casa verde - historias do contestado

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  • 7/26/2019 Casa Verde - historias do contestado

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    CASA VERDE

    Noel Nasciment

    Ele subiu a serra com uma velha bblia na mo.

    A muque prendia ao peito uma trouxa de trapos.

    Ferira os ps nas pedras em riste das escarpas. Consta que um velho co vadio lhe lambera as chagas.

    Ele vivia numa gruta, isolado do mundo dos homens. Segregarase antepondo a este a muralha das montanhas. !no cume, no claustro do mosteiro lapeano, mosteiro da nature#a, na socava, $i#era morada. %ma $enda talhada narocha, onde & tarde#inha, ao decair o sol, se pro'eta nitidamente a sombra de santo Ant(nio. )anto isto verdadeque, certo dia, um retratista protestante bateu uma chapa da gruta e se surpreendeu quando viu revelada a imagedo santo casamenteiro.

    *ara os moradores da !apa, ainda vilare'o, era uma $igura apocalptica, mas a alguns ricos $a#endeiros,acostumados & vida da capital, parecia apenas um mendigo.

    + onge-

    o dia ensolarado de seu rosto, os olhos, o cu/ as barbas, as nuvens.

    aquelas paragens a nature#a asctica. Se a tarde expira, o sol chama de vela que se $inda no hori#onte, e apr0pria serra um bando de $rades a'oelhados, envoltos em incenso. o cho imenso re$ulgem tapetes bordados decampos, e os pinheiros, vestidos de escuras batinas, semelham multido de vultos penitentes, com os bra1os

    estirados para os cus, em atitude de s2plica. 3uvese o rudo resmunguento da bicharada como suave murm2riode preces.

    )inha como templo o universo, como altar, a consci4ncia.

    o se devia indagar de que vivia o monge, pergunta indiscreta, seria pro$ana1o.

    + Santo no come + explicavam os camp(nios.

    Se perdia os sentidos algumas ve#es, a $ome como causa, nisto ningum creria. as, era um $ato, resistiagalhardamente. Apenas tr4s ve#es ao dia chuchurreava o chimarro, e quase sempre na mesma posi1o, de

    c0coras.

    a hora do crep2sculo que se punha a contemplar o cen"rio esplendoroso. Ento pre$eria o pito. *ito de bambuEm espirais, a $edorenta $uma1a e os pensamentos subiam para o in$inito. 5uando $altava o $umo de corda,cachimbava $olhas secas de ervas silvestres, apesar de os roceiros lhe tra#erem a preciosidade. Arrimavase aobordo e perdia os olhos tristes no panorama, logo ap0s as horas que passava de 'oelhos. Entoava baixinho umhino decorado como se $ora acompanhado por coro de an'inhos. essa ocasio, nascia no hori#onte umatrepadeira de estrelas que se espalhava na amplido, iluminandoa.

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    Ele vivia noutro mundo, no mundo das $antasias. 6uscava esquecer a si pr0prio. 7ese'ava a pa#, sua barba brancdes$radada no rosto era uma bandeira de pa#. 8mpossvel desvendarlhe o passado, melhor aceitar o que deledi#iam9

    + :oo aria um enviado do cu.

    + onge-

    Embora velhinho, ainda alvorecia em seus olhos a#uis, em suas barbas alvssimas. Enclausurarase na montanhaindignado com a maldade humana, cheio de decep1;es e desenganos. !" se libertara dos sentimentos egosticos,pensando em desligarse das coisas materiais e perder o apego a tudo que 'ulgava mal terreno. em dinheiro, nempropriedade, nem ambi1o, vaidade, ou orgulho. Achava necess"ria tal inicia1o para seguir o destino. 3 nome dregistro civil, no importa. acionalidade, nenhuma. Estava acima das conven1;es sociais, ainda que se intitulasmonarquista. Sabiase um pro$eta, um mission"rio divino9

    + onge.

    + 8nh( :esus- + exclamava o aldeo, 'oelhos no cho.

    Se indagavam de sua vida, curiosidade pecaminosa, obtinhamlhe a resposta9

    + Sou um homem como voc4s, estou cumprindo uma senten1a.

    A atoarda corrente nas vilas $lorescentes dos Campos

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    esses instantes de ang2stia, come1avam os seus padecimentos.

    *itando e meditando aguardava a chegada das sombras. Era como se um morcego in$inito tivesse $echado as asassinistras sobre o mundo trans$ormado em descomunal sepulcro. a caverna, $urna escura, ele, :oo aria, mongdo *aran", so$ria delirando, acordado ou em sono let"rgico. A cigarra silenciava cedo, com a passarada. 5uandoa saparada coaxava a can1o de ninar, o enxame de grilos tocava $lautas com pontas nos ouvidos. as isso erainsigni$icante como o uivo do noitib0, o crocitar pressago da coru'a, o #umbido do mosquito sequioso de sangue, rudo de todos os insetos e aves noturnas.

    As velas que via coruscantes no ar no passavam de pirilampos, olhos de duendes que o $itavam eram astros davial"ctea, do candelabro de estrelas pendentes do cu. 7i$cil saber se tinha as vistas $echadas ou esbugalhadas,se mergulhado num sono m0rbido ou em $ebril viglia. Ento lutava contra as tenta1;es, insinuantes imagens demulher, expulsandoas da mente. a grota desolada, urros de $antasmas ecoavam ricocheteando nas pedras, de$antasmas que surgiam em vagas. Bultos hediondos explodiam em gargalhadas e $ascas, iluminados porlabaredas. %m alarido de impreca1;es e #ombaria ensurdeciao. Entrementes, o $rio lhe cortava as carnes,penetravalhe a alma.

    Santo do povo, parecia existir por milagre. Finalmente vitoriarase na luta contra os dem(nios e o seu eupregresso. 7epois de paciente escava1o na consci4ncia, soterrara os nomes e as lembran1as do passado. Certa

    noite, ap0s longa medita1o sobre os textos do Evangelho, teve um sonho que sempre con$undiu com a realidade.7isselhe um an'o, radiante de lu#9

    + B", :oo aria. Caminhe pelo mundo e cumpra sua misso sagrada. @ preciso salvar a humanidade pecadora

    :" havia decidido chamarse :oo aria de Agostinho. :oo em louvor a so :oo 6atista, aria & virgem ariae Agostinho a santo Agostinho. Seria tr4s ve#es santo.

    h( )risto, caboclo aben1oado, a'udouo com a mudan1a, a descer a serra. Embora a gruta se tornasse sagradae atrasse mais gente que a igre'a, $rei Silvrio exultou e abra1ou muito picapau.

    Foi assim, de um dia para outro, que Anastas arca$ con$undido como monge da !apa se tornou eremita. o $imdo sculo de#enove e no limiar do sculo vinte, vagava pelos caminhos agrestes dos estados sulinos, assombrandoas popula1;es, vulto bblico, verso matuta, um pro$eta medieval em meio sertane'o.

    uns e noutros lugares o identi$icavam9

    + onge :oo aria.

    + Frei :oo aria de Agostinho.

    + :oo aria de :esus.

    + 6om :esus.

    E explicavam boquiabertos9

    + Bem salvar os seus povos-

    *eregrinava especado ao ca'ado. o bornal a tiracolo, ora1;es, curas, promessas e esperan1as. 7o cinto de courcru pendiam a marmita de $olha ordin"ria, guampa, cuia e uma bomba de prata. Entre algumas preces quedistribua, todas miraculosas, destacavamse a >do Santo Sepulcro>, a >do osso :ui# Eterno>, e a >do 6ode6ranco>.

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    Era bom e castigava os maus.

    Frei Silvrio, p"roco noutras plagas, no queria bati#ar uma crian1a por ser a me uma pauprrima vi2va que npodia pagar o o$cio. :oo aria deu & in$eli# uma nota de cinco mil ris para entregar a $rei Silvrio e este, ap0so sacramento, viu desaparecer o dinheiro da palma da mo...

    )endo passado tambm em So *aulo, ato

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    unca $ora picado por serpentes ou colhido pelo 'aguar manhoso. Ao pressentir o perigo, punha o cruci$ixo entreas mos e repetia tr4s ve#es9 >so 6ento, so 6ento, me livre desse bicho pe1onhento>.

    arrecas, cru#ada pelos cargueiros carregados de sal, a12car do dia, rapadura, cana e $rutas/ arrecas, onde abesta da ponta chegava batendo gui#os e campainhas presos & coleira, e alteando na cangalha uma $lDmulabranca de pa#/ arrecas era um pouso tranqilo e certeiro dos arrieiros dos Campos

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    e derem $ruto, $ora da terra, iro cada ve# mais minguando, at no poder subsistir aos climas que setrans$ormaro em toda parte. *rocurai, ento, outros que possam substituir. 7estes, eu vos aconselho as batatas eos tubrculos. aver" tempos, no muito longe, em que s0 estas plantas sero alimentos para o homem...

    -as os bichos *elo menos haver" carne... E vanc4 di# que no se deve comer carne

    + Assim ser", porque nesses tempos o homem deixar" de ser material para se deixar guiar pela vo# da alma, eespritos l2cidos percebero que a carne lhes $a# mal e hostili#a o esprito. Ento, reconhecer" os outros homens

    como irmos...

    a manh seguinte, levaramlhe muitos presentes, mas :oo aria s0 aceitou leite, quei'o, manteiga, ovos,hortali1as, mate e $umo.

    $iis aumentava a cada instante. Fa#ia uma in$inidade de compadres, sacramentando casamentos, bati#ando osa$ilhados. 5uando se dispunham a seguilo, ento :oo aria desaparecia.

    Amava a solido.

    3s mpios e os escarnecedores talve# no acreditem, talve# no acreditassem, mas :oo aria antevira

    acontecimentos importantes. Anunciara a queda do 8mprio. as abominava a trai1o dos ministrios, di#endoque os >bons tempos do imprio> sempre seriam relembrados depois que os militares implantassem o >governo dodiabo>. E acrescentava9 + 7urante seis anos vo rebentar as bombas.

    os arredores de

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    + A comida ser" mel para todas as abelhas, os tatus tero uma grande toca, os passarinhos voaro das gaiolas eos homens vivero como as $ormigas. 7eixai cantar as cigarras.

    A *onta

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    %m curiboca, ao aproximarse e expondo terrvel 2lcera no peito, suplicou9

    + Si( :oo aria, a $erida brava me mata de tanto que r0i as carnes do peito.

    A vida do tare$eiro de ervamate uma vida de trabalho, so$rimentos e misria. o conhece outro regime que no de cativeiro. 7urante o corte de ca" os $ac;es abrem picadas e podam os arbustos. 5uem inventou o chimarro$oi o solit"rio ndio :aguaret4. Expulso da tribo por causa de um amor impossvel e in$eli#, viveu segregado muitoanos, com uma sa2de de $erro, gra1as & erva maldita. os cale'adas e de$ormadas pelas murras que a

    produ#em. esti1os andra'osos en$rentam a $loresta trai1oeira, o bote das $eras, a picada venenosa das serpenteso ataque dos insetos, caminhando sobre $eridas. Fei1;es co#idas pelo sol causticante espelham toda sorte depriva1;es. Fisionomias de cobre. os bra1os e nas pernas as chagas late'am ao resvalar dos trapos. 5uando dasapeca das $olhas no barbaqu" e no cari'o, queimase a pele, em $ogo o corpo inteiro. Bergando ao peso de $ardosenormes que carrega nas costas, presos & cabe1a por tiras de couro que rasgam e sangram a $ronte, o tare$eirovive pior que um escravo.

    Era uma 2lcera de 6auru. Compadecido, :oo aria receitou9

    + )odo dia de manh, lave com arnica e soque erva de santa aria, e tenha muita $ em 7eus...

    %m monge so$ria com os so$rimentos alheios. Seguia a lei que consistia em duas palavras9 caridade e$raternidade. Eis tudo que receitou nessa ocasio, como remdio9 banhos de samambaia, tr4s cip0s, capim papusumo de arnica e assapeixe/ vinho de bra2na/ sangue de bicuba/ ch" de marapuama, pacov", crista de galo ecidreira.

    Ele era to humano como o mais humano de todos os 'ecas. Sentia na carne as dores do pr0ximo. Santo deverdade, santo do povo, sua igre'a, a casa verde.

    onge.

    o $undo do serto, ap0s exorci#ar e despachar os medicamentos, teve um aviso do Alto e preveniu9

    + Boc4s re#em muito e $a1am atos de compun1o, porque vai haver um grande desastre nas maretas.

    Atreladas as toras de pinho e de cedro ao cingel, os via'ores se $oram, murmurando preces, ben#endose,caminhando pelo vale, ao lado das cangas. Chegando ao porto do rio %ruguai, 'ungiram as toras com cip0 earame, construindo com elas enormes 'angadas, as quais prenderam &s marombas, & espera da cheia. o tardoumuito, '" se comentava na pequenina aldeia, sede de contrabando9

    + 3 rio t" em ponto de balsa.

    a hora da partida, as mulheres choravam de susto e saudade, ensurdecidas pelo viv0rio e pelos estampidos das

    armas de $ogo. omens de ps descal1os e peitos descobertos marcavam com as remadas a cad4ncia da viagem,cuidando a carga levada pela torrente. As mulheres da aldeia pensavam no perigo das corredeiras trai1oeiras. Acorrente ia aumentando pouco a pouco, at disparar a toda brida. Cada ve# mais se avolumava o imponente rio,engrossando com as "guas barrentas dos a$luentes. as proximidades das ilhas, onde as lontras devoram peixessossegadamente, era mais "rdua a viagem porque as embarca1;es abalroavam nos escolhos.

    ?umo & Argentina.

    o $ora o destemor e a destre#a do imp"vido matuto, '" teria havido so1obramento. A $riagem suportada & custade trabalho e cacha1a penetrava o peito. *ara se orientar, o balseiro gritava e auscultava a b2ssola do eco.

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    7ormindo ou cochilando ao relento, os homens se reve#avam nos remos e #ingas. ?oupas em tiras secavamestendidas nos arames, enquanto co#inhava o $ei'o preto na panela de $olha, pendurada sobre o braseiro doimprovisado $ogo. *erigo que surgia de solapa era o da curva mais estreita, quando mos criminosas $echavam tra'eto com basculhos de arbustos, armando ciladas. 7a margem as espingardas abriam mort$ero $ogo. Era oassalto.

    + 3s ca1adores de vigas- + exclamava o matuto que recebia a primeira chumbada.

    Ento se travava a batalha pela posse da madeira e no raro os piratas do mato acabavam recolhendo a carga quvendiam no porto argentino.

    Fora um dos $atos pelos quais :oo aria recomendara tanto, criam os humildes balseiros. %ma semana inteirade trabalho, luta e apreens;es e, por $im, alguns tudo perdiam, at a pr0pria vida.

    o dorso mais largo do rio, a bulha das "guas tumultuosas e o ribombar da cascata aba$avam os berros9

    + 3 salto grande-

    + 3 salto grande-

    Enormes ondas se atiravam do leito turbulento, de encontro &s balsas. Como relDmpago, na mem0ria de cada um:oo aria se $a#ia ouvir9

    + Boc4s re#em muito e $a1am atos de compun1o porque vai haver um grande desastre nas maretas-

    Calmos e destros, os camaradas contornavamnas com auxilio dos vare';es, evitando a custo a morte certa, oabalroamento, levando a embarca1o para a margem alagada gra1as & enchente. as, naquela ve#, uma 'angadacom seis homens a bordo $ora arro'ada pelas vagas em $2ria, des$a#endose violentamente. E a viagem quecome1ara como uma procisso acabou como um $uneral. ?eali#arase a terrvel pro$ecia9

    + Bai haver um grande desastre nas maretas-

    :oo aria acordavase antes do dia. Acendia o $ogo, enchia a cuia de mate e despe'ava "gua quente na guampa7uma $eita, teve a aten1o despertada por lindo passarinho de asas a#uis e crista vermelha, o qual trinava no2ltimo ramo, no cimo de uma gabiroba, como um tenor cantando num trap#io. 3 mestre. o palco da galharada,todo o bando ouvia atento como os musicistas de orquestra que esperam e observam a batuta do regente. 5uandoaquele calou o biquinho, todos romperam num terno e suave gor'eio, num coro or$e(nico de passarinhos. o teatrda casa verde, no teatro do caboclo, :oo aria assistia & dan1a dos tangar"s. Cessou o chilreio, houve um r"pidintervalo e as ave#inhas, peda1os pequenos do cu, al1aramse em saltinhos de duas em duas no mais graciosobal, marcando a cad4ncia do toque das violas sertane'as. 7epois recome1ou o gor'eio e o mestre se exibiu comtodo vigor de sua arte, de galho em galho, dan1ando os passos simples de tangar", enquanto o corpo de baile

    participava da $esta cantando, batendo as asas, voando uns por de cima dos outros numa parada de alegria pelavida. Como se estivesse preso a um ramo do arbusto mais pr0ximo, como uma 'abuticaba, um chupim admirava on2mero, emudecido como quem ouve uirapuru, enquanto outro p"ssaro di#ia9

    + 6emtevi- 6emtevi-

    :oo aria pensou9

    + 3s $ilhos do Chico Santos-

    Sim. 3 desventurado Chico Santos, temente a 7eus, advertira os $ilhos9

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    + o presta viver s0 pensando em namorar, s0 $estando, pulando como saciperer4, sem ter o menor respeito pequaresma e os dias santi$icados.

    as os marotos no lhe davam ouvidos, voltavamlhe as costas, gostavam do $andango. Eram sete irmos e o mavelho bati#ou o mais novo, para este no virar lobisomem. uito honestos e trabalhadores. *orm, $icavampossudos ao saberem de $esta. Fosse o dia que $osse, no $altavam ao bailarico. Ao chegar uma quaresma, noouviram os conselhos dos mais velhos, em cega desobedi4ncia. Foliaram at na semana santa, na pr0pria sexta$eira da paixo.

    3 que aconteceu, quem que no sabe Caram de cama, os sete com bexiga e, pobre do Chico Santos, um a umiam morrendo e se trans$ormando em passarinho. etamor$osearamse em tangar"s os meninos travessos .

    A misria humana contrastava com a magni$ic4ncia da nature#a e com espet"culos como aquele. %ma dessascaravanas que percorriam os sert;es, penando e esmolando, desgra1ados a $ugirem do mundo e de si pr0prios,chegou ao ascetrio de :oo aria. %ns vinham a p, outros a cavalo. A maioria dos homens tra#ia as trouxas,enquanto as mulheres arrastavam e carregavam crian1as seminuas. Exaustos, desconsolados. o entravam nasvilas e povoados, recebiam esmolas dadas com medo, de longe, tratados como uma rcua de criminosos ou maltade ces raivosos. 7oamlhes apenas o pavor e a incompreenso dos outros. 6em que pre$eriam a $loresta bruta, omel das colmeias, as ervas do campo, os $rutos das "rvores, o acampamento & beira da "gua lmpida, corrente.

    %ma leva de mor$ticos.

    Somente :oo aria, um monge, para lhes compreender os dissabores, a pen2ria, o desespero, a molstia. Em pde$ronte ao cru#eiro, encora'avaos, auxiliavaos a suportarem o destino.

    + 5ue importa a $erida, a n0doa do corpo eus $ilhos, o que vale a pure#a da alma. 3 mundo um vale del"grimas onde cumprimos uma prova1o. @ preciso ser $orte e aceitar com resigna1o aquilo que vem do Alto.7eus nunca se esquece dos $ilhos amados.

    ?eceberaos sentado, de pernas cru#adas, convidando os mais velhos para $ormarem a roda do chimarro. Fe#compadres entre eles. Com paci4ncia e bondade, sem achar resposta, tranqili#ou um 'ovem vacilante que lhe

    perguntou qual o mal que $i#era ele, aquelas mes, aquelas crian1as, para merecerem tal castigo, e que 7eus eraesse que permitia tanta desgra1a na $ace da terra.

    Ap0s os curativos e ben#eduras, :oo aria mandou que re#assem em 'e'um e com o rosto voltado para o norte.Com auxlio de uma pedra, moeu $olhas de samambaia, 'untou ao p0 alguma gordura e disse9

    + @ pomada para as $eridas.

    essa ocasio, redigiu a 3ra1o de So !"#aro, que todos repetiram genu$lexos.GHI

    Daqueles que no faziam parte da caravana, somente atendera a um pecador arrependido, ao qual dissera em tom

    imperativo:

    Eu lhe perdo os pecados, mas tem que rezar cinqenta ave-marias e cinqenta padre-nossos, sem tirar a boca dcho.

    mar! de pros!litos crescia e "oo #aria sur$ia em diversos s%tios, ao mesmo tempo. Estava em toda parte. casverde era pequena para ele. &inha na palminha da mo as matas com seus se$redos e mist!rios. Dominava-as.

    s roupas pu%das acabavam-se no seu corpo de vara, franzino. &ra'ava-se mal como palmito. Entre os olhinhosazuis, melanc(licos, o nariz adunco se destacava no meio das barbas ca%das sobre a carcomida manta que lheenvolvia o pesco)o. &ornava-o e*(tico um $orrinho felpudo feito com couro de 'a$uatirica, com o qual cobria a

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    cabe)a encanecida. +om o palet( de brim riscado, curto sobre o colete, apertado como espartilho e a prender-lhe omovimentos, trazia um rosrio, cu'as contas afirmava serem as l$rimas de ossa /enhora. 0 cinto mal serviapara pendurar a tarecada, pois as cal)as ca%das, de fundilhos rotos, dei*avam 1s esc2ncaras a ceroula, e o pr(priose*o aparecia. +erta vez, uma velha beata e*clamara estupefata:

    unca vi um santo com as ver$onhas de fora3

    4io e$ro e #afra, cidades *ip(fa$as, li$adas por uma ponte, aquela paranaense, esta barri$a-verde, viviam 1s

    voltas com enorme cruz que se transportava a si pr(pria, a santa cruz de #afra. 5uando no eri$ia uma, "oo #aria desenhava, mandando reproduzi-la.678

    os diversos lu$ares onde fazia apari)o, as popula)9es levantavam dinheiro e constru%am capelas nas quais ardemvelas noite e dia, pa$ando promessas, ao lado de pilhas de muletas. 0 curandeirismo tomou $rande incremento.oram difundidos seus m!todos, suas prticas, suas receitas, seus rem!dios, suas simpatias, suas benzeduras. ;ouc$ente no sabia que sarro de pito ! bom para bicho de p!, inflama)9es e mordedura de cobra. /e bem que, nestecaso, ele mandava meter o p! na terra molhada e tomar seis $oles de limo. ;roduzia tais prod%$ios, to afamado,que at! um perna-de-pau correra ao seu encontro na 2nsia de recuperar o membro que fora decepado na $uerra do;ara$uai.

    /( casti$ava os maus. ;elas bandas de

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    icou para quem voc= disse que ia levar...

    ?ma anci paral%tica, carola como s( ela, no tinha f! nos mila$res do profeta. 0 marido, que pensavadiferentemente, su$eriu uma consulta a "oo #aria e isto a fez matraquear:

    /( diz besta$es, diacho3 um sabe que s( padre pode rez missa, que tem representa)o de Deus na terraA Elecura nada3 Ele cura uma banana3 ?ma banana3

    0 humilde campon=s foi consult-lo sozinho, sobre a enfermidade da esposa. "oo #aria tirou uma banana do bolse lhe ordenou:

    Di$a a sua mulher que batina esconde rabo de macaco, que corvo voa sem ser an'o. Ela est de cama pra mordos pecados. Di$a pra comer esta banana, que ela sara.

    4ealmente, depois de saborear a fruta, a paral%tica sentiu melhoras, levantou, andou e se tornou uma crentefervorosa.

    Bou lhe contar um causo... ssim come)avam as narrativas.

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    Eu nasci no mar, criei-me em Cuenos ires e faz onze anos que tive um sonho de que eu devia caminhar pelomundo durante quatorze anos, sem comer carne nas quartas e se*tas-feiras e nem pousar na casa de nin$u!m.

    ?m 'usto no o teria feito passar por ma)om, por here$e, por protestante, no o dei*aria desautorizado perante tant$ente, ridicularizado, detestado, como fizera "oo #aria. o se conformava o louro capuchinho.

    o havia peo ou a$re$ado que i$norasse do sermo o trecho mais conhecido e repetido: H crime viver 'untandodinheiro a dinheiro, terras a terras, viver 1 custa dos que trabalhamG a lei de rei foi escrita no c!u e ! a lei de Deus

    in$u!m sabe o que aconteceu a "oo #aria, por!m ! viso constante sempre presente na mem(ria do povo,venerada saudade, fabulosa persona$em dos sonhos dos mo)os e das donzelas ardorosas.

    #on$e3

    +ora)o por cora)o, conquistara a casa verde. &amb!m nas bandas do oeste catarinense continuava a ditar ordensaos crentes, sempre vislumbrado pelos mais inocentes. l$uns velhos caboclos, antes a$re$ados, tornavam-seandarilhos, dando ori$em aos boatos dos falsos mon$es. #as "oo #aria era o ar e a vida, a esperan)a dosoprimidos. in$u!m lhe arrebataria a coroa de cip( e urzes. a resid=ncia do abastado ou na tosca choupana, asiniciais de seu nome, ". #. ., $ravadas a fo$o, encimavam nas portas o si$no de /alomo. /empre invocado com

    devo)o, o seu retrato constitu%a rel%quia sa$rada.

    /anto do povo, transformara-se em s%mbolo e lenda. os topes dos morros, as cruzes que arvorara so os seusbra)os abertos para os sofredores. os pousos, 1 beira das vertentes, olhos d$ua, as velas ardem indefinidamentecomo s(is no infinito.

    ?m dia vaticinara:

    #eu tmulo ser cavado pelos %ndios, no cerro do &ai(.

    Disto nin$u!m se recorda, porque santo no morre. &alvez tivesse ca%do vitima de febre, talvez tivesse sido

    apanhado por uma fera, talvez tivesse sumido no bico dos corvos, mas estes so os pensamentos dos sacr%le$os./anto no morre.

    pesar disso, no 'ornal 4epblica, (r$o do ;artido 4epublicano ;aranaense, edi)o de 7I de setembro de JKJ7na terceira p$ina, estampada a foto$rafia de um esmoler, havia um arti$o:

    profeta que morre...

    0 mon$e "oo #aria passou desta para melhor.

    E assim conclu%a-se a not%cia:

    ;or muitos anos h de perdurar ali a tradi)o dessa fi$ura venervel de ap(stolo, lon$os cabelos e barbas prateadaa emoldurarem um rosto velho, mas de e*presso ainda viva, fisionomia de faquir a sur$ir a todas as portas, avisitar todos os lares.

    /anto no morre3 "oo #aria continua prote$endo a fam%lia da casa verde: $uiado pelo bordo inseparvel, eleva$ueia pelas veredas da hist(ria.

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    Livro II

    Captulo I

    Cituruna ! o territ(rio das c!lebres #iss9es, conquistado pelas bandeirasG ! a terra que os cain$an$ues dominaramCituruna era o nome de um monte, mas al$um %ndio o estendeu 1 re$io.

    Cituruna ! a ptria abra)ada amorosamente pelos rios F$ua)u e ?ru$uai. Estes rios no passavam de bandosl%quidos de revoltos $uerrilheiros, en$rossados pelos afluentes, levando a cabo o cerco de florestas, campos,serranias, avan)ando de ro'o sobre um formidvel e*!rcito de pinheiros.

    Cituruna ! uma bra)ada do tamanho de inmeros pa%ses da Europa, por)o deste Crasil, a qual se chamou+ontestado porque foi disputada pela r$entina e foi questo de fronteiras entre o ;aran e /anta +atarina.

    s linhas da palma da mo do Cituruna se constituem de rasos riachos atravessados a vau e de caminhos abertos acasco de mula. +ontavam-se nos dedos as estradas carro)veis. ;or muito tempo a mquina fora viva, tinha pata eno apitava. Era o cavalo. #as a estrada de ferro acabou penetrando-o, ras$ando-o, por motivos de estrat!$iamilitar. ;artia da cidade de ;orto ?nio da Bit(ria, ho'e bipartida entre os dois Estados lim%trofes. 0riundos do 4i/o ;aulo, /antos e 4ecife, milhares de operrios trabalharam nas obras da 4ede, atra%dos com promessas deelevados salrios. #oravam em tendas que comparavam aos cochicholos de ces, e onde $rassavam epidemias efome. /uas $reves se transformaram em motins e houve muito san$ue derramado. +ada cidade, no entanto,celebrava contente a sibilante che$ada do trem, nele saudando o pro$resso. #arcou !poca, por e*emplo, a festa de;orto ?nio da Bit(ria, quando da inau$ura)o da ponte sobre o F$ua)u. aquele 7L de novembro de JKML, todo opovo celebrou o acontecimento. 0 hotel #atoso, enorme sobrado de madeira, re$ur$itava de visitantes. famosaCanda #usical, da cidade de ;onta

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    felicidades. #as o truste procurava lucros 1 custa do trabalho do povo. E, apesar disso tudo, estava bom o mercadodo boi.

    #as o trem ! uma necessidade. 0 Cituruna, entrecortado de riachos e fundas picadas, al$umas estradas carro)veiinvadido por tropas de montanhas, vasta casa verde, como um mon$e, se$re$ara-se do mundo. enhum e*!rcito oinvadiria impunemente. natureza o fortificara, minando todos os caminhos com pedras, al$ares, barro, san$as eloda)aisG constru%ra muralhas com as serras e armadilhas com itaimb!sG dispusera imensas le$i9es de pinheirosdefendendo as campinas e adestrara a matariaG munira-o de feras, serpentes e insetos.

    o transporte de mercadorias como sal, p(lvora, chumbo, querosene, a$uardente e tantas outras, o car$ueiro demulas $astava dias e noites. boiada que partia para as cidades litor2neas che$ava estropiada, ap(s o estouro 1beira dos peraus.

    &alvez o trem viesse resolver muitos problemas. 5uem sabe se o lavrador encontraria para quem vender o queplantasse e no visse cereal apodrecendo ou no desse fei'o aos porcos no mais semearia para o pr(priosustento.

    /( no faltou dinheiro para a $rande festa da inau$ura)o de /o /ebastio das ;erdizes, a cidade mandadaconstruir sob os ausp%cios de 4ocha lves, o mais %ntimo ami$o de "oo #aria. o houve quem no colaborasse

    para o =*ito da campanha.

    unca se viu tanta boa vontade, sobraram ddivas e prendas. #on$e no era, por!m 4ocha lves dava bonsconselhos, benzia e receitava. azendeiro, mas um simpl(rio, um 'eca-tatu de botas e esporas, cora)o de pobre.?m l%der, um chefe espiritual. pesar do ar en!r$ico de patro, se confundia com a peonada. 0 seu mundo, como ode todos os proprietrios daquelas bandas, era a sua fazenda, onde vivia como um rei. 0u pr%ncipe sertane'o. Fssoe*plica, em parte, porque fora sempre um ardoroso partidrio da causa monarquista. em podia conceber outraforma de $overno, que no a vi$orante em seus dom%nios. Deus nas alturas e ele c embai*o, cnscio daimport2ncia, mas humilde com os semelhantes. as redondezas, poucos no o tinham como compadre. +ordoentran)ado prendendo o novo chap!u ao quei*o pontia$udo, poncho-pala cor de cinza, armadura de l, bombachasne$ras com bordados dourados e bot9ezinhos de madrep!rola, mudas concertinas de couro nas pernas com

    aquele ar soberbo de caudilho, parecia um pr%ncipe rebelde, belicoso. ora sempre um mara$ato e nunca tolerarapica-paus. "actanciava-se de ser um $rande ami$o de

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    brasileira a tremular festiva. i$re'inha hasteada no tope, os ranchos fincados no cho e cobertos de palha eram asuas estrelas. 0 lema estava escrito no ar, no cho, no c!u, nas faces dos moradores: F$ualdade.

    ora abatida uma boiada para a ruidosa comemora)oG com mos estran$uladoras no pesco)o, al$umas dezenas defran$os rodopiaram e estrebucharamG leit9es e cabritos foram pelados para o fornoG e ainda sobrou dinheiro que fr/ilv!rio levou para o santo...

    De madru$ada, ras$ando a treva, coruscavam os fo$uetes de vara, estourando no ar a nova alvissareira. o tardou

    e, do sol, uma tribo de %ndios $uerreou a terra, atacando-a com flechas de prata. +heinha de coloridas bandeirolasque pareciam borboletas penduradas nos fios, /o /ebastio das ;erdizes nascia ostentosa em seu ber)o de relvas. passarada revoava em bandos, como p!talas de malmequer, punhados de confete 'o$ados pelas mos de folhas dosespinilhos.

    0s campos ' resplandeciam sob o chuvisqueiro solar e, ainda, o chorrilho humano escorria no caminho que vinhada encruzilhada. Enfeitadas de $uizos e pompons, as carro)as saracoteavam de contentamento e s( pararam detremelicar quando os mo)os pularam para fora em al$azarra.

    aquele distante JK de 'aneiro, dia da ma$na comemora)o na casa verde, era o acontecimento mais e*traordinria inau$ura)o de /o /ebastio das ;erdizes.

    5uando frei /ilv!rio apeou do burrico, houve salvas de tiros e inesquec%vel ova)o:

    Biva frei /ilv!rio3

    Biva so "oo #aria, so /ebastio e frei /ilv!rio3

    Biv333...

    E o frade no perdia tempo:

    Biva a Fmaculada +oncei)o e a santa F$re'a +at(lica post(lica 4omana3

    Depois uma procisso percorreu va$arosamente todo o vilare'o, a ima$em de so /ebastio carre$ado num andor 1 frente, frei /ilv!rio a cantar acompanhado pelo coro desacorde:

    Bestida de branco Ela apareceu, trazendo no cinto as cores do c!u.

    ve, ve, ve #aria3

    0u:

    5ueremos Deus

    que ! nosso 4ei,

    queremos Deus

    que ! o nosso ;ai3

    Ento a multido invadiu a ermida onde frei /ilv!rio celebrou a primeira missa da nova cidade. brindo-se decontentamento, parecia um pinho cozido: ponta para bai*o, cabe)a para cima. batina pu%da, descorada. lourade es$uio, com uma cara de quem ! triste ou sofre de amebas, um capuchinho simptico. aquela ocasio, fez um

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    sermo cheio de humildade e sabedoria, pre$ando resi$na)o, combatendo a usura dos ricos e interpretandopassa$ens b%blicas. proveitando a ocasio, contou casos de des$ra)as sucedidas como casti$os divinos a ma)ons protestantes. Cem no fim do discurso, advertiu a assist=ncia contra os falsos mon$es. esse momento, o av trinvezes, o vov Qebinho, do banco em que estava, levantou a voz:

    (s aqui s( adoramos so "oo #aria.

    h3 Este ! o verdadeiro3 e*plicou frei /ilv!rio, aumentando o pr(prio prest%$io.

    Do dia para a noite, tornara-se alvo de admira)o e devo)o, cercado pelos $rupos dispersos na pra)a e ora emconfer=ncia com as beatas e distribuindo santinhos 1s crian)as.

    esse dia de esplendores, pela vez primeira, ntoninho e #aria 4osa se encontraram, se olharam e se $ostaram.Entreabriu-se uma flor da unio dos dois cora)9es: no da menina ficaram as p!talas, os espinhos no do rapaz.

    ntoninho pressentira o acontecimento, ' no momento em que estreava a montaria. Da peonada que labutava nafazenda do velho Elias de #orais, talvez fosse o mais pobre, al!m de mais 'ovem. chara-se o mais rico ao ver-senas ancas do $arrano com $osto arreado, lombilho de cabe)o metlico, peitoril e freio de presilhas, co*inilho ebadana. &inha, como todos, a cara resplendendo confian)a e liberdade. #as um filho de a$re$ado no poderia

    esperar to cedo tamanha felicidade. +aboclote, no era nenhum ton$o: h muito sabia quando vem chuva, vento o$eada. o domin$ueiro, co)ado terninho de brim riscado, assumia ares de import2ncia e atrevimento, com aquelechap!u de boiadeiro, o la)o rubro envolto ao pesco)o, as botas de canos bordados. +om o bem arreado $arrano eseu tra'e de $arnis! se impressionara a si pr(prio como 1 sin$ela e sonhadora #aria 4osa. Dava valor ao quepossu%a: seu pai tivera apenas um matun$o, rabudo e peludo.

    +aboclote, ntoninho se or$ulhava de no ser um miservel. &udo, menos ser miservel. o Cituruna, na casaverde, s( presta quem ! temido, respeitado como homem e como ami$o. > de se prote$er o pobre, o fraco, o irmde cren)a. #iservel ! o covarde, 'anota da cidade, medroso, almofadinhaG miservel ! aquele que no carre$a nocinto de cartucheira um rev(lver de calibre NR, ou a espin$arda a tiracolo, ou o comprido faco de cote'oG miserve! o que no trabalha e acumula riquezas, amealhando terras, enquanto outros labutam e acumulam d%vidas e

    sofrimentos. 0 miservel no sabe domar o burro *ucro, 'o$ar o la)o e, pelos chifres, tombar o $arrote no corro. 0miservel no cr= em so "oo #aria3

    Deus te livre, ( ntoninho. asceste na casa verde, filho da selva, criado no pampa3 Bieste 1 luz no casebre doflanco da montanha. #ontanha que chora com olhos d$ua o cristalino riacho. &eu ber)o foi a $arupa do peti)o. Hna terra o que ! so "or$e na lua: cavaleiro. ro)a e a faina do campo foram a tua escola. Escreveste com a foice oteu nome no cho. H bastante ter por mestre o cavalo, o cavalo que ensina o que ! o mundo, e o mundo ! oCituruna, a casa verde. 5uem te ensinou a acorrilhar o $ado, parar o rodeio, sofrear a manadaG quem ! o teucompanheiro na vi$%lia, na via$emG quem suporta o peso do arado, da carpideira, da carro)aG quem te educou notrabalho e e*ercitou para combateA ma, pois teu $arrano, ( ntoninho. &eu pai, com parte do lar na estrada,homem sem parada, tinha o mon$e no corpo, no se ape$ava a bem terreno, errando pelos ranchinhos alheios e pel

    mundo como as $uas dos rios. Bivia dividindo com os poderosos os frutos do pr(prio trabalho e a essa e*plora)ochamavam empreitada, parceria, arrendamento.

    a fazenda de Elias de #orais, como as outras, a labuta da peonada fora um e*erc%cio de $uerra. $ora o servi)oera de pouca monta. brira-se o m=s de fevereiro e somente em meados de mar)o come)aria a marca)o. sal$a$em requeria pouco tempo, maiores cuidados se faziam necessrios durante a vi$il2ncia e*ercida sobre asvacas e os terneiros. S noite, os bezerros ficavam soltos no curral. a hora em que ntoninho estreara a novamontaria, ' haviam mamado e berrado 1 vontade. Elias de #orais entre$ou-lhe a bandeirola de so "oo, quetremulava na fazenda, naquele momento em que ntoninho se achava 1 frente do $rupo de cavaleiros, pr(*imo aocasaro da sede que dominava os s%tios e a paisa$em mon(tona. o empunhar o mastro, enchera-se de bonsau$rios.

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    camaradas. peando no lar$o da i$re'inha, deu de chofre com #aria 4osa, a cu'as mos passou o estandartesa$rado. um instante ambos estremeceram e ficaram paralisados, os olhos a verse'arem poema de amor.

    Bim buscar a bandeira de so "oo #aria, que 4ocha lves me mandou decidiu-se #aria 4osa.

    a voz, ntoninho ouviu o $or'eio dos pssaros da casa verde, descobriu bosques imensos e dezenas de estrelas nolhinhos $ateados, viu nascer a aurora num sorriso apenas esbo)ado, sentiu o frescor dos arroios e das cachoeirasno ar que a envolvia, enquanto notava a brue$a da noite a escorrer em seus cabelos. 0 'ovem, com #aria 4osa nas

    vistas, era uma crian)a enlevada com uma rosa na mo. chando-a cheinha de mimos, num insi$nificante lapso detempo, associou id!ias e*trava$antes. @embrou-se das florinhas das campinas e da murta carre$adinha de brotos evendo-lhe, os lbios ima$inou-se chupando amorinhas.

    #aria 4osa era um bordado vivo, bonito e sin$elo como esses dos panos de parede, mas estampado na sala de visida casa verde. &inha a beleza simples do vestidinho de chita com desenhos de flores, cinturado pelo la)o de fitas dtr=s dedos de lar$ura, borboleta de asas abertas em suas anquinhas. o peito, um recorte vermelho em forma decora)o. tra%a este mais aten)o do que os brincos dourados e o colar de contas coloridas.

    ntoninho se e*pressou com emo)o, despercebida por #aria 4osa, mas revelada no rosto em que a barbarepontava timidamente sobre os 2n$ulos da boca:

    Boc= leve porque as mos santas foram feitas para servir a Deus.

    #aria 4osa tamb!m sentira o choque. o afastar-se com a bandeirola, sentia dificuldade em caminhar naquelessapatinhos escarlates, de saltinhos. o trope)ou, no torceu o p!, mas se confessou olhando para trs.

    aquelas bandas, a mulher se casa muito cedo e a maternidade come)a na inf2ncia, meninas embalam no bonecamas os filhinhos no colo. #aria 4osa no aprendera nem a ler e escrever, por!m sabia campear o $ado. E abelha,tinha ferro para defender o mel.

    p(s tal encontro, nunca mais se interrompeu a corrente, de cora)o a cora)o. ntoninho, entre vrios

    admiradores, era o felizardo e, bem por isso, odiado 1 primeira vista pelo caboclo Deodato.

    ;itando o palheiro, recostado a um tronco retorcido, nodoso, des$alhado, Deodato espionara-os esma$ado pelocime. &inha um s( confidente, ao qual confiava a pr(pria alma um s( ami$o de todas as horas dif%ceis, umami$o fiel, mudo, frio, vin$ativo, feito de a)o e sedento de san$ue: o faco, enfiado na lon$a bainha de couro,pendendo do cinto. Deodato no possu%a palavras para e*pressar to $randes sentimentos, desencadeados dentro dpeito, no os revelava, sofria calado. /ua tristeza era um pssaro en$aiolado, sem lin$ua$em para voarG seudespeito, uma fera en'aulada a sondar pelas $rades dos olhos, urrando vinditas. 5uando prestava servi)os napropriedade do Eliazinho, pai de #aria 4osa, andava se$uindo a menina como se lhe fora a sombra. #as, para elano passava de um pau-de-bu$re: ela tinha-lhe averso, aler$ia. Duma feita, quando #aria 4osa ordenhava as vacano estbulo, Deodato se declarou:

    #aria 4osa, vanc= se casava com euA

    Ela no respondeu, virou as costas com desd!m e carre$ou o leite para casa. Eliazinho, alertado pela esposa, acabodespedindo o camarada. Cem dissera o capataz:

    #ui! tem tanta como pin$a e pau de porteira. #ec= ! mais teimoso que a mui! do ;edro ;ioio.

    +onta-se que havia um casal muito bri$uento, cu'o marido a rabu$enta esposa *in$ava de ;edro ;iolho. ?m dia,este amea)ou enterr-la viva se continuasse a escarnec=-lo. o cumprir o prometido, a des$ra)ada al)ara os bra)os

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    para fora da cova, esfre$ando as unhas dos pole$ares, chamando-o ;edro ;iolho atrav!s do $esto. &eimosia debu$re, teimosia de Deodato.

    S cata de empre$o, Deodato va$ara de est2ncia em est2ncia, sem paradeiro, como bicho carpinteiro. l$um tempofora arrieiro. as lon$as 'ornadas, conduzindo os muares, sentia 2nsias de atirar-se aos peraus. #as era um homeme no um miservel, tinha 2nimo dos fortes e no se dei*ava vencer em luta que travasse. o pouso dos caminhos,com a saudade por companheira na barraquinha, via a ima$em de #aria 4osa na prata da bomba do chimarro, nolume do faco, no fo$o da bin$a, na fuma)a do palheiro. rran'ara-se, finalmente, numa est2ncia ad'acente, alo'ad

    num $alpozinho distante da sede. a realidade, amava a casa verde e seu teto de estrelas. " possu%a um pin$o,selim e pele$o. /abedor da inau$ura)o de /o /ebastio das ;erdizes, arribou ao novo povoado. +al)a de brim,camisa de al$odo e botinas atestavam sua pobreza. Cem tra'ado, porque a maioria se constitu%a de maltrapilhos.

    aquela hora do encontro entre ntoninho e #aria 4osa, ofe$ante, teve uma tempestade interior e pensou com sefiel faco: um para o outro, dois at! ver e tr=s ! correr. 0uvira o velho "erme, o sbio "erme, dizer que comum homem e uma mo)a, se faz noivado e casamentoG com dois homens e uma barra de saia, se arruma amarra decip( e se faz uma cruz. Ensimesmado, a cara ensolarada sob o chap!u $asto, velando cime e despeito, Deodato satolava nas m$oas da terra por um an'o do c!u. E amor ! nmero par %mpar ! des$ra)a na certa.

    ntoninho e #aria 4osa estiveram novamente 'untos dentro da i$re'inha, um com o outro encantado. /e as ima$en

    dos quadros da pai*o de +risto, pendurados nas paredes, tivessem vida, haveriam de se me*er admiradas quando#aria 4osa o convidou:

    Bamos ver quem reza primeiro dez ave-marias e dez padre-nossosA

    5uem perde pa$a um bei'o3

    0 estalo escutado pelos santos dos oleo$ramas foi abafado pela voz do leiloeiro:

    5uem d mais, quem d mais, quem d maisA3

    5uatro mil-r!is3

    Dou-lhe uma, dou-lhe duas, e dou-lhe...

    +inco mil-r!is3

    5uem d mais, quem d mais, quem d maisA3

    Dou-lhe uma, dou-lhe duas... dou-lhe... tr=s3

    5uem leva o peru ! o coronel.

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    carne estalava suculenta, a$u)ando o apetite com o aroma saboroso, trespassado pelos espetos. @eit9es, cabritos efran$os foram assados em separado pelas mulheres, as quais tamb!m fabricaram vinho, cerve'a com mel de abelhae $arapa de canela.

    5uando o sol estava em p!, como um polvo de fo$o cabe)a no c!u, tentculos na terra , o caramanchoabri$ou os convivas vindos de todos os recantos.

    E caboclo no come churrasco na mesa, de prato e talher. sua mesa tem toalha de campina, seu prato ! a palma d

    mo, seu $arfo ! de cinco dedos. /ob frondoso arbusto, senta no catre dos calcanhares.

    o a'untamento, 1 hora do banquete, destacavam-se os festeiros, o 'uiz, o promotor, o inspetor de quarteiro, frei/ilv!rio e o rbula &avares. Este morava em +anoinhas, muito distante de /o /ebastio das ;erdizes, onde che$aum dia antes da inau$ura)o. &inha certos interesses, li$a)9es com al$uns coron!is catarinenses, mas comun$avacom a cren)a de todos, adepto de so "oo #aria. fama de sua orat(ria corria mundo. De rstica ele$2ncia, umtanto for)ada e pedante, era viv%ssimo e muito loquaz. +asimira 1 moda, vestia um terno escuro, palet( compridode bolsos lar$os, bem abotoado colete e*ibindo a corrente de prata do cebolo, fina camisa listrada e de colarinhoalto. &inha sempre o porte ereto e parecia prestes a ser estran$ulado pela $ravata. 0s sapatos brilhando. Bia'ara acavalo e trou*era o tra'e na ba$a$em. cabe)a de cabelos abundantes, ne$ros como os bi$odes, e contrastando coa cor da pele, dava impresso de ser inclinada para trs. @embrava um alazo fo$oso empinado no cume duma

    colina.

    avozinha 5uerubina, esposa de Qebinho, chamara com voz de badaladas:

    Castiana3 idoca3 ermina3 /e apinchem pra ponhar a b(ia3

    fora o churrasco, foi servido em caldeir9es, ca)arolas e ti$elas o assado de porco, cabrito e fran$o. Depois dacomilan)a, a discurseira. &avares soer$ueu-se sobre a cadeira de palha e, abrindo os bra)os em forma de cruz,levando uma das mos ao peito, come)ou a ora)o:

    E*celent%ssimo 'uiz de direito, e*celent%ssimo promotor pblico, reverend%ssimo virtuos%ssimo padre /ilv!rio,

    meus senhores, minhas senhoras. 5uis o destino implacvel que fosse o mais hum%limo servo de Deus, criador doc!u e da terra, o escolhido para diri$ir-vos a palavra neste momento da mais alta si$nifica)o c%vico-reli$iosa. +oma voz embar$ada pela emo)o, o cora)o a transbordar de ale$rias, no sei como cumprir a sa$rada misso a mimconfiada com tanta honraria desmerecida, se no me socorrer a Divina ;rovid=ncia, se no $uiar meus passos nestcaminhada sacrossanta o nosso santo padroeiro so /ebastio, se no me estender a sua mo mila$rosa so "oo#aria de $ostinho. altam-me as palavras, ho'e mais do que nunca, e um misto de ale$ria e tristeza, de dor eprazer, me invade a alma ao diri$ir a este povo cat(lico e $eneroso que habita o +ontestado, o verdadeiro Eldoradodo mundo de amanh, f!rtil +ana, or$ulho de /anta +atarina e qui) na $randeza do Crasil. +om a alma em prante $enufle*a venho, em primeiro lu$ar, render a minha sincera e comovida homena$em a esse intr!pido e denodadotrabalhador das causas 'ustas: D. #anoel lves de ssun)o 4ocha, o nosso mui estimado 4ocha lves3 Deus, quest no c!u, v= e cobre de b=n)os sua obra imperec%vel. 5ue so /ebastio nos livre da fome, da peste e da $uerra

    +urvo-me submisso a seus p!s, ante a fi$ura impoluta, carter sem 'a)a, padro de di$nidade e honestidade.@evantar uma cidade santa, edificar um templo, ! trabalhar por esta ptria amada, heran)a de D. ;edro F e D. ;edroFF, embora tenha vin$ado o $overno republicano. H dar consolo e al%vio 1s almas torturadas e, ipso facto, ! ver aesperan)a, ser reanimado pela f!, fortalecido pela confian)a, ! ver que o c!u escuta as suas preces e atender todasas suas splicas. capacidade realizadora do povo catarinense ao construir esta cidade santa, pr(spera e bela, ! umprova insofismvel de que o +ontestado deve pertencer 'uris et 'ure ao Estado de /anta +atarina. Desta solu)odepende a ordem e a tranqilidade. o quero citar os nomes dos +amar$os, dos #arcondes, dos ra'os, dos;aulas, dos

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    Deus e ao bom "esus, unirmos nossas vozes num brado un%ssono, que h de ser: E*ecu)o da senten)a ou morte5ue Deus acompanhe 4ocha lves3 5ue Deus ben)oe /o /ebastio das ;erdizes3

    /alvas de tiros para o ar anunciaram o fim do bel%ssimo discurso.

    &avares suava como dia chuvoso, passava o len)o no rosto, e era felicitado, abra)ado.

    /u'eito de per$aminho3 diziam os caipiras, com admira)o.

    um ambiente de incontidas satisfa)9es, horas prazerosas, festeiros e convivas devoraram a carne, o po, a saladaa farinha e abundante bebida. Depois o banquete se repetiu, com a vez das mulheres e das crian)as.

    Entretempo, l fora, os camponeses pobres, a maior parte esfarrapados, fincavam os espetos no cho sombreadopela cabana ou pelo arvoredo, a$achados, fazendo 2n$ulos com as pernas, curvo o espinha)o, 'oelhos em riste. +oo faco na destra, se lambuzavam sem cerimnias. ;!s-rapados, p!s-no-cho, pelados, como lhes chamavam osprepotentes, porque no possu%am terra, nem haveres, nem roupas. +onstitu%am a maioria presente, pois assim era povo do riqu%ssimo Cituruna, da ma'estosa casa verde.

    &amb!m l fora a conversa rodopiava e se elevava num remoinho de sons, com o capeta a fu$ir apavorado com

    tanta reli$iosidade. E fora o demo que escrevera pela mo do diretor do semanrio #iss9es, editado em ?nio daBit(ria, que a mquina de ferro ! a civiliza)o em marcha e s( vem beneficiar a humanidade.

    @ fora, o ini$ualvel "erme, o "erme sem vint!m, e que tantos ami$os tem, o "erme que todos querem bem, obondoso "erme, viva ima$em dos caipiras mais sbios e e*perimentados, mais desconfiados, um velho campon=sde p!s espalmados e lar$os como os de pato, um chefe pelado, adivinho, curandeiro, respeitado orculo, pre$ava:

    T +iviliza)o, nada3 /( des$raceia o mundo. 5uando no tinha disso, tudo vivia bem e era tempo de rei. ?m homeera home de verdade e honrava a barba da cara. in$u!m li$a pra perdi)o das fam%lia. um querem que os filhosrespeitem os pais e os mais v!ios, querem roubar as mui! dos outros e ter amantes. in$u!m mais se educa napalavra de Deus e faz o sinal da cruz. os bos tempos do imp!rio se respeitava a lei de +risto e os direitos de

    posse. in$u!m tomava as ro)as dos pobre. lei dos rico ! funil: lar$a pra cima, fina pra bai*o. 0 $overno s( dterras pros miserveis, pras @amber e pras $ente da 0ropa. 0 cumpadre "oo #aria vai aparecer de novo, promessde santo ! contrato selado no cart(rio. #aria 4osa ' viu ele numa encruziada. H perciso pr um fim nesseparadeiro3

    ;elado, "erme era como os bu$res, como os desocupados, como os a$re$ados, como os pobres. +al)a de brimpelas canelas, rota, remendada, marcada pelos temposG camisa estra)alhadaG palet( imundo ras$ado, com o forrodos bolsos e*postos pelas aberturasG e tudo $rosso de su'eira. ;!s no cho.

    ?m dos irmos +olete, o fanfarro de +uritibanos, que parecia antes estar fantasiado do que vestido de cavaleiro,quis contrariar a opinio de "erme, falando bem do trem e mal do $overno de rei. "erme passou-lhe uma

    descompostura:

    ?ai3 #ec= vir maquinistaA #ec= num t na festa do cumpadre "oo #ariaA /er que virou ateu, tamb!mA

    Em seu apoio, todos faziam ponto de interro$a)o com os olhos, com a cabe)a, com o corpo.

    5uando um castelhano quis falar mal do Crasil, afirmando que o pinheiral do Cituruna ia de $ra)a para a r$entin"erme replicou calmamente:

    um faz mal, n(is tomamo tudo isso de vanc=s memo.

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    Em cada a'untamento sempre se destacava um tipo id=ntico a "erme.

    +erto ancio de chap!u de palha, que fora andarilho, descambava a l%n$ua nos coron!is, na pol%cia e nos 'a$un)osdas companhias.

    ;eludos3 uns e*clamavam, com raiva.

    #iserveis3 diziam outros, com desprezo. E*plicava-se que todos os coron!is no eram peludos e miservei

    +itava-se como e*emplo o nome do coronel >enriquinho que, em +uritibanos, dava abri$o aos perse$uidos pelolbuquerque. 0 fato ! que tal desi$na)o no se reservava a fazendeiros como 4ocha lves, Eliazinho dos /antosElias de #orais, lonso, +hico Bentura, ou Qebinho.

    /o homens de cren)a, no t=m riqueza por riqueza diziam deles os camponeses, revelando nos dedinhos deprosa tudo o que pensavam e o estado de esp%rito reinante.

    De barri$a cheia, a sesta acordou com o berreiro do leiloeiro.

    ;ara a tarde, estava pro$ramada uma corrida de cavalos. a chapada mais ampla, fora improvisado o hip(dromo.0u melhor: a raia. a hora da lar$ada, #armelada e uma)a resfole$avam, a e*pectativa do%a nos nervos e inflava

    os peitos do pblico. o havia quem no houvesse apostado, ou dinheiro contra dinheiro, ou ob'eto contra ob'eto

    #anoel, filho do Qebinho, perderia um peti)o para "oo Bieira. ntoninho $anharia um faco. Deodato ficaria sema bin$a.

    +om o cora)o tamb!m a $alope, a assist=ncia a$uardava impaciente o sinal da partida: um tiro para o ar.

    /e$undos antes do estampido, +hico ;itoca $ritou:

    $ora ! que a porca torce o rabo3

    em frei /ilv!rio conse$uia dominar a emo)o: 'o$ara o livro de rezas contra uma promessa de #aria 4osa.

    Da risca ima$inria, as !$uas parelheiras dispararam numa chispa sem bridas, num tropel surdo, a casco derebanho, abafado pela bulha da plat!ia alvoro)ada. 4pidas como raios.

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    um vilare'o celeste. +om estrelinhas coruscantes, hasteada a lua como bandeira, onde est bordada a ima$em de/o "or$e em seu alazo. s palho)as, as palmeiras, o pinheiral, a i$re'inha, tudo um quadro emoldurado pelovassoural, so /ebastio das ;erdizes parecia pincelada pelos astros. +lareavam-na os raios de luz, em floco, comose fossem as barbas de "oo #aria. &inha a$ora o aspecto de pres!pio e, na realidade, era um arraial santo.

    Cru*uleantes lampi9es a querosene, pendurados nas estacas, douravam com fiapos de lante'oulas o salo dofandan$o. 0s mo)os faziam lembrar os filhos do +hico /antos que viraram tan$ars. ale$ria se alastrava como ofo$o no campo. &odo mundo bailava, preto com branco, bu$re com mulato. +aipira que no dan)a, no canta ou

    no ! violeiro, ento s( se for curandeiro. +hique como um carrapicho, ntoninho vivia a noite mais feliz dae*ist=ncia, o que tamb!m sucedia a #aria 4osa, com sua pompa de arara. 0 acordeonista e o rabequista tocavamsempre as mesmas notas musicais, como bonecos de corda. Entre eles sur$iu "erme, soprando a melodia numpeda)o de pente envolto numa folha de laran'eira. ntes de come)ar a tocata, o salo ficava tomado de avan)adasmasculinas e, quando o rabequista encostava o instrumento ao quei*o, se dava o estouro. +ada qual procuravache$ar primeiro 1 preferida. ntoninho estava de olho na banda e em #aria 4osa, cocando-a. icava de perto,sempre disparado 1 frente de Deodato e outros pretendentes. +omo eles, no tinha na mente a id!ia do pecado.Dan)ava por prazer. Bibrava e se concentrava nos passos, no colava o corpo ao par, no proferia uma palavra eche$ava a respirar com dificuldade. &an$ar. Enri'ecia-se, force'ava, se$urava com firmeza a mo da $raciosacompanheirinha, $in$ava o bra)o para cima e para bai*o e, com a outra mo, pu*ava, repu*ava e amarrotava ovestidinho de chita estampada. 0ra marchando, ora dando saltinhos li$eiros, rodopiava e coiceava o cho. 5uando

    *ote alvoro)ava o salo, o bater de p!s levantava poeira.

    rei /ilv!rio no teve medo do inferno e valsou uma moda com a ne$ra Celarmina. 0 'uiz e o promotor seencoru'aram num canto da sala, palestrando com o rbula &avares.

    Cibiano, rapazote travesso e valente, e*cedendo-se na pin$a, ia provocando um chinfrim ao 'o$ar um toco deci$arro 1 mesa onde se encontravam os irmos /ampaio. Qebinho apartou a bri$a, acalmando os e*altados.

    festa foi de arromba, dei*ou muito atrs as de /inhana Cita, em ;orto ?nio da Bit(ria: nunca houve churrascadi$ual, nem em tempos de elei)9es.

    Depois /o /ebastio das ;erdizes ficou deserta. /omente um pelado, um asceta, o "oaquim Certolino, permanecenum ranchinho de palha, a$uardando o "u%zo inal.

    4ocha lves fora o rei, e o povo sua corte. Enquanto no ressur$ia o mon$e, era o chefe espiritual do +ontestado.

    Captulo II

    +oron!is viram contrafeitos as fazendas desertas no dia da festa, permitindo a contra$osto a partida da peonada, dcriada$em.

    o foi e*atamente o que aconteceu na fazenda +huva de ;edra, em que, desde a v!spera, o coronel ;etrnio seachava voluntariamente sozinho. o de todo, mas sem a fam%lia que, h dias, mandara passar uns tempos nacidade.

    /ozinho ! modo de dizer. azia-lhe companhia na sombria manso campestre a serva Dad. Dad, a que pareciame do mundo, a me de todos, a dona dos campos e da mata, a dona de tudo. Empre$ada de estima)o, dessas qu

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    os suseranos querem tanto como aos animais que adulam e chicoteiam. 5ue seria dos filhos pequeninos daquelepatro en!r$ico se lhes no valesse a ne$ra volumosa de olhos e dentes rebrilhantesA Era o Dad me acuda3 e avelha retinta sa%a afundando o soalho ao socorro das crian)as, antes que o rabo de tatu se encharcasse de san$ue ncostas das pobrezinhas. /( ela enfrentava o lobo, 1 toa enfurecido. quele senhor era um demnio que dominavapela viol=ncia e pelo terror. ira faiscava em seus olhos, escorria-lhe no suor, ru$ia-lhe na voz. Dad escorava-opor ser bondosa, embora o temesse. patroa vivia apavorada, no ousava abrir a boca para contrariar a fera, muitavezes proibida at! de chorar uma l$rima, ou de fazer um movimento. Em duas ocasi9es, apenas, pudera e*ibir empblico as sedas, uma no clube, outra no teatro, mas 1 volta pa$ara car%ssimo pelo prazer: a cada palavro, dos qua

    cadela era o menos in'urioso, recebia um potente murro na cabe)a ou no rosto. /em motivo al$um, despertava ocime do soberbo marido. Escrava, apanhava como escrava: escrava por ser mulher. o tinha um esposo, mas umproprietrio, um al$oz.

    Dad era feliz comparada 1 patroa, sentia-se livre, e*primia-se 1 vontade, to simples, to espont2nea,bonacheirona. ssim eram as criadas, e pobres das patroas3

    Dad ficaria cuidando do velho solar de tbuas e telhas $oivas, servindo ao r!$ulo e*i$ente, arrumando e limpandoos cmodos, cozinhando, pondo a mesa e depois iria embora para o seu ranchinho.

    +oncei)o tivera de permanecer na fazenda, pois Dad no podia fazer tudo sozinha e, al!m disso, o coronel

    ;etrnio a incumbira de fazer compras no dia se$uinte. l$u!m teria de ficar atendendo o bruto. inda que esseal$u!m fosse a despercebida +oncei)o, boto de flor da ro)a, +oncei)o (rf de pai e destino, menina lacaia,aquela menina t%mida que che$ara, descal)a e maltrapilha, h menos de um ano 1 +huva de ;edra. me, viva qse vira obri$ada, como tantas outras, a dar os filhos para os ricos criarem, no podia dei*ar de confiar no compadreque lhe batizara a filha na santa F$re'a. ssim o destino da filhinha passou a depender do reputado coronel;etrnio, cu'a honradez, se fosse posta em dvida por al$um audacioso, si$nificaria priso, morte.

    +oncei)o temia-o instintivamente. Bivia amedrontada dentro daquela habita)o maldita. /entia-se desamparada epressentia des$ra)as. Bivia calada ou ento respondia 1s per$untas somente com monoss%labos. Detestava ocasaro, nos cantos do qual procurava evadir-se, escondendo-se, esquivando-se 1s vistas maldosas do coronel;etrnio.

    Desabrochava a mulher, uma menina-mo)a. /empre fu$idia, es$ueirando-se de cabe)a bai*a pelas paredes malcaiadas, procurava ocultar os encantos sob $rosseiros e desa'ustados vestidos, a face $raciosa sob o v!u do medo.5uem a fitasse por um se$undo descobriria um rosto realmente belo, animado por olhos escuros e arre$alados,emoldurado por uma cabeleira ne$ra, des$renhada, a$reste e suavemente envolvente como a mata noturna.

    Dad aprontara a mesa, e +oncei)o 'antara a um canto da cozinha.

    Depois, ' sem as botas e bombachas, o coronel ;etrnio chamou de dentro do quarto:

    +oncei)o3

    ;ronto, padrinho respondeu a afilhada, estremecendo.

    Benha c.

    E a porta do quarto fechou-se atrs da estarrecida menina que, numa noite de terror, numa noite de viol=ncia, numanoite de asco e de (dio tornou-se mulher.

    De manh, +oncei)o sentia-se eno'ada, revoltada, enferma do corpo e do esp%rito, como que morta, como flor quemurcha, enquanto l fora sobre a campina o dia desabrochava com o sol despetalando-se no c!u.

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    ;assados dias, a fam%lia che$ou da cidade. +oncei)o tornou-se mais queda, mais esquiva, sentimentos de (dio evin$an)a crescendo desordenadamente no cora)o. Era ainda uma crian)a para saber como dese'ar o mal. unca oaprendeu, todavia.

    Dad rebelou-se, desconfiada de tudo, que bem conhecia o %ntimo comum desses suseranos. &inha bastantee*peri=ncia e conhecimento do mundo. em se deve falar de sua pr(pria filha atirada aos lupanares mais s(rdidos imundos dos bairros sombrios das cidades $randes. ?m dia, quando ouviu o coronel ;etrnio dizer 1 patroa+oncei)o est ficando mo)a, vou arran'ar um marido para ela, percebeu-lhe a trama. Deodato veio 1 sede da

    +huva de ;edra, apresentado como noivo 1 +oncei)o.

    ;obre da patroa e das crian)as3 unca sofreu tanto. Dad desapareceu da fazenda, levando +oncei)o. 0 coronel;etrnio passara o diabo para trs, de to ruim que ficou.

    Dad foi procurar o dele$ado, o 'uiz e o promotor. &udo em vo.

    H mentira da menina. unca fale para nin$u!m uma coisa dessas. 0 coronel ;etrnio que no saiba, ! umhomem to bom, to honesto, devo a ele a minha autoridade...

    0 'uiz e o promotor fin$iram no acreditar na hist(ria do estupro. in$u!m tinha cora$em de comentar o caso.

    ;or ordem do coronel ;etrnio, Dad acabou pa$ando os insultos na cadeia. +oncei)o ficou 'unto dela durante tr=dias, mas 1 noite pousava noutra cela em companhia do cabo. oi solta sozinha, 'ustamente no primeiro dia em qu$anhou dinheiro para dormir com um homem. in$u!m a queria como empre$ada mal falada, as senhorasolhando-a desconfiadas, com raiva e desd!m, os homens com cobi)a mal dissimulada. ;ouco a pouco, tornara-seftil, faceira, $ostava de conquistar os machos, atraindo-os ao pecado, 1 trai)o, num dese'o patente de vindita.

    5uando voltou 1 +huva de ;edra a mando do coronel ;etrnio, estava disposta a casar-se com um noivo arran'ado1s pressas, livrando da priso a vilipendiada, a mame Dad, a dona dos campos e da mata, a dona de tudo,criadeira dos filhos de amos, obri$ada a cozinhar para os presos e os soldados.

    Bisita dos /antos 4eis

    J.U

    /o che$ados os tr=s reis

    /( da parte do oriente

    Bisitar do Deus menino

    /alve Deus onipotente

    zul e branco pertence ao c!u

    s cinco cha$as do corpo de +risto.

    7.U

    o c!u +risto no pres!pio

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    Dando ao mundo assun)o

    5ue tudo corre dela

    4endendo-lhe adora)o.

    N.U

    cordai vestais dormindo

    0 som da madru$ada

    4eceber os santos reis

    5ue do oriente so che$ado.

    V.U

    % vem o Esp%rito /anto

    Bem o doce refri$!rio

    5ue os nossos males adoce

    Divino Esp%rito /anto

    +onsolai vossos devotos

    5uando deste mundo flor.

    I.U

    &r=s an'os da paz

    Era o sbio mediador

    Eis o emblema da inoc=ncia.

    Eis o fruto do amor

    zul e branco pertence ao c!u

    s cinco cha$as do corpo de +risto.

    6;oesia encontrada no patu de um fantico.8

    Captulo III

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    Em ondas de prosa, espumadas de boatos, as not%cias inundaram o Cituruna.

    4essuscitara "oo #aria de $ostinho3 4eaparecera o mon$e3 /anto no morre. 0 mon$e estava no ;aran3

    o. o se tratava de "oo #aria, o Com "esus, mas do seu irmo so "os! #aria, informavam os que o haviamvisto.

    also mon$e3 e*clamavam com indisfar)vel des$osto os miserveis, fazendo coro com frei /ilv!rio.

    also ou verdadeiroA

    Bivendo sua prova)o, estava na cadeia, preso como qualquer larpio.

    5ue sacril!$io3 diziam espantadas as aldes.

    +onstava que seu nome real era #i$uel @ucena de Coa Bentura e que fora indisciplinado pra)a do E*!rcito, al!mde cabo desertor da ;ol%cia #ilitar do ;aran. l$uns atribu%am o rancor 1 farda e 1 caserna como conseq=ncia do

    maus tratos que, na !poca, sofriam os soldados.

    /a$rara uma fonte, na qual al$umas donzelas se banhavam despidas. ?m anti$o $eneral, o comandante da colniamilitar de +hapec(, mandou-o escoltado a ;almas, a cidade-fazenda do oeste, a cidade das palmeiras.

    o estreito cub%culo, o frio navalhava as carnes dos des$ra)ados. ?m ancio amanhecera enre$elado e o cadvercustara a ser removido da cela vizinha. +ompletamente nu, estirado no assoalho imundo, um louco silenciara ap(sbordoada desferida pelo cabo. tuberculose pastava-lhe o peito.

    Dentro da masmorra era sempre noite, vedada a entrada do sol, a$itador da @iberdade. penas uma vela, ardendosob pequenino orat(rio, alumiava aquelas caras farpentas, escorridas de cansa)o, marcadas de fundas olheiras.

    Coa Bentura, o mon$e, so "os! #aria, era an'o da $uarda a velar pelos infelizes no pardieiro.

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    ;osseiro, ndrade fora escorra)ado de seu lote por um bando de fac%noras. 0s corpos de sua mulher e sua filhinhaficaram plantados sob as cinzas da cho)a de palmito, fi*ando e contrapondo o seu direito. Escapara 1 de$ola, pormila$re. u$ira matando um 'a$un)o e fora preso pela pol%cia de ;almas. o lhe deceparam as orelhas ou o se*o,apenas teve raspados os cabelos, sob o chuveiro $elado. ntes de conhecer "os! #aria, se mostrava pessimista eeram suas e*press9es como urubu infeliz at! na lo'a se atolaG cabra manca, morro abai*o faz via$emG tudo que eupossu%a, o diabo fu$iu com o sacoG $ente ruim e*iste mais que pau torto e bicho-de-p!G quanto mais ma$ro, maiscarrapato nas costasG a terra ! como a me, depois que se perde, o valor aparece. $ora ' falava noutro tom:des$ra)a pouca ! boba$emG num macho amarrado, pau neleG quem sofre ! mudo, mas tormenta sem ronco vai ma

    $uaG muitas cruzes cabem ainda nas veredas...

    Escarranchado num canto daquela c2mara morturia, no centro de uma ferradura humana, formada por homensa$achados, "os! #aria operava maravilhas. Fncutia-lhes 2nimo, fortalecia-lhes o esp%rito. &ransportava-os a ummundo de sonhos, como se fora um liame entre a realidade e a fantasia. menizava-lhes a vida de sofrimentos.lma brasileira, candura e ale$ria se e*pandiam no falar de devaneio. #as seus olhos, tintos de terra, eramprofundos: duas cacimbas com minas de l$rimas no fundo. luz transmudava-se em prata na meia-lua de cs qulhe contornava o rosto, coroando-lhe o quei*o. fronte serena revelava claramente uma inaproveitada inteli$=nciae muita sabedoria, fronte que se apoiava ao nodoso nariz como a um ca'ado reconhecedor do terreno para a errantefisionomia... +om as pernas estiradas, uma por bai*o da outra, fazia uma cruz. /ob as abas do chap!u de coco altocomo cpula de i$re'a, tufos de cabelos a$rilhoados escapuliam para as planuras do pesco)o e para os morros das

    orelhas. +om amplas man$as a avan)arem sobre as mos benzedeiras, o camisolo de $ola aberta no peito lheenvolvia o tronco abaulado, caindo sobre os 'oelhos. "os! #aria era $ordo e atarracado, de tamanho m!dio e demembros curtos e $rossos. &inha um bando de papa$aios na $ar$anta e no parava de palrar:

    ;ara mim ! $randeza esta penit=ncia. #inha 'ornada ! lon$a e no tem fim. Eu sou como a batatinha e o chuchcom qualquer quantidade de sal. +omi$o ! no cepo3 /ou homem que cuspo e no lambo. 0 que di$o, di$oG no !papo, nem bicoG mostro a estampa como espelho. o estou aqui de escoteiro. &enho que cumprir uma missosa$rada. Eu mato a cobra e mostro o pau3 " tirei muita $ente da cama da morte. verdade ! terra su'a e $ualimpa. o tenho medo de senten)a de forca. Bou sair daqui, debai*o duma coroa, com ordem de Deus. Di$am,meus filhos: querem ouvir outra hist(ria de um nobre par de ran)aA

    5ueremos sim, so "os!3 E o mo)o trancafiado recentemente a'untou:

    5uem so os doze pares de ran)aA

    ceso nos olhos de "os! #aria, um fo$acho de entusiasmo correu-lhe as barbas, quando e*plicou:

    0s doze pares de ran)a foram vinte e quatro valorosos cavaleiros servidores de +arlos #a$no, que nuncaconheceram o medo. 5uem do medo corre, de medo morre. Eram 4oldo, conde de +en(bia, filho de Certa, irmde +arlos #a$no e do duque de #iloG 0liveiros, filho do duque 4e$nier de >ensG

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    cara lar$a, e trazia continuamente a barba do comprimento de um palmoG os cabelos ne$ros, o nariz rombo e chatoa presen)a era muito respeitvel, os olhos como de leo, e um tanto vermelhos e reluzentes, as pestanas esobrancelhas declinantes a ro*asG se estava raivoso, s( com os olhos espantavaG o cinto com que se cin$ia tinha oitpalmos de compridoG era lar$o de costas, $rosso das pernas e tinha $randes p!s. 0 seu comer era tr=s vezes ao dia,pouco poG por!m, comia ao 'antar um quarto de carneiro, ou duas $alinhasG a ceia era ca)a assadaG bebia tr=s vezeao dia, por!m pouca $ua. &inha $rande for)a: muitas vezes o viram partir capacetes de ferro, at! com os dentes, eisto de um s( $olpe, e, estando a cavalo, levantava com um s( bra)o um homem armado at! o i$ualar com a suacabe)a. &inha tr=s condi)9es virtuosas: a primeira, premiar bem quem o mereciaG a se$unda era fazer a todos i$ual

    'usti)a, sem que al$u!m se quei*asseG a terceira, ouvir e responder a todos com paci=ncia, manso e pacifico no fale repreender.

    /entia que se a'ustava 1 descri)o e que os ouvintes o confrontavam com +arlos #a$no, e isto o enchia decontentamento. ;achorrento, continuava:

    Em poucas badaladas eu conto o causo. /ou eu o filho do meu pai e da minha me. Eu sou $rande3 /ou homemde fala curta e conhecimento comprido. a pra)a de festas de ;aris, quando toda a corte estava presente com a suama$nific=ncia, quando todos os melhores cavaleiros e pr%ncipes atenderam ao chamado das 'ustas em honra a+arlos #a$no, quando os pares derrotaram todos os seus adversrios, causando inve'a aos estran$eiros, entrou poruma porta um cavaleiro $i$ante, com armas pretas e tendo no escudo um cipreste com a raiz para bai*o, do

    comprimento que a rvore tinha para cima, e uma inscri)o: /e o corpo cresce a$i$antado W s ra%zes do afeto, quse oculta, W /o do mesmo tamanho da estatura. +he$ou no meio da pra)a, no seu cavalo baio ricamente arreado, provocou em voz alta aquele que quisesse defender a amada contra a sua formosa

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    i$notas, alvoro)ando, fascinando os moradores da casa verde. &amb!m amava a casa verde, de telhado de estrelas,cho atapetado de campos e matas, rampas de colinas e montanhas, paredes no horizonte.

    "oo, "os! e #aria, so assim como o ;adre, o ilho e o Esp%rito /anto respondia quando lhe per$untavam sera o pr(prio "oo #aria de $ostinho, ou um seu irmo.

    aquele tempo, nos bosques araucarianos, era comum o aparecimento de andarilhos a se arvorarem em profetas.Biam neles um misto de $ente e fantasma. &er vis9es, l, no constitu%a ves2nia, mas coisa normal, corriqueira.

    +omentavam-se muitos casos. ?ma mulher fora ao $alarim da fama, co$nominada lor de ;ureza. 0utra, se dera aconhecer como #aria /ant%ssima, cu'o filho, #enino "esus, reinava no andor das prociss9es. ?m tal de ;lcidesdizia que era o pr(prio "oo #aria de $ostinho, o Com "esus, mas acabara desacreditado e desprezado como umfalso mon$e. 0utros ascetas tamb!m $l(ria ef=mera tiveram: so #i$uel, nh Dod e Candeirinha.

    #as nenhum alcan)ou "os! #aria no caminho da celebridade, sumiram em seus rastos de luz.

    eridos nas farpas das sendas in(spitas, os p!s de "os! #aria recebiam curativos piedosos dos arroios.

    a zona da mata, o sol era um $orro de prata sobre a carapinha verde do Cituruna. "os! #aria palmilhara o terrenoe penetrara nas $rotas fundas das montanhas. s feras lhe respeitavam a divindade... Errante. ?ma for)a indomve

    o impelia para a frente.

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    Fnspirava pena, a rezar fervorosamente, ciente de que fazia um $rande bem ao pr(*imo. E caiu em transe, possu%dde um terremoto. +om afinco, se esfor)ava para se concentrar.

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    uma tesoura aberta em cruz. #unindo-se de pano, fio e a$ulha, costurava o mal, enquanto eram pronunciadas asse$uinte palavras:

    0 que ! que voc= temA

    Destroncado.

    Destroncado mesmo eu coso. +oso nervo torto, carne ama$uada e osso quebrado.

    0 dilo$o se repetia mais duas vezes, tendo "os! #aria de responder durante a primeira e a se$unda vez,respectivamente: coso carne ama$uada, osso quebrado e nervo torto e coso osso quebrado, nervo torto e carneama$uada.

    De maneira id=ntica, curava sapinho. Empunhava um faco, uma vara de assa-pei*e e, cortando-a, dialo$ava:

    0 que ! que voc= temA

    /apinho.

    /apinho mesmo eu corto. +orto o rabo, cabe)a e meio.

    Depois de dizer, na ltima vez, corto o meio, o rabo e a cabe)a, colocava o ramo para secar ao fumeiro do fo$o.

    /entado na cepa do cmodo e*%$uo, p!s nus na terra fria, receitou para uma crian)a de narinas em bica, diri$indo-s1 me:

    senhora d= ch de 'asmim. marre um cachorro e no d= comida durante tr=s dias. +olha a titica branca, coe prepare a bebida. tosse comprida fica curta e some.

    o mo)o que tinha um pano amarrado 1 cabe)a com o n( debai*o do quei*o, recomendou:

    Esquente uma colher de pau no fo$o e encoste no incha)o. marre com uma pele de toicinho e, depois de vintequatro horas, enterre a pele num formi$ueiro. H um tiro para cachumba.

    #edicina matuta.

    0 campon=s vive como pode, abandonado, naquele isolamento que acelera o mundo a marcha 1 r!. a sua mquinde tempo, 1 Xells, vive no passado, na Fdade #!dia brasileira, 1s voltas com bar9es e ascetas da mis!ria. o tinhculpa daquele atraso. /e no houvesse latifndio, sesmariaG e se tivesse o dom%nio da casa verdeG se para habit-lano pa$asse o pesado tributo da meia, da ter)a, tudo seria diferente. >averia produ)o e riqueza, desenvolver-se-iam a pecuria, a a$ricultura, o com!rcio, as finan)as, e cidades cachimbentas fume$ariam naquelas pla$as,

    assinalando uma era de prosperidade. in$u!m mendi$aria empre$o, sem profisso e sem resid=ncia fi*a. ohaveria um plebeu a errar pelos caminhos. #as os $overnos nem sequer co$itavam de uma reforma a$rria etinham os olhos fechados para o Cituruna.

    o ouviam os reclamos dos homens da ro)a. Essa a causa da esta$na)o da economia, daquele isolamento ealheamento 1 civiliza)o. #uitas e muitas l!$uas de terrenos incultos, inaproveitados, a separarem, umas das outraas pequeninas cidades de pinho, adormecidas 1 sombra das araucrias. Bida mon(tona, ve$etativa, sem horizontesBida social primitiva. bsolutamente nada de novo. /empre os mesmos ventos. +ampos e campos a se estenderem1 medida que o via'or avan)ava em seu cavalo. Estrada carro)vel deserta, espremida por cercas de taipas,marcando as divisas das vastas est2ncias. +om!rcio precar%ssimo, com trocas 1 base de sal e boi $ordo. a vilaparal%tica, apenas al$uns casebres, ferraria, boteco, balcozinho de farmcia, porta de barbearia, a ermida no ponto

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    mais alto, um barraco de tbuas feito otel, e, 1s vezes, modesto teatrinho, de madeira, com frisas ecamarotes, funcionando aos sbados e domin$os. em padaria, a)ou$ue, nem olaria. unca a locomotiva fendendas campanhas, nunca a mquina revirando a terra. "amais o sermo prof!tico do apito da fbrica. 4aros en$enhos dbeneficiamento de madeira, mate e fumo um tiquinho de pro$resso. 0 mercado nico do litoral, quaseinacess%vel. as pouqu%ssimas escolinhas, funcionando em pai(is espalhados pelos e*tensos munic%pios, havia faltde mestres, de lousa, de livros, de cadernos, de lpis, e at! de alunos, porque as crian)as ro)avam e pastoreavam. 0professor tinha de pertencer 1 fac)o pol%tica dominante. >ospital no e*istia. s endemias se alastravamlivremente, como as hordas de bandoleiros.

    a tribo, o m!dico ! o pa'!. ;ara o matuto, o m!dico e o pa'! so o curandeiro. "os! #aria curava tamb!m bicheirbenzendo-a.6I8

    /e al$um enfermo e*pirava em suas mos, "os! #aria se 'ustificava a contento:

    5uando Deus chama, o doente sobe da cama.

    p(s as consultas, "os! #aria passou a narrar passa$ens de vida de +risto e aventuras de +arlos #a$no e seuspares de ran)a. certa altura, a voz se tornou mais alta, mais forte, emocionada:

    Bou contar como era a carta. ;restem aten)o3 ;areceu-me uma noite que via diante de minha cama, umamulher, admiravelmente formosa, a qual me dizia: +onstantino, muitas vezes tens ro$ado a Deus que te dessea'uda contra os turcos, que possuem a &erra /anta. ;ois se tanto o dese'as, faze isto que te di$o: procura ter da tuaparte +arlos #a$no, e mostrou-me um cavaleiro armado de vistosas armas, com uma espada na cinta, e uma$rossa lan)a na mo direita, de cu'o ferro sa%am muitos raios de fo$o, e era o seu rosto muito belo, formoso e bemdisposto de corpo, a barba crescida, os olhos reluzentes, e os seus cabelos come)avam a embranquecer. Y au$ustoque nunca te apartas dos #andamentos de Deus: le$ra-te em "esus +risto, e lhe d $ra)as de todo o cora)oG amaa 'usti)a, como tens sido nomeado na honra, para que Deus te d= perseveran)a do bem.

    Enlevado, arrematou a hist(ria:

    oi assim que +arlos #a$no recebeu as chaves do /anto /epulcro e chorou como uma crian)a porque o /anto/epulcro estava nas mos dos infi!is.

    S tarde, che$ou ao tu$rio uma comitiva vinda do munic%pio de +uritibanos, onde predominava a autoridade docoronel lbuquerque. @ideravam-na, al!m de ;ra*edes, proprietrio de uma casa de ne$(cios, os rancheiros +hicoBentura, +irino do /ul e "oaquim Bidal.

    id!ia sur$ira na venda de ;ra*edes.

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    aquele instante, foi constitu%da uma comisso que deveria, no dia se$uinte, levar o convite a "os! #aria.

    b=n)o suplicaram os cavaleiros, tilintando as esporas.

    Deus aben)oe voc=s, meus filhos. Eu ' tinha recebido aviso do lto, que vinham me buscar para fundar meureinado de mil anos sobre a face da terra. Bou formar uma cruzada contra os infi!is, porque h de haver uma

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    &aquaru)u ! um clamor, um $rito de socorro, um lamento. Cisbilho do c(rre$o. #as ! sinal de luta tocado notamboril, soprado no chifre de boi. H o caboclo empunhando fac9es de $uamirim e lan)as de bambu, contra olatifndio, resistindo ao coronelismo, defendendo as riquezas da ptria. 4ota esperan)a, ne$ro vislumbre.

    &erra do mon$e, &aquaru)u ! profecia.

    4eduto diziam as autoridades em +uritibanos, por!m a palavra nascera espont2nea na boca da caipirada.

    0 povoado desabotoara como um roseiral na primavera. 0s adeptos de "os! #aria che$avam com a fam%lia etraziam o que restava dos haveres. trou*a, cabrita, meia dzia de aves. l$umas vezes, uma ponta de reses, umavara de su%nos. #uitos vinham em visita a &aquaru)u, entre eles 4ocha lves, lonso, &avares.

    &aquaru)u ! a #eca e a "erusal!m do serto, capital dos pelados. "os! #aria o seu ;rofeta, o +risto 4edivivo.

    fora Eliazinho dos /antos, +hico e

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    +oronel, esse falso mon$e ! um charlato anarquista. /e fosse santo, respeitaria um homem como o senhor, qu! 'usticeiro e competente. osso $rande deputado. Ele quer desmoralizar o $overno e os bons padres. o entendenada de rem!dios, no ! curandeiro: ! um feiticeiro.

    0 boticrio falou tanto e fez tal campanha que +uritibanos s( se ocupava com o acontecimento. um riso, ocoronel lbuquerque via oculta a mofa, num cochicho, a aluso escarnecedora.

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    4epblica chefiada pelo coronel lbuquerque3 e*clamava indi$nado.

    chava-se capaz de instaurar um reino milenar de felicidades, sentia-se predestinado a se$uir o e*emplo de +arlos#a$no. l$umas vezes se via invadido por aquela sensa)o de pere$rino, um impulso dentro do peito, e caminhavprec%pite por todo o reduto, sem saber por qu=, com dese'o de correr mundo. n$ustiado, a respira)o ofe$ante,empalidecia e suava frio. &inha uma nebulosa de pensamentos no c!rebro e de sentimentos no cora)o. ;assava asnoites rezando, clamando pela prote)o divina.

    ?m dia, vestido 1 +arlos #a$no, se$undo supunha, com o camisolo branco e enorme faco 1 cintura, reunido opovo no quadro santo, recebeu sobre a cabe)a $risalha uma coroa de folha. oi simples a cerimnia. "os! #aria sea'oelhou e #aria 4osa lhe disse:

    Em nome de Deus, de so /ebastio, de so "oo #aria e de todos os santos, proclamo o senhor "os! #aria onosso imperador3

    /alvas de tiros, $ritos de aclama)o, marcaram o acontecimento.

    Bisto assim imponente, $arboso, ma$n%fico, no se poderia conden-lo com aquelas informa)9es dos missivistasque importunavam os 'ornais: "os! #aria procede de um contin$ente procedente das ilhas das +obras, foi soldado

    do V.U esquadro, no ZJ do JV.U re$imento de cavalaria, trata-se de um a$itador, homem de instintos $uerreiros,verdadeiramente indomvel, ! um %ndio com talvez IR anos de idade, estatura elevada, barba ampla, cabelos caindsobre os ombros, ma$ro, direito, e ! natural de Com "esus da Bacaria, fazia parte das tropas de "uca &i$re, foi muitdenodado e respeitado.

    o findar uma ora)o, em a)o de $ra)as, "os! #aria anunciou a forma)o duma $uarda de honra: os doze pares dran)a. Escolheu-os entre os caboclos mais robustos e valentes, distribuindo-lhes as melhores armas e os maisvelozes corc!is. ;or par entendia uma dupla, e assim a $uarda se constituiu de vinte e quatro a$uerridos cavaleiros+omandavam-nos @eandro ;alma e "os! &i$re, o corneteiro. ntoninho e Deodato estavam entre eles, e tamb!mndrade, para vin$ar a fam%lia morta e ressuscitar seus direitos. +ada um dos pares recebeu das mos de "os! #aruma ora)o que os tornava invulnerveis 1s balas inimi$as, invenc%veis. ndrade tinha-a no patu.6L8

    p(s desfilarem os doze pares de ran)a, dando tr=s voltas no quadro santo e tendo 1 frente as vir$ens, "os! #ariaanunciou a composi)o de seu $overno:

    Em nome da monarquia e de "esus /alvador, nomeio Qebinho, secretrio-$eral do

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    Esto se acabando os peludos.

    Fnh, sim.

    ntes, desempenhavam fun)9es apenas Elias de #orais, 'uiz de paz e comandante das rezas, e u$usto #oreira, oescrivo. Este, sabendo ler e escrever, tamb!m redi$ia cartas e ora)9es. "os! #aria distribu%a b=n)os aos nubentesenquanto Elias de #orais celebrava o matrimnio. ssistindo 1 cerimnia, ntoninho e #aria 4osa trocavamolhares comprometidos, ardentes, contratando npcias. o casavam por no terem ainda pedido o consentimento

    do mon$e. Ela era uma vir$em, santinha de &aquaru)u, no se pertencia. 0s noivos vinham a cavalo, no quadrosanto, acompanhados pelos padrinhos, escoltados pelos doze pares de ran)a. peavam e se a'oelhavam aos p!s dcruz de santo ntnio. u$usto #oreira, o escrivo, fazia uma cruz nas costas das mos dos noivos, e Elias de#orais os declarava marido e mulher. ntoninho e #aria 4osa viviam, cheios de dese'os, o acontecimento, e seuniam em pensamento. Deodato, ma$oado, despeitado, esposava a vin$an)a.

    inda naquela tarde, +hico &aquara $anhou o posto de comandante dos entreveros e "erme o de a'udante docomando $eral.

    abor, o mulato abor, trou*era a chirua Qabela, a que ria fcil, contente da vida. Qabela ouvira dizer que os filhodos pobres haveriam de ter o que comer e o que vestir. Era essa a razo de sua obsesso. #as, para que nasceu a

    ne$ra, seno para lavar a roupa dos ricos nas pedras do arroio, e criar rebentos raqu%ticos que herdam trabalho emis!riaA +onsolando-se, repetia: que tem, m(iG quem no tem, m(i da mesma forma, porque no fim todos ficaroi$uais. 4efu$iara-se em &aquaru)u e, com as outras mulheres, levantara em volta do reduto uma formidvelmuralha de ladainhas.

    abor, o capito abor, tinha por misso arrebanhar o $ado e traz=-lo para o acampamento. +umpria o encar$ocom persuaso ou com viol=ncia, de acordo com as circunst2ncias. &ravava tiroteio com $uardas de 'a$un)os, maspiquete sempre voltava ileso. Balente de fato, tornou-se o terror dos fazendeiros e sua $ente. ervos e ossosfrinchavam-lhe a pele descarnada. #a$ro, de bra)os e pernas lon$as, e o palet( enorme, os canos altos das botasaumentavam-lhe o tamanho. ener$ia morava-lhe nos olhos fortes, vibrantes, como dois brilhantes a coruscaremnuma po)a, olhos a reful$irem sob um chapelo de boiadeiro, cu'as abas formavam um tri2n$ulo com a ponta ca%d

    sobre o nariz de fornalhas. 0lhos l no fundo. E sob a camisa, aberta 1 altura do peito, a medalha de ossa /enhordas

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    pelado. os pobres, como ele pr(prio, inspirava confian)a paternal. Bivo, com os filhos correndo o mundo que$ira eternamente, tornara-se solitrio. #al conhecia netos e bisnetos. ?ns tempos tentara a sorte de posseiro,ocupando pequenino lote, por!m um coronel mandara e*puls-lo e oferecer-lhe sete palmos de terra. Fsto acontecequando camponeses a$raciados com t%tulos de dom%nio do imperador D. ;edro F, por atos de bravura na avia pa$o adiantado uma $rande encomenda que fizera a uma firma de lorian(polis: repeti)9es,cartuchos, sal, fazendas, armarinhos. /abia que, a casco de mula, o transporte demoraria, mas precisava receb=-la.rei /ilv!rio foi ter com ele em sua casa de ne$(cios e o advertiu:

    +uidado com o coronel lbuquerque. Est brabo como uma on)a. Boc= pode se arruinar se$uindo esse falsomon$e. Fsso no ! santo, nada: isso ! santo do pau-oco.

    #edo no. #as se$ui-lo a outras pla$as, tamb!m no.

    De repente, o arraial estava em p!-de-$uerra.

    &aquara e*ercitando o povo no entrevero. 4ufavam tambores de pinho e be*i$a de boi. Cuzinas tocavam forma)oataque e retirada. os intervalos, "os! #aria chamava os matutos, se a$achava e narrava feitos ima$inrios de+arlos #a$no e dos doze pares de ran)a, que venciam monstros e $i$antes, em defesa da reli$io e do imp!rio.o quadro santo, sucediam-se missas, com%cios, marche-marche, combates simulados. 0s cavaleiros armados comlan)as de taquara e os infantes com fac9es de $uamirim. maioria no possu%a arma de verdade. #as o (dio munia rebelio. &ransparecia nos $ritos:

    Entra, peludo3

    i, miservel3

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    & morrendo, des$ra)ado3

    ;!-redondo ! churrasco no ferro branco3

    $ora as reivindica)9es no pairavam apenas no ar mas tamb!m nas pontas das lan)as e fac9es, e bordados emforma de cruz nas bandeiras. 0 revoltoso sublevara o povo.

    o meio do quadro santo havia uma i$re'inha, mas tudo se passou l fora. multido de pros!litos fora disposta d

    modo que os homens ficassem separados das mulheres, e as crian)as dos adultos. 4ei caboclo, imponente,ma'estoso, "os! #aria che$ou com as vir$ens, uma em cada lado, escoltado pelos doze pares de ran)a. #ontadosem belos corc!is, arreados a $osto, fizeram tr=s voltas na pra)a, sob estrondosa aclama)o. peavam em cada cantdo quadriltero, para bei'ar as cruzes. 5uando o revoltoso falou, o sol ardia nos rostos bronzeados. /ucediam-se-lhas id!ias como rel2mpa$os. Em p!, defronte 1 cruz, se lembrava das $rutas distantes, das lon$as caminhadas, dafadi$a, da fome, do frio nas manhs de $eada, do ardume das feridas abertas nos p!s. 4ememorizava cenas dehorror que presenciara: fam%lias de camponeses massacradas por fac%noras. >omens que no empunhavam armas, sim cabo de en*adas, que tombavam atirados pelas costas, surrados a cacetadas e coronhadas. >omens com narizamputado, orelhas decepadas. 0u ferrovirios morrendo nas tendas infectas dos acampamentos. 0uvia $ritosestertorosos de mes, choros de crian)as, lamenta)9es. Bia-se na priso, a po e $ua. &ransfi$urava-se. +om asmos crispadas, lan)ando meteoros pelos olhos, falava como se $overnasse o universo:

    H preciso fazer penit=ncia3 H preciso que todos os que querem o fim da in'usti)a e querem $anhar o c!u fa)amparte do meu e*!rcito sa$rado. i daqueles que no me ouvirem e obedecerem, que so inimi$os dos dezmandamentos, que vivem des$ra)ando e torturando os pobres, que roubam as terras e p9em fo$o nos ranchos dosbu$res. arei uma $uerra santa chover raios sobre as leis da repblica, reduzindo castelos a tapera. Bou fazer ahumanidade feliz, implantando a monarquia no mundo e $overnando os meus povos com as leis divinas. Bou varros peludos da face da terra3 0s meus povos devem vir em minha companhia para verem as pedras de +uritibanoschorarem san$ue3 o vou dei*ar pedra sobre pedra. ?ma bola de fo$o vai aparecer no c!u e matar os miserveisBou fazer os miserveis chorarem brasas. 0s irmos de cren)a que tombarem na minha santa cruzada, ressuscitare vivero no meu reino, tero a vida eterna. Estamos no s!culo da liberdade, no pode haver mais escravido. areuma lei de terras, distribuindo lotes aos pobres. 5uem for meu soldado, no precisa de dinheiro, nem riqueza, nem

    or$ulho. ?m homem no deve viver 1 custa do outro. in$u!m deve possuir mais do que o pr(*imo. +ada um devviver do trabalho das pr(prias mos. Fsto aqui tamb!m ! uma i$re'a. o valem nada os sacramentos dos padres,ami$os dos peludos. consci=ncia ! a b%blia verdadeira. o quero o san$ue, mas o san$ue ser derramado, porquhaver fome, peste e $uerra. #eus povos sero prote$idos pelo manto sa$rado de ossa /enhora3

    0 sermo foi uma chispa de fo$o a acordar e a estremecer o serto.

    ;ara "os! #aria, matuto no modo e nas concep)9es, o Cituruna era o mundo, a vasta casa verde universal.+uritibanos, vilare'o situado no alto duma colina, por ser a sede do munic%pio e da comarca, covil do coronellbuquerque, afi$urava-se-lhe o baluarte republicano, capital dos peludos. icava a doze l!$uas de +ampos ovoalcan)ada por caminho de muar, com uma popula)o de quinhentas e tantas pessoas. ;ossu%a dois pr!dios de ti'olo

    um do coronel lbuquerque e outro do doutor promotor, al!m duma centena de casinholas com os fundos emhortali)as contornadas por rvores frut%feras. &oda de pinho. o edif%cio do coronel lbuquerque funcionava ac2mara de vereadores e a pol%cia.