casa modernista

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Casa Modernista

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  • ARS

    ano 10

    n 20

    47

    A afirmao da esttica modernista no Brasil perpassa diversas prticas artsti-cas, entre elas o da decorao de interiores. De um modo geral, o protagonismo na introduo do design modernista no Brasil atribudo ao suo John Graz e ao ucraniano Gregori Warchavchik, dois imigrantes aportados no pas em incios da dcada de 19202. Sem contestar o papel que ambos desempenharam para a promoo de uma atualizao do design de interiores, o presente artigo pretende analisar o mobilirio concebido por Gregori Warchavchik para a Casa Modernista procurando mostrar que esse, em sua materialidade, apresenta contradies que transparecem os impasses ento vivenciados entre um certo iderio modernista almejado e as prticas concretas possveis para sua realizao na cidade de So Paulo em incios do sculo XX.

    The affirmation of the modernist aesthetics in Brazil involves various artistic practi-ces, including the decoration of interiors. In general, the protagonism in the intro-duction of modernist design in Brazil is attributed to the swiss artist John Graz and the ukrainian architect Gregori Warchavchik, two immigrants that have contributed artistic field in the 1920s. Without denying the role of the both to promote and update the interior design in Brazil, this article analyzes the furniture design made by Gregori Warchavchik to the Modernist House of 1930, trying to show that, in its materiality, presents contradictions that are apparent deadlocks then experienced between a certain modernist ideals pursued , and concrete practices possible for its realization in the city of Sao Paulo in the early twentieth century.

    palavras-chave: Gregori Warchavchik;

    mobilirio; modernismo; Casa Modernista

    keywords: Gregori Warchavchik; furniture; modernism; Modernist

    House

    Ana Paula Cavalcanti Simioni

    Artigo recebido em 03 de agosto de 2012 e aprovado em 17 de

    outubro de 2012

    Gregori Warchavchik. Mveis feitos para o interior da Casa

    Modernista, 1930. Foto gentilmente cedida por

    Adolpho Leirner.

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik 1

  • ARS

    ano 10

    n 20

    47

    A afirmao da esttica modernista no Brasil perpassa diversas prticas artsti-cas, entre elas o da decorao de interiores. De um modo geral, o protagonismo na introduo do design modernista no Brasil atribudo ao suo John Graz e ao ucraniano Gregori Warchavchik, dois imigrantes aportados no pas em incios da dcada de 19202. Sem contestar o papel que ambos desempenharam para a promoo de uma atualizao do design de interiores, o presente artigo pretende analisar o mobilirio concebido por Gregori Warchavchik para a Casa Modernista procurando mostrar que esse, em sua materialidade, apresenta contradies que transparecem os impasses ento vivenciados entre um certo iderio modernista almejado e as prticas concretas possveis para sua realizao na cidade de So Paulo em incios do sculo XX.

    The affirmation of the modernist aesthetics in Brazil involves various artistic practi-ces, including the decoration of interiors. In general, the protagonism in the intro-duction of modernist design in Brazil is attributed to the swiss artist John Graz and the ukrainian architect Gregori Warchavchik, two immigrants that have contributed artistic field in the 1920s. Without denying the role of the both to promote and update the interior design in Brazil, this article analyzes the furniture design made by Gregori Warchavchik to the Modernist House of 1930, trying to show that, in its materiality, presents contradictions that are apparent deadlocks then experienced between a certain modernist ideals pursued , and concrete practices possible for its realization in the city of Sao Paulo in the early twentieth century.

    palavras-chave: Gregori Warchavchik;

    mobilirio; modernismo; Casa Modernista

    keywords: Gregori Warchavchik; furniture; modernism; Modernist

    House

    Ana Paula Cavalcanti Simioni

    Artigo recebido em 03 de agosto de 2012 e aprovado em 17 de

    outubro de 2012

    Gregori Warchavchik. Mveis feitos para o interior da Casa

    Modernista, 1930. Foto gentilmente cedida por

    Adolpho Leirner.

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik 1

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    48 49

    construo da casa, planejou e produziu toda a decorao interior, como

    os mveis, as peas de iluminao, as portas e janelas. Seguindo uma divi-

    so do trabalho comum aos circuitos modernistas, o jardim ficou a cargo

    de sua esposa, Minna Klabin Warchavchik5.

    A residncia erguia-se como uma obra de arte total. A arquitetura

    funcionando como uma moldura, preenchida por um conjunto significa-

    tivo de obras modernistas, como um bronze de Lipshcitz, almofadas de

    Sonia Delaunay e Dominique, um tapete da Bauhaus, molduras de Pierre

    Legrain. Tais peas, pertencentes a colees brasileiras, ombreavam-se

    com os exemplares modernistas nacionais: quadros, esculturas e gravuras

    de Segall, Gomide, Di Cavalcanti, Ccero Dias, Anita Malfatti, Celso An-

    tonio, Brecheret, Goeldi, Jenny Klabin Segall, e ainda almofadas de Re-

    gina Graz, um baixo-relevo de John Graz e peas do prprio Warchavchik

    estavam ali reunidos, numa comunho de linguagens modernas6.

    A prpria concepo de uma casa como uma totalidade integrada

    de obras decorativas de linguagens interdependentes estampava como o

    arquiteto estava atinado com experincias internacionais do mesmo g-

    nero levadas a cabo por arquitetos decoradores ao longo dos anos 1920

    na Europa, entre eles Mallet-Stevens, Djo-Bourgeois, Rulhmann, Eileen

    Gray e, particularmente, Le Corbusier, que, em parceria com Charlotte

    Perriand, criou unidades domsticas formalmente integradas a partir das

    premissas de racionalidade, simplicidade, utilidade, economia e higiene,

    compreendendo desde a fachada at os elementos mnimos de seu inte-

    rior, ao que denominavam machine habiter7.

    Naquele contexto, importante destacar que o mobilirio havia

    se tornado um elemento fundamental para uma concepo moderna de

    residncia, a ponto de praticamente todos os grandes arquitetos do pero-

    do terem se aventurado tambm em projetos decorativos, criando mveis

    especficos para os interiores que concebiam8. Warchavchik participou

    de tal processo, e assim como seus contemporneos, partidrios do cre-

    do modernista, considerava uma excrescncia a utilizao de mveis de

    poca dentro de ambientes modernos. Preocupao que se evidencia no

    mencionado artigo de 1925 quando indaga:

    Encontraro nossos filhos a mesma harmonia entre os ltimos ti-pos de automveis e aeroplanos de um lado e a arquitetura de nos-sas casas de outro? No, esta harmonia no poder existir enquanto o homem moderno continue a sentar-se em Sales Luis tal ou em salas de jantar estilo Renascena e no ponha de lado os velhos mtodos de decorao das construes9.

    I. Gregori Warchavchik: utopias modernistas na So Paulo da dcada de 1920

    Em 1923, o arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik desembarcava

    em So Paulo, aps ter se formado no clebre Instituto Superior de Belas-

    -Artes de Roma, portando cartas de recomendao para atuar profissional-

    mente na Companhia Construtora de Santos, pertencente a Roberto Simon-

    sen. Apenas dois anos depois, em 1925, Warchavchik lana-se no campo

    local afirmando-se como um precursor da arquitetura moderna no Brasil,

    por meio da publicao do artigo Intorno allarchitettura moderna, sob a

    rubrica Il futurismo, na coluna de arte do jornal paulistano Il Piccolo. Em

    novembro daquele mesmo ano, o artigo saa publicado em portugus, no

    Correio da Manh do Rio de Janeiro, mostrando a sua relativa repercusso3.

    O texto considerado o primeiro manifesto a favor da arquitetura

    modernista publicado no pas4. Segundo Jos Tavares Correia de Lira,

    especialista na produo e trajetria do arquiteto, propunha de um lado

    repensar a edificao tradicional a partir da racionalidade interna de seus

    atributos tcnicos e decorativos; de outro, reconhecer as exigncias im-

    postas pelo desenvolvimento da indstria em uma poca de capitalismo

    incipiente, onde a questo da economia predomina sobre todas as de-

    mais. A defesa da racionalidade construtiva passava, naquele momento,

    pela recusa absoluta ao ornamento e da reivindicao da economia cons-

    trutiva, com isso afastando-se deliberadamente das correntes historicistas

    e eclticas que dominavam o panorama arquitetnico local.

    Um outro passo significativo para a afirmao do modernismo ar-

    quitetnico em So Paulo efetivado pelo arquiteto em 1930. Trata-se da

    construo da emblemtica Casa Modernista, localizada na rua Itpolis,

    no bairro do Pacaembu, em So Paulo. No dia 24 de maro daquele ano,

    a casa foi aberta visitao do pblico, estampando o carter de obra

    exemplar com que fora concebida pelo arquiteto. Essa havia sido pensada

    como uma obra de arte nica, na qual todas as partes estariam integradas

    por intermdio de linguagens harmnicas, revelando uma concepo de

    design incomum na capital paulista de ento. A fachada, a estrutura da

    casa, a decorao interna inclusive o mobilirio, as cortinas, os tapetes,

    as portas, as luminrias e at mesmo sua parte externa, comportando

    o jardim, foram planejados em dilogo com os partidos estticos moder-

    nistas, mormente de tipo funcionalista. Isso demandou uma atuao po-

    livalente da parte do arquiteto, que, alm de desenhar e acompanhar a

    1. O presente artigo uma verso desenvolvida do texto apresentado no 35 Encontro Anual da ANPOCS, dentro do Frum intitulado: Imagens, arte e novas tecnologias: a atualidade da pesquisa em cincias sociais, realizado em Caxambu, em 2011.

    2. A esse respeito consultar o livro de referncia sobre o assunto: DOS SANTOS, Maria Cecilia Loschiavo. O mvel moderno no Brasil. So Paulo: Studio Nobel/EDUSP, 1995. Especificamente sobre a atuao de John Graz, ler: AFONSO, Anna Maria. John Graz: o arquiteto de interiores. Dissertao (Mestrado em Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So Paulo, 2008.

    3. Sobre a trajetria de Gregori Warchavchik e sua produo como arquiteto e terico consultar o livro de LIRA, Jos Tavares C. Gregori Warchavchik. Fraturas da vanguarda. So Paulo: Cossac & Naify, 2011. Muitos dos argumentos aqui mobilizados dialogam diretamente com o livro em questo que a pesquisa mais minuciosa e bem

    fundamentada j feita sobre o arquiteto Gregori

    Warchavchik:combates pelo futuro, In:

    WARCHAVCHIK, G. Arquitetura do sculo XX e outros escritos. So Paulo:

    Cossac & Naify, 2006.

    4. Sobre o lugar de Warchavchick na historiografia da

    arquitetura brasileira consultar: MARTINS,

    Carlos Ferreira.

    5. Sobre a produo de Minna Klabin Warchavchik

    ler: PERECIN, Tatiana. Azalias e mandacarus.

    Mina Klabin Warchavchik, paisagismo e

    modernismo no Brasil. Dissertao de mestrado

    em Arquitetura e Urbanismo, EESC-USP,

    2003. interessante notar que diversos casais

    de artistas realizaram projetos decorativos

    coletivos, nesses geralmente, os homens

    eram incumbidos de realizarem as partes

    mais importantes como o projeto (a concepo total), o mobilirio, as luminrias

    etc, ao passo que as mulheres ocupavam-se dos gneros vistos como

    inferiores, como os txteis, ou jardinagem. Isso

    ocorre, por exemplo, com outra dupla importante de artistas-decoradores no Brasil: John e Regina

    Graz. A esse respeito

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    48 49

    construo da casa, planejou e produziu toda a decorao interior, como

    os mveis, as peas de iluminao, as portas e janelas. Seguindo uma divi-

    so do trabalho comum aos circuitos modernistas, o jardim ficou a cargo

    de sua esposa, Minna Klabin Warchavchik5.

    A residncia erguia-se como uma obra de arte total. A arquitetura

    funcionando como uma moldura, preenchida por um conjunto significa-

    tivo de obras modernistas, como um bronze de Lipshcitz, almofadas de

    Sonia Delaunay e Dominique, um tapete da Bauhaus, molduras de Pierre

    Legrain. Tais peas, pertencentes a colees brasileiras, ombreavam-se

    com os exemplares modernistas nacionais: quadros, esculturas e gravuras

    de Segall, Gomide, Di Cavalcanti, Ccero Dias, Anita Malfatti, Celso An-

    tonio, Brecheret, Goeldi, Jenny Klabin Segall, e ainda almofadas de Re-

    gina Graz, um baixo-relevo de John Graz e peas do prprio Warchavchik

    estavam ali reunidos, numa comunho de linguagens modernas6.

    A prpria concepo de uma casa como uma totalidade integrada

    de obras decorativas de linguagens interdependentes estampava como o

    arquiteto estava atinado com experincias internacionais do mesmo g-

    nero levadas a cabo por arquitetos decoradores ao longo dos anos 1920

    na Europa, entre eles Mallet-Stevens, Djo-Bourgeois, Rulhmann, Eileen

    Gray e, particularmente, Le Corbusier, que, em parceria com Charlotte

    Perriand, criou unidades domsticas formalmente integradas a partir das

    premissas de racionalidade, simplicidade, utilidade, economia e higiene,

    compreendendo desde a fachada at os elementos mnimos de seu inte-

    rior, ao que denominavam machine habiter7.

    Naquele contexto, importante destacar que o mobilirio havia

    se tornado um elemento fundamental para uma concepo moderna de

    residncia, a ponto de praticamente todos os grandes arquitetos do pero-

    do terem se aventurado tambm em projetos decorativos, criando mveis

    especficos para os interiores que concebiam8. Warchavchik participou

    de tal processo, e assim como seus contemporneos, partidrios do cre-

    do modernista, considerava uma excrescncia a utilizao de mveis de

    poca dentro de ambientes modernos. Preocupao que se evidencia no

    mencionado artigo de 1925 quando indaga:

    Encontraro nossos filhos a mesma harmonia entre os ltimos ti-pos de automveis e aeroplanos de um lado e a arquitetura de nos-sas casas de outro? No, esta harmonia no poder existir enquanto o homem moderno continue a sentar-se em Sales Luis tal ou em salas de jantar estilo Renascena e no ponha de lado os velhos mtodos de decorao das construes9.

    I. Gregori Warchavchik: utopias modernistas na So Paulo da dcada de 1920

    Em 1923, o arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik desembarcava

    em So Paulo, aps ter se formado no clebre Instituto Superior de Belas-

    -Artes de Roma, portando cartas de recomendao para atuar profissional-

    mente na Companhia Construtora de Santos, pertencente a Roberto Simon-

    sen. Apenas dois anos depois, em 1925, Warchavchik lana-se no campo

    local afirmando-se como um precursor da arquitetura moderna no Brasil,

    por meio da publicao do artigo Intorno allarchitettura moderna, sob a

    rubrica Il futurismo, na coluna de arte do jornal paulistano Il Piccolo. Em

    novembro daquele mesmo ano, o artigo saa publicado em portugus, no

    Correio da Manh do Rio de Janeiro, mostrando a sua relativa repercusso3.

    O texto considerado o primeiro manifesto a favor da arquitetura

    modernista publicado no pas4. Segundo Jos Tavares Correia de Lira,

    especialista na produo e trajetria do arquiteto, propunha de um lado

    repensar a edificao tradicional a partir da racionalidade interna de seus

    atributos tcnicos e decorativos; de outro, reconhecer as exigncias im-

    postas pelo desenvolvimento da indstria em uma poca de capitalismo

    incipiente, onde a questo da economia predomina sobre todas as de-

    mais. A defesa da racionalidade construtiva passava, naquele momento,

    pela recusa absoluta ao ornamento e da reivindicao da economia cons-

    trutiva, com isso afastando-se deliberadamente das correntes historicistas

    e eclticas que dominavam o panorama arquitetnico local.

    Um outro passo significativo para a afirmao do modernismo ar-

    quitetnico em So Paulo efetivado pelo arquiteto em 1930. Trata-se da

    construo da emblemtica Casa Modernista, localizada na rua Itpolis,

    no bairro do Pacaembu, em So Paulo. No dia 24 de maro daquele ano,

    a casa foi aberta visitao do pblico, estampando o carter de obra

    exemplar com que fora concebida pelo arquiteto. Essa havia sido pensada

    como uma obra de arte nica, na qual todas as partes estariam integradas

    por intermdio de linguagens harmnicas, revelando uma concepo de

    design incomum na capital paulista de ento. A fachada, a estrutura da

    casa, a decorao interna inclusive o mobilirio, as cortinas, os tapetes,

    as portas, as luminrias e at mesmo sua parte externa, comportando

    o jardim, foram planejados em dilogo com os partidos estticos moder-

    nistas, mormente de tipo funcionalista. Isso demandou uma atuao po-

    livalente da parte do arquiteto, que, alm de desenhar e acompanhar a

    1. O presente artigo uma verso desenvolvida do texto apresentado no 35 Encontro Anual da ANPOCS, dentro do Frum intitulado: Imagens, arte e novas tecnologias: a atualidade da pesquisa em cincias sociais, realizado em Caxambu, em 2011.

    2. A esse respeito consultar o livro de referncia sobre o assunto: DOS SANTOS, Maria Cecilia Loschiavo. O mvel moderno no Brasil. So Paulo: Studio Nobel/EDUSP, 1995. Especificamente sobre a atuao de John Graz, ler: AFONSO, Anna Maria. John Graz: o arquiteto de interiores. Dissertao (Mestrado em Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So Paulo, 2008.

    3. Sobre a trajetria de Gregori Warchavchik e sua produo como arquiteto e terico consultar o livro de LIRA, Jos Tavares C. Gregori Warchavchik. Fraturas da vanguarda. So Paulo: Cossac & Naify, 2011. Muitos dos argumentos aqui mobilizados dialogam diretamente com o livro em questo que a pesquisa mais minuciosa e bem

    fundamentada j feita sobre o arquiteto Gregori

    Warchavchik:combates pelo futuro, In:

    WARCHAVCHIK, G. Arquitetura do sculo XX e outros escritos. So Paulo:

    Cossac & Naify, 2006.

    4. Sobre o lugar de Warchavchick na historiografia da

    arquitetura brasileira consultar: MARTINS,

    Carlos Ferreira.

    5. Sobre a produo de Minna Klabin Warchavchik

    ler: PERECIN, Tatiana. Azalias e mandacarus.

    Mina Klabin Warchavchik, paisagismo e

    modernismo no Brasil. Dissertao de mestrado

    em Arquitetura e Urbanismo, EESC-USP,

    2003. interessante notar que diversos casais

    de artistas realizaram projetos decorativos

    coletivos, nesses geralmente, os homens

    eram incumbidos de realizarem as partes

    mais importantes como o projeto (a concepo total), o mobilirio, as luminrias

    etc, ao passo que as mulheres ocupavam-se dos gneros vistos como

    inferiores, como os txteis, ou jardinagem. Isso

    ocorre, por exemplo, com outra dupla importante de artistas-decoradores no Brasil: John e Regina

    Graz. A esse respeito

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    50 51

    O lema modernista da busca pelos materiais adequados ao presente,

    os quais deveriam ser utilizados de modo visvel nas construes, evitando seu

    camuflamento por meio de elementos acessrios ou decorativos, traduzido

    em outro lema modernista conhecido como a verdade dos materiais, en-

    contrara no mobilirio de Warchavchik uma contradio muito significativa.

    II. Disputas pelo mvel moderno no campo do design internacional, dcada de 20:

    A produo do conjunto de mveis para a Casa Modernista no

    pode ser plenamente compreendida fora do debate internacional. Ao lon-

    go da dcada de 1920 travou-se uma real batalha entre os designers de

    interiores, na poca denominados artistas-decoradores, sobre os usos e sig-

    nificados dos materiais utilizados pela moderna arquitetura. Nas pginas

    da revista francesa Art et Dcoration, um dos mais importantes peridicos

    dedicados s artes decorativas desse momento, possvel acompanhar tal

    celeuma. O campo das artes decorativas vivenciava uma grande prolifera-

    o de estilos, tendncias, debates e disputas acirradas entre grupos13. Na

    ocasio do afamada Exposition des Arts Decoratifs de 1925, a partir da qual se disseminou a expresso art dco, a crtica especializada j percebia

    com clareza a existncia de ao menos duas orientaes distintas e anta-

    gnicas para os novos rumos das artes aplicadas, por um lado os artistas

    denominados como modernos e, por outro, os contemporneos:

    [...] A ebenesteria moderna rejeita o ornamento. Esse seu tra-o especfico. Ser, porm, seu trao distintivo? A arte dos Emile Ruhlmann, de Andr Groult, de Se e Mare, no ela moderna? [...]No se saberia com mais bondade, inteligncia e habilidade ligar o passado ao presente e renovar a tradio: Louis Se e Andr Mare se apegam s formulas da Restaurao, Groult quelas do sculo XVIII e Ruhlmann s do Imprio [...]. Eles prprios, alis, decli-nam quanto qualificao de artistas modernos. Eles so con-temporneos. Emile Ruhlmann cria mveis contemporneos. no Museu de Arte Contempornea que se dispe Se e Mare na exposio que se abre.Contemporneo e no moderno: constatao de um estado de fato, mas no de profisso de uma doutrina. Quem diz moderno define, com efeito, uma esttica. [....] So os recursos tcnicos atu-ais, as condies econmicas e domsticas presentes que os sedu-zem. Com efeito, nossa preocupao com a higiene, nosso gosto pelos esportes, nosso cientificismo no atribuem ao banheiro uma importncia determinante? Ns criamos para ela, como consequ-

    O texto afirma que a busca pela harmonia entre a cultura e a resi-

    dncia do homem moderno passa necessariamente por uma unificao da

    linguagem e da tcnica empregues em sua construo. preciso deixar

    de copiar os velhos estilos e reivindicar as formas do presente, as quais

    so fruto de um tempo estruturado pelo ritmo das mquinas, pela racio-

    nalizao do trabalho industrial, pela velocidade dos automveis. Como

    afirma Warchavchik, o arquiteto deve amar sua poca, com todas as suas

    grandes manifestaes do esprito humano, o que significa ser capaz de

    projetar, integralmente, uma casa adequada aos novos tempos, inclusive

    nos seus elementos mais ntimos, como o mobilirio10.

    com esse intuito que o arquiteto projeta e produz o conjunto de

    peas realizado para a sala de estar da casa da Rua Itpolis, o qual pode

    ser considerado como visivelmente inovador para o ambiente paulistano de

    outrora, ou, no jargo da poca, futurista: suas linhas ostensivamente geo-

    mtricas, predominantemente retas, so aguadas pelo contraste cromtico

    obtido pelo uso simultneo da madeira prateada e estofados em veludo vio-

    leta. Warchavchik j havia desenhado anteriormente alguns desses mveis

    para sua casa na Rua Santa Cruz; porm, na verso inicial optou por manter

    a cor da madeira escura, encerada boneca, ao passo que, neste caso, mui-

    to do efeito vanguardista pretendido resultou do emprego da cor metlica.

    Precisamente esse uso da tinta prateada sobre a estrutura de ma-

    deira revela um dos aspectos mais interessantes, e contraditrios, de tal

    mobilirio11. O uso da pigmentao denota o desejo de obter um efeito

    especfico: aparentar ser um mvel metlico. A questo do material a ser

    empregue no um detalhe, mas bem ao contrrio, trata-se de um ele-

    mento crucial nos debates estticos em vigor naquele momento. Elemen-

    to do qual Warchavchik era plenamente consciente j em 1925, a ponto

    de concluir seu eminente manifesto com a seguinte sentena:

    O arquiteto moderno deve amar sua poca, com todas as suas grandes manifestaes do esprito humano, como a arte do pintor moderno ou poeta moderno deve conhecer a vida de todas as ca-madas da sociedade.Tomando por base o material de construo de que dispomos, es-tudando-o e conhecendo-o como os velhos mestres conheciam sua pedra, no receando exibi-lo no seu melhro aspecto do ponto de vista da esttica, fazendo refletir em suas obras as ideias do nosso tempo, a nossa lgica[....]. Abaixo as decoraes absurdas e viva a construo lgica, eis a divi-sa que deve ser adotada pelo arquiteto moderno12.

    Charlotte Perriand. Le Bar sous le toile. Obra apresentada ao Salon

    DAutomne. Art et Dcoration, Paris, dc.

    1927, p. 173.

    consultar: SIMIONI, Ana Paula C. Regina Gomide Graz: modernismo, arte txtil e relaes de gnero no Brasil. In: Rev. Inst. Estud. Bras. [online]. 2007, n.45, p. 87-106.

    6. A esse respeito, ler LIRA, Op. cit., especificamente o captulo 7, Uma casa em exposio.

    7. OZENFANT e JEANNERET [Le Corbusier]. A situao atual da vida moderna, In: MARTINS, Carlos F. (org). Depois do cubismo. So Paulo: Cossac & Naify, 2005.

    8. A esse respeito consultar: BENTON, Charlotte. Le Corbusier: Furniture and the Interior, In: Journal of Design History, Oxford, vol , n2/3, 1990.

    9. Warchavchik, G. Acerca da arquitetura moderna. In: Arquitetura do sculo XX e outros escritos, Op. cit., p.35-6. Originalmente publicado sob o ttulo Futurismo no jornal Il Piccolo, So Paulo, 14 jun. 1925, e depois traduzido como Acerca da arquitetura moderna, no Correio da Manh, 1 nov. 1925.

    10. Idem, Ibidem, p. 37.

    11. Sophia Telles j havia percebido a contradio

    de tal mobilirio. TELLES Sophia. A

    arquitetura modernista, um espao sem lugar. In: TOLIPAN, Sergio. Sete ensaios sobre o modernismo. Rio de

    Janeiro: FUNARTE, 1983.

    12. Idem, Ibidem, p. 37-8. Grifos meus.

    13. Consultar: BAYER, Patricia. Intrieurs

    Art Dco. Thames and Hudson, 2007.

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    ano 10

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    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

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    O lema modernista da busca pelos materiais adequados ao presente,

    os quais deveriam ser utilizados de modo visvel nas construes, evitando seu

    camuflamento por meio de elementos acessrios ou decorativos, traduzido

    em outro lema modernista conhecido como a verdade dos materiais, en-

    contrara no mobilirio de Warchavchik uma contradio muito significativa.

    II. Disputas pelo mvel moderno no campo do design internacional, dcada de 20:

    A produo do conjunto de mveis para a Casa Modernista no

    pode ser plenamente compreendida fora do debate internacional. Ao lon-

    go da dcada de 1920 travou-se uma real batalha entre os designers de

    interiores, na poca denominados artistas-decoradores, sobre os usos e sig-

    nificados dos materiais utilizados pela moderna arquitetura. Nas pginas

    da revista francesa Art et Dcoration, um dos mais importantes peridicos

    dedicados s artes decorativas desse momento, possvel acompanhar tal

    celeuma. O campo das artes decorativas vivenciava uma grande prolifera-

    o de estilos, tendncias, debates e disputas acirradas entre grupos13. Na

    ocasio do afamada Exposition des Arts Decoratifs de 1925, a partir da qual se disseminou a expresso art dco, a crtica especializada j percebia

    com clareza a existncia de ao menos duas orientaes distintas e anta-

    gnicas para os novos rumos das artes aplicadas, por um lado os artistas

    denominados como modernos e, por outro, os contemporneos:

    [...] A ebenesteria moderna rejeita o ornamento. Esse seu tra-o especfico. Ser, porm, seu trao distintivo? A arte dos Emile Ruhlmann, de Andr Groult, de Se e Mare, no ela moderna? [...]No se saberia com mais bondade, inteligncia e habilidade ligar o passado ao presente e renovar a tradio: Louis Se e Andr Mare se apegam s formulas da Restaurao, Groult quelas do sculo XVIII e Ruhlmann s do Imprio [...]. Eles prprios, alis, decli-nam quanto qualificao de artistas modernos. Eles so con-temporneos. Emile Ruhlmann cria mveis contemporneos. no Museu de Arte Contempornea que se dispe Se e Mare na exposio que se abre.Contemporneo e no moderno: constatao de um estado de fato, mas no de profisso de uma doutrina. Quem diz moderno define, com efeito, uma esttica. [....] So os recursos tcnicos atu-ais, as condies econmicas e domsticas presentes que os sedu-zem. Com efeito, nossa preocupao com a higiene, nosso gosto pelos esportes, nosso cientificismo no atribuem ao banheiro uma importncia determinante? Ns criamos para ela, como consequ-

    O texto afirma que a busca pela harmonia entre a cultura e a resi-

    dncia do homem moderno passa necessariamente por uma unificao da

    linguagem e da tcnica empregues em sua construo. preciso deixar

    de copiar os velhos estilos e reivindicar as formas do presente, as quais

    so fruto de um tempo estruturado pelo ritmo das mquinas, pela racio-

    nalizao do trabalho industrial, pela velocidade dos automveis. Como

    afirma Warchavchik, o arquiteto deve amar sua poca, com todas as suas

    grandes manifestaes do esprito humano, o que significa ser capaz de

    projetar, integralmente, uma casa adequada aos novos tempos, inclusive

    nos seus elementos mais ntimos, como o mobilirio10.

    com esse intuito que o arquiteto projeta e produz o conjunto de

    peas realizado para a sala de estar da casa da Rua Itpolis, o qual pode

    ser considerado como visivelmente inovador para o ambiente paulistano de

    outrora, ou, no jargo da poca, futurista: suas linhas ostensivamente geo-

    mtricas, predominantemente retas, so aguadas pelo contraste cromtico

    obtido pelo uso simultneo da madeira prateada e estofados em veludo vio-

    leta. Warchavchik j havia desenhado anteriormente alguns desses mveis

    para sua casa na Rua Santa Cruz; porm, na verso inicial optou por manter

    a cor da madeira escura, encerada boneca, ao passo que, neste caso, mui-

    to do efeito vanguardista pretendido resultou do emprego da cor metlica.

    Precisamente esse uso da tinta prateada sobre a estrutura de ma-

    deira revela um dos aspectos mais interessantes, e contraditrios, de tal

    mobilirio11. O uso da pigmentao denota o desejo de obter um efeito

    especfico: aparentar ser um mvel metlico. A questo do material a ser

    empregue no um detalhe, mas bem ao contrrio, trata-se de um ele-

    mento crucial nos debates estticos em vigor naquele momento. Elemen-

    to do qual Warchavchik era plenamente consciente j em 1925, a ponto

    de concluir seu eminente manifesto com a seguinte sentena:

    O arquiteto moderno deve amar sua poca, com todas as suas grandes manifestaes do esprito humano, como a arte do pintor moderno ou poeta moderno deve conhecer a vida de todas as ca-madas da sociedade.Tomando por base o material de construo de que dispomos, es-tudando-o e conhecendo-o como os velhos mestres conheciam sua pedra, no receando exibi-lo no seu melhro aspecto do ponto de vista da esttica, fazendo refletir em suas obras as ideias do nosso tempo, a nossa lgica[....]. Abaixo as decoraes absurdas e viva a construo lgica, eis a divi-sa que deve ser adotada pelo arquiteto moderno12.

    Charlotte Perriand. Le Bar sous le toile. Obra apresentada ao Salon

    DAutomne. Art et Dcoration, Paris, dc.

    1927, p. 173.

    consultar: SIMIONI, Ana Paula C. Regina Gomide Graz: modernismo, arte txtil e relaes de gnero no Brasil. In: Rev. Inst. Estud. Bras. [online]. 2007, n.45, p. 87-106.

    6. A esse respeito, ler LIRA, Op. cit., especificamente o captulo 7, Uma casa em exposio.

    7. OZENFANT e JEANNERET [Le Corbusier]. A situao atual da vida moderna, In: MARTINS, Carlos F. (org). Depois do cubismo. So Paulo: Cossac & Naify, 2005.

    8. A esse respeito consultar: BENTON, Charlotte. Le Corbusier: Furniture and the Interior, In: Journal of Design History, Oxford, vol , n2/3, 1990.

    9. Warchavchik, G. Acerca da arquitetura moderna. In: Arquitetura do sculo XX e outros escritos, Op. cit., p.35-6. Originalmente publicado sob o ttulo Futurismo no jornal Il Piccolo, So Paulo, 14 jun. 1925, e depois traduzido como Acerca da arquitetura moderna, no Correio da Manh, 1 nov. 1925.

    10. Idem, Ibidem, p. 37.

    11. Sophia Telles j havia percebido a contradio

    de tal mobilirio. TELLES Sophia. A

    arquitetura modernista, um espao sem lugar. In: TOLIPAN, Sergio. Sete ensaios sobre o modernismo. Rio de

    Janeiro: FUNARTE, 1983.

    12. Idem, Ibidem, p. 37-8. Grifos meus.

    13. Consultar: BAYER, Patricia. Intrieurs

    Art Dco. Thames and Hudson, 2007.

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    52 53

    poucos incorpora materiais novos como o metal em seu trabalho, o que

    visto como um progresso. O prprio ttulo do artigo Uma etapa rumo

    ao mvel metlico, deixa claro o quanto o mvel de metal era visto como

    um devir obrigatrio:

    Nos vages, nos automveis, o metal progressivamente eliminou a madeira. Deve ele tambm estar, um dia mais ou menos longnquo, dentro do mobilirio da casa? Veremos ns mveis inteiramente metlicos, ou ao menos, nos quais a madeira, quente, colorida, com qualidades inigualveis no intervir apenas como adorno? Aguar-demos a profecia. Mas, do ponto de vista da resistncia s mu-danas da temperatura, os autores dos mveis reproduzidos nessas pginas atingiram suas metas. E, do ponto de vista esttico, suas experincias provam que, mesmo num escritrio de trabalho, ou num quarto, o metal e a madeira fazem uma boa parceria. Que se marque ou no uma etapa rumo ao mvel inteiramente metlico, os mveis semi-metlicos de Ruhlmann e de Chareau acusam um novo progresso do mvel metlico16.

    O ano de 1927 evidencia o triunfo dos mveis em metal no Salo,

    tornando-se mesmo o principal assunto da mostra. Dentre os artistas de-

    coradores designados como contemporneos o metal utilizado ao lado

    da madeira, que continua a ser o elemento predominante, tal como nos

    exemplares projetados por Ruhlman. Mas dentre os modernos cada vez

    mais nota-se um esforo em transformar o metal no material predomi-

    nante no mobilirio. Particularmente importante no campo francs da

    decorao deste momento o conjunto proposto por Charlotte Perriand

    para um bar, posto que se trata de um projeto inteiramente feito em me-

    tal, destacando-se bastante no Salo daquele ano, tal como se percebe no

    destaque obtido na prestigiosa publicao.

    fundamental tambm lembrar que a afirmao do mvel met-

    lico no ocorria apenas na Frana17. Na verdade, o pioneirismo deve ser

    atribudo s produes de Marcel Breuer, desenvolvidas em Dessau, na

    Alemanha, no interior da prestigiosa escola de Bauhaus. Em 1925 este j

    havia concebido uma cadeira inteiramente feita em tubos de ao,a Cadei-

    ra Club, posteriormente denominada como Vassily. Os mveis concebi-

    dos por Breuer tiveram sucesso imediato, dentro e fora da escola, Gropius

    convidara-o para mobiliar todo o edifcio da escola. E, j no ano seguinte,

    os mveis por ele concebidos j encontravam uma aplicao industrial,

    por meio da empresa Standar-Mbel fundada por ele e Klmn Lengyel.

    Em 1927, Breuer assinava um contrato com a empresa Thonet, uma mar-

    ncia, um mobilirio inteiramente novo. So mveis estabelecidos para uma sociedade apressada, privada de servidores, mas que, so-bretudo, ama a ordem e o mtodo, essa higiene do esprito14.

    O texto assinado pelo crtico Guillaume Janneau (1887-1968) iden-

    tificava duas perspectivas predominantes no salo. De um lado, artistas-

    -decoradores dedicados a recuperar elementos daquilo que aponta como

    a tradio nacional francesa e readequ-los s demandas do presente,

    o que implicava manter a sofisticada cultura ebanista secular do pas,

    adaptando-a para os novos usos, funes, espaos e gostos; a esses nomea-

    va contemporneos. Dentre eles destacava os nomes de Emile Ruhlmann,

    Louis Sue, Andr Mare, Grouault. De outro lado, um grupo de jovens

    artistas ansioso justamente por romper com o passado, instaurando uma

    esttica calcada na funcionalidade, livre de quaisquer tipos de ornamen-

    taes, elementos esses constantemente acusados nos discursos de serem

    historicistas, fteis e atrelados a um tempo que deveria ser superado15.

    Para tanto, defendiam que o mobilirio deveria utilizar-se de materiais

    novos, compassados ao mundo do presente, ento associado ao universo

    das indstrias, da cincia, do trabalho, do movimento, da higiene. Tal

    grupo era denominado como os modernos, dentre os quais se contava

    a participao de Le Corbusier, Charlote Perriand, Mallet Stevens, Djo-

    -Borjouis, entre outros.

    A disputa entre modernos e contemporneos foi intensa e constan-

    te ao longo de toda a dcada de 1920, fazendo-se notar nas exposies,

    nos sales e na crtica. A questo dos materiais adequados ao mobilirio

    ocupava um papel crucial na diviso de grupos e orientaes. J em 1925,

    na exposio anual do Salon des Artistes Dcorateurs, a mais afamada

    mostra internacional de artes decorativas, o uso do metal no mobilirio

    despontou como um emblema de modernidade. Inicialmente utilizado

    apenas em algumas partes dos mveis, como nos ps ou nas maanetas, a

    fim de prover estruturas mais resistentes ao uso, aos poucos se tornando

    um elemento compositivo central.

    Comentando o Salo de 1927, o crtico Leon Deshairs detm-se

    particularmente sobre os mveis de E. Ruhlmann, artista exemplar da

    tendncia anteriormente descrita como contempornea por seu esmero

    tcnico na renovao da tradio ebanistca, no uso de materiais requin-

    tados e exclusivos. Mesmo esse partidrio do dilogo com a tradio, aos

    14. JANNEAU, Guillaume. Introduction a LExposition des Arts Dcoratifs: Considerations sur lEsprit Moderne. In: Art et Dcoration, maio, 1925, p. 149-150. No original: [] lbnisterie moderne rejette lornement. Cest meme l son trait spcifique. Est-ce toutefois son trait distinctif? Lart des Emile Ruhlmann, des Andr Groult, des Se et Mare, nest-il pas moderne? []On ne saurait avec plus de bonheur, dintelligence et dhabilit, relier au pass le present et renouer la tradition: Louis Se et Andr Mare se rattachant aux formulas de la Restauration, Groult celles du dix-huitime sicle et Ruhlmann celles de lEmpire []. Eux-mmes, dailleurs, dclinent la qualification dartites modernes. Ils sont contemporains. Emile Ruhlmann cre des meubles contemporains. Cest le Muse dart contemporain quamnagent Se et Mare lexposition qui souvre. Contemporain, non moderne: constatation dun tat de fait, mais non profession dune doctrine. Qui dit moderne dfinit, en effet, une esththique. [] Cest des ressources techniques actuelles,

    et des conditions conomiques et

    domestiques presents quils les dduisent. En effet, notre souci dhygine, noutre got des sports, et notre scientificisme naccordent- ils pas

    la sale de bains une importance

    dterminante? On cre pour elle, en consequence, un

    mobilier tout nouveau () Ce sont l des

    meubles tablis pour une socit presse, prive

    de serviteurs, mais qui,surtout, aime lorder

    et la mthode, cette hygiene de lesprit [...].

    Traduo da autora.

    15. Tais posturas encontram-se

    representadas em textos modernistas

    programticos fundamentais, tais como: LOOS, Adolf. Ornament und Verbrechen (1908),

    trad. portuguesa Ornamento e crime.

    Lisboa: Cotovia, 2006; LE CORBUSIER, Lart

    decoratif daujourdhui (1925), trad. portuguesa,

    A arte decorativa de hoje. So Paulo: Martins

    Fontes, 1996.

    16. DESHAIRS, Leon. Une tape vers le meuble

    mtalique. In: Art et Dcoration, Paris, abril

    de 1927,

  • ARS

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    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

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    poucos incorpora materiais novos como o metal em seu trabalho, o que

    visto como um progresso. O prprio ttulo do artigo Uma etapa rumo

    ao mvel metlico, deixa claro o quanto o mvel de metal era visto como

    um devir obrigatrio:

    Nos vages, nos automveis, o metal progressivamente eliminou a madeira. Deve ele tambm estar, um dia mais ou menos longnquo, dentro do mobilirio da casa? Veremos ns mveis inteiramente metlicos, ou ao menos, nos quais a madeira, quente, colorida, com qualidades inigualveis no intervir apenas como adorno? Aguar-demos a profecia. Mas, do ponto de vista da resistncia s mu-danas da temperatura, os autores dos mveis reproduzidos nessas pginas atingiram suas metas. E, do ponto de vista esttico, suas experincias provam que, mesmo num escritrio de trabalho, ou num quarto, o metal e a madeira fazem uma boa parceria. Que se marque ou no uma etapa rumo ao mvel inteiramente metlico, os mveis semi-metlicos de Ruhlmann e de Chareau acusam um novo progresso do mvel metlico16.

    O ano de 1927 evidencia o triunfo dos mveis em metal no Salo,

    tornando-se mesmo o principal assunto da mostra. Dentre os artistas de-

    coradores designados como contemporneos o metal utilizado ao lado

    da madeira, que continua a ser o elemento predominante, tal como nos

    exemplares projetados por Ruhlman. Mas dentre os modernos cada vez

    mais nota-se um esforo em transformar o metal no material predomi-

    nante no mobilirio. Particularmente importante no campo francs da

    decorao deste momento o conjunto proposto por Charlotte Perriand

    para um bar, posto que se trata de um projeto inteiramente feito em me-

    tal, destacando-se bastante no Salo daquele ano, tal como se percebe no

    destaque obtido na prestigiosa publicao.

    fundamental tambm lembrar que a afirmao do mvel met-

    lico no ocorria apenas na Frana17. Na verdade, o pioneirismo deve ser

    atribudo s produes de Marcel Breuer, desenvolvidas em Dessau, na

    Alemanha, no interior da prestigiosa escola de Bauhaus. Em 1925 este j

    havia concebido uma cadeira inteiramente feita em tubos de ao,a Cadei-

    ra Club, posteriormente denominada como Vassily. Os mveis concebi-

    dos por Breuer tiveram sucesso imediato, dentro e fora da escola, Gropius

    convidara-o para mobiliar todo o edifcio da escola. E, j no ano seguinte,

    os mveis por ele concebidos j encontravam uma aplicao industrial,

    por meio da empresa Standar-Mbel fundada por ele e Klmn Lengyel.

    Em 1927, Breuer assinava um contrato com a empresa Thonet, uma mar-

    ncia, um mobilirio inteiramente novo. So mveis estabelecidos para uma sociedade apressada, privada de servidores, mas que, so-bretudo, ama a ordem e o mtodo, essa higiene do esprito14.

    O texto assinado pelo crtico Guillaume Janneau (1887-1968) iden-

    tificava duas perspectivas predominantes no salo. De um lado, artistas-

    -decoradores dedicados a recuperar elementos daquilo que aponta como

    a tradio nacional francesa e readequ-los s demandas do presente,

    o que implicava manter a sofisticada cultura ebanista secular do pas,

    adaptando-a para os novos usos, funes, espaos e gostos; a esses nomea-

    va contemporneos. Dentre eles destacava os nomes de Emile Ruhlmann,

    Louis Sue, Andr Mare, Grouault. De outro lado, um grupo de jovens

    artistas ansioso justamente por romper com o passado, instaurando uma

    esttica calcada na funcionalidade, livre de quaisquer tipos de ornamen-

    taes, elementos esses constantemente acusados nos discursos de serem

    historicistas, fteis e atrelados a um tempo que deveria ser superado15.

    Para tanto, defendiam que o mobilirio deveria utilizar-se de materiais

    novos, compassados ao mundo do presente, ento associado ao universo

    das indstrias, da cincia, do trabalho, do movimento, da higiene. Tal

    grupo era denominado como os modernos, dentre os quais se contava

    a participao de Le Corbusier, Charlote Perriand, Mallet Stevens, Djo-

    -Borjouis, entre outros.

    A disputa entre modernos e contemporneos foi intensa e constan-

    te ao longo de toda a dcada de 1920, fazendo-se notar nas exposies,

    nos sales e na crtica. A questo dos materiais adequados ao mobilirio

    ocupava um papel crucial na diviso de grupos e orientaes. J em 1925,

    na exposio anual do Salon des Artistes Dcorateurs, a mais afamada

    mostra internacional de artes decorativas, o uso do metal no mobilirio

    despontou como um emblema de modernidade. Inicialmente utilizado

    apenas em algumas partes dos mveis, como nos ps ou nas maanetas, a

    fim de prover estruturas mais resistentes ao uso, aos poucos se tornando

    um elemento compositivo central.

    Comentando o Salo de 1927, o crtico Leon Deshairs detm-se

    particularmente sobre os mveis de E. Ruhlmann, artista exemplar da

    tendncia anteriormente descrita como contempornea por seu esmero

    tcnico na renovao da tradio ebanistca, no uso de materiais requin-

    tados e exclusivos. Mesmo esse partidrio do dilogo com a tradio, aos

    14. JANNEAU, Guillaume. Introduction a LExposition des Arts Dcoratifs: Considerations sur lEsprit Moderne. In: Art et Dcoration, maio, 1925, p. 149-150. No original: [] lbnisterie moderne rejette lornement. Cest meme l son trait spcifique. Est-ce toutefois son trait distinctif? Lart des Emile Ruhlmann, des Andr Groult, des Se et Mare, nest-il pas moderne? []On ne saurait avec plus de bonheur, dintelligence et dhabilit, relier au pass le present et renouer la tradition: Louis Se et Andr Mare se rattachant aux formulas de la Restauration, Groult celles du dix-huitime sicle et Ruhlmann celles de lEmpire []. Eux-mmes, dailleurs, dclinent la qualification dartites modernes. Ils sont contemporains. Emile Ruhlmann cre des meubles contemporains. Cest le Muse dart contemporain quamnagent Se et Mare lexposition qui souvre. Contemporain, non moderne: constatation dun tat de fait, mais non profession dune doctrine. Qui dit moderne dfinit, en effet, une esththique. [] Cest des ressources techniques actuelles,

    et des conditions conomiques et

    domestiques presents quils les dduisent. En effet, notre souci dhygine, noutre got des sports, et notre scientificisme naccordent- ils pas

    la sale de bains une importance

    dterminante? On cre pour elle, en consequence, un

    mobilier tout nouveau () Ce sont l des

    meubles tablis pour une socit presse, prive

    de serviteurs, mais qui,surtout, aime lorder

    et la mthode, cette hygiene de lesprit [...].

    Traduo da autora.

    15. Tais posturas encontram-se

    representadas em textos modernistas

    programticos fundamentais, tais como: LOOS, Adolf. Ornament und Verbrechen (1908),

    trad. portuguesa Ornamento e crime.

    Lisboa: Cotovia, 2006; LE CORBUSIER, Lart

    decoratif daujourdhui (1925), trad. portuguesa,

    A arte decorativa de hoje. So Paulo: Martins

    Fontes, 1996.

    16. DESHAIRS, Leon. Une tape vers le meuble

    mtalique. In: Art et Dcoration, Paris, abril

    de 1927,

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    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    54 55

    mais natural da madeira, mostrando a busca de um dilogo com a tradi-

    o artesanal francesa, com o vernacular. Tal escolha esttica possui um

    sentido poltico, o de demonstrar o apreo pela antiga Frana, que havia

    resistido bravamente aos impactos da I Guerra. De outro lado, Charlot-

    te Perriand que, nos anos 1920 havia redigido manifestos programticos

    contra a madeira e realizado obras paradigmticas, como o bar de 1927,

    nos anos de 1930 passa a realizar obras em que opta pelo uso abundante

    do material outrora negado, defendendo-o dessa vez como mais adequa-

    do esfera humana. Matizando sua posio anterior integralmente sim-

    ptica aos princpios revolucionrios dos modernistas, nos escritos da

    dcada de 1930 a artista-decoradora passou a defender o uso de elemen-

    tos associados ao vernculo, e mesmo a assimilar influncias regionais20.

    No entanto, em finais dos anos de 1920, essa volta tradio ainda

    era vista com muitas reservas pelos modernistas, antes bem ao contrrio,

    trata-se de um momento de euforia para com os elementos constitutivos

    da civilizao do presente. O artigo assinado por Leon Werth21 na revis-

    ta Art et Dcoration esclarecedor dos sentido cultural que os materiais

    adquiriram, notadamente no que tange crena no metal como um ele-

    mento de afirmao da sociedade do presente, e do futuro:

    E aqui que Ruhlmann nos convida antecipao, Ruhlmann que prefere costumeiramente nos seduzir somente pela perfeio e aristocracia de seu gosto. Ele expe um mvel metlico (um ensaio sobre um mvel de ao). Lon Deshair demonstrou aqui mesmo o conflito entre nosso apego ao calor da madeira e as esperanas que o metal e a mecnica sugerem ao nosso esprito. Ns vivemos uma idade do metal. Sem que seja mesmo necessrio se fazer intervir consideraes utilitrias, e pouco sedutoras que possam ser a ma-tria, o metal, em nossa poca de maquinismo, exerce uma atrao sobre ns. Ns queremos mveis estritos como as carrocerias. [...] mveis perfeitamente adaptados a uma civilizao mecnica e a um universo desmadeirizado22.

    III. A forma possvel: os sentidos das contradies do mobilirio da Casa Modernista

    muito provvel que Warchavchik conhecesse tal debate por inter-

    mdio das revistas ilustradas comercializadas mundialmente que aporta-

    vam no Brasil23. Nesse sentido, realizar um conjunto de mveis adaptado

    ao ideal de uma casa modernista era um objetivo programtico. Afinal,

    ca emblemtica no ramo do mobilirio internacional desde o sculo XIX,

    e passava a desenhar para ela uma srie de peas em ao tubular, como

    a Cadeira Cantilever. Com efeito, o mobilirio em metal elaborado por

    Breuer foi fundamental para a prpria constituio e projeo de imagem

    de modernidade propagada pela Bauhaus18.

    O significado do uso do metal transcendia a sua mera aplicabilida-

    de tcnica, possuindo um profundo sentido cultural aos olhos de seus de-

    fensores. Era ento alado condio de material emblematicamente mo-

    derno: adaptado civilizao mecnica, era das mquinas e do trabalho,

    higinico, resistente, funcional, limpo e prtico, smbolo de modernidade.

    Alm do mais, trazia consigo a possibilidade de uma produo industria-

    lizada para consumo de grande pblico. Com isso, o uso do ao tubular

    paulatinamente tornou-se sinnimo de esttica modernista, ao passo que

    a utilizao da madeira associou-se, naquele decnio, prtica dos artis-

    tas tidos como contemporneos, termo que, diferentemente de seu sentido

    atual, agrupava artistas de orientao mais tradicional. Cada um desses

    meios era ento impregnado de simbologias; o metal representava o pri-

    mado da funcionalidade, do presente e do futuro. J a madeira adquiria

    um sentido oposto, o de sofisticao, de artesania, de apego s tradies,

    em suma, era entendido como a materializao do apego ao passado19.

    Todavia, importante lembrar que tais discursos faziam questo de

    negligenciar certos pontos. Primeiramente, o fato de que havia sido Ruhl-

    mann o introdutor do metal em seus trabalhos, em pequenos detalhes

    como os ps e maanetas, antes de os designados modernos o fazerem.

    Em segundo lugar, que o custo de tal material era tamanho que tornava

    seu consumo altamente elitizado, contrariando o princpio democrtico

    perseguido pelos modernistas. Com efeito, muito da produo dos mo-

    dernistas realizada na Frana no contou com uma aplicao industrial,

    como ocorrera na Alemanha com as obras de Breuer, possuindo assim um

    carter muito mais de projeto, de modelo do que propriamente de objetos

    de consumo. E, em terceiro lugar, a partir dos anos de 1930 percebe-se

    uma tendncia geral, compartilhada por ambos os lados, em optar pela

    madeira como material preponderante, em um movimento que pode ser

    compreendido como o de volta ao homem, como bem definiu Romy

    Golan. Segundo a autora, evidencia-se durante a dcada de 1930 uma

    tendncia geral mais conservadora na produo cultural francesa, incluin-

    do o campo do mobilirio. Ruhlmann, por exemplo, abole o polimento da

    superfcie, que era ento uma de suas marcas, a fim de salientar o aspecto

    p. 110. No original: Dans les wagons, les autos, le metal a progressivement limin le bois. Doit-il en tre de mme, um jour plus ou moins lointain, dans le mobilier de la Maison? Verrons-nous

    des meubles entirement mtalliques, ou du moins ou le bois, chaud, colore, aux qualits sans gales,

    ninterviendra plus que comme garniture?

    Gardons-nous de jour au prophte. Mais, au point de vue de la rsistance aux changements de

    temprature, les auteurs des meubles reproduits en ces pages ont atteint

    leur but. Et, au point de vue esthtique, leur

    exprience a prouv que, mme dasn um cabinet de

    travail ou une chambre, metal et bois peuvent

    faire bon mnage. Quils marquent ou non une tape vers le meuble

    entirement metallique, les meubles semi-

    mtalliques de Ruhlmann et de Chareau accusent

    un nouveau progrs du meuble moderne. Traduo da autora.

    17. Sobre a histria da tcnica do mobilirio em metal, consultar:

    Tubular Steel Furniture: Antecedents and Early History, In: Journal of

    Design History, Oxford, vol 3. N.2/3. 1990.

    18. COBBES, Arnt. Marcel Breuer,

    1902-1981.Criador da forma do sculo XX.

    Koln: Taschen, 2009, p. 21. Para uma anlise

    densa sobre o designer e sua produo ler:

    ARGAN, Giulio Carlo. Marcel Breuer- desenho industrial e arquitetura.

    In: Arte moderna na Europa, de Hogarth

    a Picasso. So Paulo: Companhia das Letras,

    2010.

    19. A esse respeito consultar: GOLAN,

    Romy. Modernity and Nostalgia: Art and Politics in France

    between the Wars. New Haven, London, Yale

    University Press, 1995.

    20. GOLAN, Romy, Op. cit. Sobre o retorno de Perriand aos materiais tradicionais, ler Benton, Op cit. Sobre Perriand, ler tambm: RUBINO,

    Silvana. Corpos, cadeiras, colares:

    Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi. Cadernos Pagu

    [online]. 2010, n.34, p. 331-362.

    21. Lon Werth (1878-1955) foi um importante

    crtico de arte e de poltica, alm de ensasta e novelista. Era prximo a Octave Mirabeau, alm

    de Saint-Exupery, que lhe dedica seu

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    54 55

    mais natural da madeira, mostrando a busca de um dilogo com a tradi-

    o artesanal francesa, com o vernacular. Tal escolha esttica possui um

    sentido poltico, o de demonstrar o apreo pela antiga Frana, que havia

    resistido bravamente aos impactos da I Guerra. De outro lado, Charlot-

    te Perriand que, nos anos 1920 havia redigido manifestos programticos

    contra a madeira e realizado obras paradigmticas, como o bar de 1927,

    nos anos de 1930 passa a realizar obras em que opta pelo uso abundante

    do material outrora negado, defendendo-o dessa vez como mais adequa-

    do esfera humana. Matizando sua posio anterior integralmente sim-

    ptica aos princpios revolucionrios dos modernistas, nos escritos da

    dcada de 1930 a artista-decoradora passou a defender o uso de elemen-

    tos associados ao vernculo, e mesmo a assimilar influncias regionais20.

    No entanto, em finais dos anos de 1920, essa volta tradio ainda

    era vista com muitas reservas pelos modernistas, antes bem ao contrrio,

    trata-se de um momento de euforia para com os elementos constitutivos

    da civilizao do presente. O artigo assinado por Leon Werth21 na revis-

    ta Art et Dcoration esclarecedor dos sentido cultural que os materiais

    adquiriram, notadamente no que tange crena no metal como um ele-

    mento de afirmao da sociedade do presente, e do futuro:

    E aqui que Ruhlmann nos convida antecipao, Ruhlmann que prefere costumeiramente nos seduzir somente pela perfeio e aristocracia de seu gosto. Ele expe um mvel metlico (um ensaio sobre um mvel de ao). Lon Deshair demonstrou aqui mesmo o conflito entre nosso apego ao calor da madeira e as esperanas que o metal e a mecnica sugerem ao nosso esprito. Ns vivemos uma idade do metal. Sem que seja mesmo necessrio se fazer intervir consideraes utilitrias, e pouco sedutoras que possam ser a ma-tria, o metal, em nossa poca de maquinismo, exerce uma atrao sobre ns. Ns queremos mveis estritos como as carrocerias. [...] mveis perfeitamente adaptados a uma civilizao mecnica e a um universo desmadeirizado22.

    III. A forma possvel: os sentidos das contradies do mobilirio da Casa Modernista

    muito provvel que Warchavchik conhecesse tal debate por inter-

    mdio das revistas ilustradas comercializadas mundialmente que aporta-

    vam no Brasil23. Nesse sentido, realizar um conjunto de mveis adaptado

    ao ideal de uma casa modernista era um objetivo programtico. Afinal,

    ca emblemtica no ramo do mobilirio internacional desde o sculo XIX,

    e passava a desenhar para ela uma srie de peas em ao tubular, como

    a Cadeira Cantilever. Com efeito, o mobilirio em metal elaborado por

    Breuer foi fundamental para a prpria constituio e projeo de imagem

    de modernidade propagada pela Bauhaus18.

    O significado do uso do metal transcendia a sua mera aplicabilida-

    de tcnica, possuindo um profundo sentido cultural aos olhos de seus de-

    fensores. Era ento alado condio de material emblematicamente mo-

    derno: adaptado civilizao mecnica, era das mquinas e do trabalho,

    higinico, resistente, funcional, limpo e prtico, smbolo de modernidade.

    Alm do mais, trazia consigo a possibilidade de uma produo industria-

    lizada para consumo de grande pblico. Com isso, o uso do ao tubular

    paulatinamente tornou-se sinnimo de esttica modernista, ao passo que

    a utilizao da madeira associou-se, naquele decnio, prtica dos artis-

    tas tidos como contemporneos, termo que, diferentemente de seu sentido

    atual, agrupava artistas de orientao mais tradicional. Cada um desses

    meios era ento impregnado de simbologias; o metal representava o pri-

    mado da funcionalidade, do presente e do futuro. J a madeira adquiria

    um sentido oposto, o de sofisticao, de artesania, de apego s tradies,

    em suma, era entendido como a materializao do apego ao passado19.

    Todavia, importante lembrar que tais discursos faziam questo de

    negligenciar certos pontos. Primeiramente, o fato de que havia sido Ruhl-

    mann o introdutor do metal em seus trabalhos, em pequenos detalhes

    como os ps e maanetas, antes de os designados modernos o fazerem.

    Em segundo lugar, que o custo de tal material era tamanho que tornava

    seu consumo altamente elitizado, contrariando o princpio democrtico

    perseguido pelos modernistas. Com efeito, muito da produo dos mo-

    dernistas realizada na Frana no contou com uma aplicao industrial,

    como ocorrera na Alemanha com as obras de Breuer, possuindo assim um

    carter muito mais de projeto, de modelo do que propriamente de objetos

    de consumo. E, em terceiro lugar, a partir dos anos de 1930 percebe-se

    uma tendncia geral, compartilhada por ambos os lados, em optar pela

    madeira como material preponderante, em um movimento que pode ser

    compreendido como o de volta ao homem, como bem definiu Romy

    Golan. Segundo a autora, evidencia-se durante a dcada de 1930 uma

    tendncia geral mais conservadora na produo cultural francesa, incluin-

    do o campo do mobilirio. Ruhlmann, por exemplo, abole o polimento da

    superfcie, que era ento uma de suas marcas, a fim de salientar o aspecto

    p. 110. No original: Dans les wagons, les autos, le metal a progressivement limin le bois. Doit-il en tre de mme, um jour plus ou moins lointain, dans le mobilier de la Maison? Verrons-nous

    des meubles entirement mtalliques, ou du moins ou le bois, chaud, colore, aux qualits sans gales,

    ninterviendra plus que comme garniture?

    Gardons-nous de jour au prophte. Mais, au point de vue de la rsistance aux changements de

    temprature, les auteurs des meubles reproduits en ces pages ont atteint

    leur but. Et, au point de vue esthtique, leur

    exprience a prouv que, mme dasn um cabinet de

    travail ou une chambre, metal et bois peuvent

    faire bon mnage. Quils marquent ou non une tape vers le meuble

    entirement metallique, les meubles semi-

    mtalliques de Ruhlmann et de Chareau accusent

    un nouveau progrs du meuble moderne. Traduo da autora.

    17. Sobre a histria da tcnica do mobilirio em metal, consultar:

    Tubular Steel Furniture: Antecedents and Early History, In: Journal of

    Design History, Oxford, vol 3. N.2/3. 1990.

    18. COBBES, Arnt. Marcel Breuer,

    1902-1981.Criador da forma do sculo XX.

    Koln: Taschen, 2009, p. 21. Para uma anlise

    densa sobre o designer e sua produo ler:

    ARGAN, Giulio Carlo. Marcel Breuer- desenho industrial e arquitetura.

    In: Arte moderna na Europa, de Hogarth

    a Picasso. So Paulo: Companhia das Letras,

    2010.

    19. A esse respeito consultar: GOLAN,

    Romy. Modernity and Nostalgia: Art and Politics in France

    between the Wars. New Haven, London, Yale

    University Press, 1995.

    20. GOLAN, Romy, Op. cit. Sobre o retorno de Perriand aos materiais tradicionais, ler Benton, Op cit. Sobre Perriand, ler tambm: RUBINO,

    Silvana. Corpos, cadeiras, colares:

    Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi. Cadernos Pagu

    [online]. 2010, n.34, p. 331-362.

    21. Lon Werth (1878-1955) foi um importante

    crtico de arte e de poltica, alm de ensasta e novelista. Era prximo a Octave Mirabeau, alm

    de Saint-Exupery, que lhe dedica seu

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    56 57

    bre possvel, estudar os arredores imediatos e as exigncias da vida particular dos futuros habitantes. Assim as construes tero car-ter original, fomar-se- um estilo novo, prprio ao lugar, confortvel e de absoluta beleza25.

    Os materiais do presente (ferro, vidro, concreto) so tomados como

    a base de um princpio universalmente compartilhado. O mobilirio em

    questo revela justamente as distncias existentes entre o desejo de uma

    esttica moderna internacionalmente difundida pelos modernistas e as

    possibilidades concretas, reais, com que o designer brasileiro contava. Tal

    questo j foi analisada por Carlos Lemos, em 1983, referindo-se aos pro-

    jetos arquitetnicos, de sorte a apontar a incongruncia entre a dimenso

    publicista de Warchavchik e sua prtica como construtor, particularmente

    no caso da residncia da Vila Marina. Segundo o autor:

    [...] Foi sua primeira tentativa de arquitetura moderna, infelizmen-te, a nosso ver, sem validade, porque se ateve somente aos aspectos formais. A tcnica construtiva empregada foi a tradicional dos mu-ros contnuos de alvenaria de tijolos, no usando o j vigente con-creto armado, no fazendo o esperado terrao jardim, cobrindo a casa com telhas comuns de barro logo escamoteadas. [...] Percebe--se, nesse raciocnio, que ele transformava um edifcio tradicional em moderno com a simples eliminao de molduras e ornatos. Esse comportamento leva-nos a pensar que o arquiteto entendia mais a modernidade arquitetnica como um estilo do que uma postura perante os recursos e pensamentos contemporneos. Pu-demos ver casa de plantas semelhantes e de mesma volumetria ves-tidas de roupagem neoclssica, arte-nouveau (sic) ou neocolonial, segundo o desejo do proprietrio e, na verdade, podemos dizer que a casa da Vila Mariana era tambm uma casa tradicional, porm despida e, por isso, moderna26.

    Tambm Jos Lira analisa a distncia entre as prticas construtivas

    mobilizadas e os ideais modernistas defendidos por Warchavchik, notada-

    mente na Casa da Rua Santa Cruz, mas ao invs de conden-la, de ver nas

    incongruncias sinais do fracasso do arquiteto, de sua limitao esttica

    ou de sua adeso incompleta ao credo modernista, se prope a tirar parti-

    do da contradio, pois como afirma o autor:

    [...] a casa da rua Santa Cruz, porque contraditria, a obra mais emblemtica da virada arquitetnica brasileira. Urbana e suburbana, moderna e clssica, inovadora e convencional, pro-vinciana e cosmopolita, a casa representa eloquentes matrizes compositivas e, simultaneamente, a negao de todos os estilos. [....] As discrepncias visuais, concesses e desvios patentes em sua arquiteutra, em vez de atestarem uma defasagem, aludem s

    como nota Charlotte Benton, o design do mvel moderno alara a condi-

    o de alegoria exemplar do prprio modernismo24. Desse ponto de vista,

    a concretizao do mvel plenamente adaptado ao seu tempo significava

    uma aproximao com as propostas mais vanguardistas, que defendiam a

    eliminao do historicismo, do ornamento, a reprodutibilidade industrial

    e, finalmente, o uso obrigatrio do metal.

    Todavia, apesar do efeito obtido pela tinta prateada aproximar

    visualmente o mvel das produes que Warchavchik considerava inova-

    doras, a estrutura toda de madeira, material desvalorizado pela crtica

    modernista internacional por ser tradicional, pesado, caro, nobre, inapro-

    priado aos tempos de predomnio de uma civilizao tcnica. A primeira

    vista o mvel parece uma realizao primeira, pioneira, do mvel moderno

    no Brasil por conta de seu absoluto despojamento formal, calcado em

    um claro rigor geomtrico, em uma ostensiva recusa ao ornamento, bem

    como em seu aspecto metlico. Todavia, como compreender as suges-

    tivas contradies intrnsecas ao objeto? Nele, a luminosidade prateada

    no advm de uma base metlica, como seria de se esperar, mas sim de

    uma tinta que imitaria o almejado material, sob a qual o arquiteto escon-

    dia, disfarava mesmo, sua base real: a madeira. Ao maquiar seu objeto,

    Warchavchik rompia com mais um mandamento do iderio modernista, a

    saber, o de salientar a verdade dos materiais.

    O arquiteto era extremamente consciente da importncia que os

    materiais haviam adquirido para as prticas modernistas, no apenas no

    que tange aos princpios construtivos observados, mas em sua explicitao.

    Um dos elementos que os diferenciava enquanto grupo era, justamente,

    o no ocultamento dos materiais construtivos por intermdio do uso de

    fachadas, ornamentos, coberturas, prticas associadas aos passadistas,

    nome dado aos caudatrios dos princpios eclticos. Nesse sentido, afirma

    Warchavchik:

    Pouco tempo passar, e no se poder mais falar de estilo gti-co, Renascimento, Lus XV e outros sem parecer ridculo, salvo referindo-se ao passado.Haver um s estilo moderno, com as suas diferenas oriundas do clima e dos costumes. Teremos talvez uma arquitetura europia, outra sul-americana, outra americana. Finalmente todas juntas for-maro um s estilo mundial, criado pelas mesmas exigncias da vida, pelo material idntico usado para a construo, o concreto, o ferro, o vidro [....]. O arquiteto do futuro no copiar coisa alguma. Procurar inspirar-se no material, do qual usar sempre o mais no-

    mais conhecido livro O Pequeno Prncipe, de orientao anarquista, publicou textos e livros contra a colaborao Francesa ao III Reich, durante a Segunda Guerra Mundial.

    22. WERTH, Leon. Le Salon des Artistes Dcorateurs. In: Art et Dcoration, Paris, numro exceptionel, junho de 1927, p. 168. No original: Et cest ici Ruhlmann que nous convie lanticipation, Ruhlmann qui prefere dordinnaire nous sduire par la seule perfection et la seule aristocratie de son got. Il expose um meuble mtallique (essai sur le meuble dacier). Lon Deshairs a montr ici mme le conflit entre notre attachement la chaleur du bois et les esprances que le metal et la mcanique suggrent notre esprit. Nous vivons un ge du metal. Sans mme qu l soit ncessaire de faire intervenir des considrations utilitaires, et si peu sduisante quen pusse tre la matire, le metal, en notre poque de machinisme, exerce une attraction sur nous. Nous voulons des meubles stricts comme des carrosseries. [] du meuble parfaitement

    adapte une civilisation mcanique et um Univers dbois..

    Traduo da autora.

    23. Infelizmente no se conhece o paradeiro da biblioteca do arquiteto,

    no entanto, sabe-se que revistas modernistas

    importantes como a Esprit Nouveau, a Deutsche Kunst um Dekoration, a The Studio, a Cahiers

    dArt entre outras, eram lidas no Brasil, discutidas

    entre os grupos dos quais Warchavchik fazia parte. A esse respeito: LIRA, Op. cit., p. 143;

    CAPPELLO, Maria Beatriz. Arquitetura em revista: arquitetura moderna no

    Brasil e sua recepo nas revistas francesas, inglesas e italianas. So

    Paulo, Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-USP, 2006;

    CARVALHO, Lilian Escorel de. A revista francesa Lesprit Noveau na formao das ideias

    estticas e da potica de Mrio de Andrade. So

    Paulo, Tese de Doutorado em Literatura Brasileira,

    Universidade de So Paulo, 2008.

    24. Diz a autora: The design of the modern

    chair thus became a kind of exemplary allegory of modernism. The modern man and woman needed

  • ARS

    ano 10

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    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    56 57

    bre possvel, estudar os arredores imediatos e as exigncias da vida particular dos futuros habitantes. Assim as construes tero car-ter original, fomar-se- um estilo novo, prprio ao lugar, confortvel e de absoluta beleza25.

    Os materiais do presente (ferro, vidro, concreto) so tomados como

    a base de um princpio universalmente compartilhado. O mobilirio em

    questo revela justamente as distncias existentes entre o desejo de uma

    esttica moderna internacionalmente difundida pelos modernistas e as

    possibilidades concretas, reais, com que o designer brasileiro contava. Tal

    questo j foi analisada por Carlos Lemos, em 1983, referindo-se aos pro-

    jetos arquitetnicos, de sorte a apontar a incongruncia entre a dimenso

    publicista de Warchavchik e sua prtica como construtor, particularmente

    no caso da residncia da Vila Marina. Segundo o autor:

    [...] Foi sua primeira tentativa de arquitetura moderna, infelizmen-te, a nosso ver, sem validade, porque se ateve somente aos aspectos formais. A tcnica construtiva empregada foi a tradicional dos mu-ros contnuos de alvenaria de tijolos, no usando o j vigente con-creto armado, no fazendo o esperado terrao jardim, cobrindo a casa com telhas comuns de barro logo escamoteadas. [...] Percebe--se, nesse raciocnio, que ele transformava um edifcio tradicional em moderno com a simples eliminao de molduras e ornatos. Esse comportamento leva-nos a pensar que o arquiteto entendia mais a modernidade arquitetnica como um estilo do que uma postura perante os recursos e pensamentos contemporneos. Pu-demos ver casa de plantas semelhantes e de mesma volumetria ves-tidas de roupagem neoclssica, arte-nouveau (sic) ou neocolonial, segundo o desejo do proprietrio e, na verdade, podemos dizer que a casa da Vila Mariana era tambm uma casa tradicional, porm despida e, por isso, moderna26.

    Tambm Jos Lira analisa a distncia entre as prticas construtivas

    mobilizadas e os ideais modernistas defendidos por Warchavchik, notada-

    mente na Casa da Rua Santa Cruz, mas ao invs de conden-la, de ver nas

    incongruncias sinais do fracasso do arquiteto, de sua limitao esttica

    ou de sua adeso incompleta ao credo modernista, se prope a tirar parti-

    do da contradio, pois como afirma o autor:

    [...] a casa da rua Santa Cruz, porque contraditria, a obra mais emblemtica da virada arquitetnica brasileira. Urbana e suburbana, moderna e clssica, inovadora e convencional, pro-vinciana e cosmopolita, a casa representa eloquentes matrizes compositivas e, simultaneamente, a negao de todos os estilos. [....] As discrepncias visuais, concesses e desvios patentes em sua arquiteutra, em vez de atestarem uma defasagem, aludem s

    como nota Charlotte Benton, o design do mvel moderno alara a condi-

    o de alegoria exemplar do prprio modernismo24. Desse ponto de vista,

    a concretizao do mvel plenamente adaptado ao seu tempo significava

    uma aproximao com as propostas mais vanguardistas, que defendiam a

    eliminao do historicismo, do ornamento, a reprodutibilidade industrial

    e, finalmente, o uso obrigatrio do metal.

    Todavia, apesar do efeito obtido pela tinta prateada aproximar

    visualmente o mvel das produes que Warchavchik considerava inova-

    doras, a estrutura toda de madeira, material desvalorizado pela crtica

    modernista internacional por ser tradicional, pesado, caro, nobre, inapro-

    priado aos tempos de predomnio de uma civilizao tcnica. A primeira

    vista o mvel parece uma realizao primeira, pioneira, do mvel moderno

    no Brasil por conta de seu absoluto despojamento formal, calcado em

    um claro rigor geomtrico, em uma ostensiva recusa ao ornamento, bem

    como em seu aspecto metlico. Todavia, como compreender as suges-

    tivas contradies intrnsecas ao objeto? Nele, a luminosidade prateada

    no advm de uma base metlica, como seria de se esperar, mas sim de

    uma tinta que imitaria o almejado material, sob a qual o arquiteto escon-

    dia, disfarava mesmo, sua base real: a madeira. Ao maquiar seu objeto,

    Warchavchik rompia com mais um mandamento do iderio modernista, a

    saber, o de salientar a verdade dos materiais.

    O arquiteto era extremamente consciente da importncia que os

    materiais haviam adquirido para as prticas modernistas, no apenas no

    que tange aos princpios construtivos observados, mas em sua explicitao.

    Um dos elementos que os diferenciava enquanto grupo era, justamente,

    o no ocultamento dos materiais construtivos por intermdio do uso de

    fachadas, ornamentos, coberturas, prticas associadas aos passadistas,

    nome dado aos caudatrios dos princpios eclticos. Nesse sentido, afirma

    Warchavchik:

    Pouco tempo passar, e no se poder mais falar de estilo gti-co, Renascimento, Lus XV e outros sem parecer ridculo, salvo referindo-se ao passado.Haver um s estilo moderno, com as suas diferenas oriundas do clima e dos costumes. Teremos talvez uma arquitetura europia, outra sul-americana, outra americana. Finalmente todas juntas for-maro um s estilo mundial, criado pelas mesmas exigncias da vida, pelo material idntico usado para a construo, o concreto, o ferro, o vidro [....]. O arquiteto do futuro no copiar coisa alguma. Procurar inspirar-se no material, do qual usar sempre o mais no-

    mais conhecido livro O Pequeno Prncipe, de orientao anarquista, publicou textos e livros contra a colaborao Francesa ao III Reich, durante a Segunda Guerra Mundial.

    22. WERTH, Leon. Le Salon des Artistes Dcorateurs. In: Art et Dcoration, Paris, numro exceptionel, junho de 1927, p. 168. No original: Et cest ici Ruhlmann que nous convie lanticipation, Ruhlmann qui prefere dordinnaire nous sduire par la seule perfection et la seule aristocratie de son got. Il expose um meuble mtallique (essai sur le meuble dacier). Lon Deshairs a montr ici mme le conflit entre notre attachement la chaleur du bois et les esprances que le metal et la mcanique suggrent notre esprit. Nous vivons un ge du metal. Sans mme qu l soit ncessaire de faire intervenir des considrations utilitaires, et si peu sduisante quen pusse tre la matire, le metal, en notre poque de machinisme, exerce une attraction sur nous. Nous voulons des meubles stricts comme des carrosseries. [] du meuble parfaitement

    adapte une civilisation mcanique et um Univers dbois..

    Traduo da autora.

    23. Infelizmente no se conhece o paradeiro da biblioteca do arquiteto,

    no entanto, sabe-se que revistas modernistas

    importantes como a Esprit Nouveau, a Deutsche Kunst um Dekoration, a The Studio, a Cahiers

    dArt entre outras, eram lidas no Brasil, discutidas

    entre os grupos dos quais Warchavchik fazia parte. A esse respeito: LIRA, Op. cit., p. 143;

    CAPPELLO, Maria Beatriz. Arquitetura em revista: arquitetura moderna no

    Brasil e sua recepo nas revistas francesas, inglesas e italianas. So

    Paulo, Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-USP, 2006;

    CARVALHO, Lilian Escorel de. A revista francesa Lesprit Noveau na formao das ideias

    estticas e da potica de Mrio de Andrade. So

    Paulo, Tese de Doutorado em Literatura Brasileira,

    Universidade de So Paulo, 2008.

    24. Diz a autora: The design of the modern

    chair thus became a kind of exemplary allegory of modernism. The modern man and woman needed

  • ARS

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    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

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    cessrias, porque delas, principalmente, que depende a soluo dessa enorme interrogativa, constituda de um assunto tcnico e humanitrio, concretizada na indstria de casas adequadas ao ho-mem do nosso sculo29.

    Talvez se possa entender a realizao de tal mobilirio, mesmo que

    permeado de contradies das quais o arquiteto era plenamente consciente,

    se o tomarmos como um modelo para um futuro desejvel, ou seja, um pro-

    ttipo que poderia sensibilizar as elites industriais nacionais para os rumos

    de um devir que estava em suas mos, um devir talvez quimrico, mas com

    o qual se podia sonhar na So Paulo de finais das dcadas de 1920 e 1930.

    O mobilirio da Casa Modernista , assim, revelador das incongru-

    ncias profundas entre os discursos e utopias modernistas e as prticas

    histricas concretas com que tais pioneiros da modernidade se defron-

    taram. So a prpria materializao das contradies entre a funcionali-

    dade e a plstica propagadas pelo discurso vanguardista internacional e as

    injunes locais; entre os emblemas de uma civilizao industrial simbo-

    lizados pelo metal e as condies reais de um pas e de uma cidade que se

    pretendiam modernos, mas sem um desenvolvimento tcnico e industrial

    condizente com seus auspcios; entre a crena na forma e na funo racio-

    nalistas e a abundncia dos materiais orgnicos, essencialmente passadis-

    tas, mas pouco custosos. Tais mveis so a materializao da sntese pos-

    svel entre um discurso internacionalista e uma prtica enraizada numa

    experincia concreta, smbolos dos caminhos tortuosos, incongruentes e

    contraditrios trilhados, de forma fragmentada e no evolutiva, para a

    afirmao do modernismo entre ns.

    possibilidades concretas do modernismo no solo social e cultural especfico em que se exprime27.

    Tal perspectiva parece-nos muito fecunda para compreender o

    que se passava tambm no campo do mobilirio. A almejada utilizao

    de peas industrializadas, to valorizada pelo discurso modernista inter-

    nacional, mostrava-se no Brasil uma quimera, a qual foi, no entanto, per-

    seguida pelo arquiteto. Em seu pronunciamento como representante da

    Amrica do Sul no Congresso de 1931, Warchavchik comentava as difi-

    culdades tecnolgicas vivenciadas no Brasil e o quanto essas impactavam

    a produo dos arquitetos e designers locais:

    H uma outra dificuldade: no podendo contar com a indstria, precisamos aproveitar a mo de obra. O operrio no Brasil, onde se constri muito e rapidamente, adquire grande habilidade. No en-tanto, no fcil form-lo para o trabalho moderno, e confrontei--me com srias dificuldades, quando quis organizar os diversos gru-pos capazes de executar meus projetos. Eu mesmo tive que montar atelis para que fossem executadas janelas, portas de madeiras lisa, mveis, etc., porque a indstria , que alis trabalha bastante bem para a arquitetura comum, no pde realizar o que eu lhe pedia com a preciso e o cuidado necessrios28.

    Nesse contexto, em nome da unidade formal, o arquiteto abdicava

    de princpios programticos e realizava, mesmo que artesanalmente, os

    elementos compositivos fundamentais para a obteno de um efeito visual

    de conjunto harmnico e moderno. De fato, o moderno inseria-se a a par-

    tir das contingncias do possvel, no como realidade tcnica e material,

    mas como forma pura, como estilo. A falta de uma indstria e de uma

    tecnologia desenvolvidas era um empecilho dificilmente contornvel para

    as prticas modernistas, todavia, exemplos como os da Casa da rua Itpolis

    poderiam sensibilizar aqueles outros sujeitos to fundamentais para ode-

    senvolvimento da cultura brasileira na direo desse almejado futuro:

    os empresrios, diversas vezes solicitados nos discursos de Warchavchik,

    referidos como os novos mecenas da contemporaneidade. Ao comentar os

    entraves para a execuo de casas-tipo no Brasil, que passavam especial-

    mente pela ausncia de materiais industrializados adequados, o arquiteto

    assinala a importncia dos industriais para a sociedade contempornea:

    [...] Seria, pois, de grande convenincia que os nossos grandes industriais, aos quais cabe o papel dos Medici no sculo XIV, se interessassem por esse problema, patrocinando as experincias ne- Ana Paula Cavalcanti Simioni Mestre e Doutora em Sociologia pela USP e docente do

    Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    a modern chair. In: BENTON, Charlotte, Op. cit., p. 104.

    25. Warchavchik, G. Decadncia e Renascimento da Arquitetura. In: Arquitetura do sculo XX e outros escritos, Op. cit., p. 59. Originalmente publicado em Correio Paulistano, 5 de agosto de 2008.

    26. LEMOS, Carlos. Arquitetura contempornea. In: Histria geral da arte no Brasil, vol. 2 , coord. Walter Zanini, p. 832

    27. LIRA, Op. cit., p. 152-3.

    28. WARCHAVCHIK, G. Op. cit.., p. 171, originalmente o texto foi publicado na revista Cahiers dArt, em Paris, 1931.

    29. Warchavchik, G. Ainda as teorias de Le Corbusier. In: Arquitetura do sculo XX e outros escritos. Op. cit., p. 86-87. Publicado originalmente em Correio Paulistano, 14 de setembro de 1928.

  • ARS

    ano 10

    n 20

    ANA PAULA SIMIONI

    Anatomia de um Mvel Moderno: algumas questes em torno do Mobilirio da Casa Modernista, de Gregori Warchavchik

    58 59

    cessrias, porque delas, principalmente, que depende a soluo dessa enorme interrogativa, constituda de um assunto tcnico e humanitrio, concretizada na indstria de casas adequadas ao ho-mem do nosso sculo29.

    Talvez se possa entender a realizao de tal mobilirio, mesmo que

    permeado de contradies das quais o arquiteto era plenamente consciente,

    se o tomarmos como um modelo para um futuro desejvel, ou seja, um pro-

    ttipo que poderia sensibilizar as elites industriais nacionais para os rumos

    de um devir que estava em suas mos, um devir talvez quimrico, mas com

    o qual se podia sonhar na So Paulo de finais das dcadas de 1920 e 1930.

    O mobilirio da Casa Modernista , assim, revelador das incongru-

    ncias profundas entre os discursos e utopias modernistas e as prticas

    histricas concretas com que tais pioneiros da modernidade se defron-

    taram. So a prpria materializao das contradies entre a funcionali-

    dade e a plstica propagadas pelo discurso vanguardista internacional e as

    injunes locais; entre os emblemas de uma civilizao industrial simbo-

    lizados pelo metal e as condies reais de um pas e de uma cidade que se

    pretendiam modernos, mas sem um desenvolvimento tcnico e industrial

    condizente com seus auspcios; entre a crena na forma e na funo racio-

    nalistas e a abundncia dos materiais orgnicos, essencialmente passadis-

    tas, mas pouco custosos. Tais mveis so a materializao da sntese pos-

    svel entre um discurso internacionalista e uma prtica enraizada numa

    experincia concreta, smbolos dos caminhos tortuosos, incongruentes e

    contraditrios trilhados, de forma fragmentada e no evolutiva, para a

    afirmao do modernismo entre ns.

    possibilidades concretas do modernismo no solo social e cultural especfico em que se exprime27.

    Tal perspectiva parece-nos muito fecunda para compreender o

    que se passava tambm no campo do mobilirio. A almejada utilizao

    de peas industrializadas, to valorizada pelo discurso modernista inter-

    nacional, mostrava-se no Brasil uma quimera, a qual foi, no entanto, per-

    seguida pelo arquiteto. Em seu pronunciamento como representante da

    Amrica do Sul no Congresso de 1931, Warchavchik comentava as difi-

    culdades tecnolgicas vivenciadas no Brasil e o quanto essas impactavam

    a produo dos arquitetos e designers locais:

    H uma outra dificuldade: no podendo contar com a indstria, precisamos aproveitar a mo de obra. O operrio no Brasil, onde se constri muito e rapidamente, adquire grande habilidade. No en-tanto, no fcil form-lo para o trabalho moderno, e confrontei--me com srias dificuldades, quando quis organizar os diversos gru-pos capazes de executar meus projetos. Eu mesmo tive que montar atelis para que fossem executadas janelas, portas de madeiras lisa, mveis, etc., porque a indstria , que alis trabalha bastante bem para a arquitetura comum, no pde realizar o que eu lhe pedia com a preciso e o cuidado necessrios28.

    Nesse contexto, em nome da unidade formal, o arquiteto abdicava

    de princpios programticos e realizava, mesmo que artesanalmente, os

    elementos compositivos fundamentais para a obteno de um efeito visual

    de conjunto harmnico e moderno. De fato, o moderno inseria-se a a par-

    tir das contingncias do possvel, no como realidade tcnica e material,

    mas como forma pura, como estilo. A falta de uma indstria e de uma

    tecnologia desenvolvidas era um empecilho dificilmente contornvel para

    as prticas modernistas, todavia, exemplos como os da Casa da rua Itpolis

    poderiam sensibilizar aqueles outros sujeitos to fundamentais para ode-

    senvolvimento da cultura brasileira na direo desse almejado futuro:

    os empresrios, diversas vezes solicitados nos discursos de Warchavchik,

    referidos como os novos mecenas da contemporaneidade. Ao comentar os

    entraves para a execuo de casas-tipo no Brasil, que passavam especial-

    mente pela ausncia de materiais industrializados adequados, o arquiteto

    assinala a importncia dos industriais para a sociedade contempornea:

    [...] Seria, pois, de grande convenincia que os nossos grandes industriais, aos quais cabe o papel dos Medici no sculo XIV, se interessassem por esse problema, patrocinando as experincias ne- Ana Paula Cavalcanti Simioni Mestre e Doutora em Sociologia pela USP e docente do

    Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    a modern chair. In: BENTON, Charlotte,