar a fazer isso.

Mãe 3: Fazer esse…Sim?

E1: Ajudar a que a pessoa consiga, encontrar ela própria…

Mãe 3: …a resposta

E1: A resposta, porque a resposta está lá

Mãe 3: Deve haver muitas aqui dentro, não é?!

E1: Claro que sim

Mãe 3: Como todos nós

E1: E outra coisa que também é… gostaria que nos explicasse melhor. Portanto estava-me a

dizer que vocês dormiram, que a C. dormiu convosco nos 5 primeiros anos. Ela sai do vosso

quarto como? Em que circunstâncias? Achou que já era altura ou foi ela que pediu?

Mãe 3: Não, nós começamos a falar com ela sobre isso com ela - “Vais passar para o teu

quarto”. E ela também sentia necessidade disso, acho. O meu marido é mais frio, depois nesse

aspecto é capaz de esclarecer melhor. Mas essa passagem não foi assim abrupta, foi: eu ficava

com ela até ela adormecer, de mãozinha dada, falávamos…

E1: Mas acha que era altura dela…?

Mãe 3: Sim!

E1: O desenvolvimento dela foi um desenvolvimento normal? Vocês foram muito

superprotectores? (risos)

Mãe 3: Muito! De mais! (risos)

E1: (?35:27)

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Mãe 3: Olhe, superprotectores…

E1: Um exemplo…

Mãe 3: Cheguei ao primeiro ano… (risos) Cheguei ao primeiro ano dela e a professora

ralhava comigo: “Mãe largue a filha, deixe ela subir as escadas sozinha.” Era tudo a ajudar,

fazia tudo por ela. Era horrível.

E1: Até quando? Até hoje?

Mãe 3: Não, até hoje não. As coisas mudaram muito com o nascimento da irmã. Muito

mesmo. Muito. Eu acho que se não fosse a irmão ainda era até hoje. Mas… Não, não tanto.

Sei lá, não sei. Eu acho que ai com 8 anos…gradualmente eu tentei afastá-la. Não sei… se é

que se pode dizer…

E1: Dar-lhe alguma autonomia? Permitir-lhe alguma autonomia?

Mãe 3: Sim, sim. Olhe vou-lhe dizer, por exemplo, a mais nova, tem 7 anos. Neste momento

ela está num acampamento de escuteiros. (risos) Nunca aconteceria isso com a C.! Ela a

primeira vez que foi a um acampamento, do mesmo tipo, ela tinha 12 ou 13 anos e eu estava

com uma angústia. Não é que não esteja com esta. Também estou! Mas é diferente…não sei

explicar…

E1: Mas uma angustia de quê? Que ela ficasse com uma doença? Que a doença voltasse?

Mãe 3: Não, não, não. Não, não.

E1:Que acontecesse alguma coisa?

Mãe 3: Sim, sim, sim. Eu estou tão longe dela simplesmente. Eu acho que era cortar ali…

E2: Que ela precisasse de si e não estivesse lá…

Mãe 3: Sim, sim, sim…eu estar ali. Eu precisava de estar ali.

E1: Estou a perceber. Isso foi uma sequela da doença?

Mãe 3: eu não sei se é uma sequela da doença, se isto é um síndroma que se chama “mãe

galinha”

E1: Mas então tinha que ser mãe galinha com a segunda

Mãe 3: Pois. Também sou. Mas…

E1: É que as circunstâncias da C. são muito especiais, não é?!

Mãe 3: Sim

E1: Que levaram, levam muitas vezes os pais a ficarem com comportamentos extremados…

Mãe 3: Hum hum

E1: …ou de grande superproteção, ou então uma grande, um grande salto entre grande

superproteção e grande exigência. Porque como foi muito superprotetora, agora quero muito

que tu faças…

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Mãe 3: Pois, eu acho que agora estou nessa fase. Ainda não arranjei um equilíbrio, porque eu

quero muito que ela…

E1: Seja muito autónoma…?

Mãe 3: Seja muito autónoma, sim…

E1: Ou seja está, que é normal…

Mãe 3: Se calhar estou a exigir de mais dela neste momento - já pensei nisso inclusive. Pois.

E1: Se calhar pode acontecer, mas depois queremos compensar e como temos

Mãe 3: por aquilo que não…

E1: E que de repente estamos a exigir de mais

Mãe 3: Sim, sim

E1: e que isso pode acontecer

E2: Só para fechar aqui esta parte queria só perguntar uma coisa. Estava-me a dizer então,

queria ter a segunda filha, e queria-lhe perguntar: em nenhum momento teve receio de ter a

segunda filha? A segunda gravidez…

Mãe 3: Sim. Houve uma altura que eu achava que poderia haver, apesar de os médicos

dizerem que não tem nada a ver… Sim, sim! Mas não foi uma coisa que me atormentasse ao

ponto de não querer ter um filho

E2: Pois, por outro lado achou que era um facilitador para caso a C.…

Mãe 3: Sim

E2: …precisasse

Mãe 3: Sim, sim, sim, sim, sim.... Nem hoje em dia vivo, acho que já passei a fase, mesmo da

C., já passei a fase de ansiedade e de achar que a doença volta. Portanto, eu neste momento

tenho perfeita consciência que poderá voltar como… pode voltar para mim, pode voltar para

cada um de nós. Portanto e isso estou calma. E mesmo com a C. que é mais nova, nem penso

nisso. Nem penso, nem penso, nem penso mesmo.

E1: estamos já afalar da doença na…

E2: Na fase atual…

E1: …na fase atual… Está-me a dizer então que em relação à doença… Considera a doença

curada?

Mãe 3: Sim, sim.

E1: Completamente curada?

Mãe 3: Sim. Os únicos momentos em que eu fico mais apreensiva, e não tem a ver com a

doença, com a leucemia em si, mas tem a ver com os efeitos secundários dos tratamentos, é

quando voltamos cá, quando voltamos aqui uma vez por ano e o dia anterior eu estou nervosa

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e chego aqui… Isto é um sentimento que eu não sei explicar, mas é um misto – eu gosto de

vir cá, eu gosto de vir aqui, eu gosto de estar aqui e às vezes falar com pais, e ao mesmo

tempo, tenho medo de estar aqui. Não sei explicar.

E1: Claro, há um condicionamento. Ficou condicionado, ficou marcado, digamos, não é?!

Mãe 3: Sim. E o receio que eu tenho é sempre. Pronto, neste momento ela está a ser

acompanhada a nível das glândulas, a ver se está tudo a funcionar, o coração, pronto e isso

fico preocupada mas não com aquela… E estou confiante porque… estou confiante mesmo.

E1: Que esteja…

Mãe 3: Sim e que é um assunto resolvido, do passado, que deixou sequelas e essas sequelas…

neste momento, tudo, aquilo que mais me preocupa é a aprendizagem dela e o futuro dela,

como é que ela se vai inserir na sociedade, o que é que ela vai fazer, se ela vai ser feliz…

Porque mexe com ela as capacidades cognitivas dela, mexe.

E1: E emocionalmente acha que também há sequelas? Que ela também ficou com sequelas, ai

como consequência também?

Mãe 3: Sim, sim, sim. Ela é uma pessoa muito temperamentalmente, muito… Também tem a

ver com a adolescência neste momento, mas ela sempre foi muito assim. Ela tanto está muito

bem agora e muito feliz e contente e passado uns momentos está com um humor terrível e

complicado

E1: Mas acha que tem a ver com a doença ou com o tratamento?

Mãe 3: Não sei se terá a ver com a doença ou com o tratamento. Se tem mais se calhar mais a

ver com os mimos, tudo aquilo que…Todo o acompanhamento que ela teve. Não a doença,

nem o tratamento.

E1: Não é bem a doença…

Mãe 3: Sim, sim

E1: É o que ela viveu com a doença… provavelmente

Mãe 3: E a chantagem emocional que ela consegue fazer connosco, ela é impressionante

nesse aspecto.

E1: Afinal de contas, a parte cognitiva funciona.

Mãe 3: Obrigada (risos) por me lembrar. Porque ela sabe, ela sabe, ela sabe mesmo…

E1: Se funciona ai, há-de funcionar para outras coisas…

Mãe 3: Agora fala-se muito de inteligência emocional, também, portanto…

E1: Ela deve ter…essa deve estar bem desenvolvida de certeza. Mas se tem essa, vai ver que,

normalmente as pessoas que têm essa, normalmente conseguem fazer alguma coisa da vida

Mãe 3: Vamos esperar

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E2: Portanto falou-me destas preocupações não é?! Sobretudo com o futuro, com as

capacidades cognitivas da C.… Que estratégias é que utiliza para lidar com estas

preocupações?

Mãe 3: Bem, é assim… Ela está a ser acompanhada fora do IPO, porque achamos, que apesar

de estar aqui, achámos que ela deveria ser acompanhada pela psicóloga. Ai eu já achei que

psicóloga é importante para a filha. Porque ela teve um ano muito complicado, este ano foi

muito difícil e fez uns disparates que nós não estávamos à espera e esses disparates tiveram a

ver com a autoestima dela, com a forma de ela estar na vida… e precisamente teve ali

comportamentos mesmo que precisa de ser acompanhada. Pronto, a estratégia é comunicação,

mas às vezes com ela é muito complicado comunicar. Neste momento é preciso eu saber… ter

rasgos, alturas em que eu consigo comunicar com ela e sacar informação e perceber o que é

que vai lá dentro. Porque ela mesmo não se revela nem se mostra e ela recusa-se, ela própria

recusa-se a perceber que tem u problema cognitivo ou que tem dificuldades cognitivas e esse

é o grande problema. Quando ela assumir, que eu acho, posso estar errada, mas pronto, eu

acho que ela quando assumir que: “Ok tenho limitações, tenho algumas limitações”. Mas…

Eu como de alguma forma, estratégias, eu vou conseguir ultrapassa-las e quando lhe der esse

clique, a C. vai ser muito diferente. E, essa estratégia acho que a psicóloga a vai ajudar,

esperemos que sim.

E1: Hum hum

Mãe 3: Portanto a única coisa que eu neste momento tenho é conversar com ela, estar muito

atenta e falar com a psicóloga. Estamos em sintonia.

E1: Estava-me a falar da doença e estava-me a dizer que a sente controlada. E em relação às

causas? Alguma vez pensou nisso?

Mãe 3: Na altura pensei muito, na altura pensei. Vinha-me à cabeça: “Porquê uma criança

com 9 meses tem uma leucemia? Porquê?”. Não tem stresse, não tem… a alimentação é toda

uma alimentação cuidada durante a gravidez. Houve uma coisa que eu durante algum tempo

me culpabilizei, achando que a causadora poderia ser eu porque eu 2 ou 3 anos antes, agora

acho que não tem nada a ver, mas na altura culpabilizei-me. Tinha andado a fazer uns

tratamentos de mesoterapia que é umas injeções na barriga para tirar a gordura localizada. E

eu achei: “olha se calhar foi isto que me fez mal”. Mas pronto… Pensei em muita coisa sim.

Depois é que o tal médico, nós perguntamos no hospital: “porquê?”. Não há explicação

cientifica porque é que há uma doença… quer dizer há explicações científicas para doenças

oncológicas mas um bebé, uma leucemia, quer dizer… E foi o médico naturista que a

acompanha desde então, que me disse na altura que a C. nasceu sem sistema imunitário, não

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tem sistema imunitário. E por isso ela ficou com uma doença oncológica. Aquilo que ele me

disse na altura foi: “Vou-lhe dar uma medicação para reconstruir o sistema imunitário dela e

vamos contar que ela vai subir umas escadinhas, que vamos subir devagarinho…mas que ela

vai chegar lá, claro que vai fazer todos os tratamentos, vai continuar a fazer tudo e vai fazer

também estes tratamentos naturais”. Foi o que ela fez.

E1: Pois, o tratamento natural. E neste momento ainda pensa nas causas ou é um assunto que

está resolvido?

Mãe 3: Não penso. Sim, não penso.

E1: E em relação à severidade da doença da sua filha? Acha que é a mais severa que há, acha

que há outras mais severas?

Mãe 3: Não, acho que há outras mais severas…

E1: Por exemplo…

Mãe 3: Pela experiência que eu vivi aqui no IPO, aquelas doenças, aqueles tumores, portanto,

fígado, pâncreas, rins.

E1: Ou seja, neoplasias… Cancros, mas outro tipo de cancros.

Mãe 3: Sim, sim, sim.

E1: Estávamos a falar também das consequências…

Mãe 3: Desculpe interrompe-la, mesmo dentro das leucemias tenho perfeita consciência que

há…ela teve uma linfoblástica aguda e sei que a mieloblástica era mais grave…

E1: Muito bem e em relação às consequências, já vimos uma série de consequências que

acabaram umas por ser umas positivas, umas negativas, outras mais ou menos, não é?!

Mãe 3: Hum hum

E1: Hoje vê alguma consequência? Pensa em mais alguma consequência que esteja

relacionada com a doença da sua filha? A vossa estrutura familiar, a maneira como vocês

são…quer seja positiva ou negativa… Que diga assim: “bom isto tem a haver com…”

Mãe 3: A nossa estrutura familiar tem a haver, sem sombra de dúvida criamos ali uma

E1: E a C. já faz parte do grupo?

Mãe 3: A C. faz parte do grupo. Eu tenho um problema com a C. que eu vou dizer. Eu acho

que, por não conseguir desligar aquilo que senti pela C., e continuei a viver intensamente com

a C.. Por exemplo a C. dorme connosco.

E1: A C. te, que idade?

Mãe 3: Dorme connosco. Tem 7 anos.

E1: Ah, a C. ainda ganhou mais 2 anos?

Mãe 3: Dorme connosco… Ahhh… Isso talvez seja a consequência negativa

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E1: Ou seja, acha que a maneira como foi mãe e como forma pais, neste caso… deriva

daquilo que aconteceu?

Mãe 3: Eu acho que inconscientemente, pensando friamente, pensando sobre o assunto… Eu

acho que não há nenhuma razão para continuar a dormir com a C.. Eu e o meu marido, ponto

final. Inconscientemente eu acho que quero fazer, acho que se calhar seria má mãe, se não

fizer tudo o que fiz com a C., inclusive sofrer. Como é que eu posso dizer? Coisas práticas da

C.. Houve alguém que em disse isto uma vez, eu fiquei a pensar: “que horror”. E eu não

consigo, não consigo afastar-me disso. Eu dei de mamar à C. até à exaustão, até à exaustão….

Eu dei de mamar à C. até aos 2 anos! E já era um sofrimento para mim. Porque ela não dormir

e por é que ela ficou a dormir connosco e aforma de eu conseguir. Porque ela usava as minhas

mamas, já nem era para mamar, era para a chupeta, para tudo…

E1: Claro

Mãe 3: E eu pensei assim, meu Deus, quando me apercebi disto, isto é verdade – “Eu estou a

sofrer porque quero dar… o que dou a uma filha quero dar à outra ”. E isto não está bem não

é?! Isto na minha cabeça não está bem. E eu acho que isso é o aspecto negativo.

E1: Eu acho que ainda não se libertou da doença…

Mãe 3: Não, nesse aspecto eu acho que não.

E1: Ou seja, ela deixou marcas profundíssimas…

Mãe 3: Sim, sim, sim…

E1: Esta noção do dever, para além daquilo que é o normal…

Mãe 3: Ir até ao impossível

E1: Até ao impossível… E isso também é de si para si? Essa exigência toda é de dádiva ou

também é de “tenho de superar mais, porque tenho de pagar”, entre aspas.

Mãe 3: Eu não sei explicar. Isso eu não sei dizer. Eu sei que sou muito exigente comigo

própria, habitualmente. E se calhar isso também é uma consequência, não sei, não sei, não

sei…

E1: Teve alguma consequência emocional? Por exemplo alterou o seu temperamento a

doença? Tornou-a mais triste, mais alegre, mais capaz, menos capaz?

Mãe 3: Se calhar mais triste.

E1: Mais triste.

Mãe 3: Ou não tão alegre, se calhar, sim. Não sei se não tivesse, se não existisse a doença da

C., se eu continuaria a ser como eu era. Isso obviamente que marcou, mas não tenho dúvida

nenhuma porque eu era, no seio da família, do grupo dos amigos, eu era a felicidade em

pessoa. Era a que fazia palhaçadas, punha toda a gente a rir e onde eu estava, estava a boa

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disposição. Hoje em dia tenho assim rasgos disso, não é o que era. Não é o que era. Não sei se

tem a ver também com o desenvolvimento… A nossa maturidade, o desenvolvimento com a

nossa idade, mudamos, não sei.

E1: Sim (?50:04)

Mãe 3: Sim, sim. E tenho saudades daquela rapariga (risos)

E1: Se calhar ainda vai voltar

Mãe 3: Sim, pode ser

E1: Se calhar quando se conseguir libertar mesmo

Mãe 3: Sim

E1: Porque tenho impressão que há ai um passo gigante. Estava-me a dizer há bocadinho que

tem de haver um clique na C., se calhar tem que haver um clique na mãe da C. também…

Mãe 3: Se calhar…

E1: Também vai ser de outra maneira… E em relação à vossa parte mais conjugal? Acha que

se alterou alguma coisa ou não? Ou acha que a doença ai não teve nada?

Mãe 3: Está a falar sexualmente?

E1: Não. Estou a falar de relação, não necessariamente sexualmente… Se a relação. Estar um

com o outro, partilha.

Mãe 3: Não. Acho que a nossa relação ficou forte.

E1: Forte. Ou seja, a doença não desgastou, vocês consideraram que os dois se

complementaram.

Mãe 3: Sim, sim…

E1: Nós temos às vezes situações na literatura em que apontam para o maior desgaste e até

mesmo para o divórcio nestes pai. Temos também literatura completamente ao contrário que

nos diz: não, antes pelo contrário, há aqui uma complementaridade enorme que os pais vivem

e vai servir quase como cimento. Sente mais que aconteceu consigo isso?

Mãe 3: Sinto, sinto.

E1: Sim senhor.

E2: Portanto falamos aqui destas consequências pessoais e também relacionadas com o resto

da família. Mas, quer apontar alguma consequência, positiva ou negativa, que viu no seu

marido, nos restantes membros…

E1: Da família…

E2: Da família…

E1: Pais… Acha que a doença afetou a família ou não?

Mãe 3: Afetou. Sim, sim. Muito. Acho que afetou mais a parte dos meus pais…

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E2: Hum hum

Mãe 3: Não quer dizer que os meus sogros não tenham sofrido, claro que sofreram muito e

tiveram muito envolvidos, mais a minha sogra. Mas os meus pais, por maior disponibilidade,

estiveram sempre mais presentes e afetou-os em muita coisa, mas que foi opção deles de

estarem presentes. Eles têm uma quinta em Salva Terra, que é assim aquilo que ele, o meu pai

sobretudo, mais gosta, já na semana passada me disse: “Se eu saio daqui eu morro”. Porque

ele adora estar ali e a determinado momento Salva Terra deixou de existir, passou para

segundo plano, portanto, raramente eles iam lá. A minha mãe, eles enquanto casal obviamente

também houve ali um… que os afetou porque houve temporadas em que a minha mãe ficava

connosco em casa para dar apoio, nunca me disseram anda nem cobraram nada, mas acho que

sim também. Mas isso também nos permitiu a nós criar assim uma ligação muito intensa.

E1: Muito bem. Hoje o que é que considera ser a sua rede de suporte? A sua família mais

chegada, a família com os pais. Há mais? Amigos por exemplo?

Mãe 3: Olhe, isso é uma consequência da doença, são os amigos. Porque na altura, quando a

pessoa, quando tudo isto aconteceu os amigos apareceram todos e estamos aqui e não sei

quê… E ao fim de 2 anos, 3… (emociona-se)

E1: É muito, muito complicado… Os amigos desapareceram…

Mãe 3: Desculpe (chorar)

E1: Não… Isso é muito comum ainda… inexplicável… Muito, muito comum.

Mãe 3: Eu tinha amigos tipo irmãos, eles estão, falo com eles, mas são conhecidos não são

amigos. E eu cobro isso! Eu cobro…

E1: Nunca conseguiu perceber porquê?

Mãe 3: Não

E1: Nunca nenhum… não conseguimos perceber porquê

Mãe 3: Não consigo perceber porquê. Acho que na altura que a pessoa mais precisa, precisa

de falar, pronto, acho que, é assim, eu consigo perceber. Acho que a nossa vida é tão cheia

que não temos tempo para nada e - “ah, falo amanhã, falo amanhã, falo amanhã”. Quando o

amanhã nunca… acabou pronto. Acho que a nossa sociedade é uma sociedade de pouco

solidariedade.

E1: Mas foram eles que se afastaram ou foram vocês também que os deixaram de os chamar?

Mãe 3: Se calhar forma as duas coisas. Eu neste momento às vezes sinto vontade de estar

com outras pessoas, mas são poucas. Neste momento, os nossos maiores amigos são pessoas

que vieram depois disto tudo. Nem o meu marido tem amigos dele, do tempo dele de solteiro

e não tem, nem eu tenho.

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E2: Portanto, a vossa rede de suporte modificou totalmente?

Mãe 3: Sim

E2: ou seja, não são os mesmos.

Mãe 3: Sim, sim, sim.

E2: mas tem outros agora?

Mãe 3: Sim, tenho outros amigos…

E1: Não são bem rede de suporte

Mãe 3: Sim, há 2 ou 3 pessoas com quem eu posso contar… de amigos… nem sei se posso

contar com eles… nem sei…

E2: Mas com a família sabe que pode contar…

Mãe 3: Não sei se tornasse a acontecer alguma coisa grave se eles depois ano iriam…

E1: Iam-se embora também

Mãe 3: Não sei, não sei…

E1: Por último pedíamos que descrevesse a sua filha

Mãe 3: Ok. Em todos os aspetos?

E1: Aquilo que achar mais importante.

Mãe 3: A C. é, é uma menina que… que eu consigo, que se consegue dela tudo a bem,

fazendo, falando com ela com calma, ela faz tudo. É uma miúda que tanto toca o lado do bom,

como toda o lado… Quando é boa é muito boa, mas quando é má é muito má e é muito chata

e é muito… Ahh… Emocionalmente é uma adolescente que atravessa um período conturbado.

Obviamente que este tema da autoestima, que está a afetar. Super teimosa, muito teimosa.

Desobediente. Mas meiga, muito meiga, muito fofinha. Como mãe acho que ela é muito

bonita, mas é a minha opinião de mãe. Que é que eu poso dizer mais da C.…

E1: Acha que é isso?

Mãe 3: É uma miúda que tem muito à vontade para falar. É muito dinâmica. Eu acho que ela

tem e a teimosia dela, eu acho que isso é um aspeto favorável, acho que a pode ajudar a ir

mais além. A teimosia dela, por ser, é por ser persistente. Ela é persistente naquilo que quer, e

consegue. Anda, anda, anda até conseguir. Persistente…

E1: Muito bem, as suas preocupações, estávamos a falar… Antes as suas preocupações são

um bocado preocupações do futuro em relação a ela, preocupações da sua vida, digamos que

estão um bocado centradas neste futuro.

Mãe 3: Neste momento é ela, mas isso também tem a ver com a fase não é?!

E1: Claro

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Mãe 3: 9º ano, com a fase de escolha. Vai fazer a via profissional porque tem de ser, já

falámos sobre isso. É a grande preocupação neste momento, mas também ao mesmo tempo

que é preocupação, é qb.

E1: Pois

Mãe 3: Também não estou com aquela ansiedade, não, qb. Neste momento é arranjar

qualificações, ela ainda é novinha. E pronto. Vamos com a ajuda de Deus, vamos encontrar

um caminho. Ela também é crente, ela é crente. Foi uma coisa que eu consegui transmitir.

Fico feliz.

E1: Agradecemos mais uma vez, muitíssimo obrigada.

GRAVAÇÃO 6 (cont.)

Mãe 3: No início, uma coisa muito importante. Haviam umas visitas da Acreditar aos pais e

eu lembro-me que essas visitas foram muito importantes para mim na altura. Porque conheci

pais que me disseram olhos nos olhos: “Esta doença é curável, eu já tive uma filha com esta

doença e ela tem não sei quantos anos”. E eu agarrei-me muito ai… “Tem ano sei quantos

anos e está bem, está viva”… E isso ajudou-me muito… Também é uma das coisas que

ajudou…

E1: E o que é que gostaria de transmitir aos outros pais? Imagine que falaria hoje com os

pais…

Mãe 3: Sim, era desmistificar um bocadinho o tema do cancro, porque acho que a sociedade

também, o cancro tem uma carga muito negativa, muito pesada e é importante conhecer os

casos de sucesso e saber que a ciência evoluiu, há tratamentos que se conseguem fazer e que é

possível, portanto, e é confiar.

E1: Ou seja, consegue adaptar-se a ter uma vida…

Mãe 3: Não só. Eu acho que também é muito importante, o mais importante, tão importante

como de facto o avanço da ciência é: “Eu acreditar”. Eu acho que isso também foi muito

importante. Eu acreditei, eu acho que… O nosso cérebro tem essa capacidade porque se nos

vislumbrarmos uma coisa positiva, isso eu aprendi, se eu conseguir mentalizar-me: “aquilo

vai acontecer”, isso é uma coisa positiva, eu consigo canalizar toda a minha energia para esse

positivo e consegui canalizar isso à minha filha, eu acho. Isso também é muito importante, eu

acho.

E1: O passar isso aos pais?

Mãe 3: Sim, o positivo, porque há aquela carga, eu acho que 90% das pessoas têm: “A minha

vida é horrível, eu estou desempregada, eu não tenho isto, eu tenho um problema de

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doença...” Os portugueses já são tristes por natureza, e o fado é aquilo que nos conhecemos…

Tem que haver… e acho que há uma percentagem de 5% de pessoas que são felizes e que

querem ser felizes e eu acho que o querer ser feliz é mais importante – “Eu quero ser feliz, eu

quero que a minha filha fique curada, eu não quero que ela morra, eu quero esta filha!” E foi

isso que eu sempre pensei – “eu quero que a C. viva” - e se calhar hoje esta ideia que eu

interiorizei e que sempre meti na cabeça - “Ela não vai morrer, ela vai viver”. Não lhe dizia

para ela obviamente, que eu não ia falar disto com uma criança, mas se calhar transmitia-lhe

em todos os gesto que eu estava com ela, portanto. Com certeza que transmiti também outros

quando ansiosa e nervosa, e não sei quê mas… a maior parte das vezes eu transmiti-lhe esta

força e isso se calhar…

E2: A esperança como grande força motivadora para conseguir…

Mãe 3: Isso é o mais importante dizer aos pais, é a força, acreditarem…

E1:Muito obrigada!

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CASAL 03 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – C.

E2: Muito obrigada! Pronto, eu começava por pedir-lhe que regressasse à fase de diagnóstico,

quando a C. foi diagnosticada. E pedia-lhe que se lembrasse das imagens, das experiências

que mais rapidamente lhe vêm à cabeça.

Pai 3: A primeira experiência foi horrível porque, a imagem que tenho é a do Hospital de

Santa Maria, ela numa, em isolamento. Pronto, com um ar perdido, sem saber o que se estava

a saber, dada a idade dela e nós também completamente sem saber o que é que se estava a

passar. É esse a primeira imagem que tenho.

E2: Hum hum. E quando recebeu o diagnóstico. Lembra-se o que é que sentiu e o que é que

pensou e o que é que fez imediatamente?

Pai 3: Não, sinceramente não porque foi um choque daqueles que uma pessoa não está à

espera, não é?! E sinceramente não reagi, não tive aquela… foi como se tivesse levado uma

pancada e ficasse sem reação, portanto resignado àquilo que estavam a dizer.

E1: Foi resignado ou foi um choque? São duas coisas um bocadinho diferentes… digamos

que…

Pai 3: Primeiro foi o choque

E1: Foi aquela sensação que ficou tudo negro?

Pai 3: Não. Foi primeiro um choque depois a resignação de, de realmente haver aquele

prognóstico não é? Não sei se sabe que ainda para mais no caso dela, houve um primeiro

diagnóstico e em seguida todos os sintomas ou todas…

E1: Os sinais

Pai 3: Os sinais da doença tinham desaparecido e depois regressaram novamente, não sei, três

semanas ou quatro semanas depois. Ainda para mais houve uma esperança de que afinal não

há nada e que depois volta outra vez a haver…

E1: Ou seja, houve aqui dois momentos.

Pai 3: Exatamente

E1: Mas no primeiro momento já foi diagnosticado um problema oncológico ou no primeiro

momento não era um problema oncológico?

Pai 3: Sim, quer dizer, havia…

E1: Indícios de

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Pai 3: O indício de que tal ia acontecer mas como houve um primeiro choque de tratamento

com cortisona, eu penso que isso terá mascarado de certa forma e então numa segunda, numa

segunda etapa não se detetou nada nas análises, estava tudo limpo, e depois voltou

novamente.

E1: Está-me a dizer que sentiu um choque grande e depois uma resignação.

Pai 3: Sim, resignação pelo facto de que se, portanto, confirmou que se tratava de uma

leucemia.

E1: E essa resignação foi pensar: “Pronto, é assim”

Pai 3: Exatamente, é assim, vamos ver no que é que isto vai dar. Não tinha noção, não é?!

Não se tinha experiência, não se tinha conhecimento, do que era doença que havia tantos

casos assim como se veio a verificar que havia.

E1: E isso foi em Santa Maria, depois nós sabemos que vieram para aqui.

Pai 3: Sim isso foi depois, um dia ou dois depois viemos para aqui. Exatamente.

E1: Quando veio para aqui as emoções… ainda era o mesmo? De resignação? Ou haviam

outras? Medo, ansiedade… não?

Pai 3: Não, porque o ambiente depois foi totalmente diferente. Não é? O sair de Santa Maria

e vir para aqui veio dar-nos outro ânimo para lutar contra a doença.

E1: Quer dizer que o ânimo lá não era muito bom?

Pai 3: Não porque era um ambiente muito pesado e nós estávamos a pensar: “Bom se vamos

ficar aqui, não sei como é que vou aguentar isto”. Porque… isolamento, estar ali como se

fosse uma doença infecto-contagiosa, que não era o caso disso, era completamente… de

loucos não é?!

E1: Ambiente muito pesado…É muito interessante estar-nos a dizer isso porque está a dizer

que o ambiente lá era muito pesado mas o ambiente do cancro é aqui.

Pai 3: Exatamente

E1: Mas o ambiente lá era muito pesado

Pai 3: O ambiente lá era muito pesado. O ambiente aqui parece que era outro completamente

diferente. E era, portanto, era um mundo diferente, embora estando todos os doentes a lutar

com a doença.

E1: Essa diferença seria em quê? Nas pessoas, no ambiente?...

Pai 3: Nas pessoas, no ambiente físico, em todos os aspetos

E1: Ou seja, sentiu que lá haveria menos competência, digamos, para lidar com os pais?

Pai 3: Sim, sim. Mas também, pronto, nós não tínhamos noção se era lá que iam atacar a a

doença ou se iam noutro sítio. Como lhe digo, não tínhamos experiência, fomos para Santa

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Maria porque era lá que a pediatra da nossa filha dava consultas e era portanto responsável

por um serviço qualquer e mandou-nos ir lá. E depois de verificar todos os aspetos é que

penso que foi no dia seguinte ou dois dias depois que nos enviou para aqui.

E1: E depois ficaram aqui. Muito bem.

E2: Quando recebeu o diagnóstico lembra-se do sítio onde estava?

Pai 3: Não.

E2: Não se recorda do momento em si, de quando recebeu a notícia?

Pai 3:Não, porque quer dizer em Santa Maria ainda só se desconfiava não é?! Não se veio a

constatar, depois com os exames complementares aqui é que se constatou mas não me lembro

sinceramente.

E2: Quais é que foram as maiores necessidades que sentiu nessa altura?

Pai 3: Tempo. Tempo e mais tempo para puder estar em todo o lado não é?! Estar aqui, estar

em casa, estar no trabalho.

E2: Portanto a sua rotina não alterou. Só veio acrescentar esta fase de… em que a C. estava

internada.

Pai 3: Sim, exatamente.

E1: Não ficou cá, ou seja, tinha o seu trabalho, tinha tudo mais…

Pai 3: Sim, porque quem acabou por ficar foi a minha mulher

E1: Claro

Pai 3: Não por ser a mulher mas por ser questões óbvias de afinidade e por a criança ter na

altura 9 meses, 10 meses…

E1: 9 meses

Pai 3: portanto, o pai não estaria aqui a fazer o papel de mãe, era completamente impossível.

Ela é que alterou completamente a vida dela. E eu não alterei completamente se bem que o

meu fim de dia era sempre aqui.

E1: O que é que pensava nessa altura? E se pensar em termos emocionais. Sentia-se melhor

aqui ou quando estava a trabalhar?

Pai 3: É assim, uma pessoa quando está embrenhada no trabalho esquece os outros

problemas, não é?! Mas só se complementava o dia de vir aqui, saber como é que, ver

pessoalmente como é que ela estava e vê-la e também dar algum apoio à minha mulher

porque no fundo depois o que acontecia era que nós sempre conseguíamos estar algum

momento juntos porque íamos jantar ou assim e ela ficava com a minha sogra, por exemplo. E

portanto o dia só se complementava dessa forma. Não era uma questão de realização, era uma

complementaridade.

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E1: Uma complementaridade importante, muito bem. Estávamos a falar das necessidades que

possa ter sentido na altura. Sentiu por exemplo falar com outros pais? Sentiu necessidade de

falar mais com os médicos? Sentiu alguma necessidade que não tenha sido…

Pai 3: Não… porque eu não acho que seja, ou que fosse inteiramente positivo trocar

experiências porque cada caso é um caso diferente. Cada caso reage de sua maneira. O caso

da C. ultrapassou todos os tratamentos com sucesso, portanto, nunca houve uma paragem por

causa disto ou por causa daquilo. Outros casos não. Portanto não sou, não era muito favorável

à troca de experiência. O que falava com os outros pais era conversas normais, não fora, não

dentro da experiência da doença. E com os médicos, pronto, obviamente era o saber como é

que estavam as coisas e quais eram os próximos passos, basicamente era isso.

E1: Com um psicólogo falou alguma vez?

Pai 3: Não. Tive uma má experiência de Santa Maria que…

E1: Pois

Pai 3: … que detestei. Achei que foi um papel perfeitamente… Ou seja, estava-nos a preparar

ou queria-nos tentar preparar para a morte, logo ali. E isso pareceu-me um bocado

desnecessário. Depois aqui não houve mais, não houve nenhum contacto que eu me lembre

com psicólogos até esta ultima fase já, em que a C. veio aqui fazer os testes psicotécnicos,

psico, psica…

E1: Psicológicos

Pai 3: … psicológicos

E1: Foi muito tempo o tempo de internamento, a C. teve um tratamento ainda prolongado.

Lembra-se que alturas é que foram piores?

Pai 3: Eu penso que quando teve naquelas fases dos mielogramas e fazer aqueles exames

mais complicados e que ela tinha sim que ficar isolada, por causa do, por causa do, do…o

sistema imunitário estava em baixo. Foram assim os momentos mais complicados. Porque

depois no global ela nem esteve tanto tempo assim internada face aos que os outros meninos

estavam. Como eu disse os tratamentos foram sempre resultando de forma a que é este tempo

e ao fim deste tempo vai para casa, depois volta. E sempre correram as coisas dentro dos

ciclos previstos. Portanto, as alturas assim mais complicada é quando haviam esses exames

que deitavam o sistema imunitário abaixo…

E1: Abaixo…

Pai 3: E que depois nós não sabíamos se ela ia reagir novamente.

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E1: Pois. Houve então alturas em que se sentiu pior, não é?! Alturas em que estava mais

desanimado, houve alturas em que as coisas não correram tao bem, que se sentia mais

perturbado…

Pai 3: Sim, sim, claro, claro

E1: O que é que fazia? O que é que o ajudou? O que é que facilitou o sentir-se melhor? O que

é que facilitou a sua adaptação?

Pai 3: Era fazer o dia-a-dia e pensar no dia seguinte sempre como objetivo de que havia

esperança que no dia seguinte as coisas estarem melhor. E como isso felizmente sempre foi

sucedendo, ajudou.

E1: Ou seja, a distração do dia… distração no sentido de…

Pai 3: sim

E1: … estar envolvido noutras atividades

Pai 3: noutras atividades

E1: e o planear as coisas

Pai 3: E a história de viver um dia de cada vez

E1: Um dia de cada vez. E também, pelos vistos, ter alguma esperança de que o dia seguinte

trouxesse boas notícias.

Pai 3: Sim, claro.

E1: Havia aqui então também essa esperança…

Pai 3: Sim porque por exemplo quando havia os tratamentos de rotina que, salvo erro, eram

de 3 em três semanas, nós sabíamos que ela ia estar 2, 3 dias mal e depois ia começar a reagir

e portanto isso já se tornava um ciclo. Pronto, agora temos de ter paciência nestes dias assim,

assim, porque ela vai andar mal. Depois arrebitava de um momento para o outro e ficava bem

até ao próximo tratamento.

E1: Mas pelo que me está a dizer nunca estou a ver que alguma vez tenha pensado que a sua

filha podia morrer.

Pai 3: Não, não, não. Sinceramente, a partir de que ela começou os tratamentos, nunca pensei

nisso. Porque obviamente uma pessoa no início não sabia o que é que estava ali não é? No

caso dela, acabou por ser uma leucemia do tipo que ela teve, mas podia ser uma coisa pior,

podia, não sei, se fosse se calhar mieloblástica era se calhar fatal

E1: Hum hum. Há alguma coisa em si que tenha ajudado? Alguma força interior, alguma

maneira de pensar…?

Pai 3: Não sei, não sei. É como digo, era o dia-a-dia só e a esperança de que, de que ela

estivesse a reagir bem.

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E1: E, pelos vistos, aquilo que ajudou também foi ela ter reagido realmente bem, não é? Ou

seja, ia havendo uma evolução positiva e isso ajudou não é?! Que outras fontes de suporte é

que teve na altura?

Pai 3: Que outras…?

E1: Fontes de suporte, onde é que foi buscar o seu suporte? Amigos, família?

Pai 3: Foi a família, os meus sogros em particular, na altura ainda os meus pais que ainda

eram vivos e… e pronto, e depois a minha mulher e eu, em conjunto com a C. que,

procurando ter um ambiente o melhor possível, familiar. Ela dormia connosco obviamente

não é?! Porque nós queríamos tê-la ali ao pé de nós. E eu penso que isso tudo ajudou no

sentido psicológico.

E1: Ela dormia convosco, pelos vistos dormiu até…

Pai 3: Dormiu para ai até aos 6 ou 7 anos, sim

E1: Que esteve convosco

Pai 3: Sim

E1: E acha que isso foi uma consequência da doença? Acha que isso aconteceu porque a

C.…?

Pai 3: Foi uma consequência porque ela já estava a dormir sozinha e depois foi uma

consequência, obviamente a minha mulher não a queria deixar e eu também não, não é!?

E1: Não foi uma decisão da mãe, foi uma decisão dos pais

Pai 3: Sim

E1: de ela permanecer no vosso quarto, continuar perto do vosso quarto. Sim senhor.

Estávamos a falar das necessidades, estávamos a falar do que é que fez durante a primeira fase

para ficar um pouquinho melhor, para se adaptar… E hoje? Como é que é? Como é que vive a

doença? Considera que a doença é muito grave, que é menos grave? Considera que a doença

ficou resolvida?

Pai 3: Não, não penso na doença em si. A doença em si para mim está ultrapassada. O que eu

penso quase todos os dias é nas consequências ou nas mazelas que ficaram visíveis, não é?! E

que se notam dia-a-dia… Essa é a minha única preocupação em termos, pronto, de saúde não,

não é?! Ela está perfeitamente bem. Em termos psicológicos, em termos físicos, em termos

comportamentais é que eu vejo, é que eu me lembro da doença, não por si, mas pelo que

deixou…

E2: É uma preocupação?

Pai 3: É para mim uma preocupação.

E1: Do que é que estamos a falar concretamente?

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Pai 3: Estamos a falar do nível de crescimento dela, do nível de desenvolvimento intelectual

dela, ou não desenvolvimento não é?! É melhor falar assim não é?! Portanto, que há um

notório atraso no desenvolvimento psicológico dela, em que ficou ali retraída. Estamos a falar

em termos de motricidade, das capacidades físicas que ela tem para fazer ou não determinadas

coisas, de alguns medos que ela tem, por exemplo, em subir ou descer determinadas escadas.

E depois em termos donde é que isto tudo nos vai levar no futuro dela.

E1: É uma preocupação. Acha que isso é uma coisa que ficou para sempre, acha que é

modificável de alguma maneira?

Pai 3: Não, sinceramente não.

E1: Acha que não.

Pai 3: Acho que neste momento já não.

E1: Acha que vai ficar, que ela vai ficar, que é difícil…

Pai 3: Vai ficar sempre.

E1: Dificilmente serão modificáveis. Mesmo as psicológicas?

Pai 3: Não. Pode evoluir ligeiramente, mas não estou a ver em grande medida. Não é que ela

não seja, ou não venha a ser independente… e que faça tudo sozinha, não é isso que está em

questão, está em questão determinadas atitudes que ela possa ter ou determinados

desentendimentos que ela possa ter sobre determinado assunto que ela vê de uma forma mas

que não é assim, que é de outra… que nós vemos de uma maneira que para nós é a realidade e

ela deturpa na cabeça dela as coisas.

E1: E acha que isso foi derivado da doença? Do tratamento?

Pai 3: Segundo nos disseram sim, o tratamento terá tido influência direta nestas questões, não

é?!

E1: Hum hum

Pai 3: Não tanto se calhar a quimioterapia mas a radioterapia por causa da… que incidiu

numa altura muito crítica do crescimento dela.

E1: E acha que tudo aquilo que houve à volta dela… miminho, o dormir com os pais até aos 7

anos… Acha que isso não poderá também ter influenciado, ou…?

Pai 3: Não está provado

E1: (risos)

Pai 3: Não está provado porque como nós entretanto tivemos outra filha que está na mesma

situação a dormir connosco que as coisas são, são diferentes não é?!

E1: Digamos então que este hábito de dormir com os pais permaneceu?

Pai 3: Pois mas aqui foi mais uma imposição da filha do que dos pais.

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E1: (risos) Ou seja, os pais cederam à imposição?

Pai 3: Sim, pronto, estamos à espera, diariamente que ela diga que quer ir para a cama dela…

E1: E acha que isso vai acontecer?

Pai 3: Eu pelo menos aos 18 anos, espero que sim

E1: (risos) Perto dos 18 anos. Estava-me a dizer o que é que pensa da doença, alguma vez

pensou nas causas da doença?

Pai 3: Sim, já pensei mas não, não chego a conclusão nenhuma quer dizer, estas coisas não

têm razão de existir, não é de existir, é d éter uma origem nisto ou naquilo, ou que se comeu

isto ou que se respirou aquilo ou que se teve sujeito a um ambiente qualquer. Não sei, é uma

deficiência qualquer que veio, genética, ou no sangue, ou o que fosse… Provoca, porque nos

outros casos que se vêm, que vemos à nossa volta, também aparentemente não vemos porquê,

qual é a razão.

E1: E em termos de doença? Acha que é a pior doença do mundo? Acha que é a pior das

piores ou não?

Pai 3: Não, olhando para trás não é a pior do mundo.

E1: Que outras há, quer-me dar um exemplo?

Pai 3: Não consigo dar nomes concretos, mas vejo coisas que não lembra, ano lembra ao

diabo como se costuma dizer. Há doenças que não têm explicação nenhuma e são 100 vezes

piores. Não sei, estava-me a lembrar, olhe, lembrei-me, não sei qual é o nome da doença, mas

vi noutro dia um documentário de uns pais que, esses sim, devem sofrer imenso porque

ambos os filhos acho que nasceram de… ahh… por incubação artificial e ambos têm uma

deficiência que envelhecem ou que envelhecem prematuramente e já andam os dois, não são

autónomos, não conseguem andar, não comem sozinhos… Aquilo é uma doença degenerativa

E1: Gravíssima

Pai 3: Que é gravíssima, portanto aquilo não tem reversão possível, só vai piorar e isso sim é

uma coisa que nos deve deixar com uma angústia. Não sei como é que aquelas pessoas

conseguem viver diariamente. Porque ai, elas não têm vida, não podem trabalhar, não podem

fazer nada…

E1: Muito bem… e em termos de consequências da doença? Esta doença teve que

consequências, para si, para a sua família, para o…Hoje analisando, pense assim… já vimos

uma consequência que foi a C. ter dormido até tarde com os pais, mas a C., pelos visto,

também acontece a mesma coisa… De maneira que…

Pai 3: Sim

E1: Será a doença mais ou menos. Mas vê alguma, outra consequência?

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Pai 3: Não, quer dizer, houve coisas que podem ter vindo na sequência ou não, da doença,

que é o facto de, por exemplo, a maior parte ou muitos dos pais fazem sempre férias sozinhos

algum período de tempo ou fazem fins-de-semana sozinhos. Nós nunca fizemos nada

sozinhos, nós sempre, onde nós íamos, ela ia. Mesmo jantar fora, nós íamos, ela ia. Portanto,

abdicamos de ir por exemplo ao cinema ou… todos esses programinhas que se faziam a sós

não é?! Quando um ia íamos todos. Sempre foi essa a filosofia lá de casa.

E1: Isso é positivo ou negativo?

Pai 3: Eu acho que é positivo. Quer dizer, isso depende do ponto de vista das pessoas. Eu

considero que há alguma forma de egoísmo naqueles pais que fazem as coisas sozinhas.

E1: Considera agora ou considerava antes de ter a doença?

Pai 3: Já considerava mas considero hoje mais.

E1: Hum hum

Pai 3: Porque quando nos diziam: “Ah vamos passar uma semana não sei aonde”. Imagine, às

caraíbas ou ao México ou ao que for. E os filhos ficam cá. Hoje em dia considero isso um

acto de egoísmo.

E1: Isso é ir 8 dias para o México. E se for ir ao cinema ou passar um fim-de-semana fora?

Pai 3: Não, ir ao cinema, isso é um exagero que isso é uma hora e meia, duas horas, não é

isso que está em causa.

E1: Mas um fim-de-semana?

Pai 3: Um fim-de-semana também não… Estou a dizer é ir a um sítio diferente, um sítio

bonito, um sítio que vai ser maravilhoso e deixar as crianças para trás.

E1: Considera isso… o resto ano será tanto egoísmo como isso? O resto, o ir assim um fim-

de-semana não será tanto egoísmo?

Pai 3: Não, não, não, isso já não.

E1: Já é um bocadinho diferente. Então temos então esta consequência que é uma parte

positiva, uma parte menos boa, mas uma consequência de ter juntado mais a família, de vos

ter transformado num núcleo duro.

Pai 3: Sim

E1: E outras? Houve algumas outras? Negativas… Em termos profissionais…

Pai 3: A nível profissional, a minha mulher, com certeza, foi…

E1: Prejudicada

Pai 3: Afetada… prejudicada por isso, não é?! Porque poderia ter desenvolvido a carreira dela

normalmente e isso não aconteceu porque esteve a trabalhar em part-time durante bastante

tempo para acompanhar a C.. Ai…

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E1: E a si alguma coisa que possa dizer que também teria sido diferente?

Pai 3: Não…

E1: Não…

Pai 3: Penso que não.

E1: Não. E pessoalmente? Sentiu que se modificou?

Pai 3: Pessoalmente, só, vamos lá ver, talvez a nível de uma relação mais intima entre o casal,

ai claro que houve consequências. Mas pessoalmente não.

E1: Consequências negativas, positivas?

Pai 3: Olhe, não sei como é que se podem dizer, se foram negativas ou não, não é?! As coisas

passaram a ser diferentes.

E1: Passaram a ser diferentes… Hum hum. Mas considera que essa diferença é uma diferença

que prejudicou o casal ou a qual o casal de foi adaptando?

Pai 3: Ahh… Prejudicou mas obviamente fomos adap… Não sei se fomos tanto adaptando ou

se fomos mais… Como é que hei-de dizer?! Deixando as coisas correrem, pronto, ou… É um

adaptar, mas é u adaptar no sentido, pronto, olha vai ter que ser assim, é assim.

E1: Hum hum. Mas fê-lo sentir-se pior ou…

Pai 3: Não, lá está o ser humano ai adapta-se não é?! E acostuma-se. Era isso que eu queria

dizer.

E1: Mas considera que aquilo que consideraria na altura, antes da doença, como ser “o que eu

quero”, modificou-se? E fez com que se resignasse e…?

Pai 3: Sim, sim

E1: Isso alterou-se?

Pai 3: Sim, embora hoje em dia não consiga olhar para trás e pensar o que é que eu queria ou

que é que, como é que seria. Não consigo pensar ou imaginar.

E1: E considera hoje estar adaptado?

Pai 3: Sim

E1: Ou seja, alteraria alguma coisa?

Pai 3: Não, não alteraria nada.

E1: Só que, digamos que, a noção de adaptação alterou-se um bocadinho não é?!

Pai 3: Claro

E1: Foi-se alterando. E consequências em termos familiares? Houve?

Pai 3: Não, não. Que eu tenha assim… noção, não houve nenhumas consequências

E1: Mas em termos de família, amigos por exemplo?

Pai 3: Não, isso não, não.

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E1: As coisas correram…

Pai 3: Normalmente, sim. Tudo correu normal.

E1: Normal. Ou seja os amigos que tinham hoje são os amigos que tinham hoje?

Pai 3: Sim, sim. Tiveram algum apoio suplementar na altura, não é?! Mas pronto depois as

coisas correm e voltam ao normal, está tudo…

E1: Ou seja afastaram-se, houve permanência perto?

Pai 3: Não, está tudo como estava.

E1: Considera normal. E quem é que vos ajuda hoje? São só vocês?

Pai 3: Não, são os meus sogros que me dão algum apoio também, especialmente nos períodos

de férias não é?! E nós claro.

E1: Hum hum. Ainda em relação às consequências, acha que a forma como é pai, portanto a

parentalidade, se alterou devido à doença, ou não?

Pai 3: Penso que sim. Mais, mais preocupação, portanto, mais pai, neste caso pai galo, não

mãe galinha

E1: (risos) Mas pai galo para a sua filha que teve um problema ou pai galo para todos?

Pai 3: Para todos.

E1: E acha que a doença o tornou mais, o levou a ficar mais preocupado e por isso estar ali

a…

Pai 3: Sim, sim… Levou-me a estar mais preocupado no sentido que, lá está, nunca sabia

como é que iria ser o dia seguinte, portanto vamos lá fazer as coisas com calma, vamos seguir,

vamos acompanhar, vamos refilar mais.

E1: Hum… Refilar?

Pai 3: Sim

E1: Então, refilar como?

Pai 3: Não, refilar mais com as coisas que não corressem assim tão bem, não é?!

E1: Estar mais presente e dizer “a minha filha precisa disto, precisa daquilo”

Pai 3: Sim, sim.

E1: Então é isso. E a relação com a sua filha também ficou mais…enfim, mais permissivo?

Pai 3: Sim.

E1: Acha que isso também a tornou mais…

Pai 3: Mas, muito mais, porque é assim, tudo o que ela pede, ainda hoje, se eu puder eu dou-

lhe. Eu dou-lhe logo. E durante o período da doença e da convalescença pior ainda, não é?!

Ela tinha tudo o que queria.

E1: E isso teve alguma consequência se calhar?

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Pai 3: Se calhar veio a ter porque ela hoje não consegue dar valor às coisas que tem ou que é

que custa ter aquilo que quer, ou saber preservar também as coisas que têm, não…

E1: Hum hum

Pai 3: Mas eu penso que isso não é só ela, será a maior parte delas, mas pronto, no caso

concreto, ela nesse aspeto não tem essa noção porque sempre teve tudo o que quis.

E1: Hum hum. Alguma vez, neste caminho todo sentiu necessidade de falar com um

psicólogo?

Pai 3: Não.

E1: Nunca?

Pai 3: Não.

E1: Acharia que o psicólogo que ia perturbá-lo? Não tinha mesmo necessidade, tinha a sua

vida mais ou menos orientada?

Pai 3: Nunca pensei nisso mas sempre tive as minhas ideias mais ou menos orientadas. Não

sentia necessidade de estar a ser por alguém, algum profissional.

E1: Hum hum. E se hoje falasse com os pais, com pais de crianças que tiveram cancro, dir-

lhes-ia o quê? Que souberam ontem, imagine, que souberam ontem que a filha tinha…

Pai 3: Lá está a tal coisa, não é?! O meu exemplo há-de ser único, o dos outros eu não sei por

onde é que irá. De qualquer maneira o que eu poderia dizer era aquela conversa que toda a

gente pensa que temos de ser otimistas, temos de pensar que as coisas vão correr bem, lá está,

vamos viver um dia de cada vez porque não vale a pena estar a pensar que amanhã vai estar

mal ou que daqui a uma semana isto acabou tudo, ou que há outro problema qualquer, não.

Vamos, vamos… acompanhar a criança, vamos dar-lhe todo o amor possível, vamos…

E1: Mas muito centrado no aqui e agora, não é?! Vamos viver cada dia de sua vez…

Pai 3: Exatamente

E1: Centrar as coisas no aqui e no agora. E aos profissionais de saúde, o que é que lhes diria?

Alguma coisa que pense que é importante, que os profissionais de saúde tenham ou sejam?

Pai 3: Eles sempre foram inexcedíveis, sempre espetaculares em todos os aspetos,

profissionais, humanos… de amizade para com a C.. A única coisa que eu poderia dizer era,

hoje em dia, obrigado por aquilo que fazem e continuem a fazê-lo como sempre fizeram,

porque realmente foram extraordinários.

E1: Ou seja, a proximidade de partilha, de informação também…

Pai 3: Sim, sim… Sim. Tudo de uma forma muito, muito clara, muito aberta.

E1: Hum hum

E2: Mostraram-se disponíveis para…

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Pai 3: Sempre, sempre, sempre, sempre.

E1: Muito bem. E consegue-me descrever a sua filha?

Pai 3: Em que aspeto?

E1: Aqueles que quiser. É uma redação sobre a C..

Pai 3: A C. é uma, hoje em dia, já é uma adolescente e é uma ad… e está naquela fase muito

complicada da vida, não é?! Que é a adolescência, que é a chamada idade do armário. Tem

coisas que um dia acorda bem-disposta, outro dia acorda com 7 pedras na mão. Um dia

adormece a refilar, outro dia adormece a cantar… Portanto, está naquela inconstância da vida

em que nada, nada é certo. Não podemos estar à espera que as coisas sejam como nós

pensamos, que ela muda, não é do dia para a noite, é de hora a hora. Ahh… e pronto. É uma

miúda que neste momento tudo o que vê, quer, mas eu penso que lá está, isto tem a ver com

esta fase. Se tivéssemos aqui a falar uns anos antes, a descrição seria diferente, ou uns anos

mais tarde, a descrição seria com certeza diferente.

E1: Mas tem a ver com esta fase e com as características que falava à bocadinho da doença?

Com as sequelas que a doença deixou?

Pai 3: Sim, ao mesmo tempo não é?! Porque tem a ver com a fase da adolescência, dos 1/16

anos.

E1: Hum hum

Pai 3: As hormonas, o querer viver tudo ao mesmo tempo… e querer ter tudo o que vê nas

lojas e que vê que as amigas têm… E isso em simultâneo com as dificuldades depois que ela

tem em aperceber-se da realidade em que vivemos. Eu digo-lhe “Olha, este mês temos isto

assim, assim”. Mas ela daqui a uma hora está a dizer: “Uns ténis, assim, assado, umas

calças…” Não interioriza o problema, portanto, e… E pronto, depois disso temos as outras

coisas dela, de não ter noção do que é que quer fazer após ter terminado agora o 9º ano. Ahh e

também não ter noção de que o 9º ano foi feito de uma forma muito, muito levezinha,

portanto… Que ela não sentiu as dificuldades que os outros sentiram. E isso não, não é nada

bom uma pessoa não ter a noção dela, de… não ter a noção de …

E1: Claro. Mas acha que foi apoiada? Foi apoiada?

Pai 3: Foi, foi. Foi muito apoiada, foi muito apoiada. Pelos professores…

E1: Está-me a dar uma descrição emocional dela, essencial, não é?! A maneira de ser.

Pai 3: Exatamente

E1: Fisicamente como é que é?

Pai 3: Fisicamente é… É completamente descontraída, muito, muito ligada ao corpo, ao

visual. Portanto, quer estar sempre 100%. Isso como todas as adolescentes nesse aspeto, nesse

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aspeto, ai, ela segue. Segue o que os outros seguem. Mas pronto, sempre arranjadinha,

penteadinha, tudo.

E1: Adolescente, purinha.

Pai 3: Exatamente!

E1: Sim senhor. Muitíssimo obrigada.

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CASAL 04 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – D.

E2: Agradeço mais uma vez a sua presença, é muito importante para esta investigação. E, de

facto, a primeira coisa que eu lhe pedia, N, era que regressasse, na medida do possível, e se

recordasse da fase inicial da doença, portanto, o período, o dia, em que o D foi diagnosticado

Mãe 4: Quer que conte?

E2: Aquilo que vier à sua cabeça

Mãe 4: Pronto, isso está mesmo memorizado na minha mente. Nunca vou esquecer, foi

momentos muito maus que nós passámos e portanto, foi um dia normal, um Sábado em que

almoçamos, eu e a irmã, o meu marido como eu já disse, é camionista, não estava e…foi um

almoço normal e, pronto, e reparei. Almoçou, ele andava um bocadinho murcho mas eu

achava que se tinha constipado, estava assim um bocadito…comentei com o meu marido ao

telefone, mas pronto, ele comeu, eu disse à minha filha que o ia deitar, que ele dormia sempre

a sesta e, em espaço de momentos, foi momentâneo, olhei para ele, ele estava a brincar no

corredor e ficou com uma nódoa negra, apareceu uma nódoa negra na cara. E na véspera,

tinha… na véspera não, nas antevésperas tinha aparecido uma nódoa negra no peito do pé e na

barriga e eu pedi na véspera uma reunião com a educadora e disse-lhe que havia alguém que

lhe batia, que pronto, poderia ser complicado, para ela investigar porque eu fui-lhe dar banho

e vi-lhe as nódoas negras e eram nódoas negras muito negras, portanto era impossível no peito

do pé, ou teria alguém o aleijado, ou caído uma mesa em cima do pé dele, porque ele usava as

botas grossas… Ela disse-me que não, que não tinha assistido a nada, que não tinha visto nada

e que era impossível e eu disse: “então vá chamá-lo e agora nós vamos ver”. Quando a

educadora viu, que ele estava na escolinha, ficou apavorada, ficou assim um bocadinho… E

ela disse que ia ver, que agradecia eu ter…

E2: O D tinha que idade?

Mãe 4: O D tinha 3 anos, 3 anos e meio

E2: 3 anos e meio

Mãe 4: 3 anos e meio… E entretanto, nesse dia eu trouxe-o logo para casa e andei assim um

bocadinho a vigiar e no dia a seguir, que era o tal Sábado, foi aparecendo novamente a nódoa

negra e eu pensei e disse: “Isto não pode ser, o D não caiu, não bateu em lado nenhum”

E2: Portanto estranhou as nódoas negras que o D tinha no corpo. O que é que fez?

Mãe 4: Fui logo ao hospital. Eu tinha um cozinhado até a fazer e desliguei logo e disse: “S,

vamos ao Hospital de Santa Maria porque o menino não está bem, portanto apareceu ontem-

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ontem as duas nódoas negras, hoje aparece-lhe, agora que a gente estava em casa com ele, não

viu ele a bater em lado nenhum”, portanto isto tem de ser um problema de sangue, eu lembrei-

me logo que tinha de ser um problema de sangue.

E2: Portanto entrou com o D numa urgência

Mãe 4: Na urgência de Santa Maria

E2: De Santa Maria

Mãe 4: No dia 10, 10 de Fevereiro, 10 de Fevereiro de 2011

E2: Hum hum

Mãe 4: Entretanto foi Sábado, o meu marido não estava, estava em viagem, na altura no

hospital fui à enfermeira e a enfermeira deve ter contactado com os médicos, ele fez logo

análises, ficou logo na sala

E2: E recebeu nesse dia o resultado?

Mãe 4: Sim, passado umas horas, eu estava muito ansiosa porque eu vi que aquilo era grave

E2: Passado umas horas de entrar na urgência recebe a notícia

Mãe 4: Sim. E portanto a Doutora estava com receio de me dizer e eu disse: “Oh doutora é

grave não é?”. Ela disse: “É mãe, temos de conversar”. “Então ou Doutora, então diga-me”.

Ela disse-me: “Já vamos conversar”. Depois levou-me para uma salinha e disse: “Olhe mãe, é

grave”. Mas ela não teve coragem de me dizer e eu disse: “Oh Doutora é uma leucemia, não

é?”. Ela disse: “É mãe”. Quando eu ouvi a notícia que era a leucemia foi como se o mundo

tivesse terminado. Foi ali uma coisa horrível. (emociona-se)

E2: Sentiu que o mundo terminou quando recebeu a notícia

Mãe 4: Muito, completamente. Ele é meu filho adoptivo, eu fui buscá-lo ao hospital, mas ele

é como seja meu filho biológico, porque eu sinto. Tenho outra filha e sinto os mesmos, as

mesmas angústias…

E2: Claro

Mãe 4: É igualzinho, ele só não saiu dentro de mim. E então acho que foi um dos piores dias

da minha vida.

E2: O que é que pensou?

Mãe 4: Senti que Deus não era meu amigo, senti que Deus não era amigo do D, porque o D

foi rejeitado pela mãe à nascença não é? E fui eu, ele era para ir para uma instituição e eu

disse que gostava de ter outro filho, mas não podia ter, então quando soube fiquei assim um

bocado apavorada. E depois falei com a pessoa e tratei de tudo e fui buscá-lo. Ele é meu filho

mas com a adopção plena, completamente, fiz tudo legal, tudo…

E2: Hum hum

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Mãe 4: E… portanto, achei que ele não foi feliz à nascença porque foi abandonado e achei

que Deus não era justo, não tinha sido correcto com ele porque, com aquela doença, com 3

anos e meio…

E2: Portanto assim que recebe a notícia pensa: “Deus não é meu amigo”

Mãe 4: Não! Não é meu… era dele, era mais dele…

E2: E o que é que pensou mais nessa altura N?

Mãe 4: Nessa altura telefonei para o meu marido, a minha filha estava lá à espera, eu disse-

lhe, vim cá fora, pedi para vir cá fora

E2: Estava com a sua filha na urgência

Mãe 4: Estava, e com o meu irmão, o meu irmão tinha ido lá ter. E eu disse: “Olha o D vai

ficar, e vou ficar”

E2: Portanto ficaram em Santa Maria inicialmente

Mãe 4: Ficámos logo em Santa Maria. Entretanto, eu telefonei ao meu marido a dar a notícia,

depois quiseram-me dar um calmante, deram-me um calmante mas eu não queria porque eu

não reajo bem a calmantes, não gosto…

E2: Emocionalmente estava muito nervosa

Mãe 4: Estava

E2: A sua reacção perante, perante o diagnóstico…

Mãe 4: Eu sabia que era grave e pensei logo no tipo de doença

E2: Foi um choque N?

Mãe 4: Foi! Mas estava sempre naquela esperança que não fosse… Quando a doutora me

disse, quando eu disse à doutora: “Oh doutora é uma leucemia não é?” Ela disse: “É mãe”.

Foi com estas palavras: “É mãe!”. Eu senti uma coisa brutal dentro de mim, uma coisa, uns

nervos, uma revolta… (emociona-se)

E2: Revolta

Mãe 4: …uma revolta, como é que era possível?! Foi momentos muito maus, muito difícéis,

muito, muito, muito…

E2: E o que é que fez? O que é que achou que tinha que fazer e o que é que fez?

Mãe 4: Entretanto eu tentei-me, fiquei um bocado revoltada

E2: Hum hum, sentiu revolta

Mãe 4: Muita! Até quando estava lá em cima, eu nunca, nunca mais fui à minha casa, fiquei

sempre com o D, a S entretanto tinha 16 anos e depois telefonei ao meu cunhado e ao meu

irmão para a minha afilhada ir para lá para ao pé dela; entretanto o meu marido chegou porque

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ele estava de regresso a casa, o meu marido chegou na segunda-feira de manha, aliás até

conseguiu chegar à noite

E2: Portanto tinha-lhe ligado a contar a notícia

Mãe 4: Sim, ele já vinha de regresso

E2: Lembra-se da reacção do seu marido?

Mãe 4: O meu marido eu não o vi, o meu marido comove-se mas fala pouco.

E2: Hum hum

Mãe 4: Também deve ter sentido a mesma coisa que eu… (emociona-se)

E2: Como é que o sentiu?

Mãe 4: Falámos pouco ao telefone porque eu só queria estar ao pé dele

E2: E disse-lhe: “Jvem rápido…?”

Mãe 4: Não, disse “João, estamos na urgência, o D tem uma doença grave, vai ter de fazer

quimioterapia…” Porque eu mais ou menos não tenho grande instrução mas mais ou menos

sei

E2: Hum hum

Mãe 4: Vai fazer tratamentos, quimioterapia, vai ser transferido para o IPO e agora vamos

ficar o fim-de-semana aqui, na segunda-feira de manhã vamos ser transferidos. “Ah mas têm a

certeza?”, “Sim, a Doutora já confirmou”. Salvo erro, puseram-no logo a soro, assim uma

coisa qualquer, porque tinha de iniciar os tratamentos aqui.

E2: Hum hum

Mãe 4: Entretanto, ele no Domingo, o D apareceu com umas feridinhas, assim umas

borbulhagens. E eu dizia: “Oh doutora, o que é que o meu filho tem? Ele tem umas borbulhas

no corpo”. “Oh mãe, isso é da doença”. E eu fiquei assim…

E2: Era da leucemia?

Mãe 4: Não, mas não era. Eu fiquei assim um bocado preocupada, entretanto fomos

transferidos aqui para o IPO, para o Hospital de Dia, para o doutor Ambrósio, que era o chefe

aqui da pediatria e viemos, viemos de ambulância

E2: Mas foram transferidos quantos dias depois de estarem em Santa Maria?

Mãe 4: Portanto isto foi no Sábado que ele deu entrada e fomos transferidos de manhã de

segunda-feira…

E2: Disseram que tinham de ser transferidos para aqui. Quando ouviu IPO o que é que

pensou?

Mãe 4: Nada… não tive…

E2: Sentiu diferenças do Santa Maria para o IPO? Sentiu-se melhor, pior…?

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Mãe 4: Não. Eu queria era que o D ficasse bem e eu sei que este hospital é de referência e é

muito bom, pronto. Eu tinha que entregar o meu filho às melhores pessoas não é?!

E2: Claro

Mãe 4: Foi isso que eu senti. Ele tinha era que vir para o hospital tratar-se.

E2: Hum hum

Mãe 4: Entretanto fomos atendidos e eu disse: “Oh doutor Ambrósio, o D tem estas férias,

estas borbulhinhas”. E o doutor disse: “Ah ele não pode estar aqui, ele está com varicela, ele

tem de sair imediatamente daqui porque os meninos que estão a fazer quimioterapia não

podem estar em contacto com ele”.

E2: Foi um extra?

Mãe 4: Foi. Porque na escolinha dele, em Novembro, isto foi em Fevereiro, em Novembro

tinha havido um surto de varicela. Mas, ele como era um rapazinho forte e coiso, não…

andavam com ele mas não entrava nele…

E2: E sente que isso dificultou?

Mãe 4: Na altura assim um bocadinho, porque nós tivemos de sair imediatamente daqui. Não,

saímos imediatamente do hospital e entretanto Doutor Ambrósio, que foi excelente, tinha uma

colega de curso no Hospital Dona Estefânia e no Hospital Dona Estefânia têm aqueles quartos

ventilados, isolados...

E2: Foram transferidos…

Mãe 4:... e telefonou e disse, não havia na altura ambulâncias e o meu marido tinha deixado

ali o carro em Santa Maria, então o meu marido foi buscar o carro, foi no nosso carro

directamente para a Estefânia e na Estefânia a Doutora já estava à espera dele com um quarto

isolado e preparado para ele. Depois lá é que foi muito mau porque a doença agravou, ele não

podia iniciar os tratamentos, estava ligado com tudo… Lá as maquinas só apitavam, tínhamos

que curar primeiro, explicaram-me, tínhamos de curar primeiro a varicela e só depois viria

para aqui novamente para iniciar os tratamentos e quimio… só que ele começou a ficar muito

doente, ficou mesmo…

E2: Dificultou também para si, o seu equilíbrio emocional?

Mãe 4: Não, eu ai, eu tinha…eu estive sentada durante uma semana, a dormir sentada numa

cadeira sem me vestir, despir, só tomava um banho de manhã e voltava a vestir outra roupa

porque me davam, iam-me lá levar roupa, mas eu tinha necessidade de me despir de noite e

foi horroroso, foi a pior coisa para mim, para me sentir melhor, para o ajudar, porque aquilo

era propriamente para ele, eu é que não saia de ao pé dele não é?! Nem sequer a casa-de-

banho dele eu usava, não podia usar, tinha de ir lá para fora. Então ele apitava muita vez a

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máquina e eu chamava a enfermeira e a enfermeira, eu disse: “ah isto está só a apitar”. “Não,

não se preocupe” – eu sei que era para me tranquilizar - “Não se preocupe que é a máquina

que está avariada”.

E2: Sentiu que a enfermeira a queria tranquilizar?

Mãe 4: Sim, sim, sim. Mas eu tinha consciência de como ele estava. Entretanto ele, houve um

dia que se levantou, quando se sentiu todo ligado, levantou-se a arrancar aquilo tudo, foi…

pronto, depois tivemos a acalmá-lo e aquilo tudo, depois dávamos-lhe banho, eu é que tratava

dele, assim do banho e assim… e tentámos sarar as feridas e aquilo tudo. No dia 12 de

Fevereiro… 10, 10 de Feve… não não foi, então eu enganei-me… No dia 10, sim dia 10 foi

para o Hospital e no dia 12 deu a entrada, que ele no processo dá entrada, mas depois só

voltámos na semana a seguir para aqui e depois tivemos aqui cerca de 3 semanas ou de 1 mês

para fazer os tratamentos

E2: Os tratamentos…Hum hum. Lembra-se das necessidades que sentiu na altura?

Mãe 4: As necessidades…

E2: Quais foram as suas maiores necessidades, ou seja, durante o tempo de tratamento do

D…

Mãe 4: Mas a nível de quê?

E2: A nível do que quiser, ou seja, aquilo que sentiu que precisava

Mãe 4: Para o ajudar a ele?

E2: Para tudo, para o seu equilíbrio no fundo. Sentiu que…

Mãe 4: Não, isso foi, a mim, na Estefânia a pior coisa foi essa, é que eu queria tirar o soutien,

queria-me pôr à vontade e eu não conseguia, foi uma aflição.

E2: Hum hum, portanto isso foi algo que dificultou

Mãe 4: Foi 10 dias assim, 8 a 10 dias que para mimfoi horrível, porque eu gosto quando

chego a casa, dispo-me, tomo um banho e ando à vontade com uma roupa larga, à vontade…

E2: Portanto era o desconforto

Mãe 4: Para mim foi o desconforto. Foi…

E2: Que sentiu aqui também no IPO?

Mãe 4: Noa, não. Aqui já foi diferente. Já tínhamos um cadeirão, já era diferente

E2: Hum hum. Portanto, o que me está a dizer é que o desconforto sentido no Hospital da

Estefânia a nível de…

Mãe 4: …porque aquilo era propriamente só para ele, eu é que queria estar ali então não

havia grandes coisas não é?! E então era uma cadeira ao lado da caminha dele.

E2: Hum hum. Foi algo que dificultou, não é?!

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Mãe 4: Pronto, mas eu superei isso. Isso para mim até foi o menos porque o que eu queria na

altura é que ele estivesse bem e melhorasse… que essa semana foi muito complicada…

E2: Era o seu objectivo

Mãe 4: Era, era…

E2: Não se lembra de coisas que impediram, que dificultaram o seu equilíbrio emocional?

Relações dentro do hospital quer com os profissionais, quer com outros pais…

Mãe 4: Não, isso passou-se aqui, houve um episódio que eu não gostei e depois a Doutora

Ana Neto falou com a enfermeira, eu não quero dizer nomes da enfermeira, quer dizer agora

não me lembro de momento, mas mesmo que quisesse não digo, porque depois a pessoa até

voltou a afalar comigo, normal e eu esqueci, pus uma pedra no assunto… Foi esse episódio

que, eu gosto muito da minha higiene pessoal e salvo erro foi no primeiro dia que chegamos

aqui, ele foi para um quartinho isolado e eu queria ir à casa-de-banho e depois chegámos de

manhã e eu não tinha tomado banho e tinha as minhas coisas e quis-me ir lavar… Nem era

propriamente para o banho, era só para me lavar e… e eu tive que tempos para vir alguém

perto de mim e eu queria ir à casa-de-banho e aproveitei que era para me lavar e entretanto

chegou a enfermeira e eu não estava e a enfermeira disse, ralhou comigo e disse: “A senhora

não estava aqui porque foi tomar o pequeno-almoço”. E eu disse: “Olhe, eu não fui tomar o

pequeno almoço que eu ainda estou em jejum, eu fui à casa-de-banho e fui-me lavar”. E foi

brusca comigo. E eu disse: “e não seja mal criada comigo porque eu estou aqui e ainda nem

sequer comi desde ontem à noite”.

E2: Portanto foi um episódio que dificultou ali um bocadinho, naquele momento a sua

estabilidade emocional

Mãe 4: Foi. Mas depois eu enervei-me, chorei, pronto, porque pronto, em primeiro lugar era o

D e eu não estava ali para me aborrecer nem para nada, foi só isso. Mas depois a Doutora,

entretanto chegou a doutora Ana Neto, que é uma jóia de doutora

E2: Facilitou a relação com a doutora?

Mãe 4: Acho que foi das coisas melhores que nos aconteceu.

E2: Foi a doutora que seguiu o D?

Mãe 4: Sempre

E2: E foi um facilitador de adaptação à doença, a sua relação com a médica?

Mãe 4: Foi, foi ela que me ajudou…Foi, foi. Muitas das vezes ela chamava-me do quarto dele

e dizia: “Mãe, venha conversar”. Porque ela sentia que eu estava revoltada.

E2: Essa revolta continuou ao longo do tratamento do D

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Mãe 4: Ela dizia: “Tem de aceitar mãe”. “Não doutora, não aceito, não aceito porque o meu

D tem direito a ser feliz”. Eu dizia isto. E ele está mal… (emociona-se) Ele está mal, não é

justo, Deus não é amigo dele porque ele não tem culpa de nada, ele veio ao mundo e só esta a

sofrer. E ela dizia: “Não mãe, tem que aceitar porque se aceitar a doença dele é mais fácil para

o ajudar”. E ela disse: “Não, ele vai ser, ele é feliz, e ele é feliz” – dizia-me ela, ainda me

lembro das palavras dela. Eu lembro-me de tudo, das palavras, tudo. Ela dizia-me que: “Mãe,

ele foi feliz porque a encontrou a si. Se tivesse na outra família, ele já tinha morrido, lembre-

se disso”. E ela dizia: “Vá ali um bocado à capela”. E eu disse: “Não, não vou”.

E2: Estava zangada

Mãe 4: Estava zangada. E eu disse: “Eu já estive lá à porta, abri a porta, mas não consigo

entrar”. E chorei à porta, não era capaz (emociona-se).

E2: Portanto, a N é uma pessoa crente e nesse momento sentiu descrença

Mãe 4: (emociona-se) Acho que Deus não foi justo com o meu filho. (emociona-se) Mas

depois compreendi, mais tarde compreendi, sei lá, eu considero isso tudo que talvez tivesse

sido uma provação de Deus para comigo. Uma provação. E quando saímos daqui, nós saímos

num Sábado também e no Domingo fui eu, o meu marido, o D, e a minha, a S à igreja de

Odivelas. E eu tive sempre com ele ao colo e eu chorei toda a missa, toda, toda, toda

(emociona-se) Porque eu não consigo perceber porque é que chorei. Não consegui perceber

porque desde que eu entrei na igreja eu chorei o tempo todo ao longo da missa e depois vi

melhor e percebi que tivesse, tenha sido uma provação de Deus para comigo ou para ver se eu

era realmente competente de o ter, de ter ficado com ele…

E2: Foi ai que aceitou?

Mãe 4: Foi

E2: E a revolta passou?

Mãe 4: Completamente

E2: E o que é que sentiu? Saiu a revolta…

Mãe 4: Um alívio, uma tranquilidade…

E2: Tranquilidade para continuar a lutar?

Mãe 4: Foi 2 anos de quimio e radio, 10 sessões de radio…

E2: Também fez radioterapia

Mãe 4: Fez. E portanto, a partir daí eu considerei isso. Ou mentalizei-me… Não sei se foi s

enão, mas eu própria mentalizei-me que seria assim e pronto, nós sempre fizemos o melhor

pra o D ficar bom. Eu fazia os esquemas da medicação numa folha para não me enganar.

Nunca falhou um medicamento. Ele tomava 32 comprimidos

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E2: Era muito cuidadosa com os tratamentos

Mãe 4: Completamente. Eu ainda outro dia mostrei-lhe. Ainda tenho as folhas dos esquemas

porque ele só descansava uma semana e fazia 3 semanas o tratamento. Quer dizer, em casa,

não tinha nada a ver com o daqui, porque aqui eram os dias certos, mas em casa ele levava

medicação certa para fazer.

E2: Hum hum. Portanto foi uma estratégia que utilizou para lidar com a doença. Lembra-se

que outras estratégias é que utilizava, o que é que fazia para lidar com a situação?

Mãe 4: Ele… ele com a doença e com os tratamentos a Doutora ensinou-me que, ele de noite,

que poderia pedir, por exemplo bifes, costeletas, batatas fritas, e que eu tinha que dar, porque

era do tratamento, era o organismo que pedia. E eu disse: “Está bem Doutora, eu faço”.

E2: Em casa

Mãe 4: Em casa. E depois ela dizia, ele dizia: ”Mãe…”. Ele comia muito, ele ficou… uma

vez disse à Doutora: “Doutora, tenho medo que ele rebente”. Porque ele ficou muito inchado,

barriga enorme, parecia aqueles miúdos que há em África, aquelas barrigas enormes, assim

uma coisa… e eu dizia: “A pele está muito fininha, tenho medo”. E ela dizia: “Não, não faz

mal. Quando parar o tratamento isso volta tudo ao normal”.

E2: Havia ali uma sobprotecção do seu filho não é? Queria protegê-lo...

Mãe 4: De tudo e de todos e… Entretanto ele dizia: “Mãe, apetece-me costeleta”. Andava 3

semanas a comer costeleta ao almoço. “Mãe apetece-me…” Ele gosta muito de truta, gostava

muito de truta frita. “Mãe, quero truta.” Mas houve uma época que não havia a truta, então, o

meu marido ficou com ele, corri os supermercados todos à procura da truta, não havia truta,

havia salmão…

E2: Tentava ao máximo satisfazer as necessidades do seu filho, os desejos do seu filho

Mãe 4: Completamente. Tudo. Não lhe faltou nada.

E2: Isso ajudava-a também?

Mãe 4: Ajudava-me a mim porque eu via que ele ficava satisfeito, ficava e depois ficava ali

assim mais bem dispostinho porque ele com a falta de comida, eu notava que ele até ficava

nervoso, ansioso. Ele estava a comer ao almoço e agarrava-me na mãe, tinha necessidade de

me agarrar e dizia: “Mãe tu vais comprar, ou tens cá…” Dizia, por exemplo, bifes ou uma

coisa qualquer… “mas tens cá, mas tu fazes mãe?”. Eu ainda estava a almoçar – “Mas tu

fazes?” E eu disse: “faço, não vês que a mãe faz isso tudo para ti? Faço! Se não tiver a mãe

compra”.

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E2: Portanto, digamos então que uma das coisas para ajudar a lidar com a situação era fazer o

plano dos medicamentos, era também tentar satisfazer os desejos do D relativos à

alimentação…

Mãe 4: Eu deixei de trabalhar Dr.ª

E2: Deixou de trabalhar

Mãe 4: 2 anos, 2 anos.

E2: E sente que isso foi algo que ajudou?

Mãe 4: Sim, sim, sim. Nem tinha outra hipótese.

E2: Foi algo que quis?

Mãe 4: Sim, sim… Foi logo, eu telefonei…

E2: Para poder acompanhar…

Mãe 4: Eu sou reformada por invalidez desde os 26 anos, mas eu trabalho a dias. Pronto e

nessa altura eu trabalhava em casa de uma Dr.ª e telefonei e ela disse: “Sim senhora N, não

tem qualquer problema”. Ela até chegou a vir aqui vê-lo…

E2: Sentiu compreensão por parte das pessoas

Mãe 4: Sim, sim, sim, sim, sim, sim…

E2: Sentiu que teve apoio?

Mãe 4: Sim.

E2: De toda a gente?

Mãe 4: Da minha família, pronto, há aquelas pessoas que às vezes não… Eu tenho irmãos,

somos 8 irmãos e tenho irmãos que vinham sempre ao hospital, sempre acompanhados,

sempre em casa, mas tinha outros que não conseguia… Mas não quer dizer que não quisessem

saber. Não tinham coragem de me ver assim e de o ver a ele.

E2: Hum hum. Nem por isso deixou de sentir apoio?

Mãe 4: Não, não, não.

E2: Sentiu-se sempre apoiada?

Mãe 4: Sempre, e aqui também no hospital

E2: Pela família

Mãe 4: Pela família

E2: Pelos amigos

Mãe 4: Os amigos

E2: Pelos profissionais

Mãe 4: Os profissionais, quer dizer, é desde o doutor, à enfermeira, auxiliar, tudo… à dona

Nazaré do Lions, toda a gente aqui… Eu, isto é a minha segunda casa. Ele sabe isso e eu digo-

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lhe isso e continuamos a vir, as pessoas, a doutora, sentimos um carinho muito grande pela

Dr.ª Ana Neto. Agora já não é a Dr.ª Ana Neto, foi um choque muito grande quando ela teve

que o deixar porque foi 5 anos, no fim dos 5 anos passou a Dr.ª Ana Teixeira. Gosto muito da

Dr.ª Ana Teixeira, é uma jóia, é uma querida, mas ela também, portanto são trabalhos

diferentes

E2: Claro

Mãe 4: O D agora já é grande, o D pronto, já está numa fase diferente, só de…

E2: Já vem anualmente

Mãe 4: Só anualmente. Mas a Dr.ª Ana Neto, não temos grande intimidade porque tem de

haver uma separação entre médico e paciente, não é?! Mas é uma amiga, é uma amiga, tanto

minha como dele, ele adora-a. Ele não é muito de dar beijinhos mas ele adora a Dr.ª Ana

Neto. Ele até brincava com ela quando entrava no gabinete, fechava-a sempre à chave lá

dentro connosco (risos). Ela já sabia que ele fazia isso, era uma brincadeira que ele tinha.

E2: Isto já na fase de sobrevivência?

Mãe 4: Sim, sim. Porque lá no Hospital, ele não falava com ela.

E2: Hum hum

Mãe 4: Não falava…

E2: E portanto, isto na fase da sobrevivência. Mas sente que, o próprio D a ajudou a

ultrapassar a doença?

Mãe 4: Ah sim. Houve um episódio, um episódio lá quando estávamos internados que ele

teve um pico de febre e ficou muito mal. E depois ele levantava-se da cama e coiso… E ele

disse: “Mãe, eu não quero morrer mãe!” E eu disse: “Não meu querido, não se fala nisso!” E

estava a minha filha, a S também lá, nesse dia…

E2: Evitava falar na morte?

Mãe 4: Completamente! Não se falava nisso.

E2: Evitava

Mãe 4: Não falava mesmo

E2: Era uma negação

Mãe 4: Sim. E a S estava lá porque nos tinha vindo ver e era a hora da visita e ela, e ela saiu,

fugiu. Começou a chorar porque ela gosta muito do irmão (emociona-se) E o irmão está

connosco, ela pediu para ter um irmão e como eu não podia ela pediu-nos para se ir inscrever

na Santa Casa e depois aconteceu que surgiu o D nascer. Ela sempre… Eles gostam muito um

do outro, são muito ligados…E ela não queria ouvir quando ouviu ele a dizer: “Mãe eu não

quero morrer”, ela fugiu, foi-se embora para casa.

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E2: Também não quis. Também negou.

Mãe 4: Não. Nem disse nada, largou porta fora a chorar.

E2: Estava-me a dizer que o D a ajudou

Mãe 4: Ajudou e eu senti a força nele quando me disse isto

E2: E foi também a sua força

Mãe 4: Foi… mas eu queria-o era a ele, tinha de ir buscar forças para o curar, para o ajudar,

para lhe fazer tudo…

E2: E onde é que ia buscar essas forças?

Mãe 4: Eu acho que a ele.

E2: Só a ele?

Mãe 4: Só a ele.

E2: E na fase em que a revolta passou e que veio aquele alivio que me estava a dizer há

pouco… Não sente que também a sua fé a ajudou…por exemplo

Mãe 4: Sim, sim, sim.

E2: E de que forma?

Mãe 4: Agradeço todos os dias ainda hoje quando… Eu tenho carta de condução mas vou

para o trabalho de metro, vou até ao metro de carro e estaciono lá. Eu quando saio de casa a

primeira coisa que eu faço é agradecer a Deus ter cá os meus filhos, os dois, porque a minha S

também já teve cancro de mama, já fez 2 mastectomias. E portanto, é a primeira coisa, todos

os dias eu agradeço e a Nossa Senhora de Fátima. E quando vou para o Norte é uma das

coisas que eu, não fiz isso como promessa porque eu acho que as promessas eu não consigo

fazer aquelas promessas que eu vejo porque eu não tenho força já…

E2: A sua relação com Deus

Mãe 4: É falar. Eu falo muito com Deus, agradeço, peço que me ajude, o meu filho, orienta o

meu filho, ajuda-me a mim a superar esta coisa, ajudá-lo. É assim que eu falo, eu falo todos os

dias, depois rezo, mas é… Eu às vezes até faço isso no trabalho.

E2: Ao início dizia a Deus: “Tu não foste bom com o meu filho”. E quando houve aquele…

Mãe 4: Ah mas eu falei com ele, falei e disse que: “Como é que é possível”, pronto, eu sou.

Eu disse-lhe que só podia ser uma provação de Deus aquela minha revolta

E2: Foi isso que lhe disse depois quando sentiu o alívio

Mãe 4: Foi. E agradeço e quando vamos para o Norte passo sempre em Fátima. É uma hora

que nós perdemos, não estou lá o dia todo mas é o ponto…

E2: Algo que faz com agrado

Mãe 4: E fazemos todos

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E2: Hum hum

Mãe 4: Fazemos todos, paramos, rezamos, vamos lá acima à catedral, depois vamos comprar

as velas, depois vamos rezar o Pai Nosso à capelinha

E2: Portanto continuam crentes

Mãe 4: Sim, sim, sim

E2: Houve ali um momento de perdão não é?

Mãe 4: Sim, considerei completamente.

E2: Claro. E estava-me a falar também há pouco do seu suporte social, dos médicos, dos

amigos, da família. Vocês tiveram apoio psicológico na altura?

Mãe 4: Na altura a Dr.ª disse que não era necessário. Eu falava com a Dr.ª Maria de Jesus.

Houve uma altura que eu estava ainda lá internada, tinha almoçado e encontrei, fui almoçar ao

3º ou 4º andar. E ela disse: “fui ver o D, mas ele está bem”. E eu disse: “Então Dr.ª e é preciso

falar comigo?” E ela disse: “Não, não é necessário”. E eu disse: “Está bem”. Entretanto, aqui,

no Hospital de Dia, o que ficou sempre marcado na minha mente foi o choque…

E2: O choque

Mãe 4: O choque no Hospital, quando a gente deu entrada no Hospital, da notícia

E2: O impacto da notícia

Mãe 4: Isso!

E2: O choque que sentiu

Mãe 4: Isso ainda me abala comigo, se eu falar…

E2: Do choque que sentiu, aqui já no IPO?

Mãe 4: Não, foi no Santa Maria

E2: Foi em Santa Maria como me estava a dizer…

Mãe 4: Em Santa Maria

E2: Mas então aqui no Hospital de Dia…?

Mãe 4: No Hospital de Dia é que havia a enfermeira, que ela também tinha, era enfermeira

mas dava aulas

E2: Hum hum

Mãe 4: Que era a…ai como é que ela se chama, era a enfermeira, eu até tenho o contacto

dela, mas não gosto de estar a incomodar. Não me recordo, mas se me lembrar ainda lhe digo

E2: Mas então essa enfermeira…

Mãe 4: Essa enfermeira dava assim um bocadinho, quando via que os pais estava assim um

bocadinho em baixo, chamava-os ao gabinete enquanto os meninos fazem o tratamento e

íamos falar come ela.

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E2: Hum hum

Mãe 4: É Paula D, já me lembrei! E ela dizia-me: ”Mãe, vamos conversar um bocadinho”. E

eu disse: “está bem”.

E2: Isto no Hospital de Dia

Mãe 4: No Hospital de Dia

E2: No início dos inícios?

Mãe 4: Sim, sim, sim, sim

E2: Primeiros tratamentos…?

Mãe 4: Não, ainda foi assim umas semanas. E ela ouvia-me, assim como a Dr.ª e eu falava, e

ela dizia que era o choque da notícia que para mim foi o que em afectou mais

E2: Hum hum. Sente que a notícia tivesse sido dada de outra maneira…?

Mãe 4: Não… a Dr.ª até foi…

E2: Foi o impacto de saber…

Mãe 4: Foi o impacto de saber a leucemia

E2: O nome…?

Mãe 4: O nome!! Ela nem falou em cancro, disse que… Eu disse: “É uma leucemia”.

“Leucemia, eu sei”.

E2: E que tipo de leucemia?

Mãe 4: Na altura a Dr.ª explicou-me, a Dr.ª Ana Neto, que era uma leucemia linfoblástica

aguda. E eu disse: “Oh Dr.ª mas acha que é necessário ir para fora do país, é preciso alguma

coisa?” Ela disse: “Não mãe, nós actualmente temos…”

E2: Os protocolos

Mãe 4: “…os protocolos como lá fora, são os mesmos e não há necessidade disso porque o D,

o que nós estamos aqui a fazer é o que se faz lá fora”. E eu fiquei com plena consciência de

que ela estava a fazer o melhor e com…

E2: Confiança

Mãe 4: Confiança

E2: A confiança nos médicos ajudou-a

Mãe 4: Sim! Muito, muito. Com a tal médica foi espectacular e é, e é. Ela é espectacular.

E2: E estava-me então a falar do apoio psicológico. Portanto foi no momento?

Mãe 4: Foi, foi umas 2, 3 vezes que eu fui falar e depois já não foi preciso mais.

E2: Sente que se tivesse sido acompanhada, ou seja, consultas regulares, acha que tinha

ajudado ou que tinha sido igual?

Mãe 4: Não sei.

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E2: Em algum momento sentiu necessidade?

Mãe 4: Sabe Dr.ª, a Dr.ª sabe que… Depois ele melhorou, não é?! Aquilo depois passou…

E2: Ou seja, o melhorar do D ajudou-a a continuar…

Mãe 4: Sim, sim… Depois mais tarde é que depois fui-me outra vez um bocadinho a baixo

porque, não sei se a Dr.ª sabe mas quando a minha filha, foi diagnosticado um problema do

peito à S

E2: E o D ainda estava internado?

Mãe 4: Não, não. Isso foi… quer dizer, quando o D estava bem, estavam as coisas…

E2: Isto já na fase de sobrevivência, o que me está a falar?

Mãe 4: Portanto o D fez 2 anos, portanto a S fez isso há 5, vai fazer 6

E2: Foi 10 anos depois do D ter…

Mãe 4: Portanto 9 anos.

E2: 9 anos

Mãe 4: Após 9 anos veio outra vez aquilo e eu fui-me um bocado a baixo e depois ele com o

choque, eles são muito unidos, tornou-se obsessivo-compulsivo.

E2: Com a noticia de a irmã também ter…?

Mãe 4: Ele não diz que foi, mas eu falei com a Dr.ª Maria de Jesus e falou com a psiquiatra

E2: Recentemente?

Mãe 4: Portanto, foi há 5 ou 6 anos. E elas não viram razão porque isso começou nesse verão,

da doença. E começou a lavar as mãos, a lavar as mãos, a lavar as mãos… E eu disse: “O que

é que se passa?” E eu disse: “Oh Dr.ª, ainda bem que a vejo, porque encontrei a Dr.ª…” Ah

não, isto foi assim, nessa mesma altura houve um problema qualquer da escola, e ele foi, ele

começou, começava a vomitar antes de ir para a escola e houve ali um período que eu não

estava a perceber, e a minha S disse: “Oh mãe, se calhar é melhor falarmos com a Dr.ª”. E Eu

disse: “Então explica tu à Dr.ª Maria de Jesus”. Não foi à Dr.ª Maria de Jesus, foi à Dr.ª Ana

Neto. E ela mandou vir para o neurologista e o neurologista viu e disse que não havia

problema e depois foi para uma consulta para a Dr.ª, e depois a Dr.ª mandou-o para a

psiquiatra. E depois, a Dr.ª, juntamente coma psiquiatra, é que acharam que foi o assunto da

S.

E2: Que despoletou?

Mãe 4: Foi. Só que entretanto isso agravou. Começou com a lavagem das mãos, o banho dele

durava 3 horas, 4 horas. E ele gastava um sabonete num banho, era ele a pedir socorro e a

gritar: “Mãe ajuda-me, mãe ajuda-me”. E eu sentada na sanita e no bidé a chorar: “Oh D sai,

oh D deixa, oh D…”. Foi horrível, horrível, horrível, horrível, horrível… Uma coisa…

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E2: Foi uma consequência da doença.

Mãe 4: Uma coisa horrível, a Dr.ª nem imagina.

E2: Hum hum. Vamos só aqui voltar à fase de diagnóstico, para terminar, porque já vamos

entrar nessa fase, na sobrevivência. E portanto, já me falou um bocadinho daquilo que ajudou-

a, não é?! Aquilo que ajudou o seu equilíbrio emocional, foi o próprio D com a sua força que

a motivou também a ter força…

Mãe 4: O não ter mais ninguém e o ter acontecido quando nasceu, e depois a doença, acho

que ele tinha que ser feliz, ele tem direito a ser feliz…

E2: Portanto, ele tinha força, e a força dele ajudou-a…

Mãe 4: E o facto de ele dizer a mim: “Mãe eu não quero morrer”, acho que foi essa parte que

eu reagi.

E2: Hum hum. O que é que ajudou além disto, o que é que ajudou o seu equilíbrio emocional,

já vimos algumas coisas, que outras coisas? Alguma coisa mais que se lembre? O próprio

curso da doença ajudou-a? Ou seja…

Mãe 4: Não, isso era uma meta

E2: Mas havia evoluções nos tratamentos?

Mãe 4: Havia. Ele depois melhorava…

E2: E isso ajudava-a também?

Mãe 4: Ajudava. Ele teve um cateter durante 5 meses, era, pronto… Eu tinha que lidar com

um bebé, não é? Eu tinha que… aprendi na minha casa-de-banho, que eu tenho uma casa-de-

banho dentro do quarto, era só para ele; o bidé desinfectei-o todo, era onde ele se lavava

porque ele era pequenino, para não molhar os cateteres nem nada disso tudo. Lavava-lhe a

cabecinha… Pronto, ele era pequenino não é?! Foi, olhe, eu tinha de o salvar e eu fiz tudo,

tudo, tudo o que tinha que ser, pronto… Tinha que ser, ele é meu filho, tinha que ser…

E2: Hum hum. Portanto, disse que fez para salvar o seu filho, para ajudar o seu filho, foi o

plano de tratamentos, foi o querer satisfazer os desejos do D, foi acompanhar o D em cada

dia, em cada noite que passou, quer no Hospital, quer em casa…

Mãe 4: Quer em casa. Eu quando volitei a casa, a primeira vez com ele, a minha casa até

parecia mais bonita porque tivemos 1 mês sem ir a casa e pronto, quando não temos as coisas

depois damos mais valor não é?! E…

E2: Pronto foi isto tudo que ajudou no fundo?

Mãe 4: Foi

E2: Lembra-se de alguma coisa mais que queria acrescentar que a ajudou?

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Mãe 4: Eu fui, sabe que uma mãe trepa tudo e faz tudo. Eu conheci uma senhora que deitava

as cartas.

E2: E foi à senhora pedir que lesse…

Mãe 4: Eu quando entrei no hospital eu pedi para ver o meu filho, para ver e para fazer

qualquer cosia pelo meu filho e fiz, pronto, não fui eu…

E2: Isso foi algo que a ajudou, portanto? Essa leitura de cartas…

Mãe 4: Eu não fui lá, mandei a minha filha, ou mandar pelo correio ou foi ela lá a casa. Acho

que mandamos pelo correio uma fotografia dele para ela ver e ela só me dizia: “O teu filho

vai-se curar, o teu filho vai-se curar”.

E2: E essa resposta

Mãe 4: E essa… dava-me mais ânimo, dava-me mais força

E2: Foi também uma força motivadora para continuar a lutar…

Mãe 4: Pois…Aliás, eu acho que uma mãe nunca desiste não é?!

E2: E portanto isto foi o que a ajudou. O que dificultou? Já vimos um bocadinho: foi aquele

episódio com a enfermeira.

Mãe 4: Foi…

E2: Foi algo muito passageiro…

Mãe 4: Foi…eu esqueci completamente, porque acho que às vezes as pessoas também não

estão bem dispostas e… pronto.

E2: Foi também ao início, o facto de o D ter a varicela

Mãe 4: foi, que atrasou e podia ter sido fatal ai

E2: E mais? O que é que dificultou mais além destas coisas? Além… Ou seja, o que é que

dificultou além desta, portanto…

Mãe 4: Dificultou o meu marido não estar cá, foi o que dificultou. Foi mau porque ele se

estivesse cá ajudava, não é?! Mas ele também não tem culpa, alguém tem de trabalhar. E ele

também sofre, sofre porque eu sabia que ele, o facto de não estar connosco também sofria

E2: Razoes profissionais

Mãe 4: Sim, porque nós vivemos do trabalho, não…

E2: Hum hum

Mãe 4: Não temos ninguém que… Eu não tenho pais, os meus sogros são muito velhotes,

estão na terra, portanto não temos ninguém que nos ajude, não é?! E portanto alguém tinha

que trabalhar e … mas eu sei que custava ao meu marido e era mais difícil porque eu sei que

eu vinha aqui fazer, ao longo do tratamento, há aquelas pulsões, coisas que se fazem…

E2: Sim, sim

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Mãe 4: E deixava o carro, depois deixava uma enfermeira, depois vinha, depois levava-o

sozinha… Foi isso que dificultou, mas também por um lado foi bom eu ter a carta, lembro-me

muita vez disso…

E2: A carta tinha tirado recentemente?

Mãe 4: Não, não, já a tenho há muitos anos.

E2: Isso era uma ajuda para se deslocar, para…

Mãe 4: Foi espectacular porque se não como é que eu fazia?! Ou táxi, ou…

E2: Teve de ser um bocadinho autónoma, não é?! Teve de…

Mãe 4: Eu sempre fiz tudo sozinha

E2: A N, a S e o D, enquanto o seu marido estava em viagem, depois quando ele voltava…

Mãe 4: Era, era… E continuou com a S quando esteve também…

E2: Hum hum. E a informação médica que teve na altura, acha que foi suficiente, acha que

necessitava…?

Mãe 4: A Informação?

E2: Sim

Mãe 4: Não, a Dr.ª Ana Neto explicou-me, ela tinha o cuidado de me chamar, nunca falava

assim à frente dele, para ele não ouvir. Ela chamava-me ao gabinete…

E2: Sente que sempre ficou esclarecida?

Mãe 4: Sim, sim

E2: Ou seja, não sente que teve informação a mais ou a menos, sente que era aquilo que

precisava

Mãe 4: Não, não. Ela dizia, ela explicava, dizia: “Mãe venha cá, temos que falar”. E eu dizia:

“Então Oh Dr.ª mas é grave? Acha que ele consegue sobreviver? Essa leucemia é mais grave,

é a do transplante?” E ela dizia-me: “Não, não é a do transplante, a do transplante é a

mieloblástica”.

E2: Isso ajudava? Saber que era das leucemias a melhor?

Mãe 4: Sim, ajudou-me muito. Porque eu pensava que na altura fosse preciso o transplante e

ela disse: “Não”. Eles só sabem depois de fazer uns certos exames – “O D tem oitenta e

qualquer cosia por cento de sobrevivência”. E agente agarra-se a tudo isso. Ora 80 e tal era

belíssimo não é?! Portanto, o contacto entre mim e a Dr.ª Ana Neto foi muito bom. Muito

bom.

E2: Hum hum. Foi ela que ajudou…

Mãe 4: Ajudou bastante, até quando eu não aceitei a doença, essas coisas…

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E2: N, e há bocado eu perguntava também das necessidades que sentiu, não é?! Portanto, isto

de querer o seu marido cá era uma necessidade, não era?! Precisar do apoio do seu marido

aqui…

Mãe 4:Sim.

E2: Lembra-se de outras necessidades? Por exemplo, falar com os pais, com outros pais que

tivessem internados…

Mãe 4: Ah eu falei algumas vezes com alguns pais, falei…

E2: Mas era uma necessidade?

Mãe 4: Não, não… Era a enfermeira que dizia: “mãe pode vir falar?”

E2: Ah, o acolhimento de outros pais. Mas eu digo se sentiu necessidade no sentido de

partilhar a experiência, de querer, ou seja interagir enquanto estava internada com outros pais,

por exemplo…

Mãe 4: Não, não, não.

E2: Não. Não queria…

Mãe 4: Não porque eu só estava no quarto.

E2: Queria estar sempre ao lado…

Mãe 4: essa altura não, essa altura não.

E2: Hum hum

Mãe 4: Eu sei que quando estávamos internados, depois passava à salinha, comer à salinha…

Esteve, não sei se é Madalena, ou se é… Madalena da Acreditar, uma senhora, agora é

senhora… Eu acho que é Madalena o nome dela… que ia lá dar o testemunho dela…

E2: Era uma Barnabé?

Mãe 4:Era. Tinha tido uma leucemia e já era…

E2: E ajudava essas experiências…?

Mãe 4: Sim

E2: que ouvia, ou seja experiências de pessoas que já pasSm pela mesma situação e

sobreviveram?

Mãe 4: Sim, sim, sim, sim. Será que vou conseguir, assim como eles? Isso é óptimo.

E2: Ou seja, olhava para a Madalena como alguém que já superou isto e…

Mãe 4: E ela explicava para nós não desanimarmos, ter muita fé, muita esperança, sempre…

E às vezes digo, esperança… ainda nesta semana fomos ao Hospital de Dia…

E2: Sentia esperança na altura?

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Mãe 4: Sim, sim, sim, sim… E dizia, estavam lá umas mães e o D gosta de ir lá a ver se é a

mesma enfermeira que está lá… a gente vai ver… E cumprimenta-las e… foi um carinho,

ficou sempre um carinho entre as enfermeiras…

E2: Hum hum

Mãe 4: … e os médicos… E eles… estavam umas senhoras e eu disse: “Muita fé em Deus,

muita coragem, tem de se ter muita coragem, muita fé em Deus e muita esperança, nunca se

perde”. A gente nunca pode perder a esperança, nunca. E o D também disse. Portanto,

estavam lá meninos pequeninos…

E2: Portanto, este apoio de outras pessoas que já tinham passado pela situação também

ajudaram não é?

Mãe 4: Sim, sim.

E2: E estávamos a falar das necessidades. Sentiu, por exemplo, necessidade de tempo? Para

si, de ter mais tempo para…

Mãe 4: Ah não, eu deixei isso completamente de lado

E2: Ou seja, basicamente, a única necessidade que sentiu …

Mãe 4: Tivemos… tivemos um ano e tal sem ter relações

E2: E sente que isso foi bom, que foi mau?

Mãe 4: Não, na altura foi bom porque em primeiro lugar estava ele… Porque e tinha de estar

perto dele na altura o D até dormia comigo na cama, na cama de casal, o meu marido dormia

E2: Para estar mais perto?

Mãe 4: Para estar mais próxima dele

E2: Para protegê-lo?

Mãe 4: Não foi muito tempo mas os primeiros dias foi assim, depois ele já estava, já foi para

o quarto dele, mas a Dr.ª Ana Neto sabia.

E2: Portanto, em termos de necessidades, não vê aqui nada que posso ter sentido que

precisava nessa altura? Que teve ou que não teve?

Mãe 4: Necessidades… Eu aqui eu houve uma senhora que era a Dr.ª que me ensinou para eu

meter os papéis à segurança social

E2: Para receber o subsídio?

Mãe 4: Sim, que eu não sabia, foi ela que foi lá acima à pediatria falar comigo

E2: Sente que de alguma maneira teve dificuldades económicas durante o período em que

esteve sem trabalhar?

Mãe 4: Não, porque o meu marido esteve sempre a trabalhar

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E2: Portanto havia ali um balanço?

Mãe 4: Havia. O dinheiro não era muito, não era muito, era tudo muito contado. Em primeiro

lugar as coisas dele e as coisas, pronto… Mas nunca faltou nada

E2: Claro. N e voltando agora à fase actual, à fase de sobrevivência do D. O que é que pensa

da doença neste momento?

Mãe 4: Olhe, eu não sei como é que hei-de explicar. O que é que penso, penso que o meu

filho e um lutador, já sofreu muito para a idade que tem e… Uma vez a Dr.ª Ana neto disse-

me: “Mãe, deixou de ter um menino da idade dele, passou a ter um menino mais velho, mais

maduro, porque o sofrimento amadurece as pessoas”. E eu lembro-me muito destas palavras

dela. E é verdade, e é verdade.

E2: E sente que a doença do D foi a mais severa do mundo ou que há outras doenças mais

severas?

Mãe 4: Não. Eu às vezes digo que o D, quando vemos casos na televisão de doenças e assim,

eu digo: “Estás a ver D? Há sempre coisas mais graves do que a nossa”

E2: Portanto, sento que a leucemia linfoblástica…

Mãe 4: É grave, é uma doença grave e de risco

E2: Mas não é a mais severa?

Mãe 4: Mas, mas pronto, aquelas pessoas que estão… Há coisas piores, que eu às vezes digo

ao D, até para o ajudar a superar a doença…

E2: E causas?

Mãe 4: Causas… Deixa, deixa… Eu acho que deixa e está-se a ver agora

E2: Eu digo, digo, N, causas de, portanto, acha que… O que é que causou a doença, o que é

que acha que pode ter causado a doença?

Mãe 4: Ah isso eu, eu própria disse à Dr.ª Ana Neto: “Dr.ª fui eu que falhei nalguma coisa?”

E2: Sentiu culpa?

Mãe 4: Culpa

E2: Na altura do diagnóstico sentiu culpa?

Mãe 4: “O que é que eu fiz”, quando cheguei aqui… “O que é que eu fiz Dr.ª, o que é que eu

fiz para o D… foi alguma coisa que eu errei…?” Ela disse: “Não mãe, não se culpe, não se

culpe porque isto não escolhe nem idades, nem sexos, nem meios sociais, nada…” E eu

depois tive a prova, tive a prova que lamentei muito porque o D depois teve necessidade de

ter óculos e eu fui aqui e estava lá o Dr., o Dr. Laranjeira e o Dr. Laranjeira teve com a filha

na mesma altura que nós… Entretanto o D saiu, e foi pronto, melhorou e depois quando eu

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cheguei ali ao serviço de oftalmologia quem era o médico do D era o Dr. Laranjeira, eu nem

sabia que ele, o Dr., que ele era Dr., agente cruzava-se quando ia à noite buscar os leites…

E2: Estava a passar pela mesma situação

Mãe 4: Estava a passar pela mesma situação… E depois eu disse à secretária: “desculpe lá,

este Dr. Não teve lá em cima?” E ela disse: “Esteve. Mas a menina morreu a semana

passada”. Uma menina com 2 anos, mais pequena do que o D. E eu fiquei assim, fiquei… E

ele perguntou-me como é que ele estava, se estava melhor e eu disse que sim, nem lhe falei na

filha porque sei que a pessoa estava a sofrer e ao mesmo tempo ouvir que o D também estava

a sofrer não é?! Pronto, ele é uma pessoa impecável também…

E2: Estava-me a falar das causas, o que é que acha que causou a doença…

Mãe 4: O que causou a doença

E2: O que causou

Mãe 4: Eu pensei que primeiro que fosse a má alimentação, mas eu até sou cuidadosa nisso e

ela disse: “Não, não, não foi, isto está provado que, os estudos que às vezes pelas ondas…”

não é ondas, é…

E2: radiações

Mãe 4: Radiações e portanto não há bem propriamente estudos que…

E2: Portanto, a partir desse momento achou que não, que não havia uma causa em si

Mãe 4: Não, não. Foi o que ela me explicou e eu percebi pronto, entendi

E2: Hum hum. E em termos de controlo? Acha que a doença está controlada…?

Mãe 4: Eu, eu, eu agradeço que esteja, mas está. Quer dizer, actualmente está porque ele

ainda na semana passada foi aqui à consulta dos duros e as análises dele são belíssimas disse a

Dr.ª

E2: Hum hum

Mãe 4: Portanto eu peço a Deus que esteja

E2: E para si está?

Mãe 4: Para mim está. Para mim está. Há qualquer coisa no meu coração que me diz que está

E2: E sente alguma preocupação? Quais são as suas preocupações hoje em dia com a doença?

Sente algumas ou não sente?

Mãe 4: Com a doença dele actualmente eu não sinto, eu tenho medo é que mais tarde,

pronto… Eu sei que ele não é, deixou sequelas…

E2: Deixou sequelas?

Mãe 4: Eu acho que deixou porque ele é um miúdo que não é forte, não, não… Ele gostava

de praticar desporto, não consegue, deixou o futebol…

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E2: Portanto deixou sequelas a nível físico…

Mãe 4: Físico… Cansa-se muito

E2: Cansa-se muito

Mãe 4: E cada vez é pior. Disse à Dr.ª: “Dr.ª ele cansa-se muito, cada vez pior”

E2: Fadiga

Mãe 4:E ela diz que o coração, porque ele faz os exames e estava bem, fez há 2 anos, há 2

anos ou o ano passado. E ela ensinou-me até e falou com ele e disse: “Olha D, o teu coração, a

quimio estraga algumas coisas não é? E a radio mas actualmente o teu coração está óptimo,

para a tua vida normal, agora se fores fazer desporto, ai é que pode não aguentar assim muito

bem”

E2: E a nível cognitivo?

Mãe 4: Cognitivo eu acho que está bem, que ele sempre foi muito inteligente, ele foi para a

escola

E2: ele tem agora 18 anos

Mãe 4: Tem 18, já entrou na faculdade, já fez o primeiro ano…

E2: Está em que curso?

Mãe 4: Engenharia informática, de computadores. Ele entrou para a escola mais cedo, ele fez,

entrou para a escola, ele com 4 anos… Ele era…

E2: A terapia que ele fez não afectou a nível cognitivo e escolar, de aprendizagem?

Mãe 4: Nada

E2: Nada

Mãe 4: Ele fez um ano de quimioterapia, a fazer a primeira classe e a segunda. E os

tratamentos…

E2: A nível psicológico e emocional?

Mãe 4: Muito mal. Porque ele aborrecia-se com os outros, não tinha paciência para aturar os

outros, chorava, a professora também foi espectacular, tinha muita paciência com ele…

E2: Mas isto já recentemente?

Mãe 4: Não, não, na primeira classe

E2: Mas portanto eu digo…A sobrevivência do D começou quando ele entrou portanto para à

primária não é? O período de sobrevivência

Mãe 4: Sim

E2: O que eu pergunto é, depois da conclusão do tratamento não é? Vimos então que houve

algumas sequelas a nível físico, nomeadamente a fadiga, o cansaço

Mãe 4: A fadiga e o cansaço

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E2: A nível cognitivo o D está limpo não é? Está completamento adequado e adaptado

Mãe 4: Sim, sim

E2: A nível psicológico há aqui uma… há algo emocional…?

Mãe 4: Não está bem

E2: Não está bem emocionalmente.

Mãe 4: Não

E2: E o D nunca foi acompanhado?

Mãe 4: Sim, pela Dr.ª Ana Neto, pela Dr.ª…

E2: Maria de Jesus

Mãe 4: Maria de Jesus

E2: Está a ser acompanhado?

Mãe 4: Está a ser acompanhado até agora

E2: e emocionalmente então…

Mãe 4: Não anda bem porque ele também teve problemas na escola, ele como era muito

inteligente os outros gozavam com ele porque ele sabia sempre tudo, punha sempre o dedo no

ar, sempre foi marcado pelos outros.

E2: Hum hum

Mãe 4: Ele chegou agora…

E2: Portanto não era propriamente da doença em si, era já algo…

Mãe 4: Mas agora mais tarde eu estou a notar que ele está revoltado. Ele é um menino que às

vezes fala comigo: “Pois, maldita doença porque se não tivesse tido a doença…” E eu disse:

“Dá graças a Deus de estares cá”, digo-lhe eu.

E2: Mas se não tivesse tido a doença…?

Mãe 4: Porque acha que teve estes problemas e nunca mais se livra de vir aqui ao hospital…

E2: É uma revolta

Mãe 4: É, é. E o facto de ele…

E2: Mas no entanto quando vem, gosta de vir ver as pessoas

Mãe 4: Gosta, gosta de vir, e ver as médicas. Ele tem muita confiança neste hospital, nas

médicas, tudo…

E2:Hum hum

Mãe 4: Só que eu acho que ele é um bocadinho infantil para a idade porque ele não brincou

quando devia ter brincado, ele teve ano e meio isolado…

E2: Ele adiou a infância?

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Mãe 4: Foi. Eu noto isso. E na altura superou muito bem a doença mas agora mais velho, na

adolescência, aquilo trabalha na cabeça e depois diz que não tem amigos e ninguém gosta dele

e porque ele é assim, se não tivesse tido a doença… Tem de se ter muita calma com ele…

E2: Foram consequências negativas da doença não é?

Mãe 4: Eu penso que sim… A Dr.ª Maria de Jesus se calhar tem o diagnóstico diferente e se

calhar sabe analisar melhor do que a médica não é? Pronto, eu não tenho conhecimento para

isso mas no dia-a-dia, de lidar com ele, noto que isto está a vir à coisa de uns 3, 4 anos para

agora, até agora apareceu tudo, abriu tudo na cabeça dele: o não ter brincado, o não ter

amigos… Essas coisas todas.

E2: Hum hum

Mãe 4: O ser infantil… E eu digo: “Vai sair, vai…”, “Não, mas vou sair para quê? Eles são

assim, não tenho paciência para eles”. É assim, um bocado…

E2: Portanto relacionamentos sociais…

Mãe 4: Não é muito bom para ele. Tem tido muitos problemas a nível disso. Tanto que eu pu-

lo numa escola privada, há coisa de 6 anos.

E2: Hum hum.

Mãe 4: Foi no 8º, 7º para o 8º, tirei-o da escola

E2:?(1:18:14) Portanto, que outras consequências acha que a doença teve para o momento

presente? Positivas ou negativas.

Mãe 4: Não, quer dizer ele é um bom menino…

E2: Para si e para o D.

Mãe 4: Para mim e para o D

E2: Para si, para o seu marido, para o D, para a sua família e para o D. Positivas ou negativas.

Mãe 4: A doença é sempre negativa para agente não é? Mas… aprendemos mais a vida,

sabemos dar valor às coisas

E2: Uma consequência positiva.

Mãe 4: Positiva. Porque lá está o que eu disse – com o sofrimento nós crescemos, tornamo-

nos pessoas melhores.

E2: É isso que sente

Mãe 4: Eu agora dou valores que ano dava na altura. Para que é que me hei-de estra a zangar.

A vida são 2 dias, eu não sei quantos dias é que estou na terra

E2: E a vossa estrutura familiar foi afectada, não foi? Continuaram muito unidos?

Mãe 4: Não, muito unidos

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E2: Sempre muito unidos. E estava-me a falar há pouco da sua relação conjugal. Sente que

afectou, que não afectou?

Mãe 4: Na altura não

E2: Na altura não

Mãe 4: Não

E2: E hoje?

Mãe 4: Não, porque eu e o meu marido sempre fomos muito… Nós família sempre fomos

muito unidos, mesmo sem o D, quando o D não, ainda não existia, portanto ele quando nasceu

a S tinha 13 anos, portanto nós vivemos para a família

E2: Muito coesa?

Mãe 4: Sim, apesar de o meu marido não estar, eu não faço nada sem lhe telefonar, falamos

todos os dias

E2: Tomam sempre as decisões em conjunto

Mãe 4: Sempre as decisões em conjunto… O facto de ele estar longe, eu não escondo nada ao

meu marido, há um telefone para falar…

E2: São muito unidos

Mãe 4: Sim

E2: Sente que a doença os uniu ainda mais?

Mãe 4: Se calhar sim

E2: Em que aspecto?

Mãe 4: Trabalhamos todos para o mesmo.

E2: Hum hum. E por exemplo, falou-me das alterações profissionais que também teve, como

consequência do diagnóstico. Hoje em dia está reformada… Já estava mas continua…

Mãe 4: Já estava mas continuo e continuo a trabalhar, trabalho a dias, mas porque eu quero

que os meus filhos tenham uma vida diferente da minha.

E2: Hum hum

Mãe 4: Eu só tenho a 6ª classe que é equivalente ao primeiro ciclo, não é?! Ao primeiro não,

ao 2º ciclo.

E2:Claro, quer…

Mãe 4: Eu tenho a minha filha formada, o D também vai ser… Por acaso ele optou por um

curso que junta-se o útil ao agradável porque um engenheiro informático se for preciso até

trabalha em casa, não é?! A fazer projectos e a fazer coisas. E eu acho que é o ideal para ele

porque ele não é um rapaz, cansa-se…

E2: Sente que o D está no caminho certo

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Mãe 4: Eu acho que sim e eu trabalho para dar aos meus filhos, para os encaminhar para a

vida

E2: Hum hum. E portanto são, tudo isto são consequências. Não é? Consequências que a

doença teve, boas… Estas são boas.

Mãe 4: Mas nós éramos assim antes da…

E2: Sim

Mãe 4: Antes dele adoecer, nos somos um casal, eu antes de casar com o meu marido eu era

muito amiga dele e ele meu…

E2: E continuam

Mãe 4: E continuamos

E2: Se calhar ainda mais?

Mãe 4: Agora a idade põe-nos…?(1:12:00) (risos) Ele era mais calmo do que eu e eu era

mais… Agora noto que é o contrário, mesmo a minha filha diz…

E2: Portanto foi tudo consequências da doença

Mãe 4: Sim, sim.

E2: N e o que é que ajudou ou dificultou a adaptação à situação? A vossa adaptação. O que é

que pode ter ajudado ou pode ter dificultado? As vossas crenças, a vossa força… o que é que

dificultou, o que é que ajudou ou o que é que dificultou a adaptação. Sua e da sua família.

Mãe 4: Eu acho que não houve assim grande alteração. Alteração vamos lá ver…

E2: Ou seja, o que é que ajudou a adaptação sua e da sua família? O que é que ajudou a

adaptar-se? A ir-se adaptando ao longo do tempo…

Mãe 4: Então, eu acho que… Estou um bocado baralhada.

E2: Falámos um bocadinho da crença que tem em Deus, de agradecer todos os dias por

exemplo não é?

Mãe 4: Sim, sim

E2: O que é que a ajuda, o que é que a ajuda hoje-em-dia aina, além desta crença…

Mãe 4: São os meus filhos, olhar para eles e ver que estão bem, os dois, graças a Deus

E2: E há algo que dificulte?

Mãe 4:Não. Eu sou desenrascada, eu trabalho

E2: Hum hum

Mãe 4: Não gosto que lhes falte nada.

E2: Hum hum. É a sua principal…

Mãe 4: É a principal preocupação e a do meu marido também.

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E2: Hum hum. E N estava-me a falar há pouco, quando entrou o período que esteve aqui teve

muita ajuda dos seus amigos, da sua família… Sente que a sua rede de suporte é a mesma

hoje-em-dia? A família já vimos que sim…

Mãe 4: Família sim

E2: E os amigos?

Mãe 4: Os amigos…

E2: São os mesmos?

Mãe 4: Os amigos não. Na altura houve uns amigos que, houve uns amigos que se afastaram

um bocadinho. Mas… eu não liguei a isso. Não fiz…

E2: E hoje já não são amigos?

Mãe 4: e hoje, depois voltámos outra vez mas eu cheguei à conclusão que não vale a pena

E2: portanto a sua rede de suporte hoje não é a mesma que era…

Mãe 4: Não. É, é… Os meus irmãos… Mas quer dizer, eles também têm a vida deles, eu

tenho a minha…

E2: Portanto a família manteve-se. E os amigos?

Mãe 4: E os amigos… os amigos alguns, alguns.

E2: E como é que se sente em relação a isso?

Mãe 4: Não! Bem… bem…

E2: Bem

Mãe 4: Bem. A minha família ainda no outro dia o meu marido disse: “A nossa família somos

nós e os filhos”. E eu estou sempre a dizer que a minha família, eu até digo aos meus irmãos.

A minha família sou eu, o Je os meus filhos. Pronto porque tem que ser.

E2: hum hum

Mãe 4: Eu considero que tem de ser porque eles são meus e eu tenho que cuidar deles até

onde eu puder. A Marta já é adulta, já tem a vida dela mas eu estou sempre preocupada. Às

vezes de mais…

E2: Hum hum. Uma super preocupação?

Mãe 4: É. Ela às vezes diz: “Mãe, deixa”. Mas pronto.

E2: Mesmo com o D?

Mãe 4: Mesmo com o D.

E2: E acha que isso é uma consequência da doença?

Mãe 4: Se calhar

E2: Esta superprotecção?

Mãe 4: Se calhar. Que às vezes eu noto mas isto já está dentro de mim

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E2: Já está

Mãe 4: às vezes a minha filha diz: “Mãe deixa-o, deixa-o, se ele errar errou, ele tem de errar”

E2: E sente isso?

Mãe 4: Mas eu já estive quase a perdê-lo e fico, o meu coração apertadinho, estou sempre:

“D, cuidado, vê lá, não venhas tarde, pronto, vê lá, depois telefona lá”.

E2: Mas sente que ele está num bom caminho?

Mãe 4: Sim, mas às vezes eu não gostava de ser assim também. Mas é, é algo… É uma

protecção que é forte de mais, que eu sinto que às vezes não devia ser assim, talvez a doença,

o susto foi demasiado forte

E2: Sente de alguma forma que ainda estão em reajustamentos?

Mãe 4: Não.

E2: Está tudo no seu lugar?

Mãe 4: Está tudo bem mas o susto foi muito grande

E2: Neste momento quer protegê-lo de tudo o que pode não é?!

Mãe 4: Pois. Não devia de ser tanto acho eu.

E2: N e consegue descrever-me o D? Consegue descrever-me o seu filho?

Mãe 4: Fisicamente? Intelectualmente?

E2: Tudo o que quiser, é a redacção da N sobre o D.

Mãe 4: Ele é meu filho. Agora estou só a falar do meu filho, não é da minha filha.

E2: Agora só do D.

Mãe 4: Só do D. Adoro o meu filho. Acho que ele às vezes é muito refilão mas isso eu

própria vejo que isso é dele e parece que está sempre mal com o mundo mas se calhar é

mesmo assim e se calhar eu gosto dele por ser assim. É um bom amigo, é um menino amigo

do seu amigo, é fiel aos amigos e ele sofre quando alguém não, quando tem alguma desilusão

com os amigos sofre muito, chora, portanto eu acho que até há poucos Ds agora…

E2: Sensibilidade?

Mãe 4: Muito sensível. E eu às vezes digo-lhe para não ser assim porque ele sofre, até com as

namoradas, não tem namorada, é um infeliz, ninguém gosta dele. E eu disse: “Vais arranjar

umas raparigas giríssimas, tu vais ver”. “Onde é que elas estão mãe?”. É assim, é pessimista,

mas pronto, isso faz parte dele, eu acho que faz parte dele…

E2: Se calhar até de uma adolescência que acabou por retardar também?

Mãe 4: Era isso que eu queria dizer há bocado à Dr.ª. É isso, é isso que não chegou na hora

certa e está a vir agora um bocadinho mais tarde mas adoro o meu filho, é inteligente, amigo

dos pais, reconhece o trabalho que os pais fazem por ele, mas eu faço de vontade e voltaria a

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fazer sempre de novo (emociona-se). Não estou arrependida, nunca me arrependi. Tentei

sempre proteger, a minha preocupação é protegê-lo da outra família.

E2: Que é algo que também tem alguma interferência, pelo que eu vejo?

Mãe 4: Sim

E2: Mesmo no período da doença?

Mãe 4: No período da doença nunca se preocuparam com ele e quando ele teve de fazer testes

pelo processo de ADN, a outra pessoa encontrou e nem sequer olhou para ele e ele estava com

a cabecinha dele assim (sem cabelo). Não quis saber mesmo completamente e nem se

preocupou nem perguntou: “D estás melhor?”. Nada!

E2: Portanto na altura da doença, do tratamento, não houve qualquer interferência?

Mãe 4: Nada! Houve um telefonema para mim a dizer que estava contente por ele estar ao pé

de mim porque eu era a pessoa indicada para o tratar.

E2: Hum hum

Mãe 4: Mas depois mais tarde, vieram e eu expliquei ao D. Houve coisas que eu não contei

na altura, não lhe contei e tive que, não queria que ele soubesse

E2: Foi para o proteger mais uma vez?

Mãe 4: Para o proteger. Mas achei que era a hora certa para lhe dizer e contar tudo o que

tinha acontecido. Foi um choque para ele.

E2: Hum hum. E o que é que tenta ensinar ao D?

Mãe 4: Fazer bem aos outros, ser um menino digno, um belíssimo profissional. Ser honesto

como nós somos, eu e o pai. Dizer que eu também nunca fui criada pelos meus pais e me

tornei e vivi sozinha e tornei-me, eu considero-me uma grande mulher, não tenho nenhum

curso superior mas para mim isso não me interessa…

E2: Independente?

Mãe 4: Sou.

E2: Forte?

Mãe 4: Sou. Considero-me isso. E quero que o meu filho seja assim. A minha filha é também.

Eu acho que eu gosto de os preparar. Dou-lhes assim força, às vezes vou-me um bocadinho

abaixo

E2: Mas às vezes eles também têm de ir ver por eles, não é?

Mãe 4: É isso que eu falho. É ai que eu falho. É ai que eu falho Dr.ª. Mas é um rapaz bonito,

alto, 1.75., magro, bonito…

E2: É orgulhosa dos seus filhos.

Mãe 4: É sou.

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E2: Por último N, o que é que diria aos outros pais?

Mãe 4: Eu dou às vezes o meu exemplo… Pais de meninos doentes?

E2: Sim, o que é que diria aos pais que os filhos foram diagnosticados ontem?

Mãe 4: Que nunca desistam. Ontem. Pois, ontem. Muita força, não desistam nunca, nós temos

que lhes dar muita força a eles, temos de ganhar nós força para termos capacidades para os

curar, para tratar e para lutar, é isso.

E2: Era isso que lhes dizia? - “Não desistam”

Mãe 4: Nunca nunca nunca. Isso nem se diz. Nem se diz…

E2: Muito bem N. Muito obrigada.

[CONTINUAÇÃO]

E: (...) O seu filho tem neste momento que idade?

M: 19.

E: Ele foi diagnosticado com que idade?

M: Aos 3anos e meio. Foi há 16 anos, por aí.

E: Lembra-se dessa fase? Lembra-se desse primeiro momento?

M: Perfeitamente, tudinho. Só assim abreviadamente ele estava, tínhamos almoçado,

normalmente ele dormia a sesta, a minha filha mais velha estava no quarto dela e ele estava a

brincar e eu disse “S. vou deitar o teu irmão”. Entretanto ele apareceu-me de um momento

para o outro com umas nodoas negras na cara, muito grandes, e ele tinha estado na véspera em

casa porque tinha aparecido também dois dias antes umas nodoas negras, uma no pé, na

planta do pé e outra na barriga. E eu fui falar com a educadora e disse-lhe que tinha que haver

qualquer problema porque o D. não tinha caído, não tinha acontecido nada, inclusive no pé,

era Inverno e ele usava botas portanto tinha que ser uma mesa ou uma coisa violenta que

tivesse feito a nodoa negra. A educadora não acreditou, foi ver, ela disse que ia investigar o

que tinha acontecido e ela quando viu ficou apavorada. Eram nodoas negras grandes. Nesse

dia ele estava assim um bocado murcho e disse “olha eu vou levá-lo para casa porque parece

que ele não está muito bem”. Levei-o e no outro dia, que era o sábado, estávamos em casa e

apareceu novamente a nodoa negra e eu quando vi aquela nodoa negra repentina, o meu

coração bateu logo e eu disse “S. vamos com o D. ao hospital porque isto tinha à dois dias

acontecido e agora novamente, pode ser um problema de sangue”. Fomos para Santa Maria,

fomos para a urgência. Na urgência ele entrou logo, ficou logo em observação. A enfermeira

comunicou logo com os médicos, mas os médicos não queriam aparecer. Fizeram logo

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análises, aguentámos ali umas horas. Isto eram umas 3 e tal. Eram 10 e tal da noite quando me

chamaram e eu disse “Dr.ª o que se passa com o meu filho?” e ela disse “mãe, eu já venho

falar consigo”. Só me dizia isto. Conclusão, ela estava a espera do resultado das análises.

Quando chegou o resultado, chamaram-me para um gabinete e a Dr.ª não teve coragem de me

dizer o que era. Tive que ser eu a dizer. Ela disse “é grave mãe” e eu disse “Dr.ª não me diga

que o meu filho tem uma leucemia.” E ela disse “tem.”. E parece que acabou o mundo para

mim. Naquele instante acabou tudo. Foi muito mau. Foi um momento que eu hoje recordo

como se, lembro-me muito facilmente e foi muito doloroso. A minha filha estava lá fora à

espera, eu tive que telefonar para o meu marido, ele estava em viagem. Disseram-me que já

não saímos dali. Isto sábado. Tínhamos que aguardar para ir para o IPO na segunda-feira de

manhã. Entretanto ele começou a piorar a cada hora que passava e não podiam fazer nada

porque tinha que ser no IPO. Na segunda-feira quando saímos...entretanto ele no domingo a

noite ele apareceu com umas borbulhas e eu disse “mas o que é que o meu filho tem?” e ela

disse “ah isso é da doença”. E no outro dia o meu marido chegou de viagem, foi ter connosco.

Fomos transferidos de ambulância para o IPO. Quando chegámos ao IPO contei o que tinha

acontecido e disse “mas Dr. o meu filho está com estas borbulhas...o que é isto?” e ele disse

“ai mãe isto é a varicela”. E ele disse, “ o D. não pode estar aqui. Porque os meninos que

estão a fazer quimioterapia não podem entrar em contacto com ele porque senão os outros

morrem em três dias” e então o meu marido, como não havia ambulâncias, porque ele

também não podia entrar na ambulância porque podia contagiar as ambulâncias do IPO. Então

o Dr. telefonou para o hospital D. Estefânia para falar com uma médica que foi colega de

curso para ela preparar um quarto isolado, ventilado só para o D. O meu marido foi buscar o

carro, que estava em Santa Maria e levou-nos para lá. A equipa estava toda a espera dele. Ele

ficou ligado, todo, foi terrível. O meu filho teve mesmo ali à morte na Estefânia.

E: Ou seja, com duas coisas...

M: Foi a doença que estava a piorar a cada hora que passava e a varicela. Piorou porque não

podiam iniciar os tratamentos. E tinha que ter aquele período de semana ali naquele quarto.

Eu nem sequer podia usar a casa de banho dele. Eu estive uma semana sentada numa cadeira,

ao lado dele, não sai de lá. A única coisa que eu saia era para tomar um duche e para me

esticar e foi a única vez que eu me despia era para tomar o duche e ele gritava e a máquina

disparava. Aquilo estava sempre a apitar. E eu ia chamar a enfermeira e ela “não se preocupe

é a máquina que está avariada”, mas não era. Era ele que estava tao mal que estava. Isto

passou-se, ele foi tratado, muito bem. Não tenho a menor coisa para dizer, seja do IPO, seja

da Estefânia. Tudo. Pessoal, enfermagem, médicos. Acho que é do melhor que há. E

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entretanto, quando fez o período da semana fomos transferidos para o IPO, passámos pelo

banco de sangue para ir buscar mais sangue para ele. E a partir daí foi o tratamento. Tivemos

lá mais três semanas.

E: Está-me a dizer então que o mundo caiu para si. Desapareceu. O mundo que

conhecia...

M: Completamente. E eu ainda tinha uma filha em casa sozinha...

E: Pois. Era isso que lhe ia perguntar, estava com uma filha em casa que soube também

nessa altura...?

M: Sim, soube nessa altura...

E: E foi para casa? Ela acabou por ir para casa ou...?

M: Foi. Depois entretanto no hospital eu telefonei a uns irmãos meus para irem ter com ela e

para a levarem e entretanto as minhas sobrinhas ficaram lá em casa e a minha afilhada.

Ficaram lá sempre. E eu tive no hospital.

E: Lembra-se nessa altura se sentiu revolta ou...?

M: Completa, muito. Muito. Ainda hoje sinto.

E: Acha que isso ficou para sempre, essa revolta?

M: Porque, eu vou explicar, o meu filho não é meu filho de sangue, é meu filho adotivo e eu

não conseguia tolerar esta doença porque ele foi rejeitado à nascença. A outra pessoa deu-mo

porque ele ia para uma instituição e eu não podia ter mais filhos e a minha filha pediu-me uma

criança e pediu para eu me inscrever na adoção e eu achava que era muito difícil. Mas

entretanto eu soube desta mãe que ia dar o filho e eu disse que queria ficar com ele mas como

filho mesmo adotivo, com tudo legal. E ele quando nasceu, com 37 semanas, derivada à fome

que passou, e aos maus tratos que deram à outra pessoa, que lhe bateram e tudo. Mas acabou

por nascer com 2, 150kg. Ele foi considerado um bebe velhinho, um bebe faminto, porque ele

comia de hora em hora. E eu só dizia à Dr.ª “se há Deus porque é que ele não cuida do meu

filho, porque é que ele pôs esta doença, porque ele já não teve sorte a nascença e porque é que

há-de ser isto agora?” isto foi uma revolta completamente. Muito grande, entretanto a Dr.ª só

me dizia “mãe vá a capela, vá lá” e eu dizia “não. Eu já la estive a porta mas eu não consigo

entrar. Porque não consigo perceber se Deus existe porque está a fazer isto ao meu filho.”

Depois na altura eu percebi, voltei para casa, no dia a seguir de eu chegar fomos todos à igreja

com ele e eu só chorei o tempo todo eu estive lá dentro da igreja e eu acho que isto terá sido

uma provação de Deus para mim, se calhar, não sei. E eu não consigo perceber.

E: provação como? Acha que tem culpa?

M: Não, não.

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E: Acha que só está a ser testada?

M: Testada mesmo. Seria eu competente para o ter? Seria eu capaz de o ter e de tomar conta

dele? E depois fui à igreja e depois acalmei e fiquei bem e aceitei.

E: Aceitou?

M: Aceitei.

E: Acha que pensar que era uma provação ajudou-a a aceitar?

M: Sim. Eu compreendi assim.

E: Ou seja, havia um significado para aquilo que estava a acontecer?

M: Sim, para mim foi. Portanto achei isso uma justificação.

E: E isso ajudou a aceitar?

M: E a partir dai, porque a Dr.ª dizia-me “mãe, tem que aceitar, se aceitar a doença é mais

fácil curá-lo” e ela dizia-me “lembre-se, se ele tivesse do outro lado ele já tinha morrido, ele

foi socorrido a tempo, a mãe tem muitos cuidados com ele” e eu disse “eu faço o que eu devia

fazer” era o que eu tinha que fazer porque se era meu filho eu tinha que fazer não é? E pronto,

depois foi uma luta constante. Eu trabalhava, deixei de trabalhar, para tomar conta dele, fiquei

em casa, o meu marido não porque alguém tinha que trabalhar, mas custava-lhe muito ir

trabalhar e deixá-lo em casa, assim no hospital.

E: O seu marido ia trabalhar todas a s semanas, ia para fora?

M: Ele vem dia e meio e vai embora. É assim. Foi muito doloroso.

E: Ficava sozinha então no hospital. Não teve ajuda das famílias? Alguém que a

substituísse?

M: Não. Eu não quis. Nunca sai. Eu nunca sai do hospital.

E: E como é que aguentou? Nunca teve acompanhamento psicológico?

M: Nunca.

E: Nunca quis ou nunca teve?

M: Não, nunca... As vezes, no IPO, depois do D. vir para casa, ele tinha que ir muitas vezes

ao hospital, e havia uma enfermeira que era espetacular, que me ajudou muito enquanto ele

estava a fazer o tratamento chamava-me para o gabinete para eu desabafar, para chorar...

E: E isso ajudou?

M: Isso também me ajudou.

E: E havia alguma coisa que ela lhe dizia que ajudava?

M: não. Ela só dizia “conte-me o que afetou mais” e a mim o que me afetou mais foi a noticia.

Foi o choque. Uma coisa horrível. Eu na altura até fiquei, até me deram um calmante e eu não

queria porque, e senti-me um bocado mal, derivado aos meus nervos, eu não me dou com

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calmantes. Depois fiquei com tonturas, fiquei um bocado mal no hospital. Mas depois passou,

tanto que eu as vezes dizia “e não quero nada. Eu prefiro estar lucida, e aguento-me, do que

com medicação”

E: Nessa altura o que é que ajudou mais? Como é que conseguiu adaptar-se a isso?

Estava-me a dizer que houve uma enfermeira que ajudou, que arranjou um significado

para a doença, houve mais alguma coisa?

M: Não, não, foi em casa. Eu conversava sempre, conversava muito em casa e eu tinha que

lutar por ele, e ele próprio dava-me força...

E: Ele também ajudou...

M: Porque ele num pico, quando estava lá internado, estava a minha filha mais velha também

e ele teve assim um pico de febre e levantou-se da cama e disse “mãe eu não quero morrer

mãe, ajuda-me, eu não quero morrer”. A irmã fugiu porta fora. Foi horrível. Ele teve

consciência de que esteve a morrer e depois passou e depois tinha que tomar 16 comprimidos

de manhã e 16 comprimidos à noite. Ele era pequenino e aprendeu a tomar os comprimidos,

era cortisona em casa e eu ensinei-o... Tenho em casa um esquema à minha maneira com a

medicação e quando lhe dava fazia um sinal para eu não me enganar vez nenhuma, porque a

Dr.ª disse-me que era essencial o tratamento estar certinho e não haver nenhuma falha, e

alimentar-se bem e muitos cuidados com ele e pronto eu fiz tudo.

E: Nessa altura o vosso casamento? Como foi a vossa vida em casal nesse momento?

M: Eu deixei de dormir com o meu marido. Ele começou a dormir comigo na minha cama.

Tive 8 meses que nunca tive nada com o meu marido, mas isto estava em primeiro lugar.

Porque em primeiro lugar é salvá-lo a ele e nós temos uma vida pela frente. Se nós queremos

tanto um filho temos que lutar por ele, porque nós gostamos muito de crianças, sempre

quisemos ter mais filhos e eu é que não podia e portanto...

E: Houve essa separação... E em termos da vossa relação (sem ser a relação sexual),

melhorou, piorou?

M: Nunca piorou. Nós sempre fomos muito unidos, eu e o meu marido.

E: E acha que isso ajudou? Essa vossa união ajudou para vocês se conseguissem adaptar

à doença?

M: Se ajudou? Não. Eu acho que nós lá em casa os dois vivemos para os filhos. Que é o nosso

objetivo...

E: Que até se complementam?

M: Sim. O meu marido andava a trabalhar, portanto nós não temos muita instrução mas temos

que trabalhar para lhe dar uma educação. Portanto, a minha filha tem um curso superior, o D.

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também vai passar para o 3º ano de engenharia portanto nós vivemos para os filhos. É o nosso

objetivo.

E: Mas nessa 1º fase choravam juntos? Falavam sobre a doença?

M: Não. Era só a preocupação que era curá-lo.

E: Ou seja “o que é que tu podes fazer?” e “o que é que eu posso fazer?”

M: Sim. Eu lembro-me que o D. com os tratamentos – a Dr.ª ensinou-me que quando ele

pedisse uma comida eu tinha que fazer porque não era ele a pedir era o organismo e ela deu-

me um exemplo “mãe, se ele às 4 da manhã pedir batatas fritas e bife, a mãe tem que dar”. Ele

nunca pediu isso a noite assim mas ele obcecado com comida. Ele dizia “mãe logo à tarde

quero, fazes-me truta” e era uma altura que não havia truta, só salmão e eu corri os

hipermercados todos à procura da truta que não havia. Só encontrei truta salmonada e eu pedi

a senhora para partir em postas para ele não notar a diferença e ele estava-me sempre ao

telefone “mãe já encontraste?”. Cheguei a casa, fritei aquilo, ele comeu, consolava-se. Depois

ainda estava a comer essa comida e já estava a dizer assim “amanhã tu fazes-me costeletas

grelhadas”. E depois andámos uma semana inteira a comer dourada grelhada ao almoço.

Portanto nós em casa já nem conseguíamos ver aquele comer

E: Quer dizer que modificaram um bocado a vossa vida só centrada no pequenino...?

M: Sim.

E: Aumentou os conflitos entre si e o seu marido nessa altura?

M: Não, não, não.

E: Pois, nesse aspeto foi tranquilo. E estava-me a dizer que não dormiram juntos

durante 8 meses e depois?

M: Depois ele passou para o quartinho dele.

E: Depois a vida seguiu normalmente...

M: Depois a vida seguiu... Foram muitos meses...

E: Quando é que decidiram isso? Porquê 8 meses?

M: Porque eu própria falava com ele, eu sempre falei muito com ele. Ele sempre me ouviu

muito, uma coisa que ele tinha, coisa que não tem hoje. Mas por exemplo, ele fez, foi um

menino que na altura ficou conhecido no IPO porque ele fez a radioterapia sem anestesia. E

na altura o Dr. disse “mãe não temos anestesista, estou a pensar que ele terá que ir para fora” e

eu disse “não, Dr. eu falo com ele, eu explico-lhe” e então eu entrei e expliquei-lhe que se ele

fizesse tudo o que o Dr. dizia e também lhe mostrei que estava lá com o Dr. a vê-lo, através

de um televisão, e que se ele não se mexesse a mãe acabava e fazer aquilo e ia logo para casa

com ele, senão ele tinha que levar uma anestesia e depois tinha que ir dormir no hospital de

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dia e depois era mais complicado. Ele como não queria ficar no hospital, não queria

adormecer lá, ficava quietinho. O Dr. chamou a equipa toda que ainda nem tinha 4anos a fazer

a radioterapia. Inclusive a esposa dele trabalhava lá e até lhe deu um boné do sporting e

pronto, o D. na altura foi muito, como era muito pequenino e fazia tudo direitinho...

E: Era muito apaparicado...

M: Muito. Convidaram-no a ir à televisão, convidaram-no a ir ao Belenenses... Foi assim...

E: E foi muito apaparicado pelos pais?

M: Foi, muito, muito.

E: E depois não ficou assim muito mandão?

M: Ficou. Isso depois, isso é o grave problema.

E: Ainda hoje?

M: Ainda hoje.

E: Ele saiu dali a mandar nos pais...

M: Não. Na altura não. Foi é sempre muito protegido. Tudo de bom para o menino porque ele

estava dente, porque ele andou a fazer dois naos de quimioterapia não foi brincadeira. Foi

muito tempo. Ele não podia apanhar sol. Ele queria ver a praia e ele chorava porque queria ver

a água. Até pedi a Dr.ª se podia ir para casa de uma cunhada em Aveiro e mostrar-lhe o mar e

a Dr.ª disse logo “podem mostrar a água de longe mas depois vão logo para casa”

E: Ou seja faziam-lhe as vontadinhas todas. E protegeram-no muitíssimo. Coisa que não

tinha acontecido com a sua filha, ou seja, no fundo a educação do seu filho e da sua filha,

acabaram por ser diferentes em relação a isso?

M: A minha filha na altura nunca tinha tido uma doença destas.

E: Ou seja, foi a doença com que fez que isso alterasse.

M: Foi a doença. Sim. Porque tínhamos que fazer tudo, na altura, para ele.

E: E a sua filha também? Também ela fazia?

M: Sim. Aliás ela tinha uma coisa por ele, ela era uma segunda mãe. Se eu tinha que sair a

algum sítio importante, ela tomava conta dele. Eu tinha mais confiança nela no que eu tinha

confiança numa vizinha ou alguém. Porque ela sabia como era as regras, sabia como era o

tratamento, sabia como ele tinha que fazer a alimentação. Ela sabia tudo.

E: E esta doença modificou-a a si? Tornou-a uma pessoa diferente?

M: Tornou-me, eu noto agora. Não dou tanta importância a certas coisas. Acho que as pessoas

se preocupam com ninharias pequeninas. Inclusive acontece com irmãos meus e que eu as

vezes dou o exemplo “isso para mim não interessa. São coisas que não me dizem respeito e

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nem merecem a minha consideração. Porque se vocês tivessem problemas graves na família

iam ver que isso não é assunto para discussão”

E: Portanto o cancro do seu filho acabou por ajudá-la a ver as prioridades de uma

maneira diferente...?

M: Sim. As pessoas as vezes são mesquinhas, preocupam-se com coisas que não interessam,

zangam-se com coisas que não têm valor.

E: E para si, por dentro, acha que a tornou uma pessoa mais contente?

M: Sou uma pessoa mais triste. Porque eu era muito alegre. As pessoas chamavam-me risonha

e eu cantava muito e isso perdeu-se.

E: Foi um abalo muito grande. Está-me a dizer que ainda hoje sente uma emoção muito

grande negativa em relação aquilo que aconteceu?

M: Sim. Eu basta lembrar-me...

E: Tudo se vive de novo, como se fosse um stress que se mantem. Uma coisa que se

mantem em termos de stress e em termos de emoção...

M: Sim, sim.

E: E o seu marido também o modificou a ele? Ele também se tornou mais triste?

M: O meu marido, a preocupação dele é os filhos. Só que agora choca-se um bocadinho com

o D. e eu tenho que apaziguar mais a coisa. Porque ele sempre foi um menino que teve tudo e

a gente não deixa – mas tenção à S. também. O que eu faço a um faço a outro.

E: E em relação a essa questão, acha que ficou mais tolerante?

M: Eu fiquei mais tolerante com o D. porque a S. as vezes diz-me, até quando ele se porta mal

“mãe, se eu te disse isso ou fizesse isso eu levava uma sova” e as vezes é.

E: Isso por causa do que aconteceu?

M: Ela não está a culpar-me. Ela está é a fazer ver a ele que no tempo dela eu não deixava

abusar como está a acontecer.

E: Só que a historia dele levou-a a ficar mais sensível não é? Estava-me a falar do seu

marido, mas acha que ele também se modificou muito em termos de personalidade?

M: Não. O um marido é uma pessoa muito calma só que acha que ele... Pronto, ele é um

menino que não se apercebe (mas se calhar nós somos os culpados, porque o protegemos

muito, evitámos que ele passasse por certas coisas), ele agora parece que, acha que “isso já

não é de agora mãe”. Estou a dar um exemplo, dos termos dele “oh mãe, isso era no teu

tempo. Isso agora não é assim.” E eu digo “oh D. não digas essas coisas”, até derivado às

namoradas “oh D. as rapariga, a fazerem isso. Tu vê lá. Tu tem maneiras, olha que elas são

piores”. E ele “oh mãe isso era no teu tempo” e eu disse “no meu tempo? Eu também namorei

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e também se faziam as coisas e isso tudo e também dávamos beijos, mas há normas, há regras,

há limites, há tudo.” E ele acha que não, que nós estamos velhos. E a irmã as vezes diz-lhe

(porque ele acha que agora a irmã...)

E: Que a irmã é velha...

M: Não. Porque há uma coisa, e eu não consigo. A irmã adora-o, e ele adora a irmã, eles

gostam muito um do outro mas estão sempre (gesto a indicar que chocam muito). Então ela,

ela também é psicóloga clinica e ela acha que ele dá-me volta assim, com muita facilidade e

ela apercebe-se e ele depois quer-lhe dar a volta a ela e depois é “ah é a menina, tu estás

sempre do lado da menina”. Já uma vez me zanguei com ele “não voltas a dizer isso, porque a

mana ainda no outro dia disse que ela quando era da tua idade ou mais pequena eu não

deixava ela esticar a corda como tu fazes e tu esticas e esticas”. E o meu marido como não

tolera isso, por isso é que eles chocam. E depois eu as vezes tenho que me meter entre os dois,

porque eu não gosto que ele alastre muito a conversa porque depois ele grita. É ele que manda

em casa. Ele, o D.

E: Pois, ficou mandão. Pois. Ficou com isto, ainda hoje...

M: Ficou.

E: Mas acha que isso foi porque vocês o educaram ou foi a doença que o levou a ficar

assim?

M: Não, não. Eu acho que ele sente uma revolta. Ele em pequeno teve problemas também na

escola, ele era o melhor da turma, ele sabia tudo, eles gozavam com ele, sofreu de bullying

porque não queriam que ele tivesse notas altas e chegaram a bater-lhe e eu não soube, só

soube agora. Tanto que depois eu tirei-o da escola onde estava e pu-lo numa privada. Portanto

ele também teve um percurso difícil. E depois é uma revolta. Eu sinto que ele tem uma

revolta.

E: Mas ele lembra-se alguma coisa da doença?

M: Da doença em si ele já não se lembra assim muito. Eu é que lhe contei. Ele acha que já

passou muito e depois acontece-lhe tudo. Porque a minha filha mais velha também teve

cancro de mama, fez duas mastectomias e ele quando isto aconteceu foi-se abaixo. Ele ao

mesmo tempo quis dar força à irmã, foi ter com ela e disse-lhe “mana vais ver, tens o meu

exemplo, tu vais ficar boa”.

E: Que também é muito novinha...

M: Tem 32 anos e foi operada no dia em que fez 26 anos. Portanto tem sido assim, uma luta.

E ele teve que ir para a psiquiatria porque ele tornou-se obsessivo compulsivo. E o clique foi a

irmã. A doença da irmã.

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E: Ou seja, ele ficou mesmo perturbado com a doença da irmã. Acha que por ele ter tido

a doença e depois isto já era demais não é?

M: E depois foi a irmã, e depois passado cerca de 2meses ele começou a não andar bem e até

foi a S. que ligou para a Dr.ª Maria de Jesus para ver se o via e depois foi até ao neurologista e

ele disse que não era nada.

E: Era uma coisa comportamental, não era uma coisa psiquiátrica.

M: Na altura não foi detetado, foi passado dois meses.

E: Está-me a dizer que houve uma alteração na maneira como vocês são pais...?

M: Sim.

E: Acha que também fez com que se alterasse a maneira como tratava a sua filha ou foi

a mesma como tratava o D.? Acha que se modificou como mãe para os dois ou só mesmo

para o D.?

M: Não. Mas a minha filha já era mais velha. Porque até foi mais difícil eu lidar com a doença

da minha filha. Porque a S. era psicóloga já (...) eu só tinha ordem de chorar à noite com o

meu marido. Quando foi agora da S. eu tinha que me fazer de muito forte porque eu não podia

chorar à frente dela (...)

E: Estávamos a falar do vosso casal... Houve o diagnóstico, depois houve o tratamento de

dois anos, vocês devem ter ficado estoirados, muito cansados. Acha que nesse percurso

todo que tiveram desde o diagnostico até agora houve alguns momentos em que dissesse

“isto agora está a afetar, estamos em crise”, entre si e o seu marido?

M: Houve. Mas isso em todos os casais há.

E: Sim. Mas acha que aqui a doença poderá ter influenciado?

M: Não, não. A doença eu acho que, o meu marido percebe que, nós nos afastamos, ainda

hoje digo, que eu era muito agarrada ao meu marido, a gente beijava-se, andava de mão dada,

e agora isso já não acontece. Nós gostamos muito um do outro, agente entende-se muito bem

mas parece que houve um afastamento nosso, mas foi derivado à vida. Eu considero isso. Eu

continuo a gostar do meu marido e ser-lhe fiel, o meu marido igualmente; nós falamos, mas

por exemplo, para mim o sexo, isso já não me interessa. É triste eu dizer isto mas...eu gosto

dele na mesma mas há coisa mais importantes que é os meus filhos.

E: Ou seja, acabam por ficar muito centrados...

M: É. E quando foi agora da S...

E: Mas acha que isto foi sempre assim a diminuir ou teve altos e baixos?

M: Não. Teve altos e baixos.

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E: Considera que, por exemplo, o fim do tratamento, ou seja, este momento mais de

exaustão, foi um baixo?

M: Baixo não. Correu bem.

E: E depois disso? Houve algum momento que diga assim “isto da doença pode ternos

tornado mais resilentos ou mais mal dispostos um com o outro”?

M: Ah mas isso até é da idade. O meu marido está mais refilão. Que ele era muito calmo,

ponderado, assim muito coiso e agora estou mais eu do que ele. Ele se tiver que barafustar,

barafusta e eu já não. Eu não sei se isso é com a idade se é a convivência dos problemas. (...)

E o meu marido derivado à profissão está a entrar em stress porque está sempre sozinho, está

saturado do trabalho e também acho que ele esta assim da idade. E já anda há 20 e tal anos

neste trabalho. Sempre sozinho, sempre preocupado com os filhos. (...) Ficamos um

bocadinho, se calhar até, amargos, derivado à vida e à doença.

E: Acha que o seu filho está curado?

M: Eu acho que sim.

E: Curado, acabou?

M: Da leucemia eu acho que sim.

E: Ele ainda segue?

M: Sim, ainda vai à consulta dos duros todos os anos. A endocrinologia por acaso foi hoje. E

não correu assim tão bem porque, ainda agora vinha-lhe a dizer no carro “os pais, apesar de a

mãe não ter um curso e não saber, tem experiência de vida, tu não queres ouvir o que a mãe te

diz mas quando tu sais para a faculdade digo-te que a mochila é com as duas alças mas como

é chique os meninos andarem só com uma alça...”, a Dr.ª da endocrinologia disse que a anca

não está na mesma altura, esta omoplata está mais saída. Conclusão tenho que ir para o

hospital fazer um raio x completo e se calhar tem que ser tratado. (...)

E: Ficam aflitos quando ele tem um sintoma qualquer de doença, uma gripe, fica logo

aflita ou já passou?

M: Ele já desmaiou duas vezes em casa e eu fiquei um bocado aflita. Entro em pânico

derivado à doença...

E: Fica com medo que aconteça alguma coisa.

M: Fico, completamente. Por acaso desta última vez estávamos os três (...) e quando chego à

casa de banho estava ele desmaiado no chão. E foi muito complicado.

E: Ou seja quando ele tem um sintoma qualquer...

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M: Tive que chamar a ambulância logo porque tinha a hemoglobina a 4. E estava muito

complicado. Eu chamei logo o INEM. E da outra vez estava sozinha. Tive que chamar a

minha filha mais velha...

E: Mas acha que essa fragilidade dele é derivado da doença?

M: As médicas dizem que não. Que normalmente os jovens que é normal eles irem parar ao

hospital com problemas de intestino. Diz que as dores são demasiado fortes e que eles não

aguentam e desmaiam. E ele á lhe aconteceu duas vezes.

E: Então acha que a doença, em princípio estará...?

M: Sim, sim. Penso que sim.

E: E as suas maiores preocupações em relação ao seu filho hoje?

M: Acabar o curso. Porque ele acha que faz ali tudo, e é muito inteligente e ele as vezes

valesse um bocadinho disso. E ele no preparatório nunca foi necessário estudar porque ele

captava tudo. Depois ali na faculdade e no secundário não era bem assim. Tinha que trabalhar

e é diferente. E ele acha que sabe e que está tudo bem e depois é muito ansioso. O problema

dele é os nervos (...). E depois diz que a gente o compara à irmã e acho que ele sente um

bocadinho ciúmes. Mas ele não quer assumir que tem.

E: Mas tem essa preocupação que ele acabe o curso. E que outras preocupações tem?

M: De más companhias. A nível de raparigas. Eu acho que ele confia nas pessoas. Ele tem um

coração bom, é muito inocente. E eu acho que por certas coisas que ele me conta eu acho que

não é bom e tenho muito receio porque as raparigas são diferentes dos rapazes. O meu filho é

muito ingénuo. Ele é muito novinho.

E: Acha que isso é uma característica que lhe deixou a doença? Se o seu filho não tivesse

tido a doença acha que tinha as mesmas preocupações?

M: Se calhar tinha. Porque isso pode ser dele. Porque eu criei os dois da mesma maneira e

eles são completamente diferentes.

E: Quando estava a falar que o superprotegia, quem é que o superprotege mais, a mãe

ou o pai?

M: Na altura era eu.

E: E isso não criava questões com o seu marido? O seu marido não lhe dizia “estás a

superproteger o rapaz”?

M: Não, não, porque era a mesma coisa e como ele também quando vinha só estava um dia e

meio com ele também era para o apaparicar.

E: E agora não diz “não o superprotegeste e ele agora está assim”?

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M: Não. Diz assim “pois é o menino, é as vontadinhas todas”. Mas diz agora porque sabe que

ele está bem porque ele voltava a fazer o mesmo.

E: Ou seja, agora pode haver um bocadinho mais de conflito porque o problema já

acabou?

M: Ele estava habituado a ter tudo feitinho e como tem tudo feito... (a mãe conta um episódio

em que foram almoçar fora a casa da irmã dele e ele ficou em casa, com tudo preparado e que

mesmo assim não comeu nada). Mas depois ele não conta isto à Dr.ª Maria de Jesus e depois

nós entramos em choque...

E: Pois, é normal. Agora é incrível é como é que vocês enquanto casal conseguem

aguentar isto sem...

M: Tem que aguentar. Diz o meu marido “realmente esse rapaz assim vai longe”. Eu no outro

dia chamei-o com calma e disse-lhe “qualquer rapariga que tu queiras arranjar não te apara

esses golpes porque elas querem um rapaz que trabalhe ao mesmo lado, porque o pai quando

chega, eu trabalha, mas se for preciso aspira-me a casa, porque eu ando a trabalhar, que é para

eu não ter tanto trabalho ao fim de semana”. Porque o meu marido sempre me ajudou muito.

E trabalha.

E: Se calhar isso também vos ajudou a que vocês aguentassem juntos. Porque há muitos

casais que se divorciam...

M: Eu soube de muitos na altura.

E: Acha que vocês tiveram o quê, para que isso não acontecesse entre vós? O que é que

ajudou a que vocês não se tentassem divorciar?

M: Eu acho que pensámos todos para o mesmo sítio.

E: Terem tido o mesmo objetivo, esta complementaridade?

M: Eu acho que sim. Porque nós vivemos, lá está, para os filhos.

E: Acha que a vossa relação anterior já era assim muito forte?

M: Sempre foi porque eu sempre considerei e até dizia à minha filha, quando ela namorava

“uma pessoa para ter um namorado ou um marido, o marido não serve só para fazer sexo,

nem para fazer amor à noite. É preciso ele primeiro ser nosso amigo e eu dele, primeiro tem

que haver uma grande amizade e ser verdadeira e depois o sexo é o complemento. Porque foi

isso que se passou com o pai e com a mãe.” O meu marido em namorado é que me ajudou e

se ele fosse só atrás de outra coisa não tínhamos ido até onde estamos. (...)

E: E o que diria aos pais de crianças que foram agora diagnosticados?

M: Eu disse muita vez. As enfermeiras pediam-me para eu dizer. Falávamos um bocadinho

porque eles estavam a passar o que eu tinha passado. E eu dizia que tinham que ter sempre

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muita fé e pensar não que ele ia morrer, que isso nunca se pode pensar, eu nunca iria pensar

nisso. Era que ele ia superar aquilo. Que era uma batalha, que tinha que seguir o tratamento à

regra, fazer tudo direitinho e pensar que ele ia passar essa batalha e isso tudo. E que se ia

curar. Nunca quis pensar o contrário.

E: E aos profissionais de saúde, o que é que lhes diria que é importante?

M: Fui tao bem tratada.

E: Acha que é “sigam assim...”? Foi bem informada?

M: A médica do D. era a Dr.ª Ana Neto. Está aqui no nosso coração. O D. no outro dia,

quando fez 16 anos quis ir dar um grande abraço à Dr.ª Ana Neto. Foi médica dele até quase

aos 5anos. Eu considero-a da minha família. Temos um carinho muito especial por ela.

E: A informação que foi tendo chegava?

M: Eu acho que foi correta porque ela quando eu estava assim mais em baixo ela ia-me

chamar ao quarto do D. e ela dizia-me e via-me ver as coisas “agora vamos fazer assim, agora

o D. vai passar por isto”. Elucidava-me sempre. Dava-me coragem. Sempre, sempre.

E: Ia dizendo a informação à medida que ela ia fazendo falta? Nunca era a longo prazo?

M: Era conforme era preciso. Foi uma pessoa espetacular.

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CASAL 04 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – D.

E2: Muito obrigada mais uma vez por estar aqui, prestar o seu testemunho, daquilo que

vivenciou há 15 anos atrás com o D. E o que eu pedia era exatamente isso, que regressasse há

15 anos atrás, ao passado, e que na medida do possível se recordasse dessa fase inicial,

daquilo que sentiu na altura.

Pai 4: É assim, nessa fase foi complicada. Ah… no aspecto em que a minha mulher viveu

muito mais essa situação do que eu, porque eu raramente cá estou

E2: A sua situação profissional não permitiu estar na altura do diagnóstico não é?

Pai 4: É assim, eu estava uma semana fora nessa altura, 7, 8 dias, depois estava 2 dias e ia

outra vez. A situação não é a mesma da pessoa que está a viver completamente não é?

E2: Claro

Pai 4: É claro que isso foi muito doloroso.

E2: E lembra-se de quando recebeu a notícia?

Pai 4: Lembro-me. Quando recebi a notícia foi a minha mulher. Eu estava para chegar de

viagem e quando cheguei ainda estava o D no hospital em Santa Maria. Depois foi nesse dia

penso eu, foi nesse dia que viemos aqui para o hospital de oncologia

E2: E veio portanto com a sua mulher aqui para o IPO. Chegou a estar no Santa Maria?

Pai 4: Não, quando cheguei, eu penso que quando cheguei foi precisamente quando foi para

trazer para aqui.

E2: Hum hum. E quando lhe disseram que o D tinha leucemia, o que é que sentiu

imediatamente?

Pai 4: É assim, não sei explicar ao certo (emociona-se) O que senti não é… Portanto, penso

que é uma dor muito grande

E2: Sentiu tristeza

Pai 4: Sim. É uma tristeza muito grande e depois olhe não sei mais, vai-se vivendo…

E2: Mas quando recebeu a notícia? Sentiu que, além dessa tristeza que sentiu, sentiu choque?

Ou sentiu…

Pai 4: Sim, foi um choque muito grande, exacto. É uma coisa que uma pessoa não está à

espera, uma pessoa não está à espera porque nunca nos passa pela cabeça, a ninguém passa

pela cabeça uma coisa dessas

E2: É algo muito doloroso

Pai 4: Sim

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E2: Lembra-se do que fez imediatamente nessa altura?

Pai 4: O que fiz foi… Nós tivemos aqui, entretanto depois o D tinha varicela.

E2: Hum hum

Pai 4: Foi descoberto aqui. E a minha mulher já tinha perguntado em Santa Maria que ele

tinha umas borbulhas e o que era aquilo. Mas entretanto não sei o que se passou para não ser

verificado…

E2: Foi aqui que foi…

Pai 4: Entretanto depois quando falamos com o Dr. Aqui, ele viu e disse-nos então onde é que

tínhamos de estar, que o D não podia estar na sala com os mesmos meninos que estavam a

fazer a quimo porque era, portanto, não era compatível… Entretanto depois arranjou, ele

próprio ligou para a Estefânia, falou com uma Dr.ª conhecida e arranjou um quarto para irmos

para lá. Entretanto fomos para a Estefânia, quando chegámos já estava tudo pronto, já estavam

à nossa espera. E esteve lá um tempo até que curasse, neste caso curasse a varicela.

E2: Portanto esse…

Pai 4: E depois dai é que veio para aqui para começar a fazer a quimio, que não podia fazer

enquanto tivesse varicela.

E2: Durante esse período, a transferência para o hospital, o regresso para o IPO, o Sr. J

acompanhou sempre ali o processo?

Pai 4: Sim

E2: Portanto, mais tarde é que retomou a sua vida profissional?

Pai 4: Não, eu tive sempre a minha vida profissional, apenas demorava menos. Porque nessa

altura eram viagens que havia muito, portanto havia muito trabalho e era fácil conciliar

horários para as viagens, apesar de que eu só fazia Alemanha

E2: Hum hum. Para conseguir conciliar a sua vida profissional com o tratamento do D?

Pai 4: Sim. Com o tratamento. Aliás…

E2: Para conseguir acompanhá-lo de perto?

Pai 4: Esteve sempre com ele porque eu depois quando chegava estava 2 ou 3 dias, entretanto

ia outra vez

E2: O que é que lhe ia na cabeça nessa altura? Em relação ao D, em relação…

Pai 4: Não sei. Eu pensei talvez, muita vez e se calhar sempre que é uma situação muito

delicada que é, mas… não sei. É, por aquilo que me dizia a Dr.ª, nesse caso foi a Dr.ª Ana

Neto que pronto, que a medicina tinha evoluído muito e estava sempre a evoluir não é? E que

ia tudo correr bem, a esperança de…

E2: Isso era algo que lhe dava esperança? Que o ajudava a lidar com a situação?

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Pai 4: Ajudava a lidar com a situação.

E2: E o que é que o ajudava, além dessa esperança depositada nos conhecimentos médicos e

científicos da altura? Que outras coisas é que o ajudavam e facilitavam o seu equilíbrio?

Pai 4: Pouca coisa. Além de a minha mulher, a minha filha, o resto da família não. Havia…

era mais da parte da minha mulher, mas da minha não. É assim também estão muito longe e

os contactos não eram…

E2: A distância física também

Pai 4: A distância é que era mais um problema, não propriamente a família

E2: Mas não sentiu apoio da família, tirando esta família mais nuclear?

Pai 4: É assim, apoio basicamente não. Porque nós chegamos a dizer sempre que a nossa

família era só nós, só nós lá em casa

E2: E amigos? Teve amigos que o suportaram? Que o ajudaram?

Pai 4: Sim. Amigos de…portanto conhecidos da altura. Sim.

E2: Que o ajudaram? Que o ouviram?

Pai 4: Sim, Muitos mesmo, mais esses do que a própria família. E como lhe digo da parte da

minha mulher havia família que estava sempre presente.

E2: Hum hum

Pai 4: Do qual, da minha não era bem assim.

E2: Hum hum. E portanto, estava-me a dizer que essa esperança, aliás que essa comunicação

com a médica, que realmente hoje em dia, que os tratamentos estavam muito avançados,

ajudava?!

Pai 4: Sim

E2: A sua família também ajudava. Para além disso o que é ajudava, Sr. J? O que é que

ajudava a continuar, o que é que ajudava o seu equilíbrio emocional? O que é que lhe dava

força?

Pai 4: Era a esperança sempre.

E2: Sempre a esperança.

Pai 4: Que vá tudo pelo melhor porque é assim, uma leucemia, eu acho, como disse, não

passa pela cabeça das pessoas, principalmente pelas pessoas que nunca tiveram nada,

inclusive a ver com este género de notícias, não com hospitais em si mas com este tipo de

doenças porque são totalmente diferentes de uma doença de uma pessoa que tenha um

ferimento, uma coisa qualquer, uma operação, acaba por ser sempre diferente… Essa

finalidade e a esperança de que ele realmente depois…

E2: Essa esperança ajudou bastante, ajudou bastante essa esperança

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Pai 4: Apesar que o temo que ele esteve internado, aqui, foi sempre muito complicado, foi

E2: Foi complicado?

Pai 4: Foi, foi porque os tratamentos foram muito dolorosos e perante esses tratamentos as

esperanças, nós… É assim há sempre esperança mas uma pessoa não vê nada…

E2: Hum hum. Mas os tratamentos eram complicados no sentido em que tinham efeitos

secundários no D?

Pai 4: Nós nunca sabíamos o que realmente…

E2: Era a incerteza

Pai 4: … porque quando perguntávamos e acho que ainda hoje se perguntarmos: “O que é

que vai acontecer”, depois ninguém sabe

E2: Era a incerteza do que iria acontecer?

Pai 4: Exactamente.

E2: Se o tratamento tinha dado resultado ou não tinha

Pai 4: Se estava a dar resultado. O grande problema é sempre, nos 2 anos do tratamento, pelo

menos ir sempre até ao final. E a partir dai ainda mais o que é que durante, as próximos…

E2: Era a incerteza do prognóstico?

Pai 4: Exacto. Os próximos 5 anos que eram 5 anos mais críticos não é? O tempo mais

critico, o que é que se ia acontecer alguma coisa

E2: Hum hum. E foi algo que dificultou? Essa incerteza?

Pai 4: Sim, essa incerteza sim. Há sempre

E2: E o que é que dificultou mais além dessa incerteza? Houve outras coisas que

dificultaram? O cansaço…

Pai 4: Não propriamente o cansaço mas…

E2: O desgaste?

Pai 4: O desgaste de estar porque às vezes há uma diferença que é, a pessoa está presente é

uma coisa, está a viver a situação, outra coisa é a pessoa não estar presente mas por vezes está

ainda a viver uma situação pior do que estar presente, porque não sabe… Eu saio daqui por

exemplo hoje ou amanhã e vou estar 8/10 dias fora de casa basicamente e há uma diferença

entre haver uma pessoa de família que está doente e uma pessoa que está bem, portanto se

está bem a pessoa telefona todos os dias a saber como é que estão e não sei quê, está tudo

bem, tudo bem… Mas neste caso é diferente porque mesmo, eu penso mesmo que me estejam

a dizer: “Está tudo bem”. Nós estamos sempre com aquela incerteza…

E2: receava se acontecesse alguma coisa e não estivesse aqui ao lado?

Pai 4: Também, também pode acontecer isso

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E2: Era esse o seu receio?

Pai 4: Sim, em parte era também esse receio

E2: Querer estar…

Pai 4: Querer estar presente ou por vezes não é bem o estar presente, era podia, se estivesse

presente podia ter feito mais alguma coisa

E2: E sente que poderia ter feito mais alguma coisa?

Pai 4: Não.

E2: Fez tudo o que podia?

Pai 4: Sim. Foi sempre, foi tudo o que podia, tanto da minha parte como da minha família, o

resto das pessoas que já mencionei…

E2: O Sr. J era, portanto, além de estar presente sempre que estava cá, era também, digamos,

que a sua mulher deixou de trabalhar na altura, era o grande sustento da família também, não

era?

Pai 4: Sim, também

E2: O suporte económico

Pai 4: Sim, sim. Até numa situação dessas uma pessoa não se pode (? 1:35:21)

E2: Claro, claro

Pai 4: O trabalho feito é aquele e tem de continuar, é mesmo assim. Se fosse hoje

possivelmente iria acontecer a mesma coisa

E2: Claro. Porque precisavam de ter a vossa fonte de rendimento

Pai 4: Sim. As coisas, a idade é outra, os tempos também mudaram, mas a situação no caso

de ser hoje era muito parecida

E2: E houve mais coisas que dificultaram? Além desta incerteza…além desta, não é? Da

incerteza do que o prognostico ia dar…

Pai 4: Dificuldades não.

E2: Ou seja, não estou a falar apenas da parte económica, estou a falar do global. Ou seja,

sobre qualquer coisa que impediu ou dificultou o seu equilíbrio emocional? A relação com os

médicos….?

Pai 4: Não. Isso não porque os médicos aqui sempre foram muito atenciosos e impecáveis

E2: Sente que teve toda a informação?

Pai 4: A informação e o apoio de médicos e enfermeiros que havia, espectaculares…

E2: E de um psicólogo sentiu necessidade na altura?

Pai 4: Sinceramente não sei responder porque nunca passámos por essa situação, portanto de

sermos acompanhados. Se fosse hoje, a ideia que tinha era outra. Fez muita falta.

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E2: Sente que fez falta na altura?

Pai 4: Sim, porque a situação podia ser outra em termos de pensamentos e de outras coisas se

houvesse o acompanhamento dessa parte

E2: Ou seja alguém que o ajudasse a lidar com a situação

Pai 4: A lidar com a situação.

E2: De forma mais calma, mais…?

Pai 4: Mais calma

E2: De forma mais calma

Pai 4: Ou para tentar ver as coisas de outra maneira, não só de falar com as pessoas, amigas

até colegas

E2: Ajudar que o ajudasse a pensar sobre a situação?

Pai 4: Exactamente

E2: E a pensar sobre a melhor forma de agir sobre a situação

Pai 4: Melhor forma de gerir essa situação, isso é que eu acho que realmente fazia falta, não

houve nada. Ainda houve salvo erro…

E2: Era uma necessidade se calhar então que sentia? A necessidade de ter apoio psicológico?

Pai 4: Sim, hoje penso que sim

E2: Hoje sim. Na altura não teve tempo para pensar se calhar?

Pai 4: Não na altura…

E2: Não teve espaço…

Pai 4: … na altura não pensei sequer se era necessário ou se não era. Hoje posso sentir e ver

que se tivesse havido ou que se houvesse se calhar tinha sido muito benéfico isso

E2: Hum hum. E sente que outras necessidades? Portanto, já vimos que isto não era uma

necessidade da altura, é mais actual, não é?!. Mas na altura sentiu outras necessidades? Algo

que lhe fez falta e que não teve ou que fez falta e que teve?

Pai 4: É assim, como lhe digo, a nível de médicos, era, e mesmo após, e não só, durante o

tratamento o D vinha basicamente a princípio vinha aqui, foi para casa, era dia sim, dia não. E

depois começou a ser todas as semanas até, com a quimio e essas coisas e ai não havia

dificuldades… nem tinha felizmente, portanto dificuldades em transporte porque tinha

viatura, portanto na altura tudo o que era feito era sempre no nosso carro, portanto esse tipo

de necessidades não tive. Felizmente que não

E2: E necessidade por exemplo de falar com outras pessoas?

Pai 4: Sim. Isso havia muito. E ai vem a parte de que se houvesse psicólogo, ia se calhar

trazer outros benefícios, porque não é as pessoas, só contarmos umas às outras que

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resolvemos alguma coisa por vezes. Pode aliviar, mas de resto é assim não temos uma

informação…

E2: Falta a parte técnica?

Pai 4: Exactamente. A pessoa dizer em vez de ser assim, comece a fazer assim…

E2: Por exemplo com outros pais que estavam internados, ou que já tinham experienciado há

mais tempo, chegou a falar?

Pai 4: Eu pessoalmente não e sinceramente nem sequer me recordo mas penso que a minha

mulher sim, falava muito com outros pais, aliás agora… Quando eu vinha à consulta com o D

e com a minha mulher, havia sempre pessoas a chegar e nós estávamos sempre a falar com as

pessoas, mais ou menos, a experiência que tínhamos passado em parte, para as pessoas

tentarem também levar…

E2: E isso ajudava-o?

Pai 4: Sim

E2: Poder acolher outras pessoas?

Pai 4: Portanto, no caso só de dizer às pessoas, ajudava, penso que poderia ajudar as outras

pessoas

E2: Que chegavam pela primeira vez

Pai 4: Que chegavam, porque essas pessoas estavam como nós, não é?

E2: Como é que vocês estavam ao princípio?

Pai 4: Pois, o problema é esse.

E2: Desorientados?

Pai 4: Sim, sim. Sim completamente desorientados porque é uma situação, como disse, não

nos passa pela cabeça, nem depois de estarmos a viver essa situação, a pessoa parece que não

está. Está noutro lado

E2: Hum hum. O que é que fez para lidar com a situação?

Pai 4: Eu não sei. O que fazíamos era seguir sempre em frente, era o que fazíamos. É assim

acho que não fazíamos mais nada, pelo menos que eu me lembre, falávamos muito em casa

sobre isso. Numa altura depois, já, não sei passado quanto tempo, em casa era completamente

quase proibido falar sobre isso

E2: Sentiu isso?

Pai 4: Senti

E2: Imediatamente após o tratamento?

Pai 4: Eu não sei se foi imediatamente, sei que houve uma altura que era…

E2: Era proibido

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Pai 4: Não se falava em casa sobre isso

E2: E como é que se sentia em relação a isso?

Pai 4: Não sei, sinceramente

E2: Era um tema tabu?

Pai 4: Eu acho que era mais o tema tabu em casa perante estarmos à mesa ou perante o D para

não o afetar

E2: Era uma proteção para o D se calhar?

Pai 4: Sim. Eu penso que sim

E2: O D ainda era muito pequeno

Pai 4: Sim. Acabou os tratamentos tinha cerca de 5 anos e meio e nessa altura é assim, ele

nessa altura já percebia tudo, mais que tudo

E2: Hum hum

Pai 4: Porque havia situação, porque entretanto também foi para a escola, um ano mais cedo.

Ele próprio andava na escola e a fazer tratamento e havia situações que se passavam na escola

em que ele dizia que aquele telefonema que era por causa dele, para a professora. Portanto ele

apercebia-se muito bem da situação

E2: Ele sentia-se hipervigiado

Pai 4: Se calhar sim

E2: Portanto o que fez para lidar com a situação, o que me estava a dizer, era um bocadinho

se calhar viver o dia-a-dia?

Pai 4: Sim, era o viver o dia-a-dia, isso era a parte principal

E2: O ter a esperança que falava

Pai 4: O dia de hoje para o dia de amanhã, de resto nada mais havia

E2: Hum hum. Era isso então exatamente aquilo que fazia não é?! Passando gora para a fase

atual, para a fase de sobrevivência do D. Estava-me a falar da sua rede de suporte, da sua rede

de amigos

Pai 4: Sim

E2: A sua família já vimos que se manteve, não é?!

Pai 4: Sim

E2: Manteve o seu suporte, muito unidos

Pai 4: Sim

E2: Os amigos são os mesmos?

Pai 4: Sim, em parte são os mesmos

E2: Mantiveram-se portanto?

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Pai 4: Sim

E2: Mantiveram-se. São ainda hoje o suporte que foram na altura? São…

Pai 4: Sim, embora não haja uma intimidade hoje como havia nessa altura

E2: Sente que se modificou?

Pai 4: Não, o que se modificou é a vida, não os amigos

E2: Não os amigos. Os amigos são os mesmos. Muito bem. E o que é que ajudou ou

dificultou a adaptação após o tratamento, após o D estar a na fase de sobrevivência? Ou seja,

o que é que ajudou imediatamente esse período, o que é que…

Pai 4: O que ajudou foi realmente ele acabar o tratamento e estar sempre, está bom…

E2: Ao longo dos anos

Pai 4: E ao longo dos anos está sempre…

E2: Bem

Pai 4: Nunca, felizmente…

E2: Não houve nenhuma recidiva?

Pai 4: Não isso não houve felizmente

E2: Portanto é isso que também ajudou?

Pai 4: É muito forte perante uma situação destas

E2: Hum hum. E mais? Além do próprio do curso, da própria evolução de saúde do D, estar

completamente bem, que é uma cosia que ajuda

Pai 4: Sim

E2: O que é que mais ajuda? O que é que mais ajuda a sua adaptação? O que é que ajudou a

sua adaptação ao longo destes anos?

Pai 4: O que ajuda é realmente a família mais chegada.

E2: Hum hum

Pai 4: Isso é que realmente ajuda. Porque a convivência todos os dias

E2: A família então

Pai 4: É mais a minha filha no caso e a família sempre

E2: E forças? Foi buscar forças a algum lado?

Pai 4: Sinceramente não sei. Talvez sempre a esperança de acreditar

E2: A esperança

Pai 4: Vai ser sempre, vai ficar tudo bem, vai ficar bom, é sempre

E2: Agarrar-se a isso

Pai 4: A esperança

E2: Era a força motivadora era a esperança

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Pai 4: A motivação de que realmente vai ficar tudo bem

E2: Hum hum. Teve consequências a doença? Positiva ou negativas. Para si, para o D, para a

família…

Pai 4: Para o D teve negativas, não é?! Porque a situação está resolvida de uma forma mas há

outras coisas

E2: A incerteza continua?

Pai 4: A incerteza no tipo de doença penso que não. Isso está completamente fora de questão

E2: Está curada a doença?

Pai 4: Porque… Está! Porque é assim durante 5 anos não acontece nada, é claro que depois há

um resto, mais uma situação que realmente não são 5, são 10, há sempre melhor

possibilidade. Realmente há, o quer não dizer, é assim todos nós estamos sujeitos a que

tenhamos hoje uma coisa e daqui por 20 anos podemos ter a mesma coisa ou outra cosia

qualquer. Nunca ninguém está livre de uma doença.

E2: Mas portanto neste momento está controlada?

Pai 4: Sim, sim. Controlada está.

E2: Mas mesmo assim teve consequências negativas, além desta incerteza

Pai 4: Sim, tem sempre consequências.

E2: A que nível?

Pai 4: É assim, pronto a que nível não sei…

E2: Por exemplo, para o D, teve consequências negativas?

Pai 4: Atualmente…

E2: A aprendizagem, teve consequências? Escolar…

Pai 4: Não, aprendizagem não teve, teve no modo de colegas

E2: De colegas? Relacionamentos sociais?

Pai 4: Sim, houve uma altura que ele dizia que os colegas que andavam sempre a dizer que

ele tinha sido, tinha estado muito bem e entretanto nós dizíamos…

E2: Mas eram maus os colegas? Diziam…

Pai 4: É assim, há sempre porque nos miúdos há sempre essas coisas

E2: Mas diziam concretamente o quê? Que o D esteve doente?

Pai 4: Na escola, que ele estava doente, era diferente dos outros

E2: Mesmo na fase de sobrevivência já? Após os 5 anos?

Pai 4: Sim, sim. Ele andava na secundária, tanto que tivemos que mudar de escola

E2: Mudar de escola

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Pai 4: Era situações assim. É assim, depois temos outra coisa que é, ele também pode não ser

bem uma criança, ou seja como outra qualquer, agora se ele realmente pode ser um bocadinho

diferente derivado à doença que teve, aos tratamentos que teve, é assim não sabemos não é?!

Mas quais foram as consequências?!

E2: Hum hum. E consequências positivas?

Pai 4: Consequências positivas penso que só a nível de nos darmos todos bem

E2: Coesão familiar

Pai 4: Sim

E2: Dão-se muito bem. A nível conjugal não nota que a doença teve consequências? Positivas

ou negativas

Pai 4: É assim, portanto, dependendo das coisas porque é assim, a nível de lidarmos não.

Talvez às vezes um pouco mais com…, mais agressivos mais…

E2: Saturados?

Pai 4: Mais saturados por causa disso, talvez sim

E2: Hum hum. Tiveram uma carga muito grande não foi?

Pai 4: Sim, exactamente.

E2: E isso pode ter um peso

Pai 4: Também

E2: Mas a nível da relação com a sua mulher…

Pai 4: Sim a nível de relação há esse problema.

E2: E por exemplo a nível emocional…

Pai 4: A nível emocional talvez sim, bastante…

E2: Considera-se uma pessoa diferente emocionalmente, daquilo que era há 15 anos atrás?

Pai 4: Sim. Esse aspecto considero bastante

E2: Como é que era? Como é que é?

Pai 4: Como era, é assim, podia falar daquilo que fosse mas não tinha reacções e hoje quando

se começa a falar em determinados assuntos, um deles sem dúvida este não é?! Acho que há

uma dor sempre…

E2: Sente tristeza?

Pai 4: Sinto

E2: Sente que é uma pessoa mais triste hoje do que há 15 anos atrás?

Pai 4: Ah sim, com certeza. Também não só pelo D como pela minha filha. Aqui há 3/4 anos,

não, 5 anos, já fez 5 anos, também passou por uma situação muito idêntica, embora não fosse

leucemia, mas era…

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E2: E houve outra vez o choque da palavra?

Pai 4: Sim houve porque isto é uma doença muito. É assim, é uma incerteza muito grande,

pelo menos nas fases de tratamento. É a parte pior. A partir de haver a fase de tratamento

depois se calhar há essa situação. Portanto as coisas vão andando, vai tudo correndo bem, é

isso.

E2: Nunca se sentiu injustiçado?

Pai 4: Talvez sim e possivelmente porque é assim nessa altura quando nos surge uma coisa

dessas eu penso que não há ninguém que diga mas porque é que isto tinha que me acontecer a

mim?!

E2: Mas no entanto disse que ia buscar a esperança

Pai 4: Exacto

E2: E onde é que ia buscar essa esperança?

Pai 4: Não sei. Essa esperança vai-se buscar no dia-a-dia, na família e nas pessoas com quem

vivemos e com que lidamos

E2: Hum hum. E em termos de severidade da doença? Acha que é a mais severa do mundo ou

acha que há outras piores?

Pai 4: Não, nesse aspecto acho que há outras piores

E2: Há outras piores. Controlabilidade já vimos que considera que está controlada não é?

Pai 4: Sim

E2: E causas? O que é que acha que pode ter causado? Pensou que houve alguma causa para a

doença do D? Pensou: “O D teve esta doença porque…”?

Pai 4: Sim. Pensamos, não só eu, mas mais pela situação que ele passou na barriga da mãe

biológica. Agora se realmente foi ou não, não posso dizer e se calhar pode nem ter nada a ver

com isso.

E2: E a situação que o D passou na barriga da mãe biológica… Portanto o próprio processo

de…

Pai 4: … eu não estou a falar do processo de adoção

E2: Sim

Pai 4: No processo enquanto ele, no processo de gestação

E2: Sim, no processo de gestação exatamente. Eu estava a falar do processo de gestação

Pai 4: Que nos contaram e foi a própria pessoa que nos contou que fez tudo para conseguir

abortar, nós não sabemos o que realmente fez tudo, porque sabemos uma coisa, se a pessoa

quer abortar ou aborta, fá-lo, mas uma coisa é tentar por outros meios que não sabemos as

consequências secundárias

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E2: E pensou que isso pode ter sido uma causa para despoletar a doença?

Pai 4: Pode ter sido uma causa. Não sei se foi se não. Mas é uma ideia que ainda hoje se

mantém.

E2: Mas ai se calhar, por outro lado, podemos pensar que o D foi de novo um lutador?

Pai 4: Exato e foi, foi, foi lutador (emociona-se). Na barriga da mãe biológica e depois…

E2: E ainda hoje não é?! Entrou para a Universidade o ano passado não foi?!

Pai 4: Sim. Também, apesar que tem os seus problemas, mas isso é assim todos nós temos

não é?! Ele tem os dele, esses problemas das incertezas dele podem nem ter nada a ver sequer

com a doença, mas isso não sabemos

E2: O próprio processo que é a vida não é?

Pai 4: Exato, há muitas pessoas com os mesmos problemas dele, portanto e não passam,

felizmente não passam por essa situação…

E2: Hoje as suas preocupações com o D são quais?

Pai 4: Hoje as preocupações, em parte, é que ele faça o curso que realmente quer

E2: E que sente que tem capacidades para o fazer, não é?!

Pai 4: Sim

E2: Porque nível cognitivo a doença ai não afetou nada

Pai 4: Sim, não, não. Eu penso que não.

E2: A nível emocional sim, mas a nível…

Pai 4: Ele diz sempre que anda muito cansado, ele próprio diz que não aprende tanto como

era antes.

E2: Sim

Pai 4: Eu disse: “Não, agora é diferente, tu não te esforças o suficiente para aquilo que estás a

fazer”. A vida dele é computador e jogos

E2: Como é que descrever o D hoje em dia? Como é que descreve o seu filho?

Pai 4: A nível de…

E2: A nível do que quiser… O que é que…

Pai 4: É assim, ele é um miúdo ótimo, é verdade, é um miúdo espetacular. Tem aquelas,

aquelas birras, vamos. Eu choco muito com ele, é verdade, eu digo às veze suma coisa

qualquer na brincadeira e ele pensa sempre que estou a falar a ´serio, é mais essa situação,

agora noutras é lógico que ele…Ele é responsável, embora não pareça em casa. Em casa ele é

responsável e perante as outras pessoas. Ainda, por exemplo, ainda ontem estivemos, fomos

almoçar ao restaurante e ele encontrou lá uns contínuos, marido e mulher, e vieram logo falar

com ele e a convidar para ele, quando é que ele lá ia, todos lá na escola gostam muito dele

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E2: Na escola secundária? Na escola que o puseram depois da…

Pai 4: Exato que é no ICE. Ai, todos, inclusive professores e tudo adoram-no por isso digo eu

que ele é responsável, só que perante nós não parece ser responsável em casa, mas é só em

casa

E2: Portanto acha que o D é tudo isso? É responsável…

Pai 4: É. Ele se tiver uma coisa, mesmo que tenha que fazer, ele é responsável…

E2: Hum hum. E o que é que tenta ensinar ao seu filho?

Pai 4: É assim, tentar ensinar aquilo que às vezes lhe dizemos, para fazer assim ou fazer de

outra maneira, ele não aceita. Diz sempre que não é assim, ele é que sabe, não propriamente

ele é que sabe, a outra pessoa é que sabe… Mas no fundo eu penso que ele ficará com alguma

coisa gravada

E2: Sim, sim

Pai 4: É isso que eu acho.

E2: E por último, Sr. J, se pudesse, aliás, se hoje fosse falar com pais que foram

diagnosticados ontem, cujos filhos foram diagnosticados ontem, o que é que diria a esses

pais?

Pai 4: O que diria seria aquilo que disse a alguns, principalmente para terem muita esperança

e confiarem nos médicos e no próprio sistema. Eu falo por este hospital, não posso falar por

outros, felizmente não conheço propriamente outros, como disse a minha filha andou em

Santa Maria, na aqui e também foi espetacular, foi atendida espetacular, por isso penso que

não só neste hospital, mas também noutros, as coisas serão mais ou menos idênticas não é?!

E2: Estão bem estruturadas?

Pai 4: É assim se estão bem estruturadas ou com dificuldades, acredito que haja muitas

dificuldades, mas eu refiro-me é perante os médicos

E2: A parte humana?

Pai 4: Exato. Perante essa parte, eu penso que sim, que a maioria das pessoas, pelo menos

com quem lidamos foram sempre excecionais

E2: Humanamente, tecnicamente, cientificamente

Pai 4: Sempre, mesmo. Como disse, aqui passámos muito mais tempo, porque além de o D

acabar de fazer tratamentos, continuamos a utilizar este hospital que ele realmente, se não é,

claro que não é todas as semanas mas 15 em 15 dias praticamente ele vem aqui

E2: Vem aqui de 15 em 15 dias?

Pai 4: Vem aqui à Dr.ª Maria de Jesus, psicóloga

E2: Psicóloga sim

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Pai 4: E vem à psiquiatra que não sei o nome

E2: Sim, sim

Pai 4: Estive com ela uma vez ou duas. E vem aos outros, que ainda esteve a semana passada,

veio cá precisamente à consulta dos duros

E2: Claro.

Pai 4: ?(2:02:20)

E2: Existe, tem alguma estratégia para lidar com a sua adaptação? Como é que…

Pai 4: Não, não tenho estratégia nenhuma

E2: Hoje em dia sente que está resolvida?

Pai 4: Sim, sinto resolvido, precisamente não só dele, mas mesmo da minha filha penso que

também está resolvido, apesar de que foi há muito menos tempo. Mas penso que não há…

E2: Houve uma adaptação então? Podemos concluir que houve uma adaptação?

Pai 4: Sim, teve que haver uma adaptação

E2: Familiar, pessoal…

Pai 4: Sim. Pessoal houve grande… Porque é assim, eu passo a minha vida profissional,

passo sozinho.

E2: Hum hum. Tem tempo para pensar digamos?

Pai 4: Muito. Penso muito (emociona-se). Penso no bem e no mal, penso porque faço horas e

horas seguidas sozinho e acho que uma pessoa vai sozinho tem de pensar nalguma coisa não

é?!

E2: Hum hum. Tenta encaixar as pecinhas na sua cabeça?

Pai 4: Sim. Mais antes, agora não penso tanto.

E2: Agora não penso tanto, mas houve um tempo…

Pai 4: Sim. Na altura da doença e do tratamento isso, como lhe digo, possivelmente, não

havia segundos ou minutos em que não fosse a pensar nisso

E2: Estava centrado na temática da doença.

Pai 4: Hoje não é assim. Hoje vou… Posso lembrar-me. Não quer dizer que no dia não me

lembre 5 ou 10 vezes ou não sei quantas mas é totalmente diferente

E2: Ainda sente que há peças por encaixar hoje?

Pai 4: Penso que sim. Penso que sim. Penso que a nível, portanto, a nível de adaptação, se nos

temos que gerir as coisas sozinhos, ai realmente se houvesse alguém para ajudar, se calhar

poderia ter sido muito melhor, tinha sido óptimo, não sei…

E2: Mas fala agora? Agora essa ajuda? Ou antes?

Pai 4: Agora não. Agora penso muita vez se às vezes não necessitaria de ajuda para isso

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E2: Hum hum

Pai 4: Mesmo no actual

E2: No actual. E nunca procurou essa ajuda?

Pai 4: Não, nunca procurei, nunca me preocupei assim por ai fora. Eu também sou muito

introvertidito. Essas coisas a pessoa vai interiorizando não é?!

E2: Hum hum. Muito obrigada pelo seu testemunho.

[CONTINUAÇÃO]

E: (...) Sei que soube do diagnóstico do seu filho, em viagem?

P: Sim.

E: Foi dado por telefone?

P: Foi.

E: Lembra-se disso?

P: Lembro.

E: Estava a guiar, estava parado? Parou?

P: Estava parado. Sei que me disse que tinha ido ao Hospital, aliás disse-me que tinham ido

para o hospital e depois que estava à espera de diagnostico para saber o que se passava,

entretanto depois não sei se, no outro dia como foi, não me recordo bem, estava a espera que a

Dr.ª lhe dissesse concretamente o que era e a Dr.ª. andava, de certa forma a pensar como é que

lhe havia de dizer e lembro-me de ela ter dito se ele tinha alguma doença grave e ela só lhe

diziam que tinham que falar. Depois acabou por dizer que possivelmente que sim, que tinha.

Então passado 2 dias salvo erro, porque eu estava a vir para Portugal. Eu sei que quando

cheguei estavam no Santa Maria e depois fui com eles para o IPO e a partir dai depois...

E: Lembra-se do que é que pensou, o que é que sentiu nessa altura?

P: Para descrever eu não consigo descrever, de certa forma, mas só que, é assim, é um choque

muito grande. Numa altura dessas é. Eu acho que nunca ninguém pensa o que é que nos pode

acontecer. A pessoa pode ouvir falar deste e daquele mas não a nós. Sempre nos outros e

depois é uma realidade muito grande...

E: E depois veio a guiar até...?

P: Vim.

E: Ainda foi muito tempo? Essa viagem ainda durou muito tempo?

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P: Não sei, possivelmente estaria na França, por aí. Porque eu só faço Portugal-Alemanha,

portanto, mas como eu estava à dois dias de cá, penso que possivelmente já vinha a vir de

viagem.

E: E depois eu sei que passaram pelo IPO, ele tinha varicela, não é?

P: No IPO fomos atendidos, pela Dr.ª Lacerda e entretanto comentou-se, a minha mulher

comentou que ele tinha umas borbulhas e tinha tido no Hospital Santa Maria mas passou

despercebido isso. Portanto e entretanto ele depois foi ver e disse que tinha varicela e não

podia estar em contacto com os outros meninos. Principalmente com os que estavam a fazer

tratamento porque era contagioso. Entretanto encaminhou-nos logo para o hospital da

Estefânia. Fomos para o hospital da Estefânia, depois esteve lá internado salvo erro cerca de

uma semana e então depois quando já não tinha a varicela ai veio para o IPO.

E: Essa altura quais foram as suas preocupações? O que foi mais difícil viver nesse

período?

P: Eu penso que o que é mais difícil é o que é que vai acontecer. Porque passa-nos tudo pela

cabeça e como são doenças que...

E: Que matam não é...?

P: Normalmente. Tanto que depois entretanto quando falamos com a Dr.ª já passado, ela

diziam para termos calma porque tinha cerca de 80% ou mais tinha cura, mas não sei, as

pessoas podem dizer que é 99%, há sempre um. As coisas, depois ela ficou, a minha mulher

ficou com ele na Estefânia e também ficou com ele, os primeiros tempos, no IPO.

E: Isso era muito doloroso para si? Ter que deixa-los lá, queria preferido ficar?

P: É assim, não teria preferido porque eu não... Eu não sabia bem como lidar com essa

situação, no qual a minha mulher sabia. Portanto na Estefânia mais, porque na Estefânia foi

mais perigoso, do que depois propriamente, porque quando começa a fazer o tratamento no

IPO as coisas vão-se desenrolando e há uma diferença e entretanto eu, não sei, não me lembro

ao certo, se fui logo de viagem, se não, mas sei que possivelmente, posso ter estado uns dias

mas depois fui. Eu lembro-me que depois em tratamento eu queria estar, durante a semana ou

o fim-de-semana (...) havia mais essa possibilidade, o trabalho é completamente diferente,

apesar de ser a mesma coisa (...).

E: Mas nessa altura ajudou muito ter essa flexibilidade de puder estar...?

P: Ajudou muito. (...)

E: Depois ficava e ia ter com eles...

P: Depois quando estava, estava sempre. Entre isso quem estava sempre era a minha filha.

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E: E o que é que teve mais, o que é que pode dizer que foram as suas ajudas nessa altura

para viver a coisa menos mal?

P: Ajudas...

E: Poucas...

P: Familiares...

E: Família...?

P: Não. Praticamente nenhumas. Da minha não. Da parte dela, irmãs sim e outra família dela,

da minha praticamente não. Para já não tenho ninguém aqui em Lisboa, mas é totalmente

diferente.

E: Não estiveram muito disponíveis?

P: Não. Portanto agora é diferente, mas nessa altura não.

E: E entre vocês? Entre o casal? Acha que houve ajudas? Acha que vocês ficaram de tal

maneira mal, que se sentiram mais separados? Como é que vocês...?

P: Mais separados não! Não porque nós chegamos a dizer varias vezes que a nossa família

eramos só nós.

E: Ou seja parece que se uniram ainda mais? Fecharam-se mais...

P: Sim, sim. Eramos os quatro e era sempre os quatro.

E: Sempre os quatro... Está-me a dizer que, disse-nos a sua mulher que o vosso filho até

foi dormir para a vossa cama...

P: Sim.

E: Ou seja, vocês tiveram um tempo separados com...

P: Porque ao início, mesmo no hospital ela tinha que estar com ele e dar-lhe a mão

precisamente e quando foi para casa aconteceu a mesma coisa e depois claro começa-se a

habituar, as crianças são assim um pouco desse género. Mesmo que não tenham nada é

sempre assim. Começando a ficar na cama dos pais praticamente...

E: E depois foi difícil tirá-lo?

P: Não, penso que não, mas é assim, essas partes já não me lembro assim. Se realmente foi ou

não ela é capaz de saber isso perfeitamente.

E: Vejo que há uma tristeza grande que houve nessa altura que permanece...

P: Sim.

E: Ou seja, acha que não está tudo resolvido em termos emocionais, hoje...

P: Não. Em termos emocionais não. De maneira nenhum. Cada vez eu noto mais, parece que,

quando se começa a falar nesse assunto é totalmente... Não tem cabimento nenhum.

E: A revolta permanece...?

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P: Não sei se será bem uma revolta porque é assim, eu não tenho a revolta...

E: Mas parece que revive isso...

P: Sim. Tenho muito medo disso.

E: E continua a ter medo que o seu filho venha a ter outro problema igual ou não?

P: Não propriamente. Tenho medo, é logico que sim. Mas não aquele “ai jesus”. Não

propriamente porque é assim, as coisas correram de tal forma bem, no aspeto dos tratamentos,

correu tudo, ele nunca falhou um tratamento, nada, correu tudo muito bem, portanto não é

daquelas coisas que diga logo “é assim, ele vai ter”. Tenho medo é verdade e depois durante 5

ou 10 anos e depois disso há sempre esse medo.

E: Mas tem impressão que o seu filho se curou mesmo ou que ele não está curado?

P: Em relação ao cancro? Penso que sim, que tudo está curado. Apesar, que aquilo que eu

penso é que traz muitas outras coisas...

E: Sim, como por exemplo? Acha que há ali consequências do cancro?

P: Pode não ser propriamente do cancro, mas sim dos tratamentos. Mais dos tratamentos do

que propriamente o cancro. Porque na altura, eu lembro-me de perguntar à Dr.ª o que é que

vai acontecer ou o que é que isto deixa “ah não deixa nada, vamos ver, cada caso é um caso”.

E é verdade, portanto...agora sinceramente não sei. Mas uma coisa é certa, aquilo que ele

passou foi muito. E há coisas, ainda hoje fomos a uma consulta de endocrinologia e é assim,

ele está bem mas existem umas coisas que há um controlo de crescimento, uma serie de coisas

que a Dr.ª mesmo hoje mandou ir fazer um raio X longo que é para ver, porque há uma

diferença no corpo do lado esquerdo. Não sei se isto é propriamente do cancro, pode até nem

ter nada a ver com o tratamento, pode ter a ver com a própria pessoa...Não sei.

E: Mas acha que pode haver consequências do cancro ou do tratamento?

P: Sim, sim. Mais do tratamento.

E: E que outras é que vê no seu filho?

P: É assim...

E: Acha que ele se modificou, acha que ele podia ser outro miúdo se não tivesse o

cancro?

P: Poderia ser oura coisa no sentido de a maneira dele às vezes ser ou aquelas coisas que

aparecem porque é um bocado obsessivo mas é assim, é a mesma coisa, não posso dizer que

ele é obsessivo, por foi (??) eu o eduquei. Porque sabemos que há pessoas que são e nunca

tiveram nada disso. Por isso é muito relativo. Não podemos estar a culpar uma coisa que nós

não sabemos. É só isso.

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E: Mas estava-me a dizer à bocadinho “os tratamentos as vezes deixam outras coisas”,

está-se a lembrar de quê?

P: Não sei coisas que podem acontecer no futuro. Que não esteja propriamente agora a ver.

Porque uma pessoa sabe que há pessoas em que houve. Uma pessoa da parte da família da

minha mãe há muitos anos, falava-se, não sei porque eu sai de minha casa em São Pedro do

Sul com 13 anos (...) E conclusão, uma pessoa fica muito separada da família e começa a

viver uma vida totalmente diferente. E é assim, agora vamos a ver, se tinha alguma coisa ou

que uma pessoa realmente teve a doença e estamos sempre na mesma...

E: Pois, pode haver uma história de vida diferente... E em relação ao vosso casal estava-

me a dizer que aquela altura vos uniu. E dessa altura até hoje acha que houve momentos

de crise vossa ou por cansaço ou porque as decisões eram muitas ou por outra coisa

qualquer? Ou acha que não? Há muitos casais que se divorciam, acha isso possível, acha

isso expectável?

P: Depende da situação das pessoas.

E: Vocês tiveram momentos em que as coisas não correram tão bem?

P: Não. Nessas alturas de doença e depois...não. Não.

E: E depois disso?

P: Não. Depois disso, é assim...haver altos e baixos...portanto a pessoa está mais chateada, ou

porque as coisas não correm tao bem, mas isso é dessas coisas que acho que é em qualquer

casal pode acontecer.

E: Mas acha que a doença nunca foi um peso para isso?

P: Não. A doença não.

E: Temos as vezes pais que nos dizem “estávamos tao exaustos, estávamos tão cansados,

havia tanto conflito que isto perturbou a nossa vida como casal.”

P: Não. Nunca houve conflitos. O que havia era, em determinada altura, havia basicamente

um tabu em se falar sobre isso em casa.

E: Deixou de se falar... Lembra-se em que altura foi?

P: Não, não. Pouco depois do tratamento...

E: Acabou parou, ninguém fala sobre isto... Mas perdura até agora?

P: Não, não.

E: Foi só ali uma fase...?

P: Uma fase, pode-se dizer que passado um ano, dois anos...não sei. Sei que houve essa fase

que nós as vezes, basicamente era proibido falar nisso. Ninguém falava disso.

E: Acha que isso ajudou?

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P: Não sei se ajudou, sinceramente não sei. Há uma coisa que eu as vezes penso – é que se

tivesse havido uma ajuda exterior para, não sei, psicológico ou outra coisa para ajudar, aí

talvez houvesse uma diferença mas não, não havia nada. Hoje não sei se há, possivelmente há

mais qualquer coisa do que havia. A única coisa que é assim, apesar de eu não estar, porque

eu fazia uma viagem numa semana, saia há segunda e chegava no sábado. Portanto o que lhe

digo é que era uma semana, para mim era sempre difícil, porque saía daqui a pensar no

assunto, quando chego venho na mesma e é assim. As vezes com colegas meus, quando nos

juntava-mos, uma pessoa as vezes falava e aí aquilo que eu via era que às vezes quando

falávamos parece que uma pessoa ficava mais aliviada. Depois chegava a casa ou ao hospital,

porque depois quando eu estava ia sempre, se houvesse uma consulta, ou algo, eu ia como

ainda hoje vou é igual. Mas mesmo assim nessa altura estava mais tempo do que agora porque

agora eu não consigo fazer uma viagem numa semana. (...)

E: E isso de estar com a família era um facilitador da adaptação? Ou seja, adaptava-se

melhor?

P: Sim. Um pessoa sente-se com a família melhor, ainda para mais porque basicamente é as

únicas pessoas com quem nós lidamos e com quem estamos.

E: Já nessa altura e depois até hoje?

P: E depois, inclusive que depois a minha filha também teve o problema.

E: O mesmo problema...Mais recentemente...

P: Acaba por ser muito idêntico, mas é muito idêntico. Nós pensámos outra vez “o que é que

vai acontecer?” porque no caso dela não foi uma coisa que, não sei se a minha mulher contou,

portanto não foi uma coisa... É assim, apareceu isto, é isto, não. No caso dela era uma coisa

muito simples. E de uma coisa simples gerou isso tudo, e aí parece que volta tudo ao mesmo,

ou seja, começamo-nos a lembrar de tudo outra vez “o que é que será agora?”. Ainda para

mais depois no caso dela, uma prima (que foi quem criou a minha mulher) também tinha tido

um cancro de mama e ao fim quase de 5anos teve uma recaída e já não teve hipóteses. Foi há

pouco tempo. Foi há, salvo erro, portanto ela faleceu há 3anos.

E: Mas também a sua filha foi...

P: Sim, a minha filha, o médico disse que à terceira tentativa, porque fizeram duas não dava, à

terceira teve que ser tirado o peito. E ele disse depois que tinha sido retirado, que a margem

de segurança estava tudo em condições. Ela depois quis tirar o outro mas isso são outras

questões.

E: Há ainda uma marca grande em relação ao cancro do seu filho?

P: Sim, exatamente.

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E: Estava a dizer que teve consequências para ele. Acha que dentro dessas

consequências também está a forma como vocês o trataram? Quando ele foi

diagnosticado, e a partir daí, acha que a maneira de vocês serem pais foi alterada pela

doença? Acha que ele foi apaparicado, superprotegido?

P: Em parte isso foi. Aliás eu quando dizia à minha mulher que ela tratava melhor dele do que

se fosse filho. Claro que não tinha obviamente a ver com isso, mas tem mais a ver com a

própria doença. Portanto há uma pessoa doente, há sempre uma maneira diferente de tratar. E

no caso dela estava ali todas as horas com ele, ainda mais, sentia-se na obrigação de o

apaparicar. No qual, é logico, nós ainda hoje vimos que as vezes que aquilo que ele não teve,

e até mesmo a Dr.ª dizia e outras pessoas é que ele, portanto, as coisas que ele não fez em

criança, que outros miúdos fizeram e tiveram e ele não teve porque ele, em criança, era

adulto. Basicamente ele com o tratamento era uma pessoa adulta e agora na adolescência,

possivelmente

E: Está a viver as coisas todas...

P: Retrocedeu e está a viver certas coisas que deveria ter vivido e não viveu...

E: Naquela altura... Houve então, vocês começaram a ser mais tolerantes para ele nessa

altura?

P: Sim, muito, muito.

E: Ou seja, fazia aquilo que queria...?

P: Sim, basicamente sim.

E: Era-lhe dado...?

P: Mas é assim, ele fazia o que queria mas ele também não era exigente. Não era cosias, nós

tentámos dar sempre coisas, é logico. Mas ele não era daqueles que pedia isto ou pedia aquilo.

Não.

E: Acha que essa maneira de vocês o tratarem, permanece? Ficou só uns resquícios?

Permanece só na sua mulher? Ou permanece em todos?

P: Continua. Começou e continua. Eu penso que há coisas que são, não digo inadmissíveis,

mas a maneira como às vezes se trata ou se diz as coisas, ele pode fazer tudo aquilo que quer.

Não há basicamente uma regra, se fosse uma pessoa que não tivesse passado por aquilo havia

se calhar uma regra.

E: Mas só com a sua mulher...?

P: Não, somos todos. Eu digo não sei quê, mas depois eu chego, eu reclamo com ela e digo

“isto e aquilo” mas depois acabo por me ver a fazer a mesma coisa.

E: Já vem de há muito tempo...

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P: Exatamente.

E: Está muito enraizado?

P: Está. Eu as vezes costumo compara-lo à minha filha, “mas olha lá, a S. nunca foi nada

assim, não é preciso. É assim. Pronto.”. Ele não. Eu se lhe disser que isto é dali ele diz que

não e é a dele que tem que ir avante.

E: Ele consegue manipular muito melhor.

P: Ele consegue manipular.

E: Nota então que houve uma diferença na educação dele e na educação da sua filha?

P: A educação não.

E: A educação foi a mesma não é...mas a maneira...

P: A intolerância a certas coisas sim... Sim. Houve nessa parte sim.

E: E que outras consequências é que houve? Para si, para a sua mulher? Que

consequências é que teve a doença? Profissionais, pessoais, tudo...

P: Profissionais talvez não tenha havido. Porque como disse, o trabalho que fazia ainda é o

mesmo que faço. (...)

E: E pessoais?

P: Pessoais não sei. Houve alterações logo de início inclusive houve logo uma na altura que

ele ficou doente porque nós não eramos para estar em Lisboa. Nós eramos para ir para Aveiro.

E precisamente quando ele adoeceu...

E: Mudou tudo...

P: Exato. Cancelámos tudo.

E: Os vossos projetos de vida foram cancelados, foram alterados...

P: Foi porque era para ir viver para Aveiro e para restruturar uma casa em São Pedro do Sul.

Portanto nada disso foi feito.

E: Pois, modificaram-se todas... Também me está a dizer que alterou um bocadinho a

maneira de ser. E alterou-vos como casal, acha que a maneira como vive hoje foi

modificada?

P: Não, eu acho que não. Isso é a mesma coisa.

E: E em termos da relação e da interação que tem com a sua filha , alterou alguma

coisa? Acha que ela foi também prejudicada de alguma maneira?

P: Não. Prejudicada não foi.

E: E de ela para ela? Teve que ser uma miúda mais velha do que aquilo que se teria a

espera de uma miúda de 16 anos...

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P: É assim, ela, eu como vejo as coisas, ela foi uma mãe, juntamente com a minha mulher, ou

seja duas mães. Eu digo que ela foi a minha parte porque ela foi, e ainda há pouco tempo

falámos nisso com o D. e disse “se não fosse a mana tu pelo menos em nossa casa não

estavas” porque na altura ela queria um irmão e entretanto quando soubemos de uma pessoa

que queria dar a criança, a minha mulher falou com ela (...) e à conta disso andamos seis anos

com uma declaração dela, tudo tratado em tribunal, para passar o nome dele, tudo por causa

do suposto pai. (...) Ainda tivemos que ir a Coimbra fazer testes de ADN (...) isto eram coisas

que se tratavam juntamente com a doença dele (...)

E: Tiveram este problema em conjunto...

P: (...)

E: E o que é que diria a pais de crianças que souberam agora que os filhos dele tinham

cancro?

P: Já encontramos várias pessoas e mesmo nesta altura, as vezes íamos ao hospital de dia para

tratamentos e havia sempre, e há sempre infelizmente muitos pais nessas situações, e é sempre

a aconselhá-los para terem esperança.

E: Esperança. Acha que é para si o mais importante?

P: Sim. Acho que sim porque se não houver esperança então não sei.

E: Foi isso que o ajudou a adaptar-se à doença?

P: Sim, isso ajudou-me muito. A esperança de, como a pouco estava a dizer, ter ido de viagem

e ter ido a pensar sempre no mesmo para lá e para cá...

E: Quando diz pensar sempre no mesmo é “isto pode acontecer isto e pode acontecer

aquilo”, ou também pensava “de que maneira é que eu o posso melhorar”?

P: Exatamente. A esperança é sempre a ultima a morrer portanto...

E: E a tentar ter pensamentos positivos?

P: E uma vez que os médicos nos dizem que há muitas possibilidades e cada vez mais, de

tratamento e de as pessoas conseguirem fazer os tratamentos hoje em dia, claro que a pessoa

tem que ter é esperança nisso porque senão não vale a pena.

E: Só mais uma pergunta que na altura esqueci-me, vocês na altura ficaram muito

centrados no D., acha que a sua filha foi um bocadinho negligenciada nesse período? Já

vimos que lhe foi dado um papel muito materno, acha que se esqueceram um bocadinho

dela?

P: Não.

E: Isso não. Mas continuou a ser na mesma acompanhada...

P: Sempre. Nunca, de forma alguma, foi menos atenção para ela. Não.

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E: Teve foi um papel mais importante...

P: pode haver uma diferença precisamente com disse, ela se fosse preciso ficar com ele por

um motivo qualquer ela ficava.

E: Acha que o seu filho teve a pior doença do mundo?

P: Não. Há muito piores. Basta só uma criança ate pode ter uma doença igual mas se não

sobreviver acho que é muito pior. Logo a partida. Ou porque o corpo dele não conseguia

vencer essa doença ou porque inclusive os tratamentos na altura... Eu lembro-me que na altura

estava uma criança da idade dele que tinha vindo de cabo verde, tinha feito um tratamento e

(...) quando começa com um protocolo inglês ou americano tem que o levar até ao fim e havia

crianças que começavam com um protocolo e não se davam bem e tinha que voltar tudo ao

início. Claro que isso é muito mais difícil. E as probabilidades são muito inferiores porque eu

lembro-me na altura de nós questionarmos se era preciso alguma coisa, sair daqui para algum

lado e ela disse que não, que o que se faz noutro lado, faz-se aqui. Esse não era o problema.

Como digo, qualquer doença pode ser pior. Numa doença que a pessoa se consegue curar

acho que não é a pior. A pior delas até pode ser muito simples. (...)

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CASAL 05 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – M.

E2: Em primeiro lugar muito obrigada pela sua participação e colaboração neste estudo. E

portanto eu começaria por perguntar… Pedia então que regressasse à fase de diagnóstico da

M.

Mãe 5: Hum hum

E2: E que na medida do possível se recordasse daquele momento e da fase inicial da doença

em que a M. foi diagnosticada. O que é que lhe vem à cabeça? Lembra-se do sítio, lembra-se

das primeiras sensações, das imagens?

Mãe 5: Lembro. Aliás, está escrito porque eu senti necessidade de escrever tudo o que

aconteceu até ao primeiro dia do internamento. Tenho o início de um livro onde descrevi

tudo, tudo, todas as sensações desde que eu sai de casa nesse dia, não sei porquê mas ficaram

marcadas, a viagem de comboio, o dia que estava, lembro-me de tudo ao pormenor. Eu estava

por acaso, estava no trabalho, eu no dia anterior tinha ido fazer as análises com a M. porque

ao fim de 1 mês e meio de ela estar sistematicamente com febre, com vários diagnósticos,

resolvi ir à médica, mesmo à pediatra e a pediatra fez palpação, disse: “A M. está com o braço

inchado, deve ter aqui uma infeção qualquer, vamos fazer análises”. Fez análises nesse dia e

eu fui-me deitar normalmente à noite, eram para ai umas 4 da manhã, levantei-me, uma coisa

que não acontece, eu durmo muito bem, e nem sou destas coisas, levantei-me, fui ao

computador e escrevi: “braço inchado”. O primeiro site, o primeiro link logo que me apareceu

– sinal de leucemia. Desliguei o computador e fui-me deitar. Outro dia de manhã, estava a

trabalhar quando a médica da M. me telefona a perguntar pela M., onde é que estava a M., eu

disse: “A M. está na escola”. Eu estava à espera que ela me ligasse para me dizer o resultado

das análises e ela: “Ah é que eu tenho aqui umas análises, gostava de repetir”, eu disse: “Mas

gostava de repetir porquê? Ficaram mal?”, “Não, é aqui uns valorzinhos que eu queria ver”. E

eu: “valorzinhos, que valorzinhos?”, “Depois a gente vê, vá buscar a M., traga-me cá a M. e

vamos fazer outras análises”, “Dr.ª diga-me lá que valores é que são?” Tinha algum

conhecimento na área porque sou tripulante de ambulância, perguntei-lhe e ela então disse-me

quais eram os valores que estavam alterados, muito contragosto porque ela não me queria

dizer. E eu perguntei-lhe: “A M. tem leucemia?” – foi logo assim. Fez-se um silêncio do lado

de lá, portanto…

E2: Portanto antes de receber qualquer informação médica…

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Mãe 5: Fui eu… Depois desliguei o telefone, comecei logo a chorar, pronto o mundo perdeu

os contornos…

E2: Foi por telefone…

Mãe 5: Foi por telefone. Não foi aqui do IPO sequer.

E2: Portanto este primeiro foi a médica, a pediatra da M. que…

Mãe 5: Que não me queria dizer mas que foi confrontada por mim. Ela disse-me que não

sabia ainda bem exatamente o que era, qual era o tipo, tinha que vir para o IPO que ia fazer

umas análises específicas para saber.

E2: Foi há quanto tempo?

Mãe 5: Foi em 2010, foi no dia 31. Entretanto…

E2: Quando ouviu falar em IPO?

Mãe 5: Sim… Não porque eu sei que é o sítio onde se trata, o melhor sítio onde se trata o

cancro, sempre tinha essa noção. O choque foi quando eu entrei no IPO

E2: O choque

Mãe 5: O choque. A sensação que eu tive a passar ali o portão, nós viemos de ambulância, foi

que estava a entrar num cemitério, foi a mesma sensação, tinha passado os portões, a M. teve

2 dias noutro hospital a estabilizar, era feriado, era o 1º de Dezembro.

E2: Qual foi o hospital em que a M. esteve?

Mãe 5: Esteve no Hospital da Luz. E quando entramos de ambulância, eu vi de ambulância

com ela, foi essa sensação que eu tive

E2: Mas explique-me porque é importante, portanto teve a sensação que entrou num

cemitério porquê? Associou de alguma forma…?

Mãe 5: Eu para mim saber que a M. tinha cancro, tinha leucemia, era sinónimo de morte, que

ai morrer

E2: Achou que a sua filha ia morrer?

Mãe 5: Sim. Foi a sensação que tive, direto. Não consegui sequer dar a notícia ao V.. Não

consegui, só pessoalmente, sai, fui ter com ele ao trabalho, e disse-lhe pessoalmente. Depois

não consegui dizer a ninguém praticamente durante umas horas. Uma sensação esquisita, nem

sei… de vergonha, de medo, não sei explicar até hoje porque eu sou muito íntima com a

minha mãe, com a minha irmã, temos uma relação chegada, não consegui dizer.

E2: Sentiu vergonha, sentiu medo…

Mãe 5: Uma coisa esquisita

E2: Quer-me tentar explicar porquê? Porque é bastante importante, é muito relevante estar-me

a dizer isso. Como é que essa vergonha, como é que…

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Mãe 5: Não sei, não consigo interpretar isso, mas é aquela sem… não sei… Se tivesse

falhado sabia que ia magoar alguém do lado de lá como se a culpa fosse minha da situação,

acho que teve muito associado com a culpa

E2: Com a culpa de ser a mãe da M. e a M. ter sido diagnosticada com uma leucemia… Foi

uma leucemia de que tipo?

Mãe 5: Linfoblástica aguda de tipo B, ou seja, de todas, a com maior probabilidade de

sucesso, mas pronto, naquele momento a gente não sabia nada disso, a leucemia na minha

mente é, leucemia é podia morrer em meia dúzia de dias, não…

E2: Lembra-se do que é que fez para agir? Ou seja, porque houve ali um sentimento de culpa,

um sentimento de que pensou que a M. iria morrer, houve aquela associação não é? Como é

que fez para agir? Como é que fez para… Portanto, havia aquele problema, como é que fez

para avançar, para … Como é que…

Mãe 5: Não fiz naqueles primeiros momentos não fiz. É como lhe digo, o mundo perdeu

todos os contornos, esqueci-me de tudo, das pessoas, dos compromissos que tinha, do

trabalho de investigação que estava, que eu sou inspetora bancária, tinha um trabalho, uma

mega fraude em mãos, tudo desapareceu e aquelas primeiras horas, aqueles primeiros dois

dias

E2: Ficou marcado

Mãe 5: Ficou. Eu estava grávida já na altura, praticamente de 3 meses e até acho que me

esqueci que estava grávida, só chorei, chorei, chorei

E2: Foi uma tristeza

Mãe 5: Foi, nem a medicação deu, o obstetra passou-me valium para eu conseguir dormir e

mesmo assim não dormia. Depois a M. é ali uma criança, a M. é a M., quem a conhece aqui

sabe como é que ela é. A M. apercebeu-se logo, tinha 3 anos mas apercebeu-se logo.

Perguntou-me no 2º dia se ia morrer. Ela, não sei… Teve um 6º sentido, não sei

E2: Uma criança com 3 anos

Mãe 5: Sim. Ela na escola, no colégio, todos os dias a gente a vai buscar, ela está, estava

desejante de se vir embora – “Até amanha” – e vinha a correr… Naquele dia que eu a fui

buscar, estávamos a sair disse: “Espera mãe”, voltou para trás, foi dar um beijinho a todos a

despedir-se. Não me pergunte porquê. E então… Tudo isso, a sensação de morte foi… Depois

quando entramos aqui…

E2: Lembra-se do que é que fez quando entrou aqui?

Mãe 5: Eu estava apática, fomos ao Hospital de Dia, já cá estava uma amiga minha, não era

muito chegada, hoje é, na altura não era, que o filho dela já aqui tinha estado, eu nem sequer

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conhecia a história toda, mas ela quando soube, por amigos em comum ou por familiares, saiu

do trabalho, pediu à patroa dela e veio para aqui à minha espera, portanto ela chegou aqui

primeiro do que eu. Não sei como, ela sabia que eu vinha para aqui e foi ela que me fez a

receção, o filho dela tinha leucemia quando tinha 2 anos e ela é que em fez a receção. Eu

estava mesmo perdida. Acho que tínhamos que preparar a M. para fazer…

E2: A pulsão

Mãe 5: A pulsão lombar e outro exame e foi ela que agarrou na M. e que a foi lavar, e que a

foi despir, que lhe vestiu a bata…

E2: Sentiu-se sem forças?

Mãe 5: Completamente

E2: Hum hum. Sente que ter essa senhora que agora é sua amiga, não é?! Sente que de

alguma forma a ajudou e que foi protetor para si?

Mãe 5: Foi, foi logo uma…

E2: Facilitou?

Mãe 5: Pelo menos foi o primeiro caso positivo não é? Foi o… Ela já passou por isto, ela já

sabe como é que é. Portanto, ela explicou o que é que ia acontecer. Os médicos aqui, nos

primeiros dias dão as notícias devagarinho, como os xaropes…

E2: Mas sentiu falta de informação médica?

Mãe 5: Senti logo porque eu queria saber tudo. Mas eu acho que isso é normal, queria saber

tudo tudo logo na hora. Depois pronto, esses 2 primeiros dias lá no outro hospital foi assim,

no primeiro dia aqui no IPO começou a minha busca de informação, logo.

E2: Aliás que já tinha começado mesmo antes do diagnóstico não é?

Mãe 5: Sim, mas eu não queria acreditar que aquilo fosse… Sou franca, pensei logo não sou

como aquelas pessoas que lêem o DSM-IV, quando lêem aquilo identificam-se com as

situações todas e acham que são malucas, não é a mesma coisa. Desliguei o computador e fui-

me deitar, portanto eu não li mais nada sobre aquilo.

E2: Hum hum. Pronto houve um evitamento não é? De não querer…

Mãe 5: Houve, houve, calma, não pode ser, não pode ser.

E2: Mas realmente após o diagnóstico, imediatamente a entrar no IPO foi ali uma procura de

informação

Mãe 5: Foi

E2: E sentiu que essa informação foi-lhe dada?

Mãe 5: Logo não. Aliás eu hoje entendo porque, eles próprios não sabiam, não é?! Nesses

primeiros dias entraram uma série de crianças. A M. e o Guilherme foram dos poucos

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sobreviventes desse grupo que entrou nessa altura e todos os diagnósticos deles, que entraram

naquela fase, foram todos diferentes. Eu entendo isso, não podem dar informação ou então

também querem-nos proteger em não dizer tudo de uma vez. Alguns pais até preferiam isso,

haviam pais, houve pais que não queriam saber

E2: Que lidam de outra forma não é?

Mãe 5: Não queriam saber nada. Não liam, tinham medo até de falar às vezes comigo porque

eu sabia.

E2: Isso tranquilizava-a? Ter essa informação?

Mãe 5: Não sei, talvez.

E2: Acha que diminuía a sua ansiedade ou que aumentava?

Mãe 5: Talvez diminuía a ansiedade do desconhecido mas aumentava-me o medo da morte

porque alguns meses mais tarde quando a pequenina nasceu, teve uma hemorragia cerebral

quando nasceu, foi repetir o filme

E2: Está a falar da segunda filha?

Mãe 5: Da segunda que eu estava grávida.

E2: Hum hum

Mãe 5: Tinha aqui uma e outra internada à morte, sem saber se sobrevivia se não. Isso agora

não é relevante, é por causa de uma coisa que…

E2: Sim, sim

Mãe 5: O neurocirurgião disse, nessa busca de informação, tiramos o mestrado em

neurocirurgia na altura. Tínhamos tirado aqui de oncologia e começamos logo a estudar tudo

o que era e era a percentagem. Nós temos alguns manuais em casa, de medicina, etc. O

Erisson, porque eu lia aquilo tudo, as estatísticas, os estudos, as percentagens… E o

neurocirurgião desaconselhou-nos vivamente a que o fizéssemos e disse-me uma coisa que eu

agora vejo que é verdade – “não adianta”

E2: Não adianta agarrar-se aos números

Mãe 5: A uma percentagem porque para nós pais, é sempre 100%, é sempre 100%, ou 100%

mau, ou 100% bom, não olho para os números

E2: E a sua esperança era de que percentagem?

Mãe 5: (risos) Quando entrei era 0 como lhe disse

E2: hum hum

Mãe 5: Não sei quando é que comecei a acreditar que ia correr bem, tive muito tempo… eu

quando estava a lutar de cabeça aconteceu a mesma coisa à outra filha, a mesma coisa salvo

seja

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E2: Ainda estava (?13:27)... tratamento?

Mãe 5: Estava, estava, a C. nasceu em Maio, a M. estava aqui desde o fim do ano e portanto

foi aqui as pessoas todas contentes (?13:40) o médico da M., os enfermeiros…

E2: Foi a mãe que ficou com a M. aqui internada a partir daquele dia? Ou não ficou logo

internada?

Mãe 5: Ficou logo internada e ficamos os dois.

E2: Os dois sempre?

Mãe 5: Sempre os dois

E2: Conseguiram ficar os dois?

Mãe 5: Dia e noite. Dia e noite não. Dia! À noite íamos revezando, uma noite ficava eu outras

noites o V.

E2: Quando a pequenina nasceu depois…

Mãe 5: Já a M. não estava internada. A M. esteve internada praticamente 2 meses, depois a

pequenina esteve 15 dias internada, foi operada ao cérebro, etc., etc. Ahh… Portanto esses 15

dias foi a primeira vez desde o início, das poucas que eu não vim com a M. ao IPO, foi só

porque a outra estava internada, porque assim que ele teve alta, passamos a vir os 3. Tivemos

2 anos de IPO sempre os 3, os 4…

E2: E o que é que sentiu nesse tempo por não estar aqui com a M.? Ou que não pode

acompanhar a M. ao IPO?

Mãe 5: Foi muito mau

E2: Foi angustiante?

Mãe 5: Foi muito muito muito muito muito muito.

E2: Ou seja, sentir que estava e que acompanhava a M. era de alguma forma protetor para si?

Mãe 5: Era.

E2: O estar presente…

Mãe 5: Sempre

E2: O poder acompanhar…

Mãe 5: Apesar do sofrimento que era mas sempre… Foi, era muito, a gente sofre muito

quando está com eles porque quando eles, quando há procedimentos dolorosos a M. chamava

era por mim, portanto, a impotência de fazer fosse o que fosse, horrível (emociona-se)

E2: E o próprio curso da doença? Portanto os tratamentos que foram fazendo

Mãe 5: Sim

E2: Foram dando resultados positivos?

Mãe 5: Sempre

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E2: E sente que ajudou? Que foi algo que a ajudou?

Mãe 5: Foi ver a M. a ter passado

E2: Não foi ai que a esperança foi aumentando?

Mãe 5: Foi. Creio que sim, que tenha a ver com isso. Vou estabelecendo alguns timings

porque o tratamento passa por algumas, por algumas fases. Pronto, fomos estabelecendo

aquelas metas. No fim do período de asparaginase que é, nos começamos logo uma contagem

decrescente

E2: Portanto ao início se calhar via a meta muito ao fundo, não sabia se conseguia chegar à

meta, mas à medida que foi evoluindo, foi fazendo os tratamentos e via que os tratamentos

davam positivo, sentia-se mais perto da meta e de alguma forma a esperança também

aumentava cada vez que…

Mãe 5: Sim, sim. Posso dizer isso. Mas sempre com muito medo porque nós vivemos, nós

não vemos só a história dos nossos, vemos as histórias dos outros todos. E ao longo do

processo houve recidivas de outras crianças, mortes, nunca tinha ido ao funeral de uma

criança e já fui a não sei quantos.

E2: E isso foi algo que dificultou a sua vivência?

Mãe 5: Não dificultou, é aquelas… Agente dá um passo à frente e depois dávamos 2 atrás –

não tenhas tanta esperança porque pode acontecer.

E2: E lembra-se que necessidades é que sentiu na altura? Já vimos que por exemplo sentiu a

necessidade de ter informação logo ao início

Mãe 5: Logo, logo

E2: Foi depois dada

Mãe 5: Foi dada aos poucos

E2: Aos pouquinhos foi-lhe dada. Sente que teve necessidades? Por exemplo, necessidade de

falar com outros pais, necessidade de ser medicada por exemplo

Mãe 5: Nessa altura não, aliás, a psicóloga, ela sabe que eu nunca quis. Recomendavam-me

outros pais que tinham consulta de psicologia, eu nunca quis porque eu nunca, não fazia

sentido, eu falar falo muito, eu sempre falei e desabafava… conversava muito com o V.,

conversava com toda a gente, amigos, tínhamos sempre o hospital cheio durante estes dois

meses de internamento

E2: Tinham amigos que vinham?

Mãe 5: Sim, sim, sempre. Era um castigo, ralharam connosco tantas vezes. (risos) Ela estava

em isolamento e não entravam no quarto, ficavam cá fora, à janela, só que haviam outras

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crianças, outros pais… Era um desatino, desatino, era a tarde toda… E pronto, tinha sempre

que falar…

E2: Não sente, não sentia que queria apoio psicológico… Não precisava na altura…

Mãe 5: Não, não, não, não. Isso só veio a acontecer mais tarde e não foi propriamente apoio

psicológico, foi medicação mesmo e depois… Eu tive uma depressão reativa

E2: Ainda na fase de tratamento?

Mãe 5: Ainda, já no 2º ano. Já no 2º ano. Foi um ano inteiro, não trabalhei o ano todo, o V.

depois da fase de internamento foi trabalhar, durante internamento nenhum de nós trabalhou,

tivemos sempre juntos. Depois ele foi trabalhar e às quartas e quintas vínhamos ao tratamento.

Portanto trabalhava segundas, terças e sextas. E eu ficava em casa, fiquei em casa durante o

ano inteiro. Durante 2 anos não trabalhei praticamente. Um ano inteiro seguido e durante dois

anos, o segundo ano quartas e quintas nós vínhamos... E aquele 1º ano estive fechada em casa

com a M., com a C., a conviver com a doença, com aqueles medos. Sou uma pessoa muito

ativa, tinha muitas atividades, para além do meu trabalho era bombeira, bombeira voluntária,

andava na formação. Tudo isso me foi cortado.

E2: Mas sentiu necessidade de ter sido cortado?

Mãe 5: Não, não.

E2: Foi imposto?

Mãe 5: Tinha que ser. Porque na altura não pensava isso. Mas comecei a ficar revoltada por

estar fechada em casa. Chegou a um ponto que eu deitava-me nem sequer despia o pijama,

não me apetecia tomar banho, não me apetecia fazer nada…

E2: Teve uma depressão?

Mãe 5: Tive, tive. Mas eu identifiquei os sinais e um dia, tinha vontade de gritar, só ralhava,

depois tinha peso na consciência por ter gritado à M., muito peso na consciência. E depois

cheguei a essa conclusão e disse ao V.: “Tenho de ir ao médico que eu não estou bem”,

“Agora vais tomar drogas?” Oh V., eu não estou bem. E foi, fui ao psiquiatra e pronto, tive

uma depressão reativa, acho que todos nós passamos por isso, fiz o tratamento, o desmame,

tive 1 ano praticamente. E dei um passo em frente. Mas senti necessidade na altura de ajuda.

E2: De ajuda

Mãe 5: Não de falar

E2: Claro. Ajuda psicológica nunca teve

Mãe 5: Não

E2: E hoje também não sente que precisava de ter, na altura, olhando para trás?

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Mãe 5: Não… não entendo, não vejo em que é que possam ajudar porque sei exatamente o

que aconteceu, porque é que aconteceu, aqueles sentimentos e aquelas perguntas que todos

nós fazemos que é - “porque é que isto me acontece?”, “porque é que isto aconteceu à minha

filha?” Eu olho para trás, mas que raio de pergunta, aconteceu à M. como acontece a tanta

gente, não foi… Depois aconteceu-me à outra criança, parecia um castigo, houve momentos

que pensei: “estou a ser castigada por alguma coisa, mas o que é que eu fiz de mal?”. Hoje

racionalizo as coisas, uma tontice, mas acho que todos nós, “porquê eu?” - é a pergunta mais

egoísta que se pode fazer. Então tu não e os outros sim? Quer dizer, acontece, é uma doença, é

físico. Pronto, estes mecanismos mentais fui desenvolvendo sozinha, não senti vontade de vir

falar de coisas que eu já falo habitualmente.

E2: Claro. E que outras necessidades é que teve? Falamos há pouco da procura de

informação, falamos também agora desta. Que outras necessidades é que sente? Qualquer

coisa, falar com outros pais…, necessidade de tempo, por exemplo… Sente que teve outras

necessidades?

Mãe 5: Necessidade de tempo, como assim?

E2: Sente por exemplo que o tempo era demasiado, era tudo muito atribulado, não conseguia

ter tempo para gerir tudo, por ser tudo ao mesmo tempo, não sentiu nada disso?

Mãe 5: Não. A necessidade de falar com outros pais sim. Eu sabia e soube as histórias de

todas as situações das crianças com as quais privei na altura. O que é que eles tinham visto,

que eu não vi que podia ter visto; ou o facto de eles não terem visto e eu não ter visto

desculpava-me o facto de não ter ainda detetado, porque afinal de contas os outros pais

também não viram. Tudo isso, toda essa informação…

E2: Mas em termos do tratamento, em termos médicos?

Mãe 5: Do diagnóstico, do que é que levou, o que é que aconteceu antes, as histórias todas, o

que é que se passava, o que é que a criança teve, quais eram os sintomas. Eu sei deles todos, o

que é que…

E2: Houve ali uma comparação…

Mãe 5: Sim, sempre sempre. E depois à medida que fui conhecendo outros pais, depois

conhecemos n crianças não é? E pais em vários estádios de tratamento

E2: Claro

Mãe 5: E portanto olhar para aqueles que estavam mais à frente era uma referência, depois

alguns iam acabando e…

E2: E era uma força olhar para eles?

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Mãe 5: Era, era, era, era, era, foi. Foi, foi sem sombra de dúvida. E, e fazia isso em relação a

outros pais que entraram bem depois e acompanhei até ao fim, depois dei-lhes os parabéns,

como viram estes 2 anos passaram a correr…

E2: Ao início uns pais eram a sua referência e depois foi a referência para os pais que

entraram depois?

Mãe 5: Sem sombra de dúvida

E2: E estava-me a dizer à bocado, o seu marido ficou consigo desde o início?

Mãe 5: Sempre

E2: Isso foi bastante protetor?

Mãe 5: Foi muito bom.

E2: Uniram-se como casal?

Mãe 5: Sim, ao contrário daquilo que aconteceu com a maior parte das pessoas com as quais

privávamos, sim. Estávamos sempre os dois, sempre, sempre, sempre, sempre.

E2: Hum hum.

Mãe 5: O V. é um, uma pessoa… muito sensível, apesar de ser comandante dos bombeiros e

muito tropa, mas no que diz respeito a sentimentos, naquela altura, tinha que chorar chorava,

não é?! Se era preciso apressar e chorar, chorava. Isso foi bom porque pronto, ele entendia,

era a única pessoa que entendia a minha dor e eu era a única que entendia a dele. E pronto,

com outros pais tenho a noção que não, que eu assisti à separação, pelo menos de um casal, e

percebi isso – eles estavam em estádios diferentes de reconhecimento, ela já percebia, o

menino morreu, ela, ela já tinha percebido que ele ia morrer e o pai não tinha ainda desistido

dele e isso foi fatal para eles. Eles nunca tiveram a mesma, no mesmo patamar e pronto, e

depois separaram-se.

E2: hum hum. E portanto estávamos aqui a falar, houve aqui alguns facilitadores

nomeadamente a relação de casal, nomeadamente também olhar para os pais que estavam

mais à frente e que foram casos de sucesso… O que é que mais, além disto lhe facilitou? O

que é que foi protetor, que ajudou a ultrapassar? O que conduziu a…

Mãe 5: Mais que isto tudo foi a M.

E2: A própria M.

Mãe 5: A M., mais do que isto tudo na realidade foi a M.. Porque a M., a M. lidou muito bem

com a doença, se ela soubesse “tem que ser, tem que ser”. Não teve uma revolta, uma criança

muito mexida, muito agitada, fica internada, isolada, fechada num quarto, num quarto

pequenininho, sentada numa cama… Fazia tudo, cumpria com aqueles protocolos todos, o

lavar os dentes…

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E2: Ela própria ajudava, não era?! Colaborava…

Mãe 5: Sempre. Pronto, teve que regredir um bocadinho, ela já não tinha fralda, depois teve

de por aqui, isso foi um período mais complicado que ela não queria que lhe pusessem a

fralda mas depois fazia chichi na cama porque não aguentava por causa da fase da hidratação,

ficava com, com, com medo que eu ralhasse com ela… Aqueles primeiros dias. Mas depois

percebeu que tinha que ser assim e voltou a usar fralda e sempre bem-disposta, sempre…

Depois a fase do cabelo, quando o cabelo começou a cair nós dissemos que por causa do

tratamento, a fada dos cabelos havia de vir buscar o cabelinho e que depois havia de trazer

uma cabeleira nova. A M. começou logo a sonhar com a fada (risos)

E2: Disse-lhe isso?

Mãe 5: Disse sempre. Foi assim que abordamos o tema. Cortamos-lhe o cabelo pequenino, eu

cortei o meu, tinha o meu cabelo comprido e cortei como ela, depois rapar não rapei, mas

cortei pequenino fizemos as duas um corte igual, apesar de a diferença depois não ser tão

grande. E depois ela começou a dizer que se ia ter um cabelo novo, começou a pedir à fada

que lhe trouxesse o cabelo loiro aos caracóis como as princesas (risos) E pronto fomos nós

que lhe cortamos o cabelo, o V., foi o V. que lhe rapou o cabelo… Domingo de manhã

quando ele começou, numa manhã que ela acordou e o cabelo começou a ficar na almofada,

fomos nós que tratámos disso e… A chorar o tempo todo e ela a perguntar se estava a ver a

fada ao fundo (risos)

E2: Portanto, estava a chorar mas estava consciente de que era necessário cortar o cabelo?

Mãe 5: Claro.

E2: Com 3 anos

Mãe 5: E pronto, e depois os lenços coloridos, aquela coisa. Aqueles primeiros tempos ainda

usou mas depois não queria… Para ela estava bem assim

E2: Portanto a própria M. ajudou porque havia aqui, de certa forma, era uma criança, mas

uma criança que já tinha alguma consciência do que era necessário?

Mãe 5: Muita. Uma maturidade grande. Ela com 3 anos fez escolhas de tratamento. Por

exemplo ela começou a tomar comprimidos com 3 anos, não é habitual. Mas ela tinha que

tomar a cortisona que eram uns comprimidos desfeitos em água e tinha que tomar aquilo

injetado na boca. Aquilo era horrível.

E2: Então aprendeu a tomar?

Mãe 5: E a enfermeira perguntou e ela disse: “Eu quero tomar”, “E tu consegues?”. Começou

portanto. Optou. Foi a primeira opção.

E2: Hum hum

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Mãe 5: Depois ela estava, ela tinha que tomar uma medicação na veia, que era horrível de

tomar, e ela decidiu que não, que tomava, que assumiu que tomava só para não ter, não terem

que lhe espetar e chegou a um compromisso e assumiu um compromisso com a enfermeira e

assim foi. Tiraram-lhe aquilo e começou a tomar aquela medicação. Ela começou a fazer

escolhas. Depois já não estava internada, fez outra opção que foi a tomar, havia uma, uma das

substâncias que ela podia fazer na veia ou com a injeção. A veia implicava estar meia hora ali

e a injeção era na hora, com um pavor terrível de injeções, mas optou pela injeção para ser

rápido, para se despachar…

E2: Portanto era…

Mãe 5: Gritava todo o tempo

E2: Era muito esclarecida em relação às opções, escolhia dentro daquela…

Mãe 5: Escolhia, teve essa liberdade para escolher

E2: Hum hum

Mãe 5: Pronto, foi uma criança, muito, muito, muito madura e por exemplo eu estava grávida,

há uma fase que eles têm que fazer 9 pulsões lombares seguidas, que é mais doloroso naquela

fase inicial, para ver, para ver… Era eu que tinha que ficar sempre de joelhas a agarrar-lhe nas

mãos, ficava a contar “A branca de neve” enquanto ela gritava, e ela gritava e depois

arrependia-se e dizia: “C., C., não te assustes, está tudo bem”. Portanto o bebé dentro da

barriga para ela era um apoio, uma preocupação e portanto às veze não gritava, controlava-se

para não gritar. Foi assim, ela foi… positiva

E2: E a força dela ajudava

Mãe 5: Muito. Era a M.. Só para ver, uma vez, não sei se é pertinente mas, nós estávamos

numa 4ª feira à tarde e vieram 2 enfermeiras falar connosco, pedir autorização para levarem a

M., para a M. falar com um menino. Era um menino que tinha entrado, 12 anos, que tinha

sido diagnosticado naquele dia com leucemia, estavam lá os pais, a mãe e o padrasto, e o

menino aceitou muito mal, portanto não queria que ninguém tocasse, não falava, ficou em

choque porque o pai dele tinha morrido há pouco tempo com cancro, já tem 12 anos, já sabia

o que era e portanto o próprio deve ter todo noção da gravidade, de morte, etc. Portanto, a

equipa de enfermagem, os médicos não conseguiam chegar, depois vieram buscar a M.

E2: E a M. conseguiu?

Mãe 5: Sim, a M. é que lhe explicou o que é que ia acontecer e já tinha 4 aninhos. Explicou-

lhe o que é que ia acontecer… Que ia ser picado, que ia doer, que depois passava, que ai ficar

sem cabelo mas que crescia e depois apontava para os caracóis dela, ela efetivamente nasceu,

ela é morena de cabelo preto e ele nasceu loiro aos caracóis (risos) E portanto aqueles

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primeiros tempos… e explicou-lhe exatamente o que é que ai acontecer. Foi com ele o

internamento lá em cima no 7º foi feito com ela, ela acompanhou lá acima, explicou-lhe o que

é que ia sentir, ia ficar num quarto, ia ficar fechado, não podia ter visitas mas que passava

depressa, viam pela janela, ou seja explicou-lhe tudo

E2: Uma menina muito madura de 3 anos

Mãe 5: Sim

E2: Muitas decisões, inclusive ajudou outros acolhimentos não é?! E falava-me há bocado

também dos amigos não era? Esses amigos… sente que ajudaram na altura ou sente que teve

que gerir muita coisa?

Mãe 5: Ajudaram-me aqueles primeiros dias. Eu não, não atendi os telefones, não conseguia

dar… porque as pessoas todas ligavam para saber, eu tinha que contar…

E2: A mesma história

Mãe 5: E cada vez que contava era voltar ao principio, o momento da notícia e… Pronto, tive

que pedir para não me, para não me ligarem. Isso magoava as pessoas, na altura, mas houve

uma altura que eu não aguentava falar com ninguém, nem… Eu à noite, de madrugada abria

as mensagens, depois à noite punha a escrita em dia, mas houve ali os primeiros dias que eu

não consegui falar

E2: Sentiu necessidade de um afastamento ali nos primeiros tempos, para também se calhar

se compor?

Mãe 5: Sim, sim. Exatamente, para me orientar

E2: Exatamente, uma orientação

Mãe 5: Mas foi bom

E2: Os amigos permaneceram ao longo da…

Mãe 5: Sim. Sim, tenho… costumo dizer que se abriu um admirável mundo novo naquela

altura. Pessoas que eu nem sequer imaginava que… Um dia estávamos lá em cima e uma

senhora lá de cima muito aflita a dizer que estava ali um senhor, assim esquisito, queria vir

ver a M., era o arrumador de carros onde eu costumo deixar o carro na Praça do Comércio.

Que soube, de outras pessoas que deixam o carro, e veio ao IPO para me dar apoio.

Portanto… foi muito bom isso. O apoio das outras pessoas, não é para dizer nada, é só o estar,

dar um abraço.

E2: É uma apoio, não é?!

Mãe 5: Foi

E2: E em relação por exemplo à disponibilidade dos profissionais? Sente que estiveram, que

foram…

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Mãe 5: Sempre, sempre. Para mim o IPO não se equipara. Nós estarmos, nós sentíamo-nos

em segurança aqui. E o sair daqui, aliás ainda bem que os tratamentos tinham que ser todas as

semanas porque a partir do momento em que nós saíamos, até à vez seguinte, a nossa

ansiedade ia aumentando…

E2: Hum hum

Mãe 5: A M. teve algumas complicações do foro cardíaco e respiratório e nós estávamos em

pânico fora daqui. A primeira vez que fomos de férias, foi no 2º ano, lá para baixo para o

Algarve, viemos cá acima, o tratamento podia ter feito no Hospital de Faro

E2: Preferiram vir cá?

Mãe 5: Não, tivemos e viemos e tivemos ai a tarde toda no jardim. Era, sentíamo-nos em

casa, sentíamo-nos bem, sentíamo-nos bem aqui. Não tem nada a ver com a 1ª vez que aqui

entrou

E2: Houve aqui várias coisas que ajudaram, não é?!

Mãe 5: Sim

E2: Se formos a ver, além dos amigos, da relação de casal da própria M., a escrita que

também falava…

Mãe 5: Isso foi depois

E2: Foi depois. Mas foram tudo coisas que ajudaram, não é?!

Mãe 5: Sim.

E2: E a própria família também ajudou… E agora falar um bocadinho daquilo que dificultou.

Houve coisas que dificultaram? O quê? Quem?

Mãe 5: Ah… A situação financeira, as minhas próprias revoltas, porque as tive.

E2: O afastamento do trabalho?

Mãe 5: O afastamento da minha rotina, o perder a minha função como elemento ativo (risos)

E2: Hum hum

Mãe 5: Não poder ser… Para mim a M. ter leucemia, mesmo que ela se curasse, era uma

coisa que ia durar para sempre, nunca mais vai ser a mesma coisa, nunca mais vamos ter uma

vida igual, nunca mais eu me vou rir com vontade, era o nunca mais… mesmo que a cura,

portanto… Eu fui a principal inimiga de mim própria, as minhas dúvidas, as minhas, essas

revoltas, depois sentia-me egoísta por estar a pensar isso… Quer dizer, a minha filha é que

estava a pensar por uma doença daquelas e eu a pensar em mim própria.

E2: Hum hum. Houve modificações familiares, além pronto de… das vossas rotinas na altura

se modificarem durante um período, houve outras modificações? Dentro da família…

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Mãe 5: Não, não, não… Houve até a aproximação de algumas pessoas que estavam mais

afastadas. Não falei, há bocado perguntou-me, eu não acabei, por causa dos profissionais…

Nós ganhámos amigos no hospital, nós vimos aqui provavelmente quando eu sair daqui se eu

tiver tempo, já não devem estar lá em baixo, mas vou lá a baixo dizer “olá”. O Dr. Ximo, o

médico da M. é um amigo mesmo. O Dr. Ximo não, os enfermeiros também, eles não fazem

só o tratamento, o tratamento é aplicar o tratamento e pronto… Davam beijos à M., davam

abraços à M., não é?! Isso não faz parte do tratamento. Isso era bom, isso era bom. O Dr.

Ximo inicialmente não deu qualquer, não foi otimista em momento nenhum, mas a pouco e

pouco eu própria ia vendo que ele estava otimista, isso foi bom, foi bom para nós

E2: Hum hum. Portanto esse otimismo foi dado à medida…

Mãe 5: Sim, o tempo ia passando e nós notávamos isso. Pronto, deram-nos um grande apoio

quando o bebé nasceu, eu não sabia, ligaram para o hospital para saber se tinha corrido tudo

bem e foram os primeiros a saber como tinha corrido… Quando eu cheguei aqui o Dr. Ximo

abraçou-me e a chorar, choraram comigo… Uma relação de amizade… Acabou por haver

uma intimidade, a gente coloca a M. com 100% de confiança nas mãos de uma pessoa que

não conhecemos

E2: Hum hum. O estar grávida à época sente que ajudou ou que dificultou? Ou seja, pensa

que por um lado pode ter ajudado o estar à espera de outra criança?

Mãe 5: Não, não. Para a M. foi bom, ela queria muito ter um bebé e ajudou. Para mim não

porque eu tinha sido muito feliz na gravidez, estava muito muito feliz da gravidez da M.. Ria

os dias todos, engordei 20 Kg, fiquei uma baleia, nunca mais recuperei e estava feliz, fiquei

feliz. Quando engravidei da C., queria, fiquei outra vez contente e depois isto aconteceu e eu

não me lembrava sequer que estava grávida. E a M. passou a ser a prioridade.

E2: Centrou-se na M.

Mãe 5: O sentimento de culpa quase em relação ao bebé. Se pudesse ter sido noutra altura…

E2: Era uma gestão ali de duas crianças no fundo, que não…

Mãe 5: Pois nessa altura não havia sequer…

E2: (?40:02) uma criança que estava doente, não é?! A M.

Mãe 5: Eu por exemplo quase não tomava pequeno-almoço, eles davam-me uma senha para

nós irmos comer mas eu não podia deixar a M. de manhã porque era a higiene dela, era o

pequeno-almoço, depois vinham limpar o quarto, e quando acabavam de limpar o quarto

íamos esperar a visita do médico. Era meio-dia e ainda tinha a senha, portanto, muitas vezes

não tomei o pequeno-almoço. Uma mulher grávida não é?! Não era suposto, não era

relevante, não era importante na altura

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E2: A sua preocupação era a M.… Claro. E agora ainda nesta fase, pode falar um pouco

daquilo que fez para lidar com a situação? Ou seja, já vimos que utilizava algumas estratégias

com a M. como as histórias que contava da fada… Que outras coisas é que fazia para lidar

com a situação?

Mãe 5: Estava todos os dias com ela, estava sempre com ela. Muitas histórias, pintava com

ela… Ela pintava, ela sempre gostou muito de pintar. Agora tenho um livro para ela que

comprei hoje, das mandalas, pintava mandalas. Pintava ela e pintava eu… Era ela, é que…

sempre bem-disposta, sempre a rir, depois as visitas, depois aquela rotina. Entramos numa

altura em que fazia parte já da nossa, da nossa rotina. O conformar-se talvez, o conformar que

tinha que ser.

E2: Claro. Trazendo-a agora, deixando essa fase de diagnóstico e tratamento, vindo agora

para o momento presente, para a fase de sobrevivência.

Mãe 5: Sim

E2: Decorreram quantos anos?

Mãe 5: 3

E2: 3 anos. Sente que a doença está controlada? Sente que…

Mãe 5: Sim. Acho que há… de vez em quando, há dias em que eu não me lembro, isso já

acontece. Ah… Há dias em que eu acredito: “Pronto acabou, não volta”. Mas depois aparece-

me um palhacinho na cabeça e eu quero ir logo para o IPO. Acho que isso ainda vai continuar

por muito tempo, se calhar até para sempre… Esse, esse medo de que alguma coisa… É uma

criança como outra qualquer, tem tanta febre - “coitadinha”, mas a febre da M.… Mas eles

aqui também são ótimos, aquele primeiro ano depois de ter terminado tudo, a M. precisava de

vir ao médico, era aqui que vinha. Não foi para a pediatra dela

E2: Portanto em termos da doença que a M. teve aqui, está controlada? Não está controlada?

Mãe 5: Está curada

E2: Está curada. E em termos de severidade? Sente que a doença da sua filha é a mais severa

do mundo? Sente que existem outras piores?

Mãe 5: Não, não foi a mais severa porque ela sobreviveu. Aliás, uma coisa que me ajudou a

ultrapassar, é quase como eu não tenho o direito às vezes de me sentir tão triste porque é uma

injustiça comparado com os outros que morreram e já não estão cá. Não… há coisas piores,

eu hoje vejo que há coisas piores. Há doenças crónicas tão piores. Aumentou talvez a empatia

para com pais de crianças com doenças crónicas, aumentou. Não que eu alguma vez tivesse,

achasse que comigo nunca acontecia, nunca pensei nisso, que estava imune, mas pronto, a

gente pensa que não acontece, não verbaliza isso

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E2: Claro. E causas para a doença? Encontra causas hoje quando pensa, pensa- “isto…

Mãe 5: É genético

E2: Não há causas?

Mãe 5: Houve uma transformação genética, está perfeitamente identificado. Porque é que

acontece? Porque é que nós morremos? A pergunta mantem-se, há-de ser, não é?! Ninguém

sabe porque é que… as células deixam-se de reproduzir, é assim, a imperfeição humana. Na

altura não pensava assim.

E2: Na altura pensava o quê?

Mãe 5: (risos) Lá está, os sentimentos de culpa, que tinha feito alguma coisa, não tinha

corrido bem…

E2: Mas hoje sente que essa culpa não faz sentido?

Mãe 5: Não

E2: E consequências? Positivas ou negativas que este diagnóstico teve para vocês, para a

vossa família, para a M., para si… Positivas ou negativas… Tem um bocadinho das duas?

Mãe 5: Fiquei mais chorona (risos) fiquei muito… Eu sempre fui o vamos… (?45:19) mas

depois. Deixei de dar importância a coisas que dava e não fazia sentido. Mais tolerante em

algumas coisas. Tinha a mania da perfeição, muito perfeccionista, hoje controlo isso melhor.

Não vale a pena, o que interessa, amanhã pode não estar cá.

E2: Hum hum

Mãe 5: Foi difícil lidar, foi para a M. e foi muito para mim com os efeitos secundários da

quimioterapia, com o facto de chamarem gorda… Agora na endocrinologia ela engordou

20kg. Chamavam-lhe gorda na escola e isso era um sofrimento para ela e era um sofrimento

para mim quando ela chegava a casa, lidar com essa, com, com… a questão visual

E2: Mesmo agora?

Mãe 5: Mesmo agora, mas acho que isso tem a ver com o que sofremos quando aqui tivemos

que ainda não foi apagado. Aqui há tempos estava no hospital, fomos a uma consulta de

oftalmologia com ela, estava bem-disposta, estava a brincar. Estávamos à espera de entrar

para o consultório para fazer os testes, e abre-se a porta e estava uma menina de costas, tinha

o cabelo, não estava rapado, estava cortado pequeninho, exatamente como nós cortamos aqui.

Desmanchei-me a chorar, quer dizer, do nada, isto ainda está cá fresquito não é?

E2: Consequências emocionais que permanecem, não é?!

Mãe 5: Sim, sim. Isso sim. Isso é…

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E2: Embora, acha que houve uma adaptação? Acha que houve um, portanto, ao longo do

tempo, cada vez que mais tempo decorre, sente que as coisas estão cada vez mais adaptadas a

nível familiar, a nível pessoal…?

Mãe 5: Sim estão, estão, estão, estão. Nós… é como lhe digo, aquele 2º ano, aquele tempo

todo que eu estive em casa, houve muitas discussões… aquilo que nunca tinha acontecido

aqui, discutia muito, gritava, houve uma altura que eu gritava por tudo e por nada…

descontrolava-me… provavelmente está associado à doença… Agora não…

E2: Quando esteve aqui chorou?

Mãe 5: Sempre, sempre (risos) sempre. Chorava que nem uma Madalena. Demorou muito

tempo eu não chorar. Diziam-me: “cuidado para o bebé não é bom”. Chocou-me, chocou-me

muito, nunca mais me esqueci… Já era quase de noite, a gente chegou lá a cima, ao 7º, ia no

corredor e estava uma mãe, um pai, a Helena e um puto que entretanto também já faleceu.

Estava à porta do quarto e estavam-se a rir, estava com o marido e estava com outra pessoa,

estava-se a rir, riam…. Aquilo pareceu-me tão mal, tão mal, tão mal, tão mal, tão mal…

Fiquei tão: “como é que é possível?” Uns pais que têm um filho aqui estarem a rir, aquilo

caiu-me tão mal, depois passou-me e depois ria-me eu também e o V. é muito brincalhão,

contava histórias, metia-se com as enfermeiras, depois estávamos no quarto a rir com

histórias, a rir bem-dispostos, como se não fosse nada.

E2: Foram um bocadinho também aprendendo aos poucos, não é?

Mãe 5: Exatamente a lidar

E2: Exatamente. E portanto estava-me a falar que teve algumas consequências emocionais,

não é?! Nomeadamente emocionar-se quando viu por exemplo essa menina… A nível

conjugal, com o seu marido? Houve alterações? Alterações que podem ser boas ou más…

Sente que houve?

Mãe 5: Houve, é como lhe digo, naquele 2º ano…

E2: Mas falando agora na fase de sobrevivência, atual? Nesta fase…

Mãe 5: Não.

E2: Não.

Mãe 5: Estamos…Isto uniu-nos, ainda ficamos mais

E2: Os 4 agora não é?

Mãe 5: Nós damo-nos muito bem. Sim. Porque nós sempre fomos… Os 4 não, os 5… Vem

outro a caminho

E2: Ah já há outra men… Também menina?

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Mãe 5: Não sei, não sei… ainda não fez 4 meses. Foi um choque porque não foi planeado.

Mas pronto… Nós deslocamos como um bloco. Sempre foi assim. Pronto. Nós namorámos 10

meses, o V. não me pediu em namoro, pediu-me em casamento, aos 30 anos, portanto

conhecemo-nos tarde, casamos tarde, estamos a iniciar família, tenho 43 e estou grávida outra

vez. Mas pronto, nós sempre fomos muito, muito, muito, muito unidos… E continuamos

E2: Essa união mantém-se, não é!?

Mãe 5: Mantém-se

E2: Mantém-se. Muito bem.

Mãe 5: Nós deslocamo-nos em bloco, pronto. Ainda hoje às consultas, vem sempre, vem a M.

e vem a C., vimos todos. Pronto…

E2: E a nível, portanto, falou-me que na altura houve alterações profissionais para si. E

agora? Houve implicações? Sente que houve implicações, portanto, lá está, está a trabalhar

como me disse, mas sente que a fase de diagnóstico e tratamento teve implicações para a fase

presente a nível profissional, de alguma forma?

Mãe 5: O facto de ter estado afastada teve. Na altura tinha alguma pretensão de promoção,

isso desapareceu, apesar da identidade patronal, o patrão pagar-me o ordenado sempre como

se eu estivesse a trabalhar e dar todo o apoio indiretamente, como ele sabia, mas a instituição

dar sempre o apoio. Na realidade no nosso posto de trabalho lidamos é com pessoas, não é?!

Pronto.

E2: Hum hum.

Mãe 5: O faltar, nas avaliações, pronto. Baixaram-me a nota. Não tenho esta culpa mas na

realidade não estivestes, portanto profissionalmente…

E2: Claro. E hoje sente (?51:42)

Mãe 5: Sim, profissionalmente a minha progressão acabou, acabou-se. Eu tinha esperança

naquela altura

E2: E também daí se calhar a revolta que sentiu à época?

Mãe 5: Talvez, talvez, talvez. Durante muito tempo a M.… Agora felizmente, felizmente, até

para as outras pessoas o assunto vai desaparecendo, porque deixei de ser a Débora, era a Mãe

da M.. Qualquer pessoa, qualquer chefe, qualquer diretor: “Então a M. como é que está?”. Ou

seja, eu deixei de ser profissional, passei a ser a mãe da menina com cancro, não é?! Que eles

não conheciam, não conheciam mais nenhum caso… Foi uma coisa muito falada…

E2: Sente que o seu papel, na sociedade

Mãe 5: Sim. É.

E2: Deixou de ser o papel profissional e passou só a ter o papel de mãe

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Mãe 5: De mãe de uma criança com cancro. Pronto, as pessoas, como se as pessoas se

revissem todas em mim.

E2: E outras consequências? Já falámos aqui de algumas – emocionais, alterações

profissionais, a nível de estrutura familiar e conjugal não houve qualquer consequência…

para a M.? Consequências a nível físico, a nível psicológico… Houve consequências?

Positivas ou negativas…

Mãe 5: Muitas positivas porque a M. ainda amadurou mais

E2: Ainda mais

Mãe 5: A M. foi ao funeral de uma das meninas, da Maria – “porque eu quero ir”. E começou

a lidar com a morte muito cedo e sabe o que é. É uma criança, é uma pessoa muito madura,

parece mais velha do que o que é. Mas amadurou se calhar numas facetas mas nas outras

ainda é criança, portanto o aspeto físico, o facto de ainda hoje lhe chamarem “gorda” é uma

coisa que a magoa. A M. começou a fazer um diário muito cedo, tem coisas escritas…

INTERRUPÇÃO

Mãe 5: Aquele sentimento de ser diferente… Escrevia isso e dizia. Com 5 anos, com 6 anos,

parecia que tinha uma adolescente me casa com aqueles sentimentos que “ninguém gosta de

mim” – que eu acho que foram cedo de mais

E2: Claro. Houve ali também uma antecipação da adolescência?

Mãe 5: Talvez. Não sei. As crianças tao pequeninas acho que não têm bem a noção do que é

bonito, do que é feio… Não sei, não sei… eu achava que não, mas ela sofreu com isso,

especificamente com isso. Ainda sofre hoje. Ainda sofre hoje. Ela faz uma alimentação

normal, correta, essas coisas todas…

E2: Mas ela associa esses nomes que lhe chamam ao facto de ter estado doente?

Mãe 5: Sim, sim. Depois… Agora já não mas houve uma fase, inclusivamente nós viemos

falar com a Dr.ª Ju, ela ainda veio ai a 2 ou 3 consultas, não sei. A Dr.ª Filomena fartou-se de

gozar comigo e com a M. porque a M. não precisava de psicólogo (risos) Porque a M. – “ vou

brincar ao IPO” – para ela o IPO é um sítio ótimo. Mas, naqueles primeiros, ela depois voltou

à escola, no 2º ano, fizemos assim uma adaptação, ela tinha estado na escola desde pequenina,

e houve ali um período, eu não, 1 ano à vontade, e a M. ficou especialmente manipuladora,

isso já passou, mas naquela fase era, ficou, foi uma má consequência…

E2: E acha que foi decorrente de quê?

Mãe 5: Do mimo, de tudo…

E2: O miminho

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Mãe 5: Ela deixou de ser o centro do mundo não é?! Ela aqui foi o centro do mundo depois

deixou de ser

E2: Porque teve de haver uma readaptação

Mãe 5: Exatamente – “Porque eu sou diferente, porque eu sou especial”. Depois, o voltar à

escola, ela achava que tinha desculpa para não se esforçar, para não ser boa na escola, porque

era diferente, “porque eu sou doente”

E2: A nível de aprendizagem…?

Mãe 5: “Eu quero voltar ao IPO, eu quero outra vez ir para o 7º” Frases deste género

E2: Portanto ela associa como uma fase positiva da sua vida apesar de ter estado doente

Mãe 5: Sim, para ela o IPO foi uma coisa boa. Ela não tem mágoa. Ela quando vem aqui

corre as capelinhas todas, quer ir ao 7º, quer ir brincar ao 7º. “Vai lá filha”. Mexer nas coisas

e dar beijos e…

E2: Disse-me que corre as capelinhas todas, ou seja, vocês são religiosos?

Mãe 5: Não é uma expressão idiomática. Por acaso sou mas não sou católica.

E2: Ah pronto. Mas pegou numa coisa interessante que eu por acaso há pouco, quando estava

a falar dos facilitadores… Sente que a sua religião a ajudou na altura, agarrou-se a…

Mãe 5: Apesar de me ter afastado na altura por inerência da doença, eu sou testemunha de

Jeová e o V. também. Mas essencialmente a minha relação com Deus, portanto, Deus para

mim era uma pessoa real e é. Orava muito, pedia muito, mas depois revoltava-me, mas

depois, é assim, Deus não vai intervir no meu caso, porque se for assim é um Deus injusto,

quer dizer, porque cura a M. e há tantos que morrem… Portanto…

E2: Mas falava com Deus?

Mãe 5: Sim

E2: Perguntava porquê? Pedia para que as coisas corressem bem? Como é que é essa relação

com Deus?

Mãe 5: Era mais o dar-me, o pedir a Deus, é mais pedir que me desse força e coragem para

aquilo que vinha ai

E2: Para aguentar

Mãe 5: Não que curasse a M. porque eu tenho plena noção que ele não intervém. Porque não

é esse o Deus que eu adoro. Porque se vir um Deus injusto… (?57:42) deixa morrer outros

E2: (?57:43) não é?

Mãe 5: Sim, mas ter a força para suportar

E2: Hum hum

Mãe 5: Foi mais por ai. Não que eu esperasse um milagre

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E2: E ajudou? Foi um facilitador da adaptação?

Mãe 5: Foi.

E2: E além desta sua fé, o que é que a ajudou mais na adaptação à situação? Para além disso e

da própria M., como falamos há pouco? Houve outras coisas que ajudaram? Outras que

dificultaram?

Mãe 5: Não sei. Não tenho assim consciência de mais nada

E2: E hoje? O que é que considera ser a sua rede de suporte? Os amigos que estavam à época

mantêm-se? A família?

Mãe 5: Sim. Mantém-se a estrutura, a estrutura manteve-se inalterável, não houve alteração.

Fizemos novos amigos, temos amigos do IPO, casais, mais chegados até, mantemos essa

relação, temos esse ponto em comum, foi isso que nos uniu e criámos novas amizades a partir

dai. A nossa vida não mudou. Eu pensava que nunca mais ia ser igual…

E2: Mas afinal…

Mãe 5: Não. Volta tudo.

E2: Está tudo como…

Mãe 5: Está. Os mesmo planos, os mesmo projetos, é a escola, é as férias, é… Pouco e pouco

volta tudo ao normal.

E2: E a nível de efeitos secundários. Sente que a M. teve efeitos secundários a longo prazo?

Ou seja, sente que hoje há manifestações…

Mãe 5: Eu não sei se tem porque a ciência ainda não chegou a essa conclusão. Eu bem que

pergunto. A M. sempre, o raciocínio lógico, o raciocínio matemático é insuficiente, não está

bem. Por exemplo na escola, e eu tento se calhar desculpar isso por ai, mas depois a

professora diz que a M. é, na altura era manipuladora e se calhar foi por isso

E2: E é por que eu pegava também, ou seja, se é uma consequência direta dos tratamentos

Mãe 5: Não saberei

E2: Ou se é uma aprendizagem de…

Mãe 5: Ou se ela não gosta mesmo da escola…

E2: Claro... Claro que sim… Ah, e portanto, se… o que é que diria aos pais? Portanto, o que é

que diria aos pais que foram diagnósticos ontem, que os filhos foram diagnosticados ontem?

O que é que lhes diria? O que é que acha que é importante dizer aos pais?

Mãe 5: Que o IPO é o melhor sítio onde eles devem estar. Que há esperança e que há… não é

o fim do mundo, que não… que há esperança.

E2: Hum hum

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Mãe 5: Foi aquilo que quando eu entrei não tive. E acho que é o que acontece a todos, acham

todos que acabou, que é o fim… Direi aquilo que digo, que disse a alguns pais que conheci,

que passa, passa depressa. Quando estamos no barco parece que não, mas depois aqueles 2

anos passaram, passaram muito, muito depressa. Sugeri, por exemplo, a uma mãe, que o

menino já acabou o tratamento… a estabelecer metas, foi uma coisa que nos ajudou. Na

última asparaginase havia um bolo e a M. estava desejante… acho que a última asparaginase

não incluiu…. Porque tinha um bolo, fizemos um bolo, uma festa… Ultrapassou aquela

meta…

E2: Hum hum. Era isso que dizia?

Mãe 5: Dizia e eu acho que era bom, que era proveitoso, haver sempre pais para um

acolhimento, sempre alguém que tivesse passado, porque nós fizemos, participámos no

acolhimento de n pais, como estávamos ali…

E2: Claro

Mãe 5: Eu tinha perfeita noção de um pai novo – os olhos gazeados, perdidos, tem logo a

noção que é novo…

E2: O que é que acha que é importante dizer imediatamente? Ou seja, o pai entrou, ficou

internado. O que é que sente que é importante?

Mãe 5: Que é violento, que compreendo, sei exatamente o que é que está a pensar, o que é

que está a sentir, mas vai passar, é possível passar. Eu mostrava a M. – “está a ver a M., como

está, a M. passou exatamente pelo mesmo”. Dava o meu exemplo, dava o exemplo da M.,

correndo o risco da doença da pessoa, daquela criança ser muito pior e ser fatal

E2: Claro, claro…

Mãe 5: Mas naquele momento acho que não interessa isso.

E2: E como é que descreve a M.? Como é que descreve a sua filha?

Mãe 5: (risos) A M. é a M., como é que eu hei-de dizer?!

E2: Como é que… Portanto, se tivesse que fazer uma redação sobre a sua filha, sobre a M., a

nível físico, psicológico, tudo isso… Como é que era?

Mãe 5: A M.… como pessoa, acho que tem, vai ter sempre uma aura. Tenho duas filhas não

é?! A caminha da terceira… Isto não tem a ver com o gostar mais ou menos. Acho que a M.

como pessoa tem uma aura, logo desde bebé… E isso ajudou a passar por esta fase e vai

ajudá-la para o resto da vida. A M., se conhecesse a M., se tivesse aqui a falar consigo, saia

daqui amiga dela e dava-lhe um abraço a despedir e a M. marcava, como marca as pessoas

que se cruzam com ela, eu não sei explicar porquê.

E2: É uma menina especial?

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Mãe 5: É. A M. é diferente… Ralho muito com ela por ela ser muito espontânea, eu estou

sempre a ralhar com ela…

E2: Tem uma relação muito forte com a M.!?

Mãe 5: Sim, sim, sim, sim, sim. Fisicamente sou… Mas ralho muito com ela, sou a principal

critica dela e… Acho que as outras pessoas vêm coisas dela que eu às vezes não vejo mas,

esta maturidade, esta força de vida que ela tem… As conversas que faz com as pessoas, a

perspicácia dela… Ela apanha as coisas… Pronto e ela conquista, ela tem muitos amigos

adultos, ela faz amizades com adultos. Nós temos amigos pessoais que foram conquistados

por ela. Portanto eles aproximaram-se de nós por causa da M., porque não querem perder o

contacto com ela.

E2: Claro. E o que é que tenta ensinar à sua filha?

Mãe 5: (risos) O que é que eu tento ensinar? (risos)

E2: Sim

Mãe 5: O que é que eu tento ensinar… Os valores de moral não é?! Essencialmente, os

valores de moral, que ela durante uma fase, durante a fase que esteve aqui, nós tivemos um

bocado de culpa disso se calhar, porque quisemos fazer sentir especial, hoje já me distancio

nisso, gostava que ela percebesse que as pessoas são todas especiais, são todas importantes.

Houve uma tentativa de a fazer baixar de onde nós a pusemos por inerência da doença. Eu

quero que ela seja uma pessoa boa (risos). Essencialmente são os valores de moral

E2: Hum hum

Mãe 5: Gosto que ela leia e quero que ela leia muito. Partilho com ela os filmes mais bonitos

da minha vida, sentamo-nos a ver. Tenho muita coisa para lhe ensinar, coisas boas… Não

quero, tentei sempre evitar e não quero que ela pense que ficou diferente ou pior por causa da

doença

E2: Claro

Mãe 5: Acho que isso conseguimos. É como lhe digo… daqui tem boas, tem boas memórias.

E2: Muito obrigada pela sua prestação…

Mãe 5: De nada!

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1

CASAL 05 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – M.

E2: Agradeço imenso mais uma vez a sua presença na colaboração para este estudo.

Pai 5: Não tem de quê.

E2: E a primeira coisa que realmente lhe pedia era que voltasse ao momento do diagnóstico

Pai 5: Sim

E2: E que na medida do possível me dissesse aquilo que imediatamente lhe vem à cabeça: a

experiência, os sentimentos, as reações…

Pai 5: Que era, senti que o mundo me faltava de baixo dos pés, que a M. ia morrer

rapidamente, que a doença não era tratada, que isto ia acabar tudo muito mal porque na altura,

pronto, a ideia que eu tinha, o conceito que eu tinha de doenças oncológicas deste tipo era

que, pronto, o tratamento era, a probabilidade do tratamento ter sucesso era muito reduzida,

portanto o que ia acontecer rapidamente era que a miúda ia morrer, basicamente…

E2: Hum hum

Pai 5: Depois, isto no instante inicial, quando a D. me deu a informação. Depois, foi sempre

muito complicado gerir aquelas primeiras horas, aqueles primeiros dias relativamente à

incapacidade de perceber o que é que se estava a passar, ou como é que íamos ultrapassar

aquilo… Existia uma doença oncológica, portanto ia correr mal e portanto, claramente o

futuro era negro.

E2: Hum hum

Pai 5: Depois, nós estivemos internados 2 dias no Hospital da Luz e só ao fim de 2 dias é que

a M. pode ser transferida para aqui para o IPO.

E2: Hum hum

Pai 5: Quando chegamos ao IPO, a primeira coisa que nós vimos, foi uma criança já muito

mal tratada da quimioterapia. Pronto… particularmente, ou graficamente, agressiva, se assim

podemos pôr a coisa

E2: Hum hum. Portanto quando recebeu o diagnóstico da sua filha, sentiu descrença, sentiu??

Pai 5: Não. A primeira reação foi “não”. A primeira imediata, aquela instantânea foi…

E2: Choque, foi um choque…

Pai 5: Foi: “Mas isto não pode ser, de certeza?! Se calhar não é”.

E2: Dúvida?

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Pai 5: Dúvida no momento que sim, mas a D. aceitou isso muito mais facilmente do que eu,

ou seja, assumiu que efetivamente a doença da M. existia… Eu questionei ali durante algumas

horas, podia não ser porque a Dr.ª disse que, parecia que, não sei quê…

E2: Portanto havia ali uma esperança, uma pontinha que dizia…

Pai 5: Havia. Aliás, se puxarmos para trás, umas horas em relação ao diagnóstico, a M. fez

uma análise ao sangue numa 2ª feira e isso, e na altura a Dr.ª disse que, a D. disse-me que a

Dr.ª disse que a M. tinha o fígado, o baço inchado. E eu “está bem”, o baço inchado ok,

pronto, uma infeção, uma coisa qualquer… e fui à internet, à noite já depois de jantar – “baço

inchado”, enter. Dizia lá que isso é característico de doenças oncológicas… Leucemia? Que

coisa tao estupida – enter. E acabei, levantei-me, fui-me embora, nem pestanejei. Portanto,

aquelas primeiras horas continuaram a ser de - “Será que é mesmo?” E só no momento, a D.

deu-me a informação a meio da manhã sensivelmente, só à tarde quando chegamos ao

Hospital da Luz é que ela… é que eu vou falar com a médica e pergunto: “Então mas Dr.ª isto

poderá não ser nada?” Com estes valores claramente que é.. Pronto, claramente que é, então

é…

E2: Uma dúvida permanente até realmente ter a informação médica…

Pai 5: Sim porque

E2: E a certeza…

Pai 5: Sim porque o que a Dr.ª disse à D. foi: “Temos que falar sobre a M. porque isto é

sempre ouvir dizer, porque esta parte eu não tenho intervenção direta no processo”

E2: Claro

Pai 5: “Temos que falar porque a M., os valores de sangue da M., temos que ver porque

parece que eventualmente haverá aqui qualquer coisa”. Depois a D. perguntou: “Mas oh Dr.ª é

uma leucemia?” E a médica disse que sim, aparentemente sim. E portanto esta foi a conversa

que ela me transmitiu, portanto eu agarrando-me a esta informação fiquei sempre com

esperança, “bom a Dr.ª disse que poderia ser mas que eventualmente não seria, pronto…

E2: Claro

Pai 5: E depois pronto, depois basicamente a partir do momento em que assumi que era, a

questão colocou-se no facto de ser uma doença oncológica terminal, ponto.

E2: Hum hum

Pai 5: Isto, a gente, nós fomos buscar a M. ao colégio, pegamos na M., levámo-la a casa para

ir buscar roupa, porque ela ia ser, já sabíamos que ela ia ficar internada. Portanto o que eu me

lembro, de olhar para a M. deitada na cama que tinha sido acabada de comprar há meia dúzia

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de meses, era a M., eu saber que a M. ia sair de casa e não saber se ela voltava… Neste

momento a M. está doente…

E2: Mas acreditou que a sua filha ia morrer?

Pai 5: Acreditei na probabilidade de sucesso de tratamento era ínfima

E2: Hum hum

Pai 5: Aliás, como diz o Dr. Ximo, e bem, quando nós dizemos aos pais, e ele disse-me isso

várias vezes: “Quando nós dizemos aos pais que a probabilidade de sucesso é 80%, que os

pais ouvem, aliás quando nós dizemos aos pais que a probabilidade de sucesso é 80% de

sucesso, o que os pais ouvem é os 20% de insucesso”

E2: Hum hum

Pai 5: E isso é verdade. Qualquer, e essa frase tem-me acompanhado em muitas outras

circunstâncias, mas é verdade. Quando nós dizemos a probabilidade de isto correr bem é 90%,

o que a pessoa do lado de lá é que a probabilidade de isto correr mal é 10

E2: Claro

Pai 5: E eu sou os 10% que ficam, não sou os 80 ou 85, ou os 90

E2: E, então, ao que é que se agarrou? Sentido que, agarrando-se a esses 20%, não é?! O que

é que?

Pai 5: Estamos a falar disto

E2: No momento do diagnóstico, exatamente

Pai 5: No estado 0

E2: Claro

Pai 5: O que é que me agarrei?

E2: Ou seja, sentiu que alguma coisa tinha que ser feita?

Pai 5: Não, eu não senti que alguma coisa tinha que ser feita. Tínhamos que aguardar que as

coisas se desenvolvessem naturalmente. Ou seja, naquele momento nós tínhamos uma série de

pessoas amigas, uma série de pessoas amigas que nos apareceram, que nos apoiaram,

abraçaram, choraram connosco, uma série de coisa… Mas basicamente nessa altura não havia

nada a fazer enquanto, não havia nada que nós podíamos fazer, a situação tinha que se

desenvolver, tinha que haver mais informação, tinha que haver mais suporte médico para

puder pensar efetivamente naquilo que havia para fazer…

E2: Pensar na fase seguinte…

Pai 5: Porque naquela altura a M. tinha uma leucemia, ponto. Não há muito mais do que isso.

E2: E a partir do momento que teve essa informação médica, não é?!

Pai 5: Curta, diga-se de passagem, que é um defeito dos médicos aqui

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E2: Sentiu falta de informação?

Pai 5: Claramente. Mas nós… Eu vou falar por mim

E2: Claro

Pai 5: Eu tenho alguma dificuldade, as pessoas têm alguma dificuldade em transmitir…

Primeira forma – de uma forma geral, aquilo que os médicos fizeram estava certo, para a

população em geral, a forma como eles transmitem a informação está certa, o que acontece é

que eu sou bombeiro, sou técnico de emergência hospitalar, tenho uma série de informação

para além daquilo que é habitual…

E2: Um conhecimento mais…

Pai 5: Portanto, se calhar para um pai médio será isso que é suposto transmitir, para mim

senti falta de informação. Aquilo que eles diziam não chegava, porque a Dr.ª dizia: “Ah, isto é

só aquilo que você consegue absorver neste momento” – não é!

E2: Varia de pessoa para pessoa, não é?!

Pai 5: “Mas diga-me mais coisas Dr.ª”. “Ah não porque você não consegue processar esta

informação toda”. “Consigo, eu estou habituado a processar quantidades de informação que

nos diz respeito a saúde”. É claro que o que nos toca a nós é mais complicado, mas nós

estamos habituados a processar quantidades de informação muito maiores, com termos

técnicos, com uma série de de de… com um enquadramento completamente diferente daquilo

que é habitual para uma população média…

E2: Claro

Pai 5: E portanto, para mim, é uma coisa que é básica, que pronto ok, isso para mim não

chega, preciso de mais informação para além daquilo que é, se calhar para uma pessoa que

não está habituada a conviver com esta informação específica, técnica, então pronto, está

certo. Mas não, não senti que chegasse

E2: Foi uma necessidade que sentiu? Foi ter informação, que a informação chegasse

Pai 5: Certo

E2: E que outras necessidade é que sentiu?

Pai 5: Senti necessidade de ser enquadrado no espaço que é o IPO. Senti necessidade de

perceber as regras do jogo sem ter que as descobrir, ou seja, o clássico pai, a clássica cara do

pai do IPO do primeiro dia é assim (demonstra) Olha-se à volta, boca aberta, tipo turista está a

ver? Turista que entra em Lisboa e que observa tudo, os pais do IPO, nós conseguimos

identificar qualquer pai, qualquer mãe nova no IPO assim. “Olha aqueles são novos”. Porque

estão completamente perdidos.

E2: Hum hum

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Pai 5: Não têm a noção onde é que dormem, o que é que comem, onde é que vão, o que é que

têm, quais são os apoios que têm, onde é que está a médica, onde é que está o psicólogo, onde

é que está a assistente social, não têm. Zero. E portanto, e nós tivemos a desvantagem que

agora não existe, entramos no momento em que não existia aquele livro, um livrinho que

agora existe na pediatria, que foi criado precisamente para conjugar essa informação. A mim

fez-me falta, fez-me falta perceber as regras do jogo

E2: Descobriu, foi descobrindo sozinho à medida que…

Pai 5: Sim porque, porque uma auxiliar diária dizia: “As senhas do almoço são entregues do

meio-dia ao meio-dia e meia ou das onze e meia ao meio-dia…”

E2: Uma informação um bocadinho das rotinas, dos procedimentos…

Pai 5: Claro, até porque isso de alguma forma…

E2: É integrador não é?!

Pai 5: Exatamente, faz-nos integrar no processo também.

E2: Claro

Pai 5: É evidente que qualquer pessoa que entre no IPO, como nós entramos, penso eu que, o

mundo perde os contornos, como eu costumo dizer, ou seja, o IPO torna-se o mundo, portanto

não há trabalho, não há tempo, não há mau-tempo, não há bom tempo, não há trânsito, não há

cinema, não há televisão. O primeiro instante é: “Pronto, o meu mundo está reduzido a isto,

não interessa mais nada”. Não há mais família, não há mais gente, é a minha filha, é o doente

e nós e pronto, e o núcleo familiar reduz-me ao filho, à mãe, e ao pai.

E2: Há uma centração, há uma coesão…

Pai 5: Graças a Deus conseguimos, conseguimos manter, também isso foi uma coisa que

aconteceu logo nos primeiros momentos do diagnóstico, foi nós unirmo-nos enquanto,

enquanto casal. Percebermos que isso era uma coisa que nos facilitava…

E2: E facilitou o processo? Esta união…

Pai 5: Provavelmente. Não sei, não sei o que será o, não sei qual é o oposto.

E2: Ter o apoio da sua mulher, o apoiar

Pai 5: Sim, foi sempre uma, foi sempre… Depois conseguimos gerir as rotinas, um ia a casa o

outro ficava, o outro ficava o outro ia a casa

E2: Iam revezando…

Pai 5: A M. tinha muito mais dificuldade em gerir isso do que nós, porque a M. queria cá

sempre a mãe e portanto as noites em que ficava o pai era mais complicado mas tinha mesmo

que ser assim, de outra forma…

E2: Claro

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Pai 5: Até por que como disse o Dr. Ximo e muito bem: “Os miúdos têm as doenças, as

doenças eventualmente passam mas aquilo que nós fazemos durante a doença vai marcar a

criança para o resto da vida”

E2: Hum hum

Pai 5: E eu só acredito que a gente as possa estragar, a partir do momento em que

efetivamente estamos desenganados, em que a doença é efetivamente terminal, caso é

intratável. Portanto, a partir dai é igual ao litro dar mais batatas-fritas, menos batatas-fritas,

ver mais televisão, ver menos televisão, dormir mais ou dormir menos. Agora, quando nós

temos à partida a noção que aquela doença é tratável, isso foi uma coisa que me aconteceu

depois, então temos que manter as rotinas que existiam antes da doença, para depois da

doença passar, as rotinas se mantenham, porque se não estragamos o miúdo…

E2: Hum hum. E a esperança que falava à bocado, ela existiu desde o início? A esperança?

Pai 5: No princípio, infinitos exames

E2: Foi aumentando

Pai 5: Mas depois à medida que vamos tendo conversas de orientação, pelo menos a 1ª ou a

2ª, o médico, o encarregue da M. explicou-nos que a leucemia linfoblástica aguda, tipo A,

whatever bla bla bla bla bla, era uma doença tratável, com uma taxa de sucesso na casa dos

80%, lá estão os 20 que eu ouvi, mas os 80 entraram, obviamente.

E2: Claro

Pai 5: E portanto, o conceito foi: “Calma que isto afinal não é uma coisa, o mundo não acaba

aqui, poderá acabar, mas neste momento não acaba”. Portanto, vamos lá embora, vamos a

isto, vamos ver o que é que é preciso fazer, o tratamento…

E2: E o próprio curso da doença em si? Também aumentou essa esperança? Ou seja, o ver

que os tratamentos iam dando resultado e que ia evoluindo no tratamento…

Pai 5: Quem geriu o meu estado de espírito, de uma forma geral, foi a M.. A M. conseguiu

sempre manter-se num registo, independentemente do facto de ela conseguir absorver ou não

o conceito de “ter uma doença terminal ou potencialmente terminal”. Sempre manteve um

ânimo, uma forma de estar…

E2: E isso dava-lhe força?!

Pai 5: Sim, claramente. Porque isso não me permitia, o facto de ela estar, evidentemente ter

os feedbacks do Dr., a dizer que efetivamente a doença…, estava em tratamento, nessa altura

não havia muito mais do que dizer que estava em tratamento.

E2: Claro, claro.

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Pai 5: Mais o facto de a M. se manter num registo alegre, contente, sem grandes flutuações de

humor, nem diminuição da autoestima…

E2: Não ter sido uma experiência adversa

Pai 5: Não foi, não foi. Claramente não foi. E isso, para isso, contribuíram, todos,

integralmente todos os profissionais do piso de internamento de pediatria, claramente uma

equipa excecional. Mantém os miúdos de uma forma (?12:57) Mas por eles fazem um

trabalho excecional

E2: Hum hum. Os profissionais também ajudaram neste processo?

Pai 5: Claramente. À exceção de 2 ou 3 ovelhas ranhosas, mas não, não é, não é relevante de

todo

E2: Mas sentiu alguma vez que os profissionais dificultaram?

Pai 5: Não, de todo. O que há é pessoas mais faladoras, e outras menos. Não deixam de ser

profissionais e isso ai, a nível profissional não há rigorosamente uma palavra a dizer sobre o

comportamento. Agora a forma como os profissionais se relacionam com os pais tem a ver

com eles, não é?! Com a forma como eles interagem com as relações que têm. Há colegas, há

enfermeiros e médicos mais abertos, mais afáveis, mais conversadores, e há outros que pronto

se limitam a fazer o seu trabalho e pouco mais e é nesse aspeto que eu refiro

E2: De acordo com o temperamento de cada um se calhar?!

Pai 5: Claramente, claramente. Eu lembro-me perfeitamente de uma enfermeira que eu nem

sequer nunca cheguei a saber o nome dela, estava lá escrito mas pronto, que conversássemos

ou que tivéssemos qualquer tipo de… não, de todo.

E2: Claro

Pai 5: Ela fazia o trabalho dela, chegava, fazia e vinha, ia-se embora, zero.

E2: Portanto, já vimos aqui várias coisas que ajudaram: a relação de casal, a própria M.…

Pai 5: Claramente

E2: Os amigos também, os profissionais…

Pai 5: Sim, sim… Porque ao fim de algum tempo aqui, repare, nós hoje em dia sabemos que

há uma enfermeira que tem 2 filhos, havia outro que pirateava sites da internet para ver filmes

e não sei quê… É evidente que estar aqui fechado durante 1 mês e qualquer coisa e depois a

continuação dos tratamentos que são 1 vez por semana, 2 vezes por semana nos primeiros

tempos… faz com que nós nos conheçamos, evidentemente.

E2: Claro. Hum hum. Criou aqui uma segunda família?

Pai 5: Digamos que conseguimos, de alguma forma, saber o quotidiano, o que envolve as

pessoas para além do que é o profissional. Eles sabem o que é que nós fazemos, nós sabemos

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o que é que eles fazem, sabemos que A é casado com B, que B trabalha não sei a onde, que

tem uma mota, que vai fazer não sei o quê. Quer dizer, depois ao fim tem de se falar não é?! É

impossível…

E2: Claro

Pai 5: Entramos no Hospital de Dia por exemplo…

E2: E outras coisas? Lembra-se de outras coisas que ajudaram? Que protegeram?

Pai 5: Não.

E2: Essencialmente isto aqui que falamos?

Pai 5: Sim. Que me venha à cabeça não. O que funcionou basicamente foi o facto de o Dr.

Ximo, portanto o médico encarregue dela, ser sempre muito positivo, muito positivo…

E2: A positividade do médico

Pai 5: Acima de tudo. A forma como ele encarou sempre a doença da M. foi: “Há crianças

que passam pelas doenças e doenças que passam pelas crianças”. Isto é mesmo a frase dele. E

efetivamente a doença passou pela M., passou e entrou por um lado e saiu por outro. Mas isso

foi, sempre foi uma coisa que ele nos transmitiu muita confiança. Que efetivamente o

tratamento da M. ia resultar. A M. ia passar por o tratamento, que evidentemente não era uma

amigdalite, porque se não era tratada noutro lado qualquer…

E2: Claro

Pai 5: Mas que ia ficar curada, e estava curada e que não havia problema nenhum

E2: Claro. E em termos de dificuldades? O que é que impediu ou dificultou o seu equilíbrio

emocional? Na altura… Lembra-se de alguma coisa?

Pai 5: Não, não. Eu acho que nós, eu consegui, mais do que agora, curiosamente, eu consegui

manter uma sanidade, um comportamento muito pouco, muito pouco diferente do que era

antes. A questão aqui é que eu acho que a gente consegue meter o IPO na pessoa mas depois é

difícil tirá-lo. O que é que eu quero dizer com isto?! Que hoje, após o tratamento da M., ou

seja o choque, o cair na real, alteração de comportamento, a minha forma de encarar as coisas

mudou bastante, mais depois da M. estar tratada do que durante o tratamento da M.. Ou seja,

durante o tratamento da M. eu acho que a rotina é fundamental. Nós sabemos que a M. toma

comprimidos todos os dias nas primeiras 3 semanas, às tantas horas, e havia um mapa em

cima do meu frigorífico…

E2: Foi muito objetivo não é? O que era preciso…

Pai 5: Exatamente. Isto é focado no objetivo. Portanto a M. tomava comprimidos, a M.

tratava-se, a M. ia à 4ª feira à primeira, numa primeira fase ia à 4ª feira ao IPO, à 5ª feira ao

IPO, voltava para casa, acabou… Segunda semana, terceira semana, quarta semana, quinta

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semana. Portanto, este ritmo, é exatamente aquilo que eu encontrei. Eu não pensei muito mais

do que isso. Ou seja, o objetivo vetor foi apontado à M. em termos de tratamento, em termos

de rotinas e pronto, enfim e não se muda, não pensei muito mais, quer dizer, obviamente que

saímos, entravamos, fazíamos a nossa vida quotidiana em função, mas em função do

tratamento da M.. Portanto, não foi uma grande alteração comportamental, agora é muito

mais, agora tenho muito mais dificuldade em gerir emoções mais fortes, tenho mais

dificuldade em gerir crianças doentes, tenho mais dificuldade em gerir a própria M.,

curiosamente.

E2: Porque de alguma forma recorda-se da fase anterior?

Pai 5: Sim, sim. É complicado… Agora penso qualquer coisa do tipo: “Ela teve quase, quase

a ir, mas não foi”. Mas não consigo dar a volta, não consigo gerir bem essa situação, é

complicado. Por exemplo, este ano temos tido um ano horrível em termos de mortes e então já

vamos para ai no 7º, no 8º… No corpo de bombeiros, não tem a ver especificamente com a

família… Para ai no 8º ou 9º funeral e o talhão das crianças dos mortos, dos moços, epa

aquilo é muito complicado de gerir, vêm-me sempre as lágrimas aos olhos. Passo…

E2: Ou seja, aprendeu a lidar com a morte de uma maneira que antes não lidava assim?

Pai 5: Repare, mas isto tudo está encapsulado nas crianças…

E2: Sim, sempre associado

Pai 5: Não há problema nenhum, qualquer morto, um morto pendurado na rua, esfacelado,

está-se bem… Um bombeiro gere isso sem problema nenhum…

E2: Claro… é por serem crianças

Pai 5: Crianças… É, pronto, isto ficou cá qualquer coisa… ou que não está assimilado, que

não está processado, ou então fiquei assim, pronto, está assimilado e fica assim. Não lhe sei

responder porque não fiz essa autoanálise, mas é claramente crianças, adulto continuo

insensível como sempre.

E2: Claro. E estava-me a falar então, agora, por acaso, da sua profissão, portanto…

Pai 5: Não, não é a minha profissão. A minha profissão é trabalhar nas finanças, sou muito

mais insensível do que isso

E2: Ah, então... Mas estava-me a dizer que era bombeiro?

Pai 5: Também sou

E2: Ah pronto

Pai 5: Faço isso complementarmente. Mas o meu trabalho a sério é penhorar casas às pessoas,

ordenados, vencimentos, essas coisas, isso é que me dá dinheiro.

E2: Pronto. Falando assim em geral nas suas profissões…

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Pai 5: Mas isso também (?19:52)

E2: Na altura…

Pai 5: Diga

E2: Nesta altura…

Pai 5: Sim

E2: Afastou-se?

Pai 5: Não houve bombeiros para ninguém. Durante 2 anos não houve bombeiros para

ninguém.

E2: E trabalho? As finanças?

Pai 5: Fui trabalhar.

E2: Foi trabalhar. E isso foi protetor para si? Foi um impedimento? Como é que vê o ter

continuado ativo? Não sentiu necessidade de sair do trabalho?

Pai 5: Não, de todo, de todo. Não senti necessidade nem de sair nem de não sair.

E2: Nem de não sair. Não sentia por exemplo que o estar a trabalhar o ajudava às vezes a,

portanto, a não centrar toda a atenção aqui no IPO?

Pai 5: Não, não.

E2: Não…

Pai 5: Não. Aliás, o estar a trabalhar durante… trabalhava 2ª e 3ª, à 4ª vínhamos para cá,

numa fase inicial vínhamos à 5ª, mas depois deixámos de vir. Portanto, 2ª, 3ª, 4ª IPO, 5ª e 6ª

era excelente porque (?20:41) Portanto aquilo trabalhava-se 2ª e 3ª, vou descansar, descansar

do trabalho à 4ª feira e depois 5ª e 6ª vou trabalhar outra vez, depois mete-se o fim-de-

semana. Portanto isto foi, foram 2 anos calmos, descontraídos. É evidente que à 2ª, já eu

estava a stressar porque o cateter da M. podia não trabalhar na 4ª, pronto, mas isso não era

uma coisa que interferisse no meu trabalho. Trabalho é trabalho, doença da M. era a doença

da M.

E2: Separava muito bem as coisas. E estar perto da M., era uma necessidade para si?

Pai 5: Não. É muito mais agora.

E2: É muito mais agora.

Pai 5: Mas muito mais agora. Custa-me muito mais ver a M. ir de férias ou ir com os avós.

Pronto, a C. já não. Não sei se a D. disse que nós temos duas moças pequenas?

E2: Sim

Pai 5: Pronto. A C. vai, pronto, é mais pacífico, embora…

E2: Com a M. sente receio que possa acontecer alguma coisa?

Pai 5: Não. A M., simplesmente o receio de eu estar ou não, não gosto que ela vá…

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E2: De ela precisar de si?

Pai 5: Não gosto que ela vá, ponto. (risos) É mesmo, não é se precisa ou não precisa porque

eu sei que ela está bem entregue e tudo bem. Mas custa-me ver a M. ir embora seja em que

circunstancia for, vá com a avó, vá com a tia, vá com quem for, ela dizer “adeus”, “adeus pai,

até amanhã” ou “adeus, até para a semana”. Pronto, não.

E2: Associa de alguma forma?

Pai 5: Não sei, só sei que me custa, não tem nexo de causalidade nisto mas…

E2: A sua esposa contava à pouco uma história de quando foi buscar a M. à escola no dia do

diagnóstico…

Pai 5: Hum hum

E2: E que a M. voltou atrás para se despedir dos colegas, e que deu um beijinho a cada um…

Pai 5: Não me lembro… não me lembro…

E2: Acha que esse “adeus” está associado?

Pai 5: Não, não porque eu nessa altura, é assim, o mundo nessa altura estava um bocado

zonzo, baço e portanto eu lembro-me de ir buscar a M. à escola, lembro-me de ir falar às

donas do colégio que a M. tinha leucemia, portanto nós tínhamos que voltar para o Hospital,

mas não me lembro de mais nada, sinceramente…

E2: Não se lembra de mais nada. Houve ali um choque?

Pai 5: Não, quer dizer, foi assim uma coisa muito… Lembro-me de ela estar em casa deitada,

lembro-me de dizer uns dias antes que ela estava mal-encarada – “estás mal-encarada

mulher”, “coisa, come”. Cenas tremendas de faca e alguidar, de ela não querer comer, e

ameaçamo-la de pancada e de castigos e ela não comia pura e simplesmente. Mas depois

também discutíamos, descansávamos isto por causa da anorexia do crescimento, a M. tinha

anorexia do crescimento e portanto não comia mas era pacífico, portanto nós conseguíamos

sempre desmontar qualquer tipo de…

E2: Claro. Antes do diagnóstico houve ali algum tempo de preocupação do que é que se

passaria com a M.?!

Pai 5: Sim, claramente.

E2: E receber, o receber o diagnóstico foi de alguma forma “alívio” do que é que se passava

para a M. estra assim? Ou não? Sente que não?

Pai 5: Não. Eu gosto de ter as coisas explicadas por definição, gosto de perceber exatamente,

mas não, isto foi um processo ao contrário, então – se a M. tem leucemia então agora está

explicado porque é que ela não comia, porque é que tinha as nódoas negras, porque é que

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estava amarela, estava cansada, tinha febre, pedia colo, sentia-se frustrada. Mas não foi um

alívio, foi uma justificação dos comportamentos dela no mês anterior.

E2: Claro, claro.

Pai 5: E evidentemente, numa primeira, como lhe disse, numa primeira abordagem, um

primeiro impacto que foi assim um choque, depois à medida que se foi percebendo que

efetivamente a leucemia da M. era daquelas fáceis entre aspas, “então pronto, está bem, então

vamos tratar a M.”

E2: E saber que das leucemias era a melhor?

Pai 5: Ah isso foi um alívio, isso foi claramente um alívio, foi uma coisa de tipo mesmo bom.

Então se era para escolher uma leucemia era esta. Se me apontassem uma opção de: “tem aqui

4 leucemias ou 5 ou 6, escolha uma”, pronto escolhia aquela”. Pronto, isso foi um alívio

claramente. Mas não faz muito sentido para ao público em geral a gente dizer isto, mas acho

que em contexto do IPO qualquer pessoa percebe o que é que um pai, o que é que o pai diz:

“escolhe isto”

E2: Claro, claro. E fé? Tinha fé? É religioso? Sentia…

Pai 5: Na religião… sou, sou religioso mas a religião não se meteu nisto

E2: Não se meteu aqui.

Pai 5: De todo, de todo. Não há aquela culpa de Deus – “porque é que Deus fez isto à minha

filha?”. Não, de todo, de todo.

E2: Mas portanto, não falava com Deus, não…?

Pai 5: Não.

E2: Não interferia aqui?

Pai 5: Não, a religião não era um assunto…

E2: Não era um assunto que entrasse. Muito bem. E em termos do que fez para lidar com a

situação, as estratégias que utilizou… Lembra-se de como é que fazia quando vinha visitar a

M.? Portanto, eu sei que esteve muito, bastante tempo aqui, lembra-se do que é que fazia para

lidar com o dia-a-dia?

Pai 5: Basicamente cumpria, o 1º objetivo era cumprir o mais possível com as regras do… do

IPO…

E2: do IPO

Pai 5: …e as regras que o médico estabeleceu para a M., ou seja, as visitas, as assepsias, as

batas, aquelas macacadas todas, isso era fundamental. Era quase uma segunda natureza nessa

altura, foi adaptar o meu comportamento e o de quem vinha visitá-la e tudo isso às regras

deles, porque isso era…

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E2: Para proteger de certa forma a sua filha, não era?!

Pai 5: Claramente. Depois acho que a rotina de alguma forma, aquela história de puder, sei lá,

tomar o pequeno-almoço é às x horas, ir almoçar é primeiro é preciso ir buscar a senha, depois

é preciso ir almoçar, depois é preciso vir para cima, depois é receber as pessoas, depois é ficar

cá, depois dar-lhe o jantar, portanto, tudo isto, enquanto, em contexto de IPO mesmo aqui…

E2: Claro

Pai 5: Eu acho que isso é, a mim fez-me não pensar, foi o objetivo aqui era não pensar muito,

pelo menos num estádio inicial, e aqui o não pensar era gerir a coisa objetivo a objetivo,

portanto etapa a etapa. A etapa agora é ir buscar o penico porque a M. tem de fazer chichi e

tem de se avaliar o peso do penico

E2: Explique-me, porque é realmente importante, esse não pensar era um não pensar mas não

era no, ou seja, não era no que tínhamos que fazer porque nisso pensava…

Pai 5: Sim, era não pensar… eu no estádio inicial em que a gente não sabe muito bem como é

que isto vai correr, o não pensar é não… é não… não…

E2: Não desmontar?

Pai 5: … abstrair, a pensar a la long que isto é uma doença que pode correr mal e que... É

evidente que isto está sempre subjacente não é?! Existe sempre lá um pontinho de pensamento

que pensa isto

E2: Claro

Pai 5: Mas em termos objetivos, em termos racionais o objetivo é ocupar a mente a fazer que

é para não ter espaços mortos em que tenha que pensar. Se eu tiver a fazer não tenho que

pensar e portanto é muito mais fácil…

E2: Gerir

Pai 5: Gerir a… pela ação, não pela racionalização.

E2: Hum hum. Muito bem. E portanto agora dando um salto para a fase atual, para a fase em

que estamos, de sobrevivência

Pai 5: Essa é mais difícil. Essa é bem mais difícil.

E2: Sente que a doença da sua filha está completamente controlada?

Pai 5: Claramente. Não se põe em questão. A M. está tratada, ponto. É evidente que vem

sempre um friozinho ao estômago cada vez que a gente vem fazer a análise de rotina,

obviamente, não é?! E eu acho que é impossível nós afastarmos completamente o conceito de

leucemia da M.. O que é que eu quero dizer com isto? Se a M. tem falta de apetite, pronto,

“porque é que tens falta de apetite?”

E2: Há sempre uma associação?

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Pai 5: Claramente. Claramente. É uma coisa que não se consegue, eu pelo menos não consigo

desassociar, não consigo mesmo.

E2: Hum hum

Pai 5: Portanto se a M. tem, tem uma dor, se a M. tem, está mal-encarada, se a M. não come,

se a M. tem febre, febre não, mas se não come, se está mal-encarada…

E2: Há ali um desassossego?

Pai 5: Há sempre, claramente, sempre um desassossego. Aliás posso, não sei se a D. lhe

referiu isto mas nós ao princípio tínhamos muito medo de deixar este saco fetal que é o IPO,

ou seja, nós uma vez fomos de férias, ainda a M. estava em tratamento e conseguimos, e tinha

possibilidade de fazer o tratamento lá em baixo no hospital de Faro, mas não, eu peguei na

M., levantei-me às 6h da manhã, meti a M. dentro do carro e vim fazer o tratamento cá a

cima. O Ipo é que pronto… E estar longe do IPO ao princípio era muito complicado porque

eles aqui tratavam tudo…

E2: E caso fosse preciso alguma coisa…

Pai 5: Era aqui.

E2: Queriam ter sempre as alas abertas para entrar, caso fosse necessário…

Pai 5: Claramente, claramente. E sempre tivemos, e sempre tivemos.

E2: E sempre tiveram, claro

Pai 5: Quanto a isso… Mas era, libertar-nos deste abraço protetor do IPO foi muito

complicado, porque sabíamos que aqui, independentemente do que ela tivesse, eles tratavam,

ponto. Mesmo que não fosse nada relacionado com leucemia.

E2: Claro

Pai 5: Durante o período em que ela é doente aqui, é doente aqui…

E2: Ou seja, não deixa de ser uma criança em desenvolvimento não é?!

Pai 5: Exatamente.

E2: Além de estar doente é uma criança em desenvolvimento.

Pai 5: Exatamente. E portanto eles tratam de tudo. Espirra trata aqui, dói-lhe o pé trata aqui,

encravou uma unha trata aqui, porque é uma doente do IPO e portanto… eles fazem um

tratamento transversal e isso para nós era uma mais valia não é?! Só de pensar que tínhamos

que ir para o hospital público, público não porque a gente não usa públicos mas ir para a Luz

ou ir para…

E2: Sim, sim

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Pai 5: E chegar lá e estar em contacto com a população em geral, então mas a miúda vai ficar

doente, está cheio de bichos, quer dizer, são os mesmos bichos que há aqui, mas pronto, os

bicharocos de lá são diferentes, são mais agressivos.

E2: Claro. E em termos de severidade? Se pensarmos na doença, acha que a doença da sua

filha é a mais severa do mundo? Acha que há doenças piores?

Pai 5: Claramente. Mas está-me a falar do quê? A nível oncológico ou doenças do senso…

E2: Qualquer doença, a nível de severidade

Pai 5: Claramente a doença oncológica é a mais severa de todas

E2: É a mais severa de todas

Pai 5: Indiscutivelmente. Agora existem, dentro da doença oncológica, existem umas mais

complicadas e outras menos. Existem ai coisas muito complicadas mesmo. E nós, não é por

curiosidade mórbida, é por formação profissional de bombeiro mas perguntávamos mesmo:

“Aquilo é o quê?” No sentido de: “Ah aquilo é não sei quê”. Já nem me lembro dos termos

porque é uma coisa que eu tenho tentado…

E2: Afastar?

Pai 5: Desligar. Sim. Claramente, a D. não muito mais com a associação de pais e heróis, e

com aquelas macacadas…

E2: Portanto nunca houve uma procura, ou seja na altura houve ainda um bocadinho de

procura de informação…

Pai 5: Sim, mas eu para este peditório já dei. Acabou. Está compartimentado não… o IPO

continua no meu coração enquanto unidade e recomendo a toda a gente que tem doença

oncológica que venha ao IPO porque melhor não pode estar, até crianças, agora, acabou. Teve

o seu princípio, o seu meio e o seu fim. Tudo tem o seu princípio e o seu fim, menos a

salsicha que tem dois. E portanto… não há… Não há mais… Se a Mariana biscoito morreu a

semana passada, eu só sei porque a D. me disse, porque seguiu essa situação.

E2: Para si está encerrado?

Pai 5: De todo, de todo, está encerrado e sempre procurei, eventualmente também tem a ver

com o facto, com a gestão do que se faz da emergência pré-hospitalar e das ambulâncias, nós

não podemos fazer o follow up do doente depois do entregarmos no hospital, não é?! Acabou

ali, entregou às portas do hospital - “Meus amigos assine aqui em como o doente é vosso,

adeus”. E esta situação é a mesma, sofrer por empatia ou por analogia ou por experiências que

cá estão, não. De todo. Eu já sofri a minha quota-parte. Sofri com os que cá estavam enquanto

nós cá estivemos, é verdade, não lhes fechámos o nosso mundo e evidentemente…

E2: Claro. Criam-se relações…

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Pai 5: Exatamente, criaram-se relações com os pais que cá estavam na altura, evidentemente

que se criaram, mas a nossa geração nasceu, a nossa geração IPO nasceu e morreu.

E2: Hum hum. E essa geração foi protetora? Apoiaram-se entre vocês?

Pai 5: Claramente, claramente. E sempre procuramos e existiram alguns pais, aliás, dos

meninos, da geração da M. de IPO, sobreviveram 2.

E2: Hum hum

Pai 5: E portanto, e nós apoiámos os pais das crianças que não sobreviveram. Evidentemente,

enquanto cá estávamos, é evidente que não podíamos fazer outra coisa. Até porque se cria um

grupo, o grupo criou-se…

E2: Ver essas crianças a morrer, não é?! Essas da geração da M., foi algo que dificultou?

Pai 5: Não. Não porque repare, a Dr.ª Filomena é uma pessoa excecional e de alguma forma

ela cultiva na unidade a informação, a…

E2: Transferência?

Pai 5: A transferência não, mas a horizontalidade da informação, aliás se nós quisermos saber

ou se perguntarmos eles dizem.

E2: Hum hum

Pai 5: Se perguntarmos eles dizem, se não perguntarmos eles não dizem, mas se

perguntarmos de mais eles também não dizem. Portanto, a informação é dada na base, até ao

escalão que é necessário acontecer. E portanto sempre soubemos que havia uma menina que

tinha uma leucemia que só dá aos velhos com 70 anos e que ela teve azar e que tinha aquilo,

que outra tinha uma leucemia que o tratamento que fazia é como se fosse água, e portanto nós

sempre fomos, sempre tivemos muito desenganados. Sempre soubemos que os tratamentos de

algumas crianças podiam não resultar. E portanto, isso de alguma forma, nós já sabíamos que

A ou B ou C ou D tinha um índice de sucesso baixo ou muito baixo. Portanto, pronto, morre-

se. Basicamente.

E2: E em termos de causas? Atribuía alguma causa à doença… à leucemia?

Pai 5: Não. Defeito de fabrico. A explicação que nos deram é que a determinada altura o

processo de criação de sangue da medula óssea sofre uma alteração e em vez de produzir

sangue bom produz porcaria. Pronto, está bem.

E2: E neste momento quais é que são as suas preocupações?

Pai 5: Dinheiro (risos)

E2: Com a M.?

Pai 5: Sem ser isso. Ah com a M.!

E2: Com a M., com a doença…

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Pai 5: A minha preocupação com a M., a minha preocupação grande com a M. é a autoestima

dela, e a imagem que ela tem dela mesma e a imagem que transmite aos outros e aquilo que os

outros respondem a ela, ou seja, a M., fruto do tratamento ficou obesa, ponto. E isso é uma

coisa que eu tenho muita dificuldade em lidar. Por mim a M. passava fome durante 1 mês.

E2: Uma consequência da doença?

Pai 5: Claramente. A M. já não era pequenina, ela nunca foi uma criança pequena nem nunca

foi uma criança magra, mas não era uma criança que a gente dissesse assim: “é gorduchinha

pronto”. Mas a M. ficou mais gorda claramente mais gorda. Eu por mim, se pudesse, ela

deixava de comer durante 1 mês para ver se aquilo reduzia. Não pode. Está a ver o que é

que?... E isso afeta-me. Afeta-me não a mim… a imagem que a M. passa…

E2: Por afetar a ela, afeta a si

Pai 5: Exatamente, claramente. A M. sofre de algumas agressões na escola, agressões…

E2: verbais

Pai 5: verbais na escola. Chamam-lhe gorda e “Não corres” e isso a mim custa-me, a mim

custa-me muito. E custa-me particularmente se essas agressões alteram a autoimagem e a…

da M.. Alteram a, baixam a autoestima

E2: Claro

Pai 5: Isso é que em tira do sério, é ela ser agredida e diminuir a autoestima fruto da imagem

dela, faz-me muita confusão, e portanto é isso que nós neste momento estamos a tentar gerir.

Chamarem a M. de gorda… eu sei que ela não é magrinha, eu sei que não é… mas a…

E2: Sente que é uma crueldade que podia ser evitada?

Pai 5: A gestão que é feita de um adulto que já tem os mecanismos de gestão desse tipo de

agressão, teoricamente tratados, não é a mesma que uma criança faz de uma agressão desse

tipo

E2: Claro. Ainda para mais porque a M. caminha agora para a adolescência, não é?! Apesar

de ter 8 anos…

Pai 5: Sim, é uma pré-adolescente, sim claramente. Já lhe faz impressão que o pai lhe fale nas

mamas

E2: Aliada à maturidade que ela já tem, inerente ao tratamento dela não é?!

Pai 5: Sim, a M. gere… está a anos-luz dos colegas dela em termos de gestão de coisas

E2: Claro

Pai 5: Mas isso não, que ela é pequenina, ela é grande fisicamente, mas ela é pequenininha.

Tem 8 anos, portanto, os 8 anos e tem o desenvolvimento dos mecanismos de… coping?

E2: Coping

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Pai 5: Isso. À escala dela não é?! Não é mais do que isso…

E2: Se calhar ela ficou muito madura nuns aspetos mas faltou-lhe brincar?

Pai 5: Claramente, claramente, claramente. Aliás nos equacionamos a possibilidade à

posteriori, portanto já tarde de mais de ela não ser integrada no 1º ano na escola precisamente

para lhe dar mais um ano, o ano que ela não teve para brincar…

E2: Para brincar…

Pai 5: Pronto, depois sobrepôs-se a racionalidade e ela foi mesmo para a escola. Mas sim,

houve ali um ano, talvez já não, mas houve ali um ano em que ela tinha muita necessidade de

brincar e de gerir… Depois por outro lado também lhe tirou o desconfiometro, o IPO tirou-lhe

o desconfiometro, que é uma coisa que me faz muita confusão. Ou seja, para a M. não há

pessoas más, são todas boas, são todas amigas, abraça-se a todas independentemente de quem

seja e isso é fruto daqui. O que é bom aqui, mas no mundo não.

E2: Uma consequência da hospitalização?

Pai 5: Claramente, claramente. E dos bombeiros. Bombeiros… Ela volta e meia vai ao quartel

obviamente e enquanto, eu ser o comandante do corpo de bombeiros faz com que ela veja

toda a gente de baixo das minhas orelhas e simultaneamente vê-los como um grupo, mais um

grupo como é o grupo daqui do…

E2: Estão todos para praticar o bem?

Pai 5: Exatamente e portanto isto é tudo gente boa

INTERRUPÇÃO

E2: Estava-me a dizer então…

Pai 5: A falta de, de… a dificuldade que ela tem, porque sempre foi protegida obviamente

E2: Claro

Pai 5: A dificuldade que ela tem de desconfiar das pessoas

E2: Hum hum

Pai 5: E portanto às vezes até me zango com ela porque tenho que lhe explicar: “M. tu não

conheces esta pessoa de lado nenhum, ela não é tua amiga, não…”, “Ah mas…”, “Não, tu não

a conheces, só falas com quem eu mandar, dentro do quartel quem manda sou eu”

E2: Mais uma consequência…

Pai 5: Claramente

E2: E houve outras? Positivas ou negativas…

Pai 5: Eu acho que a M. conseguiu, positivas, apesar de tudo a M. conseguiu gerir bem a sua

autoestima, claramente. Embora não tão bem quanto tinha antes e houve ali um momento

claramente complicado quando ela saiu do IPO, quando ela perdeu também a capa ou a asa

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protetora do IPO em que deixou de ser tão acarinhada ou tão mimada, em que ela disse: “Pois

eu não presto para nada, sou uma desgraçada, preferia estar doente”. Não sei se a D. lhe

referiu isso.

E2: Sim

Pai 5: Pronto, isso ai foi uma altura em que ela… acho que foi o desmame se quisermos

E2: Claro

Pai 5: E portanto valeu o que valeu a sua, outra colega…

E2: A Dr.ª Maria de Jesus?

Pai 5: Isso! Consultou-a 2 ou 3 vezes mas depois não achou que fosse necessário muito mais

acompanhamento porque efetivamente estava a gerir, estava a ultrapassar aquela situação e

pronto.

E2: E está a crescer não é?

Pai 5: Esta, está, está. (risos) Está a crescer.

E2: E para si? Sente que a doença teve consequências?

Pai 5: Para mim teve claramente. Ninguém consegue passar (?40:31) por uma situação destas.

Eu ao princípio, quando a M. acabou o tratamento, foi ai que eu me fui a baixo entre aspas, ou

seja, foi ai que eu tive dificuldade em gerir a minha vida quotidiana, porque já não havia

quotidiano tal como era até ao final do tratamento e portanto este (?40:51) da situação fez

com que eu tivesse alguma dificuldade em lidar com as coisas genericamente, não consigo

dizer exatamente o quê mas eu passei pior, eu tive mais dificuldades a nível psicológico após

o tratamento do que durante o tratamento porque durante o tratamento eu agarrava-me…

E2: Durante o tratamento não há tempo para desmontar se calhar?

Pai 5: Exatamente, exatamente. E depois do tratamento não está desmontado mas também

não está gerido…

E2: Porque durante o tratamento, era aquilo que falávamos há pouco não é?! Queremos ser

objetivos, vamos ser racionais, é preciso isto,

Pai 5: Exatamente, exatamente.

E2: é preciso isto e isto, não é?

Pai 5: E pronto e faz-se

E2: E depois quando as coisas acabam, se calhar já damos mais espaço

Pai 5: Já dá tempo, exatamente. E portanto, eu acho que isso ainda não está tratado, não está,

não estão as peças todas nas gavetas

E2: Mas sente que as peças vão desmontando?

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Pai 5: Não. Sinceramente sinto que elas não estão no sítio, não estão arrumadas mas também

não estão desorganizadas, mas podiam estar mais bem organizadas mas não estão, não sei

muito bem porquê, se calhar porque… Porque repare, quando a M. acabou o tratamento a D.

foi à médica dela e chorou e gritou e é uma desgraça, não sei quê, lá está… Aquele momento

do post traumatic stress disorder não é?

E2: Hum hum

Pai 5: Eu também fui à mesma médica e disse exatamente a mesma coisa mas não chorei.

“Pois tem de aguentar porque isto a vida é uma chatice, pois, temos pena, até a próxima,

muito obrigada”. E fiquei assim: “Então mas afinal de contas que raio é isto? Então a D. vem

cá, conta a mesma coisa que eu conto”. Se calhar, digo eu, não sei o que la contou mas eu

contei que estava a passar algumas dificuldades de gerir a minha vida normal e chorava muito

e via muita coisa e as coisas faziam muita impressão. Disse: “Pois realmente é uma chatice”.

Pensei: “Porra, devia ter chorado, se eu tivesse chorado se calhar a mulher dava-me qualquer

coisa”.

E2: Sente que na altura, portanto, na altura vocês não tiveram apoio psicológico, não é?

Pai 5: Não.

E2: Sente que achas que deveriam ter tido? Teve necessidade de ter tido apoio psicológico?

Pai 5: Não sei. Não consigo perceber se tive necessidade ou não. O que eu sei é que é

necessário, e estou a falar ao meu escalão, mas eu acho que é muito necessário que os pais

que chegam aqui, ao nível daquilo que quer ou que vocês, o objetivo, eu acho que é muito

necessário que os pais sejam acompanhados logo, no ato. E depois podem-se identificar se são

pais que necessitam de um acompanhamento mais aprofundado, menos aprofundado, mas

precisam logo, na hora, no momento em que chegam, mesmo que seja só para chorarem no

ombro do psicólogo ou psicóloga…

E2: Ou seja, ter o apoio e depois decidir se continuam o apoio?

Pai 5: Exatamente até porque profissionalmente vocês saberão melhor de qualquer outra

pessoa se aquele casal, vamos fazer de conta que é uma família normal, se aquele casal

precisa de apoio, mas precisa de lá estar, eles precisam de alguém com quem chorar, precisam

de alguém com quem desabafar logo. Se tiverem com outras pessoas tudo bem, se disserem

que não precisam, tudo bem também. Precisa de perceber, pelo menos de estar lá

E2: Disponibilizar

Pai 5: Exatamente. Depois logo se vê, agora estar lá é importante. Eu acho que isso era uma

regra… era…

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E2: Ou seja, sentiu falta de informação de que havia apoio psicológico? Ou de lhe dizerem

assim: “Olhe…”

Pai 5: Olhe eu vou-lhe ser sincero, eu não me lembro se naquele dia me disseram que havia

ou não havia psicólogos disponíveis…

E2: E à medida que foi descobrindo…

Pai 5: Mas eu acho que não era preciso dizerem, eu acho que deveria estar lá o psicólogo.

E2: Acha que o psicólogo devia estar no momento do diagnóstico

Pai 5: Claramente. Claramente. No momento. Porque eu posso me agarrar à minha mulher e

chorar com ela…

E2: Mas o apoio em crise digamos?

Pai 5: Se calhar, percebendo, a nível profissional, técnico, quais são, a reação que os pais

estão a ter, o tipo de reação, ou o tipo de reação que aquela reação naquele momento pode

levar a ter, é preciso ser visto profissionalmente e portanto é preciso que alguém lhes diga:

“Olha aqueles vão descambar daqui a 10 minutos” ou “não vão descambar, portanto, dá para

gerir aquilo” ou “aqueles precisam de alguém que fale com eles mas não sou eu”. Portanto, ter

uma opinião profissional, um diagnóstico profissional ao escalão de psicologia no local,

claramente. E depois, não ser uma… ser, eu acho que aquilo que eu sinto é a falta de

acompanhamento que sinto, peço desculpa, aquilo que senti foi a falta de acompanhamento

das coisas, portanto a M. agora já tem um cateter, já tem um acesso, agora vai subir ao 7º

andar, “então e para quê?”, “a M. vai subir ao 7º andar para ser internada”

E2: A explicação não é?

Pai 5: “Sim, ok, pronto, então e vai como?”, “Ah a auxiliar vai com ela, de cadeira de rodas

até lá acima”. Pronto, está bem, pronto, se calhar não é preciso mais que isto mas não sei,

acho que falta qualquer coisa…

E2: A explicação concreta para…

Pai 5: “O que é que eu vou fazer para cima? Vai ser internada?”, “Vai, vai ser internada”. “E

porquê? Tem um acesso porquê?” E quando chegar lá acima vai ter um quarto, eles vão-lhe

dar um quarto, vão-lhe dar uma cadeira, vão-lhe dar whatever… Mas uma coisa mais apoiada,

uma informação mais aprofundada. Senti-me assim muito… E pronto, lá está, senti que

podiam dar mais informação e não deram, mas isso é a minha opinião pessoal.

E2: E há pouco estávamos a falar das consequências…

Pai 5: Certo

E2: Voltando um bocadinho atrás

Pai 5: Claro

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E2: Pronto, já me falou que teve algumas consequências para si, algumas consequências para

a M.…

Pai 5: E tem…

E2: E tem.

Pai 5: E tem.

E2: E tem, não é?! Apesar de ter, sente como um processo de adaptação, sente que ou que

está a haver ainda um processo de adaptação?

Pai 5: Sim

E2: à sobrevivência…

Pai 5: Sim, sim. Da minha parte.

E2: Da sua parte…

Pai 5: Sim, está a haver um processo ou uma tentativa do processo de adaptação, sim,

claramente

E2: E da parte da sua família e da M.? Também?

Pai 5: Acho que a M. não é assim muito profunda relativamente a isso. Ela usa isso nas

alturas mais divertidas para ela, enquanto criança ou enquanto gestora de emoções, não é?!

Não sei se a D. contou que ela virou-se para uma empregada nossa… Não sei se ela contou

essa parte?!

E2: Não, não.

Pai 5: Nós tínhamos uma, no tempo em que tínhamos mais dinheiro, lá está, uma das

preocupações. Tínhamos uma senhora de limpeza lá em casa…

E2: Sim

Pai 5: E nós uma vez fomos sair, a M. já estava, estava nos tratamentos mas não ia à escola…

e então ela vira-se para a senhor e diz: “Olha, vem brincar comigo”. E a senhora disse: “Ah

não posso tenho muita coisa para fazer”. A M. tinha 4 anos nesta altura. “Tenho muita coisa

para fazer e depois vêm os teus pais e não tenho nada feito”, “Ah não, é que sabes eu tenho

leucemia e vou morrer”, se não brincares comigo vais ficar com uma culpa o resto da tua vida.

E portanto, a senhora largou tudo e foi brincar com ela.

E2: A fase de…

Pai 5: Estamos a falar de uma criança com 4 anos, esta chantagem emocional…

E2: A fase de manipulação que a sua esposa me contou, sim…

Pai 5: Mas é preciso ter, ter… Eu acho que é preciso ter alguma, alguma capacidade de gestão

da doença e das coisas para conseguir argumentar desta maneira. Mas eu acho que a M. hoje

em dia, eu acho que a nossa gestão da doença da M. hoje e a gestão da doença da M. pela M.

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hoje, a informação é dada na base da necessidade, ou seja, à medida que ela vai tendo mais

capacidade para absorver o conhecimento, nós vamos-lhe dando mais informação.

E2: À medida que ela pergunta, vai sendo fornecida, à medida das necessidades.

Pai 5: E a informação é tanto mais aprofundada quanto aquilo que ela consegue absorver.

E2: Claro

Pai 5: Ao princípio tinha uma doença, ponto. A doença era má, ela podia morrer da doença,

sim, claramente. Mas a morte para uma criança de 4 anos não é a mesma coisa que a morte

para um adulto.

E2: Claro

Pai 5: “Sim, ok vou morrer”. Uma morte é uma abstracção não é?! E aos poucos temos vindo

a dizer, é uma doença oncológica, tiveste leucemia, é uma doença do sangue e portanto, cada

vez mais a informação é mais técnica, é mais aprofundada, mas também, sinceramente, ela

também não faz tantas perguntas como isso e às vezes pergunta: “Então eu podia ter morrido

daquilo?”, “Podias M.”. Agora a morte já não é o mesmo conceito.

E2: Já não é o mesmo, claro. Há uma modificação do próprio conceito de morte, consoante o

estádio de desenvolvimento, claro que sim… E estava-me a falar da sua adaptação…

Pai 5: Sim, diga-me.

E2: Que ainda está em processo de adaptação…

Pai 5: Um processo lento…

E2: Um processo lento, claro. Essa adaptação é em termos emocionais?

Pai 5: É

E2: Só?

Pai 5: Só. Só. Quais são as outras opções? Emocionais…

E2: Portanto emocionais que tem a ver com o psicológico. Por exemplo, a nível profissional,

sente que houve, houve benefícios que não teve… na altura…

Pai 5: Em termos de quê?

E2: Portanto de se afastar mais do trabalho…

Pai 5: Sou funcionário público, aquilo é sempre igual. Não fui promovido mas também não

seria, portanto. Eu atingi o topo de carreira… nós na tributária somos promovidos por

conhecimento, não é por mérito e portanto eu atingi o topo da minha carreira há 5 ou 6 anos

atrás, enquanto não abrir concurso para a próxima etapa. Portanto, não… aquilo que a opinião

pública se queixa, não de todo…

E2: Hum hum. A nível conjugal também já vimos que não houve consequências, aliás se

houve foi uma maior coesão, uma maior união…

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Pai 5: Foi. E se quer que seja sincero, a mim faz-me muita confusão as famílias que se

destroem com a doença oncológica, porque eu não consigo conceber uma doença oncológica

num filho e a família desmembrar-se, ou seja, pais desmembrarem-se, ou seja não consigo.

Houve aqui várias situações em que a pessoa me diz: “eu não consigo lidar com isto, tenho de

me afastar”. Há ali qualquer coisa que não está bem. Uma pessoa não pode ter um filho que

tem uma doença oncológica e dizer: “eu não consigo lidar com isto, tenho de me ir embora”.

É o meu ponto de vista. Custa-me. Há qualquer coisa ali que não está certa, dentro da cabeça

daquele pai ou daquela mãe. Mas pronto, isso vocês desmontam.

E2: E só para terminar esta parte das consequências. Já vimos para a M.. Vê outras? Vê por

exemplo a nível de aprendizagem, a nível emocional…

Pai 5: Sim. A M. tem, ou não. Mas a M. não gere bem a matemática.

E2: Raciocínio-lógico?

Pai 5: Não. A M. tem um raciocínio-lógico, a M. não gere é bem a matemática, não é a

mesma coisa. Ou seja, os nexos de causalidade, os silogismos existem, mas não na

matemática, ok? Mas eu não sei se ela faz aquilo porque quer ou se faz aquilo porque não

consegue. Se é físico ou se é uma gestão da…

E2: Ou seja não me sabe dizer se é uma consequência dos tratamentos ou se é algo aprendido

pela M. para não ter de lidar com?

Pai 5: A M. tem uma forma de estar na vida que tem a ver com o facto de – se ela consegue

atingir e se existe um feedback positivo, esse feedback ajuda-a muito a progredir, ou seja com

feedback funciona bem, mas se o feedback é negativo, ela desiste, ela tira o pé…

E2: Baixa as expectativas não é?

Pai 5: Claramente. Ela em Português, a Estudo do Meio, ela a 1ª vez correu bem, a 2ª vez

correu bem, a 3ª vez correu bem, então: “eu sou muito boa nisto, isto vai correr sempre bem”.

E2: E desliga o motor

Pai 5: A retroalimentação funciona, desliga. A matemática correu mal a 1ª, correu mal a 2,

correu mal a 3ª – “Epa eu não percebo nada disto, sou uma miséria, sou uma desgraça, não

presto para nada”. E portanto, isso é uma coisa que temos que gerir com ela, que é o facto de a

fazer perceber que nalguns campos ela pode não ser tao boa, mas também não é assim tão

má…

E2: Claro

Pai 5: E também há momentos em que eu noto que a autoestima dela nalgumas áreas é baixa,

é baixa contrariamente ao que ela tinha antes. Eu posso dizer: “Oh M. tás muita feia”, “Vocês

é que estão muita feios, eu estou linda”, “Eu sou a pessoa mais bonita do mundo”.

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E2: E perguntava agora, falou-me há pouco da sua rede de suporte, os amigos que o

apoiaram… O que é que considera ser a sua rede de suporte hoje em dia? São os mesmos que

apoiaram na altura? São outros? Afastaram-se alguns? Como é que vê essa sua rede?

Pai 5: Em sede de doença da M.? Ou genericamente?

E2: Como consequência da doença, ou seja, se a sua…

Pai 5: É assim, ficou, basicamente, eu tenho alguma, tenho uma costela mais difícil e é assim,

as pessoas que me vieram ver aqui, vieram ver a M., estejam mais próximas, estejam mais

longe, são pessoas que eu prezo e que mantenho e cultivo a relação e que… e que valorizo. As

pessoas que durante 2 anos não me perguntaram nada se a minha filha, e eram pessoas que

tratavam comigo, não ligaram nenhuma à M., não perguntaram, nem sequer tiveram o

cuidado de cá vir, morreram, ponto.

E2: Hum hum

Pai 5: Agora, há umas com que me dou, há outras que não me dou. Há pessoas que a gente

conheceu aqui no IPO que, como já deve ter percebido, a gente toca, eu e a D. tocamos uma

montanha de instrumentos ao mesmo tempo e portanto a vida não permite contactos com as

pessoas quanto isso. Não é por falta de vontade, não é por afastamento deliberado…

E2: A própria gestão da vida…

Pai 5: Não dá, quer dizer… Entre ser bombeiro, trabalhar na autoridade tributária, ter duas

filhas, gerir isto tudo não, não dá tanto como isso. Sexta-feira, está a ver, já tive dois

telefonemas agora, um para gerir uma equipa para ir para a bola no Domingo e outro para ir

jantar fora. E isso foi só neste bocadinho.

E2: Exatamente

Pai 5: Mas damo-nos. A única coisa que eu cortei e que efetivamente não me vêem os dentes,

se me permite a expressão, foi as pessoas que não vieram cá ou que não se interessaram pela

M. enquanto ela esteve doente, ponto. Isso não lhes perdoo, é irredutível.

E2: Portanto os amigos dantes mantiveram-se?

Pai 5: Sim, e houve pessoas… mas repare, houve coisas extraordinárias para o bem e para o

mal. Houve pessoas que eu mal falava, com quem eu mal me dava, que mal me conheciam…

E2: Portanto houve outras que entraram também?

Pai 5: …e que vieram cá e que eu hoje, na sequência disso, ocupam…

E2: Um lugar importante

Pai 5: São pessoas, não é que sejam importantes, mas são pessoas…

E2: Que valoriza

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Pai 5: Que estão valorizadas, claramente. As que não vieram, que eram pessoas também

importantes, deixaram de o ser.

E2: Portanto houve umas que se mantiveram, umas que saíram e outras que entraram

Pai 5: E outras que entraram. Precisamente. Exatamente.

E2: Claro, claro. E portanto, se agora… Passando para outro ponto da questão. Imagine que

estão aqui uns pais sentados, que entraram ontem e que o filho foi diagnosticado ontem. O

que é que diria? O que é que achava importante dizer a estes pais?

Pai 5: Que o tratamento no IPO não é o fim do mundo. Uma criança que tem uma doença

oncológica, que vem para tratamento para o IPO não é o fim do mundo. O mundo não acaba

pelo simples facto de o filho ter uma doença oncológica. É outra fase, outro estádio da vida

deles, é um momento, uma fase da vida deles, só isso. Não é o fim do mundo. Não pensem

que vir para o IPO com um filho é o fim do mundo, porque não é. É claro, subjacente a isso

poderá ser, mas isso eu não digo, está a ver? O que eu digo é que não é o fim do mundo.

E2: Ou seja, acha que temos que manter a esperança?

Pai 5: Claramente, claramente. Eu acho que aqui só os médicos do IPO é que podem cortar a

esperança aos pais, e portanto até lá…

E2: Claro. Só a explicação científica é que pode cortar?

Pai 5: Eu acho que tem de ser um profissional na área da medicina que tem que dizer aos

pais: “Olha isto é uma coisa que o vosso filho, vamos acabar com os tratamentos porque

lamentavelmente não estão a fazer nada”. Ou que quer que seja que eles digam, da maneira

que disserem. Agora nunca seria eu, enquanto ilustre desconhecido daqueles pais que têm o

mundo a desabar à volta deles, que digo: “Olhe isto não é o fim do mundo, pode ser”. Agora o

que eles vão ouvir é “pode ser”, não vão ouvir “não é o fim do mundo”. Portanto aquilo que a

gente tem de dizer é assim: “Está no melhor sítio que podia estar para o tratamento do vosso

filho, ou da vossa filha, e não é claramente o fim do mundo. São novas rotinas, é uma nova

etapa, uma nova fase, que vocês vão ultrapassar, que vão passar, que vai ser difícil,

claramente difícil”.

E2: Diria: “confiem nos profissionais”?

Pai 5: Claramente, claramente, claramente. O IPO, qualquer pessoa que eu conheça que tem

uma doença oncológica, recomendo vivamente que venha para aqui, a qualquer escalão, é o

melhor sitio onde podia estar. Aliás, temos amigos nossos que já tiveram doença oncológica e

que hoje se arrependem de não ter feito o tratamento aqui.

E2: Vou-lhe perguntar aqui uma última questão. Já passando para outro tipo de questão.

Pensando na sua filha…

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Pai 5: Sim

E2: Consegue descrever-me a sua filha? A M.? Uma redação sobre a M..

Pai 5: A M., a M. é a M.. Aliás a descrição que toda a gente faz da M. é: “Há os outros

meninos e há a M.”. A M. é alegre, bem-disposta, inteligente, canta muito afinadinha, canta

muito bem, tem ritmo, interage muito bem com as pessoas, gosta de praticamente toda a

gente, é muito perdoadora, não tem má fé, não é vingativa, não… Isso é um defeito, que

conste!?

E2: Sim

Pai 5: Não ter má-fé é um defeito

E2: Sim, eu entendi há pouco que sim

Pai 5: Inteligente, sabe viver com uma maturidade para além daquilo que é suposto ter para a

idade dela…

E2: E o que é que tenta ensinar à M.?

Pai 5: O que é que eu tento ensinar à M.? Tudo! O mais possível. Tudo. Nós lá em casa, entra

o pai e a mãe, há muita coisa que a gente não saiba explicar à M. e portanto, qualquer coisa

que a M. pergunte é respondido. A D. às vezes queixa-se que as explicações que eu dou à M.

são demasiado técnicas, ou seja, devia ter keep it basics mas sim, tento explicar tudo, tudo,

tudo tudo – a específica das palavras, o que é que ela está a ver, como é que funciona o que

quer que seja. Ela pergunta e a gente explica, ponto. Poucas coisas não deixamos por explicar.

A M. já teve a conversa com a mãe de onde é que vêm os bebés e essas macacadas todas. Isso

está tudo…

E2: E tenta fornecer ao máximo a informação que ela pede, não é?!

Pai 5: Sim, sim, sempre, o máximo possível. Sempre que ela pede. Às vezes, pondo a mão na

consciência, acho que podia passar mais tempos com elas. Não com ela, mas com elas

enquanto família. E vou modificar, é um dos objetivos deste ano, é alterar a rotina ou a vida

para ter mais tempo com as filhas, porque o tempo que a gente passa sem elas não volta.

E2: Exato. Quer acompanhar de perto o crescimento delas enquanto elas ainda…?

Pai 5: Mais perto. Até para um dia entrar em casa e elas não dizerem: “quem és tu? O que

estás ai a fazer?” Não é que isso seja verdade mas podia estar mais perto.

E2: Voltando só aqui a um pontinho lá em cima, mesmo por último.

Pai 5: Sim! Diga!

E2: Sente que de alguma forma, a doença da sua filha, teve implicações para a C.? Para a sua

segunda filha?

Pai 5: Claramente, claramente, claramente.

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E2: Para a educação, para…?

Pai 5: Claramente, claramente. Eu sou um maçarico na segunda filha. Portanto, só s tem uma

segunda filha uma vez. Mas eu acho que a C. teve muito mais, desembrulhou-se muito mais

rápido do que seria suposto, por causa da M.. Ou seja, como nós tínhamos que ocupar tanto

do nosso tempo com a M., por razões óbvias não é?!

E2: Claro

Pai 5: Não é que tivéssemos menosprezado ou desleixado a C., mas ela própria encontrou os

mecanismos para se defender, para chegar aos objetivos que ela queria.

E2: Sim. Sente que ela é mais independente?

Pai 5: Muitíssimo mais. Incomparavelmente mais. É que não tem nada a ver. A M. ainda hoje

pede para ir à casa de banho limpar o rabo, tem 8 anos. A C. não quer ninguém dentro…

E2: A C. tem quantos anos?

Pai 5: 4. A C. não quer ninguém na casa de banho - “vai-te embora, sai que eu quero fazer

cocó”.

E2: Imaginemos que elas vão passar um fim-de-semana fora. É diferente ser a C., é diferente

ser a M.?

Pai 5: É, é, é, é claramente diferente. A C. não é tão, qual é a expressão?! Gregária?! Não

precisa tanto de pessoas.

E2: Sim, sim. É independente…

Pai 5: É mais independente. Ou seja, ela passa um fim-de-semana inteiro sentada em frente à

televisão, a ver a televisão, e não chateia ninguém…

E2: E vai à cozinha…

Pai 5: Vai à cozinha, abre o frigorífico, tira o que quer que seja, fecha o frigorífico, vai-se

embora outra vez. A M. já não, a M. também passa o fim-de-semana em frente à televisão, se

for caso disso, o que é errado, diga-se de passagem mas pronto, mais necessitada de apoio,

mais necessitada de…

E2: Precisa mais do miminho?

Pai 5: De alguém. Exatamente. A C. não, é muito mais, precisa menos de pessoas.

E2: Claro

Pai 5: Mas, mais uma vez lhe digo, isto é esquisito e é complicado dizer, mas eu sinto mais a

falta da M. em casa do que da C..

E2: Claro

Pai 5: Não há razão plausível para isso, quer dizer, sinto, faz-me confusão. A M. não estra em

casa custa-me mais. E ela está bem, mas há coisas que não ficam bem resolvidas, digo eu.

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E2: Muito obrigada pela sua atenção e colaboração.

Pai 5: Ora essa! Não tem de quê.

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CASAL 06 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – A. C.

E: Gostaria de voltar à 1º fase, e em relação a esse momento, a pergunta é, de que é que

se lembra?

Mãe 1: Já não é a 1º vez que falo nisso, e se calhar isto pode chocar quem me está a ouvir. Eu

quando soube do diagnóstico da minha filha, eu não posso dizer que fiquei contente, mas

fiquei… não fiquei com um sentimento negativo, porque até chegarmos ao diagnóstico havia

o desconhecido. Não se sabia o que ela tinha. Muitas vezes tinha ido ao Hospital Garcia da

Horta, ela andava a fazer análises a tudo e mais alguma coisa, enviavam o sangue,

inclusivamente, para o Instituto Ricardo Jorge. Tentaram fazer o despiste de vários vírus porque

inicialmente era uma virose, só que não havia a fonte dessa virose. Não conseguiam identificar.

E portanto fizeram N análises.

E: Foi quanto tempo?

Mãe 1: Um mês e tal. Sei exatamente o mês em que foi porque foi no mês em que se deu o 11

de Setembro. Ela já estava com febre portanto, só tinha febre, e portanto teve várias visitas ao

Hospital Garcia da Horta e era sempre “é uma virose” e portanto já havia para mim um certo

desconforto pelo desconhecido, e portanto quando o diagnóstico foi identificado, para mim foi

bom.

E: Pensou “portanto agora já sabemos contra o que temos que lutar”

Mãe 1: Exatamente. Agora sabemos o que é e portanto vamos lutar contra isto. Eu tenho algum

receio de dizer isto, mas é o meu sentimento.

E.: E essa sensação de alívio perdurou ou depois modificou-se?

Mãe 1: Não, não se modificou. Talvez pela minha maneira de ser. Eu encaro as coisas um

pouco pela parte positiva, é “ok, vamos arregaçar as mangas e vamos resolver isto”. Não estou

a pensar no pior. Estou sempre a ver a parte do “nós vamos conseguir” e eu acho que sempre

foi este o meu sentimento que me ajudou, de alguma maneira a levar isto para a frente. Até

porque foi uma fase um bocadinho complicada, sobretudo na recidiva, porque eu estive muito

tempo sozinha porque o meu marido estava fora. Mais de metade do tempo que ela teve que

fazer os tratamentos, ele estava em Moçambique, portanto não era propriamente ali em Londres

em que se mete no avião e 3h depois está cá, caso seja necessário. Mas mesmo assim não foi

um constrangimento muito grande portanto era assim e eu tinha que viver conforme a situação.

E nunca estive a pensar “ai se ele estivesse cá seria melhor”. Não. Ele não estava, era um facto.

Portanto eu tinha que viver com aquilo e só tinha era que pensar que era assim e que não era

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de outra maneira. Portanto, talvez por esta maneira de ver as coisas é que talvez me tenha

simplificado todo este processo. Todos estes anos e inclusivamente na recidiva que foi um

bocadinho doloroso quando se veio a verificar, até porque, eu sou de engenharia e estatística

para mim, eu vivo com ela e sabia que o diagnóstico da minha filha em termos da leucemia,

ora com uma leucemia linfoblastica aguda, tinha em termos de tratamento, tinha uma

probabilidade muito grande – era os 80%. Infelizmente ela veio a calhar nos 20%, em que teve

a recidiva. Portanto isso custou-me um bocado, mas pensei “como eu percebo um bocadinho

de estatística, ok, alguém tem que ficar nos 20%. Calhou a ela, pronto”. Foi um choque, mas

foi muito rápido a dar a volta e também porque eu conhecia as pessoas que trataram da A.C.

anteriormente e sabia que ela iria ser tratada da mesma maneira ou até ainda melhor, porque

aquele corpo clinico dos médicos, enfermeiros, até mesmo auxiliares, aquilo é quase como uma

família, e portanto eu sentia sempre muito apoio. Portanto, ok, eu tive que bater à porta da Dra.

Filomena quando a minha filha, no caso da recidiva apareceu com um gânglio inchado sem

febre, sem nada. Ela estava bem, mas eu comecei a ver aquilo assim e não gostei portanto que

telefonei à Dra. Filomena e nesse dia fez as analises e minutos depois, meia hora, uma hora

depois, ela chamou-se e disse-me “vamos ter outra vez esta situação”. Portanto foi assim um

impacto mas eu também já desconfiava que aquilo não seria muito normal e portanto eu já

estava a pensar que poderia ser esse o diagnostico. E foi. E foi arregaçar as mangas.

E: Falou-me de 4 coisas que a ajudaram a adaptar-se: a sua personalidade, ter a noção

de que estatisticamente havia essa possibilidade de as coisas se resolverem ou não se

resolverem e a ajuda que teve no IPO. Isto ajudou à adaptação?

Mãe 1: Sim, sim. Desde o início.

E: Consegue lembrar-se de algum momento em que tenha sido pior, ou seja,

emocionalmente, mais perturbador?

Mãe 1: Fiquei com a A.C. no internamento. Veio-se a verificar no 1º diagnóstico e que depois

não se verificou no 2º porque a A.C. foi a 1º doente com recidiva que fez tudo em ambulatório.

Ela não necessitou de ser internada na segunda vez, porque a Dra. F. tinha muita confiança em

mim, e portanto ela quis fazer essa experiência e a A.C. fez tudo em ambulatório. Íamos de

manhã, fazia tudo o aquilo que tinha que fazer, vínhamos a noite. É evidente que a Dra. F.

dizia, "qualquer alteração é vir imediatamente", e portanto não foi necessário internamento. Da

1º vez foi necessário. Não foi fácil, até porque, enquanto ela esteve internada e foi durante… 1

semana, 10 dias, eu nunca disse nada aos meus pais. Eu sou de Braga, os meus pais estão em

Braga e eu falava todos os dias com eles através do telemóvel, porque eu estava

permanentemente no IPO, acho que vim a casa duas vezes…

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E: Foi quanto tempo?

Mãe 1: Uma semana a 10 dez, foi o tempo em que ela esteve internada Eu acho que foi cerca

de uma semana… Não. Ela entrou numa quinta-feira e depois saiu no sábado seguinte, portanto

foi um bocadinho mais que uma semana. E eu nunca disse aos meus pais que ela estava doente,

inclusivamente, e o que ala tinha, e portanto eu só lhes disse quando estávamos aqui. Quando

já lhe tinha sido dado alta e quando já estávamos em casa… Portanto não foi fácil lidar com a

situação, mas eu decidi que era assim. Eu sou muito racional, é assim, é assim. Depois habituei-

me aquela estadia no hospital. Por outro lado percebi que a AC também se adaptou muito bem

à estadia no hospital e inclusivamente no dia em que a Dra. lhe deu alta, foi num sábado foi

perguntar à Ana “então e tu queres ir embora?” e ela disse “não”, e a Dra. F. até hoje não se

esqueceu, porque era uma menina que não queria ter alta.

E: Quer dizer que a AC também a ajudou na adaptação?

Mãe 1: Também. Exatamente. O facto de ela se ter adaptado, ter gostado, de facto aquilo

também esta muito bem adaptado para as crianças, e tem a escolinha e tem aquelas salas e

depois tem as pessoas que interagem com elas e brincam com elas, portanto todo esse ambiente

e a maneira como a AC se integrou e esteve lá, ajudou-me perfeitamente. Portanto ela estava

bem, eu estava bem. Se ela não estivesse bem, eu se calhar não estava tão bem.

E: E como é que acha que reagiu o resto da sua família? O seu marido, o seu filho? Houve

algumas alterações para a sua família, nessa altura, ou não?

Mãe 1: Não, não houve muitas alterações porque o meu filho, é mas velho, tem mais três anos

que a AC e estava na escola e o que aconteceu foi que ele continuou a escola como se nada

tivesse acontecido, exceto o facto de em vez de ser eu a ir busca-lo eram os avós e por vezes

ele ficava em casa dos avós que eram ali na proximidade da escola. E portanto ele muitas vezes

ficava em casa da avó porque dava mais jeito. Mas poucas vezes, eu tentava sempre que ele

estivesse no meio dele até porque depois a AC rapidamente retomou a escola. Apesar de não

ter sido fácil, porque os coleguinhas eram um bocadinho maus para ela, devido a ela não ter

cabelo, apesar de levar os chapéus, os lenços – chegaram inclusivamente a chamar-lhe careca,

mas pronto, não foi só a ela com toda a certeza.

E: Estava a dizer que não contou aos seus pais...

Mãe 1: Para não os preocupar. Eu tenho muito esta maneira de ser. Para não preocupar os

outros eu tento não dizer nada e fica sempre tudo cá dentro. Quando as coisas já podem ser

ditas, na minha maneira de ver as coisas, isto é, já não estão tão na penumbra, ou porque existe

um diagnóstico, ou porque já estão tratadas as coisas principais e depois é só manutenção mais

ou menos, foi o caso da AC. A parte do internamento, eu achei, pelo facto dos meus pais

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estarem a 400km, e o facto de não estarem próximos também é um fator importante, eu não

lhes disse nada por causa disso porque eu sei que eles ficavam muito aflitos, eles se calhar o

que queriam era vê-la. Não era fácil porque ela não tinha visitas, portanto eu achei que andarem

eles a fazer 400km para tentar olhar só para ela para ver como é que ela estava, para ficarem

mais descansados, porque mesmo eu dizendo que ela estava bem, eu não sei o que poderia

passar na cabeça deles e portanto foi um pouco no sentido de os proteger.

E: Também diminuiu a sua rede de apoio ou não? Nessa altura qual foi a sua rede de

apoio? Tiveram ou não tiveram?

Mãe 1: A rede de apoio era basicamente os meus sogros, porque em termos familiares não

temos mais ninguém. E foi suficiente porque … eu, felizmente, tenho uma profissão que me

dá flexibilidade em termos de horário, eu tenho é que fazer o trabalho, independentemente de

ser de manha, à tarde ou durante a noite, e muitas vezes o fiz durante a noite e eu estava a fazer

o doutoramento na altura, portanto o doutoramento de facto, arrastou-se um bocadinho, não foi

entregue quando deveria ter sido – tive que pedir uma prorrogação, mas as coisas fizeram-se e

as coisas acabar por se resolver. Portanto eu também tive essa facilidade em ir sempre com a

AC. Nunca tive necessidade de pedir a alguém para ir com a AC. Eu na faculdade também me

faziam o horário de maneira a não ter aulas à sexta-feira porque a AC fazia os tratamentos

sempre à sexta-feira, porque eram semanais, portanto eu tive de alguma maneira alguma ajuda

também, até mesmo em termos da faculdade, do local onde eu trabalhava e trabalho. E nunca,

nessa altura, pelo fato de ter esta facilidade também não me apoiava no meu marido, porque

ele não tinha essa facilidade e portanto eu arranjei sempre maneira de ir com ela, vir com ela...

Contactava os meus sogros caso os tratamentos se atrasassem e haviam alguns tratamentos que

as vezes se atrasavam e portanto eu não conseguia ir buscar o meu filho no colégio. Ligava aos

meus sogros. Foram sempre incansáveis. Iam buscá-lo, levavam para casa e depois eu passava

em casa deles.

E: Aí conseguia, e teve que viver algumas situações em que estava independente do seu

marido. Mas acha que o diagnóstico teve alguma consequência na vossa vida, em termos

conjugais, não só familiares? Considera que o cancro vos modificou de alguma maneira?

Mãe 1: Não, acho que não. Acho que cada um de nós continuou a ser o que era, ou talvez nos

tivéssemos conhecido melhor, em termos de “eu comigo própria” e “ele com ele próprio” e se

calhar entre os dois. Nós nunca falámos muito, eu acho que nunca falámos sobre a situação da

AC. Portanto cada um viveu o problema e ele nunca referiu, ou raramente referiu os seus

receios e as suas tristezas e eu também nunca fiz. Eu nunca o fiz, sei que era para tentar para

que ela no ficasse ainda mais perturbado triste do que estava. Foi também numa tentativa de

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proteger. Portanto, era “eu fico com tudo, eu consegui, eu sou forte”. Eu acho que consigo fazer

tudo. E as vezes não é bem verdade, mas quando eu estou nessas situações eu até consigo.

Depois mais tarde, venho-me um bocadinho abaixo. Mas também é uma questão de uns dias,

e as coisas passam, mas na altura em que é preciso eu tenho toda a força (...).

E: E acha que essa maneira como lidaram com a situação ajudou ou permitiu que vocês

estivessem juntos? Nós temos na literatura uma percentagem muito elevada de casais que

se divorciam... Vocês estão juntos (...) Acha que essa maneira vos protegeu, houve outras

coisas que vos protegeram? Como foi possível permanecerem juntos?

Mãe 1: Eu diria que nunca senti que este problema tivesse contribuído negativamente para a

relação. Nunca senti. Com certeza influenciou, acho que tudo influencia tudo. Mas não consigo

claramente, racionalmente, identificar este problema, este fator, como perturbador da relação.

E: Nem exaustão, nem separação física?

Mãe 1: Ele quando estava lá em Moçambique, não havia toque, mas havia comunicação.

Através do Skype, todos os dias nós falávamos e víamo-nos. Não era só falar, nós víamo-nos.

Muitas vezes nem estávamos a fazer nada. O Skype estava ligado. Até porque o António

entretanto nasceu quando ele tinha 15 dias. Que nasceu em consequência do problema da AC.

Isto é, a decisão de termos aquele terceiro filho teve a ver com o facto de, quando a AC

recidivou ela não tinha dador compatível. A Dra. F. pediu para fazerem a pesquisa nas várias

bases de dados, não só em Portugal, também mesmo a nível de outros, mas ela não tinha dador

compatível. O irmão não era compatível, portanto nós depois fizemos também testes e o irmão

não era. E eu ia fazer 40 anos. Portanto acabei de fazer 50. (...). E no dia 3 de Fevereiro perante

a notícia da Dra. F. de que não havia dador compatível, eu e o meu marido decidimos que íamos

ter um terceiro filho, mas decidimos não era só para percebermos se ele era ou não compatível.

Até porque ele não é. Ele é exatamente compatível com o 1º. Mas tudo bem, foi ótima aquela

decisão, veio por bem. Portanto nessa fase em que ele estava fora, o filho tinha 15 dias. Quando

ele partiu, portanto ele nasceu em Janeiro e ele foi no final de Janeiro para Moçambique. Para

mais ele não queria que nós ficássemos aqui porque achava que ficávamos pouco protegidas,

que era uma zona de alguns assaltos. Por outro lado nós queríamos fazer obras nesta casa e já

tínhamos passado em fazer obras e portanto eu mudei de casa para Almada, perto da escola dos

miúdos, para um apartamento da família e esta casa começou com obras. Portanto eu para alem

de ter isto tudo o resto.

E: Não acha que isso ás tanto ajudou?

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Mãe 1: Ajudou. Eu estava completamente ocupada da minha cabeça. Portanto eu estava em

licença de parto, o que foi bom. Tinha o pequenito e depois tinha outras coisas, para além da

situação da AC em que ia com ela ao IPO, tinha aqui a casa...

E: E ela não precisou de dador ou conseguiu encontrar-se dador?

Mãe 1: Entretanto resolveu a situação com a quimioterapia. Não foi necessário o transplante

não era obrigatório. Quando a Dra. F. fez o pedido para ver se havia dador compatível era na

eventualidade de ser necessário, não porque fosse naquele momento necessário. E portanto não

foi necessário...

E: Está a dizer-me que em termos de vida conjugal, considera que a doença, ou não

considera a doença como uma fator possa ter perturbado essa vivência? E acha que houve

alguns momentos nesta historia toda em que tenha havido alguma situação que possa ter

feito diminuir a qualidade da vossa vida devido aquilo que se passava com a AC?

Mãe 1: De forma alguma! Não! Isso aí eu tenho clara noção. Agora em relação à 1º não lhe

consigo dizer racionalmente “ok, influenciou a relação”. Eu acho que deve ter influenciado

mas eu não penso muito. Não. “Se isto não tivesse acontecido, podia estar melhor”. Não. Se

calhar até podia estar pior. Não faço esse tipo de julgamento sobre coisas que não são objetivas,

não são reais. Eventualmente também pode ajudar.

E: E em termos de, indo para o presente, como é que vive a doença? Aquilo que se passou

com a AC?

Mãe 1: (…) Nesta altura eu não penso de todo que a AC possa vir a ter uma recidiva ou possa

voltar a ter a doença. Não penso, quer dizer, esta fora de questão. Para mim ela está curada.

Mas também penso assim “Se houver algum problema, se voltar outra vez, arregaçamos as

mangas e vamos lá”. Agora não tenho é que pensar nessa possibilidade. Não posso. Não vale a

pena. No me traz nenhuma gratificação, pelo contrario. Está curada, está resolvido. Aquilo foi

uma página que se virou e agora vamos pensar para a frente

E: E consequências que possa ter tido, que a doença possa ter tido nos seus filhos?

Mãe 1: Em relação há minha filha, ela tem 21 anos, para a idade que tem, eu acho que ela é

infantil. Eu diria que se calhar tem para aí uns 16/17 e já com muito esforço. A maneira de

estar dela, de ser dela, está mais para aí, do que para os 21 anos. Para além de estar na faculdade

e de ter mudado de curso, já é o terceiro, mas eu acho que ainda é um bocado infantil. Ainda

não amadureceu. Pode ter amadurecido nalguns aspetos mas noutros ainda não. Pode ser

também uma proteção dela. E às vezes penso que, eventualmente a doença pode ter

contribuindo para isso, mas depois também há uma parte, o meu racional, pode ser ou pode não

ser. Pode ser genético, pode ser de outra coisa qualquer. Se ela não tivesse tido a doença se

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calhar o caminho não tinha sido este, tinha sido outro e se calhar podia ter sido bem pior. Não

sei, é esta a realidade, não vale a pena pensar noutra. Mas com certeza que deve ter

influenciado. Até porque na escola primária que foi quando ela teve o problema, o facto de

chamarem careca, não ajudou em nada, pelo contrário, e aí desajudou a sociabilizar-se. Ela foi-

se retraído e durante todos os anos, mesmo no secundário, porque ela ficou na mesma escola

porque os amigos eram os mesmos e eu não sei até que ponto devíamos ter intervindo. Mas

não penso muito sobre isso. Não sei até que ponto é que se ela tivesse mudado de escola,

conhecido outras pessoas, que não soubessem do que lhe acontecem, não sei até que ponto é

que isso poderia ter ajudado a sociabilização dela. Mas não sei. Não tenho certezas disto, que

isto tivesse sido a melhor opção até porque a escola, os professores conheciam a situação dela

também a protegeram de alguma maneira e não sei até que ponto essa proteção na foi boa em

determinadas alturas para a AC. Portanto eu acho que há pros e contras nas decisões que se

tomam. Agora não podemos é estar a pensar que a decisão que não tomámos possa ser sempre

a melhor. Eu acho que devemos é aceitar a decisão que tomamos e foi a melhor decisão que

considerámos naquela ocasião…

E: E para si houve consequências? Profissionais, pessoais?

Mãe 1: Deve ter havido. Acho que não, eu acho que é sempre a mesma base, é a vida. Nós

temos estas bases, temos que viver com ela. Se calhar em termos profissionais podia ter

terminado o doutoramento um bocadinho mais cedo e depois? Se calhar…Não! Eu vivo bem

com o caminho que percorri. Eu nunca penso “ai, eu podia estar melhor; aí, eu já podia ser

professora associada. “ Não. Não sou, estou muito bem assim...

E: Consequências positivas houve alguma?

Mãe 1: Sim, houve! Eu acho que era uma pessoa insegura. Eu nunca tinha sido colocada à

prova portanto eu quando olho para trás ou há medida que os problemas foram sendo resolvidos

e problemas que eram graves e que foram sendo resolvidos e que eu tive intervenção direta na

resolução deste problema porque eu considero que tive, eu comecei a ganhar alguma confiança

em mim. Autoconfiança, e portanto isso de facto foi, e neste momento considero que para mim

é um aspeto positivo.

E: E em termos de parentalidade acha que houve algumas consequências? Como é que

foi ser mãe da AC e dos seus filhos? Acha que a doença pode ter alterado a sua

parentalidade?

Mãe 1: Eu acho que sim, mas de uma forma inconsciente, mas que agora é consciente que agora

é consciente porque eu começo a olhar para um filme lá atras. Portanto eu quando, na relação

que tive com os meus filhos, isto é sobretudo com os dois, porque quando veio o terceiro, a AC

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já era mais velhinha, portanto já era diferente. Agora quando eram só os dois eu acho que pela

minha maturidade, eventualmente, acho que me foquei mais na AC do que no A (filho mais

velho). Pode-me perguntar se fazia a mesma coisa. Eu se calhar fazia, se calhar fazia porque

ela precisava mais de mim do que o meu filho. Mas em termos objetivos e racionais eu não o

devia fazer. Em termos racionais são os dois meus filhos, portanto deviam ter a mesma atenção

da minha parte mas eu dei mais atenção à AC em determinados momentos que eu considerei

que ela precisava mais

E: E isso teve consequências para o A. (filho mais velho)?

Mãe 1: Se calhar teve. Ele socializava-se muito bem, contrariamente a AC e depois fechou-se

bastante e eu não sei até que ponto não teria sido este comportamento da mãe que pode ter

influenciado isso; da doença; da mãe por causa da doença. Mas também não penso muito sobre

isso, porque as coisas já passaram, não posso voltar atrás e fazer de outra maneira, até porque

eu não sei se conseguia fazer de outra maneira mesmo em termos racionais e portanto não

penso muito acerca disso. Aquilo que penso é no futuro.

E: Neste momento há alguma diferença na maneira como os trata?

Mãe 1: Não. Absolutamente. Como referi eu já não penso na AC como doente. A minha AC é

como o irmão. Tratou, resolveu. Não penso na possibilidade de vir a ter. A possibilidade de ela

vir a ter é exatamente igual à possibilidade do irmão vir a ter ou que o outro irmão vir a ter.

Portanto eu considero que têm igual possibilidade de vir a ter uma doença grave seja ela qual

for. Portanto não.

E: Na sua relação com a sua filha não existe nenhuma sequela?

Mãe 1: Neste momento nada.

E: Não nunca se lembra, ou fica mais tolerante?

Mãe 1: Não. Isso já aconteceu, há uns anos atras. Por exemplo, logo a seguir a ela ter terminado

os tratamentos, é sempre um receio mas há medida que o tempo passa o receio deixa de existir

porque começamos a ter mais confiança até que neste momento acabou eu já não receio.

E: Digamos que as suas preocupações neste momento não passam por isso. Passam pelo

quê?

Mãe 1: Pelo futuro dela exatamente como o dos irmãos, ela eventualmente ter um curso, ser

autónoma, ser independente e ter uma vida própria, não estar dependente de ninguém. É o que

eu ambiciono para ela, que é exatamente o mesmo que ambiciono para os outros dois. O facto

de ela ter tido estes problemas não é diferente. O que eu ambiciono para ela ou para os irmãos.

E: Na altura ainda tinha receio de uma nova recidiva e agora não. Isso está relacionado

com o tempo que passou?

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Mãe 1: Sim, ou eventualmente também a minha maturidade que a idade também ajuda as

vivências. Agora isto não foi algo que eu tenho adquirido num dia, esta confiança ou atitude

perante a AC. Isto ao longo do tempo, os receios começaram a dissipar-se...

E: E à medida que foi aumentando a adolescência, ou seja, a vivência da normalidade e a

diminuição da doença propriamente dita é que começou a fazer parte do vosso dia-a-dia.

Mãe: Exato. E eu até o facto de ela deixar de ser uma criança e ter passado a ser uma adulta

também ajudou, porque quando se é criança é preciso proteger mais enquanto agora ela já tem

autonomia e por isso já não precisa tanto da minha proteção. O tempo foi passando e não tem

tido problemas, portanto os receios também se foram dissipando

E: A doença oncológica é falada hoje na família?

Mãe: Não. Assim, abertamente não. O caso dela em particular não, de todo. Tem acontecido

determinada problemas em termos familiares de casos que resultaram em morte devido a

cancro, a nível da família entre nós e os nossos filhos não se fala. Ainda é um bocado tabu e

por exemplo (...) nós estivemos no Alentejo porque foi o funeral da tia do meu marido e o filho

mais novo que tem 9 anos perguntou ao meu marido com que é a tia tinha morrido, qual era a

doença e o meu marido não lhe disse. Disse “tinha problemas disto e daquilo” mas não deu o

nome e eu também nunca dei o nome. Se é por causa da AC ou não, não sei. Mas eu também

acho que isto é uma questão de proteção. Nós não banalizamos essa palavra porque acho que

ela continua a ter uma carga muito forte.

E: Acha que têm usado como proteção? É uma estratégia para se protegerem? É melhor

não falar porque nos expomo-nos demasiado? Disse há bocado que isso ainda é tabu, falar

sobre o problema…

Mãe 1: Falarmos em termos familiares. Os cinco, porque o A. (filho mais novo) ainda é muito

pequenino. Porque achamos que com 9 anos é difícil de racionalizar e de perceber determinados

coisas e portanto ainda não falamos abertamente sobre a situação da AC quando o A esta

presente.

E: E se ele não estiver? Fala com a sua filha, falam entre vocês ou também não?

Mãe 1: Só se houver alguma coisa. Agora falar por falar não.

E: Só se ela vier falar e perguntar? E ela costuma vir falar?

Mãe 1: Não. Aliás, ela durante todos os tratamentos, da 1º e da 2º vez, ela nunca falou, nunca

perguntou nada. E ela conseguia abstrair-se das horas de tratamento, tinha o game boy e jogava

no game boy, tudo o resto, se algum menino chorava, nem levantava a cara. Ela conseguia

erguer uma parede, ou aparentemente, e estava ali. Nunca chorou, ela fez sempre as punções

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lombares e nunca chorou. Os médicos quando lhe faziam a punção lombar, como já a

conheciam não precisavam de muitos enfermeiros (...) Era uma doente exemplar.

E: Muito bem, hoje o que é que diria a pais que souberem agora o diagnóstico, o que lhes

diria?

Mãe 1: Que as coisas com certeza se resolvem, que acreditem no corpo clinico, que é uma fase

difícil mas que vai passar… Não sei…

E: E aos profissionais de saúde?

Mãe 1: Para continuarem assim. Não consigo identificar algo que tivesse acontecido que

pudesse ter sido melhor.

E: Quando diz de continuarem assim é neste sentido de apoio, de disponibilidade?

Mãe 1: Disponibilidade, de informação. Eu acho que isso é importante. A Dra. F. logo na 1º

reunião, chamou-nos aos dois (...) explicou-nos tudo. O que era a doença, porque não sabíamos

nada. Eu completamente ignorante. O nome era terrível. Mas não fazia ideia do que nem como

íamos tentar combater e acho que isso é importante. Perceber o que é que vai ser feito. Porque

isso ajuda-nos também a conseguir ultrapassar as coisas.

E: Disse que houve ali uma altura em que as coisas não correram tão bem,

emocionalmente não correram tão bem? Consegue localizar isso no tempo? A altura em

que terá havido maior fragilidade emocional?

Mãe 1: Não. Porque eu nunca tive grandes momentos de fragilidade ate porque eu não tive

muito espaço, em termos temporais, para isso. Porque foi preciso sempre tomar decisões. Por

exemplo na 2º vez foi a decisão de ter um filho, depois era de ir ao médico, a médica me ter

dito que se ao fim de 6 meses não ficar grávida “não se assuste” e aí “isto deve ser qualquer

coisa que ela me está tentar dizer” (…). Ele nasceu, o meu marido teve que ir para Moçambique,

mudar de casa... Foi tudo sempre muito preenchido. Portanto eu não tive tempo de estar muito

frágil, se um dia não estava assim tao bem, no dia a seguinte já era preciso arregaçar as mangas

para fazer qualquer coisa e as coisas passavam. Não consigo identificar nenhum momento.

(Após entrevista)

Eu sinto há relativamente pouco tempo. Eu gosto muito das pessoas do IPO, todas elas, mas

pelo facto de a AC já não ir ao IPO há anos, portanto ela vai uma vez por ano. E quando ela

vai estes últimos anos tem sido o meu marido, contrariamente ao que tinha sido até então que

era eu basicamente que a acompanhava. Eu gosto muito das pessoas mas eu prefiro não ir lá.

Eu até gostava muito de estar com as pessoas mas eu opto por não ir lá porque cada vez é mais

doloroso. Eu não consigo perceber-me a mim própria. Eu quando ia lá porque era preciso ir.

Tinha de ir lá. E nem me questionava se gostava ou não; se ficava deprimida ou não, a ver

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tantas crianças em variadíssimas situações. Agora que já estou um bocadinho longe dessa

situação (...) agradeço ao meu marido que vá.

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CASAL 06 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – A. C.

E: Queríamos falar sobre o 1º momento, qual é a 1º imagem que tem, o que se lembra de

ter vivido quando a A.C. foi diagnosticada?

Pai 1: A resposta é muito fácil. Há uma sala no IPO onde o médico fala com os pais e nos

transmite o que se passa com o nosso filho; portanto, onde tomamos consciência de que há

um problema de natureza oncológica. Nunca mais nos esquecemos, nem da pessoa, nem da

sala, nem da circunstância. Nem quando voltamos à proximidade daquele espaço e vemos

outros pais saírem do mesmo espaço. Portanto quando se sai daquele espaço, saímos pessoas

completamente diferentes do que entrámos.

E: Diferentes como? Consegue explicar um pouco melhor?

Pai 1: O mundo muda quando um filho nosso passa a ter um problema oncológico; portanto

existe a nossa vida até aquele dia e depois é a partir daí. É tudo diferente.

E: Essa mudança é interna ou externa?

Pai 1: É tudo, ou seja, os pais têm uma forma de estar na vida em que os filhos desempenham

um determinado papel e têm para isso um conjunto de objetivos, de sonhos e realizações, e

quando se entra no IPO e se sabe daquele diagnóstico muda tudo.

E: Ficou com menores expetativas, com expetativas diferentes?

Pai 1: Baralhado. Completamente baralhado. É a desarrumação. É um fenómeno de

desarrumação completa. Mas vamos estruturando os nossos princípios, os nossos planos, e

quando se sai daquela sala nada faz sentido.

E: Confusão mental, quase…

Pai 1: Completa.

E: Quase como se a sua vida, a vida da família, a sua vida interior também… o seu

sentido de vida também?

Pai 1: Completamente. Nada faz sentido daquele momento. Vamos falar em coisas concretas

– a viagem de Lisboa para casa, vou dizer que me perdia na viagem, no sentido em que não

sabia se já tinha passado naquele cruzamento (…), portanto aquela continuidade, aquele

percurso, que é feito diariamente e que tem uma sequência (…); é “já passei ali, não passei?

Onde é que estou?”. Outra situação concreta é ter tido baixa médica pela primeira vez na

vida, portanto, tive que saber quem era o médico de família e dizer-lhe que não era possível

trabalhar com esta situação.

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Respondendo em concreto à sua primeira questão, é aquela sala onde nós entrámos e saímos

pessoas diferentes para o resto da vida e é a perceção de quando vemos outros pais sair

daquela sala.

E: Está a dizer-me que saiu diferente para o resto da vida?

Pai 1: Sim, sim. É a destruturação completa.

E: Acha que uma pessoa nunca se reestrutura completamente?

Pai 1: A vida nunca mais volta a ser a mesma. Não sei se chamam a isso stress pós-

traumático (se for em guerra é isso que se chama, se for noutras coisas não sei como se

chama); mas é um sítio onde não é possível voltar; é uma tortura ter que voltar àquela sala

outra vez e agora obrigou-me a ir lá e não é sítio onde queremos estar. Poderia ter feito cem

perguntas calmas, mas essa não – essa é pesada.

E: Diz-me que há um stress pós-traumático continuado, ou seja, é um stress crónico

digamos, é isso?

Pai 1: Depois nós arrumamo-nos, aquele episódio é fechado e fica fechado.

E: É fechado como?

Pai 1: É fechado, diria, como tabu. Portanto, aquilo é uma parte do filme, que é fechado com

três cadeados e que se abre, acidentalmente, ou no meu caso concreto, abriu-se

acidentalmente, quando estando perto daquela sala, por a A.C. estar a fazer tratamentos no

Hospital de Dia.

Ver os pais saírem daquela sala, portanto a criança não está naquele momento. Estão os pais e

o médico e ter que sair dali, ter que ir para outro sítio qualquer, durante uns minutos porque é

insuportável ver as pessoas saírem daquela sala. Claro que isto é o primeiro impacto (…).

Numa segunda interação já não é assim. Portanto temos o choque e depois num passo

seguinte temos uma médica que fala connosco e que nos diz “o vosso filho tem isto assim e

assim”, faz-nos um desenho sobre a diferenciação das células (é um desenho que ficou feito e

registado mentalmente para o resto da vida), as células começam assim e depois diferenciam-

se assim e aqui no meio deste processo a anomalia está aqui, e portanto o sistema em vez de

produzir não sei quantas células desta natureza, produz doutras e desequilibra-se. Portanto

isto é um segundo desenho mas aí já estamos a resolver o problema.

E: Isso é muito importante. Está a dizer-me então que ao mesmo tempo há uma

destruturação completa e alguma estruturação…

Pai: Numa segunda interação. Não é imediata nesse sentido. Não sei se é no dia ou na semana

seguinte, mas portanto, há um choque brutal, porque há uma realidade relativamente à qual

nós não nos conhecemos – nós somos profundos desconhecidos para nós próprios naquele

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momento. Depois há uma segunda interação que é “vamos resolver o problema” e aí já

estamos noutra forma completamente diferente.

E.: Mas está a dizer-me que acontece mais ou menos ao mesmo tempo, não passa muito

tempo não é?

Pai 1: É uma segunda interação. Não consigo localizá-la no tempo mas é muto próxima.

E.: Portanto, uma vontade de resolver qualquer coisa…

Pai 1: Exatamente e a partir daí… agora o médico diz-nos “agora sou eu que vou acompanhar

o vosso filho” portanto já estamos perto da solução. Primeiro temos o problema e aqui temos

o tratamento da solução. São momentos completamente diferentes. O IPO segue uma escola

americana, muito caracterizada pela cultura protestante de abertura – nós católicos não somos

assim, ou seja perante a questão oncológica não a tratamos com a frontalidade característica

das culturas protestantes, portanto percebemos que no IPO as coisas são tratadas de uma

maneira científica e aberta. Não são tratadas como nós portugueses tratamos. São tratadas à

americana, com abertura – choque é choque, mas a realidade é a realidade, portanto não

escondemos realidade e eu acho que isso é fundamental.

E.: Portanto está a dizer que essa informação e essa abertura foram um facilitador da

sua adaptação?

Pai 1: Sim. Da minha. Porque sei o que é um glóbulo branco e um vermelho e sei onde é que

eles são formados. Agora isto pode não ser assim para todas as pessoas

E.: Pois sim. Mas a informação adequada considera como um facilitador.

Pai 1: Aliás o IPO é um sítio fantástico, pela abertura, pela frontalidade com que tudo é

tratado. Portanto, nós vivemos com a A.C. dois anos de quimioterapia, dois anos sem

problemas e depois mais três anos com quimioterapia. Um dado importante é que pouco

aproveitei do 1º episódio para o 2º, ou seja, tive que ir pela segunda vez ao médico de família,

dizer, “olhe, isto não está a bater certo, preciso de mais duas semanas de baixa”.

Curiosamente fez-me a mesma pergunta das duas vezes foi que se precisava de alguma

medicação para a situação. A resposta foi “não” porque qualquer coisa que me desse eu

tomava os comprimidos todos, porque esta situação é suficientemente insuportável e se eu

arranjar uma coisa qualquer, seja chá ou comprimido para sair dela, agarra-me para o resto da

vida e isto tem que ser a seco, à bruta, tem que ser rearrumado, portanto quando há um voltar

a viver a situação, ou seja, aqueles dois anos foi um episodio – acabou, arrumou. Passava

varias vezes a porta do IPO sem o ver, portanto é um assunto devidamente arrumado. Quando

o assunto volta a ser de novo, pensamos que já aprendemos qualquer coisa com o 1º episodio,

mas não é assim, eu aprendi muito pouco com o 1º episodio. Ou seja isto não é um problema

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com duas etapas. São dois problemas que agora racionalmente eu consigo dar-lhe uma

continuidade, mas não têm porque arruma-se definitivamente o 1º episódio – fecha com

cadeados, não quero saber onde é o IPO, mesmo que volte ao IPO por outra razão qualquer,

não é o mesmo IPO, é outra zona do cérebro, porque aquela zona ficou completamente

arrumada, traumatizada e fechada.

E.: Estava a falar-me de alguns facilitadores. Disse-me que a informação é um

facilitador, mas agora estava a falar-me que foi ao médico não quis medicamentos e que

teve que arrumar isso de si para si. Consegue explicar-me melhor como conseguiu isso?

Pai 1: A pensar na solução, ou seja, o meu background profissional está focado na resolução

de problemas e isso ajuda, portanto tenho aqui um problema que tem etapas, tem coisas que é

preciso fazer e no momento em que há coisas que é preciso fazer é estarmos ocupados. Se

fossemos crentes, teria sido rezar, não sendo crentes as coisas são mais complicadas, mais

científica, menos místicas, mais formais e mais duras. Portanto temos que ser nós a fazer esse

trabalho, como um problema de física – os dados são esses, quero saber aquilo, com um

conjunto de fórmulas, há vários caminhos. Mas no momento em que estamos a participar na

resolução de problemas, o que se vai seguir? “Ok, agora vai haver um internamento, depois

vão haver situações tão complexas como a queda do cabelo”. Portanto veja isto, a A.C. tinha

7 anos e as crianças podem ser cruéis face à diferença – ser mais gordo, mais magro, a mais

bonita, a mais feia, os extremos. Ter 7 anos e ser careca não é confortável para quem se vê no

meio deste tipo de crueldade. Veja a frustração que é não pudermos ajudar o nosso filho em

relação a isto tudo, portanto estamos a falar de uma criança de 7 anos que tem que usar os

lenços, que não pode fazer educação física e que se tudo correr bem vai ficar com mazelas

para o resto da vida. Portanto temos algum treino em termos de análise de cenários e isso

ajuda, a arrumar – se isto correr mal o problema resolve-se, se isto correr bem temos uma

serie de problemas acessórios, porque a quimioterapia vai retrair o crescimento e as hormonas

não vão estar no sítio certo, no momento certo e na altura certa. Quando as colegas usam saia,

quem fez a quimioterapia se calhar está gordinha e em vez de ter 1,70m como a mãe, tem

1,50m. Tudo isto são questões que fazem parte dos cenários otimistas.

E: E pôs esses cenários logo desde início?

Pai 1: Não lhe sei dizer, não consigo. Vou dizer que não. Na altura a minha filha tinha 7 anos,

hoje estou a falar de uma filha que tem 22. Eu não sou o mesmo, ela não é a mesma. E há

aqui coisas que ficam entre o início e o momento atual, porque houve uma serie de

acontecimentos, mas eu penso que não. Eu acho que quando a minha filha tinha 7 anos não

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estava preocupado se a filha ia usar minissaia ou não. Era questão de procurar um bem-estar

imediato.

E.: E lembra-se como é que a família reagiu? Lembra-se de alguma alteração familiar?

Pai 1: Eu e a P. somos pessoas muito diferentes – temos o mesmo background e fomos

colegas e faculdade, mas depois somos pessoas muito diferentes na forma de ver as coisas. E

onde é que encontramos algo que eu digo que é comum? Foi na culpabilização. Cada um de

nós culpabilizou-se e arrumou-se. Não fizemos uma arrumação em conjunto. Cada um de nós

arrumou-se á sua maneira e foi muito à posteriori a ler os prospetos no IPO que falava da

questão da culpabilização e tivemos aquela conversa “Também tu? Sim também eu”. E cada

um culpabilizava-se à luz dos seus valores que são diferentes. Eu achava que devíamos ter

sido todos vegetarianos cá em casa, e se eu conseguisse impor essa minha crença na disto

teria acontecido, ou tinha a ver com as radiações elétricas. Cada um culpava-se a si próprio

com as questões mais desaparafusadas possível. Se me perguntasse como é que eu acho os

pais podiam ser ajudamos, eu dizia que por outros pais. Não tenho duvida que se me sentasse

com uma pessoa que sai daquela sala podia ser útil para ela porque aquele é um momento

violento.

E.: E dizia o quê?

Pai 1: Dizia “olha o que estás a sentir é isto, e o que vais sentir a seguir é aquilo. Há aqui um

processo de desarrumação e de arrumação”, porque a pessoa naquele momento sente que

aquilo só lhe aconteceu a si próprio, que é quase como se fosse o universo que se uniu para

nos tramar, mas se percebemos que isso já aconteceu com outra pessoa então talvez vejamos

que o universo não é assim tão organizado para me tramar – se calhar é um coisa que

acontece e com a qual eu vou ter que saber viver, mas também aí não haverá muitos pais

iguais e depende da estrutura de valores que cada um tem. Para mim era a questão da

alimentação (…).

E: E nunca pensou na culpa durante todo este tempo, durante os primeiros dois anos?

Pai 1: Não. Há um momento que está tudo desarrumado. Não podemos viver com a

culpabilização senão parávamos todos na ponte ou no cristo-rei e resolvíamos o problema e

isso são hipóteses que estão colocados. Mas há um momento em que paramos e… “faço parte

do problema ou da solução? É que se faço parte do problema eu resolvo isto na boa, mas eu

se calhar sou útil nisto” e aí passamos para a questão da racionalização, vamos tentar

maximizar a integração – se há um problema de cortar o cabelo, então a mãe também corta o

cabelo, e mais um serie de coisas. Soluções muito apalermadas mas que são completamente

justificáveis, naquele contexto.

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E.: Muito orientadas para soluções orientadas para a resolução de problemas, e daquilo

que esta a acontecer naquele momento.

Pai 1: Esse é o caminho. É percebermos, imagine que um pai sai de lá, daquela sala, e ver

que há algo para resolver, este problema pode-se tratar assim ou assado – ela vai perder o

cabelo, vai ser marginalizada pelos colegas, ou seja há aquele choque, naquele momento a

pessoa tem que receber aqueles choques todos, em vez de ser em doses homeopáticas, porque

acho que quanto mais há bruta melhor. Agora vamos virar a pagina, e o próximo capitulo é “o

que tens que fazer, qual o papel que tens que desempenhar para a resolução do problema e

quais os cenários que podem acontecer?”.

E.: Houve alguma rede de apoio vossa? A família mexeu-se? Ganharam amigos,

perderam amigos?

Pai 1: Pela nossa forma de estar não estivemos muito recetivos. Vou dizer que não houve.

Poderia ter havido, mas a questão é: isto é demasiado pesado para ser partilhado. Isto é para

ser digerido, a ponto de cada um de nós dois o tivesse digerido sozinho. Não há formulas para

isto. Há pessoas que se podem apoiar muito mais umas nas outras, mas aqui não há certos

nem errados (…).

E: E acha que essa primeira fase, em termos conjugais, vos uniu, vos desuniu…

Pai 1: Foi puramente funcional. Somos de engenharia (…) É funcional e funcionou.

E: É comum termos situações (…) de perda da vida conjugal e da separação, ou seja,

uma serie de casais que não aguentam. Vocês aguentaram, como?

Pai 1: E é normal que não aguentem. Nós tanto podemos cada um culpar-se a si próprios

como podemos culpar o outro. Vamos imaginar, continuando na questão da alimentação (…),

eu podia ter achado que como a P. não tem esta sensibilidade em questão à alimentação que

era ela a culpada da questão e a partir dai tudo serviria para arranjar um culpado.

E: O que quer dizer que houve uma situação baque conjugal mas que ao longo do

tempo a doença nunca destruiu ou abanou o casal?

Pai 1: De forma significava não. É um assunto que não faz parte das nossas conversas diárias.

É tratado quando tem que ser tratado e com o pragmatismo de – a A.C. tem a consultas dos

duros e tentamos que um de nós vá a consulta. Porque eu tenho mais sensibilidade para a

questão dos soft skills portanto acho mais que a A.C. preciso de falar com a psicóloga do IPO

e sabe distinguir se aquele sintoma tem a ver com a adolescência, com a adolescência

retardada ou com a adolescência alterada pela quimioterapia. Portanto eu tenho mais essa

abertura e se me permite, vou dizer que eu tive outras questões de situações oncológicas na

família com o meu pai e posso-lhe dizer com muita assertividade que é o problema

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oncológico é como um furacão – é o olho do furacão. Grande parte das coisas passa-se à volta

do furacão. Portanto um problema oncológico não é um problema oncológico. É o problema

oncológico mais a forma de lidar com o problema oncológico. E esta segunda, portanto o

médico sabe se é quimio, sabe se é radio, sabe a quantidade, trata a doença. Depois é preciso

tratar do doente. Portanto é uma esfera com um raio maior. E depois tem a envolvente

familiar, que é outra esfera. Aquilo que se diz, que pode ser dito com a melhor das intenções,

pode ter o pior efeito.

E: Mas nessa altura sentiu necessidade de recorrer a um psicólogo?

Pai 1: Não. Da nossa parte não.

E.: Estava a dizer-me que depois de um diagnostico destes nós nunca somos iguais. Será

que se pode dizer o mesmo em relação ao casal?

Pai 1: O casal pode ser igual ou não. Aí não encontro uma fórmula. Temos sempre, em

qualquer relação, componentes afetivos e funcionais. A componente funcional é como dois

sócios. Os pais são dois sócios na criação dos filhos e na educação dos filhos. E esta é a parte

não contratualizada, mas digo de natureza ética, portanto há uma obrigação ética, podemos

pensar em algo, convencidos de que é isso que lhe faz melhor (…). A mesma coisa pode ser

boa ou má consoante a forma como é utilizada.

E: Pelos vistos estão juntos, mas o que é que utilizaram bem?

Pai: A componente prática, ou seja, percebermos onde cada um de nós poderia ser mais

eficiente; uma preocupação onde cada um é mais eficiente.

E: E a parte afetiva? Estava a dizer-me que há uma parte funcional e uma afetiva. Essa

saiu chamuscada?

Pai 1: Quando as pessoas se respeitam a parte afetiva não é muito afetada. Mas isso depende

muito daquilo que as pessoas têm em comum, depende muito do ponto de partida da relação.

E: E acha que a doença da A.C. trouxe algo de positivo para a vossa relação? Estando

ela numa situação em que lhe foi exigida tanta coisa funcional.

Pai 1: Deixa-me especular. Imagine que um casal está perto de uma situação de divórcio, face

a uma situação oncológica, não faço ideia do que pode acontecer. Podem aproveitar e dizer

“separamo-nos” ou podem ver que têm um problema em comum. Perante o mesmo problema

podem haver dois caminhos diametralmente opostos que estão igualmente corretos.

E: Qual parece que foi o vosso? Ou ficaram pelo meio?

Pai 1: Não lhe sei dizer. Terá havido circunstâncias flutuantes. Eu sei que é complicado. Eu

sei que era mais fácil dizer-vos que perante esta conjuntura o caminho é este e isto sim e

aquilo nunca, mas não consigo.

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E: O que é a nossa preocupação é como é que vocês viveram, porque é evidente que a

maneira que viveram foi a maneira que foi possível e obviamente aquela que poderia

ser melhor para vós.

Pai 1: O facto de estarmos juntos diria que resolvemos bem.

E: A nossa preocupação é como é que vocês conseguiram resolver bem.

Pai 1: Isso não sei responder.

E: Mas está a dizer-me algo muito importante, que entre vocês houve uma grande

complementaridade em termos funcionais, houve o objetivo comum muito partilhado no

sentido de “nós temos que resolver um problema, isto é um problema novo na nossa

vida, temos que o resolver” e penso que isso é uma coisa muito importante. Por outro

lado, as questões afetivas, nós sabemos que um problema oncológico leva muitas vezes a

uma exaustão emocional muito grande.

Pai 1: Mas essa exaustão não vem no início, vem à posteriori. De momento é um baque e

depois parece que não houve problema nenhum. Portante há o baque, há a arrumação e

depois passados seis meses adoecemos com qualquer coisa. Essa correlação existe, quando

temos um choque emocional, adoecemos passados seis meses, com qualquer coisa. É aquela

faturinha que fica a contar juros desde o momento em que acontece e que nós vamos pagá-la

passado algum tempo.

E.: E aquilo que eu estava a dizer é, qual a consequência da doença, se essa exaustão de

alguma maneira vos alterou, se houve uma vivência dessa exaustão na vivência do

casal?

Pai 1: É difícil. Qualquer relação do casal oscila a volta de um equilíbrio que é sempre

transitório. Há altura em que estão mais próximas e outras mais afastadas. Eu trabalhei alguns

períodos no estrangeiro o que também teve algum peso. A propósito da distribuição das

funções a P. acompanhava muito mais as coisas do dia-a-dia e quando aquilo azedava eu

aparecia.

E.: Queria trazê-lo agora para o momento presente. Hoje como é que vive a situação?

Pai 1: Eu diria que hoje vivo com perfeita normalidade.

E.: Acha que a A.C. está curada?

Pai 1: Sei perfeitamente que as questões oncológicas nunca estão curadas. Nunca tem bilhete

de vinda, só tiveram bilhete de ida. Sei isso pela pior das razões – porque tive recentemente

uma situação parecida. Portanto, a probabilidade de a A.C. vir a morrer com uma questão

oncológica, pode ser no estomago ou pode ser noutro sitio qualquer, ou pode morrer

atropelada. Portanto o risco maior que tem é de morrer de acidente de automóvel, mas pode

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ser por outra coisa qualquer. Portanto sim, estamos vivos, espero que a ordem natural das

coisas se mantenha (…). A questão oncológica, neste momento está ao nível do acidente de

automóvel e de outras coisas que acontecem todos os dias.

E: Não é algo que se lembre todos os dias…?

Pai 1: Não, portanto ir com a A.C. ao IPO para fazer a tal consulta dos duros é algo que

acontece com toda a …

E: E se passar na outra sala?

Pai 1: Aí não sei. Aquela salinha tem… pediu-me para vir para o momento presente e no

momento presente não entro naquela sala.

E: Como falou da questão do SPT, há algumas situações em que me afasto porque

simplesmente não vale a pena.

Pai 1: Não adianta. Sou capaz de me programar para passar lá a porta. Sou menino para fazer

isso, mas nunca fiz.

E: E consequências que teve, o problema da A.C.? Teve consequências nela?

Pai 1: Teve muitas consequências físicas. Tem muitas características que não teria daquela

forma, tem uma personalidade que foi claramente moldada pela doença, seja a

hiperprotecção, seja a capacidade e a força interior que ganhou para ultrapassar a situação.

Ela ganhou uma força que se transforma em teimosia, se quiser, de que nunca se falou. A

A.C. só falou do problema dela muitos anos depois – um dia qualquer estava a chorar e

“estou com medo de voltar a estar doente outra vez”, e “agora como é vamos viver com

isso?”; e é aí que eu peço a ajuda da psicóloga do IPO (…). Portanto eu não tenho duvidas

que o fenómeno do SPT apareceu muito a posteriori.

E: E continua ainda hoje ou as coisas resolveram-se?

Pai 1: Tem ondas. (39’21’’)

E: Ou seja, acha que psicologicamente a doença ainda não passou?

Pai 1: Nós vivemos cheio de bactérias e vírus e quando o nosso sistema imunitário sofre um

tropeção há um vírus qualquer que se instala e adoecemos. Agora passamos de vírus e

bactérias para questões de natureza soft, ou seja, há um conjunto de coisas que vivemos em

equilíbrio com elas e há um momento em que uma coisa nos toca emocionalmente e ontem

não nos tinha tocado. O mesmo episódio, se calhar passei duas ou três vezes à porta daquela

sala e não me lembro, mas lembro-me de uma vez ou duas, porque podia ter dormido mal,

podia ter dormido menos do que precisava, podia estar mais cansado.

E: E consequências para si, acha que teve algumas? Todas elas negativas, algumas

positivas?

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Pai 1: Positivas não consigo. Não consigo encontrar. Teve, porque é evidente que eu nunca

mais fui igual. A normalidade, as expetativas, as projeções que fazemos no futuro são

completamente desarrumadas.

E: Será que se pode dizer que mesmo a sua vida profissional foi afetada?

Pai 1: Porque toda a nossa motivação é abalada.

E: E acha que a doença poderá, pelo menos, tê-lo centrado nas prioridades de vida ou

nem isso considera que seja relevante?

Pai 1: Estes assuntos não estão totalmente arrumadas. Pelo menos até agora não. Não quer

dizer que daqui a dez anos eu não diga que, tomei uma serie de opções de vida porque, ou

seja, o mesmo vírus e a mesma bactéria, ou seja, a mesma situação, podemos conviver com

ela de diferentes maneiras (…). Há uma dinâmica sentimental e comportamental que nunca

estará arrumada. As questões oncológicas chegam e ficam. E quando nós fazemos esta

mudança não voltamos nunca ao interior.

E: Está a dizer-me que “por um lado eu vivo tranquilo mas por outro lado há um

desarrumar na minha vida que também anda comigo”

Pai 1: É a imagem do vírus. Há uma situação com a qual eu vivo no dia-a-dia e quando, ou

porque apanhei muito sol, ou porque apanhei frio ou chuva, ou porque dormi mal, o meu

equilíbrio perdeu-se. Mas a seguir tomo três aspirinas, durmo bem, vou jantar com os amigos,

curo-me. Curo-me porque nunca tive doente.

E: Referiu o facto de tomar as aspirinas quando o vírus emerge. Gostava de lhe

perguntar a nível emocional quais são as suas aspirinas nesta situação?

Pai 1: Então, eu comecei a fazer artes marciais aos 14 anos. Artes marciais que não são de

desporto, portanto são coisas que têm mais a ver com a introspeção, meditação, (…). Portanto

são essas as minhas aspirinas. Estou a usar aspirinas no sentido do tratamento sintomático. A

A.C. tem um irmão mais velho e quando soube que ele estava para nascer a minha mota

deixou de funcionar (…). Porque quando somos confrontados com uma mudança na nossa

vida. O deixar de andar de moto é um bom exemplo, no sentido, em que quando sabemos que

vamos ser pais ou quando um filho nosso tem um problema de natureza oncológica toda a

nossa forma de estar na vida (…) quando tudo o que nós temos para defender está num raio

de 1m² somos fortes; quando sabemos que vai nascer um filho muda em tudo o nosso

comportamento; quando sabemos que a nossa filha tem um problema oncológico isto muda

tudo, ou seja, nunca mais volta a ser, o mundo nunca mais volta a ser como era.

E: Há um outro filho, e em termos de parentalidade, acha que mudou a forma como

interage com a A.C. e com o seu filho mais velho ou é igual, é diferente?

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Pai 1: Os pais interagem com os filhos conforme as necessidades e as personalidades dos

filhos.

E: Falava-me à pouco em hiperprotecção…

Pai 1: A doença teve a ver no sentido em que o foco passou a ser a A.C. e o outro filho ficou

ali um bocadinho ao lado.

E.: Quando me diz que ele ficou um bocadinho ao lado, ele continuou a viver convosco?

Pai 1: Sim, sim. Mas passou mais tempo com os avós. Tivemos essa rede de suporte dos

meus pais.

E: E ele teve mais tempo com os avós; vocês menos perto dele…

Pai 1: Uma criança com 7 anos de repente percebe que todo o foco está direcionado para um

irmão. É a vida.

E: Em termos de práticas educativas, acha que alguma coisa se mudou? Ou ainda são

hiperprotetores da A.C.? Continuam a ser?

Pai 1: Não, não.

E: Não sente maior preocupação em relação a ela do que em relação ao seu filho mais

velho?

Pai 1: Não. São diferentes as preocupações.

E: São diferentes, mas em nível de preocupação?

Pai 1: Repare. São diferentes porque as personalidades e as necessidades deles são diferentes.

E: Em relação à A.C. consegue dizer-me algumas?

Pai 1: A A.C. está numa fase que precisa de espaço, portanto teve em dois cursos de

engenharia que não funcionaram e agora está num curso de fisioterapia que está a funcionar

muito bem (…) Portanto a A.C. pediu-nos que queria ir estudar para fora, queria sair de casa.

Foi viver para a residência universitária e estamos numa fase de ela pertencer à Tuna e de

gerir a alimentação (…).

E: Acha que se ela não tivesse tido a doença oncológica seria igual?

Pai 1: É igual. A doença oncológica deu-lhe algumas cicatrizes psicológicas em termos de

fragilidades. Mas noutras áreas deu-lhe calo. Portanto ela é rija e ela não se deixa influenciar.

E: E depois da doença vocês teriam umas práticas educativas com ela determinadas

depois da doença e depois de terminar o tratamento. Acha que as práticas educativas

não se modificaram?

Pai 1: Não.

E.: Quando me falou de hiperprotecção queria dizer o quê especificamente?

Pai: (…) Coisas de segurança.

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E: Tolerância em relação a erros?

Pai 1: Temos esse defeito os dois. Temos e sabemos que temos.

E: Mais com ela, menos?

Pai 1: Eu acho que é igual.

E: Acha que o facto de a A.C. ter tido a doença oncológica também vos tornou mais

tolerantes em relação ao vosso filho mais velho.

Pai: Não. A doença é a doença e está o mais isolada possível. Não houve esse facilitismo. Da

minha parte não, pelo contrário. Pelo contrário. A A.C. ficou com uma serie de problemas de

autoestima, de higiene e de autoconfiança. Portanto a A.C. não queria tirar a carta de

condução e foi o pai que a andou a chatear (…). Sempre tentei que fizesse desporto porque

isso melhora a autoestima e pressionei-a para que fizesse, até a pressionei demais para ela

tirasse a carta de condução.

E.: Para responder a coisas específicas dela?

Pai: Não, não! Por questões praticas. Aqui foi ao contrário. A doença criou alguns problemas

de autoestima e aquela concorrência que as miúdas têm das minissaias, mas a A.C. não estava

nesse mercado, não tinha hipótese.

E: E acha que foi isso que foi isso que da vossa parte uma tendência ou uma vontade de

estimular, não tanto pela doença, mas pelas consequências dela. Estimular que ela fosse

mais autónoma, estimular a autoestima dela.

Pai 1: É igual. Por causa da doença tens aqui dois ou três anos de atraso, portanto em vez de

tirares a carta aos 18 tiraste aos 21, portanto, tudo dentro da normalidade.

E.: As suas preocupações atuais são quais?

Pai 1: A questão da A.C. não esta no nosso dia-a-dia. É um assunto que está arrumado.

Vamos as consultas dos duros quando temos que ir, as análises estão boas. A minha

preocupação em relação à A.C. é achar que ela não tem uma prática de vida saudável, como

eu gostaria. Passava porque ela fosse atleta, enfim, aqueles sonhos que os pais tem todos em

relação aos filhos (…). São as preocupações neste momento. Prendem-se muito com as

questões de autoestima que não estão arrumadas e não estão em vias de estar. A questão da

integração social foi-se fazendo (…). A A.C. deu um salto grande quando foi estudar

fisioterapia. Compreenderá que ela rejeitou tudo o que fosse relacionado com saúde uma

primeira interação, onde ela visse batas brancas, via o IPO.

E: O que diria aos profissionais de saúde como forma de ajuda a pais.

Pai 1: Cada um desempenha um papel (…). Considerando o que lhe disse há pouco e o

paralelismo entre as questões concológicas e o olho do furacão, as rajadas de vento mais

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violentas são à volta. O que mais me chocou foi ver uma criança da idade da A.C. quando ela

teve internada, a brincar na sala de brinquedos, e o miúdo estava no melhor sítio onde ele já

tinha estado em termos de brinquedos. Isso foi uma coisa muito violenta. Pensar que o pior

sítio onde a minha filha já tinha estado era o melhor sítio para aquela criança (…). Uma vez

mais, as coisas que se passam à volta do furacão, como esta, são violentíssimas. E não

estamos lá para ver isto. Estamos lá para tratar do nosso filho, não quero saber nada do que se

está ali a passar à volta e de repente vê (…). Portanto em relação aos profissionais de saúde

há papeis completamente distintos. Sinto que o que se passa na periferia do acontecimento

não é tratado, é completamente abandonado. Quando há uma situação qualquer, traumática, lá

aparecem os psicólogos do INEM. Sinto que falta aqui o equivalente aos psicólogos do

INEM (…).

E: Acha que falta os profissionais de saúde envolverem-se com essa parte mais fora do

centro do furacão?

Pai 1: Exatamente. Essa é a parte que poder-me-á dizer que é um luxo. A saúde e tudo o que

seja saúde em termos soft, seja a saúde mental, nas nossas sociedades pode ser considerado

um luxo.

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CASAL 07 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – C.

E: Lembra-se do momento, da fase do diagnóstico? Qual é a 1ª imagem que lhe vem?

Mãe (M): A 1ª imagem que eu tenho do diagnóstico é eu estar numa sala à espera que me

dessem o resultado do que é que se passava com ela. Ela estava estranha. Para nós ela estava

estranha. E a 1ª imagem que eu tenho é o meu marido chegar ao pé de mim, ajoelhar-se ao pé

de mim e dizer-me o que se estava a passar.

E: Era a vossa 1ª filha?

M: Sim. Mas estava a dias de ter a segunda.

E: Estava grávida?

M: Estava. Estava no final do tempo. A C. foi operada no dia 2 de Fevereiro e a L. nasceu no

dia 13 de Fevereiro.

E: Muito pesado...

M: Foi.

E: E ela já tinha sintomas há muito tempo? Isto apareceu assim do nada?

M: Nós agora às vezes é que.... poderia ser, poderia não ser, porque a C. esteve com a avó

paterna até aos vinte e dois meses. Depois achamos que devia ir para um infantário para se

desenvolver mais e como toda a criança que entra no infantário tinha todas aquelas doenças,

viroses, não sei quê. Entretanto, como eu tive que vir para casa mais cedo para descansar

porque, e entretanto o S. tinha arranjado um novo emprego e esteve dois meses fora no

estrangeiro, sem estar connosco, eu desloquei-me de minha casa para casa da minha tia para

estar mais acompanhada porque a C. era muito pequenina e como eu estava grávida também

tinha algum receio de estar sozinha e então havia algumas coisas, porque a C. como mamou

até muito tarde também não se adaptou aos leites, às papas, só que eu tive que lhe dizer “só que

agora não podes mamar mais, a mamã está quase a ter o bebé e não pode dar de mamar mais”

e então todos os dias a C. fazia birra para comer de manhã e vomitava. Eu experimentava as

papas todas, e para mim era ela que não gostava, porque eu também as experimentei depois e

achava que aquilo era horroroso. Se calhar isso já era um sinal. E entretanto ela teve uma grande

virose e tomou um antibiótico que a deixou toda assada e ela andava com a pernita aberta e ela

à noite dizia “mamã dói-me as pernas”. Pronto. Eu achava que era tudo da virose, que era da

febre. Entretanto o pai veio era véspera de Natal e diz-me assim “ela anda um bocadinho

estranha a andar, ela está desequilibrada” e eu digo assim “é, ela está toda assada, é normal que

ande com as pernas abertas”. O tempo foi passando. Entretanto passado uns tempos a C.

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precisava de levar vacinas mas como eu ia fazer uma consulta e à médica pedi à minha sogra

para a levar à vacina e a enfermeira disse “Ah a menina está a andar com um andar estranho.

Ela esteve doente?”. A minha sogra disse: “Teve. Tem andado com bastante febre por causa de

uma virose.” “Ah, então acho que deviam levá-la à pediatra, porque pode ter ficado alguma ou

no ouvido, no desequilíbrio, ou nos joelhos”. Nós logo nessa semana marcámos para a pediatra

e realmente a pediatra disse que sim senhora que havia ali um desequilíbrio, que havia ali

qualquer coisa mas que para já ia mandar fazer análises e um RX às pernas e um

electroencefalograma com prova de sono, que nós não conseguimos marcar. Entretanto neste

curto espaço de tempo nós fomos também à pediatra do infantário e mais tarde soubemos que

elas trocaram alguma informação entre elas mas também não foi de grande relevância. As

análises eu fiz-lhe logo, o RX estava marcado e o outro não conseguia marcar porque ela era

uma criança. E estava difícil porque não havia médicos para fazer a avaliação. E nós vimos

que a C. cada vez andava cada vez mais de lado até que no fim-de-semana, final de Janeiro, a

C. caiu em casa e não se conseguia pôr de pé e então andava agarrada à parede. Nós ligámos

para a pediatra e dissemos o que é que se estava a passar e que não conseguíamos marcar o

electroencefalograma... Ela entretanto deve ter voltado a falar com a pediatra do infantário... E

o S nessa segunda-feira voltou a ligar para a pediatra que disse que ia ver o que é que conseguia

fazer, porque ia estar de serviço em Lisboa e que ia tentar ver o que é que conseguia. Entretanto

ela ligou e disse para a levarmos à Estefânia que estava uma neurologista pediátrica de serviço

que era amiga e que a via. Ela observou-a e disse “vamos fazer uma TAC”. E logo na TAC, o

pai assistiu à TAC e é por isso que eu digo que o primeiro momento foi ele a vir ter comigo,

ter-me dito que eu tinha de ter muita calma que a coisa não era muito boa porque ele viu,

assistiu do lado de dentro ao que se estava a passar. Foi-lhe diagnosticado um tumor. A médica

disse-nos que devia ter o cérebro, a hidrocefalia já estava muito ativa, estava já muito avançada,

daí ela não conseguir andar. (AVIÃO) Podia ter um AVC e nós não sabíamos porquê (?).

Entretanto foi logo para São José, na Estefânia não havia cirurgia pediátrica, foi para São José

onde foi operada, logo nessa noite para porem um dreno para ser drenado. Tínhamos de esperar

alguns dias para poder fazer uma ressonância para saber o sítio e o tamanho exato. Foi operada,

passado uns dias, no dia 2. Pronto e daí para a frente foi... Esteve algum tempo em coma

induzido e depois a situação... Ela não esteve lá muito mais tempo. Ela foi operada no dia 2,

ela saiu para aí no dia... passado pouco tempo, entretanto a irmã nasceu e ao fim de oito dias

de a irmã ter nascido ela saiu e deu logo entrada no IPO.

E: Lembra-se do que é que sentiu e o que é que pensou nessa altura?

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M: Lembro. Lembro porque nós tínhamos passado por uma fase um bocadinho má, porque eu

no início da gravidez perdi a minha mãe, com um aneurisma. E eu estava grávida e lembro-me

de ter pensado assim, estava eu grávida de três meses e aquilo que eu pensei foi “Porquê eu?

Porquê a minha mãe? Oh Deus leva a minha filha, que neste momento é uma coisa que para

mim ainda não tem aquela, ainda não há aquele amor tão forte... leva-a a ela, eu... (??) mas

deixa-me ficar com a minha mãe.” E a minha mãe morreu e o último desejo dela era ter uma

neta, nunca conheceu a neta...nunca soube que era uma neta. Só passado uma semana é que fiz

a ecografia que dizia que era uma menina. E o problema todo foi que nós tínhamos dito assim

“acho que nós nunca mais vamos entrar em S. José” e eu e o meu marido pensámos “não

queremos voltar aqui”. No entanto, tivemos o azar da C. ir parar à mesma cama que a avó

morreu e ao mesmo serviço. Ver uma e ver a outra, era a mesma imagem. Porque eu vi a minha

mãe quando saiu da sala porque estávamos no quarto mesmo em frente à sala de operações, ao

bloco. Ver uma e ver a outra, era a mesma imagem. Só que a C. em ponto muito pequenino,

em ponto pequeno era a mesma coisa e isso realmente magoou-me bastante...

E: Oh meu Deus! Isso deve ter sido uma situação...

M: Mas também ao mesmo tempo eu dizia assim “a C. acho que se salvou porque a avó esteve

lá com ela”, que sei que a minha mãe morreu ali. Não estive com ela quando ela morreu,

naquele dia não consegui ir ao hospital, mas sei que ela tinha voltado para o cuidados intensivos

e era aí que ela estava...

E: Digamos então que sentiu “ eu desejei que a minha filha”...

M:...que a minha filha morresse...

E: E agora vou passar por uma situação quase como culpa...

M: Eu acho que é assim, parece que era Deus a dizer-lhe assim “eu sou mais forte do que aquilo

que tu pensas, porque tu pediste-me para a levar em vez da tua mãe e eu levei a tua mãe e agora

vais passar por esta dor, mas ela está cá, ela não foi... “

E: Sentiu isso e sentiu o quê? Uma culpa misturada? De...eu quase que desejei...

M: Mesmo um bocado de tristeza e um bocado de revolta, porque tinha sido duas coisas muito

seguidas, foram ali duas situações muito seguidas, mas pronto hoje em dia se calhar dou graças

a Deus entre aspas porque ela estava lá e porque não deixou que a neta fosse ter com ela. É o

que (AVIÃO) ele via, a C. esta cá, está tudo bem com ela, mantém-se quase a 100%, ninguém

diz que ela está doente., que esteve doente. Aliás ela diz “Porque é que eu estou doente? Porque

é que tenho de ir ao médico? Eu não estou doente.” A C. é super saudável, ao pé da irmã, que

nunca teve problema nenhum. É uma criança super saudável. Raramente aquela menina tem

isto. Eu costumo dizer assim “A única coisa que tens é ranhosa...”. No início isso era muitas

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vezes devido às anestesias com o gás porque depois teve que ser operada ao nariz, mas ainda

hoje a única doença que a C. tem é realmente o nariz entupido. E em 15 anos a C. não teve

nada mais tirando a escarlatina, e foi a irmã que lhe pegou. E a varicela, que foi um bocadinho

de nada. Porque ela nunca está doente, aquela criança nunca diz “não vou à escola porque me

dói a cabeça, não vou à escola porque...”.

E: Muito bem. E nessa altura depois teve a sua filha... Quem é que foi para o IPO com a

C.?

M: Foi a avó.

E: Foi a avó que fez o acompanhamento nessa altura, e depois a C. veio para casa quanto

tempo depois?

M: A C. depois do IPO já vinha a casa com mais frequência, porque ela foi... Não sei se ela

chegou a passar por casa... Isso já não me lembro muito bem se ela saiu e passou por casa,

nessa noite eu acho que ela ficou em casa e depois (AVIÃO) para o IPO. Ela não foi

diretamente de um lado para o outro, para mim era muito difícil porque a C. como tinha ficado

paralisada, (AVIÃO) ao início, como tinha tido a outra, não podia pegar ao colo e ela queria

colo. Não era... Pronto, a L, nesse aspeto foi mais desprovida de carinho, nessa altura. Nós

púnhamos um bocadinho a parte. Como era uma criança extremamente calma acabava por ser...

é... nós esquecíamos que a L. existia, porque ela raramente chorava. Para estar com a C. e

depois ela pedia colo e eu só podia pegar ao colo sentada porque tinha levado pontos...

E: Houve uma revolta, uma perda grande, houve uma revolta na altura. Houve alguma

coisa de positivo? Alguma coisa que tenha vivido, que tenha sentido de tentar resolver a

situação ou não?

M. Não. Acho que as coisas passaram, depois as coisas equilibraram-se...

E: O que acha que facilitou esse equilíbrio?

M. A minha filha mais nova.

E: Ter nascido uma criança, acha que veio...?

M: Sim, e ela sente isso... Ela sabe que quando eu estou mais nervoso por algum motivo, que

aquele abraço...

E: Da mais nova?

M: É. Às vezes a mais velha diz “ah tu gostas mais dela”, e eu digo assim “não é eu não gosto

mais dela, eu gosto das duas igual, simplesmente a L. foi o meu porto de abrigo” naquele

momento porque eu não sabia, quando a C. foi operada e aquele tempo que eu passava em casa,

acabava por passar muito tempo sozinha em casa com a L., se a C. ia sobreviver ou não. Eu

não sabia, eu dava por mim a pensar em coisas que hoje em dia são banais: “Olha o tempo está

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a nevar... Vem a Primavera e vou comprar uma prenda à L. Será que compro para a C.? Será

que vai estar viva para a vestir? Eram coisas banais, mas que no entanto, eu precisava... Porque

(...) tinha que ter cuidado com a roupa por causa da cicatriz que ela tinha, da cirurgia. Mas eu

dizia assim “Mas eu estou a comprar, será que ela vai morrer?” Se ela morre eu estou a gastar

dinheiro em roupa. Eram coisas parvas, hoje eu digo que são parvas mas naquele momento era

uma angústia que havia ca dentro, eu não sabia, se sim, se não... Porque sabemos e além do

mais eu quando liguei para a minha entidade patronal a dizer que ia ficar em casa quando acabei

a licença de parto, porque tinha uma filha com cancro, a primeira coisa que me disseram foi

“... Mas geralmente essas pessoas morrem por isso mentalize-se” foi a resposta do meu chefe.

Era tudo assim a ajudar mas graças a Deus ela nunca deu, nunca houve nada naquela criança

que disséssemos “está mais para lá do que para cá”. Ela tinha uma força, uma garra, havia algo

estranho nela. Ainda hoje o Dr. que a acompanha diz só “se você acreditou em deus pode ter a

certeza que a C. é um milagre”. Além do mais a C. sempre teve assim umas coisas estranhas

para a idade dela, porque ela, nos primeiros dias que teve no hospital pediu à tia para lhe

comprar um menino Jesus que ela não tinha. Com dois anos. Queria um menino Jesus e a tia

foi ao Chiado, a uma casa com artigos religiosos e comprou-lhe o menino Jesus. Que ela

guardou sempre ao pé dela, quis sempre ao pé dela, estava sempre com o menino Jesus e no

penúltimo tratamento da C. ela saiu e perguntou “então hoje o avô não vem?” e a avó disse

“não, hoje o avô foi a Fátima” e ela “ah então também quero ir”. Nós dissemos “Mas oh C.

hoje não dá, tu ainda não acabaste o tratamento, só vais acabar ao final da tarde. “Mas eu quero

ir a Fátima” A C. ainda não tinha quatro anos “eu quero ir” e eu “pronto ok queres ir vamos”.

E o meu marido disse-me assim “olha dá jantar à L., despacha-te que vamos para cima

passamos por casa, apanhamos-vos porque a C. quer ir a Fátima”. Já era tarde. Bastante tarde.

Chegámos lá mesmo na altura na procissão das velas. Eu sei que estava com a C. ao colo e eu

as vezes conto isto e sei que isto pode ser estranho, mas no momento em que passou a Nossa

Senhora os meus joelhos foram ao chão, com ela ao colo. Sem eu ter tido a intenção de... Os

joelhos baixaram-se e estive com ela ao passar e há assim essas pequenas coisas que dizemos

“isto é assim uma coisa de transcendente”

E: Uma ajuda divina...

M: Eu acho que sim, quero acreditar que sim. Talvez isto ajude, mas de resto não. Foram

aqueles momentos mais duros, mas nós, como costumo dizer, vivemos sempre a doença da C.

de forma saudável. Nunca a fechamos em casa, não deixamos que a C. não fizesse isto ou

aquilo ou outra coisa porque estava doente. Ela queria sair, nos saímos. A C. queria ir comer

isto ou aquilo, ela ia comer. Nós nunca nos fechamos em casa nem para ninguém. E a C. esteve

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sempre... E quando estávamos no IPO fazíamos como se aquilo fosse uma grande festa. Tanto

que ela dizia “hoje vou para o hotel” Para ela era o Hotel onde ela via passar os aviões e os

comboios e aquilo era muito engraçado. E nós brincávamos e nós riamos e as vezes a minha

sogra dizia assim, porque ela ia de noite ou ficava de noite e eu ficava de dia. Quando a L. fez

os seis meses, foi para o infantário, quando eu já tinha deixado de dar mama à menina, e então

já podíamos fazer isso. Ou o meu marido ou a minha tia apanhavam a L. depois o meu marido

ia-me buscar L, levava a L. as vezes com ele e eu ficava durante o dia de manha, e vinha a tarde

e então nos brincávamos imenso. E a minha sogra dizia-me assim “ah tens que ter cuidado

porque as pessoas dizem que não deves ter muita noção do sítio onde estás, porque vocês

fartam-se de rir durante todo o dia”. Então “eu estou a brincar com a minha filha, qual é o

problema? É melhor ela estar a chorar?” Ela não tinha vontade de chorar, ela sempre foi assim,

gostava de brincar, quando não estava a dormir estava acordada, brincávamos.

E: E acha que isso também a ajudou a viver melhor a situação?

M: Sim. Tentei sempre, sabia que estava lá, sabia que era muito duro e muito triste e muitas

vezes estávamos a brincar com uma criança de manha e saber que à tarde ela podia já ter

morrido. É uma coisa má, mas... Hoje em dia, eu estava ali com ela e ?? dela a chorar, era a

coisa mais normal, tinha que estar ali, tinha que fazer o tratamento e tinha que fazer tudo para

que ela tivesse bem. Porque no fundo, acabava por interiorizar aquilo que estava a fazer...

E: E está-me a dizer também que uma das coisas que ajudou foi a ajuda da sua sogra,

não é? Foi um apoio. Houve mais apoios?

M: Da minha tia, do meu pai. Toda a família ajudaram, uns de uma maneira outros de outra.

Quando não podia um, outras vezes “olha eu hoje não posso vir” (AVIÃO) a minha tia como

gosta muito de andar a passear por Lisboa, já estava reformada, ela ia comigo nos dias das

consultas...

E: Isso foi uma ajuda para viver a doença nessa altura?

M: Sim, sim.

E: Estava-me a falar da família. Uma das coisas que nós gostávamos de nos centrar nesta

entrevista é: como é que foi vivida a doença, pelo casal, por vocês os dois? Existiram

consequências? Foram logo, foram depois? A vossa história como casal depois da

doença... Houve alguma alteração?

M: Foi sempre igual. Não houve alteração nenhuma. Ficámos mais unidos...

E: Então houve uma alteração! Uniram-se...

M: Ficámos mais unidos... Sempre fomos! Nós... foi a primeira filha, nós... Fiquei logo grávida

ao fim de seis meses de casada e... Sempre fomos unidos! Foi duro, chorámos bastante, mas

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pronto, tínhamos que... O S estava no emprego novo, por caso teve muita sorte da parte da

entidade patronal porque tiveram sempre... e como ele tem a possibilidade de trabalhar onde

estivesse, portanto ele tanto podia estar a trabalhar no hospital ao pé dela, como em casa e...

Sempre saiu fortalecida, sempre nos ajudámos, quando não podia um podia o outro, ainda hoje

é assim, dividimos....

E: Complementavam-se no tratamento...

M: Sim, sim... Quando eu não podia ia ele, quando ele não podia, ou então íamos os dois.

Podíamos ir os dois, melhor ainda para ele porque ele gostava que eu tivesse com ele. Muitas

vezes ao fim de semana deixávamos a L. com a minha tia e íamos os dois, e passávamos um

domingo inteiro lá com ela ou o sábado inteiro. Ele preferia que ela apanhasse os tratamentos

ao fim de semana para poder libertar um pouco a mãe e então....

E: Não notaram nenhuma alteração na vossa convivência durante esse tempo?

M: Não, não! Falávamos muito...

E: Houve algum momento depois disso que tenham ido abaixo? Nunca?

M: Não.

E: Na literatura sabe-se que há muitos casais que se divorciam...

M: Pois nós tivemos muitos amigos infelizmente... Nós até ao momento nunca nos tinha

acontecido nenhum amigo com filhos com este problema. Neste momento já é o segundo casal

amigo direto com filhos com o mesmo problema da nossa filha. Uns a menina morreu

(AVIÃO), chegou a um ponto em que pelo menos para um deles o facto de a filha estar viva já

era um estorvo. Eles já não estavam bem e eles parece que queriam que houvesse um desfecho

o mais rápido possível para cada um ir para seu lado e separaram-se. Neste momento temos

outro casal amigo que está em início também, com o filho com o mesmo problema que a C. e

que têm contado com algum do nosso apoio. Nós temos dado esse apoio, já com a outra menina,

mal soubemos que tinha... aliás, eles valeram-se dos sintomas na nossa filha para conseguirem

chegar à médica e dizer “a menina está assim, nós temos um caso assim” e a médica “não, não

vamos pensar nisso” mas “doutora faça uns exames, eu prefiro ficar descansada de que

realmente”. Ligaram para mim e “olha a M. está com o mesmo problema que a C.” Com a

mesma idade, com prognóstico muito diferente do nosso, muito mais leve, mas a menina não

aguentou e morreu passado um tempo. Alias ela foi operada e passado um tempo já tínhamos

acreditado que ela não conseguia, ela não reagia. Neste momento temos outro menino também

que foi descoberto, penso que em Setembro, foi no final das férias. Estes o meu marido conhece

melhor, porque os outros eram nossos amigos diretos, este é um antigo colega do meu marido

e pronto, já foram lá a casa, falaram. É diferente porque o menino já é mais velho, já tem 7

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anos, já compreende melhor. Na altura com 2anos não se compreende o que é, aliás a C. diz

que nunca teve doente e não fala muito do assunto. Mas nós como casal não, nós sempre

tivemos esse aspeto bom, foi...

E: E o que é que acha que permitiu que vocês não se divorciassem? O que é acha que vos

valeu para que não houvesse conflitos?

M: Não sei, agimos de maneira sempre tão natural, vivemos aquilo de uma forma tão natural,

conversávamos muito. Nem nunca houve ali, nem da parte de um nem da parte do outro, porque

se havia receios nós falávamos, se havia alguma coisa... Nós tínhamos muito tempo livre e

falávamos muito. Acho que...

E: Falavam para resolver problemas? Falavam para apoio emocional?

M: Não... Era aquilo que calhava. Nunca foi assim... nunca encarámos... depois de termos, e

como as coisas estavam a correr tão bem...

E: (Pois, isso foi facilitador...)

M: Nós nunca houve assim nada que... nunca houve nada. Como eu costumo dizer, nunca

houve nada, nem de um conflito, nada que tivesse que ser resolvido. Geralmente nessas coisas

se há um que não está de acordo (nessa altura não, porque não havia nada para estar em acordo

ou em desacordo) há sempre um que dobra e que até entende e eu explico o meu ponto de vista

ou o outro explica o seu ponto de vista e então aí chegamos a um acordo, mas nós nunca tivemos

assim nada que motivasse, que fosse...

E: Hoje acha que há algumas consequências da doença na vossa vivência enquanto casal?

M: Não. Continuamos sempre, acho que nos unimos ainda mais e que damos muito mais valor

à família, (se calhar se não tivéssemos passado por isso...) à família e a tudo aquilo que nos

rodeia, aquelas pequenas coisas que as vezes não fazem sentido e porque é que hei-me chatear

com isto. Como as vezes o meu marido costuma dizer “Porque é que eu estou à espera que me

saia o euro milhões, ele já me saiu uma vez, porque é que me há-de sair a segunda vez? Já

temos aqui o euro milhões em casa”.

E: Ou seja, tomaram a resolução da doença como qualquer coisa de tão positivo que

acabou por relativizar outro tipo de problemas...

M: Foi positivo. Ainda hoje é, pronto, é... nós ainda, efetivamente, nos preocupamos quando

ela vai fazer o exame anual, há sempre aquele bichinho, o coração um bocadinho apertado,

depois às vezes há aquelas coisas que nós ficamos logo assim “ahhh” se ela tem uma pequena

dor de cabeça. O ano passado ela teve uma crise de sinusite, mas ainda não estava ativa mas

estava lá e ela andou ali dois ou três dias a queixar-se com dores de cabeça e eu comecei logo

a ficar aflita: “Oh S desculpa lá mas ela já andou com dores de cabeça na sexta no sábado e no

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domingo e na segunda. Hoje é dia de carnaval, amanha o Dr. Duarte está lá, tu vai-me já com

ela para o Dr. Duarte. Tu vai ao Dr. porque ela não costuma ter nada”, porque depois ela,

porque depois nós víamos que ela tinha receio, que ela estava com medo, porque ela só

conseguia adormecer se tivesse deitada ao meu lado e agarrada a mim. Ela agarrava-se muito

a mim, tal e qual como quando estava...

E: Agora?

M: Agora sim. Claro que depois foi ao Dr. e ele “tu estás é com uma crise de sinusite, vais mas

é para casa, vai-te deitar”. Assim com pequenas coisas. Houve uma vez que o pai sentiu um

caroçosinho e cheio de medo lá foi a correr para o IPO. Dizia o médico “oh pai, é a miúda que

já está a começar a ter maminhas, é normal”. Pronto, ele é muito picuinhas com elas, mais do

que eu. Eu sou mais desligada. Como eu costumo dizer, quando elas estão doentes ele é o

enfermeiro “vão para perto do vosso pai, durmam com ele, não me acordem de noite para tomar

os medicamentos”. Ele é que vai com elas sempre ao médico quando estão mais assim, pronto

“vão-se lá queixar ao vosso pai”.

E: Mas está-me a dizer que há uma preocupação diferente em relação à saúde da C. do

que da L.

M: Sim, mas é tão raro...

E: Sim, mas existe... e existe a outros níveis? Por exemplo, considera que é uma mãe igual

para a C. e para a L. ou não?

M: É assim, eu não dou... A C. é mais, como eu costumo chamar “mais chata”, porque ela é

mesmo muito melguinha. Pronto, há uma atenção diferente, por motivos diferentes. A C.

porque foi tratada mais numa redoma acha que pode de vez em quando pisar, ela é uma

criança... É como estávamos a dizer, temos duas filhas e há o 8 e há o 80, por exemplo a nossa

mais pequena é muito mais... Sempre foi muito independente, desde pequenina e gosta de fazer

coisas e achar que pode ir para ali e para outro lado sem dizer nada ao pai e não gosta muito de

acarretar que tem que ir estudar e eu tenho que estar sempre a ralhar com ela, mas no entanto

é uma criança que eu não consigo levantar a mão para lhe bater. E a C. é ao contrário. Nós não

precisamos de lhe dizer absolutamente nada porque ela sabe aquilo que tem que fazer, que tem

que estudar e ninguém se mete na vida dela porque ela tem a vida organizada, mas se for preciso

eu levantar-lhe a mão e dar-lhe de vez em quando porque ela faz uns disparates eu dou-lhe. À

outra eu não consigo bater, não sei porquê.

E: Acha que tem alguma coisa a ver com ela (a L.) ter sido um bocadinho afastada na

altura da doença...?

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M: Não, talvez porque, eu acho que, lá está, ela foi ali um porto de abrigo. E é assim se eu

estiver doente é mais fácil ela dar-me colo do que a C. Se eu disser “olha a mãe vai-se deitar

um bocadinho porque lhe dói a cabeça”, a L. até é capaz de se ir deitar ao pé de mim e fica ali

até eu adormecer. A C. não. É capaz de ficar no quarto, nem sequer sabe se eu estou a dormir,

faz uma barulheira e manda com as portas e põe o som alto. Penso para mim “não tens

consideração nenhuma por mim”. É assim um bocado... E às vezes... ela é muito desajeitada,

sabe que muitas vezes ela faz algum disparate porque ela é desajeitada, como... Na mão, ela

tem força, mas não controla muito bem as vezes as coisas, e de vez em quando há caixas com

sopa pelo ar e copos entornados por todo o lado. Depois diz que não está sujo, que não está

sujo. Eu digo: “não está sujo o quê? (...?) Mas não, assim ao nível do tratamento... eu sei que

há diferenças mas eu acho que isso é....

E: Está-me a dizer que é essas diferenças que podem ter a ver com a doença, ou seja com

a C. ter sido uma redoma. A questão da redoma é a questão do apoio. Acha que a redoma

em que viveu a C. pode ter tido depois alguma influência ou acha que são mesmo

características da doença?

M: Eu acho que é assim, não fui eu que a pus na redoma. Foi o ambiente todo, porque eu estava

com ela e se tinha que lhe bater eu batia (o safanão). Nunca a deixei... agora, ela quando estava

com os avós era super mimada e eles mimaram-na sempre muito e ainda hoje, ela tem 17anos

e se a avó achar que tem que lhe dar comida à boca, dá-lhe a comida à boca, porque se a menina

achar que deve comer assim é assim que lhe fazem. Não, não pode ser assim... é um bocado

isto: “ah não deixa estar que a avó faz, deixa estar que a avó corta”. “C. tens quase 18anos,

qualquer dia és independente, vais estudar para qualquer lado e tu não sabes partir uma laranja,

não sabes partir um ovo...” e depois chora, berra, grita connosco porque não lhe fazemos o que

ela quer ou como ela quer que façamos.

E: Mas quando era pequenina faziam?

M: Faziam. Faziam-lhe sempre tudo.

E: E os pais? Faziam?

M: A mãe nem por isso. Eu tentava sempre... pronto, se via que era coisas que ela não conseguia

fazer, mas é evidente que ainda hoje faço e é aquilo... eu não sou bem galinha mas sou entre

aspas porque eu começava quase a ver os pintos a saírem de casa e eu desde que tive a C.

trabalhei e depois voltei a trabalhar depois de ela ter acabado o tratamento, passado um ano

voltei a trabalhar. Mas depois chegamos à conclusão que eu fazia falta em casa porque ela

chorava com falta, porque estavam habituadas, embora fossem para o infantário e eu já há uns

bons anos que não trabalho, ou seja, optamos por eu ficar em casa. O meu marido está quase

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sempre fora, eu estou quase sempre em casa. Vou pô-las à escola, vou busca-las à escola; “mãe

esqueci-me do lanche” eu vou levar o lanche à escola; “mãe não tenho dinheiro para almoçar”

eu vou levar o dinheiro à escola; “mãe falta um livro” a mãe leva o livro, a mãe vai por ali, vai

buscar acolá, à noite querem sair à noite com os amigos, a mãe e o pai vão buscar. É um bocado

assim. Elas ainda hoje têm esse apoio.

E: Mas acha que ter havido uma doença alterou a maneira como era mãe ou como

pensava ser mãe?

M: Não, porque foi muito no início de ter tido a menina e como eu trabalhava, as vezes eu

chateava-me um bocadinho, porque eu própria era filha de uma mãe que estava sempre em casa

e como a minha mãe também estava sempre em casa eu senti-me muito protegida e eu acho

que a minha mãe ainda era pior do que aquilo que e sou. A minha mãe quase em vésperas de

eu me casar a minha mãe não me deixava mexer numa faca porque eu me podia cortar. E eu

hoje já não digo isso “não, queres fazer, vais fazer”, tanto que deixo, por exemplo, se a mais

nova quer fazer (porque ela é mais astuta e gosta de fazer) “olha e vamos fazer um bolo” “então

vai fazer o bolo... já sabes como é, ligas o forno”, não sei que eu vou lá ver se está bem ligado

e muitas vezes já tem acontecido, aconteceu a pouco tempo, eu precisei de ir com o meu pai

para o hospital e tinha deixado o jantar, elas estavam sozinhas, o pai não estava e eu telefonei

e disse “L. fazes o jantar para a tua irmã?”. E ela é que faz o jantar para a irmã. Porque se a

irmã for para a cozinha pode ficar um bico aberto do fogão, pode ficar tudo espalhado e tudo

sujo.

E: E acha que isso tem a ver com uma característica ou uma consequência da doença, ou

do tratamento?

M: Eu penso que não, que é uma maneira de ser dela que é assim, mais despistada. Eu acho

que nisso sai um bocadinho ao pai.

E: Outra coisa é só o braço que pode não ter ficado...

M: É... nisso sai ao pai. O pai também se vai embora e deixa o bico ligado, as chaves na porta...

E: Mas imagine a seguinte situação: as suas duas filhas querem sair à noite com os amigos,

fica preocupada com as duas igual ou fica mais preocupada com uma ou mais com outra?

M: Fico mais preocupada com a mais nova do que com a mais velha, porque a mais velha é

mais certa, a mais nova ainda é um bocado tonta.

E: Sintomas físicos, as duas têm dores de cabeça, dores no corpo. Fica preocupada com a

mais velha ou com a mais nova?

M: Não, agora já não fico tão preocupada se bem que quando a C. me diz “ah doí-me a perna”.

Quer dizer fico preocupada mas sei que aquilo é, pode ser uma dor muscular porque ela é atleta

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veterada, e eu sei que ela as vezes na pressa de sair ou porque se agasalhou mal lá tem um

músculo que fica mais...

E: Se são continuados é que se preocupa mais como na presença da dor de cabeça...

M: Sim, sim, tanto numa como na outra.

E: Mas em termos de preocupações de saúde acha que se preocupa de forma igual com

uma e com outra?

M: As vezes, mas com a C. é muito raro, é muito raro, é.

E: E por exemplo, alguma coisa que elas façam errado, fizeram um erro qualquer é mais

tolerante com uma do que com outra?

M: Sou, as vezes sou. Com a L. acho que sou. Não devia ser mas não consigo...

E: Tem a ver aqui com o porto de abrigo não é? E a outra ter sido, digamos, mais difícil...

M: É, é. Porque acabámos por estar aquele tempo mais separadas, porque lá está eu deixei-a,

com três meses fui trabalhar, ela ficou com a avó. Eu via-a de manha e à noite. Ela de manha

estava comigo, eu à hora de almoço ia trabalhar, depois só a via, as vezes lá para a meia-noite,

uma da manha porque queria mamar ainda então aproveitava, mas pronto, ela agarrou-se muito.

Ela é muito agarrada à avó e à minha tia. Eu as vezes costumo dizer “vocês gostam mais da tia

do que de mim”. Não é da avó. Porque a mais nova não se dá com a avó. Não tem qualquer

ligação com a avó, porque quando ela nasceu a avó estava com a irmã. Agora com a minha tia

elas... a primeira coisa que fazem no primeiro dia de férias é “mãe desculpa lá, mas nós vamos

para a tia” porque a tia tem 84anos e a tia vai para todo o lado com elas. Elas têm uma paixão

por ela. Ela vai para onde elas quiserem. Porque depois a tia faz tudo o que elas querem...

E: E acha que a doença da C. influenciou de alguma forma a sua tarefa como mãe?

M: Na altura em que ela estava doente, sim. Porque era o dia todo só para ela. Durante o tempo

que ela esteve doente, praticamente a minha vida era ela porque a C. tinha que dormir muito

porque andava sempre muito cansada então nós de manhã... ela levantava-se tarde, ao infantário

ou o pai levava e eu ficava e depois ela só queria dormir comigo, agarrada a mim, então eu

dormia o dia todo, e depois de noite não dormia... quando acordávamos a meio da noite não

sabíamos onde é que estávamos, porque nunca estávamos na nossa cama. Eu durante uma data

de tempo tive que dormir com a C.

E: Então isso influenciou o casal?

M: Não. Porque as vezes ele ia buscar a pequena, a pequena dormia com ele e eu dormia com

a outra. Há muitos amigos nossos que têm filhos e isto continua a acontecer ... “ah nós não

sabemos onde acordamos, acordamos um para cada lado”

E: Convosco acabou foi por ser é mais vezes...

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M: Sim, foi um bocadinho mais...

E: Hoje como é que vive a doença da C.? Acha que a doença curou? Acha que não? Tem

dúvidas?

M: Sim, está completamente curada, ela nunca mais teve nada.

E: E considera que nunca mais vai haver mais nada?

M: Penso que não.

E: Acha que as coisas estão resolvidas...

M: Nem quero pensar tão pouco nisso... É evidente que qualquer um pode ter. A C. mais tarde

pode vir a ter outra coisa qualquer, mas em relação àquilo, já passaram tantos anos...

E: Considera hoje que viveu o cancro como uma doença das mais severas ou acha que há

outras mais severas?

M: Se calhar há, eu não conheço, nem nunca convivi com nenhuma das outras.

E: Mas esta considera-a uma doença severa?

M: Sim. No meu caso eu acho que teve ali no meio-termo... Como ela era muito pequenina não

expressava muito, nós não conseguíamos dar muito valor ao sofrimento dela. Ela não

exteriorizava muito. Como eu digo ela sempre foi uma criança muito alegre. Só quando estava

mal disposta é que aquilo lhe doía bastante. Só havia um tratamento que lhe fazia aquilo que

era o mais pequeno mas talvez o mais agressivo que quando ela vinha para casa, dali a um

bocadinho que já sabia que ela começava com espasmos e vomitava este mundo e o outro.

Tirando essa altura, quando estava no hospital quando voltava para casa vinha bem-disposta.

Ainda às vezes brincamos com ela e diz assim “ah e ainda as boas mijadelas que tu me pregaste

no colo que eu passava horas, horas!” As nossas tardes de domingo era eu sentada nos cadeirões

do hospital com ela ao colo a dormir, tipo umas duas, três horas seguidas, o pai sentado na

cama a ver televisão, a vermos os filmes que davam durante a tarde e de vez em quando lá vai

mais uma, lá vais mais outra – porque ela não se sentia, então fazia xixi. Eu tinha que levar

sempre roupa para lá. Ainda hoje na brincadeira ela ri-se, porque ela diz que não se lembra de

nada, não fala do assunto... Eu às vezes pergunto porque é que ela não fala, porque às vezes

lhe digo “eu acho que tu devias falar, quando há algum assunto em relação a isso tu devias falar

porque tu és um bom exemplo”. Às vezes, há uns tempos quando elas estavam a fazer um

trabalho da escola sobre eutanásia e estávamos a falar e eu disse “então e tu já viste C. tu já

passaste por um fase má, imagina-te nesta situação assim e assim” e as colegas ficaram a olhar

para mim, e eu assim “não me digas que nunca contaste às tuas amigas...” e elas a olharem para

mim: “então mas o que é que se passou?” “então a C. quando era pequenina,...” porque ela tem

a marca do cateter, e às vezes perguntam o que é que ela tem ali. E então eu explico mas ela

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não fala. Alias ela diz que não esta doente, não esteve doente. Pouco se lembra. A única coisa

se nós perguntarmos “o que é que tu te lembras de quando tiveste doente?” a única coisa que

ela diz é “o carrinho da comida que cheirava mal” e ainda hoje quando vê o carro da comida

diz “eu ali não entro enquanto aquele carro tiver ali”. Fala-se normalmente como (AVIÃO) “tu

tens que dar o exemplo, tens que falar disto”. Nós temos outra miúda, lá está, outra menina que

é da idade dela e que é colega dela e que também passou por lá na mesma altura e que não fala

do assunto porque ela teve um retinoblastoma e a mãe dela nem sequer quer falar no hospital.

Não sei como é que ela faz, se ela não é acompanhada... Eu como todos, lá está, ainda a semana

passada lá estive porque ela tinha a consulta de endocrinologia, não sei se a outra miúda não é

acompanhada, também nunca perguntei, porque a miúda não faz parte do grupo das miúdas

com quem eu costumo falar e uma das vezes eu falei com a mãe dela porque foi uma altura em

que começou existir a acreditar e se falou que havia de haver mais pais para dar o exemplo e a

mãe disse “não eu nunca mais quero pensar mais nisso nem andar no hospital, para mim passou,

chegou, arrumou” e eu “ok, cala-te”, porque para mim eu não tenho problema nenhum em falar

disso em falar da situação e quando as pessoas dizem “ah não sei que” eu digo assim “eu não”.

Ainda a semana passada me dizia assim uma mãe “então e...” e dizia-me o diretor de turma

dela “e está satisfeita com as notas dela?” e eu disse-lhe assim “completamente”, ela não é uma

aluna brilhante, não tem grandes notas e ela chateia-se com isso, mas é aquilo que eu disse ao

professor “completamente. Não são brilhantes mas tendo em conta que a C. passou isto e isto

e isto, para mim são brilhantes”. Têm que ser brilhantes e “continua C. tu vais chegar lá, porque

tu estudas imenso, tu vais lá chegar, continua”.

E: Acha que ela pode ter que fazer um esforço suplementar por ter tido tanta anestesia e

tanta...

M: Não sabemos. Até pode...

E: Acha que pode ter sido uma consequência?

M: Não sabemos. Eu sei que a determinada altura o Dr. Duarte queria sempre vê-la no Natal,

na Pascoa, para saber das notas e as vezes eu dizia “ah podiam ter sido melhores...” e depois

ele dizia assim “não se preocupe com as notas dela porque como já viu todos os que estão aqui,

vê algum igual à C.? Viu o que acabou de sair? Estes pais, sim. Têm que se preocupar, porque

os filhos não estão. Agora a C...” Segundo o Dr. Duarte a C. era a única que era seguida ali que

está a 100%, não tem uma única sequela. Por isso ele diz “nunca se preocupe com as notas

dela”. Como eu costumo dizer “devagar vais ao longe, porque hoje podes ter 10, mas se

continuares a trabalhar podes chegar lá aquele que tu queres, não te preocupes”. Quando ela

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diz “mãe eu quero ir sair” eu digo “vai”, “mãe eu quero ir ali” “vai”... Estamos sempre a

incentivar, “vai, faz isto e aquilo”...

E: E acha que isso pode colmatar alguma perda que ela possa ter tido? Ou seja, acha que

faz isso ainda mais por ela ter tido a doença?

M: Se calhar nós involuntariamente fazemos isso para que ela não se sinta inferiorizada...

E: Estou a perceber. Há uma preocupação maior vossa a esse nível...

M: A esse nível sim porque como nós não queremos... como ela é muito fechada, ela não fala

muito connosco. Se nós tentamos saber mais um bocadinho de alguma coisa ela “ e não chateies

e isso agora não interessa” e sempre foi assim...

E: Mas acha que ela pode ter algum trauma...?

M: Não sabemos. A esse nível nós não conseguimos saber porque eu penso que ela não fala

disto com ninguém. Nós não sabemos.

E: Mas esse silêncio dela vocês interpretam como podendo ser aqui qualquer coisa que

não está bem, bem resolvido...

M: Não sabemos.

E: Mas convosco está resolvida? Como é que vive hoje a doença? Sente que está resolvida?

M: Sim, penso que sim.

E: E em termos de causa, costumam pensar sobre isso? O que é que terá causado...?

Nunca falaram sobre o assunto?

M: Não sei, acho que nunca chegámos a esse ponto de saber porque, porque é que pode

acontecer. Eu penso que pode ser como qualquer outra coisa. As vezes cancro do pulmão

dizemos “ah a pessoa fuma ou vive num ambiente de fumadores” Pode ser por aí. Agora ali é

complicado, porque ela era muito pequena. Se nasceu com ela ou não isso já não... Às vezes

chateio-me porque a minha tia diz que a primeira vez que olhou para ela quando ela nasceu

achou qualquer coisa estranha no olhar dela e eu digo assim “epá eu não notei nada disso”, ela

diz “a primeira vez que olhei para a menina senti qualquer coisa estranha”...

E: E consequências da doença? Estava-me a dizer que deixou de trabalhar...

M: Eu deixei de trabalhar...

E: Ou seja, a sua vida profissional ficou ali um bocadinho...

M: Ficou...Também não era o melhor trabalho e os horários eram... Não dava...

E: E acha que teve outras consequências para si, a doença da sua filha? A qualquer nível,

profissional, pessoal...

M: Não, não. Na altura depois estava em licença de parto porque foi de urgência, já foi maior

do que a da outra, tive que estar de baixa. Para mim foi um alívio ter vindo para casa. Foi

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porque eu entretanto voltei a trabalhar, passado um ano eu voltei a trabalhar... Porque nós

tínhamos até quatro anos de licença sem vencimento, eu fiquei os dois anos com ela e fiquei

mais um ano com ela porque não sabia se ela se ia adaptar ao infantário ou não e depois voltei

a trabalhar e com a pressão toda do trabalho, com as miúdas em casa a chorarem “mãezinha

anda para casa” porque eu quase não as via, eu entrei mesmo em depressão e andei ali um

tempo... Quase ao fim de dois meses meti baixa porque eu já não aguentava porque depois era

assim: eu tinha acabado de passar por um processo que os meus colegas não entendiam,

vinham-me pôr problemas que não tinham razão de ser e eu era “desculpem lá mas eu não

tenho paciência ara aturar estas criancices” e cheguei ao momento em que me virei para um

deles e disse “olha vocês sabem uma coisa? O ambiente aqui é pior que estar no IPO na

pediatria, agora vejam” e eles olharam para mim “epá parece que estas a menorizar o problema

da tua filha” e eu “não, mas o ambiente aqui é bem pior que o ambiente lá, é que o de lá eu

ainda tolerava agora este eu não tolero. Eu vou-me embora para casa. Quem quiser trabalhe.

Façam aquilo que querem”. Porque como eu era a chefe deles e estive afastada três anos eles

sentiram-se a vontade, fizeram aquilo que quiseram. Havia ali de certeza muita coisa escondida

que eu cheguei e comecei a mexer e eles não queriam que eu mexesse e então começaram a

tentar magoar-me e eu “não desculpem lá mas eu vou pra casa, as minhas filhas precisam de

mim e vocês aqui não. Desenrasquem-se!”

E: E em termos pessoais? Está-me a dizer que teve uma depressão, mas conseguiu depois

sair dela?

M: Sim, sim. Eu penso que no dia em que fechei a porta da empresa que eu me senti... já a

descer as escadas depois de ter falado com eles, eu melhorei. Para já porque é assim eu fui à

inspeção medica eles disseram que eu tinha que tomar qualquer... Tiravam o subsídio porque

eu tinha que ir trabalhar e já não se justificava porque a minha filha já não estava doente e não

podia ser a minha filha e porque as depressões não se curavam por estando em casa. E eu assim

“ah é...” então eu liguei para lá porque tinha pessoas lá dentro que me ajudaram bastante e até

"olha você sabe uma coisa? Eles até estão a oferecer um x pelas pessoas que querem fazer

rescisão de contrato. São as mais velhas, não são as mais novas, mas você, face ao problema

que teve com a sua filha fale com a Dr.ª que ela é capaz de entender” e depois eu disse “ah

porque quero continuar a acompanhar a C. e não sei que, está bem que está tudo bem com ela

e não sei quê...” Então combinamos e fizemos ali uma rescisão amigável com direito a ir para

o fundo de desemprego e eu vim-me embora para casa. Para mim foi uma maravilha! E

mudámos de casa e mudámos de ambiente e fomos para o campo, com uma casa com um

quintal grande com cão, com as miúdas a poderem fazer aquilo que queriam quando queriam

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porque nunca foram crianças de jogos, de bonecos. Elas gostam é de brincar na terra, com os

cães e com os animais e essas coisas todas e o meu marido sente-se muito melhor porque diz

que “posso ir para ali e para acolá, que estou descansado que tu estás em casa...” foi o melhor

que fizemos.

E: E para si houve alguma consequência? De si para si? Acha que se tornou uma pessoa

diferente? Pela sua filha ter tido a doença?

M: As vezes sou um bocadinho menos tolerante às mariquices das outras mães. Quando as

outras mães dizem “ai o meu filho não come”... E eu “epá desculpem lá, mas eu não tenho

paciência para isto”. Quando há aquelas coisas muito pequeninas que agente...

E: Deixou de valorizar... Há outras prioridades...

M: E para elas é ótimo, estou ali em casa e as vezes... (AVIÃO) “eu não sei como é que tu

consegues”. Então, arranjas hobbies. É aquilo que eu faço, são hobbies. Eu gosto de fazer isto,

gosto de ler, gosto de fazer artesanato...

E: E acha que essas estratégias a ajudaram?

M: Ah eu nunca tenho é tempo para fazer tudo. Precisava que o dia tivesse mais tempo.

E: E as suas preocupações de hoje são o quê, em relação à C.?

M: É o futuro dela, é saber que... Porque pronto eu sei que ela se assusta facilmente embora ela

não diga. O problema é saber se ela vai conseguir ter notas suficientes para entrar para a

universidade, não duvido que não, pode levar mais um ano que as outras crianças mas com a

garra que ela tem a nível de estudar e... Que é capaz de chegar lá. Ainda agora, nós falamos

muito sobre isso, porque o pai é da opinião que as filhas vão estudar para fora do ambiente

delas, o ambiente de Lisboa, para ele já é muito perto. Então a C. quer ir estudar para o Porto...

E: Quer fazer o quê?

M: A C. neste momento quer ir para nutrição... Mas ainda no outro dia disse ao pai “tu sabes

porque e que ela quer ir para o Porto? Porque é no Porto que está o melhor clube de acrobática”

que é o que ela faz. Ela faz ginástica acrobática, e então é por aí. Uma vez disse-lhe “tu queres

ir para o Porto por causa do Acroclube da Maia?” e ela começou-se a rir e eu “tu achas que

quando fores para a universidade vais ter tempo para cambalhotas?”. Neste momento a

preocupação é saber se vai conseguir, porque eu não tenho duvidas que ela consiga. Pode não

se adaptar logo porque lá está ela é muito mais dependente.

E: E acha que a doença teve consequência para ela desse estilo, ficar mais dependente?

M: Porque eu fazia-lhe tudo, lá está. Eu era mais mimadinha, fazia tudo o que a menina não

conseguia. A menina não conseguia partir, ainda hoje não consegue partir o pão com a faca...

Porque depois lá esta, é canhota, porque não tem força nesta mão e eu “oh C. descasca tu a

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laranja” e ela “Ah não consigo, oh mãe...”. E eu: “então mas tu tens que aprender, olha lá como

é que tu vais, vais morrer a fome nos primeiros dias quando fores para fora da mãe”. É escuteira,

isso fez-lhe muito bem. Assim que ela terminou o tratamento, na semana em que ela acabou o

tratamento o pai meteu-a no infantário e meteu-a no ballet porque ela não quis fazer fisioterapia.

Dizia que aquilo era a ginástica dos velhinhos. Então não fez e foi para o infantário e para o

ballet. Assim que ela... e foi para os escuteiros para começar a ver, pra se desenrascar.

E: Mas mesmo assim acha que ela ficou mais fechadinha?

M: É. É muito caladinha. Ainda o diretor de turma me dizia no outro dia “eu queria que a C.

me desse mais luta porque a C. não me dá luta nenhuma. Nunca fala comigo. Nunca fala aquela

menina.” Pudera. Houve uma vez um professor de matemática que ela pôs uma dúvida e ele

disse “ah afinal tu falas” e ela nunca mais falou. Ela é muito fechada. Digo-lhe assim “tu falas

demais aqui em casa, e devias falar mais na escola”.

E: E isso preocupa-a?

M: Sim, porque ela devia falar mais, abrir-se mais... Porque ela só fala quando não deve, só

fala lá em casa...

E: O que diria, por ultimo, aos pais cujos filhos foram hoje diagnosticados?

M: Para terem esperança, porque nós passámos pelo mesmo e tivemos sucesso porque é que os

deles não hão-de ter... Ter esperança nesse sucesso. Se bem que há aí uma faca de dois gumes

nessa pergunta, porque aquela menina que nós demos todos o nosso apoio e “vai correr tudo

bem, vai correr tudo bem” e ainda hoje me doem as palavras da avó no dia do funeral: “a vossa

filha salvou-se mas a nossa neta não se salvou. Vocês tiveram tanta sorte”. E eu hoje digo assim

“será que eu ao dizer às pessoas para terem fé, que vai tudo correr bem não estou a induzi-las

em erro?” Porque nós não sabemos. No nosso caso resultou, porque eu continuo a dizer às

pessoas mesmo mais velhas que tenham, passam porque há casos “pá ponham os olhos na C.,

ela consegui...”

E: Também todos sabem que há casos em que não se consegue. Portanto a fé é

importante... E aos profissionais de saúde o que é que lhes dizia? Para melhorar a ajuda?

M: Aos médicos, eu não tive razão de queixa alguma. Acho que tudo aquilo que eles fizeram,

fizeram o seu melhor.

E: (...? AVIÃO) O que é que nos médicos considerou mais importante?

M: Eu acho que sempre tudo porque eu não tenho isto a apontar, de um médico, um enfermeiro,

um auxiliar. Acho que todos eles tiveram no seu melhor, na altura certa, deram todo o apoio. É

aquilo que digo, as vezes oiço dizer “ah porque fizeram, porque não fizeram, porque é preciso

ir com o meu filho para o estrangeiro e porque não temos apoio e não sei que mais...” E quando

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vejo fazerem peditórios eu fico um bocado chocada porque eu estive no IPO tanto eterno (?)

com a C. e a nós nunca nos faltou nada. Desde a assistente social que nos encaminhou por todos

os processos, por todos. A C. teve direito a tudo. Nós nunca pagámos a não ser que quiséssemos

vir no nosso carro – a C. tinha um táxi disponível 24h/dia sempre de chamada à hora que fosse

necessário para vir. Eu tive todos os apoios. Eu tive apoio da C., a avó teve um apoio, o apoio

da terceira pessoa. Nunca nos faltou absolutamente nada

E: Quer emocional quer de informação? Foram sempre informados? Consideraram que

a informação...?

M: Também o meu marido mexeu-se sempre muito e nunca deixou nada para trás. Se calhar

também há muitos pais que não conseguem encontrar esse bocado. Mas quando eu começo a

ouvir “ah porque a menina precisa de fazer um tratamento” desculpem, mas a minha filha fez

os tratamentos todos, nunca ninguém me pediu dinheiro no IPO para fazer um tratamento e

alem do mais o IPO quando o IPO não tem aquele tratamento manda para o estrangeiro e são

eles que... É evidente que não podem subsidiar os dois ou os três mas há sempre um elemento

do casal que tem que abdicar para dar o apoio, mas como eu sempre tive todo o apoio ali dentro

há coisas que (AVIAO) eu, é como digo, desde o dia em que entrei na Estefânia em que a

médica disse o que é que se passava, o que é que a C. tinha, (estavam preocupadíssimos mais

comigo do que com ela porque eu estava gravida com uma grande barriga)... Tive o apoio todo.

Eu estive no São José, eu tive os enfermeiros sempre de volta de mim, de vez em quando viam

a tensão. Um dia até me disseram, eu saí do hospital era 8h30 e a minha filha ainda nasceu as

22h30 em Vila Franca. E elas disseram “ah isso é só para amanha de manhã... Não te atrevas a

ter o bebe ai que não temos serviço de partos, mas com essa tensãozinha isso só para amanha

de manha”. Eu fui a casa peguei na mala, fui para o hospital, tive a minha filha, eram 22h30 da

noite, já tinha nascido... que até a medica perguntava “levou epidural?” e eu assim “a minha

epidural foi andar com a minha filha ao colo toda a tarde, subir não sei quantas vezes a rampa

de São José para ir comer, quando vinha comer ia para lá e para cá e foi a epidural que eu

levei”. Cheguei lá e foi, quase não demorou nada. Eu fiz a ficha as 22h da noite e até encontrar

a porta onde tinha que ir, porque ninguém me soube indicar, ela nasceu as 22h30. Por isso é o

que eu digo, 100%, não houve razão de queixa de nada nem de ninguém.

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CASAL 07 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – C.

E: Estava-me a dizer que a experiência que tem tido...

P: Pela experiencia que temos tido como sempre correu tudo bem nos também... e temos falado

muto os dois, a parte mais negativa, nós também digamos... nós conseguimos converte-la numa

parte mais positiva e sempre conseguimos, mesmo nos momentos, como costumo dizer, menos

bons, que deviam ser provavelmente os momentos maus, transformá-los em momentos menos

bons e não pensava muito nos momentos menos bons.

E: Como é que fazem isso? Como é que acha que conseguiram?

P: Pensando noutras coisas e fazendo outras coisas. A T. contou-lhe a nossa história já

eventualmente. A versão dela. Eu conto-lhe a nossa. Vamos fazer agora 19anos de casados e

já namorávamos há 7, portanto, desde 1990, portanto casámos em 97, e depois, obviamente

casámos e o objetivo era no funco fazer uma família e ter uma família. Era o meu sonho, já há

muitos anos, e partilhávamos essa ideia e a C. veio no ano seguinte. Nasceu em 98. Nunca

foram assim muito programadas, nem uma nem a outra mas sempre foram desejadas. Portanto

foram desejadas mas não tínhamos assim uma data para nascer até porque eu gostava que

nascessem no Verão e acabaram as duas por nascer no inverno. Entretanto nasceu a C., nós, a

T. trabalhava na Lusomundo e entretanto mais com um horário de tarde, eu trabalhava mesmo

muito perto de casa. Aliás trabalhávamos os dois muito perto de casa e portanto eu tinha um

horário durante o dia, mais de sair as 16h, 17h, mas depois tinha mais trabalhos por fora, lá

está, fazia computadores e estava ligado à eletrónica e tinha sempre mais atividade e depois

pensamos mandar vir a L. e a L. chegou numa altura complicada da nossa vida. Portanto no

final de 2000 eu já queria sair, queria mudar de emprego porque já trabalhava ali há 5anos e

tal, quase 6anos e queria mudar para outras coisas, para uma área mais comercial. A minha

formação é engenharia eletrotécnica e eu trabalhava numa fábrica e queria fazer outras coisas.

Tinha 30 anos, queria experimentar outras experiencias e na altura mudei de emprego. Ao

mudar de emprego, andei à procura, portanto, queria um trabalho realmente muito vocacionado

para a área técnica mas também com uma forte vertente comercial e que lidasse com pessoas,

que tivesse que sair da área de conforto, digamos assim, e procurar desafios novos. Eu sempre

gostei de desafios, controlados, obviamente, portanto aquilo que eu possa fazer, mas sempre

gostei de os vencer, de participar ativamente e então em Outubro de 2000 eu mudei de emprego

e fui para uma empresa espanhola. Isso exigiu que eu tivesse que fazer uma deslocação

temporária, durante dois meses, até final de Dezembro, para Espanha, Barcelona. E eu fui. Vim

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cá a Portugal durante um fim-de-semana ou três dias e depois continuei a ir para Barcelona.

Nessa altura já estava a T. no final da gravidez da nossa filha mais nova e tinha a C. já três anos

e quando eu voltei a C. tinha uma perturbação na marcha. Essa perturbação, isto foi no final de

Dezembro, até início de Janeiro de 2001, portanto aquela perturbação levava-nos a médicos, a

pediatras e até nós detetarmos a causa, e era um cancro, portanto, um neuroblastoma no cérebro,

até detetarmos a causa demorou ali algum tempo. Foi detetada o final do mês de Janeiro do ano

de 2001. Fez agora 16 anos. Eu tinha 30 anos, tinha mudado de emprego há dois meses,

tínhamos uma filha doente, tínhamos outra a chegar e portanto isto foi uma mistura de

sentimentos muito complicada, para nós os dois, porque ela tinha 32, eu tinha 30 e para nós foi

uma mexida de sentimentos, foi muito complexo e eu acho que a partir desse momento nós

tivemos de ganhar forças e respondendo à sua pergunta de como fazemos isso... Eu acho que é

assim, ainda hoje, é assim, eu não penso na parte mais negativa, é sempre na parte mais otimista

(...) mas tem sido sempre assim...

E: Mas acha que isto foi, que essa maneira de pensar veio com a necessidade de resolver

as coisas depois de saber a doença ou acha que já era assim antes?

P: Já era assim antes, ou seja...

E: Mas aumentou depois?

P: Aumentou muito. Eu sempre fui... eu não vejo as dificuldades. Eu geralmente vejo, e a T.

sabe disso, nós somos muito diferentes nesse aspeto. Portanto quando for ver os questionários

de um e de outro vai ver que é completamente o inverso. Nós somos muito diferentes. Eu sou

muito mais arriscado; sempre um risco calculado, sempre daquilo que veja que, as vezes corre

mal, mas corre mal e eu desvio logo e tentamos voltar a entrar no trilho. Mas eu sou sempre

mais arriscado do que ela e portanto quando eu pensei em mudar de emprego eu não pensei

nunca nos problemas. Pensei sempre nas soluções, naquilo que ia alcançar, no desafio que ia

ser, ia trabalhar mais provavelmente e ia ser um desafio eu ia-me embora durante algum tempo,

para um sítio que não conheço, portanto isso ia ser mais desconfortável e ia ter que fazer

algumas mexidas na nossa vida. Mas pensado a médio/longo prazo nós íamos ter se calhar,

íamos atingir os objetivos que pretendíamos. E isso até nos fazia bem porque como nos

conhecemos bem um ao outro aquilo que nós íamos alcançar e, geralmente eu nunca penso em

mim, penso sempre no conjunto, e portanto no conjunto somos nós os quatro, neste momento,

ou então em quem nos rodeia, muitas vezes é assim, sabia que o que íamos alcançar ia ser bom

para os quatro. Ou o melhor para os quatro e foi. Continua a ser, embora já tenha mudado de

emprego outra vez. E portanto como sempre pensei muito e não penso nos problemas, penso

muito nas soluções rapidamente não demoro muito tempo a tomar decisões. Portanto eu tomo

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uma decisão em 5minutos. “Não é bem esta, tento outra. Para a próxima, já aprendemos com

este erro, para a próxima já não comete este erro, cometemos outros”. E tem que ser assim.

E: Quando soube o diagnóstico foi ai o momento de mudança, foi aí um momento difícil,

foi aí que ativou isso que me está a dizer agora?

P: Foi um momento difícil, não foi um momento de mudança. Foi um momento muito difícil.

E: Como é que o descreveria?

P: Triste.

E: Tristeza grande...

P: Sim. É aquilo que eu me recordo, portanto eu entrei na sala eu reparei na TAC da C...

E: Tava sozinho... Pelo que sei a sua mulher estava cá fora...

P: (desculpe lá ?) Mas eu reparei na TAC da C., vi que o TAC, quer dizer já tinha visto imagens

de cérebros e radiografias, portanto aquilo não era estranho para mim. Mas quando olhei e vi

o plano, eu vi que no cerebelo havia qualquer coisa, embora ela me tivesse a explicar, “eu já

sei o que está ali... há ali qualquer coisa que eu sei que não faz parte do corpo humano; aquilo

não faz parte de um cérebro humano” e ela diz “pois, tem aqui uma massa”. Tanto que eu

depois quis participar e disse ao médico “desculpe lá, é a minha filha eu quero ver as

ressonâncias e desculpe lá se lhe vou fazer muitas perguntas” e fiz de facto muitas perguntas,

nas duas ressonâncias. Depois... quando foi em São José deixavam-me fazer isso, no Ipo já não

, já não deixaram participar mais, porque senão eu continuava a ir às ressonâncias e assistir

porque eu sempre quis saber o que se passava com ela exatamente. Entretanto quando... depois

foi um momento muito triste, foi muito triste porque os piores receios vieram à ideia. Nós não

sabíamos o que se passava mas calculamos, até porque até àquela data, de certo modo, passava-

me muito ao lado, ou seja, sabia que havia cancro infantil, mas nunca tinha tido ninguém nem

tinha lidado com ninguém que tivesse cancro. No nosso grupo de amigo, depois, infelizmente,

já houve vários casos, mas no nosso grupo de amigos, no meu grupo de conhecidos, pessoas

com quem eu sempre falei e convivi, não havia um único caso de leucemia ou cancro infantil,

nem cancro jovem. Portanto eu tinha visto uma ou outra reportagem na RTP uns anos antes,

mas foi coisa que me passou, sinceramente, me passou ao lado. Não era a minha realidade e

quando eu assisti à situação, o momento do diagnóstico não foi o mais grave, o momento em

que entramos no IPO três semanas depois, foi sim o momento mais grave. Aí foi o momento

mais triste talvez da minha vida até hoje. Porque quando nós soubemos o diagnóstico, foi na

Estefânia, a C. foi para São José, porque ai, ela ia acordada ou semi acordada e aí íamos todos

muito bem. A C. tinha dois anos, a T. tinha uma grande barriga, a espera da L. e fomos os três

na ambulância mais uma médica e mais uma equipa que nos transportou para São José. Eu

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entretanto liguei para o meu pai, o meu pai veio ter comigo e “olha passa-se isto” e pronto, eles

vieram ter connosco e a C. fez a sua primeira cirurgia nessa noite e depois ficou uma semana,

isso foi na segunda-feira a noite, na terça de madrugada. Depois na sexta-feira de manhã voltou

a fazer uma cirurgia forte para tirar o tumor. Depois ficou mais duas semanas e meia no

hospital, a L. nasceu entretanto, na semana seguinte, e depois entrámos no IPO. Aí sim, o IPO

foi se calhar o pior momento. Aquela primeira semana, senão aquele primeiro dia foi realmente

o momento mais triste.

E: Consegue-me dizer porquê?

P: Sim. Porque eu nunca tinha visto tanta criança e é isso que, ainda anteontem eu estive no

IPO e, já não ia lá há bastante tempo e hoje já não me magoa nada. Hoje eu vejo aquela

realidade com outros olhos. O que me custou foi eu entrar, eu nunca tinha lá entrado, nem sabia

onde era o Hospital e nunca tinha entrado ali no IPO nem nunca tinha feito ali aquela viragem

na praça de Espanha. Aquilo era-me perfeitamente novo. E eu entrei e nós tínhamos que ir ter

com o Dr. Duarte Salgado no 7ºpiso e primeiro tivemos que fazer uma ficha e isso foi cá em

baixo. Entretanto eu deixei de trabalhar, e como estava há pouco tempo neste emprego novo,

felizmente sempre mantive o meu trabalho, com muito apoio daquela empresa, portanto, uma

flexibilidade completa para tudo e mais alguma coisa e nunca deixei de trabalhar e deixei lá os

meus pais porque ia ter uma reunião rápido e já voltava. E quando voltei foi já no 7ºpiso. E

quando cheguei ao 7º piso, já depois de almoço, já os meus pais estavam muito bem com a C.

e eu foi quando me senti muito, muito triste. Aquele ambiente era algo novo que eu nunca tinha

vivenciado. Quando vi outras crianças, um bocadinho mais velhas, 4, 5 anos, algumas

adolescentes, eventualmente uma ou outra mais nova que a C., sem cabelo, muto amarelas, os

pais com aquela cara triste, eu dizia “isto é tudo aquilo que eu daria para nunca ter”. Portanto

eu dava tudo para nunca ter estado ali. E pronto, se calhar foi o momento mais triste, até hoje,

foi o momento mais triste.

E: Um momento de perda, de tristeza, mas ao mesmo tempo está-me a dizer que houve

em vocês, alguma vontade de resolver a situação...

P: Sim, isto foi um momento, não foi uma vida. Portanto nós tivemos ali aquela semana, se

calhar a primeira semana...

E: De perda, perda, perda...

P: Sim. Aquela primeira semana foi a semana que mais nos custou. A mim se calhar.

Eventualmente à T também, que nos custou mais. Depois nós, eu como sempre, tinha uma

atividade muito liberal. Eu saia todos os dias, vinha com os meus pais, a minha mãe ficava de

noite no Hospital, a T tinha que ficar em casa com a L. que era muito pequenina, tinha dias...

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E depois, andava sempre nesta vida ativa, eu nunca tive... Nem nunca esmoreci. E fui muitas

vezes, naquela altura, o touro, da família toda, dos meus pais, tudo. Portanto eu ia, vinha para

casa, ia trabalhar, não sei quê --- depois há tarde ficava um bocado com eles, depois voltava

para casa, depois vinha buscar...

E: Acha que isso foi um peso para si ou que o ajudou?

P: Ajudou. Ajudou-me muito. Para eu não pensar muito na parte má. Existiam partes más.

Claro que nós estando com os médicos e eles diziam “não, não, a C. está ótima, está tudo bem

com a C.” e graças a Deus está. Portanto eu sempre acreditei neles e nunca tive duvidas, e mais,

nunca tive necessidade de dizer “Epá o que eles estão a dizer não é verdade”. Pelo contrário. E

noutras situações, e tivemos outras situações, e eles diziam-nos “Com a C. está tudo bem” e

víamos: a C. ria, saltava, brincava, falava. Ficou ligeiramente paralisada ao início. Demorou

alguns meses a recuperar o movimento, a voltar a andar como deve ser, a falar, a tornar-se mais

independente... Demorou. Mas isso até foi para nós um exercício. E portanto, o tempo que

partilhámos aqui no IPO, que foram quase dois anos, eu hoje tenho saudades. Era o que no

outro dia comentava com a A. da Acreditar “Epá eu quando venho aqui recordo-me das tardes

inteiras de domingo e sábados que passava com ela no hospital e recordo isso com saudade e

muita felicidade.” Porque como eu queria ficar no hospital e durante a noite os meus pais

sempre disseram “não, não, ficamos nós”, tanto que a minha mãe ficava de noite, porque era

mais fácil para ela. Eu compreendia isso e então nós íamos para lá de dia. A T vinha de dia

quando a L. começou a ir para o Infantário e à noite trocava com os meus pais e eu ficava aqui

um bocadinho com eles também... Fazíamos uma vida assim um pouco...

E: Mas havia assim um momento de união, de partilha grande...

P: Muito. Foi muito. Aliás este tempo foi muito de união. Nós antes de ir para o IPO tivemos

três semanas em São José e nós recebíamos visitas... Eu nunca deixei entrar ninguém nos

cuidados intensivos a não ser os médicos mas eu vinha cá fora ver as pessoas. Eu recebia visitas

de pessoas que não conheço de lado nenhum. E quando nos telefonávamos ao fim de meses

que eram amigos dos amigos e amigos dos amigos dos meus pais e amigos de outros amigos

meus e amigos de trabalho...

E: E isso foi para si importante? Foi um suporte...

P: Foi. Foi muito. Porque houve tanta gente que se uniu num momento de dor, de dificuldade

para nós, que eu só espero outras vezes, se tiver outra vez, numa situação destas, seja em relação

a quem for, ter a mesma energia e a mesma força e se calhar o mesmo apoio exterior que tive

naquela altura. Eram pessoas que nós não conhecíamos de lado nenhum. O meu pai dizia “olha

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estão ali umas pessoas fora que querem falar contigo, porque sabem que a C. está aqui e tiveram

que vir a São José, vieram à tua procura e à procura dela e estão ali.” (...)

E: Então o que me está a dizer até agora é que o que o ajudou foi a) ter pensado nas coisas

mais positivas, b) ter tido muita coisa para fazer, c) ter tido um apoio grande de amigos

e dos pais e d) ter tido o apoio das pessoas do hospital, que o foram informando...

P: Sim, sim! Aliás, eles foram informando e eu fui sempre pedindo informações. Há coisas que

em relação a minha vida e a minha saúde e das minhas filhas e da minha família que eu me

preocupo sempre muito e tive a felicidade de calhar com uma equipa quer no IPO, quer em São

José, especialmente em São José, porque depois no IPO já a situação era diferente, mas em São

José em que eu fiz muitas perguntas, perguntei muita coisa, e os médicos, os dois

neurocirurgiões sempre me explicaram tudo, tim-tim por tim-tim. Eu fazia a pergunta e eles

explicavam-me o que é que era. Eu fazia outra pergunta, e sentia que se calhar para eles estava

a ser um bocado chato, mas eles explicavam, não com termos técnicos mas sim com termos

normais que pudesse compreender o que iam fazer. Depois eu quando, nos vários exames, que

ela foi fazer, quando era preciso (porque como ela era bebé era preciso alguém) eu também

pedia sempre para acompanhar “oh pai se calhar vai-se sentir mal” e eu “não, não, eu quero

mesmo ficar, quero ver”. Então fiquei a ver o que eles iam fazer, quer as ressonâncias quer um

TAC que fizeram também. Tudo. E o assistir a isso também foi importante porque também

quero saber o que se passava. E depois no hospital também no IPO também. Portanto como

sempre participei ativamente e fiz de enfermeiro porque era eu que mudava o penso da C. (ela

tinha um cateter no ?? central) e aquilo também me ajudava a mim a participar muito

ativamente...

E: Mas fê-lo porque foi pedido, porque a C. chorava menos...?

P: Não. Fiz porque comecei a ver que como o penso é standard para todas as crianças, quem o

faz, faz muito bem, obviamente e aquilo que acontecia é que aquilo durava pouco tempo

quando a C. ia para casa e ao fim de um dia ou dois começavam a aparecer ligeiras ?? que se

tiverem muito tempo ganham infeção portanto tinha que vir novamente ao hospital. Ao início

eu vim ao hospital fora de horas para mudar o penso até que houve um dia que eu disse assim

“olhe vocês desculpem, eu estou em casa, digam-me só o que é preciso que eu vou à farmácia

buscar pensos e vou mudar o penso” e a enfermeira disse-me “oh pai não faça isso, se pode vir

ao hospital venha ao hospital que aqui conversamos”. Eu fui ao hospital e conversei com elas.

E elas disseram que eu levava daqui o equipamento e quando for preciso faz. Ensinaram-me,

eu aprendi como é que elas faziam e depois ao longo do tempo fui sempre fazendo e até que

melhorei a técnica em função da C. porque ela ia crescendo e depois eu sabia quais eram os

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movimentos que elas faziam e para poder fazer tudo (como a C. sempre fez tudo e mais alguma

coisa, saltava, pulava...) eu para a proteger melhor fazia um penso mais especial, com mais

cuidado. O cateter durou muito tempo, ela fez record de 15 meses com um cateter venoso

central e só porque cresceu ele teve que sair. Quando ela pôs o cateter tinha dois anos e quando

tirou tinha três anos e meio. O trombo cresceu e portanto aquele bocadinho... ainda o tenho lá

guardado. Eu tinha realmente muito cuidado. A tia da T fez uma camisola especial para ela

vestir com um material específico para ela se puder mexer, era como se fosse uma camisola

elástica para aquilo puder prender ligeiramente o penso e ao mesmo tempo respirava o penso...

Tivemos muitos cuidados. Muitos mesmo, na alimentação... Nunca deixámos de fazer nada por

causa da doença da C. ou da C. não puder ir aqui ou acolá. Nunca!

E: Adaptava-se tudo...

P: Fomos viajar, sempre dentro do país, mas fomos várias vezes ao Norte, ao Sul. Eu levava o

equipamento todo, para o que fosse necessário, para fazermos o penso, para mudarmos... Tudo!

E recordo isso hoje, 15 anos e tal depois com muita felicidade. Por isso é que eu digo, só espero

que (espero que não), mas se algum membro da minha família passar por uma situação idêntica

a estas, eu ter a mesma energia, a mesma capacidade para transformar aquilo que foi menos

bom, ou melhor mau, em coisas menos boas, que tive naquela altura. Porque foi realmente

importante. Eu hoje digo que dava tudo para não ter passado por isto mas já que passei ao

menos tirei daquilo que passei a melhor experiencia de vida. E foi uma experiencia de vida.

Hoje olho para trás e ajudou-me em tudo. Mesmo a compreender o futuro, portanto a não ter

medo das coisas. Tudo. Estou desejoso que chegue sábado, não sei se sabe porque, mas estou...

Porque no sábado, eu e a minha filha mais nova (a C. não porque tem um encontro de escuteiros

o dia todo) vamos fazer um passeio de bicicleta de 156km. Vamos daqui para o Alentejo.

Vamos passar um fim-de-semana prolongado e vamos começar no sábado de madrugada e

vamos acabar no sábado a noite. Mas já fizemos isto mais vezes e mais coisas do género “hoje

vamos dar uma volta de bicicleta, sem destino”. O destino é a T ir lá buscar-nos a noite e

jantamos todos... Fazemos isto muitas vezes.

E: Mas a C. não alinha...

P: Sim, sim, só que desta vez não pode alinhar por causa do encontro de escuteiros todo o dia...

E: Normalmente vai.

P: Sim, sim! A C.... É que ali não é ninguém que diga que não. Podem arranjar os estratagemas

todos mas vamos. E elas partilham e gozam a brava, divertem-se e nós tiramos, temos mesmo

muito boa experiencia nisto.

???

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E: Estávamos a falar ainda nesta primeira fase do diagnostico e neste momento a nossa

investigação está muito focada nas consequências da doença para o casal. Como é que foi

a vossa história? Nós sabemos que muitos casais que passam por períodos muito maus e

há muitos divórcios numa situação de cancro infantil...

P: Sim, nós temos isso na nossa esfera de amigos próximos. Portanto aconteceu a mesma

situação num casal amigo nosso, mas entretanto a filha faleceu infelizmente e logo a seguir

eles divorciaram-se e continuam divorciados.

E: Como é que foi desde o princípio, ou seja, desde que vocês souberam o diagnóstico...

Acha que a vossa vida como casal teve altos e baixos? Se sim, onde?

P: Teve. É normal que tenha e eu as vezes digo “teve por causa de mim, teve por causa de...”

Não. Teve por causa de tudo. Mas eu sempre tive na minha essência de viver em casamento,

em harmonia, essencialmente da família, pensando para a família, que esta é a maior felicidade

que eu tenho e a minha maior riqueza que eu tenho, portanto... A família para mim

complementa-me muito enquanto homem, como pai, como ser humano. E para mim é um pilar

fundamental. Quando surgiu o diagnóstico da C. e nós passamos por esta situação toda houve

altos e baixos. Houve alturas em que eu discutia com tudo e, na altura, senti-me triste, porque

eu próprio não queria discutir e as vezes discutia...

E: De cansado, de zangado...?

P: Se calhar. Discutíamos os dois e depois eu pedia desculpa e depois mais tarde voltávamos a

discutir por razão nenhuma aparente, porque precisava de me zangar um bocado, de ter aquela

raiva. Depois comecei a ver que não há aqui ninguém que tenha culpa. Quer dizer, a culpa tanto

é minha como é dela. Não é de ninguém. Não há aqui ninguém, não há culpa. E depois comecei

a tirar o positivo outra vez e nos últimos anos tenho vivido a minha vida, a nossa. Tenho

vocacionado muito a minha vida em função da felicidade do casal e da harmonia da família.

Portanto como eu já sei que a minha felicidade passa pela felicidade delas, se elas estiverem

felizes eu estou feliz. É sempre assim. É muito agradável isso. As vezes podemos não estar de

acordo em algumas coisas mas eu sei que se a T gosta de uma coisa e se queremos fazer

determinada coisa pois... se ela gosta e eu gosto tanto de a ver feliz então o que eu faço é fazer

isso com ela. E as vezes até pode ser algo que “ah eu não vou nada gostar de fazer isto”, mas

como vou fazer com ela vou tirar o positivo disto. E tiro. Muitas vezes tiro ainda mais que ela.

Depois até conversamos também e vemos que é assim; e o inverso também é verdade.

Simplesmente quando eu lhe faço uma proposta, as vezes faço uma proposta qualquer e a

resposta dela é logo o não, mas depois lá convence. Ela nesse aspeto é mais medrosa. (...)

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E: Então pode dizer que quando souberam o diagnóstico houve nesse momento o baixo

ou ainda se uniram mais e depois é que há o baixo passado algum tempo?

P: Nós unimo-nos muito e depois ao longo do tratamento houve ali momentos mais de cansaço.

Houve momentos mais de afastamento, se calhar mais depois do tratamento houve um

momento de afastamento.

E: Consegue relacioná-lo com alguma coisa?

P: Não.

E: Cansaço terá sido? Exaustão?

P: Se calhar cansaço. Tudo. As vezes nem há motivo nenhum.

E: Pelo menos que se conheça não é?

P: Sim, não há motivo nenhum. Tanto que nós sempre falámos muito e hoje falamos muito e

cada vez mais abertamente sobre os problemas e quando um de nós tem um problema, ela sabe

se eu tiver algum problema, se tiver passado por uma fase e eu também sei quando é que ela

está a passar por uma fase mais... E conversamos. Conversamos abertamente. Sem tabus, sem

problemas. Há limites obviamente, mas sem limites. Discutimos o tema...

E: Mas mais do que faziam no passado do que agora?

P: Sim, sim.

E: Acha que isso tem a ver com alguma resolução que cada um de vocês tenha tido em

relação à doença, em relação ao que se passou?

P: Não faço ideia. No meu caso não. No meu caso em relação à doença, aquilo que eu posso

dizer é que foi... Eu as vezes digo assim “foi uma experiencia diferente que eu tive porque tudo

ia bem.“ Diziam-me que estava tudo bem, sempre que íamos às consultas. Todas as semanas,

se não fossem internamentos, eram consultas ou exames médicos. Vínhamos aqui todas as

semanas ao hospital e o Dr. Chagas dizia “ah a C. está bem; a C. está ótima”. Portanto bastava

ele dizer que estava ótima, bastava eu ver aquilo que tinha em casa, ainda por cima com a outra

pequenina depois ao lado, para mim estava tudo bem. Então se ele diz que está ótima estou eu

a dizer que está mal?

E: Mas acha que a sua mulher não conseguia ter esse otimismo?

P: Não. Também tinha.

E: Havia era um cansaço se calhar diferente e... ??

P: É. E depois, eu acho que foi uma fase difícil e depois ao início nós tivemos sempre juntos.

Partilhámos a dor e a alegria obviamente mas nunca... um afastamento, afastamento nunca

aconteceu. Houve uma altura em que tivemos mais afastados e se calhar não falávamos tanto

abertamente sobre os problemas, mas no fundo não houve um afastamento. Não sinto que

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houvesse por causa da doença. Tanto que depois a C. acabou o tratamento em 2001, eu queria

colocá-la o mais rápido possível numa escola porque ela tinha que socializar. Aqueles dois

anos sozinha em casa não ajudam e acho que foi bom. Queria que ela fosse fazer exercício

físico, tipo ballet e ela ao início foi mas depois compreendemos que era muito cedo e portanto

depois voltou para trás. Mas depois quando voltou foi com uma força imensa, enfim, de repente

fazia natação, ballet, ginástica e só não fazia mais porque não tinha tempo. E andamos sempre

muito atarefados, muito a viver em função daquilo que elas faziam e se calhar não tínhamos

aquele tempo para nós, que nos ajudasse. Depois eu acho que aqui há uns 10anos, talvez 2004,

2005, na altura em que pensamos em mudar de casa acho que se deu ai uma grande viragem.

Achámos que devíamos mudar de casa, nós vivíamos num apartamento, queríamos comprar

uma casa e saímos do sítio onde estávamos. Vivíamos perto dos meus pais e fomos um

bocadinho mais para fora e isso deu-nos uma maior...

E: Maior liberdade, maior autonomia...

P: Muito. Trouxe-nos outros desafios, que era não conhecíamos ninguém, mas integramo-nos

com uma facilidade em todo lado o que foi muito bom. E depois acho que era essa fase de

mudarmos de casa, de arranjamos logo um cão... Tínhamos a casa sempre cheia de gente, aquilo

foi agradável.

E: Acha que o suporte social que teve, de alguma maneira também era uma ajuda mas se

calhar também era um bocadinho intrusivo em termos da vossa família? As vezes temos

pais que nos dizem que o suporte social vos ajuda mas que ao mesmo tempo também

cansa...

P: De alguma forma sim. Sim. Em alguns momentos eu senti isso. Senti por exemplo que a

minha mãe que era mais, quem sempre teve ao nosso lado, os meus pais e a tia dela e o pai

dela, sempre tiveram connosco. Mas a minha mãe essencialmente porque ela é que achava que

tinha que fazer as coisas e portanto como ela achava é que estava bem. E claro que isso com a

T não entra, portanto... É normal. E eu tive que por uma posição e dizer “desculpa lá, cada um

tem que ter o seu espaço e o melhor é cada um... Essas decisões são nossas, são minhas e da

mãe e não são da avó, portanto, por muito que a C. seja neta não é filha e portanto são os pais

que devem neste caso orientar e dirigir...” E tive esse cuidado, embora ela não aceitasse e por

vezes temos discussões, as vezes os dois, por causa desse tema. E um aparte, de todos os filhos

eu fui o único que estudou sempre aqui em Lisboa e tive sempre em casa dos meus pais (...) eu

tive sempre em casa até aos 27 anos. Entretanto comecei a trabalhar e tive ali dois anos até sair

de casa. Sempre vivi com muita autonomia, muita liberdade, sempre tive essa tendência, mas

sempre tive em casa e portanto eu acho que a minha mãe em relação a mim e aos meus irmãos

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sempre achou que eu deveria fazer mais aquilo que ela pensa e às vezes os meus irmãos, eu sei

que...

E: Foi mais filho...

P: Exatamente, que era uma experiencia excelente que o meu pai adora e que adorava e fizemos

imensas coisas juntas porque não estavam lá os outros. E portanto senti que nessa altura ela

achava que podia fazer o mesmo ou que deveria fazer o mesmo e foi preciso dizer “desculpa

lá, este é o nosso espaço. Não é possível. Tens que...” Depois houve ali uns ?? e isso tudo, é o

suporte social ajuda mas ao mesmo tempo não ajuda.

E: Acontece isso. E hoje como é que vive a doença?

P: Hoje já quase não há doença. Ou melhor, hoje não tenho, como costumo dizer, a C. é uma

criança especial porque ela raramente está doente, muito raramente até. Desde que saiu dos

tratamentos raramente adoece e quando adoece é um dia ou dois e de resto está excelente. E

nunca teve... Ela pode estar com gripe, pode andar aí engripada (coisa que é muito, muito rara),

mas por exemplo, a C. nunca falta à escola, nem sequer lhe peça para ficar em casa porque está

com dor de cabeça que ela não falta. Ela não tem esse limite. Ela diz que está ótima.

E: Então considera que a doença está curada.

P: Sim, eu considero. Continuamos a fazer vigilância, da endocrinologia porque entretanto ela

desde os 5anos começou a fazer consultas de endocrinologia... Portanto digamos que está

curada, está tratada. É uma doença crónica, portanto existirá ou existiu no passado. Neste

momento vamos lá e como ela diz para o médico “eu não estou nada doente, não sei o que

venho cá fazer”. E fica muito revoltada quando lhe dão prioridade porque ela é criança e lhe

dão prioridade para fazer analises ou assim e ela diz logo “não, não. Eu não vou. Eu não estou

doente.”

E: Sente então que a doença está curada? Completamente controlada?

P: Eu acho que sim, quer dizer, vivemos isto de há muitos anos, não é só de agora, ela faz as

ressonâncias e está sempre tudo bem, portanto basta eles dizerem que está tudo bem...

E: E em relação ao próprio cancro, depois de o ter vivido, acha que é a pior doença que a

C. podia ter tido? Acha que há doenças mais severas?

P: Eu não tenho conhecimento, na nossa família... Que até hoje foi a pior doença que ela teve

foi.

E: Mas em termos gerais, acha que pode haver doenças piores?

P: Há, há e nós vemos situações de crianças com outras doenças. Aliás eu desde que entrei no

IPO vi todos os casos piores que o caso da C.

E: Do próprio cancro?

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P: Sim. Piores em todos os casos, até mesmo no aspeto social. Vi crianças que estavam

sozinhas, sem pai sem mãe, e isso foi aquilo que mais me doeu. Estar o pai, a mãe e a avó e a

tia e o avô, mas o meu irmão mais não sei quem, montes de gente ali ao fim de semana e haver

crianças que não tinham ninguém. E aí houve uma parte muito dolorosa. Dor mesmo. Coisas

que eu senti e vi e foi uma revolta mesmo.

E: E consequências da doença para vós? Que consequências é que o cancro da C. teve

para vocês?

P: Em que aspeto?

E: Todos, profissional, pessoal...

P: Profissional não teve. Eu tive o apoio todo da minha empresa durante (até sair), tive lá dois

anos e durante esse tempo, aquela equipa que permaneceu e conheciam o tema, tive sempre

todo o apoio (...) quer em termos de tempo quer em termos de tudo. Em termos profissionais

nunca houve problema. Ate ajudou, porque como era um trabalho muito dinâmico e era um

trabalho comercial ajudava-me a esquecer um bocado sem nunca esquecer porque eu estava

desejoso de chegar a casa para pegar nelas e irmos passear. Nós fazíamos isso muitas vezes. A

T deixou de trabalhar logo a seguir, era preciso ficarmos com a C. Então eu ia busca-las e nós

íamos passear fosse para onde fosse, dar umas voltas, sempre todos os dias fazíamos isto. Íamos

sair a noite e era rara a semana que nós não saímos à noite uma ou duas vezes por semana.

Mesmo quando estávamos todos juntos, para ir jantar fora ou ir ali ou acolá, ao fim de semana

saímos sempre e temos milhares de histórias delas. Muitas vezes estamos a contar aos amigos

e eles “vocês têm tantas historias das vossas filhas, os meus pais não têm essas historias”

E: Acha que ter havido o cancro pode ter levado a que vocês se empenhassem mais nessa

coisa...

P: Sim! Sim, acho que sim. Quer dizer, não sei, mas acho que sim.

E: Acha que levou à valorização da “estar juntos, estar vivos e poder partilhar”?

P: Sim, sim, nesse aspeto sim. Muito. Eu cada vez penso mais nisso. Eu gosto muito de viver

e de partilhar a vida com quem amo. E é mesmo assim, com quem gosto, com as pessoas que

gosto. E quando estou a fazer qualquer coisa esqueço-me do tempo. E o mais normal é tirar o

relógio e não andar com relógio e divertir-me, porque aqueles momentos estão ali e gosto muito

disso. De oferecer, de estar com as pessoas, vivo aquele momento com muita felicidade. Seja

que momentos forem...

E: Ou seja a doença não o deixou triste?

P: Não, não. Não me deixou nada triste.

E: E consequências para a C. houve?

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P: Eu acho que sim. Houve várias... Primeiro porque logo ali houve um intervalo de tempo em

que ela deixou o infantário durante dois anos, portanto logo aí houve um intervalo de tempo.

Depois quando voltou houve uma ligeira dificuldade na adaptação não era muito... Nós íamos

pô-la à 9h30 e busca-la às 15h30, portanto fui pô-la num horário muito flexível também para

ela estar o máximo de tempo connosco. Depois ela facilmente se adaptou, entrou, sentimos que

ela tinha algum défice motor e portanto eu nunca a quis por numa fisioterapia. Disse “a melhor

fisioterapia para ti vai ser o ballet” e foi e a irmã foi para o ballet também. Fizeram ballet as

duas durante alguns anos e depois ela integrou-se nos escuteiros e em vários grupos e isso

ajudou-a também a integrar-se quer na escola quer em outros grupos. Ao início ainda alertava

o que é que se tinha passado com ela, mas depois deixei de fazer isso. Como ela estava

perfeitamente integrada, sem problemas. Hoje quando alguém a alerta e quando alguém vem

falar sobre isto, ela até se esconde um bocado do género “não venham cá falar comigo porque

eu depois não quero falar disso”. Achamos nós que é um pouco isso.

E: Mas acha que ela ter tido o cancro, de alguma maneira modificou a personalidade dela

ou afetou a personalidade dela?

P: Não sei, ela tinha dois anos na altura. Provavelmente afetou. Não sei até que ponto. Ela

connosco não tem problema nenhum em falar sobre isso. Presumo que não tenha problemas

em falar com os amigos embora não fale muito. As vezes se perguntarem ela foge um pouco

do assunto, mas é normal. Eu compreendo que seja normal.

E: Mas acha que ela se preocupa muito p.e., com a saúde dela?

P: Sim, isso preocupa “oh pai tenho aqui um sinal” “sim eu sei, não te preocupes com isso”.

Ela não se preocupa mas eu preocupo. Ou melhor ela preocupa-se, eu também me preocupo

mas como tenho uma perfeita consciência e se há dúvidas venho aqui ao hospital... Aqui há

uns anos ela tinha 8 anos e ela começou a ter... ela tinha uns nódulos e até ela própria começou

a sentir. Disse-lhe que ia falar com o Dr. Duarte, o Dr. viu (...) mas pelo sim, pelo não fez-se

uma ressonância e ele disse assim “pronto, tem uma mulher em casa”. E foi assim. Tanto que

a C. menstruou muito cedo, com 10, 11 anos. Ela conhece bem o corpo dela, ela sabe que se

tem alguma dúvida e preocupa-se com a saúde... O que é bom.

E: Mas acha que ela ter tido a doença a leva a preocupar-se um bocadinho mais?

P: Se calhar. Não consigo avaliar isso. Mas se calhar sim.

E: E acha que ela pode sentir-se um bocadinho diminuída por isso? Por ter tido a doença

e por ser diferente dos outros?

P: Eu aí já não acho. Também nunca perguntei isso a ela. Eu não acho. Eventualmente a T pode

ter uma opinião diferente. Ela pode sentir-se algumas vezes mais diminuída mas não por ter

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tido a doença, por outros motivos quaisquer. Não por ter tido a doença. Porque eu já tenho dito

a ela muitas vezes que se calhar, se não tem tido a doença se calhar era uma mulher muito

diferente, mas já que a teve que a aproveite para muita coisa, porque se calhar o exemplo dela,

o exemplo que ela pode dar a outras crianças, é dizer alto “eu estou aqui”.

E: E viva. E a L.? Consequências da doença da irmã?

P: Achamos que não. Porque a L. era muito pequenina na altura. Nasceu com a doença da irmã.

Nós achamos que não. No entanto a L. aquilo que sentimos é que, ao mesmo tempo, com a

doença, demos mais, estávamos mais centrados na C. e a L. acabou por se fazer pela vida entre

aspas. Hoje é muito mais independente...

E: Então houve aqui uma consequência se calhar...

P: Achamos que sim, mas até pode nem ser. São feitios diferentes. Não compreendemos onde...

E: é que está uma coisa, onde é que está o temperamento de uma e a influência que a

doença...

P: Não consigo avaliar, são as duas diferentes. O que é uma riqueza. Sendo as duas diferentes

é ótimo. É um desafio para nós também. A L. é mais independente, completamente

independente.

E: Acha que as trata de forma diferente?

P: Não, nada!

E: Acha que ter havido uma doença, a C. ter tido uma doença não influencia nada a

parentalidade?

P: Pelo contrário.

E: Como é que é isso?

P: Se a C. me diz que não consegue imediatamente eu digo “ah consegues sim e vai faze-lo”.

É que não há sequer ponto...

E: Há quase como que uma maior exigência no sentido de estimulo...

P: Sempre foi, sempre houve muito. Muito, muito. Ela começou a andar de bicicleta “eu não

consigo”, “ah consegues sim” e conseguiu logo. E a partir do momento em que não conseguia

é que viu que conseguia “oh pai já consigo sozinha” e depois eu “então agora vais começar a

arrancar sozinha”. A mesma coisa a nadar. Ela aprendeu a nadar... Eu ensinei-a a nada logo a

seguir aos tratamentos e com 4 anos, as primeiras ferias que fizemos fora finalmente na água,

na praia, foi em Junho do ano seguinte, passamos uma semana no sul de Espanha e fui ensiná-

la dentro da piscina a nadar. (...) É do estilo “não consigo, não sou capaz” mas logo a seguir

não só não ultrapassa aquele desafio como vai ao outro seguinte. Mas é preciso puxar por ela

e eu noto que tenho sido muito mais exigente com ela do que com a L. Se eu disser à L. “vamos

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fazer isto assim e assim” a L. “vamos ok” mas a C. é “epá não quero”. Mas eu digo “vais sim,

desligas isso tudo e vamos fazer isso tudo, vais-te equipar e vamos”...

E: Numa situação imagine que vêm as duas com notas piores, tolera melhor as notas

piores da C. do que as da L?

P: Não. Por acaso já as duas tiveram notas piores e as duas tiveram insucesso há dois anos atras.

Depende. A C. trabalha muito mais que a L. A L. conseguiria se trabalhasse mais, facilmente

fazer aquilo com uma perna as costas. É uma questão de método. Temos que tentar ali orientá-

la. A C. trabalha muito mais e as vezes não consegue atingir o objetivo. Como eu vejo que ela

trabalha muito mais e as vezes motivo-a para conseguir, aquilo que lhe digo é “falhaste desta

vez mas da próxima tu consegues” e motivo-a.

E: Mas pensa na doença?

P: Não. Penso na realidade, que ela conseguirá alterado o método. Já lhe disse “trabalhas com

auscultadores, tenta fazer isso sem auscultadores; se calhar... faz como eu, faz uma pausa

10min, 15min e depois volta ao trabalho, e aquela pausa faz-me tao bem, ir respirar, apanhar

um bocado de ar...”

E: Seria mais ríspido então com a L. ?

P: Se calhar seria mais... se a L... já tenho dito à L. “aplica-te, faz isto assim e assim” e as vezes

tenho-me sentado com a L. para trabalhar alguma coisa mais. É uma questão de método. As

duas são diferentes nesse aspeto.

E: As duas ainda hoje aparecem com sintomas físicos, febre. Fica mais preocupado com

a C. do que com a L.?

P: Não.

E: Exatamente igual?

P: Sim.

E: Imagine que as duas pedem para sair a noite, fica mais preocupado com uma do que

com outra?

P: Não. Fico preocupado com as duas e já aconteceu. É igual, e com a C. já quase não é

nenhuma. Ela vai fazer 18 anos. Ela sai muito mais do que a L. à noite, já tem saído e eu digo-

lhe logo “vai e sai a noite que eu vou-te lá buscar. Telefona-me só” e as vezes estou eu as 2h30

na cama e “vens-me buscar?” (...) e a mesma coisa com a L. Mas a L. não tem saído, tem

15anos, é mais nova.

E: Quer dizer que em termos das suas tarefas educativas acha que a doença não modificou

nada?

P: Não. São as duas iguais. Nesse aspeto, por a C. ter isto ou aquilo não tenho...

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E: Houve aquelas coisinhas que me falou há bocadinho de sentir que a C. precisa de mais

estímulo mas mais nada...

P: Sim, eu sinto que ela precisa de mais estímulo. Se a L. me disser já “oh pai quero tirar a

carta de mota”, como já me disse, esta bem, tem que esperar ate aos 16 anos e depois logo

vemos. Á C. já lhe disse “prepara-te que agora, depois do verão inscreves-te na escola de

condução para começar as aulas e depois quando fizeres os 18 anos fazes o exame” e já tenho

vindo a orientá-la nesse aspeto. Não é por mais nada, é só mesmo para começar a orientar

porque as primeiras voltinhas são de casa para escola e de escola para casa... mas dá aquela

pratica diária que pode ser útil. E é melhor já porque se mais tarde for preciso já tens a carta.

E: E as suas preocupações hoje em relação à sua filha, quais são?

P: É apenas o futuro.

E: Mas acha que ela tem algo que lhe impeça de ter um futuro realizado?

P: Não. Não. Nesse aspeto nada.

E: Como é que vê a sua filha daqui a algum tempo?

P: Como costumo dizer muitas vezes, espero vê-las fora de casa. Nós levamo-las aqui às uns

tempos a conhecer o Porto, Coimbra, e já tínhamos ido a Braga, mas agora espero ir a Braga

outra vez com elas, porque eu viajo muito por Portugal, pelo país inteiro. Então conheço as

cidades todas, especialmente aquelas mais industriais e da eletrónica, que são Braga, Aveiro e

Porto que são fortes nessa área. Gostava que elas seguissem engenharia mas não faço ideia

nenhuma do que elas querem seguir nem lhes digo para seguir isto ou seguir aquilo. Não digo

nada nesse aspeto. Aquilo que elas me disserem que querem seguir é aquilo que eu apoio,

porque sei, claro, orientar. E digo muitas vezes à C. e à bocado vínhamos os dois a conversar

sobre isso, como dizia a T “é tão bom se viesse estudar para aqui” e eu “porque, porque é que

não há-de estudar para o campus de braga, também tem lá imensas universidades?” “ah então

porque fica mais longe”, mas lá está isto seria um desafio, uma experiencia única. O que temos

é que aproveitar isso e motivá-las. E da maneira que vamos mais vezes a Braga, ou mais vezes

ao Porto. Senão ficamos sempre aqui. Não quer dizer que ela aqui não tivesse uma excelente

universidade, não é isso, é apenas o facto de nós não termos... Nós é que estamos mal

habituados e é que temos a C. e a L. sempre connosco. Se calhar isso é mau para elas também

mas poe-te no papel delas que querem ter asas e quer voar e tu (T) não podes mete-las numa

gaiola e cortar-lhes a asas, tens que deixa-las voar, portanto temos que deixá-las fazer isso. E

eu penso muitas vezes nisso.

E: Então será mais o futuro. As questões de saúde já o preocupam pouco...

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P: Preocupa mas já não me preocupa... Quer dizer, preocupa-me o entendimento... a L. ainda a

semana passada andou mal com uma sinusite. Claro, e eu... Ela tinha ido fazer uma prova ao

Algarve e alguém pôs uma fotografia da minha filha lá deitada ao sol no meio do campo

desportivo e a prova foi exterior (de patinagem), com o sol a bater na cara... e eu digo assim

“oh L. tu já és fraca para sinusites e coisas do género e ainda por cima com aquele sol, quando

vieres para casa chegas mal”. Dito e feito. A L. chegou um bocado mal. Andou a semana toda

meio chocha e no domingo tive que a levar ao médico, para medicar senão começava a fazer

febre. E foi medicada e na segunda-feira fomos ao médico de família com ela. Preocupa-nos a

saúde mas é mais aquela saúde imediata. Não vou estar a pensar nem sequer a minha filosofia,

o meu estado de vida me permite estar a pensar que vão ter isto ou vão ter aquilo...

E: O que é que diria aos pais que sabem hoje que os filhos têm cancro?

P: Olhe, vou fazer um parêntesis. Eu há uns anos atras comecei a fazer voluntariado no IPO

através da acreditar para apoio emocional. A Acreditar há uns anos atras contactou-nos, depois

a A., em 2004, inicialmente com um grupo de pais, (...) e no inicio tivemos ali algumas

reuniões, depois em 2008, foi nessa altura, a A. contactou-me para eu dar o meu testemunho

num curso de voluntários. Ela conhecia a nossa situação portanto e sabia como é que nós

vivíamos o facto da doença e depois como é que vivíamos, como eu costumo dizer, a cura ou

o pós doença e portanto eu comentei com a A. e fomos os dois, eu e a T, no início de 2008,

aqui a um hotel nos restauradores, num curso de voluntários dar o testemunho. Demos o

testemunho de tal e qual o que se passava, tal e qual como lhe estou aqui a dar hoje e depois

um ano mais tarde a A. comentou que estavam a fazer um grupo de voluntários para apoio

emocional a pais que aparecem no IPO e entretanto descobriam que os filhos tinham cancro.

Nós na altura em 2001 não tínhamos ninguém a não ser a Acreditar que ia lá ao fim de semana

com os voluntários, na mesma linha, mas não havia apoio emocional. Nós tivemos que ser o

nosso próprio apoio emocional. E depois naquela altura, isto já foi em 2009, quando a A. falou

comigo diz que tem muitas mães mas não tinha pais e as experiencias dos pais que tinham não

eram experiencias se calhar melhores para se fazer este tipo de apoio emocional. Sim, disse

que sim, claro, tudo bem, mas que iria acompanhado. Nunca iria sozinho. E fui com a A. por

várias vezes ao hospital. Depois no fundo o que íamos fazer era esta conversa com outros pais

e explicar, e dizia-lhes um pouco a minha história e senti muitas vezes que fazia a diferença.

Aquele testemunho, aquela pequenina conversa por diversos minutos fazia a diferença mais do

que uma vez. Muito pela positiva. Também nunca iria fazer uma conversa destas com alguém,

na negativa porque não foi a minha experiencia. A minha experiencia foi muito positiva. Mito

valorizável. E eu senti isso várias vezes, por mais do que uma vez eu senti que eu fiz até 2012,

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alternava este tipo de apoio e depois a partir de 2012 foi muito mais difícil por questões mesmo

profissionais mas até meados de 2012 eu consegui fazer de três em três semanas, uma vez por

mês. Ia lá ao hospital fazer um breve comentário com um ou outro pai mais em privado. As

vezes mais pais do que mães. Porque mães havia varias e eu então geralmente ia ter com os

pais e a conversa era muito calma.

E: E o que é que lhes dizia?

P: Eles perguntavam muitas vezes o que é que se tinha passado com a minha filha e eu

comentava com eles que a minha filha era esta aqui e mostrava-lhes a fotografia. E passou-se

isto assim e assim e mostrava mais duas fotografias. Esta quando ela tinha dois anos e esta

quando ela tinha dois anos e meio e estava aqui. É uma fotografia que realmente temos lá, que

foi tirada em agosto desse ano, de 2001 em que eu estou ao colo com a L e com a C. Todos

gostamos muito dessa fotografia porque como eu digo “eu tinha que me virar para todo o lado

e tinha uma de um lado e outra do outro”. A C. estava realmente muito triste, tinha acabado os

tratamentos a poucos dias, sem cabelo, mais gorducha ao colo com uma cara mais triste e a L.

tinha seis meses assim com uma cara de reguila. E eu digo “está a ver pai, esta aqui é a L. e a

C. é esta aqui e fazem acrobática e não sei que e cresceram e não pensamos nisto” E o mesmo

pode acontecer convosco (?) e a credito que sim. E sucedeu com vários casos, com a maioria.

É isto que eu faço, ou fazia.

E: Ou seja uma esperança e ao mesmo tempo mostrar que valeu a pena e que aquilo é um

caminho...

P: Muito! É e é preciso acreditar na parte boa.

E: E aos profissionais de saúde, o que é que lhes diria, alguma coisa que possa ajudar na

formação de profissionais de saúde?

P: Não sei. É uma boa pergunta. Aquilo que posso dizer é...

E: O que é que eu devo ensinar...

P: Se calhar não devo ensinar nada. Eles ensinaram-me muito...

E: Não, não. Digo, eu como professora deles, o que é que lhes devo ensinar... O que é que

eu lhes digo?

P: Não sei. A experiencia que eu tive com eles todos, até hoje, foi desde o auxiliar até ao

médico, todos! Eu fui sempre muito bem tratado. Também sempre os tratei muito bem. Quer

dizer, eu fazia exatamente aquilo que eles me pediam e sempre que eu tinha duvidas eu

perguntava e eles sempre foram muito cordiais e atenciosos. Em todas as situações. Não houve

uma única situação que nós não tivéssemos tido contacto que não fosse proveitoso...

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E: Quando diz contacto, diz emocional e cognitivo? Ou seja a informação e a parte

emocional mais a parte de apoio emocional mesmo?

P: As duas partes. A parte emocional foi muito... Eu perguntava, ao início fazia muitas

perguntas e as vezes diziam “ah tem que perguntar ao médico” e eu saia dali e ia ao médico

“olhe desculpe lá, passa-se isto assim e assim, está tudo bem?” e as vezes perguntava “e já

agora explique-me lá porque é que...” fazia perguntas. Coisa que eu não gosto é estar ao pé de

alguma coisa e não sei o que é. Então pergunto, como é que se faz, como é que não se faz e

como é que posso fazer ou não posso fazer. O pior que posso receber é um não, portanto, não

era mais um que me ia desiludir ou causar ali qualquer coisa, não. Nada disso. Com todos eles,

desde São José até ao IPO, em qualquer situação eu acho que a experiencia tem sido positiva e

o contacto deles... O que é que eu posso dizer que possa valorizar? Se calhar que tudo aquilo

que eles fizeram por mim foi excelente porque não tenho assim nada, não tenho razão de dizer

nada, pelo contrário. Eu precisava de alguma coisa e eu perguntava “olhe preciso disto assim e

assim, como é que eu devo fazer?” e eles “ah faça assim, depois é assim”...

E: Também uma disponibilidade grande...

P: Sim, por exemplo, houve uma situação que até hoje eu compreendo que foi difícil. Já

estávamos no final dos tratamentos e é uma situação que já contei varias vezes. Não me recordo

quem eram os profissionais, sei que a C. teve que ir várias vezes à noite, já no final do

tratamento, levar antibiótico porque fez uma infeção de cateter e aquilo era intravenoso e tinha

que levar antibiótico e como ela bateu o record de cateter em junho faltavam só alguns meses

para acabar o tratamento, decidiram não voltar a pôr cateter ?? central. Colocaram cateter

periférico no braço e colocamos várias vezes o cateter periférico porque aquilo depois com os

movimentos não ficava bem e depois tinha que se tirar e passar para o outro braço e então

houve uma altura em que era preciso por um cateter na mão. O cateter no braço tinha entupido.

A C. devia estar ligeiramente com febre e estávamos no hospital a noite, já passava da meia-

noite e havia duas enfermeiras ali e há que por uma pergunta daquelas que se poe normal: uma

mãozinha pequenina, a criança a chorar, o pai a acalmar... As coisas não funcionam e pica-se

uma vez e pica-se duas vezes e eu senti (ela também não me disse) e depois se calhar ate disse

uma coisa que não devia “está a fazer acupuntura, enfermeira?” e ela “oh pai desculpe lá”. Eu

disse “não eu é que peço desculpa, quer que ponha eu, eu já mudei tantas vezes” e ela “não eu

ponho, mas desculpe lá”. Eu senti que ela estava verdadeiramente com pena de não ter

conseguido e doeu eu ter tido aquilo. Porque ela picou uma vez e olhou para mim e depois a

C. estava-se a contorcer e a chorar e não sei que, e ela picou outra vez e depois acabou por

picar outra vez. Eu depois até me senti constrangido, claro que nenhum pai gosta de ver aquilo

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mas ao mesmo tempo ela estava a fazer o melhor dela e eu compreendi que se calhar não fui...

Saiu-me mal e arrependi-me muito. E depois várias vezes comentámos isso, porque não foi

essa a intenção, quer dizer, era a intenção de ajudar e de colaborar com ela mas ao mesmo

tempo senti que ela estava muito preocupada com o que estava a fazer e estava a fazer o melhor

dela...

E: E valorizou essa preocupação dela também...

P: Claro, para mim foi, ao mesmo tempo, muito. Ao mesmo tempo senti que ela estava a fazer

o melhor dela naquele momento e eu por uns segundos não tive a melhor reação embora a

intenção fosse essa, ter uma melhor reação com ela. Pronto, claro que foi um momento. Se

calhar ela ficou magoada mas depois comentamos aquilo mais do que uma vez e passou.

(...?)

E: Não, tudo é importante.

P: A minha vida ficou muito mais rica, com esta experiencia. Dava tudo para não ter passado

por ela. Mas já que passei vou tirar o melhor. Acho que sim.

E: Acabou por ser mais enriquecedor que outra coisa...

P: Sim, sim. Em todo o sentido.

E: Esse aspeto positivo...

P: Dou muito mais valor a vida, ainda hoje, em tudo aquilo que faço... Dou muito mais valor

do que dava se calhar antes se não tivesse passado por isso, especialmente porque já passámos

por outras situações com outros colegas e hoje tenho amigos que já passaram... Por exemplo,

logo depois do nosso caso tivemos um caso de uns amigos nossos que a filha faleceu, portanto

não teve o mesmo desfecho que... E partilhámos a dor deles. E agora nos últimos anos houve

um ex-colega meu de curso que, curiosamente há uma fotografia da C. que está no consultório

do Dr. Duarte, uma fotografia bastante grande, a C. é muito parecida comigo. Eventualmente

ele viu-me (nós somos amigos no Facebook, nem partilhamos muitas fotografias, nessa altura

nem eramos assim muito amigos no facebook) e portanto ele não via fotografias da C. e há um

dia que ele me telefona e diz-me “ouve lá, a tua filha não é esta assim e assim e assim? E ela

não tem uma fotografia lá no consultório do Dr. Salgado? E ele está com uma camisola roxa?

Então é ela que está lá, é. Pois eu nem sabia, mas no outro dia alguém comentou que a tua filha

tinha tido... E como é que ela está?” “Está excelente, essa fotografia foi há uns anos, que ela

quis dar ao Dr Duarte para mostrar que estava boa, para dizer que não estava doente”. E agora

temos tido um antigo colega de trabalho, da empresa anterior, que o filho dele também está a

passar pela mesma situação, com 7 anos. Felizmente está tudo orientado e nós telefonámos, ele

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telefonou para mim sabia o que é que se tinha passado e nós dissemos “olha J. vem aqui a casa,

venham todos aqui a casa que jantamos aqui e conversa um bocadinho”. Portanto no fundo é

enriquecedor, porque se calhar hoje penso mesmo muito mais nos outros e em todas as

circunstâncias e há exemplos disso, em que eu vejo e como posso fazer faço, sem pensar, como

a L. me diz muitas vezes, a L. é que fez um trabalho há uns anos que tinha que dar uma frase a

cada um dos membros da família, um adjetivo e então pôs que o pai era “fazia qualquer coisa

sem nunca pensar nele; generoso”, e eu “generoso porquê?” “porque fazes sempre tudo a pensar

nos outros e nunca a pensar em ti” (...).

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CASAL 08 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – M.

E: Estava-nos a dizer... Estava grávida...

M: Sim estava grávida do M. Em janeiro de 2009 estava gravida, foi depois do Natal, na

passagem de ano. A M. começou a ficar com febre (isto no dia 1)... Nós somos do Norte, fomos

passar o Natal a vila real de Trás-os-Montes; achei que a M. já estava muito débil, sempre “colo

mãe, colo mãe”, mas como ela sempre foi muito colada a mim, (ainda hoje é) achei que era

normal. E quando chegámos ela começou a fazer estado febre. Graças a deus o C. disse “não,

eu não vou esperar por três dias. Vamos já com a M. para o hospital”. Então fomos. Íamos para

ir para a CUF e Deus (e a minha mãe está lá em cima) e direcionaram-nos, por engano, fomos

parar aos Lusíadas e encontramos um anjo da guarda que foi a Dr.ª Maria Lobo Antunes que

não nos conhecia de lado nenhum e profissional como é disse “vocês não saem daqui sem nos

sabermos o porquê de a M. estar com febre e aparentemente não se percebe porquê”. Até que

fez as analises e ela deu-nos logo 99% de que seria uma leucemia. Tratou de tudo, mandou para

o IPO, e no dia seguinte estávamos a ser internadas. Ela fez a medulograma à M. e detetaram,

graças a deus, logo ser uma leucemia linfoblástica aguda de que não era preciso transplante.

Isso já era maravilhoso. E entretanto estava grávida do M. Pari do M em 18 de maio de 2009.

E: Tinha que idade a M.?

M: Tinha dois anos e ainda fez dois anos no IPO porque nós entramos a 2 de janeiro de 2009 e

fez dois aninhos a 8 de janeiro de 2009.

E: Está-me a dizer então que entrou no hospital a pensar que a sua filha tinha um

processo...

M: Normal. Nos Lusíadas foi normal. Absolutamente. Nada. Ela nunca tinha estado doente

porque ela, graças a deus nunca foi para o infantário, ficou sempre com a minha sogra por

isso... Ah pois, porque em Outubro, depois, estava em casa com a minha sogra e a minha sogra

tem tipo uma cave e ao descer as escadas a M. ficou sem força na perna. Achamos muito

estranho e à noite quando a minha sogra me ligou eu fui automaticamente ao hospital do Parque

dos Poetas. Fez-se Raio X, tudo, tudo, eles disseram “não há nada, não se passa nada”. Fizeram

análises, mas depois de todo este processo, percebemos que hoje pode estar tudo bem mas

amanha pode já não dar os mesmos valores. E estava tudo bem e ela nunca mais se queixou de

absolutamente nada até que no dia 1 ou dia 2 mais concretamente soubemos...

E: Lembra-se como é que isso lhes foi dito? Lembra-se do que é que sentiu, do que é que

pensou?

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M: Nós ficámos internadas nos Lusíadas. A Dr.ª Margarida perguntou se nós queríamos ir pra

casa ou ficar ali e nós dissemos que queríamos ficar ali porque a M. entrou com valores de

hemoglobina, os valores é de 12 e ela entrou com 3. Então já estava muito débil. E a Dr.ª disse

“não sei como é a vossa parte económica, eu aconselhava-lhe a ficar” e eu disse “com certeza,

nós ficamos. Se nós não tivermos, alguém há de ter para pagar portanto não saímos daqui”. A

Dr.ª tratou de tudo e no dia 2 de manha já estava uma ambulância para nos levar, a mim, ao

meu marido e à M. e ao M que ia dentro de mim, para o IPO. Quando lá chegámos fomos logo

atendidas, fez-se logo a medulograma, esperámos umas horas que pareceram uma eternidade.

Não lhe sei precisar.

E: E iam com a possibilidade de que não fosse ou já...?

M: Sim. Ela disse-nos 99% de que seria leucemia por isso nós estávamos sempre com uma

esperança de que isso não fosse mas isso era queríamo-nos enganar a nós próprios porque a

partir do momento em que a Dr.ª nos dá os valores e estava lá explicito de que só poderia

mesmo ser isso, ou algo ligado a isso. E então quando lá chegámos fizemos o medulograma

fomos chamados para a Dr.ª Ana Neto. E a Dr.ª Ana Neto... Não sei precisar o que disse mas

foi bastante positiva no sentido de que teve atenção porque eu estava gravida e disse-nos que

era leucemia linfoblástica aguda. Eu olhei para o meu marido e o meu marido olhou para mim,

não percebíamos nada. Ela só disse “dentro das leucemias é a mais light, não vai precisar de

transplante.” Ficámos os dois um bocadinho mais aliviados e depois sei que eu olhei para o

meu marido e o meu marido olhou para mim e tivemos o mesmo pensamento e a Dr.ª Ana Neto

foi incansável, como todas, e disse “vocês estão a pensar que não guardaram as células

estaminais”. Porque nós tivemos duvidas e achámos que não fazia sentido e não guardámos. E

nós respondemos “sim, de facto pensámos mas não chegámos a fazer” “Mesmo que tivessem

feito... Por isso não se culpem. Todos nós temos isto dentro de nós, uns despoletam outros não,

por isso não se sintam responsáveis por nada. Vamos caminhar no bom sentido de forma que

as coisas corram bem porque a M. está dentro dos parâmetros da idade em que a taxa de sucesso

taxa de sucesso é mais elevada”, que é dos dois aos sete, nove anos, se não me engano. Antes

dos dois é muito grave e depois a partir daí também já é muito grave de maneira que ficámos

logo internadas.

E: Mas ficou internada, só a mãe...?

M: Sim, eu e a M. sim.

E: Ficou internada nesses primeiros dias e o que é que a ajudou a sentir-me melhor?

M: Eu acho que foi estar gravida. Eu acho que se tivesse o M. em casa e não lhe pudesse dar

atenção durante dois anos, ter que dividir entre a M. e o M., que isso eu depois senti

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posteriormente, depois de ter parido. Ia ser muito difícil. Eu acho, não, eu tenho a certeza. Foi

estar gravida. Tinha ali uma força incalculável apesar de todos me dizerem, o meu obstetra me

visitar e chatear a cabeça porque eu nunca abandonei a M. Mas o IPO extraordinário, deixava-

me dormir com a M. (porque eu tinha que dormir num cadeirão) mas não, eu estava desinfetada

e tudo e dormia deitada. Quer dizer, não dormia porque a M. era preciso ser vista a nível de

temperatura, não digo de 10 em 10 minutos mas de meia em meia hora por isso não era possível

dormir. Mas ao menos estava deitada numa cama. É um sem-chão. É dizer o que vai acontecer.

Toda a minha família parecíamos ciganos tanto que a Dr. Margarida disse que, para já, tinha

sido o caso que mais a impressionou, todo o seu percurso, quando foi no hospital dos Lusíadas

que a minha família fez plantão a noite toda. Desde o Norte que vieram logo portanto, uma

loucura. E o apoio que nós tivemos incondicional da família. Foi extraordinário...

E: Apoiou-se muito à família então...

M: Muito.

E: Estava-me a dizer à bocadinho que foi o estar gravida que, foi o pensar que tinha um

bebé e que isso foi uma força muito grande... Consegue traduzir isso em pensamentos?

Pensava o quê?

M: Eu pensava que... Para já nunca pensei que a M. morresse. Nunca!

E: Pensamento positivo no sentido de dizer “isto vai passar”...

M: Sempre! Era como eu estava a dizer, a minha família e o meu marido imediatamente foram

para a Internet, imediatamente quiseram saber tudo e mais alguma coisa sobre a doença e eu

rezava todos os dias, todos os minutos, à minha mãe. Sempre. E não queria saber nada, eu

nunca soube nada sobre a doença. Não sabia as consequências, não sabia o que era preciso para

fazer... nada, nada, nada! Por e simplesmente me dediquei a minha filha de corpo e alma com

o meu M. (porque precisava também de mim) e confiei cegamente nos médicos e na Dra. Ana

Lacerda que é extraordinária e eu não quis saber de mais nada e acreditava. Era um dia de cada

vez... Tanto que até me quiseram levar à psicóloga e eu não queria ir. Como tudo estava a correr

bem com a M. estava a ajudar as outras mães e a psicóloga ia-me buscar e dizia “oh I. não pode

ser. Você tem que armazenar as suas forças para o seu bebe e para a M., você não se pode

desgastar”. Mas eu sentia, eu não lhe sei explicar. Nunca me passou pela cabeça...

E: Que fosse acontecer algo de errado com ela...

M: Nunca, que a M. morresse. Nunca.

E: Estava-me a dizer que rezava à sua mãe, no sentido de ajuda? Que ia buscar à sua

mãe...?

M: Sim, sim. E ao M. e à M.

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E: E à M.? Como?

M: Porque a M. é uma miúda extraordinária. Ela estava inclusive comigo e eu pensei em trazê-

la, mas depois achei que poderia ser demais para ela. Mas todas as pessoas a conheciam. Até

lhe chamaram boneca falante. Porque a M. ainda não tinha 2anos e relatava tudo e falava

corretamente com termos de contar histórias tipo da gata borralheira que ela fazia os trabalhos

domésticos. Não era empregada mas sim fazia os trabalhos domésticos na casa. Por isso ainda

hoje quando vamos ao IPO as auxiliares e as enfermeiras que nos veem falam da boneca falante.

Por isso a M. foi sempre uma doente extraordinária.

E: Ou seja, acabou por lhe dar forças também...

M: Completamente. Porque era sempre muito positiva, bem-disposta. Só quando estava com

os tratamentos, os comprimidos que ela tomava, ficava com muita vontade de comer e então

eram tachos e tachos de sopa de letras, que nem era canja, era só mesmo água. Era letras ou

estrelinhas. De canja que ela acordava à uma da manha, às três da manha e só queria isso, mas

haviam meninos que pediam lagosta e pediam sapateira, que era bem pior.

E: E foi buscar força também ao suporte da sua família, está-me a dizer...

M: Muito grande. Tudo. Eu acho que mesmo a nível matrimonial. Acredito que muita relação

descambe porque se não há essa ajuda é impensável conseguir aguentar a dor, o trabalho, o

sofrimento. Eu tive um trabalho, eu trabalho no grupo “X.” e tive dois anos e quatro meses

ausente do grupo, da empresa e nunca tive uma pressão. Pelo contrário, quando eu entrei a

diretora da X. disse “miúda como é que tu estás? A M. está curada, acredito que a M. esteja

curada, agora como é que tu estás? Se tu te sentes com força para entrares, vais entrar. Senão

vais tu continuar com baixa até tu sentires”. Eu disse “eu quero começar e quero focar-me.

Deixar de pensar em horas e medicamentos, nada. Quero-me libertar disso tudo e quero pensar

noutras coisas”. Mas quando entrei eu parecia que tinha entrado de início porque a minha

cabeça não se lembrava de nada.

E: Esgotou...

M: Mas ainda hoje é uma coisa que eu sinto que a minha memória... Knockout.

Completamente.

E: Ou seja, houve consequências...

M: Não tenho poder de concentração, estou numa reunião. Temos reuniões. Saio da reunião e

se me perguntarem “I. o que é que...? Resume”. Eu não consigo. Fico assim com coisas... e

depois recebo o bock e então vou-me lembrando. Agora, não consigo.

E: Acha que foi alguma coisa levada ao extremo...?

M: Completamente.

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E: Estava-me a falar em dor, estava-me a falar em sofrimento... Esse sofrimento e essa

dor vinham-lhe de onde? Relaciona isso a quê?

M: A dor e sofrimento de quê? De quando?

E: De quando estava, quando foi diagnosticada naquela 1º fase... Estava-me a dizer que

foi uma dor muito grande, um sofrimento muito grande...

M: Ah o sem-chão. Para já a ignorância, não sei se me ajudou, mas eu acho que me ajudou., de

nem saber o que era. Só havia um palavrão – leucemia linfoblastica aguda – o que é que é isso?

Saber que apesar de confiar e acreditar que a M não ia morrer, há sempre ali qualquer coisa a

dizer e...

E: Ou seja havia esta luta... uma luta entre o ter que ser muito positiva e uma voz cá atras

a dizer cuidado...

M: Cuidado que as coisas podem... Depois essa voz vai desaparecendo porque com lhe disse

foi um percurso positivo. A Dr.ª Lacerda brinca e diz que é um processo muito light, tem meia

dúzia de páginas porque tudo o que aconteceu tinha que acontecer, pronto é o mal necessário.

E: E esse sofrimento está relacionado com muito trabalho...? Por exemplo estava-me a

dizer que quando voltou ao trabalho não conseguia ver medicamentos será que isso

também é extenuante essa parte...?

M: É muito. Porque é o focus. Eu lembro-me de ao fim de dois anos de tratamento eu fui ao

Shopping do Oeiras parque e lembro-me de entrar e correr para casa a chorar porque não me

conseguia orientar. Porque parecia que eu tinha saído de uma prisão, porque eu tomava banho

com a minha filha, eu fazia xixi com a minha filha, ela não e largava um segundo. Era não

saber onde era o norte nem o sul. Porque a minha vida era amamentar o M., tratar do M.,

durante a noite, porque era bebé, e tratar da M. porque ela precisava de mim

incondicionalmente. Porque ela deixou de andar, porque entretanto fraturou o fémur, a tíbia e

teve que reaprender a andar. Era horas e horas, noites e noites que eu não dormia mas tive um

apoio muito grande porque a minha irmã, que e mais velha do que eu, passou para minha casa.

O meu marido sempre conseguiu a nível profissional, levar a sua vida profissional. Quase não

me acompanhava, portanto eu acompanhava sempre a M. quando vínhamos para casa e depois

quando tínhamos que fazer os tratamentos era eu com o meu sogro, ou eu com a minha sogra,

ou eu com a minha irmã, ou eu com o meu cunhado. Mas mais eu com a minha irmã. Era

normal ter mais a vontade e a minha sogra ficava em casa. Durante a noite quando eu achava

que estava a precisar, a minha irmã vinha para minha casa e todos os dias a minha irmã estava

em minha casa. Durante dois anos a minha irmã não me deixou um único minuto. E é isso que

eu digo, se não tivermos uma família, alguém disponível que nos possa...

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E: Uma rede...

M: Não se consegue.

E: Acha que essa pressão em cima do casal é devido a quê?

M: É devido a... Se uma pessoa não tem ajuda, se eu não tivesse tido ajuda da minha irmã e

dos meus sogros eu tinha que pedir ajuda ao meu marido. Automaticamente o meu marido tinha

que estar dividido entre a parte profissional e a uma parte muito grande emocional, que tinha

que dar, tinha que rebentar, porque ninguém aguenta. Ele tinha um cargo elevado, por isso era

uma pressão muito grande. Ele saia muito para o estrangeiro. Eu tive que dizer assim “ok, tu

tens que ser tu a orientar tudo. O teu marido vai trazer dinheiro para casa, vai ter que estar livre,

vais contar o menos possível de coisas más, o que é que tu sofres, o que é que não sofres,

precisas de gritar eu gritava, precisas de coiso eu saia...”. A serio. Eu saia e gritava, gritava

porque precisava tipo eu sentia-me uma panela de pressão. Eu, de vez em quando, se não me

tirassem a tampa eu enlouquecia. Porque é, ou estamos no IPO ou estamos em casa sem sair.

A M. depois ficava com os valores em baixo, depois é ter fraturado o fémur e a tíbia, é ter que

lhe dar banho, é a medicação que tinha que ser a horas, é ela quando tomava essa medicação

ficava num sufoco de querer me bater, bater com a cabeça na parede, porque há vários sintomas.

E é tudo isso. Ter um bebé pequenino, a minha irmã tentava, pronto... Eu no 1º ano não me

lembro de nada do M. Nada. Porque eu foquei-me na M. Não podia. Por isso era uma dor muito

grande cada vez que eu ia para o hospital e deixar o M. Sabia que estava tao bem ou melhor

que comigo, com a minha irmã, mas se não tivesse este apoio como é que era? O C. não podia

estar a trabalhar porque tinha que ficar com o M. ou eu tinha que levar o M comigo, como via

milhares de pais. Milhares de pais que vêm do estrangeiro que deixam a mãe com alguns filhos

ou o pai com alguns filhos e eles vão para a instituição Acreditar que por mais que elas queiram

ajudar não é família, não é o seu canto, não é o seu mundo.

E: É uma situação muito dura. E todo esse processo que me está a contar agora, e

pensando no casal, vocês falavam entre vocês?

M: Sim.

E: Está-me a dizer que tentava poupá-lo o mais possível... não é?

M: Tentava poupá-lo o mais possível no sentido em que ele não sabia os pormenores das horas

da medicação mas sabia que tinha que ir ao IPO, sabia da consulta...

E: Mas da sua parte emocional...?

M: Sim, claro que sim. Sabia mas evitava não lhe mostrar muito que é para não... Coitado. Eu

acho que ele envelheceu mais que eu. Porque eu era o cansaço mas estava ali só e focada ali. E

o C. não. O C. sentia que tinha que estar ali mas que não podia porque alguém tinha que trazer

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dinheiro para casa. As coisas tinham que dar um seguimento... Mas era evidente que eu passava

mas tentava não o stressar muito. Agora, é evidente, havia alturas em que me apetecia partir

tudo. Claro que me apetecia, mas tentava fazer isso antes de ele chegar. Fazia ao pé da minha

irmã ou... É muito complicado!

E: Sentiu então que nessa primeira fase a vossa relação não foi muito atribulada?

M: Não.

E: Então e ao longo desse percurso, a M. já está sem...

M: Já. Portanto foi aos dois anos; dos dois aos 4 anos foram tratamentos intensivos e depois

durante o 1º ano é todos os meses, no segundo ano é dois em dois meses; no 3º é de três em

três e agora já terminámos os 5anos e este ano já estamos na fase dos duros, das consultas dos

duros, que é uma vez por ano.

E: Durante todo este percurso houve algum momento em que possa dizer que “aqui o

meu casamento ficou menos bem”?

M: Não, não.

E: Devido ao cansaço ou...

M: Não, nada, nada, nada.

E: Portanto diria que correu tudo sempre da mesma maneira?

M: Nada, nada, nada. Eu sinto é lesões psicológicas comigo.

E: Suas? Consequências...

M: Sim. Muitas.

E: Dizia-me à bocadinho também que a família foi procurar muita informação e que para

si isso acabou por ser uma ajuda. Mas nunca quis nenhuma informação ou apenas queria

aquela que a médica lhe ia dando no dia-a-dia?

M: Só. Só me alimentava dessa.

E: Ou seja, ia gerindo a informação que ia tendo todos os dias?

M: Completamente.

E: E essa informação servia?

M: Só. Essa é que entrava aqui. E que nada podia falhar. Não quero saber absolutamente nada,

nem para a frente, nem para amanhã. Só queria saber, a Drª. Célia entrava, fazia a visita “I.

passa-se isto e isto e isto e é para fazer isto e isto; I. leve para casa, eu sei que daqui a duas

horas está aqui outra vez, eu confio em si, mas eu quero que vá para casa” e eu ia focada. Eu

só vivia para a M. e depois para o M. quando ele nasceu. Só deixei a M. dois dias.

E: E não acha que esse “só viver para a M.” não roubou um bocadinho da vossa

intimidade do casal?

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M: Não porque o C. é extraordinário. Eu acho que fui uma mulher que aguentei muito mas o

C. foi um homem extraordinário. Nunca, nunca. Abertamente alando de relações e isso, no

inicio claro que não, ninguém tem vontade de... Mas o pouco tempo que nós tínhamos sim, era

perfeitamente, o C. percebia perfeitamente. Juro. Nunca senti absolutamente nada. Nem uma

cobrança do C. a dizer “podias...”, quando as coisas estavam mais calmas. Não, nada.

E: Durante este processo todo vocês iam fazer férias sozinhos?

M: Durante esse período não. Ferias sozinhos não porque o M. era muito pequenino, também,

precisava de ajuda. Mas muitas vezes com os meus sogros e depois com a minha irmã.

E: Sair, passear, ir ao cinema?

M: Sair, passear, sim. A minha irmã ia lá para casa. Sim, um sábado ou um domingo ou tipo

um fim-de-semana por mês. De mês a mês... Dependia.

E: Isso era importante?

M: Muito importante para o casal. Mas principalmente para termos algumas horas em que...

Aquilo não lhe sai do pensamento, nunca. Saiu-me do pensamento à meia dúzia de meses, que

eu quase nem me lembro, nem quero. Já passou, já faz parte do passado. Quero o presente. Mas

naquele tempo estava tudo muito marcado, mas só o simples facto de chegar às tantas horas e

eu não ter que dar a medicação, não ter que ver o sofrimento dela, pronto. Aliviava-nos um

bocadinho. E para ter mais forças para voltar novamente à luta.

E: E isso ajudava?

M: Sim, claro que ajudava.

E: Que ouras coisas acha que existe entre si e o seu marido ou no vosso casal que possa

ter servido como base ou como determinante dessa resiliência toda?

M: Para já eu acho que é importante saber o papel de mãe, a partir do momento em que uma

pessoa é mãe e pai tem que abdicar de muitas coisas. Eu pelo menos vejo as coisas assim. Não

quer dizer que eu anule para a vida, não é isso. Não sei se é por ter sido mais já aos 37 anos e

aos 39, mais tarde. Vivi tudo o que tinha a viver e eu agora não tenho necessidade nenhuma

disso. Tenho a necessidade de dormir com os meus filhos, dormir com o meu marido, de estar

com os meus filhos o tempo todo, de ir de férias... os meus filhos não nos largam, não querem

ficar com os avós, só querem estar connosco. Hoje já consigo deixá-los em casa da minha irmã,

porque há meses que nós não temos um jantar só os dois porque eles querem estar sempre

connosco. Nós queixamo-nos e cansamo-nos mas gostamos de estar com eles. Já sei que vamos

jantar e vamos acabar de jantar e “olha o M. se estivesse aqui estava a fazer isto; a M. se tivesse

aqui estava a fazer isto”. Porque a partir do momento em que eu fui mãe o meu foco é ser mãe.

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Eu adoro trabalhar mas o que me faz realizada é a parte da família. É fazer o meu marido feliz

e é fazer os meus filhos felizes. Tudo o resto não tem importância.

E: Senti -----????

M: É muito assim e o C também. É um homem extraordinário.

E: Estava-me a dizer que a M. estava sempre consigo. Vocês dormiam juntas durante esse

período?

M: Sempre.

E: Juntas na mesma cama?

M: Juntas na mesma cama.

E: Quando é que a M. deixou de dormir na vossa cama?

M: Nunca.

E: Nunca até hoje?

M: Nunca até hoje. Nós dormimos as vezes os quatro, ou os três, ou um fica com um e outro

fica com o outro. Eu sei que é horrível para as crianças mas é o meu melhor momento do dia.

É ir adormecer os meus filhos... não fico a noite toda. Mas ponho-os um em cada cama mas a

meio da noite eles já estão na nossa cama.

E: Veem todos para a vossa cama e ficam na vossa cama?

M: Exatamente. Ou às vezes estou tao cansada e acabo por adormecer com eles os dois e o C

dorme sozinho e nós os três dormimos juntos. Outras alturas em que a M. dorme com o pai e

eu sou mais com o M. Porque a M. pronto... O M. gosta mais de, porque ele gosta dos meus

sinais que eu tenho aqui, e um vício.

E: O M. tem que idade?

M: Tem sete. Gosta de mexer nos meus sinais.

E: Já deve ter sido de dar de mamar.

M: Sim, eu sei que isso é péssimo não é...? Aos 9 anos...

E: Como não estamos a falar do assunto vamos passar a frente.

M: Mas é não é...? Para eles eu sei que é. Eu vou tentar fazer uma terapia com eles.

E: Eles para já procuram, pelo menos. Não é? São eles que vão para lá meter-se na cama?

Nenhum deles tem já muitos medos ou têm?

M: Eu acho que não é medos. A M. pelo menos... tenho que falar isso com a Dr.ª Ana Lacerda

ou com a Dr.ª Margarida, porque a M. é muito crescida mas é (eu acho que todas as crianças

que passam por este processo são crianças especiais), a M. vê, é um bebé com mentalidade de

adulto. Eu as vezes tento não ter muitas conversas de adulto mas é impossível porque o tempo

que temos com eles é muito pouco, à hora de jantar, tentamos saber o que se passa, no dia-a-

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dia, o que é que fizeram, o que é que não fizeram. Não vemos televisão quando estamos a jantar

mas as pessoas ouvem sempre coisas, vou dar um exemplo – o C. foi ao NÓS ALIVE, dois

dias à noite e a M. quando fui buscá-los, que estavam com os meus sogros, foi do género “mãe

deixa-me ligar ao pai”, e eu “mas porquê?” “quero saber se ele está bem, se não lhe aconteceu

nada, se não lhe fizeram mal”. Isso está-me a meter um bocado de...

E: Tem medo de vos perder ou tem medo que vos aconteça alguma coisa...

M: Sim, sim.

E: É frequente.

M: Ai é normal? Mas nestas idades? Não tem nada a ver com eu dormir com eles...? Porque eu

não quero fazer mal a eles.

E: Mas é frequente, especialmente em crianças que passaram por situações de doença, as

vezes acontece ficarem com muito medo que as pessoas de quem eles gostam, de quem

eles dependem, morram. Porque viveram de perto ou porque ouviram falar... Isso é uma

das razoes pelas quais ela não quer ouvir falar de doença e ainda bem, porque não se fala,

porque só vai aumentar esta personalidade... Se calhar um dia mais tarde ou mais cedo

vai ter que se falar com ela...

M: Mas ela é muito... não digo que seja hipocondríaca, mas ela é muito...

E: Vive muito centrada com qualquer coisa que aconteça...

M: “Está-me a doer a cabeça, oh mãe vê lá; aconteceu-me isto, mãe, vê” não diz mas sim, muito

focada. O M. não está nem aí “ah não sei quê aleijei-me”. A M. não. É como digo, a M. é muito

crescida. Eu fui à reunião de pais, no final do ano e o professor disse “a M. já não é a M. que

começou o ano, já se ri nas aulas, já fala para o lado” e eu disse “professor fico tão feliz”. “Mas

fica feliz porquê?” Porque sou eu que fomento a M. fazer asneiras, sou eu que fomento que a

M. seja criança, que digo “M. é normal tu errares, é normal tu fazeres mal.” E a M. sabe o que

é que é mau!

E: E acha que isso é uma consequência da doença?

M: Eu acho que sim, porque falo com outros pais, ou falava e as crianças são todas assim,

muito... Sabem!

E: Ficam mais sensíveis, mais crescidas...?

M: Mais crescidas, sim!

E: Mais maduras mas ao mesmo tempo mais preocupadas, não é?

M: Completamente. A M. é muito preocupada. Eu as vezes não digo determinadas coisas

porque parece que ela é a minha mãe “mãe cuidado”. Eu sou muito mais, eu tento sempre

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evitar, para que ela seja criança, para que ela passe por todas as etapas de criança. A nível de

escola de não tem boas notas fica logo... e eu não quero isso...

E: Estou a ver que há aqui e agora falando em termos de ser pai e ser mãe, parece que há

esta relação muito, muito próxima. Acha que foi a doença que também modificou...?

M: Não sei se foi a doença, se foi ser mãe mais tarde. Também que todas as pessoas dizem que

quando as mães são mães mais tarde que são...

E: Mas acha que se modificou depois de saber que...?

M: Inconscientemente. Se calhar. Não propositadamente. E foi emocionalmente que as coisas

foram acontecendo sem... Acredito que até, como digo, há dois anos o telefone tocava e se era

a M. o meu coração era logo. Se a M. ainda hoje tem febre vem tudo à minha cabeça. Passa o

filme, assim, muito rápido, mas vem tudo. Fico transtornada, já não sei qual é o norte nem qual

é o sul. Nada. Fico completamente doida. Com o M. já não. Vem a febre e eu nem sequer me

passa isso pela cabeça... posso dizer assim eventualmente “vá quer dizer aconteceu a um, não

vai acontecer a outro, vá, limpa”. Mas com a M. não. Vai sendo cada vez menos, mas ainda

hoje, o simples facto de ter febre. Foi através da febre que se detetou tudo, por isso eu fico sem

Norte.

E: Quando ela tem então sinais de doença... E em relação a outros aspetos, por exemplo,

a sua filha querer sair e brincar com as amigas ou ir dormir fora, fica um bocadinho mais

preocupada?

M: Pelo contrário, ela é que não quer ir. Eu ate fomento. Tanto que ela agora até ia para casa

da minha irmã e agora já não quer ir. E eu hoje disse-lhe “M. desculpa mas vais ficar uma noite

mas duas noites, tu tens que te libertar da mamã e do papá. Estamos aqui a dois passos, se

acontecer alguma coisa a titia vem nos trazer, vimos aqui. Não pode ser, tens que te libertar”.

Sou eu que... E há um grande amigo dela da escolinha que eu me dou lindamente com os pais,

adoro-os, são super responsáveis, sou eu a dizer e ela já não vai. Foi duas vezes. “oh mãe mas

eu não quero, eu gosto de brincar, durante o dia, tudo mas à noite quero ir para minha casa”

E: e em reação à maneira como lida com ela, se ela faz birras ou se...

M: A M. não faz birras...

E: Mas acha que se tornou uma mãe mais tolerante ou mais exigente por ela ter tido a

doença? No sentido de que “já teve o que tinha a ter e agora só pode ter coisas boas”?

Ficou mais tolerante com ela?

M: Não eu acho que não. É evidente que eu penso nisso mas pensaria se fosse o meu M. que

tivesse tido, com o feitio que ele tem, que só quer é brincar, estudar esqueça, se calhar aí eu

podia ter dito “não vou dizer nada porque ele já sofreu”. A M. não sei como aprendeu a ler,

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vou tentar ir às aulas e aos cadernos para ela sentir que eu me foco nela e que também me

preocupo com ela, como me preocupo com o M. Vou só dar um exemplo. Fomos à Dr.ª Ana

Lacerda e ela diz “oh Ana fiz isto e isto e isto e o meu irmão tirou Suficiente mais e um bom e

não sei quê e os mais pais foram logo comprar uma prenda e ficaram todos felizes...”. Eu nunca

pensei que ela tivesse apercebido disso, foi uma bofetada para mim. Nós estamos sempre a

aprender e depois a Dr.ª disse “M. vai ali brincar e buscar não sei o quê” e diz-me “I. então?

Nem parece seu, não pode ser. A M. tem as notas que tiver. Cada um dá-lhe o que pode; ela

dá-lhe o melhor que pode e o M. dá-lhe o melhor que pode”

E: Mas ela tem boas notas ou acha que...?

M: Ela tem muito boas notas. Ela é muito boa aluna.

E: Está-nos a dizer então que se ela não fosse boa aluna, consideraria que seria mais

tolerante?

M: Possivelmente, mas eu não preciso de ter isso porque ela é perfeita. Tudo. A M. eu peço-

lhe para fazer ela faz, a M. não me responde nunca, se eu tiver as vezes necessidade de

desabafar, se chego muito stressada e se ela está, eu as vezes ate me esqueço que ela é uma

criança. Falo e ela...

E: Ajuda...

M: A própria professora lhe diz que é maravilhoso ter a M. na turma porque ela está cansada

dos alunos, olha para a M e parece que a energia lhe volta só com o olhar da M. portanto eu

acredito que se calhar tivesse feito isso, se fosse diferente eu não ... eu não lhe sei dizer como

é que eu faria porque não preciso, porque a M. é como lhe digo, a M. não faz asneiras “mãe eu

posso fazer? Mãe eu não sei quê?”

E: E hoje as suas preocupações em relação a ela são o quê? O que é que se preocupa?

M: Não penso no assunto, não quero pensar no assunto. Eu agora quero olhar para a minha

filha e não aconteceu nada. Só quando vem a febre, quando lhe dói uma unhinha do dedo é que

tudo vem...

E: Acha que ela está curada?

M: Eu não acho, eu tenho a certeza. Eu tenho a certeza. Agora a nível médico ninguém me dá

essa certeza como é obvio.

E: É uma certeza interna, não é uma certeza médica...?

M: sim. Quase nos garantem que está curada mas não é uma certeza. A Dr.ª Lacerda nunca nos

disse “I. a M. está curada”. De todo. Mas acredito que as coisas estão no bom sentido, que ao

fim de 5 ou 6anos sem nada ter acontecido, depreendo que... Mas para mim a M. está curada.

Não penso nisso. Já não penso. Já não me lembro quando ia ao IPO... já não me lembro...

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E: E acha que a sua filha teve a pior doença do mundo?

M: Não. Eu acho que a M., eu digo a toda a gente e isto é de coração – nós fomos uns felizardos.

Tivemos que passar por isto, porque acho que Deus escolhe, as pessoas que têm capacidade

emocional e estrutural para aguentar isso. Podem desmoronar ou não mas têm estrutura para...

E nós fomos escolhidos. A M. foi escolhida e tudo correu bem. Por isso eu só tenho que ter um

fim feliz. Eu não consigo dizer assim, mas porquê a minha filha. Eu nunca disse “mas porquê

a M.? Porquê eu?” Não. Mas também as vezes estava com eles em casa e olhava na janela e

via as crianças a brincar. E eu só pedia à minha mãe “mãe a M. vai brincar como aquela

criança”. Hoje nem me passa isso pela cabeça. A M. está a brincar e nada, eu acho que já varri

completamente.

E: Já alguma vez pensou na causa da doença, porque é que ela teve esta doença?

M: Não, não. Nunca me culpabilizei. Só pensei no simples facto de que fosse preciso as células

estaminais ia ser muito difícil gerir mas não e depois a partir do momento em que a Dr.ª nos

disse “I. isto todos nós estamos predispostos, uns desenvolvem outros não”. Eu não tive culpa.

E: E estava-me a dizer que houve consequência para si, que ficou uma pessoa com

algumas perturbações de memória, cansada...

M: E a dar valor a coisas que não dava, importância a coisas que não dou hoje.

E: Emocionalmente, acha que se alterou?

M: Eu sei que ficou muito emocional mas agora estou muito carente (careta?), ou seja, qualquer

coisa choro...

E: Mais sensível...

M: O cão está não sei quê, choro. A criança, a mãe está a levantar o tom de voz mas eu não me

apercebi porquê, a criança chora, eu choro, porque a criança está a chorar. Estou muito mais

sensível.

E: E consequências positivas... Estávamos aqui a falar das consequências... Estava a dizer

que vê as coisas...

M: Completamente. Não dou valor a marcas, não dou valor a ter uma casa xpto, ter um carro

xpto. Não. Todos os dias rezo a minha mãe e peço um dia igual ao que tive; saúde para todos,

família, tudo, tudo. Não peço mais nada. Era o que tenho é maravilhoso. Só não queria era

trabalhar. Para ser mais mãe galinha, para poder ir buscar os meus filhos, ir levá-los às

atividades. Amava.

E: Ainda bem que trabalha. Para eles não poderem dormir consigo a toda a hora.

M: Isso é que eu adorava. De resto não queria mais nada. Estou ótima.

E: Mas acha que ter havido esta doença a modificou como mãe?

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M: Eu acho que isso só poderia pensar se a M. não fosse o primeiro filho. Não sei. Ela foi o

primeiro filho.

E: Acha que teria sido diferente com o M. se não tivesse tido a M. se a M. não tivesse tido

a doença?

M: Por acaso acho que não. Muito sinceramente acho que não.

E: Acha que seria tao mãe galinha como é agora?

M: Sim. Porque eu não tenho... Eu sou muito feliz assim. Não preciso de mais nada.

E: E neste momento o que acha que são para si as suas ajudas para se sentir melhor? O

que faz para se sentir melhor? Estava-me a dizer que agora há uns meses já deixou e

pensar tanto.

M: Acho que é o tempo que ajuda. Que nós olhemos para as coisas e... eu acho que a minha

capacidade, se por um lado, para umas coisas é maravilhoso, que foi para isto: Eu quando não

quero sofrer ou quando digo, é para eliminar eu tenho esta capacidade no meu cérebro de fazer

delete completamente, mas depois para outras coisas eu quero armazenar e também não

consigo.

E: Não se pode ter tudo.

M: Portanto eu tenho esta capacidade. Sofri, passou. Foi positivo, é caminhar para a frente e

não pensar mais no passado.

E: Se neste momento estivesse com pais que souberam agora que os filhos tinham uma

neoplasia qualquer...

M: o que é que lhes diria não é?

E: Sim.

M: Eu faria... eu aconselhava a não faze pesquisa nenhuma de nada tanto que o C. chegou a

uma altura e percebeu que eu tinha razão, que começou a não fazer; confiar cegamente na

equipa porque temos os melhores médicos do mundo, tudo desde auxiliares, desde os

voluntários, tudo. Eu acho que, digo-lhe, sentia-me melhor no hospital do que em casa. Nunca

vi uma mãe por mais dor que tivesse a gritar, a perguntar “porquê eu?” a revoltar-se, eu não

lhe sei explicar. É mítico ali o IPO do 7ºandar. Nunca senti. Eu sentia-me lindamente. Para já

porque sentia proteção se acontecesse alguma coisa. Mesmo nós mães apoiávamo-nos ou não,

mas nunca ... sempre a falar e no dia a dia, “o que vamos fazer?, o que podemos fazer?”. Nunca

o ambiente triste, as crianças claro que gritavam quando eram picadas isso aí é normal mas fora

isso andavam de um lado para o outro, a rir, a saltar, cheios de aftas, com os carrinhos, todos

cheios de, todos cheios de não sei quê. E as coisas fluíam...

E: Quando chegou a casa sentiu algum baque, de ficar sozinha?

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M: Muito, muito grande.

E: Chegar a casa e ficar sem aquela proteção

M: Sim. É muito difícil. Mas eles não deixam que nós nos sintamos assim porque há (não sei

se estará mais evoluída) a Dr.ª Ana Lacerda está a fazer tudo para que isso aconteça, tivesse só

uma rede direcionada para os pais que levam as crianças para casa, para poderem tomar

seguimento mas qualquer coisa... Éramos logo atendidos, íamos logo para o hospital e as

equipas os enfermeiros ou os médicos diziam logo é para vir ou “faça isto e isto”. O

acompanhamento é 100%. Confiar na equipa médica e acima de tudo ser muito positivo. Muito

positivo. Acreditar. Firme até a ultima que é possível. Sempre, sempre. Porque se uma pessoa

não acredita, eu acredito que isso é muito importante. É evidente que as coisas podiam ter

corrido mal mas se uma pessoa... se não acreditamos quem mais é que há de acreditar? Mesmo

se nós transmitirmos este positivismo aos médicos acho que tudo é mais leve, acho que

sofremos menos, não sei...

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CASAL 08 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – M.

E: Já estivemos a falar com a sua mulher... Ela diz-nos que vocês souberam que a M.

estava doente quando ela estava grávida. Foi aqui por volta do fim do ano, não é?

P: Sim. Nós no final do ano... Ela nunca tinha estado doente, de uma forma séria, que fosse

necessário levá-la ao hospital. Eu até disse aos meus amigos que não sabia o que era ir ao

hospital durante a noite, e as vezes eles falavam mas “a minha filha nunca fica doente”. E

depois em Dezembro, os últimos dias do ano, no final de 2008, ela começa a ficar com febre,

adoentada e nós aí pensamos levá-la ao hospital porque não era normal. E no dia 1 de Janeiro

de 2009, portanto, é diagnosticado a doença e a partir daí desenvolveu-se e desenrolou-se o

processo.

E: Quando ela foi diagnosticada, vocês levaram para o hospital, a pensar que ela tinha

alguma coisa...

P: Nós entramos no hospital a pensar que ela tinha uma gripe.

E: Os sinais eram esses...

P: Ela tinha tido algumas semanas antes, tinha tido, a subir as escadas da casa da minha mãe,

tinha tropeçado e na altura, ela queixou-se, da perna...

E: Doía-lhe as pernas...

P: E aquilo não passava e nós fomos à clinica do parque dos poetas e disseram “isso não é nada,

não é nada de especial, não se preocupem, isso passa”. E nós estávamos longe de relacionar o

que quer que seja...

E: Ela continuou a queixar-se das pernas?

P: Ela nunca passou completamente mas deixou de ser uma dor permanente, forte. Portanto

depois em Dezembro, há aquela situação, ela começa a ficar muito murchinha e começa a ficar

com febre, a febre não passa e nós decidimos ir ao hospital. E entrámos no hospital a pensar

que ela tinha uma virose... Pela primeira vez fomos ao hospital, a uma urgência e depois há

coisas que acontecem. Nós tivemos a sorte de estar de serviço naquela noite, estava a Margarida

Lobo Antunes que nós não conhecíamos naquele momento e que não desistiu de nós. Porque

quando ela faz o diagnóstico também não percebeu bem o que se estava a passar, o que ela diz

é “não há razão para esta febre”

E: Pois, não tem nada inflamado...

P: “Portanto vocês só vão sair daqui quando eu perceber o que se está a passar, não vos ou

mandar para casa, nem que eu esteja aqui até ao fim com vocês. Não vos vou mandar para casa

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enquanto eu não perceber o que se passa”. A certa altura ela vai chamar a colega, uma pessoa

da confiança dela, e começam a olhar para ela e “mas ela está tão amarela, vamos fazer uma

recolha de sangue”. E é quando fazem a recolha de sangue, que percebem que ela está num

estado completamente quase crítico. A hemoglobina estava muito, muito baixa de tal forma

que ela foi internada de imediato. Logo nessa noite teve uma transfusão de sangue.

E: Ou seja, disseram-lhe que internamento “é aqui, é já”...

P: Sim... Ela chamou-nos e meteu-nos numa sala e disse-nos “eu tenho más noticias para

vocês”. Nós ficámos a olhar para ela, não estávamos bem a perceber “mas não é uma virose?!”.

“Não. A vossa filha provavelmente poderá ser uma doença (já não me lembro bem das palavras

que ela usou) de foro oncológico”. E eu não percebi bem. Lembro-me de “não percebi bem,

mas o que é que a senhora está a querer dizer?”. E ela “cancro...”. “Não é possível, isso não é

verdade, não, não pode ser”... E ela deixou-nos ali um bocado sozinhos e eu lembro-me que

dei murros na parede. É um desespero. Pela primeira vez na minha vida eu fui confrontado com

a morte, de uma pessoa assim, tão próxima...

E: Mas pensou “vou perder a minha filha”?

P: Pensei. Pensei porque há muito pouca informação e eu nunca tinha pensão sobre o assunto,

e portanto, “cancro” é uma palavra que está associada à morte

E: Cancro e morte é a mesma coisa...

P: Cancro igual a morte e quando nos dizem que a minha filha tem cancro a primeira coisa que

eu penso é “a minha filha vai morrer”. É a primeira coisa que penso e portanto é o desespero

completo. Portanto essa noite que nós ficámos lá internados, tivemos lá também, porque no dia

a seguir entrámos logo no IPO. Nessa noite dormimos lá todos. A minha filha estava internada

lá, a levar a transfusão. Nessa noite eu não dormi. Andei a passear pelos corredores lá do

hospital e portanto fui confrontado com “a minha filha vai morrer” e começa a ser uma coisa,

naquele momento é uma coisa que para mim era evidente. A minha filha que nasceu há dois

anos, que é o que eu mais amo nesta vida, vou perdê-la. E eu não conseguia perceber porquê é

que me tinha acontecido aquilo e só quando entro no IPO, no dia a seguir, e somo recebidos

pela equipa do IPO, é que me explicam que há possibilidade de sobrevivência.

E: Ou seja, vocês não tiveram essa notícia naquela noite?

P: Não. Portanto eu passo uma noite a pensar que a minha filha ia morrer, sem mais informação

absolutamente nenhuma. Portanto eu não tinha informação. Eu lembro-me que telefonei para

um médico, amigo da família, que nós conhecíamos (não era especialista sobre isto) e pergunto-

lhe “Dr. a minha filha vai morrer?”. Eu sou uma pessoa muito pragmática, eu sou muito

diferente da minha mulher. Ela é muito emocional, eu sou muito pragmático. E depois de ter

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perguntado, ele diz “eu não sei. Eu não posso dizer nem que sim nem que não porque eu não

sei. Tens que te aguentar, vocês têm agora que levar o processo. Mas não consigo dizer...

Gostava muito de dizer que não mas não sei”. Portanto de facto, aquela dúvida, foi terrível. No

dia a seguir as coisas passaram a melhorar. Portanto eu bato no fundo, no mínimo, num ground

zero completo, e a partir daí foi sempre a melhorar...

E: E a melhorar por causa da informação?

P: Pela informação. Começo a ter esperança. Começo a achar “bem, há uma possibilidade de

sobrevivência, a minha filha vai sobreviver”...

E: Procurou outra informação, mais informação?

P: Procurei. Claro.

E: E isso ajudou?

P: Eu e os médicos falávamos muito porque, quer dizer, eu procuro muita informação na

Internet, mas também aprendi que a Internet é muita desinformação e as vezes, na mesma coisa,

conseguimos ler uma coisa e o seu contrário na internet. Portanto aquilo não tem muita

credibilidade para mim. Portanto o que me acalmava era quando ia falar com os médicos...

E: Mas perguntava?

P: Perguntava, sim.

E: Mas queria saber como era para a frente, ou seja, a informação só do dia-a-dia, não

lhe chegava. Queria saber mais para a frente?

P: Sim. A minha mulher é diferente de mim. A minha mulher é uma pessoa que vive as coisas

mais o dia-a-dia e agarra-se muito. Eu sou diferente e gosto de saber para a frente. Quais são

os passos, o que vai acontecer... E sempre focado na ideia “a minha filha vai sobreviver ou

não?”

E: Começou a ter esperança, portanto?

P: Sim, começou a haver esperança; a sentir esperança. E a partir daí foi sempre melhor. Depois

a minha filha reagiu muito bem, aos tratamentos, portanto foi uma coisa limpa.

E: Uma coisa muito positiva, ou seja, correu tudo tão bem como o que era esperado...

P: Tudo aquilo que eles disseram que ia acontecer, o cenário mais positivo, aconteceu... Claro

que houve peripécias, houve circunstâncias e obstáculos, a minha filha partiu a perna duas

vezes...

E: Relacionado com o cancro...?

P: Sim. Partiu a perna duas vezes. Uma das vezes a dançar. Já não sei muito bem quando foi,

a certa altura fiquei com um bloqueio mental e já não sei dizer datas. Atualmente eu tenho um

dificuldade tremenda em dizer datas, dias, porque há um bloqueio mental. Mas lembro-me que

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a minha filha, a dançar à minha frente, com uma musiquinha que ela gostava partiu uma perna,

outra vez escorregou com aquelas coisas das bolas de sabão, escorregou e partiu a perna. Partiu

duas vezes a perna. Ela tem uma fragilidade óssea brutal. Mas digamos que foram as duas

peripécias, os dois obstáculos maiores. De resto...

E: E o que é que mais ajudou a adaptação nessa primeira fase? Houve ajudas de fora?

Vocês...

P: Nós tivemos lá uma psicóloga que se disponibilizou logo para falar connosco...

E: Isso ajudou?

P: Ajudou. Se bem que nós somos fortes. Nós somos um casal... Eu acho que nós somos fortes

psicologicamente. Somos resilientes...

E: Como? Explique-me um pouco isso...

P: A minha mulher tinha tudo contra ela. Estava grávida, de 4 ou 5 meses, portanto estava

vulnerável, tem uma notícia destas e tinha tudo para se ir abaixo. E não foi. E eu acho que

passei a ter uma admiração pela minha mulher que não tinha até ao momento, eu naquele

momento passei a olhar para ela de uma maneira que não olhava até agora. Por isso quando

vocês falam que os casais se divorciam... As nossas circunstâncias são diferentes, ia nascer um

filho em Maio, portanto a minha filha é diagnosticada em Janeiro e em Maio nasceu o M.,

portanto são circunstâncias se calhar únicas, não é normal isto acontecer. Mas o tal facto é que

eu passei a admirar mais, (não é gostar mais dela, amava-a da mesma maneira, não é isso), mas

passei a admirá-la mais como uma mulher que abandonou tudo, focou-se naquele objetivo de

salvar a filha, dormia lá, passava lá os dias todos, não abandonava a filha, entregou-se

completamente e nunca foi abaixo mentalmente. Podia ter tido uma depressão pós-parto, era

normal que isso acontecesse, podia-se ter ido abaixo, eu podia ter que ter tido um papel mais

interventivo lá, porque ela se calhar tinha que estar em casa a descansar (porque estava

grávida!), mas nada. Zero. “Quero estar aqui, ao pé da minha filha” e o que é facto é que o M.

nasceu saudável, e de facto eu fiquei com uma admiração por aquela mulher inacreditável.

E: Estamos a falar do que ajudou na altura. Está-me a dizer que a psicóloga deu uma

ajuda...?

P: Sim, deu uma ajuda, mas eu também acho que nós somos resiliente. Nós a certa altura

também dissemos à psicóloga “apreciamos mas nós estamos fortes”.

E: E quando fala em resiliência, disse-me “a minha mulher, comecei a admirá-la muito

mais porque ela conseguiu aguentar isto muito bem”. E que outras coisas da vossa

resiliência...? O que é que aconteceu enquanto casal... Ficaram mais unidos? Acha que

isso ajudou?

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P: Acho que sim. Eu acho que, quer dizer, eu nunca pensei muito sobre o assunto, mas eu acho

que, nós discutíamos muito mais antes de isto ter acontecido, e houve aquilo um momento...

Houve foi aqui um espirito de equipa – vamos dar as mãos, vamos ter que ultrapassar, há uma

filha que é preciso salvar e há um filho que tem que nascer saudável. E vamos dar as mãos e

vamos fazer uma equipa.

E: A ideia de se complementarem um ao outro...

P: Sim, ela mais protagonista e eu mais de back up. Sim, foi um bocadinho tácito, não foi bem

pensado, não é uma coisa emocional...

E: Haviam tarefas para cada um...

P: Sim, um bocadinho.

E: Complementar...

P: Sim, complementar. Eu fazia o back up, fazia a logística, ia dormir a casa, trazia as coisas,

estava lá o dia todo, fazia o que fosse preciso, falava com os médicos, sabia o que era preciso,

e ela numa mais de proteção, de mãe, estar ali ao pé da filha e tal. E pronto, eu acho que as

coisas... E depois nós temos uma família que também nos ajudou muito, o ambiente familiar

também é, da parte dela, uma família maravilhosa que nos ajudou, a minha família é mais

pequena mas os meus pais ajudaram bastante. E esse ambiente familiar em que as pessoas se

dão bem, e que somos um bocadinho como os ciganos e andamos sempre atras uns dos outros,

também ajuda.

E: Está-me a dizer que, houve então essa aproximação grande nessa fase, e ao longo destes

anos, houve algum momento que vos tenha sido mais difícil como casal? Por exemplo após

o tratamento, ou o cansaço do tratamento? Houve algum momento em que tenha sentido

cansaço?

P: Houve, houve alguns momentos em que sentimos cansaço. Mais naqueles primeiros dois

anos, foram dois anos muito difíceis. Há a fase do internamento e depois há a fase em que

andamos sempre com o credo na boca e que há um piquinho de febre nós achamos que é uma

reincidência. Eu fiquei muito mais vulnerável a essa situação.

E: Ainda hoje?

P: Sim. Ainda hoje. Penso mais na morte do que pensava. Eu não pensava na morte e hoje

penso na morte dos meus filhos. Sou mais protetor. Tenho medo que os meus filhos façam

coisas arriscadas, começo logo a pensar no que é que lhes vai acontecer. Ainda hoje se a minha

filha, por exemplo disser que tem uma dor numa perna eu imediatamente olho para a minha

mulher e a minha mulher olha para mim. Alias houve um episódio do M. já há um ano e tal,

dois anos, e o M. começou a sentir uma dor numa perna e nós “filho, mas estás com dificuldade

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em andar?” e ele a dizer “não consigo, não consigo”, chorava e chorava e sentou-se e “eu não

consigo” e nós “mas o que é que fizeste? Tropeçaste? O que aconteceu?”. E ele disse que não.

Eu olhei para a minha mulher e começamos os dois as chorar até que eu disse assim “não M.

tu vais daqui ali a correr. Corre. Obrigo-te. Corre.” E ele vai a correr e penso “não, está tudo

bem”. E fomos a seguir à clinica e de facto estava tudo bem. Foi apenas um susto mas quer

dizer, cá está, tudo pelo facto de nós estarmos... Está aqui guardadinho este medo e este...

E: Está-me a dizer então que houve aqui este período de cansaço...

P: Sim, e isso alterou. São dois anos muito difíceis, cansativos.

E: E em termos de intimidade do casal, acha que também se reflete esse cansaço? Estou

menos disponível? Ou estou mais cansado? Ou irrito-me com coisas que não devia?

Alguma coisa desse estilo?

P: Houve. Eu também, no meu trabalho não foram tão compreensivos como foram no trabalho

da minha mulher. No da minha mulher, ajudaram-na imenso e disseram-lhe, “quando voltares

tens aqui o teu lugar, portanto trata da tua filha, o tempo que for preciso” que é uma coisa que

acho fantástica. A mim não. A mim quiseram-me... Eu era diretor de marketing e quiseram-me

encostar à parede. O presidente quando soube (é japonês) fez uma reunião com os outros

diretores e (eu só soube disto mais tarde) e disse “o C. não tem condições, ele quando vier, vem

completamente destruído e eu não posso ter um diretor de marketing destruído

psicologicamente, portanto vamos ter que arranjar aqui uma solução interna e ele não pode

perder os direitos porque a lei portuguesa não deixa mas vai ficar encostado”. E os outros

diretores insurgiram-se e (eram portugueses) e disseram “não, vamos-lhe dar uma hipótese.

Está a dizer que ele vem destruído, mas pode não vir, vamos-lhe dar uma hipótese. Se ao fim

de 3 ou 4meses a gente vir que ele não consegue render então vamos falar com ele”. Eu só

soube disto mais tarde. Pronto, o que é facto é que eu entrei e tentei agarrar-me ao trabalho

também como uma forma de escape.

E: Isso também ajudou...

P: E ajudou. E portanto o que é facto é que eles nunca mais tiveram de se reunir, nunca cheguei

a pôr nenhum problema lá, mas acabei por me entregar ao trabalho e acabar também, como

escape... E isso também ajudou, penso eu. Na minha perspetiva também ajudou.

E: Mas houve aqui um momento de cansaço... E depois as coisas melhoraram porquê?

Será que consegue contar-nos?

P: As coisas melhoraram, quando... Há ali uma fase, uma fronteira que se ultrapassa que é

quando fazem a avaliação e dizem que a M. entra em remissão total. Isso aconteceu em 2011.

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Remissão total para mim é aquela fronteira. Quando se consegue ultrapassar abre-se uma

nova... um novo horizonte.

E: Ou seja, muito seguido pela doença? Parece que a doença vos... O percurso da doença

acaba por influenciar o vosso percurso...

P: Completamente. Nós andamos um bocadinho ao sabor da doença. Nós estamos em alta ou

em baixa consoante a doença. E como nós tivemos um percurso muito limpo de doença,

positivo, acabou por não termos aqui uma, fases muito dramáticas. Havia lá exemplos que

tinham muito mais dificuldades, em que viviam os tratamentos, em que passavam fases

terríveis. Não é que nós também não tivéssemos os nossos momentos de dificuldade, e de

isolamento, em que ela não podia... Estava completamente afastada de outras crianças. Claro

que tivemos esses momentos, mas não foi...

E: Eram expectáveis... Ou seja, não foi qualquer coisa que aconteceu mas que não mostra

que ela não estava a reagir bem...

P: Expectáveis. Exato.

E: Mas é muito interessante, estava-me a dizer que vão muito ao sabor da doença porque

há quase a noção de que há um barco em cima do mar e conforme o mar, assim se vai

navegando...

P: É. Completamente.

E: Dizia-me à bocadinho que houve aqui alguma consequência da vossa historia como

casal e em termos de parentalidade, está-me a dizer que já é uma pessoa mais preocupada,

com medo que lhes aconteça qualquer coisa. Acha que seria um pai diferente se não

tivesse tido esta situação?

P: Sim. Era mais solto. Sim, sou um bocado pai-galinha. Porque penso muito nas coisas. Nós

tivemos nos Açores, decidimos tirar uma semana de férias nos Açores e aquilo só tem aqueles

miradouros, não tem proteção nenhuma. A certa altura o meu filho faz um disparate e mete o

pé e salta para um parapeito, mas a ideia que eu tinha é que aquilo não tinha mais nada e eu

durante dois dias não dormi na pensar “eu devia ter protegido o meu filho e não o agarrei a

tempo”. Esta sensação de que eu tenho que os proteger e que não lhes pode acontecer nada

porque eu tenho que fazer algo e tenho que os proteger... Eu acho que é uma coisa que tenho a

certeza que resultou da doença, da experiencia que eu tive...

E: Ou seja, resultou, se calhar, daquele passeio grande que fez naquela noite a pensar que

ia perder um filho...

P: Sim.

E: Acabou por viver a morte de um filho mesmo sem ele ter morrido...

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P: Sim, isso marcou-me profundamente. E eu tenho muito medo que os meus filhos morram.

Que é uma coisa que...

E: Se calhar já viveu a morte dela, naquela noite...

P: Não sei explicar. Alias eu naquela noite, a minha filha, para mim, tinha morrido. E portanto,

eu penso muito na morte dos meus filhos. É uma coisa que me chateia.

E: E isso no dia-a-dia, na educação deles, sentiu... Tornou-o, por exemplo, mais tolerante?

Mais próximo ou mais superprotetor, ou...?

P: Não, acho que não. Em termos de educação acho que não. Acho que é uma coisa mais minha.

Eu nem falo muito com a minha mulher sobre isso. Mas penso muito.

E: E superprotetor sim? Por exemplo se os seus filhos, se alguém convidar os seus filhos

para ir passar os dias fora...?

P: Tenho alguma dificuldade...

E: Tem mais dificuldade com o M. ou com a M.?

P: Mais dificuldade com a M. mas também com o M. Com os dois. Mas a M... Se o meu filho

tem febre eu não me preocupo, se a minha filha tem febre eu entro em pânico. E relativamente

a isso de passar o dia é um bocadinho com os dois...

E: Ou seja, separar-se dos seus filhos...

P: Custa-me e acho que à minha mulher também custa.

E: Quando ela um dia for de Erasmus, não vai ser fácil.

P: Não vai ser nada fácil. Quando ele quiser ir trabalhar para fora não vai ser nada fácil. Mas

eu sinto que isso resultou da minha experiencia.

E: Foi uma consequência?

P: Foi.

E: Consequências para a sua mulher? Acha que houve? Outras consequências? Ela

modificou-se também?

P: Não sei. Acho que ela também é um bocado como eu nesse aspeto. Ela ainda hoje dorme

com os filhos. Dormimos com os nossos filhos. É uma coisa que está bem resolvida entre nós,

mas nós dormimos com os nossos filhos.

E: Mas os 4 na mesma cama?

P: Não. As vezes eu durmo com a minha filha, outras vezes, durmo sozinho e dormem eles os

três. O meu filho adora dormir com a mãe. Eu sei que isto pode parecer pouco saudável mas

nós vivemos os quatro bem assim, não tem problema nenhum e nós adoramos dormir com os

nossos filhos. Adoro. Todos ali, protegidinhos. Posso agarrá-los durante a noite e estão ali estão

bem e estão saudáveis e estão aqui ao pé de mim.

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E: Mas quando é assim, são eles que vêm ou vocês...?

P: Eles também gostam imenso.

E: Eles também gostam...?

P: Eles querem. Eles pedem e nós...

E: Ou seja, não há aquela coisa do “queres vir dormir comigo?”

P: Não. Eles querem vir. Eles querem e nós deixamos.

E: Mas isso não é uma coisa de fim-de-semana ou todos os dias?

P: É praticamente todos os dias. E a minha filha já tem 9anos e o meu filho tem 7. E sei que

haverá um dia que eles não irão querer dormir mais connosco e claro, e ainda bem, espero que

isso aconteça. Mas enquanto quiserem eu não me importo nada. Porque também me sinto bem

assim. Se calhar teria sido diferente a nossa história, não sei. Isto foi assim, não sei dizer se

teria sido igual se não tivesse acontecido o que aconteceu.

E: Quando a M. foi diagnosticada ela dormia na vossa cama?

P: Não. Dormia sozinha.

E: Já dormia sozinha. Ou seja passou a dormir na vossa cama depois de ter sido

diagnosticada...?

P: Sim.

E: E por exemplo em relação a férias, quando vocês vão para fora, ficam todos no mesmo

quarto?

P: Fomos agora e ficámos todos no mesmo quarto com duas camas.

E: E aí eles ficam a dormir numa cama e vocês noutra?

P: Sim.

E: E em termos de consequências? Outras consequências para a vossa família? Houve

mais?

P: Mais consequências... Não sei...

E: Houve algum aspeto positivo?

P: Aspeto positivo sim. Eu acho que nós nos tornámos mais unidos, acho que isto reforçou a

minha relação com a minha mulher.

E: Digamos que todo este percurso, do maior cansaço, do sobreviver ao cansaço,

reforçou?

P: Reforçou, sim, acho que sim. Estamos mais fortes e ficámos a dar mais importância às coisas

que importam. Daquelas discussões ás vezes estupidas, não quer dizer que a gente não discute,

discutimos, mas de vez em quando paramos e olhamos um para o outro e “mas estamos a

discutir isto porquê? Isto é tao estupido, não é? Já passámos por coisas tão difíceis, vamos

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discutir por causa disto? Vamos passar à frente” e portanto eu acho que isso tornou a nossa

relação mais forte, ou seja, quer dizer... Somos um casal normalíssimo...

E: Por exemplo, vocês vão jantar fora sozinhos, vão ao cinema sozinhos ou vão fazer ferias

sozinhos?

P: Andamos sempre com os filhos por acaso, nas férias vamos sempre com os filhos, mas

vamos. Por exemplo hoje vamos jantar fora os dois sozinhos. Aproveitámos que vínhamos

aqui, deixámos os miúdos na...

E: Mas eles vão fazer falta à mesa?

P: Vão, claro que vão. Os dois quando formos para casa “telefona lá e pergunta se eles não

querem e passamos por lá...”. Não, nós vamos resistir. Mas de certeza que vamos falar sobre

isso. Estamos muito habituados a viver as coisas em conjunto os quatro.

E: Acha que a sua filha teve a pior doença do mundo? Hoje, pensando no hoje, acha que

poderia ter sido uma coisa pior? Ou acha que a leucemia é a pior doença do mundo?

P: Eu agora acho que não. Até porque ela teve uma história de sucesso portanto acho que não.

Que não é a pior doença do mundo. Porque ela sobreviveu e ela é uma criança perfeitamente

saudável, faz tudo como as outras crianças...

E: Mas teve consequências disso? Como é que descreveria a sua filha?

P: Eu acho que ela se tornou uma criança muito responsável. Acho que ela teve que crescer

mais depressa que as outras crianças. Ela foi confrontada com situações e com dificuldades que

normalmente as crianças da idade dela não são confrontadas. Não quer dizer que ela tenha

raciocinado, que tenha realizado aquilo que se estava a passar. Não é isso. Porque ela nunca

percebeu exatamente o que se estava a passar. Ela quando ia para o hospital ia ter com as

amiguinhas, que eram as enfermeiras. Não era “ia ter com as enfermeiras, porque vai para o

IPO, para tratar a tua doença”, não, não é nada disso. Ela ia para estar com as amiguinhas.

Portanto sempre tentámos dar aqui um cariz familiar, quase de jardim-de-infância. O IPO

também contribui para isso, também estão preparados, também fazem um bocadinho essa, têm

um bocadinho essa mentalidade e esse foco. Mas eu acho é que ela foi confrontada com

situações que não são normais. De ter que ser confrontada – o facto de ter que tirar sangue

tantas vezes em tao pouco tempo e encarar aquilo com tanta naturalidade e ter que se resistir e

ter que fazer alguns rituais e ter que tomar não sei quantas asparaginases, passar por aqueles

protocolos todos... É uma coisa que exige, é exigente. É para todos e para ela também. E ela

sempre reagiu bem.

E: Teve que crescer...

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P: Teve que crescer. Teve que assumir como natural e teve que... E portanto aquelas birras, ela

não podia fazer birras. Eu lembro-me que tinha que levar uma injeção e ela não podia não

querer. E portanto ela também cresceu. Tornou-se um bocadinho mais madura.

E: E considera a sua filha mais madura hoje?

P: Sim.

E: Mas é uma pessoa preocupada ou só madura?

P: Ela é madura mas super preocupada. Sempre, sempre preocupada.

E: Mas com ela, com os outros...?

P: Com ela e com os outros, penso eu. Eu acho que ela se tornou uma criança diferente. Ela se

não tivesse tido esta doença não era a criança que é hoje.

E: Mas acha que é o quê? Mais triste? Mais preocupada, mais tranquila?

P: Não, não. Nada a ver com tristeza. Ela é uma criança super alegre. Tem a ver com o

sentimento de responsabilidade. E de proteção.

E: Ah, ela também... Ela também quer proteger?

P: Também. Responsabilidade e proteção. Porque nós se calhar, como andámos sempre ao

sabor da doença e estamos sempre preocupados com aquela fase, se calhar também

transmitimos preocupação. É uma coisa que tentamos não passar mas as vezes não se consegue.

Portanto eu acho que ela é uma pessoa preocupada.

E: Mas ela preocupa-se com o quê? Preocupa-se de vos perder? Preocupa-se com o

irmão? Preocupa-se ela com a doença?

P: Sim, preocupa-se muito com o irmão, comigo, com a mãe. Eu agora fui ao festival do Alive

e quando lá estou liga-me a minha mulher e é a minha filha ao telefone “pai só estou a telefonar

para saber se estás bem, estás a gostar, se não te aconteceu nada” e eu “sim, filha está tudo

bem, não aconteceu nada.” “De certeza?”. A minha mulher agora tem que ir de metro para

Lisboa porque... E ela não queria que a minha mulher fosse de metro porque ouviu nas notícias

que houve atentados no metro. Não sei se isto é normal numa criança de 9anos. Mas ela é

assim. Ela chorou quando eu disse que ia para o Alive. Disse que ia ao concerto e comentei

“estão lá 60 mil pessoas, é uma loucura. Está lá uma multidão. Aquilo vai ser um mar de gente.

Vou-me perder lá no meio daquilo tudo.” E ela começou a chorar. “Estás a chorar porquê?”,

“Porque não quero que tu vás”. Pronto, não sei se isto é normal. Mas ela é assim. Agora, é uma

criança super feliz. E super descontraída mas é muito protetora. E muito responsável.

E: Isso também teve consequências para o M.?

P: Não, acho que não.

E: Para ele foi só mesmo vocês terem ficado mais juntos e estarem...?

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P: Sim. Mas acho que para ele não há.

E: Alguma vez pensou no porquê desta doença? Já pensou em termos de causas?

P: Não. Não. Eu aproximei-me mais de Deus naquele momento e comecei a ir à capela do IPO,

comecei a ter esse ritual. E ia todos os dias sozinho. Aproximei-me um bocadinho mais de

Deus. A certa altura uma pessoa não tem onde se agarrar e começa-se a agarrar aquilo que pode

e...

E: E isso ajudou?

P: Ajudou.

E: Tranquilizou-o?

P: Sim, tranquilizou-me. Ganhei esperança. Uma pessoa... Gostava muito daqueles 15 minutos

que estava sozinho. Rezava, falava um bocadinho com Deus e pedia-lhe o que tinha a pedir e

prometia o que tinha a prometer e fazia-me falta. A certa altura comecei a ir todos os dias.

Depois claro, a vida vai evoluindo e já não vou à igreja mas passei a ter uma admiração, passei

ter uma relação diferente com Deus. Estou mais digamos, espiritual.

E: Terá sido...?

P: Um bocadinho mais.

E: E acha que a doença se foi embora? Acha que está curada?

P: Não. Tenho medo que volte. Eu acho que isso é um medo que vou ter até ao fim da minha

vida. Tenho medo que a doença volte.

E: Mesmo após este tempo?

P: Tenho. Não costumo falar muito sobre isto. Tem a ver com o facto de eu pensar na morte

dos meus filhos. Tenho medo. Por vezes. Não é todos os dias. No vosso questionário vocês

perguntam a certa altura isso e eu respondi “por vezes”.

E: Passa pela cabeça... Mais em relação à M. do que em relação ao M.?

P: Sim. Ao M. pouco. Menos. A M... Por causa da doença...não é uma coisa que me bloqueie.

Não tenho depressões. Não fico nervoso. Acho que estou perfeitamente bem. Mas por vezes

penso na morte dos meus filhos e outras vezes penso que a doença pode retomar. Essa sensação

de preocupação vai-me perseguir ao longo da vida, não sei. Claro que já sei que já passou

aqueles cinco anos, estamos na fase em que ela é dada como curada, já vai aos duros, mas não

sei porquê...não se carrega e de repente desaparece a sensação... Se calhar vai-se desvanecer

mas está cá e de vez em quando penso. Não é muitas vezes mas...

E: Fala com alguém a cerca disso?

P: Não. Não falo com ninguém. Nem com a minha mulher.

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E: Sim... É qualquer coisa que vive... E durante o processo todo da doença, vocês falavam

muitas vezes sobre o assunto?

P: Falávamos muito durante aqueles dois anos. Falávamos muito. Falávamos quase sempre

sobre isso. Mas não tínhamos aquela preocupação de “não vamos falar, vamos ocupar a mente

com outras coisas”.

E: Mas era o quê? Trocas de ideias, aumento de conhecimento? De apoio?

P: Sim, troca de ideias. Apoio. “Olha o médico disse-me isto, vai acontecer isto”. Dávamos

força um ao outro. Falávamos muito. Eu acho que falar muito, ajuda. Ajudava. Quando

queríamos falar falávamos, quando não queríamos falar não falávamos. Não púnhamos aquela

paranoia na cabeça do “agora não podemos falar, vamos ao cinema os dois e não vamos falar

sobre a doença porque é saudável não falar”. Se fossemos ao cinema e tivéssemos e durante o

jantar tivéssemos que falar, falávamos.

E: E falavam daquilo que sentiam?

P: Sim.

E: Mas “estou cansada, estou farto”?

P: Sim. Sobretudo a minha mulher. Sim “estou exausta”. Falávamos e eu tentava animá-la

nesse sentido.

E: Sentia que ela tinha que explodir?

P: Sim, de vez em quando e ela explodia e tentávamos não explodir os dois ao mesmo tempo.

Mas sim. Isto não é um mar de rosas. Há momentos em que nos vamos abaixo. Mas nunca

valorizámos esses momentos.

E: Aceitavam-nos mais do que...?

P: Aceitávamos – “ok, acontece. Ok, tu hoje não estás bem”. Pronto e no dia a seguir era outro

dia. E nunca valorizámos. Nem repisávamos “disseste-me aquilo e não sei quê” e “não podes

dizer”. Não, pronto, dizem-se coisas.

E: E pensava nessa altura “bom isto está a acontecer porque ela está exausta ou eu estou

exausto e nós se calhar estamos muito menos bem e por isso é que nós estamos a dizer

estas coisas”?

P: Sim. Nós quando as coisas acontecem, nós não calculamos as coisas de uma forma muito

científica. Mas sim, nós estávamos a passar por uma situação muito complicada e estávamos

muito focados no objetivo. Acho que foi isso. Estávamos muito focados no objetivo. Nós

tínhamos um objetivo enquanto casal que era salvar uma criança e garantir que a outra nascia

e crescia saudável sem ser prejudicado. O M. não podia ser prejudicado pelo facto de a M. ter

tido uma doença. E este duplo objetivo que é tao exigente...

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E: Vocês artilhavam os dois objetivos, no fundo, não é?

P: Sim. Nós tínhamos este objetivo e portanto aquilo que nos acontecia, e os episódios e as

vezes as discussões, as explosões que podiam acontecer eram menos relevantes que o objetivo.

E portanto se eram menos importantes que o objetivo não deviam ser muito valorizadas. O

valorizado é “o que é que temos que fazer para continuar a...?”

E: Obviamente num processo não consciente...

P: Não consciente... Porque no fundo o que acontecia era isso. Acho que não me lembro, eu

não tenho memoria de dizer à minha mulher agora “tu disseste-me uma coisa que nunca mais

me esqueci”. Não sei. Ela deve-me ter dito imensas, não lhe sei dizer o que disse. Ela deve ter

chamado tudo naquele momento...

E: Porque ela estava cansada...

P: Não consigo, ou seja, não valorizava. Porque havia uma coisa que era mais importante que

ela. Eram os meus filhos. E portanto ela estava de mau humor. Paciência. E estarmos os dois

sintonizados nisso, termos aquele objetivo e estarmos sintonizados e termos a família que nos

apoiava, que nos aliviava as cargas, a logística, acho que isso também é muito importante.

E: Acha que isso também ajudou a que o casal sobrevivesse, não é?

P: Sim. É muito importante ter uma família que nos ajude logisticamente face àquelas tarefas

mais de rotina diária. Que nos tira trabalho e carga de cima. E isso ajuda muito. E como

tínhamos esse enquadramento positivo, as coisas são... Depois também tem a ver com o feitio

das pessoas. Nós não somos rancorosos. Somos muito diferentes...

E: Muito diferentes...?

P: Somos. Ela é muito mais emocional, eu sou mais racional. Ela diz tudo da boca para fora,

eu não. Eu fico mais reservado. Mas de qualquer forma completamo-nos um bocadinho. Há

uma coisa em que somos parecidos que é nós não somos rancorosos, nem somos de guardar

coisas cá dentro. O que temos a dizer dizemos. E resolvemos as coisas. E seguimos em frente.

E isso acho que é positivo.

E: E quais são as suas preocupações neste momento? Está-me a dizer que uma das suas

preocupações neste momento é que os seus filhos tenham alguma coisa, que lhes aconteça

alguma coisa, não é? Tem outras preocupações em relação à M.?

P: Não. São as preocupações normais. Que tenham um futuro bom. Que tenha uma educação

boa. Que seja feliz.

E: Acha que a sua filha tem capacidades ou que a doença pode ter tirado alguma

capacidade?

P: Zero. Não acho nada disso. Nada, nada, nada.

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E: Ou seja, o futuro, ela será no futuro o que ela quiser ser...?

P: O que ela quiser, desde que se empenhe e que estude. Ela é uma criança cheia de capacidades.

Boa aluna, inteligente. Portanto o futuro está nas mãos dela e será o que ela quiser fazer. A

doença, não tem, na minha perspetiva, absolutamente nada a ver com isso. Mudou-a no sentido

em que ela é uma pessoa como dizia que teve que crescer. E ela é super preocupada. É

preocupada com os colegas. E chega a casa as vezes e diz “estou preocupada com aquele meu

colega porque ele está a tirar más notas.” E eu “mas deixa lá. Não te preocupes com isso,

preocupa-te é com...”. E ela diz logo “não. É que ele não anda a estudar.” Ela é assim. Por isso

é que eu acho que isso mudou-a. Mas tem todas as capacidades e todas as condições para ser o

que ela quiser.

E: Se hoje falasse com pais que souberam agora que os filhos tinham leucemia, o que é

que lhes dizia? Àquele pai que tem hoje a sua noite?

P: Dizia-lhe para ter esperança, porque é possível realmente ter uma história de sucesso, ter

uma história de sobrevivência. Dizia-lhe que está no melhor sítio do mundo, no IPO, com todas

as condições humanas... Não sei se em termos de material são os melhores do mundo, mas pelo

menos em termos de condições humana e equipas que lá estão, são as melhores do mundo. E

portanto estão reunidas as condições para que o filho sobreviva. E é possível. E existe uma

percentagem forte e tem que se agarrar a isso, ao lado positivo. E ao otimismo e nunca perder

a esperança. Não deixar nunca de lutar e explicar-lhe que vai ser um caminho difícil, longo,

com agruras, com obstáculos, e tem que encarar os obstáculos com naturalidade. Sempre

focado no objetivo que é a sobrevivência do filho. Portanto há um caminho difícil, mas há

condições, há pessoas, há técnicos, há médicos fantásticos. É agarrar-se ao que eles dizem e

tem que fazer exatamente o que eles dizem e seguir em frente otimista e é possível.

E: E dizia que a sobrevivência era uma situação sem preocupações “não te preocupes que

quando chegares lá, na altura da sobrevivência, vais ter menos preocupação”?

P: Não. Isso não. Isso dizia-lhe que “a partir de hoje vais ser uma pessoa diferente. Ninguém

passa por isto e não fica marcada para o resto da vida. Não é possível, pelo menos acho eu.

Nem que seja uma coisa inconsciente mas alguma coisa vai mudar em ti. Não quer dizer que

seja para pior, forçosamente. Vais ser uma pessoa diferente. É uma experiencia limite. Mas não

tem problema nenhum seres uma pessoa diferente. Tu tens é que te focar no objetivo. E se

atingires o objetivo sabes o que dá. E a partir daí vais ter que lidar com a diferença.”

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CASAL 09 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – P.

E: (...) O P. foi diagnosticado há quantos anos?

M: Foi diagnosticado tinha 3anos, portanto foi há 7. Ele vai fazer 10 agora em Setembro. Foi

com 7anos, em 2009.

E: E como é que foi? Foi assim de um momento para o outro?

M: É assim, eu como não sou absolutamente ignorante, achei que havia qualquer coisa que não

estava bem com ele, porque ele subia as escadas e dizia que estava cansado. Mas depois

chegava a casa e começava a correr. Não era normal. E achei que ele estava um bocado pálido.

Tinha uma constipação que ia e voltava, tinha um nodulo no pescoço que não desapareceu e

depois ainda apareceu outro e entretanto apareceu outro e eu levei-o a uma consulta. Mas ele

não se queixava de nada, podia continuar a brincar normalmente. Mas levei-o a uma consulta

com a pediatra dele e por sorte (e eu digo sorte por causa das coisas que vi já dentro do IPO)

ela tinha feito um estágio de alguns meses no IPO e ficou alarmada com aquilo que viu e eu

percebi logo naquele dia que a coisa não ia correr bem e no dia seguinte ela, por sorte, estava

a fazer consulta nas urgências do Amadora-Sintra e disse-nos para levarmos lá o miúdo no dia

seguinte para fazer exames porque havia ali qualquer coisa de facto que não estava bem. E foi

diagnosticado no dia seguinte. Eu sai do trabalho no dia 20 à tarde e foi “adeus e até amanhã”

mas só voltei um ano depois.

E: Ou seja, quando entrou a pedir consulta para o seu filho tinha já uma ideia de que

alguma coisa...

M: De que alguma coisa não estaria bem porque aquilo não era normal.

E: Não o diagnosticou?

M: Não. Isto foi assim, em outubro, eu tenho fotografias dele a correr km na praia em Agosto,

perfeitamente saudável, como se nada fosse e depois no inicio de Outubro começou a ficar com

a tal constipação que vai e depois volta. O meu marido fazia anos a 10 de Outubro e naquele

dia eu tinha bilhetes comprados para o concerto da Diana Krall que lhe tinha oferecido e nesse

dia o P. tinha febre. Ainda fomos ao médico com ele para ver se alguém diagnosticava mais

qualquer coisa, se havia mais qualquer coisa que nós não tivéssemos visto, porque de facto

aquela febre andava ali para trás e para a frente. Nesse dia a urgência foi assim uma coisa

rápida, não foi nada diagnosticado. Mas isto foi no dia 10 de Outubro e no dia 21 ele foi

diagnosticado, já tínhamos a verdade dos factos.

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E: Lembra-se do que é que sentiu? O que é que pensou nessa altura? Como é que foi dito

o diagnóstico? Lembra-se desse momento?

M: É assim, como a médica dele já tinha percebido que eu não era tapadinha de todo e percebia

que havia ali qualquer coisa, a coisa foi-me dito assim de uma maneira um bocadinho nua e

crua, no meio do corredor. Ela estava a atender outra criança, vem cá fora e diz-me “eu tenho

que internar o seu filho já. Tudo indica que ele tem leucemia”. Assim de chofre no meio do

corredor. Não é nada que eu não tivesse pensado já esta noite, que eu passei a noite sem dormir

como pode imaginar e eu já tinha imaginado que ele ou tem leucemia ou tem um linfoma. Era

aquilo que já estava feito dentro da minha cabeça. Enfim. Não foi surpresa. Mas claro... É assim

um bocadinho... Um murro no estomago. Depois chamei o meu marido, porque só pode entrar

um dos pais, para fazer exames e aquela coisa e ele estava dentro do carro. Eu chamei-o e

depois tivemos os dois a falar com ela. Lá nos explicou. E nesse dia já não saímos do Amadora-

Sintra. Ficámos lá. Passámos lá o resto do dia, ficámos lá a dormir há noite e ele na manha

seguinte foi metido numa ambulância para o IPO.

E: E lembra-se de pensamentos? Lembra-se do que é que pensou? Lembra-se do que é

que necessitou? Lembra-se de alguma coisa nessa altura?

M: Não me lembro... quer dizer, a pessoa fica tão perturbada que acho que pensa em tudo e

não pensa em nada ao mesmo tempo. Acho que é cai tudo “e agora?”. Como lhe digo, a pessoa

perde tudo naquele dia. No trabalho disse “até amanha” mas voltei um ano depois. Deixei de

trabalhar durante um ano; a minha rotina passou a ser casa-IPO, IPO-casa, porque ainda por

cima apanhámos ali o Inverno que nem sequer podia andar com ele em lado nenhum, porque

há sempre o risco das gripes e destas coisas portanto a minha vida social reduziu-se ao senhor

do talho e há senhora da caixa do pingo doce. Que eram as minhas saídas. A avó ficava com

ele um bocadinho e eu saia. E eram os médicos e os enfermeiros do IPO. Portanto aquilo ali,

em pouco tempo, a nossa vida cai completamente aos trambolhões. É uma queda brutal. E eu

acho que durante aqueles primeiros dias passa-nos tudo pela cabeça “ele vai morrer, ou não

vai?”, “eu, vou aguentar isto ou não?”, “será que o meu casamento vai aguentar isto ou não?”.

Uma pessoa acaba por pensar em tudo. Mas depois no dia-a-dia vamos vendo e vamos lendo e

eu acho que as vezes nestas coisas a ignorância também é uma bênção, mas eu não consigo

viver na ignorância...

E: Procurava informação?

M: E a pessoa vai procurando informação e vai lendo e percebe que isto afinal não é assim tão

negro, há aqui uma luz ao fundo do túnel. Há aqui esperança. Isto pode não correr mal. E por

isso é que quando as pessoas chegavam ao pé de mim “ah vai correr bem” eu só pensava “vai

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correr bem. Vai, vai. Há-de correr bem, então para quem não está doente, corre lindamente”

não é? Eu se tivesse a trabalhar, em casa, tão feliz que eu era.

E: Esteve internada nessa altura durante muito tempo com ele?

M: Eu tive, sim. Tivemos quase um mês.

E: Ou seja, foi um processo muito complicado. Consegue-se lembrar o que ajudou à

adaptação nessa altura? O que é que houve de positivo que a tivesse ajudado?

M: Eu ganhei muita admiração por algumas mulheres que lá estavam, porque essas sim, viviam

aquilo sozinhas. O IPO abrange toda a zona sul do país e no meio de tudo eu tentava ver naquilo

em que eu tinha sorte, porque eu nunca estive sozinha. Nos primeiros dias, o meu marido

conseguia, (porque a nossa segurança social extraordinária) consegue dar uns dias aos pais para

estarem lá e ele esteve sempre comigo. Depois quando teve que ir trabalhar eu tinha uma avó

e uma mãe que foram incansáveis e eu as 9h da manha tinha lá uma avó para eu puder sair do

quarto e ir tomar banho e puder tomar o pequeno-almoço e à tarde uma avó ia-se embora e eu

tinha lá outra para à tarde eu puder sair e ir beber um café e ao fim do dia, eu tinha o pai que

trabalhava lá ao lado (nessa altura trabalhava lá perto) e que dava o jantar ao nosso filho

enquanto eu ia jantar. E depois eu passava o resto da noite fechada no quarto, naqueles quartos

de isolamento. Eu entrava lá para aí às 20h30 e só voltava a sair de lá as 9h. Mas durante o dia

eu tive sempre apoio. Nunca estive sozinha. Agora aquelas mulheres que vão para ali sozinhas,

a semana inteira, com uma criança pequena, ninguém faz ideia o que é aquilo. O que é estar ali

fechada. Porque um adolescente fica sozinho a ver televisão, na boa. Agora uma criança

pequenina não se pode deixar. O meu filho tinha 3anos. Não o podia deixar sozinho, ele atirava-

se da cama abaixo. Eu para ir à casa de banho já saia “ficas a ver os bonecos, não sais daí, não

te mexes, a mãe vai num instante à casa de banho”. Ele ficava e quando eu voltava... onde eu

o tinha deixado, ele estava. Porque ele foi uma criança fantástica. Fabuloso nestas coisas. Nós

fizemos uma coisa que eu nunca vi ninguém fazer lá dentro. O meu filho não passava 1h que

fosse dentro do quarto, naqueles dias em que não estava em isolamento. Naqueles dias em que

eles ainda podem estar cá fora, os primeiros 8 ou 9 dias. Ele não passava...assim que acordava

ele queria ir brincar para a sala dos brinquedos, para aquela sala que há ao fundo. E eu sempre

o incentivei. Nunca lhe vesti o pijama “não, aqui não há pijamas. Sai da cama vai brincar, não

há pijama. Na rua, na escola, não anda de pijama, aqui também não anda de pijama”. Eu fazia-

me imensa confusão aqueles miúdos que andavam de pijama de dia e de noite. Portanto ele

vestia uma camisolita normal, dava-lhe aqueles banhos estranhos, que é possível, calçava os

ténis, calçava umas calcitas confortáveis e passava o dia inteiro naquela sala, a brincar. E não

saía de lá. Eu perguntei uma vez às senhoras, estava lá uma mesa, e eu perguntei “não se pode

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almoçar aqui?”, a resposta “podem e devem. Ninguém quer, ninguém usa”, mas nós vamos

usar. Ele almoçava e jantava ali. Não era dentro do quarto. Porque aquilo era para a depressão,

quer dizer...

E: Tentou que ele tivesse uma vida o mais normal possível...

M: O mais normal possível, sim. E era isso que ele queria. No fim daqueles 9 dias, quando me

disseram “as análises do P. estão mesmo no estado limite, tem mesmo que ir para o

isolamento”. E eu disse-lhe “olha já não vamos puder estar mais aqui. Vamos ter que ir para

dentro do quarto, vamos levar uns brinquedos, temos a televisão só para nós, mas não pudemos

sair mais. Vamos ter que ficar lá”. E ele olhava para mim e fomos andando. Não pediu, durante

os 16 dias, uma única vez para sair de lá de dentro. Nós até jogámos à bola lá dentro. Os

enfermeiros não deram por nada, mas nós até à bola jogámos. Chegámos a cama para o lado e

jogámos à bola lá dentro. Nós fazíamos tudo o que podíamos lá dentro. E ele adaptou-se

lindamente. Ele é muito bem-disposto, sempre foi. Não fazia birras para nada. Como digo, ele

teve 16 dias lá dentro e não pediu uma única vez para sair. No dia em que nós abrimos a porta

“P. vamos para casa, já podemos sair”, a única coisa que ele disse foi “mãe, posso ir para a sala

das brincadeiras?”. E lá foi ele. Completamente transformado, porque ele entrou de uma

maneira e saiu de outra, todo inchado e mal podia andar porque estava com as articulações ---

por causa dos tratamentos. Livrou-se da maquineta, de estar ligado, já estava liberto, já tinha

um cateter normal, já não precisava de estar ligado a nada e teve ali horas e os enfermeiros

“mas você não quer ir para casa?”, eu disse “eu não. Então o miúdo não quer, deixá-lo estar.

Ele veio para aqui é porque está bem. A primeira coisa que ele pediu não foi para ir para casa,

foi para vir para aqui. Acha que eu o vou contrariar...? Deixe estar, eu tenho tempo para ir para

casa.”

E: Portanto teve ele também a ajudar muito. Houve mais alguma coisa que ajudou? A

relação entre o casal ajudou?

M: Sim.

E: Foi muito magoada nessa altura?

M: Não.

E: Nessa altura sentiram o quê? Complementaridade...?

M: É assim, esta história de “ah os filhos unem o casal”... Mentira! É uma mentira de todo o

tamanho. Porque as pessoas dão-se muito bem, têm o seu espaço, está tudo muito bem. Uma

criança? É uma carga de trabalhos. Não é só alegria. É como isto do “vai correr bem”, não vai

só correr bem, uma criança são muitas horas de sono a menos e muito trabalho e muito desgaste

físico. O trabalho, o cansaço e o desgaste afastam as pessoas. E se as pessoas deixarem...por

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isso é que há divórcios. Mas eu acho também que há tantos divórcios, eu acho que não é só a

situação em si. Há aquela história da gota de água que faz transbordar o copo. Aqui é

exatamente o contrário. Isto já é um copo cheio. Se nós formos pôr um copo cheio onde já tem

duas gotas lá dentro então vai por fora. Se já há gotas, deitar um copo cheio por cima então ele

entorna. E acho que é isso o problema. Quando as coisas não estão bem então é certinho. Não

deve haver grandes milagres. A sorte é que de facto fomos apanhados num momento bom.

Estava tudo bem. Portanto não afetou. Senti-me sempre acompanhada, ele esteve lá sempre,

naqueles primeiros dias que devia estar. Depois deixou de puder estar porque teve que ir

trabalhar (alguém tinha que trabalhar naquela casa) e porque nós deixamos de puder trabalhar

e começamos a ganhar metade, mas há contas para pagar na mesma. Mas teve sempre. E ao

fim da tarde saía do trabalho, com certeza cansado, mas era para lá que ele ia para estar

connosco um bocadinho. O bocado que era possível. Esticava sempre até ao limite da hora que

era possível ficar e depois é que ia para casa jantar e enfim...fazia tudo fora de horas, só para

estar ao fim do dia connosco aquele bocadinho.

E: Houve aí uma complementaridade vossa... Vocês falavam muito sobre o assunto na

altura?

M: Não. Nem nunca falámos assim muito sobre o que é que vamos fazer e o que é que não

vamos e como é que vai ser daqui para a frente... Não.

E: Falavam naquilo que havia a fazer no dia-a-dia...?

M: No dia-a-dia. Porque eu acho que também não faz muito sentido a pessoa começar a pensar

“então e se isto correr mal?”; “então e se ele morrer o que é que nós vamos fazer?”. As pessoas

também não pensam “olha e se a casa pegar fogo?”. As pessoas não pensam nas desgraças.

Quando ele era saudável também nunca pensámos “e se o nosso filho adoecer, como é que vai

ser?”. Também nunca falámos sobre isso portanto eu acho que não faz sequer muito sentido

andar a pensar “e se isto agora não acaba? E se isto se prolonga por mais tempo?”. Não. É uma

situação tão complicada que tem que ser gerida todos os dias. Há medida que as complicações

vão aparecendo temos que ir apanhando as estaladas e ir levantando.

E: Já alguma vez choraram juntos?

M: Eu acho que não.

E: E alguma vez um chorou e o outro acalmou...? Faziam isto ou também não?

M: Não.

E: Tentavam não mostrar muito a parte mais emocional...?

M: Foi mais por aí. Não sei. É por causa do nosso feitio também. E nunca fui muito de andar a

chorar ao pé de ninguém nem de falar de muita coisa...

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E: Então o feitio também ajudou?

M: O meu feitio é assim e o dele também não é muito diferente. Portanto...eu acredito que ele

quando ia para casa se calhar chorava à noite quando estava sozinho. Digo eu. Porque também

nunca lhe perguntei.

E: E isso foi durante o internamento ou depois do tratamento?

M: Nós sofremos que nem condenados...

E: Conte-me um bocadinho dessa parte, do sofrimento... Quando diz “sofremos” está-se

a referir a quê?

M: A tudo. Porque é a incerteza, basicamente. Mas ir todos os dias, quer dizer, não é todos os

dias, mas com a frequência com que nós vamos, àquele hospital, ainda hoje, onde só vemos

miséria...nós só vemos misérias à nossa volta. Temos que olhar para crianças que sabemos que

estão a morrer. E sabemos porque já estão nos paliativos, já sabemos o que está ali a nossa

frente. E aquilo não é só o que nós sofremos com o nosso filho, com a nossa situação. É aquilo

tudo que está a nossa frente. Não é fácil. E ir para casa e não pensar naquilo e não ter pesadelos

com aquelas histórias. Porque são histórias terríveis. Há ali histórias absolutamente

avassaladoras de crianças que parece que a tragédia não acaba. Crianças que já perderam uma

mãe ou que já perderam o pai e agora estão a viver... Havia uma senhora, eu recordo-me, do

Algarve, que a filha tinha morrido 2 anos antes naquele hospital, de cancro. E agora estava com

a neta, filha dessa filha que morreu. Como é que aquela velhota aguentava aquilo? Aquilo já

era uma família desfeita. O pai entretanto...aquilo já andava cada um para cada lado. Aquilo há

ali de tudo e no fundo, eu não gosto muito deste espirito português do “podia ser pior” ou “para

pior antes assim”. Acho isto uma estupidez. Mas no fundo se nos quisermos inspirar em alguma

coisa, podemo-nos inspirar nestas pessoas, que têm histórias piores do que a nossa. Que eu não

gosto disto, acho que temos que olhar para a frente, temos que olhar para aquilo que é bom,

não temos que nos comparar com os maus. Não é porque há pessoas a morrer de fome que eu

esta noite não vou jantar. Não faz sentido.

E: Mas relativiza alguma coisa não é?

M: Relativiza. Exatamente. Que é uma coisa que se aprende muito, muito com estas situações.

Quem passa por isto aprende a relativizar. Ainda hoje estavam umas colegas minhas a falar das

crianças “coitadinhas, como é que elas...no outro dia teve que levar um vacina e chorou

muito...” e eu estava a olhar para aquilo e quer dizer, eu vi o meu fazer 16 punções lombares,

aos gritos, com quatro pessoas a agarrá-lo. E aquela malta estava ali preocupada com uma

vacina. Acabei por aprender a relativizar as coisas e a dar importância que as coisas têm

efetivamente. Não faço um bicho-de-sete-cabeças se tiver que levar uma criança a fazer uma

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vacina e a criança chora. Obviamente que fica triste e está no seu direito, mas não vale a pena.

Há coisas que eu não ligo nenhuma.

E: Entretanto ele saiu, deixou o IPO, começou o tratamento... Consegue contar um

bocadinho a vossa história em termos de casal? Como é que correram estes 7 anos? Foi

sempre da mesma maneira, houve momentos piores, momentos melhores...?

M: Isto como uma desgraça nunca vem só, quando os tratamentos do P. estavam a caminhar

para o fim, o meu marido ficou desempregado três anos e meio. E aturar um homem

desempregado...as mulheres arranjam com que se entreter, os homens é um bocadinho mais

complicado. Ele foi fazendo uns biscates, umas coisinhas que iam aparecendo, mas não é fácil

lidar com um homem desempregado. Eu tive que fechar os olhos a muita coisa. É preciso muita

calma e tranquilidade para...que é coisa que eu às vezes não tenho. Mas é preciso. E foi mais

uma coisa a somar. E por isso é que eu fui fazer o tal curso, porque “eu tenho que parar de

pensar nesta treta desta vida que nós temos. Que isto já não é normal.” Uma coisa é uma pessoa

ter azar num ano ou dois, mas agora cinco anos e meio, seis anos... “isto não pode ser, vou

andar para aqui coitadinha e vidinha desgraçadinha” e fui fazer qualquer coisa por mim e aquele

sábado de manha, em que tinha aquelas aulinhas... Aquele curso não me serviu para nada.

Serviu-me para gastar dinheiro, mas também aprendi muita coisa e gostei muito de fazer aquele

trabalho final. Mas conheci outras pessoas e era um sábado de manhã somado à carga toda que

eu já tinha nas costas, todo o trabalho, porque uma mulher em casa é sempre uma mulher em

casa. Mas aquelas 4h de manha, aquilo sabia-me pela vida, porque eram 4h que eu fechava,

bloqueava “agora sou eu, não quero saber, sábado as 8h da manha vou sair. Está aqui a

roupinha, façam o que quiserem, eu as 14h da tarde estou de volta” e foi assim durante um ano

e soube-me tão bem.

E: Foi uma estratégia de alívio...

M: Exatamente. Era um escape...

E: Diz-me então que houve aqui uns altos e baixos no vosso relacionamento, depois disto...

M: Eu não sei se houve altos e baixos, mas foi preciso adaptação. Foi preciso gestão, porque

mesmo sem problema nenhum, com a vida a correr como um mar de rosas e algum fica

desempregado em casa já é o que é, é um peso. É sempre um peso. E se nós somarmos ao resto

temos que nos adaptar. Não posso dizer que correu mal, ainda estamos aqui, portanto... E

estamos aqui sem mágoas...

E: E acha que estão aqui porquê? Porque é que acha que não correu mal? O que é que

acha que vocês fizeram para que não corresse mal?

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M: Sei lá. Eu acho que foi o nosso feitio. A capacidade de adaptação que nós temos. De ir

gerindo as coisas e, apesar de ser pequena tenho as costas largas, e ele também e a coisa vai e

vamo-nos aturando e vamos percebendo o porquê e porque se há um dia em que há uma

resposta mais torta é fruto da situação, do calor do momento, do cansaço, do stress, mas depois

passa...

E: Nessa altura pensavam “nós já vivemos tanto, porque é que vou dar importância a

esta pequena discussão”? Aconteceu isso convosco?

M: É um bocado por aí. É.

E: Comparado com tudo aquilo que já vivemos isto...

M: Isto não é nada. Não vale a pena. E eu estou a trabalhar portanto vamos equilibrando. Não

podemos ter os ganhos que tínhamos, pois não. Mas vamos vivendo com aquilo que temos. E

é uma questão de adaptação. Eu acho que as vezes é isso, é as pessoas não conseguirem adaptar-

se, é aquilo que faz as pessoas separarem-se. Mas em qualquer situação, não é só por isto. Acho

que as vezes é falta de capacidade de adaptação. A pessoa tem que decidir se quer ou não quer.

Quer ficar com esta pessoa ou não quer. Acha que vale a pena continuar a investir ou não vale.

Então se quer investir tem que se adaptar. Porque nem tudo é um mar de rosas e as coisas vão

acontecendo. Nós já sabemos que vão acontecendo coisas, a vida não é uma linha reta e ainda

bem que não é, e vai andando e às vezes temos que subir a montanha, outras vezes temos

trambolhões, cair de cabeça e subir outra vez. E se as pessoas forem lutando e forem tentando

e procurando alguma coisa de positivo, conseguem. Conseguem superar. Mas é preciso é

querer.

E: Quando ouviram o fim, quando ouviram “remissão total”, ou seja quando acabou o

tratamento, sentiu que tinha acabado o seu problema? Que o problema ia continuar? Ou

seja, se nós pensarmos no dia de hoje, vive isto de uma forma completamente tranquila?

Como é que vive a doença do seu filho hoje?

M: Eu não sei se haverá um dia que passe e eu não pense, porque as vezes basta olhar para ele.

Ele a fazer das dele, porque ele é um miúdo super bem-disposto e diz as coisas mais loucas e é

eu pensar “eu podia ter perdido tudo isto. Quanto tempo mais é que eu tenho para aproveitar

isto tudo?”. E às vezes penso nisto. E então penso “então é melhor aproveitares” e brinco muito

com ele e ele tem um sentido de humor muito retorcido (dizem que é parecido com o meu,

provavelmente) e brinco e dizemos muitos disparates juntos e tento aproveitar o mais possível

com ele. Porque efetivamente eu não sei o dia de amanha. Portanto vamos vivendo um dia de

cada vez. Se vivo atormentada? Não! Se eu deixo de viver ou deixo de o deixar viver, que é

outra coisa importantíssima (e eu não sei como é com as outras pessoas, porque se calhar a

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tendência é para apertar e eu não faço isso). Ele agora esta de ferias com os avós no Algarve,

deixei-o ir. Eu não sou aquela mãe galinha. Preocupo-me todos os dias, todos os dias lhe ligo,

mais do que uma vez por dia, mas deixo-o ir. Portanto eu não me deixo atormentar. Eu acho

que é muito fácil uma pessoa deixar-se atormentar e deixar-se levar na onda e deixar de viver

e deixar, principalmente, não deixar os miúdos viver. Eu sei que tenho que o deixar viver.

Porque ele merece e porque nem eu nem ele, ele então não te mesmo consciência, que a vida

dele pode não durar muito. Pode durar até aos 20 anos, até aos 50, até aos 100... Não sei. É

uma incógnita. Tal como nós. Porque ninguém sabe o dia de amanha. Mas no caso dele é uma

coisa muito mais... as probabilidades são maiores, é uma questão de probabilidades. E a

probabilidade de ele voltar a adoecer é maior. Sei que o meu filho tem uma probabilidade de

voltar a ter um cancro 7 vezes maior que outra criança qualquer. Portanto é deixar ver. É ir

vivendo com aquilo que temos.

E: Ele tem uma vida completamente normal? Vai à escola...? É um miúdo autónomo?

M: Completamente. Ele teve problemas de adaptação na escola, teve dificuldades, porque a

autoestima dele ficou no chão completamente.

E: Acha que ele se alterou com a doença?

M: Houve coisas que sim. Ele tinha uma autoestima mais...e depois retraiu muito. E depois

teve azar porque ele entrou, foi ali entre os 3 e os 5 anos. A pré-primária foi-se, parte do

infantário, não pode frequentar. A pré primária também foi muito aos trambolhões. Teve um

ano fechado em casa, portanto aquilo houve ali...aquela adaptação que todos os miúdos têm,

aqueles primeiros tempos, ele não teve. Entrou na escola primária e apanhou uma professora

que ninguém merece e que não soube puxar por ele, nem nos soube transmitir que as coisas

não estavam bem e nós quando percebemos já era tarde. E ele chumbou no segundo ano. Porque

nós dissemos mesmo na escola “não, nós não queremos que ele passe e vai mudar de

professora”. E pusemo-lo no “Diferenças”. Temos uma psicóloga que o acompanha, agora vai

passar a ir só duas vezes por mês, que o ajuda, porque ele tem défice de atenção e portanto

aquilo qualquer mosca que passe, la vai ele e posso-lhe dizer que ele passou agora para o 4º

ano. No 1º segundo ano que ele fez, ele só dizia “eu não sei, eu não sou capaz” e chorava.

Posso-lhe dizer que ele agora teve “Bom” a tudo. E passou para o 4º ano. O 2º ano correu muito

melhor. Ele no primeiro dia de aulas em que ele não viu aquela professora ele chegou a casa

com um brilho nos olhos. Eu “então o professor é fixe?” e ele “é, o professor é fixe” e de facto

aquele professor é muito fixe, puxava imenso por ele e só tenho a agradecer àquele homem o

que ele tem feito.

E: Acha então que a doença o alterou?

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M: Sim, alterou.

E: Em mais alguma coisa? Em termos físicos? Em termos psicológicos? Em termos

cognitivos?

M: Não. Em termos físicos não, nada. Quer dizer, durante a doença houve aquelas alterações

por causa dos tratamentos, o normal, mas depois não. Voltou a ser aquilo que era. Ele é uma

elegância. É um bonitão. É um giraço. É baixinho porque sai a nós e depois é um boneco que

me diz “vou viver para Itália, arranjo lá uma casinha e um emprego e vou viver para Itália”.

“Mas porquê?” e ele “porque é lá que estão as miúdas mais giras”. É assim deste género. Com

9 anos é assim e eu só tenho duas palavras “estou feita!”.

E: E se ele for para Itália acha que vai ficar muito preocupada?

M: Se ele um dia for? É assim, para Itália ou para outro sitio qualquer, onde haja miúdas giras,

não. É assim, ele vai fazendo da vida dele aquilo que ele quiser e isto também me ajudou a ver

que os nossos filhos não são, como diz o outro psicólogo conhecido “não são trofeus”, eles não

têm que ser os melhores. Não temos que os exibir como trofeus, eles têm que ser felizes e se

ele for feliz em Itália terá que ser em Itália, ou noutro sítio qualquer, obviamente eu tenho que

o deixar ir. Fico preocupada, claro que fico.

E: Ele tem a vida dele normal em casa? Dorme convosco? Dorme no vosso quarto?

M: Não, não, não. Dorme no quarto dele.

E: Desde sempre?

M: Ele foi, desde que nasceu, muito complicado para dormir. Muito, muito. E eu só o levei

para o nosso quarto naquela altura por causa da doença, em que de facto, ele estava a fazer o

tratamento, já a parte mais intensiva, e via que ele acordava muitas vezes durante a noite e

aquilo já era intragável as vezes que eu tinha que acordar, quanto mais ainda ter que andar a

caminhar para um quarto e para o outro a noite inteira. E eu trabalhava no dia seguinte. Ia

morrendo nesse ano, de exaustão. E portanto decidi que nesse período eu levei a cama dele

para o nosso quarto. Porque há mínima coisa que ele acordava, ele estava ali e eu sossegava...

E: Mas nunca dormiu na vossa cama?

M: Não. Isso não. Nunca fiz isso. Mesmo quando era muito pequenino, ele podia acordar meia

dúzia de vezes durante a noite e acordava porque ele sempre foi complicado para dormir. Ele

dormia duas horas e acordava. E depois com a questão da quimioterapia ficava completamente

transtornado. Ele acordava à meia-noite porque tinha fome, aquilo dava-lhe uma fome, uma

coisa tresloucada e depois à 1h da manha acordava porque tinha que fazer xixi. Estamos a falar

de uma criança com 3, 4, 5anos. Depois acordava às 4h da manha, para comer sopa, à mesa da

cozinha e eu ali a morrer ao lado dele. Depois acordava às 5h porque tinha que fazer xixi outra

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vez e pronto, passávamos umas noites assim, animadíssimas. E houve ali um período em que

de facto eu o levei para o nosso quarto porque eu não aguentava. E depois é aquela preocupação

constante...

E: Se ainda hoje ele tem febre ou se lhe diz que está cansado porque não consegue subir

umas escadas...fica preocupada?

M: Nem me diga isso. Vou-lhe logo apalpar o pescoço. É impossível não ficar.

E: Se ele tem más notas ou se ele tem um comportamento mais complicado, não fica

preocupada?

M: Não. Nada. Porque isso é normal.

E: Só se houver sintomatologia física...

M: Sim, preocupo-me, até porque esses sintomas que são bastante típicos de 300 coisas e

inclusive a leucemia, febres, nodoas negras... Eu de vez em quando olho para as pernas, vou

ajudá-lo a vestir-se e olho, não resisto e olho para as pernas dele para ver se ele tem nodoas

negras. Mas acho que é uma coisa assim quase instintiva, é daquelas coisas que eu faço e depois

dou por mim e digo “mas que parvoíce. Porque é que eu estou a olhar? Tem nodoas negras?

Claro que tem, ele joga à bola que nem um louco.”

E: Mas acha que isso alterou a sua maneira de o educar?

M: Não.

E: Não alterou ou tenta não alterar?

M: É assim, venha lá a mãe mais racional do mundo dizer que não muda em relação a estas

coisas. É impossível. E eu sei que cometi erros com ele. Não sei quais, não consigo identificar,

mas de certeza absoluta que os cometi.

E: Acha que foi mais tolerante?

M: Porque é impossível não ser. É impossível não dar mais mimos. É impossível. Como

qualquer pessoa quando a criança tem uma simples gripe. Anda logo com a criancinha ao colo

e com coisinhas. Então eu com o meu filho que teve um cancro não haveria...

E: Mas agora ainda acha que faz isso?

M: Não. Mas atenção, eu nunca fui muito condescendente com ele. Mesmo na fase mais

complicada, dos tratamentos, eu nunca fui muito condescendente. Mas pronto, há coisas que

nós vamos, que de certeza, se calhar não se fazem com uma criança normal. E hoje em dia não

tenho qualquer tipo de dúvida, não. Escola? Escola é para levar a serio. É para brincar, é para

brincar. É para sentar à mesa, é para sentar à mesa. Não há condescendências, não há “ah

coitadinho”. Não!

E: Se ele disser hoje “oh mãe não sei se as raparigas vão gostar de mim, eu sou doente...”

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M: Eu olho para ele e digo “mas és doente onde?”

E: E se ele disser “estou muito cansado, isto deve ter sido da minha doença que eu fiquei

muito cansado”?

M: É assim, ele não tem... Ele já me fez algumas perguntas. Ele tem 9, quase 10anos e nunca

me fez muitas perguntas...

E: Vai começar a fazer...

M: Há uns tempos atras perguntou assim “oh mãe, o IPO não é um hospital onde vão as pessoas

que têm cancro?” e eu “nem todos, mas sim”. Eu fiquei á espera da pergunta seguinte, mas não

veio...

E: Mas vai vir. Se calhar é importante perceber que não há um cancro mas que há muitos

cancros. Muito diferentes. Porque a noção que nós temos... (...)

M: Pois...porque ele vai perguntar porque é que nós continuamos a ir ali. Eu tenciono contar-

lhe a verdade até porque ele precisa mesmo de saber, porque lá está tendo uma probabilidade

maior de voltar a ter a doença, ele tem que ter, mais que os outros, hábitos de vida saudáveis.

E portanto, se calhar, aproveitando as perguntas, também incutir esta questão do não beber,

não fumar, praticar exercício, ter uma vida saudável.

E: Sim, mas nós também sabemos que ele tem 7vezes mais probabilidade de ter a doença,

mas temos cada vez mais miúdos que não têm mesmo a doença, ou seja, essas 7vezes, a

estatística, o que nos mostra é que...

M: Sim, sim. É 7vezes mas se compararmos com o zero. E mesmo assim a probabilidade de

uma criança ter um cancro é muito pequenina. Portanto isto do 7vezes não torna a coisa num

monstro.

E: Não, não... Continua a ser pequena e quanto mais tempo passar melhor...

M: Sabe que eu tenho um colega do trabalho (daquelas coincidências tristes) que teve um filho,

com o mesmo nome do meu, que adoeceu aos 4anos e que morreu aos 21 de leucemia. Ainda

fez o segundo ano de medicina veterinária, que era o sonho dele.

E: Mas foi recidiva da doença ou foi uma outra leucemia?

M: Também não entrei em pormenores, não tive coragem, por mim e por ele, para perguntar.

E: Mas não é assim tao frequente...

M: Cada vez que olho para aquele homem... já é um homem com 60 e poucos anos e eu dou-

me muito bem com ele. Meto-me muitas vezes com ele, porque nós ali no edifício poucas vezes

falámos. Falámos foi...quando o meu P. estava a fazer ainda a quimioterapia e o dele já estava

em fase terminal. E cruzámo-nos lá, e depois eu só soube um tempo depois porque houve

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colegas meus que saíram, numa tarde saíram e eu “então onde é que foram?”, “fomos ao funeral

do filho do Figueiredo”...

E: Mas olhe que um dos critérios na nossa amostra é que os pais não tinham tido cancro

pediátrico, o que quer dizer que há muitos pais cujos filhos tiveram cancro pediátrico.

M: O meu marido teve tiroide, tirou a tiroide aos 10 anos.

E: Pronto, está a ver? São coisas que podem acontecer. E hoje como é que o casal vive?

M:Vivemos bem. Estamos finalmente a cumprir planos que adiámos durante uma carrada de

anos. Por exemplo, uma casa que nós compramos quando o P. tinha dois anos. (...) comprámos

uma casa para nós e pensámos em remodelar e mudarmo-nos para lá, mas entretanto faleceu o

meu sogro. Menos de nove meses depois foi o P. que adoeceu e quando o P. estava já a melhorar

foi o desemprego. E portanto andamos há 7anos a adiar. Dia 20 de julho vamos começar a

partir aquilo tudo.

E: Como casal, acha que não houve nenhumas consequências do cancro do P.? De hoje,

da vivência de hoje?

M: Damo-nos bem e damo-nos mal como nos dávamos antes.

E: Estava-me a dizer à bocadinho, não falam do assunto... É um assunto que não vem a

não ser quando é preciso ir à consulta...?

M: Sim, sim.

E: Vão os dois à consulta?

M: Normalmente vai ele de manha com o miúdo fazer as analises, depois para não estarmos a

faltar os dois, um dia inteiro ao trabalho, depois trocamos. No turno da hora de almoço, eu vou

para lá e ele vai trabalhar e eu fico com o miúdo depois para a consulta.

E: Trouxe consequências para si, a doença? Teve consequências pessoais? Mudou?

M: Sim. Acho que é impossível ficar exatamente na mesma. A questão do aprender a relativizar

as coisas, se calhar eu até lhe digo uma coisa, se calhar se o meu filho não tivesse tido a doença,

eu encarava a situação do desemprego do meu marido de maneira totalmente diferente. Se

calhar pior. Porque foi “é só mais um, que se lixe”. Foi um bocado assim. Eu aprendi uma

coisa, nós achamos que temos medo, de perder o emprego, de perder a nossa casa, temos medo

que o nosso marido nos troque por outra, não temos nada! Isso são só receios. Medo é de ver o

nosso filho doente. Isso é que é medo. Medo mesmo que nos faz balançar completamente. Tudo

o resto não é medo, são só preocupações. E foi isto que eu aprendi. Ficar sem emprego?

Preocupação. Pronto, ok, mas vai passar, porque esta passa mesmo. Ou vai ou racha, mas passa.

A outra pode não passar.

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E: Não a tornou mais preocupada? Está a dizer que relativiza mais, mas não a tornou um

ser mais preocupado? Mais triste ou...?

M: Não.

E: Mais rija digamos?

M: Mais rija talvez. “Quantos são? Não tenho medo de ninguém.”. é um bocado assim.

E: E para o seu marido, teve consequências?

M: Não sei.

E: Mas não sentiu nada?

M: Não. É assim, ele é uma pessoa muito calma, muito tranquila, sempre foi. Eu sou a agitação

e ele é mais, pronto, ele é muito calmo, tranquilo, e se calhar eu sinto mais e reajo mais do que

ele.

E: Digamos que ele vive tranquilo com uma preocupação por trás, aqui da cabeça...

M: Sim.

E: Esta lá mas está encaixada num sítio qualquer...

M: Sim, sim. Acredito que com ele seja exatamente isso.

E: E consigo também? Ou seja, a preocupação continua lá mas está...

M:Eu acho que nós temos que, e para as mulheres é especialmente difícil, mas nós temos que

compartimentar. Não passar a vida a misturar tudo. Aprender a compartimentar as coisas. Eu

já era um bocadinho assim – agora é trabalho, e agora é outra coisa e agora é outra coisa. Vamos

tentar separar e quando estamos numa coisa é tentar não misturar outra. É muito difícil, eu

chegar ali e não pensar no que está lá atras, mas tem que ser, senão deixamos de viver. Se nós

deixarmos, isto é um monstro que cai na nossa vida. E um monstro tomar conta a nossa vida

acaba.

E: É uma ideia de planeamento, fazer as coisas de forma planeada, é resolvermos as

coisas...

M: É ir resolvendo há medida que elas vão acontecendo. Deixar o monstro ali fechado numa

jaula. Ele de vez em quando vai grunhindo, mas deixá-lo fechado. Não podemos deixá-lo à

solta senão deixamos de viver.

E: Por último, o que dizia aos pais de crianças que souberam hoje que o filho tinha

cancro?

M: Eu não lhe vou dizer que vai correr bem, porque não sei. Não lhe vou dizer que vai ter que

ter muita força porque já sabe que vai ter que ter. Porque nós quando caímos nisto é até ao

pescoço e portanto viva um dia de cada vez. Tente tirar de cada dia aquilo que há de positivo.

O seu filho hoje está bem, acordou bem, fique feliz com isso. Não pense que ele amanha vai

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estar pior. Porque a verdade é esta – num dia está bem, no dia a seguir os tratamentos não

correm tão bem, no outro dia voltam a estar bem, e nós temos que ir adaptando e vivendo um

dia de cada vez. E tentar, lá está, compartimentar, dividir as coisas, dizer o mesmo que me

disseram a mim “saia, vá beber um café lá fora, vá almoçar lá fora, vá namorar com o seu

marido”...

E: A vossa intimidade nunca foi afetada?

M: Não. Até lhe posso dizer uma coisa que nunca contei a ninguém. Enquanto o P. esteve

internado houve um dia em que nós deixámos lá os avós e “vamos a casa... Está lá umas

coisinhas para fazer”.

E: Portanto conseguiram manter...e isso é uma coisa muito saudável! Então seria essa a

mensagem que lhes diria? Digamos que é uma mensagem de “não perspetivem nem o

bem, nem o mal, perspetivem o hoje”?

M: Sim. E relativizem as coisas.

E: E em relação à informação dos médicos, acha que devia ser dada imediatamente, ou

acha que devia ser dada em doses homeopáticas?

M: É assim, eu não acredito muito nas doses homeopáticas, acho uma charlatanice. Eu não

acredito muito que as coisas devam ser ditas assim aos bocadinhos. Acho e continuo a achar

que em termos, logo no inicio do diagnostico, que os médicos continuam a ter muitas

dificuldades em diagnosticar cancros às crianças, por isso é que morreu aquela miúda lá em

cima andou não sei quantos anos a caminhar para o hospital... E eu vi lá muitos casos de miúdos

que iam lá uma vez e outra e outra aos hospitais e só quando entravam lá já de gatas, quando

já não conseguiam andar é que os médicos resolviam fazer então exames mais profundos e

descobrir que as crianças tinham um neuroblastoma ou outra coisa qualquer. Eu acho que

continua a haver uma grande ignorância. E eu tive a sorte de ter uma pediatra do P. que tinha

feito um estágio no IPO e portanto ela estava alertada para isso. Foi alguém que pensou! É

aquela história, quando ouvimos galopar, pensamos no cavalo, ela pensou na zebra. E os

médicos não pensam na zebra. E eu acho que isso dificulta mais o diagnóstico. Porque é tudo

uma virose. E as vezes não é. E isso dificulta. Depois a forma como as coisas são transmitidas

às vezes ainda há, e as vezes ainda falha. No outro dia vi uma miúda, era uma miúda, tinha 20

e poucos anos. Veio de cabo verde, com o filho que tinha exatamente a mesma doença que o

meu e entrou na mesma altura que o meu. Obviamente que ela não tinha o mesmo

conhecimento que eu tinha, porque eu sempre gostei desta área da biologia e da medicina e

sempre fui ler muita coisa. E quase eu própria diagnostiquei o meu filho antes de ele ser

internado. Mas aquela miúda desconhecia completamente o que era aquilo. E a verdade é que

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a mim me diziam o que iam fazer (e eu também não era muito parva e ia procurar e pesquisar

e percebia), e a ela não lhe diziam nada. A sorte dela foi eu estar lá que eu ia-lhe dizendo “olha

eles agora vão fazer isto, e agora vão por um cateter para isto e para aquilo”. Eu ia explicando

as coisas.

E: Acha que a informação não é dada de modo igual a toda a gente?

M: Eu acho que não. Se as pessoas não fizerem perguntas...se calhar é dos médicos também

mas as pessoas não fazem perguntas também. Se as pessoas não fizerem perguntas...eu percebo

também a questão dos médicos, tão ali para tratar os filhos, não estão para tratar dos pais; estão

ali para serem eficientes e eficazes. E os médicos dentro do IPO são quase os mesmos que eram

há uns anos atras e as crianças são cada vez mais. Portanto eu também sei que eles cada vez

tem menos tempo para dar a atenção que deveriam, muitas vezes a culpa se calhar não é deles.

Mas a ideia que temos dos médicos que é gente que tem o nariz um bocadinho em cima e que

são mais inteligentes que os outros. Que até podem ser mas (...) mas as vezes acho que eles

continuam a ter, não sei se é receio de falar com as pessoas, de utilizar uma linguagem simples,

em vez de ser linguagem técnica e eu acho que as vezes ainda se perde um bocadinho por aí.

Pelo menos foi a experiencia que eu tive.

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CASAL 09 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – P.

E: Aquilo que nós gostaríamos de começar por perguntar é se se lembra quando pensa

no inicio da doença, da altura do diagnostico, o que é que se lembra mais? O que é que

lhe vem à cabeça?

P: Houve ali uns dias de doença, havia qualquer coisa no P. que já se notava. Ele ficava muito

cansado a subir as escadas, mas depois chegava a casa e aquele cansaço desaparecia... Havia

ali qualquer coisa que nós não sabíamos o que era de facto. Depois no dia do diagnóstico, que

foi um bocado por acaso, porque ele tinha uma consulta de rotina na pediatra – a pediatra achou

que havia ali qualquer coisa que não batia certo – e pediu-nos para passar no hospital no dia a

seguir para ele fazer uma análise. Portanto ela suspeitou de qualquer coisa e verificou-se que

de facto... Bom, naquele momento, eu sinceramente, eu sou um bocado, eu não sou muito... Eu

não tenho grande conhecimento técnico sobre doenças e fiquei um bocado pensando que não

era assim tão grave, que não era uma coisa tão grave quanto isso. Bom, depois a O. que está

ligada mais a esse mundo científico explicou-me que de facto era bastante grave. Mas eu acho

que consegui manter a cabeça fria, apesar da confusão, porque eram muitas coisas ao mesmo

tempo e tal, consegui manter um bocado alguma calma e com alguma frieza. Depois de sairmos

do hospital Amadora-Sintra, no dia a seguir, e vamos para o IPO, as coisas começam a tomar

outra proporção e começa-se a ter noção, um bocado “isto é uma coisa nova, isto é um mundo

novo, completamente nova”. E foi o sentimento

E: Ou seja foi a entrada no IPO que lhe trouxe maior receio, ou seja, foi mais difícil?

P: Foi de facto um choque com a realidade até porque eu quando era criança já tinha passado

no IPO aos 10 anos. Eu tive um problema na tiroide e portanto dos 9 aos 10 anos, entretanto

fiz uma serie de análises, as coisas eram diferentes, eram mais difíceis... E fui operado aos 10

anos, portanto quando regressei...

E: Mas não fez quimioterapia nem nada, não?

P: Não. Fui operado. Foi uma remoção da tiroide. Mas na altura era mais...

E: Acharam melhor tirar não fosse depois haver problemas...

P: Exato, portanto eu fui confrontado novamente ao entrar no IPO, nos olhos do meu filho, não

é...? E então começa-se a descer à terra, mas acho que consegui manter alguma calma, eu e a

O. conseguimos manter alguma calma no meio disto tudo...

E: Como é que fez isso? Como é que conseguiu manter calma? Lembra-se do que é que

pensou?

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P: Quer dizer eu acho que sou racional, a O. até deve ser um bocado mais do que eu e isto não

é um acidente que se vai na estrada e morre a pessoa que está ali ao lado. Não é uma coisa

dessas. É uma coisa mais gradual. Começamos a ver o P. com algumas dificuldades; naquela

noite em que ele vai para o hospital Amadora-Sintra complicou-se assim um bocado

abruptamente e nós pensámos “passa-se aqui qualquer coisa, isto afinal é grave”. Mas isto

levou dois dias e há assim uma gradualidade, isto não é um acidente de estrada que é uma coisa

de repente. Portanto há pessoas que conseguem, se calhar nesse tempo, te outra reação. Bom,

nós se calhar fomos tendo a reação mais gradual. Conseguimos perceber onde é que íamos

parar. Claro que quando se entra no IPO as coisas não são logo todas ditas de repente, para já

porque eles não têm uma analise profunda do caso e eles sabem que as pessoas têm que ser

preparadas e nós também percebemos isso. Portanto, aquela semana e aqueles dois primeiros

dias e depois aquela primeira semana do embate foi gradual. Não sei, foi um choque imenso...

E: Quando diz que foi gradual, foram-se habituando à informação? Acha que aquilo que

foi fazendo foi habituar-se devagarinho...?

P: Sim, uma aprendizagem. Um processo de aprendizagem num curto espaço de tempo.

E: Estou a perceber... Foi tentar processar devagarinho a informação que iam tendo.

P: Exatamente.

E: Lembra-se nessa altura de considerar, de pensar ou de sentir que ia perder o seu filho,

ou que...? Catastrofizar?

P: Não, não. Eu não tenho esse...

E: Foi um bocadinho centrar e pensar no que há a fazer...?

P: Eu próprio não penso muito vertiginosamente que as coisas acontecem de repente, a não ser

comparativamente, com o tal acidente de estrada que é instantâneo. Não. Fomos percebendo

que a coisa era grave e que poderia pender para um lado ou para o outro, de facto. Mas aquilo

é, foi um momento... É a aprendizagem. A pessoa aprende a lidar com a realidade e perceber:

bom vai haver aqui umas alterações - o P. pode morrer; isto pode correr bem... Mas eu sou uma

pessoa otimista por natureza. Não sei se sou otimista mas não sou catastrofista. Não penso na

desgraça, quer dizer, penso que ela pode ocorrer mas gosto de prevenir, gosto de ser uma pessoa

segura. Olhar para um lado e perceber no meio em que estou. E portanto nós começamos a

perceber a realidade das coisas.

E: A sua mulher ficou com o pequenino, e depois veio sozinho para casa... Isso foi

complicado? Não foi?

P: Era complicado mas quer dizer, é racional e eu percebi perfeitamente. E havia uma logística

muito grande à volta disso, como imagina. Porque a O. estava lá, eu ia lá, mas estava a trabalhar.

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Entretanto depois tive de baixa para a acompanhar. Isto envolve sempre uma logística familiar

muito grande, uma logística familiar muito grande. Eu e a minha família e a família da O.

também não é nada que facilmente não organizemos

E: Foi muito importante essa organização da família? Esse apoio familiar foi...?

P: Claro que sim.

E: Que outras coisas foram importantes para si, para a sua adaptação? Por exemplo, o

P. teve o tratamento dele, correu bem desde o princípio, isso ajudou ou não ajudou?

P: Correu bem. Passámos por um grande susto, pelo menos eu tive um grande susto e a O.

também, claro. Foi quando ele teve a meningite e foi parar de urgência para o hospital de santa

maria e não se percebia bem o que é que era. Ele com umas dores de cabeça horríveis, com um

diagnóstico preocupante – no dia de anos dele – e pensei “bem, o P. pode morrer”. Mas nós

tivemos muita força para apoiá-lo e correu bem.

E: Acha que nessa fase a vossa relação entre casal, se alterou na fase do diagnóstico?

Havia perda de intimidade? Vocês afastaram-se ou se pelo contrário se uniram...? Nota

que tenha havido alguma diferença entre vocês?

P: Sim. É um bocado difícil explicar. Houve uma diferença porque as pessoas não estão

disponíveis para certo tipo de coisas. O pensamento está focalizado...

E: Digamos que de repente vocês tornaram um objetivo, quer dizer, tinham o mesmo

objetivo. No sentido a preocupação e era essa a preocupação...

P: Exato e focámo-nos nisso.

E: Uniu-vos? Desuniu-vos?

P: Não sei. Não sei explicar se uniu, se desuniu, porque acho que mantivemos a mesma relação,

pelo menos a meu ver. Porque depois no balanço final disto não percebo se nos uniu se nos

separou. Acho que mantivemos o mesmo tipo de confiança que tínhamos um com o outro.

Porque a nossa relação desde sempre não é nem demasiado unida nem demasiado separada.

Acho que somos muito conscientes e andamos em paralelo. Não somos aqueles casais muito

beijoqueiros, não somos nada disso. Temos muita intimidade mas vivemos muito

paralelamente um com o outro.

E: E acha que a doença não veio destruir isso?

P: Não.

E: Vocês, na altura do diagnóstico, falavam muito um com o outro sobre a doença?

P: Claro.

E: Falavam sobre aquilo que estava a acontecer? Sobre o que é que sentiam?

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P: Sim, sim. Não. A nível sentimental nós não expressamos muito o nosso sentimento um com

o outro.

E: Falavam só de coisas muito logísticas “vamos fazer aquilo, temos que fazer isto”?

P: Sim. Talvez não falemos mas percebemos porque há várias maneiras de comunicar. Eu e a

O. não somos pessoas que falamos muito – “eu amo-te muito” ou “tu não gostas de mim”, não.

Não somos muito disso. Não temos muito esse tipo de conversa.

E: Chorar um com o outro, alguma vez aconteceu?

P: Não. Acho que não. Talvez. Sim, no primeiro dia a O. chorou, assim que soube e eu não

estava a perceber porque a mim leucemia não me dizia nada, enfim. E ela chorou. Mas nós

somos um bocado frios.

E: Mais racionais, do “então vamos lá ver como é que vamos resolver isto”?

P: Sim, acho que sim.

E: Acha que isso ajudou a lidar com a situação?

P: Sim. Eu acho que ajuda. Quer dizer, depois analisado isto friamente, se calhar no primeiro

terço, nos primeiros dois terços ajuda, se calhar na parte do último terço às vezes gera um

bocado de frieza e de desprendimento. Não é que não haja um relacionamento, mas se calhar

há ali um... Nem tudo é perfeito e se calhar no último terço...

E: Nestes últimos tempos ou no último terço do tratamento?

P: Não, não. Estou-me a referir àquele período, àqueles dois anos...

E: Ou seja, houve então um momento em que ajudou bastante, mas depois houve uma

quebra e depois melhorou, é isso?

P: Mas não é uma coisa acentuada. Eu acho...

E: E acha que melhorou com o quê? Foi por causa do tempo?

P: Porque depois repare, isto é um tratamento muito prolongado e depois passa a ser uma rotina.

Portanto ter uma criança doente e ter uma serie de passos rotineiros... Isto passa a ser mais uma

rotina. Nós não pensámos, nem eu pensava no meu dia-a-dia “bem o meu filho pode morrer

para a semana”. Não tenho esse tipo de pensamentos, mas de facto isto é uma rotina. A logística

todas, os cuidados, etc.

E: Acha que sair do momento do cansaço, dos tratamentos, ajudou ou acha que não foi

isso, que fez vocês começarem a pensar na doença como uma rotina?

P: O cansaço... Isto gera de facto cansaço, isto parece que não mas depois...

E: E isso tem implicações depois para o casal?

P: Algumas. A nível, se calhar a nível mais intimo, a nível mais próximo, se calhar tem

algumas.

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E: E hoje, como é que vocês vivem hoje?

P: Muito bem.

E: Sente algumas implicações daquela fase ou acha que as coisas melhoraram?

P: Não. Eu sinto que aquilo deixa alguma marca. Deixou a primeira marca que é o seguinte. O

P. se lhe dói a cabeça ou se tem alguma coisa, isto apita logo, vamos para o hospital e ficamos

naquela expetativa, das análises, etc. Entre nós se calhar tornou-nos mais pragmáticos, mais

práticos e às vezes menos amorosos. Mas isto não pode ser lido assim porque de facto nem eu

nem a O. somos muitos amorosos, românticos. Não somos muito assim. Portanto esta leitura

as vezes pode ter uma interpretação um bocado destorcida...

E: Houve alguma alteração, mas não foi uma alteração profunda...

P: Não, não, não, não...

E: Muito bem, e em relação ao P.? Como é que você viveram ser pais? E pensando agora

que são pais, acha que alterou a maneira de vocês lidarem com o vosso filho? Acha que a

doença interferiu na maneira como vocês o educam?

P: Um pouco, mas eu acho que não foi muito sinceramente.

E: Quando diz que “um pouco” quer dizer o quê?

P: Porque é assim... Nós sempre o libertámos muito. Ele é uma criança muito liberta de nós.

Parece um bocado estranho como é que uma criança que foi tão doente tem uma autonomia da

nossa parte tão grande e nós cultivamos isso se calhar ou é naturalmente nosso. E ele aprende

isso connosco. E eu não sei se houve assim um protecionismo demasiado porque...

E: Nunca houve? Nem mesmo na primeira fase, na fase da doença?

P: Nessa primeira fase houve claro. Proteção.

E: Mas hoje, um cuidado...

P: Um cuidado mais físico sim, mas a nível emocional sempre acho que foi muito constante, a

nossa relação com ele...

E: Há pouco falou daquela questão de que se há qualquer coisa física, apita. Outras

questões por exemplo na escola, sair com os amigos, nessa questão sente que houve

alterações?

P: Não...

E: Se ficou mais tolerante por exemplo em relação à escola? Se ele vier com más notas...

P: Quer dizer, o P. sempre foi um miúdo mais extrovertido, não tem nada a ver comigo que eu

sou uma pessoa mais tímida e introvertida e ele não. Não conhece ninguém, passado um minuto

olhamos para ele e está a jogar à bola, com uma data de gente... E portanto não notámos isso,

se bem que sabemos que ele na escola passou por umas dificuldades de integração talvez, mas

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por um lado ele adapta-se muito bem, por outro, na escola é um bocado distraído e tem ali uns

momentos que não se adapta bem à generalidade...

E: Acha que isso foi por causa da doença?

P: Acho que não.

E: Acha que é a personalidade dele?

P: Acho que sim.

E: Acha que a doença não alterou nada, cognitivamente, nem emocionalmente?

P: Acho que não. Para já, não. Não tenho esse sentimento. Mas poderia ser uma avaliação mais

técnica da minha parte, ou presumidamente isso, mas ele era tão novo que não se consegue

perceber...

E: Acha que ele não...

P: É evidente que possivelmente deixou marcas, marcou. Mas eu não consigo ver onde.

E: E em relação a outro tipo de consequências? Por exemplo, para a sua mulher ou para

a vossa família? Que consequências é que a doença teve?

P: Hum...

E: Vocês não tiveram mais filhos, foi por causa disto?

P: Não. Não! Nós não tivemos mais filhos, eu até gostava de ter mas a O. por opção não quis.

E eu respeito. Porque nós já tínhamos alguma idade e portanto a O. não queria assumir esse

risco. Não é que eu não gostasse, não é que não houvesse condições mas realmente já tinha

alguma idade e ela não quis assumir esse...

E: E que outras consequências é que teve?

P: Um bocado mais atenção para com o P. e tal. A preocupação...

E: Maior centração no vosso filho?

P: Sim, mas não tanto porquê, porque esta doença já passou pela nossa família... Já tem um

histórico. Eu quando tinha 10anos; a minha tia da parte do meu pai morreu com cancro da

mama; o meu pai faleceu um ano antes do P. ser diagnosticado, e ele faleceu com um cancro

nos pulmões, em duas semanas. Portanto a nossa relação... A minha prima que é filha da irmã

da minha mãe também teve um problema de tiroide como eu, portanto isto faz a família ganhar

alguma carapaça. Mas não é uma coisa que cai do espaço.

E: Pois e há muitos que sobreviveram...

P: Exatamente portanto a nossa família tem esta relação de preocupação natural para com a

doença do P.

E: Mas acha que a doença do P. está controlada? Está curada?

P: Não.

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E: Considera só que está controlada?

P: Sim, está controlada.

E: Mas vê alguma possibilidade de ele vir a ter ou é uma possibilidade pequena?

P: Acho que é uma possibilidade. E acho que cada vez mais é uma possibilidade porque o

mundo que nos rodeia em que estamos inseridos, as pessoas já não têm outras doenças que não

sejam cancro ou coisas relacionadas com cancro e eu acho que é uma grande possibilidade de

o P. ter uma recaída. Mas não vivo com isso diariamente.

E: Não vive com isso diariamente?

P: Não. Nem pensar.

E: Mas isso está encaixado lá nalgum sítio...

P: Não, não é assim um medo que está encaixado e que de vez em quando espreita. Não, não é

isso. É uma consciência da realidade

E: Mas é uma consciência aceitada, ou seja, aceito que isto pode acontecer...?

P: Não é aceitável... quer dizer...

E: Não. No sentido, poderá acontecer...

P: Poderá acontecer, sim.

E: “Não vou é condicionar a minha vida...”

P: Não, não.

E: Assim, quase, quase como “pode haver um ato terrorista ma eu não vou deixar...”

P: Exatamente. Como “vou a conduzir para o trabalho e posso sofrer um acidente”. Tenho

noção que isso pode acontecer, é uma realidade do dia-a-dia.

E: Mas não é uma coisa que está constante na sua vida?

P: Não, não.

E: O que é que diria a pais de crianças que foram diagnosticadas hoje com cancro?

P: É difícil. É muito difícil de responder. Eu digo-lhe, na primeira semana que eu tive lá no

IPO, por acaso tive uma experiencia que, foi tipo agridoce, porque eu estava lá sentado a espera

do P., dos tratamentos e aquela tensão toda e vem um pai ter comigo – porque no IPO há muitas

coisas a acontecerem em paralelo e é um mundo que as pessoas não imaginam sobretudo na

ala das crianças e aquilo é um mundo de certa maneira fantástico. Porque corre ali, de certa

maneira, de vidas e de pessoas que já passaram, pessoas que estão a passar – e então havia ali

um programa de pais que iam lá tentar dar um bocado de ajuda aos pais que tinham acabado

de saber que os filhos estavam doentes. E veio um pai ter comigo dar-me um bocado de

esperança, bastante esperança e talvez conscientemente do que é que se estava a passar. E foi

uma experiencia um bocado agridoce, eu gostei mas não gostei. Aquilo parecia assim um

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bocado, não é bem forçado, roçava um bocado... Não foi espontâneo. Não foi um ato assim

muito espontâneo. E eu não gosto muito quando os atos não são...

E: Acha que foi muito...?

P: Foi um pouco artificial. Eu percebo o motivo...

E: Acha que gostaria mais se fosse uma coisa mais estruturada, mais clara?

P: Sim. Mas eu acho que nem se devia muito deixar os pais fazerem este tipo de abordagem

porque pode tender mais para um lado ou para outro que não seja o mais correto. Quer dizer,

pode haver uma muito boa intenção, em eu chegar agora lá à ala da pediatria e ir ter com um

pai e “olhe, isto que se passa, enfim, você tenha calma, as coisas vão melhorar, etc.”. Se calhar,

acho que não é muito...

E: O que é que diria se fosse lá á ala da pediatria?

P: Não sei. Acho que tinha que ser... Não lhe consigo estar a responder agora... Seria uma coisa

de momento porque teria a ver com a expressão, com a pessoa, com o modo de estar da pessoa,

com o que presumia que se estava a passar com a pessoa naquele momento...

E: Mas iria passar uma mensagem positiva, iria falar da sua experiencia?

P: Iria falar da minha experiencia... Não sei se iria passar uma mensagem positiva...

E: Iria incutir a fé, a esperança...? Acha que iria por esse caminho?

P: Iria incutir esperança, fé não. Mas de incutir um otimismo, uma força, quer dizer, um

otimismo de olhar para a frente e lutar. Mas quer dizer haviam lá situações de pais que sabiam

que a criança vai morrer e isso é muito difícil! Não há quase palavras. E eu contra coisas dessas

não tenho palavras, não sou a pessoa ideal para me expressar, nem tenho coragem para agora

“olhe tenha esperança, vá para a frente”. Não sei, acho que... Sou pessoa para dar um grande

abraço...

E: Não há um protocolo que possa ser seguido...?

P: Não. Acho que não.

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CASAL 10 – MÃE

CRIANÇA SOBREVIVENTE – M.

E: Agradeço mais uma vez ter-me recebido. Aquilo que eu lhe ia pedir era que se pudesse

e não querendo perturbar, se lembrasse um bocadinho do momento do diagnóstico... Ela

tinha quantos anos?

M: Foi em 2012. Foi muito difícil. Ela andava com umas dores de cabeça. Tomava paracetamol,

passava. Tomava brufen passava. Toda a gente te uma dor de cabeça só que era estranho porque

ela tinha mais dor de cabeça quando estava mais cansada. Quando fazia educação física na

escola por exemplo. E eu tenho um médico pediatra muto amigo que me diz assim “no fim-de-

semana eu estou no hospital, leva-ma lá”. Só que eles no hospital ao fim de semana na urgência

não podem fazer todo tipo de análises. O que ele fez não viu nada. “Olha não é nada de

meningite” porque ele tinha uma suspeita, não era outro tipo de doença. “Durante a semana o

dia que te de jeito traz cá para fazer umas analises”. Ela segunda-feira tinha um teste e não quis

ir, terça-feira a mesma coisa, portanto fomos na quarta-feira. Quando fez a colheita disseram-

me que demorava 12 dias a saber os resultados. A minha filha fez a colheita e eram umas 9h

da manha porque depois ainda foi para as aulas e eu fui trabalhar. O médico depois telefona-

me e diz-me assim: “eu quero estar consigo e com a sua filha (...) venha aqui ao hospital mas

traga-a a ela também”. Quando eu cheguei o medico diz-me assim “a sua filha tem uma

leucemia”. Caiu-me tudo. Fiquei sem nada. Foi tao difícil. (...) eu não sabia o que falar. Eu não

sabia o que dizer. Ele diz-me assim “Vá a casa, e depois às 5h tem ambulância para ir para o

IPO do Porto.” À minha filha dei-lhe logo um calmante, pedi a uma auxiliar para a acalmar.

E: Ela tinha que idade?

M: 16anos. (...) Ela ficou calminha, já eu fiquei num sufoco. Eu tenho uma prima enfermeira

que trabalha naquele hospital onde ela foi diagnosticada e liguei-lhe para falar com ela, mas eu

estava a sentir-me tão sufocada que nem conseguia dizer o que tinha. Ela veio logo e deu-me

imenso apoio, foi a pessoa que me deu mais apoio psicológico, financeiro, tudo! Porque ela

não deixava faltar nada em casa. Tirava as folgas dela para estar comigo ao IPO do Porto. Era

para estar connosco porque aquilo são tratamentos muito difíceis. Então saímos de chaves as

20h da noite, sem lanche, sem jantar, porque uma pessoa não conseguia comer nada. Mas a

miúda estava calma. Foi muito difícil. Para mim essa palavra é fatal. Só tivemos a sorte que

estava no início. Tive a sorte de ter este médico amigo. Antes de sair de chaves ainda liguei ao

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meu marido, à minha mãe e ao meu pai. (...) foi muito difícil para todos. Ela ficou lá internada

e eu fiquei sempre lá com ela.

E: Quanto tempo é que esteve lá?

M: O primeiro internamento foi cerca de um mês, mas depois teve entradas frequentes no IPO

ou porque ia fazer análises ou quimioterapia. Era assim. E depois havia internamentos em que

exigia 5 dias seguidos lá.

E: Durante esse tempo como é que se sentiu?

M: Muito mal.

E: Mas quê? Tristeza, ansiedade...?

M: Tudo. As pessoas telefonavam e eu nem conseguia atender o telefone. Era um sufoco.

E: Mas acha que era porquê? Sentia medo...?

M: Tinha, muito! De perder a minha filha. Era o pensamento principal. E depois é assim, os

médicos não adiantam muito. Falam muito pouco. E depois também nos falam por palavras

que nós não entendemos. E eu lembro que cada pergunta que ia fazer ao médico era “um dia

de cada vez, um dia de cada vez”, só que a ansiedade era muita.

E: Mas não lhe explicavam? Não falavam? Não comunicavam consigo?

M: Não. Não explicavam nada. (...) depois viemos para casa, preparei o quarto dela tipo de

isolamento, sem tapetes, cortinas, nada. Entrava lá com mascaras que a minha prima me

arranjou. Eu entrava lá e levava-lhe tudo para ela estar à vontade no quarto dela. Mas em

relação aos médicos era sempre o mesmo e não me dava muitas provisões (...). Muitas coisas

fui percebendo por outras mães que me diziam. Porque eles só sabiam falar pelas palavras deles

que nós não percebemos nada. (...) Depois quando me disseram que já não tinha doença, foi

quando ela fez o ultimo mielograma, e para mim foi um alivio. Mas a verdade é que connosco

não falam nada, ou porque são poucos médicos ou porque não sei quê.

E: Não dão apoio?

M: Não. Os médicos não têm tempo para nós.

E: E teve apoio da enfermagem?

M: A enfermagem sim, mais perto. Tínhamos lá pessoal da enfermagem mais carinhoso. Sim.

Tínhamos outros que também não. (...) (conta um episodio em que teve que ir para o Porto

porque a filha estava com febre) nesse especto não tenho nada a apontar, eu ligava para lá a

dizer que daí a tantas horas estava lá e quando chegava já tinha o processo dela pronto com um

médico e um enfermeiro à espera dela.

E: Ao menos isso... Mas ou seja todo esse tempo foi vivido com um grande sufoco...

M: Sim, muito. Muito.

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E: Ou seja, não havia paz... Lembra-se se isso teve implicações na maneira como se

relaciona com o seu marido?

M: Ai sim. Teve. Muito. Eu e o meu marido sempre nos entendemos muito bem e eu

espingardeava com o meu marido a torto e a direito. Ele sem culpa nenhuma. E eu disparatava

com ele assim sem...

E: Acha que isso era por cansaço?

M:Era. Era tudo junto. Era porque uma pessoa não dorme. Ate quando estava em minha casa à

mínima coisa eu acordava para ir vê-la com medo que fosse algo com ela e ela às vezes ate

estava a dormir e eu acordava-a. Era uma ansiedade muito forte.

E: E falaram sobre a doença?

M: Não.

E: Era uma coisa que não se falava...

M: Não. O meu marido e eu falávamos todos os dias, eu no IPO e ele aqui a trabalhar, tinha

que ser, mas era para saber como eu estava, eu falava com ele, ele comigo.

E: Mas da doença não?

M: Não.

E: Ele ia lá pouco?

M: Ele ia ao fim-de-semana. Só ia ao domingo.

E: Acabou então por haver um afastamento entre vocês nesta altura?

M: Sim, sim.

E: E esse afastamento durou todo o tratamento ou parou em alguma altura? Depois de

acabar o tratamento, melhorou ou não? Ou acha que ficou assim qualquer coisa...?

M: Ficou. Como antes nunca mais. Eu nunca mais fui a mesma pessoa. Eu sinto que eu perdi

toda a razão de viver. Agora eu vivo bem, mas estou sempre aflita.

E: O tratamento dela acabou mas acha que não acabou?

M: Ainda não. Ela faz 5anos que acabou o tratamento agora e vamos lá à consulta. (...)

E: Estava-me a dizer que a doença a alterou. Fez de si uma pessoa mais desinteressada

da vida?

M: Ah si, tudo. Eu digo, 100%, eu era uma pessoa alegre, eu estava sempre bem, porque a

minha filha sempre foi saudável (...). Agora eu e o meu marido quando temos tempo vamos

fazer umas caminhadas os dois.

E: E aí sentem-se um bocadinho melhor? Os dois sozinhos?

M: Sim, sim.

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E: Quando me diz que nada ficou igual é por sua causa ou é também por ele? Ele também

se modificou?

M: Não. Por minha causa. Por mim. Ele não. Ele tomou xanax, largou há pouco tempo. (...)

E: Quer dizer que está a viver isto á 5 anos?

M: Sim. Nunca mais fui a pessoa que era antes. Mas é como era dantes, comigo é “vamos

tentando o dia-a-dia”. Ela agora fez o 1º ano na faculdade. Não está aqui em chaves, mas ela

tinha que me ligar sempre de manha e à noite e se pudesse à hora de almoço. Ela podia ter

vindo para aqui em chaves para a privada ou ir para onde está agora e eu pagar alojamento.

Claro que eu preferia que ela estivesse aqui porque a via todos os dias, mas ela preferiu lá

porque ninguém a conhece e lá ninguém sabe o que ela teve. Aqui toda a gente a ia abordar e

toda a gente sabia. E isso para ela ia ser muito mau. Então ela pediu para ir para vila real. Ela

entrou mas compreenda que isto para mim...

E: Vive ansiosa?

M: É.

E: Acha que a superprotege?

M: Eu acho. Sim. Vivo muito ansiosa, dou por mim a respirar profundamente quando estou

mais ansiosa e sinto que a pálpebra do olho treme toda... “Mas porque é que eu estou assim?”

Pergunto-me eu. É muito difícil.

E: Digamos que o medo da doença ainda não saiu.

M: Não.

E: Mas acha que ela está curada?

M: Eu acho.

E: Mas a aflição está lá...

M: É. Sim. Eu confio que ela está curada.

E: Digamos que é quase como se tivesse ficado ali uma coisa, um trauma...

M: Pronto. É isso.

E: E continua?

M: Sim, sim.

E: E houve alguma coisa que a ajudasse a ficar melhor? Estava-me a falar da sua prima...

Mais alguém a ajudou?

M: Ah sim, a minha prima. Mas mais não. A minha prima ajudou-me imenso. Eu tudo. (...)

E: E estava-me a dizer que superprotege a sua filha. E como mãe dela alterou-se com a

doença não é? Passou a superprotege-la mais?

M: Sim, sim, sim.

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E: Mas em tudo? Por exemplo se ela vai a uma festa, fica aflita? Se sair a noite?

M: Sim. Fico. A porta do meu quarto fica aberta. E depois acordo e venho ver se ela já entrou

e fui eu que não dei conta.

E: Ou seja, continua muito centrada nela. Portanto a vivencia dela em vila real deve ter

custado um bocadinho não?

M: Muito.

E: E em relação à sua outra filha, acha que se alterou a maneira de ser mãe dela também

ou acha que não?

M: Alterou. A outra minha filha quando foi a doença desta ela estava no último ano de

faculdade. Estava de férias em paris com a madrinha. Foi um sufoco também para elas. Foi

muito difícil.

E: Mas também a começou a superproteger?

M: Sim, ainda hoje. Está a viver com o namorado mas mesmo assim avisa-me quando chega a

casa ou quando sai.

E: E agora em relação à sua filha acha que a doença teve implicações para ela?

M: Teve, teve. Ela ficou assim mais com as pessoas. Porque na altura toda a gente da aldeia

vinha aqui para a ver e ela ia à janela acenar. E portanto ela ficou mais assim, mais convivente

com as pessoas. (...)

E: Quer dizer que a doença a tornou mais aberta?

M: Sim, sim.

E: (...)

M: (...)

E: E quais são as suas preocupações em relação a ela? Ainda é a doença?

M: É.

E: Continua com medo que possa vir outra vez? É a grande preocupação?

M: É.

(...)

E: Mas revoltou-se em relação a Deus?

M: Muito. Eu não vou à missa. Deixei de ir. Rezo mas não vou à missa.

E: Mas já fez as pazes com Deus? Ou acha que ainda há uma serie de coisas a serem

resolvidas?

M: Sim, isso. Ainda há umas coisas a serem resolvidas.

(...)

E: Se hoje tivesse com pais que souberam hoje que os filhos tinham cancro?^

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M: Ai, tinha tanto para lhes dizer... Que tenham fé, porque é a fé que nos salva. Fé até em nós

próprias. Nós temos que contribuir. Eu fiz tudo o que os médicos me pediram.

(...)

E: Deixou de trabalhar?

M: Deixei. Fiquei de baixa 2 anos. Nunca tive problemas nenhuma com o meu trabalho.

Aceitaram.

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CASAL 10 – PAI

CRIANÇA SOBREVIVENTE – M.

E: Sei que a sua filha teve cancro. Como é que teve essa notícia? Foi a sua mulher...?

P: Foi assim uma coisa muito rápida que eu estava no trabalho e só quando cheguei a casa é

que elas me deram a grande notícia.

E: Lembra-se do que é que sentiu nessa altura?

P: É assim, uma pessoa, fica logo angustiada...

E: Angustia... E eu sei que elas depois foram internadas. E ficou aqui sozinho?

P: Fiquei só... Pedi à minha sogra, aos meus sogros...

E: Como é que foi esse tempo?

P: Foi difícil, tanto que ela lá, eu aqui e a ter que trabalhar. Porque no trabalho não dão folgas

não é? Uma pessoa devia de ter e os primeiros dias não tive.

E: Ninguém lhe deu folga, ou seja no trabalho não lhe deram folga?

P: Não. Tivemos que continuar porque se folgo descontam-me no dia e uma pessoa já sabe, se

de um lado não havia...

E: Tinha que ajudar de outra maneira não é?

P: Pois.

E: Tinha que haver alguém a trabalhar...

P: Pois porque não sabia o que ia acontecer. Foi uma fase bastante complicada e difícil porque

eu só ia lá ao fim de semana. E ainda passaram lá bastante tempo.

E: Nessa altura sentia-se melhor quando as ia ver ou ficava ainda mais enervado?

P: Não. Eu por acaso sentia-me mais tranquilo porque realmente via-a. E via que estava a correr

bem... Houve uma altura depois quando veio para casa foi ali uma fase bastante difícil, porque

vê-la, que não estava bem, acho que aí ainda foi mais difícil. Porque é assim, a minha mulher

sentiu mais, o que posso dizer é que embora.... Eu não sentia o que ela sentia porque eu não

estava lá.

E: Agora quando a sua filha veio para cá foi pior ainda?

P: Pois claro, aí foi quando senti mais, porque aí eu via-a todos os dias na situação em que ela

estava. Uma rapariga que parecia saudável.

E: Portanto nessa altura... Lembra-se se ficou mais ansioso? Mais triste nessa altura?

P: Pois, mas depois as coisas também começaram a correr bem. Começamos a ter esperança

que melhorasse. (...) Mas é um bocado... Só quem passa por ele é que sente sofrer.

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E: Na sua relação com a sua mulher, acha que houve alguma coisa que se modificou?

P: Isso não.

E: A sua mulher estava-me a dizer que ficou mais triste...

P: Ela andava era mais nervosa... Mas eu já sabia que era próprio do que se estava a passar e

acabava...

E: Por desculpá-la...?

P: Claro. Eu não podia... Tinha que ser.

E: Mas acha que a doença vos afastou de alguma maneira ou não?

P: Acho que não nos afastou, não. Só que pronto, foi a parte difícil aquele tempo, foi quase um

ano, em que ela esteve...

E: Pois, em que esteve mais tempo internada do que cá... Mas depois ela acabou por

continuar o tratamento aqui. E houve alguma coisa que tivesse ajudado neste momento

difícil? Amigos...?

P: Assim um ou outro. Tinha um colega com quem falava. Agora patrões e isso nada. Esses

não deram apoio nenhum. Nem uma ajuda.

E: E com os médicos falava?

P: Não.

E: Eles nunca falaram consigo?

P: Não. A única pessoa com quem falei de médicos foi o Sr. X. que foi quem foi com elas a 1º

vez na ambulância. Foi a única pessoa que pronto... Disse depois que tivesse muita calma. Foi

o único médico...

E: Que disse qualquer coisa...

P: Pois. De resto não tivemos apoio de nada.

E: Nem médicos, nem psicólogos, ninguém vos apoiou?

P: Não. Nada. Tivemos que nos controlar através da nossa coisa e pensar que as coisas iam...

A fé. Pronto, que ia correr tudo bem, mas de resto não.

E: Ficou revoltado?

P: É assim, a pessoa revolta-se porque sabe como é, mas nós já sabemos o país que temos...

E: Mas acha que ficou revoltado pela sua filha ter aquela doença?

P: É assim, uma pessoa não se pode revoltar. Tem que pensar nas coisas melhores, não é na

revolta porque a revolta não traz nada...

E: Focado a viver as coisas melhores, que a coisa ia correr bem...

P: Sim, pois. A minha mulher talvez pudesse pensar assim porque acompanhava a situação.

Porque quem acompanha a situação de perto e está por dentro claro que é muito diferente

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daquilo de quem as via de oito em oito dias. É muito diferente. Uma pessoa não sente, acho

que nem sente uma quinta parte. (...) mas graças a deus correu tudo bem.

E: Estava-me a dizer então que houve o afastamento físico entre si e a sua mulher naquela

altura e ela ficou um bocadinho mais alterada mas que isso não mexeu no nosso

casamento não é?

P: Pois sim.

E: E o vosso casamento teve mais alguma fase menos boa?

P: Não.

E: Quando ela veio para cá, as coisas acalmaram? Ficaram melhores, ficaram piores?

P: Não, é assim, se calhar até a parte em que ela esteve lá até foi melhor porque nós só

falávamos pelo telefone e eu ia lá. Mas por exemplo ela aqui, veio e qualquer coisinha ela

ficava logo... Mas pronto era o psicológico.

E: Está-me a dizer então que enquanto ela esteve lá esteve tudo bem, mas que depois

quando acabou o tratamento lá, ela veio para cá é que as coisas pioraram, foi?

P: Pronto, já não sei o que se passava.

E: E agora acha que está melhor? Está a normalizar?

P: Sim, entre mim e ela há sempre algumas coisas que temos não é, mas sim, está bem.

E: E acha que a doença o modificou? O tornou uma pessoa diferente?

P: O ser nervoso eu sempre tive, porque às vezes é o stress do próprio trabalho, e uma pessoa

por vezes... pronto o meu trabalho é muito cansativo. E a pessoa depois chega a casa e vem

com mais stress e ela também trabalha muitas vezes até as 20h da noite.

E: Mas acha que a doença a si não o modificou?

P: Não, acho que não.

E: E em relação à sua filha acha que ela se modificou com a doença?

P: Ela sempre foi uma rapariga que pronto, nunca saiu assim muito e agora, por acaso tem uma

colega que convive com ela e por acaso agora tem saído mais, mas dantes ela quase nem saia.

Porque ela sentia-se... Ela era um bocadinho forte e então sentia-se envergonhada de sair.

E: Mas acha que ela ficou mais triste, ou não?

P: Não, acho que não. (...)

E: Muito bem. E preocupações em relação ao futuro dela? Tem alguma? Acha que a

doença está curada?

P: Isso uma pessoa não pode saber. É um prognostico só o futuro o dirá.

E: E isso ainda o preocupa?

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P: Claro, claro. Nós o que vimos é que há muita gente que repete. E que não queremos dizer

que não possa vir a repetir. Nós pensemos que não e tudo está a indicar, para já, que não, mas

não quer dizer que não...

E: E tem outras preocupações em relação a ela ou é só esta preocupação?

P: Eu acho que não.

E: E a partir do momento em que ela teve a doença acha que ficou diferente na maneira

como a trata? Ou continua a trata-la da mesma maneira?

P: É assim eu sempre acho que tratei igual mas por exemplo se lhe mandava fazer alguma coisa,

agora se calhar já não mando tanto... ela as vezes depois também diz que está cansada... se bem

que eu acho que se ela está cansada deveria fazer mais alguma coisa, mais exercício físico. (...)

E: Mas está-me a dizer que se calhar faz coisas por ela que se calhar não tinha que fazer,

para não a cansar... Poupa-a...

P: Pois, se calhar.

E: E em relação à sua outra filha? Também ficou mais preocupado com ela?

P: Pois da mesma maneira, também porque ela agora vem cá pouco. Vejo-a às vezes uma vez

por mês.

E: Mas preocupa-se tanto com esta como com a outra?

P: Sim. É a mesma coisa porque para mim elas são as duas minhas filhas. É igual.

E: Mas se doer a cabeça a uma e a outra com quem se preocupa mais?

P: Se tiverem aqui as duas juntas, tenho logo uma preocupação com esta...

E: Se as duas vão viajar com quem se preocupa mais?

P: Bem, nunca passei por isso. (...)

E: Muito bem. Se hoje falasse com pais a quem a criança foi diagnosticada com cancro o

que é que lhes diria?

P: Que tivesse paciência e que tivesse esperança. Uma pessoa não sabe o que pode dizer mais

porque eles é que vão passar por aquilo. A pessoa só podia dar uma motivação como a gente

já passou pelo mesmo para que eles...

E: (...)

P: Acho que, no meu caso e nos outros casos, que devia haver mais apoios. A família, nestes

casos, mais apoios, psicológicos. Eu não precisava muito mas a minha mulher precisava. (...)