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CASA DE BONECAS HENRIK IBSEN

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CASA DE BONECAS

HENRIK IBSEN

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Nora está de pé diante de Helmer, seu marido. Vai partir. Inútil tentar detê-la em nome dos deveres de mãe e esposa: Nora acaba de descobrir que há um dever mais importante. “Eu preciso tentar educar a mim mesma. E você não é o homem que me pode ajudar nisso. Eu tenho que fazer isso sozinha.”

Os espectadores do Teatro de Kristiania agitam-se nas suas poltronas. Os apelos de Helmer são inúteis. Nora abandona a casa, os filhos e o marido, porque se recusa a continuar a ser apenas uma boneca. O homem que ela abandona afunda numa cadeira e esconde o rosto entre as mãos. Um breve silêncio. Depois, o som de uma porta que acaba de se fechar: Nora se foi.

O pano de boca se fecha sobre a última imagem da peça: uma casa de bonecas destroçada. Naquela sala bem arrumada, agora paira somente a esperança de que um dia Nora volte para casa. Nora voltará? Ibsen não responde à questão. Não existe um quarto ato contando como será o futuro de suas personagens.

A platéia levanta-se, incomodada, e aos protestos juntam-se os aplausos. Casa de Bonecas — famosa peça de Ibsen na qual Nora é a principal personagem — é de 1879. Nessa época é inadmissível que uma mulher ouse colocar em primeiro plano qualquer outro dever que não o de mãe e esposa. O gesto de Nora não pode ser compreendido por uma sociedade bem comportada.

Hoje, seu gesto poderia parecer superado. Mas não está. Vieram as sufragistas, houve duas guerras, e as mulheres obtiveram muitas de suas reivindicações, mas a figura de Nora continua viva e atual. A diferença é que nos nossos tempos as portas se fecham com freqüência cada vez maior, as mulheres que desertam das tarefas familiares são mais numerosas, e aumenta a cada dia a parcela dos que compreendem tais atitudes.

E porque Nora é atual, Jane Fonda aceitou representá-la no filme de Joseph Losey, baseado na peça de Ibsen. Feminista e contestadora, exigente quanto aos papéis que interpreta, Jane Fonda percebeu na personagem traços de uma irrefutável modernidade. Nas últimas palavras de Nora — “Meu dever, meu sa-grado dever é em relação a mim mesma” — a atriz reconheceu que elas poderiam perfeitamente ser as palavras de ordem de sua contínua luta pelos direitos da mulher.

UM NACIONALISTA ROMÂNTICO

Ao entregar sua biografia ao conde Prozor, Henrik Ibsen observou: “Não dê

muita importância às apreciações — haveria o que discutir a respeito —, mas recomendo-lhe discutir sobre minha ascendência. Ai encontrará de tudo: sangue dinamarquês, escocês, alemão, norueguês e isso talvez possa lhe explicar muita coisa”.

Embora sempre enfatizasse essa ascendência tão diversificada, Ibsen foi profundamente marcado pelas contradições de seu pais de origem, a Noruega. Com exceção de Imperador e Galileu (1873), uma tragédia histórico-filosófica, todos os seus dramas se ambientam na Noruega. O país, sua época e seus problemas compõem a matéria básica de seu teatro.

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De 1523 a 1814 a Noruega constituiu uma província dinamarquesa. Em 1814, quando tentou se firmar como país independente, o Tratado de Kiel a colocou sob a tutela da Suécia. Embora cuidasse de sua política interna, os problemas de defesa e as questões diplomáticas eram resolvidos por Estocolmo.

Paralelamente a essa dependência, desenvolveu-se um espírito nacionalista alimentado pelos intelectuais da época, desde escritores até folcloristas. E foi nesse pais romântico, nacionalista e puritano (em cuja população predominava o luteranismo) que Ibsen fez seu aprendizado literário.

Henrik Ibsen nasceu em Skien, Noruega, a 20 de março de 1828. Filho de um dos maiores negociantes de madeira da região, teve uma vida de conforto até os oito anos, quando seu pai foi à falência. Conseqüentemente, sua família viu-se obrigada a trocar a luxuosa residência em que vivia pela modesta casa de campo onde viveu até 1842. Retornando a Skien, o velho Knud enviou o filho para Grimstad, como ajudante de farmácia. Foi um período penoso para Ibsen: sofrendo o isolamento, a pobreza e a solidão, ele se voltou para a poesia.

Irritava-se com a vida hipócrita e provinciana e a criticava com observações mordazes. Defendia com vigor as idéias avançadas e apoiava todo movimento de revolta. Nesse sentido, o ano de 1848 foi fértil: revoluções na Alemanha, na Itália, na Hungria e na França. E a poesia de Ibsen acompanhou o tempo: odes, hinos patrióticos e revolucionários; e a peça Catilina, sua estréia na literatura dramática.

No incipiente meio intelectual norueguês, Ibsen não poderia permanecer desconhecido por longo tempo. Em 1850, lançou sua segunda peça, Túmulo de Gigantes, drama em um ato, contando as aventuras dos vikings no Mediterrâneo. Com apenas três apresentações no Teatro de Kristiania (antigo nome da capital da Noruega), a apresentação da peça foi suficiente para que Ibsen se tornasse conhecido e abrisse as portas dos círculos boêmios e intelectuais da capital. Ligou-se a um grupo de estudantes socialistas e passou a colaborar num jornal operário. A carreira do jornal foi breve: houve intervenção da policia. Ibsen ainda colaborou no Andhrimner, um hebdomadário humorista, onde criticava a atuação dos deputados noruegueses. Mas, em 1851, irresistível, o apelo do teatro surgiu novamente.

Nesse ano, o violinista Olle Bull retornava à Noruega, de volta de viagem por outros países da Europa, firmemente decidido a criar um teatro nacional. Escolheu Bergen como sede, pois sua população incluía ricos armadores e comerciantes, pessoas que poderiam financiar um empreendimento de tal estatura. Ibsen recebeu o cargo de diretor artístico e a incumbência de escrever uma peça por ano. Ele fizera um estágio no Teatro Real de Copenhague e completara sua formação em Dresden, Alemanha. Chegara, portanto, a grande oportunidade de realizar uma experiência concreta no teatro. Para honrar seu contrato, Ibsen empenhou-se na produção de uma dramaturgia romântica e nacionalista. A comédia Noite de São João abriu essa fase em 1853, seguida de O Tetraz de Jusdedalen no mesmo ano, D. Inger em Ostraat (1854), Uma Festa em Solhaug (1855) e Olaf Liljekrans (1856). O maior sucesso coube a Uma Festa em Solhaug, levada na Dinamarca e na Suécia.

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Em 1857 Ibsen assumiu o cargo de “instrutor dramático” do Teatro Norueguês de Kristiania, com um salário que lhe permitiu desposar Susanne Thorensen, filha de uma famosa poetisa norueguesa, Magdalena Thorensen.

Em 1858 lançou Heróis em Helgeland. Mas parece que o tom da peça não agradou a seus contemporâneos. Acharam eles que Ibsen transformara os heróis mitológicos em camponeses comuns. Na mesma época, o dramaturgo Bjornstjerne Björnson (1832-1910), também empenhado em reviver cenicamente o passado patriótico dos vikings, escrevera Entre Batalhas, drama de apelos fáceis que ganhara o aplauso geral.

Em 1858, irritado, Ibsen parou de produzir para o palco, limitando sua atuação ao campo jornalístico. Uma viagem à Alemanha e o convívio com o teatro alemão da época deram-lhe uma nova perspectiva do teatro norueguês: provinciano e quase ridículo em seu insistente ufanismo.

O patriotismo impregnava a música, a literatura, o teatro, as artes em geral e, em 1864, quando a Prússia e a Dinamarca entraram em guerra, Ibsen exigiu coerência na ação. Lutava para que a Noruega e a Suécia fossem em socorro da Dinamarca e que a solidariedade escandinava não se resumisse apenas a palavras. Apesar disso, essa solidariedade só se fez sentir em vagos protestos diplomáticos. Quando a Dinamarca caiu, o romantismo escandinavo parecia algo sem sentido e o patriotismo apoiado no vazio. Mais do que ninguém, Ibsen percebeu a incoerência entre pensamento e ação. Nessa época, leu o filósofo Sören Kierke-gaard (1813-1855), e deixou-se influenciar por suas idéias marcadas por profundo sentido religioso.

Sempre em busca da coerência e da verdade (reflexo do meio luterano), Ibsen pôde, por intermédio de Kierkegaard, ter consciência de si mesmo, valorizar-se como individuo portador de princípios em que acreditava firmemente e ousar erguer sua voz acima da razão dos outros. “A multidão é a negação da verdade”, dirá uma de suas personagens, anos mais tarde, em Um Inimigo do Povo, partindo de um princípio de Kierkegaard.

Imbuído do compromisso consigo mesmo, Ibsen colocou em prática o sentido de um epigrama escrito nessa época e que, trinta anos depois, ele destacou para epígrafe de suas Obras Completas: “Vida significa lutar com os fantasmas no próprio cérebro e coração; poesia significa julgar-se a si próprio”.

DESENCANTO E EXÍLIO

Em 1862, Ibsen causa escândalo com a comédia, em versos, Comédia do Amor. Zombando das convenções da vida familiar, ele defende a tese de que um casamento por motivo de dinheiro pode ser mais feliz do que um amor pseudo-romântico. Sua abordagem caricatural não agradou aos espectadores: os conservadores ofenderam-se, os liberais irritaram-se. Nessa época o Teatro Norueguês de Kristiania fechava suas portas por insolvência e, apesar de a falência não se relacionar com a Comédia do Amor, o Parlamento norueguês aproveitou a situação para recusar a Ibsen a “pensão de poeta” concedida a outros.

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Apenas com as funções de jornalista Ibsen não podia sobreviver. Amargurado, cético, em seis semanas ele escreveu Os Pretendentes à Coroa

(1863). Tirando o tema da história medieval norueguesa, Ibsen inseriu um penetrante estudo psicológico das personagens principais. A peça alcançou grande sucesso. Mas os aplausos não abrandaram seu desgosto para com a pátria: no auge da luta prusso-dinamarquesa, a Noruega ainda mantinha uma neutralidade que Ibsen considerava vergonhosa. Decidido a abandonar o país, escolheu a Itália para morar.

Como todos os escandinavos que viviam em Roma, Ibsen procurou o Café del Greco, ponto de reunião de artistas nórdicos, e passou também a freqüentar assiduamente uma espécie de clube escandinavo onde sempre encontrava os últimos livros e jornais dinamarqueses, suecos, noruegueses e alemães. Ali, seu temperamento difícil e irritável ficou famoso.

Dedicava-se ao trabalho como um soldado nas trincheiras. Seu alvo eram os oportunistas, que escondiam suas intenções sob frases bonitas, mas de um patriotismo mentiroso. Ibsen lhes deflagrou uma luta sem tréguas. Assim, com Brand (1866), ele reafirmou sua posição. Na peça desenvolve-se a luta de um pastor protestante contra os poderes constituídos.

Brand se reveste de um rigor moral que reflete a consciência ética de Ibsen. Algumas cenas marcam suas preocupações da época, relacionadas ao drama político que se desenrola na Escandinávia, e ele critica a debilidade dos governos e dos indivíduos. Não é o cristianismo de Brand que Ibsen destaca, mas o seu caráter firme, o seu comportamento moral, que o levam até o fim em suas decisões, fazendo-o, por vezes, agir heroicamente. A essa firmeza da personagem Ibsen opõe a fragilidade de intenções dos povos nórdicos que assistiam à derrocada da Dinamarca diante da Prússia. Se Brand foi um forte, escreve Wilhelm Reich, Peer Gynt sentiu a vida. Para Reich, em Peer Gynt (1867) Ibsen dramatizou a miséria do sujeito não-convencional. E a história de um jovem incompreendido que, embora insuficientemente aparelhado, libertou-se das fileiras cerradas da turba humana. As pessoas riem dele quando está fraco e tentam destruí-lo quando está forte. Seu destino — a ruína — surge então como a conseqüência mais provável, quando alguém tenta libertar-se do pensamento tradicional, pois os homens práticos e cotidianos não admitem que sua paz de espírito seja perturbada; não aceitam o desconforto que lhes causa alguém que pensa e sente a vida.

Na peça seguinte, A Aliança da Mocidade (1869), Ibsen investe diretamente contra os costumes políticos, criticando também o sistema eletivo da Noruega. Violenta, essa sátira suscitou forte oposição de muitas personalidades, inclusive de seu amigo Björnson. Segundo alguns biógrafos, isso fez com que Ibsen adiasse o retorno à Noruega. Por isso, em 1870, ele teria ido para Munique, retornando a seu país apenas em 1891.

Durante esse período, Ibsen manteve farta correspondência com seu editor Georg Brandes e alguns intelectuais noruegueses. Numa carta enviada a Brandes ele coloca as opiniões que tinha em relação à política: “Nós vivemos das migalhas

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caídas da mesa da revolução do século passado; esse alimento está de há muito mastigado e remastigado... As idéias têm necessidade de alimentos e de desenvolvimento nossos. Liberdade, Igualdade e Fraternidade não são mais o que eram no tempo da defunta guilhotina. Os políticos se obstinam em não compreender e é esse o motivo pelo qual eu os odeio. Querem revoluções particulares, revoluções de superfície, de ordem política, etc. Tolice tudo isso. O que importa é a revolta do espírito humano...” Esse confessado individualismo jamais faria de Ibsen um homem de partido, ao contrário de seu colega Björnson, liberal e ligado à política. A grande questão para Ibsen “é alcançar a sinceridade, a verdade absoluta consigo mesmo”.

- Em 1873 Ibsen escreve sua primeira obra na Alemanha, Imperador e Galileu. Sentindo que se operavam grandes mudanças nas nações da época e que se estava à beira de uma revolução, comenta numa carta, já em 1882: “Não sei o que sairá desta luta de morte entre duas épocas. Tudo, de preferência, à manutenção do que existe”.

O CAMINHO PARA O REALISMO

Em 1870 a Comuna de Paris assustara muita gente. A guerra franco-prussiana definira-se a favor da Prússia. Bismarck e o Segundo Reich constituíam uma permanente ameaça à Europa. Grandes transformações se operavam nas artes, na filosofia e na ciência. Sempre um solitário e já quase com cinqüenta anos, Ibsen em Munique entrega-se quase que exclusivamente à leitura de jornais. Parou de escrever e praticamente cessou de ler livros. Os jornais, em casa e no Café Maximilian, traziam-lhe as notícias do mundo. Ibsen passou então a refletir sobre a importância de atingir, por meio da dramaturgia, um público maior (não apenas o escandinavo); ao mesmo tempo, passou a almejar a que as peças orientassem opiniões e contribuíssem para a conscientização dos problemas sociais e morais.

Todas essas idéias inspiraram a sua primeira obra francamente realista: Os Pilares da Comunidade (1877). Nesta peça, configurado na personagem de Bernick, um típico homem de negócios, está o moralismo que se apóia em base hipócrita, imoral e oportunista. No final, Bernick é denunciado por uma mulher corajosa. E, para o crítico literário Otto Maria Carpeaux, “Ibsen criara, magistralmente, o tipo do grande burguês; mas acreditava ainda, vagamente, em salvações morais e esperava a ação salvadora por parte daqueles membros da sociedade que viviam excluidos dos privilégios legais: as mulheres”.

Em 1879 escreve Casa de Bonecas, onde defende a necessidade de independência do ser humano; em seguida, Os Espectros (1881). Ambas causam grandes polêmicas. Um Inimigo do Povo, escrita em 1882, foi, por sua vez, uma resposta aos que lhe vetaram Os Espectros. Novamente Ibsen mostra o homem contra o mundo, o homem que acaba sozinho, por querer a verdade onde a mentira é regra. Depois de Um Inimigo do Povo — espécie de apologia do heroísmo individual — Ibsen passa a se questionar sobre a solidão humana. No final da peça, o dr. Stockmann diz que o homem mais forte é aquele que está só. Ibsen,

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porém, mostra que o indivíduo que despreza o mundo, fechando-se na solidão, provavelmente está doente. E o que dirá o dr. Relling, personagem de sua peça seguinte. O Pato Selvagem (1884). A fé heróica é insuficiente, enquanto o sentido de vazio e de falência exprime-se no símbolo do pato selvagem. “É a fábula engenhosa do pato ferido que mergulha até o lodo, nele afunda o bico, detêm-se no sargaço e nunca mais reaparece na superfície, a menos que um cão hábil o faça subir”, escreve o conde Prozor, amigo e crítico de Ibsen.

Em 1885 Ibsen já é o autor mais representado em toda a Europa. Rico, condecorado por vários governos, sai de Munique e, depois de longo tempo, decide ir à Noruega. Escreve Rosmersholm (1886), onde continua a projetar nos símbolos a realidade cotidiana, prosseguindo a tendência iniciada com O Pato Selvagem. Parecia então deixar de lado o realismo científico e polêmico. De fato, com sua próxima produção, A Dama do Mar, ele volta a um romantismo renovado ou, como afirmam alguns críticos, a uma dramaturgia simbolista.

Em 1890 aparece uma de suas peças mais fascinantes — Hedda Gabler —, onde uma mulher insatisfeita, instável, ávida de poder, não consegue ligar-se afetivamente a ninguém, nem ao marido, com quem se casou por conveniência. Seu encontro com um antigo admirador, Lovborg, cuja esposa o anima em seu trabalho intelectual, acende em Hedda um profundo ciúme. Ela acaba seduzindo o amigo e precipita-o na desgraça, destruindo seu livro e levando-o ao suicídio. Resta-lhe o mesmo caminho: e ela se mata. Hedda é considerada uma personagem “fin de siècele”, decadente e instável, que se converte no arquétipo de um estado de alma muito difundido na época entre a classe social mais alta, onde a autoconsciência diante da opressão ou do desencanto freqüentemente conduzia ao suicídio.

Em 1891, Ibsen volta a viver na Noruega, em Kristiania. Autor consagrado, influencia toda uma nova geração de dramaturgos: August Strindberg (1849-1912), Gerhart Hauptmann (1862-1946), Bernard Shaw (1856-1950), Octave Mirbeau (1848-1917), entre os mais importantes.

A fortuna não o torna diferente. Continua sendo um homem solitário. O grande apartamento é sua fortaleza. Nos seus últimos anos escreve O Pequeno Eyolf (1894), John Gabriel Borkman (1896) e Quando Nós Mortos Acordamos.

Em março de 1898 a Noruega festejou o aniversario de Ibsen, que fazia setenta anos, homenageando-o com uma estátua diante do Teatro Municipal de Kristiania. Em 1902, vítima de congestão cerebral, ficou inválido. Paralisado, sem poder escrever, passou quatro anos tendo a distraí-lo apenas a janela de sua casa. Morreu a 23 de maio de 1906.

A BONECA REBELDE DE UMA CASA DESTROÇADA

A idéia matriz de Casa de Bonecas nasceu de um acontecimento real: Laura Kieler, uma norueguesa, fora acusada de falsificar uma letra de câmbio por ignorância da lei. A notícia correu pelos jornais da época — um período em que o feminismo travava suas batalhas contra as opiniões conservadoras.

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Fútil e vaidosa, Nora falsificou a assinatura de seu pai numa letra que lhe daria dinheiro para empreender uma viagem. Na época, seu marido estava gravemente enfermo e a viagem poderia salvar-lhe a vida. Nora não pensou no risco de sua atitude: amava o marido e visou apenas ao seu bem. Ela pensava que jamais alguma lei a puniria por isso.

Mas Nora é uma criança: seu pai e seu marido, Torwald, sempre a trataram assim. Sua realidade são os filhos com quem brinca como se fossem bonecos; ela mesma é como um bibelô precioso que enfeita a sala. A sua maneira, sente-se heróica; orgulha-se de ter salvo a vida do marido, mas ao mesmo tempo oculta seu gesto. Torwald imagina que o dinheiro veio de seu sogro e jamais soube da gravidade da própria doença.

Quando o agiota Krogstad lhe faz ameaças, Nora sente que seu paraíso doméstico está em perigo. Se Torwald souber de tudo, não mais a verá como uma jovem caprichosa, alegre, algo irresponsável — imagem que ela mantém porque percebe que o marido a quer assim.

Torwald Helmer é um homem de sólidas qualidades profissionais e morais. Ama sua esposa e, sempre que possível, deixa-a distante dos problemas da vida — para poupar sua beleza.

Mas Krogstad está decidido a chantagear e propõe a Nora, em troca de seu silêncio, que interfira junto ao marido para que ele não seja despedido do banco onde ambos trabalham. Nora, porém, não tem poderes para isso. O agiota envia então uma carta a Torwald, contando sobre o empréstimo e a falsificação.

Vendo sobretudo a imprudência do gesto de Nora, Helmer nem considera o aspecto generoso que o motivou. Vê apenas um ato abjeto, ignóbil, que pode destruir sua brilhante carreira. Ele ignora que tudo acabaria naquela carta. Assim, paralisado por sua respeitabilidade e com medo do escândalo, Helmer despreza sua mulher e a proíbe até de encontrar-se com os filhos.

Nora esperava — como a um milagre — uma atitude muito diversa. Mas esse milagre não aconteceu. Só, diante do egoísmo do marido, ela sente que aquele mundo estava destruído.

Quando chega a segunda carta, onde Krogstad se revela arrependido e retira suas ameaças, Helmer percebe que não haverá escândalo, nem sua carreira corre perigo. Apressa-se então em perdoar a mulher. Trata-a como antes. Novamente ela é sua cotovia, sua bonequinha, e consegue achar circunstâncias atenuantes no gesto que antes condenara.

Mas Nora já descobriu os fundamentos daquela moralidade: Helmer não admite que uma mulher possa realizar uma ação independente. Ele, de fato, jamais a viu como um ser pensante, pessoa inteira. Nora também percebe o que representou para seu pai e para o marido e os acusa de não tê-la amado, de a terem forjado segundo seus gostos e opiniões. Sente que é impossível continuar ali e afirma sua decisão de deixar a casa, o marido e os filhos, propondo-se a qualquer sacrifício para obter a sua independência.

Diante da alegação de que tem obrigações como esposa e mãe, Nora retruca que sua maior obrigação é para com ela mesma. E importante educar-se; sem isso

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não poderá assumir tais tarefas. Helmer fica estupefato — e o espectador mais ainda, principalmente o do século XIX, para quem as razões de Nora jamais justificariam o abandono do lar e dos filhos.

Embora Ibsen não se interessasse particularmente pela liberdade da mulher, mas pela liberdade do ser humano em geral, Casa de Bonecas acabou servindo à causa feminista. E se hoje o processo de emancipação feminina é um fato, em 1879 —quando foi montada pela primeira vez no Teatro Real de Copenhague — a peça foi considerada a obra mais revolucionária de Ibsen.

Brand projetou seu nome na Escandinávia, mas Casa de Bonecas o projetou em toda a Europa e nos Estados Unidos. Os feministas se arregimentaram a seu redor; grandes atrizes disputaram o papel. Em 1880 montou-se a peça na Noruega; em 1882 nos Estados Unidos, no Teatro da Ópera de Milwaukee; em 1889 no Londres de Bruxelas; em 1892 em Paris, no Salão de Madame d’Aubernon e, em 1894, no Teatro Vaudeville.

Entre as encenações mais importantes de Casa de Bonecas estão as de Lugné-Poe, no Théâtre de l’Ouvre, com Ludmilla e Geogers Pitöeff, em 1930; a de Eleonora Duse, que se apresentou em 1890 em São Petersburgo e excursionou pela Europa; a de Réjane, em 1893. Suzanne Deprés interpretou o papel em 1905 e também excursionou pela Europa; em 1930 Ludmilla e Georges Pitöeff interpretaram os principais papéis no Théâtre de l’Ouvre. Mais recentemente Casa de Bonecas foi montada no Playhouse Theatre de Nova York, em 1971, com Claire Bloom no papel de Nora e Colin Blakely no de Torwald Helmer, sob a direção de Patrick Garland. Em 1973 a mesma produção se apresentou no Criterion Theatre em Londres.

Entre as encenações no Brasil, a mais significativa leve Tônia Carrero no papel de Nora, Rubens de Palco como Torwald Helmer e Napoleão Muniz Freire como dr. Rank. Apresentada no Teatro de Santo André em 1971, foi dirigida por Cecil Thiré.

UMA RESPOSTA ESCANDALOSA

Uma das maiores críticas a Casa de Bonecas era o fato de Nora ter abandonado o lar. “Pois bem” — teria dito Ibsen —“vou mostrar o que aconteceria se ela ficasse.” E escreveu, como resposta, Os Espectros.

A personagem central é uma mulher que não abandona o casamento já falido apenas porque se submete às convenções sociais. E a vítima desse pecado é seu filho, que herda a sífilis do pai, acabando na loucura. Sabe-se hoje que a sífilis não se transmite por hereditariedade. Mas naquela, época, com o naturalismo emergindo e falando-se muito na influência da genética e do meio sobre os indivíduos, era natural que Ibsen também se tivesse deixado seduzir por idéias cientificistas. Claude Bernard e Émile Zola construíram teorias a partir da doutrina da hereditariedade, e Ibsen levou longe a audácia de falar sobre ela. Não apenas porque falava sobre ela, mas porque citava uma doença tão marginal que não faltou quem o acusasse de haver “emporcalhado o palco”. Além disso, o

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casamento como instituição intocável se viu abalado. Em conseqüência, a representação da peça ficou durante muito tempo proibida na Europa.

Ibsen acreditava — e isso norteou sua vida e sua obra no compromisso da verdade que o indivíduo tem para consigo mesmo e para com a sociedade; na tarefa da auto-realização, independente de qualquer pressão — e isso significaria muitas vezes insurgir-se contra as mesquinhas e anacrônicas convenções sociais. A auto-realização foi a palavra de ordem de seu evangelho individualista. Ele considerava a liberdade como o valor máximo da vida, acima de qualquer imposição: somente o homem poderia fazer alguma coisa em beneficio de si mesmo.

Até que a emancipação feminina se consumasse, a medicina e a ciência esclarecessem as leis da hereditariedade, o Ibsen da fase realista continuou escandalizando platéias. A sociedade que ele atacou em Casa de Bonecas e Os Espectros morreu em muitos paises com a Primeira Guerra Mundial. Mas o século XX descobriu o Ibsen romântico e simbolista, e sua influência no teatro alemão da década de 20 foi grande.

PERSONAGENS TORVALD HELMER, advogado NORA HELMER, sua mulher CRISTINA LINDE DOUTOR RANK NILS KROGSTAD IVAR BOB filhos dos HELMER EMMY ANA MARIA, babá das crianças HELENA, criada dos HELMER UM ENTREGADOR A ação se passa no apartamento dos Helmer.

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ATO 1

Salão agradável, decorado com bom gosto, mas

sem luxo. Uma porta no fundo, à direita, conduz ao vestíbulo; uma outra porta no fundo, à esquerda, conduz ao escritório de Helmer; entre as duas portas, um piano. No centro da parede da esquerda, uma porta, e uma janela mais afastada. Perto da janela uma mesa redonda, cadeiras de braço e um sofá. Na parede da direita, no fundo, outra porta; na mesma parede, mais próximo à ribalta, uma estufa de faiança e diante dela duas poltronas e uma cadeira de balanço. Uma mesinha entre a es-tufa e a porta lateral. Gravuras nas paredes; uma étagère com objetos de porcelana e outros objetos de arte, uma pequena estante com livros bem encadernados. O chão é atapetado e a estufa está acesa. Dia de inverno.

Ouve-se a campainha do vestíbulo e, pouco depois, ouve-se a porta abrir. Entra Nora, cantarolando alegremente. Ela está de casaco e carrega vários pacotes, os quais deposita na mesa da direita. Deixa a porta aberta atrás de si, e vemos um entregador entrar carregando uma árvore de natal e uma cesta que ele entrega à criada que abriu a porta.

NORA

Esconda bem a árvore de Natal. Helena, não quero que as crianças a vejam agora, só à noite, quando já estiver enfeitada. (Ao carregador, enquanto puxa a carteira.) Quanto é?

CARREGADOR

Meia coroa. NORA

Tome uma coroa. Não, pode ficar com o troco. (O carregador agradece e sai. Nora fecha a porta. Ela continua rindo para si mesma, enquanto tira o chapéu e o casaco. Tira do bolso um pacote de caramelos e come dois; depois, cautelosamente, vai à porta do escritório do marido e escuta.) Ele está em casa sim! (Novamente cantarolando, ela vai até a mesa da direita.)

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HELMER (falando de dentro do escritório) É a minha cotovia que está cantando aí na sala?

NORA (abrindo alguns dos pacotes)

É, é ela mesma. HELMER

É o meu esquilo que está saltitando por aí?

NORA É.

HELMER Quando foi que o esquilo chegou?

NORA

Agora mesmo. (Guarda no bolso o pacote de caramelos e limpa a boca.) Venha cá, Torvald, venha ver o que eu comprei.

HELMER

Agora estou ocupado. (Um instante depois ele abre a porta e olha, de caneta na mão.) Você disse que comprou? Tudo isso? Minha perdulariazinha andou jogando dinheiro fora de novo?

NORA

É, Torvald. mas esse ano nós podemos relaxar um pouco. Esse é o primeiro Natal que a gente passa sem precisar de economizar tanto.

HELMER

Ah, mas você sabe que nós não podemos exagerar. NORA

Podemos sim, Torvald, esse ano nós podemos exagerar um pouquinho, não podemos? Um pouquinhozinho só! Agora que você vai ter um ordenado enorme e vai ganhar muito, muito dinheiro.

HELMER

A partir do ano novo. E só recebo o primeiro pagamento depois de três meses. NORA

Ah! Até lá a gente pode pedir emprestado.

HELMER Nora! (Vai até ela e puxa-lhe a orelha brincando.) Sempre a mesma cabecinha

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de vento! Imagine que hoje eu peço um empréstimo de mil coroas e você gasta tudo na semana do Natal e aí, na semana do Ano Novo, cai uma telha na minha cabeça e eu morro.

NORA (tapando a boca dele)

Que horror! Não fale assim. HELMER

Mas imagine que isso pode acontecer... e aí? NORA

Se acontecesse uma coisa dessas, para mim ia dar na mesma ter dívidas ou não! HELMER

E as pessoas que me tivessem emprestado o dinheiro? NORA

Elas que se danassem! Gente que eu nem conheço. HELMER

Você é bem mulher, mesmo! Nora, falando sério, você sabe o que eu penso a respeito disso. Nada de dívidas, nada de empréstimos, não há liberdade nem beleza numa vida baseada em dívidas. Nós dois agüentamos firme e com coragem até hoje, e é assim que deve ser por esse pouco tempo de dificuldades que ainda temos pela frente.

NORA (andando em direção à estufa)

Como você achar melhor, Torvald.

HELMER (indo atrás dela) Ai... ai... ai... ai... ai... Não quero a minha pombinha de asa caída, o que é isso? Meu esquilinho está triste? (Puxando a carteira.) Nora, adivinhe o que é que eu tenho aqui?

NORA (vira-se rapidamente)

Dinheiro? HELMER

Tome. (Dá dinheiro a ela.) Você pensa que eu não sei que no Natal a despesa é grande?

NORA (contando)

Dez... vinte... trinta... quarenta. Ah, obrigada, Torvald. Isso dá para bastante tempo.

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HELMER É bom que dê mesmo.

NORA

Vai dar sim, mas venha cá, deixe que eu lhe mostre tudo que eu comprei. É tão barato! Olhe, isso é uma roupa nova para Ivar. . . Isso, uma espada. Ali, um cavalinho e uma cometa para Bob. E isso, uma boneca e uma caminha de boneca para Emmy, são vagabundas, mas ela vai quebrar logo. E isso são cortes de fazenda e lenços para as criadas, a velha Ana Maria merecia coisa melhor.

HELMER

E o que é que tem nesse embrulho? NORA (gritando)

Não, Torvald, isso você só vai ver hoje à noite.

HELMER Está bem. E você, minha perdulariazinha, o que é que você escolheu para você?

NORA

Ah, para mim? Não, não quero nada, não. HELMER

Claro que sim. Diga me alguma coisa razoável que você tenha vontade de ter. NORA

Não, eu não tenho a menor idéia. — A não ser... Torvald... HELMER

E então? NORA (brincando com o botão do paletó dele, sem levantar os olhos)

Se você quer mesmo dar-me alguma coisa, você podia, você podia... HELMER

Vai, fale. NORA (falando depressa)

Você podia dar-me dinheiro, Torvald. Só o quanto você puder me dar; ai, um dia desses eu compro alguma coisa com ele.

HELMER

Mas, Nora.

Page 15: Casa de bonecas

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NORA Ah, faça isso, meu bem. Por favor, faça isso! Eu coloco num envelope dourado e penduro na árvore de Natal. Não é uma boa idéia?

HELMER

Na verdade é, quer dizer, se você realmente guardasse o dinheiro e realmente comprasse alguma coisa para você. Mas se você gastar tudo na despesa da casa ou em outras pequenas coisas, aí eu simplesmente vou ter que desembolsar tudo de novo.

NORA

Ah, que idéia, Torvald... HELMER

Isso você não pode negar, não é, minha menininha? (Abraça-a pela cintura.) É incrível como um homem tem que pagar caro para ter uma bonequinha de luxo em casa!

NORA

Que exagero! Eu economizo tudo que eu posso! HELMER

Isso é verdade! Tudo o que você pode. Mas o que você pode é nada. NORA (sorrindo calma e feliz)

Você não faz idéia de quantas despesas os esquilos e as cotovias têm, Torvald. HELMER

Você é urna pessoinha engraçada. Igualzinha a seu pai, sempre procurando uma nova maneira de me arrancar dinheiro, e, quando consegue, ele vira fumaça na sua mão. Evapora sem você saber como. Enfim, é preciso aceitar você como você é. Está no seu sangue. É sim, Nora, isso é hereditário.

NORA

Bem que eu gostaria de ter herdado várias das qualidades de papai. HELMER

E eu não gostaria que você fosse nada diferente daquilo que você é, minha cotoviazinha. Mas sabe, só agora eu reparei que você hoje está com um ar meio... como é que se diz, meio... meio perturbado.

NORA

Você acha?

Page 16: Casa de bonecas

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HELMER Está parecendo sim. Olhe bem nos meus olhos.

NORA (olha-o)

Então? HELMER (ameaçando-a com o dedo)

Dona gulosa não andou fazendo nada de proibido hoje na cidade? NORA

Não, que idéia. HFLMER

Dona gulosa não deu uma escapadinha até a confeitaria?

NORA Não, palavra que não, Torvald.

HELMER

Não andou beliscando uns docinhos? NORA

Claro que não. HELMER

Nem andou mordiscando uns caramelos? NORA

Não, Torvald, eu te garanto que não. HELMER

Claro, claro, eu falei só de brincadeira. NORA (indo para a mesa da direita)

Nem me passa pela cabeça fazer as coisas que você não gosta. HELMER

Disso eu estou certo. Além do mais você me deu sua palavra. (Indo para ela) Pode guardar seus segredinhos de Natal em paz, meu amor. Nós vamos saber de tudo hoje à noite, quando a árvore estiver acesa.

NORA

Você se lembrou de convidar o doutor Rank?

Page 17: Casa de bonecas

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HELMER Não, não há necessidade, é óbvio que ele vem cear conosco. Em todo caso, assim que ele chegar eu o convido. Eu encomendei vinho do bom. Nora, você não imagina quanta coisa boa estou sonhando para hoje à noite.

NORA

Eu também, e as crianças vão ficar tão contentes, Torvald. HELMER

Como é bom a gente saber que tem um emprego seguro e um bom ordenado. E uma grande alegria pensar nisso, não é?

NORA

É maravilhoso! HELMER

Você se lembra do Natal passado? Durante três semanas você se trancava toda noite, até tarde, fazendo enfeites para a árvore de Natal e outras coisas que iam ser surpresas para nós. Foram as três semanas mais sem graça que eu passei na minha vida.

NORA

Eu não achei sem graça. HELMER (sorrindo)

Mas o resultado não foi muito brilhante, Nora. NORA

Não vai começar de novo a implicar comigo por causa dessa história. Que culpa tenho eu se o gato entrou lá e rasgou tudo?

HELMER

Claro que a culpa não foi sua, minha menininha. Você tinha a melhor das intenções que era alegrar a todos nós, e isso é o que importa. Mas como é bom que essa época difícil tenha passado.

NORA

É sim, é uma maravilha. HELMER

Desta vez eu não tenho que ficar aqui sozinho me aborrecendo nem você tem que estragar esses olhinhos e essas mãozinhas.

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NORA (bate palmas) Não, Torvald, não preciso mais, não é mesmo? É tão bom ouvir você dizer isso! (Pegando-o pelo braço.) Agora deixe me contar a você como é que eu pensei em organizar as coisas. Assim que terminar o Natal... (Tocam a campainha do vestíbulo.) A campainha. (Ela ajeita um pouco o aposento.) Há alguém chegando. Que coisa mais aborrecida!

HELMER

Se for alguma visita, eu não estou em casa. HELENA (da porta)

Há uma senhora aí que quer falar com a patroa. NORA

Mande-a entrar. HELENA (a Helmer)

E o doutor entrou na mesma hora que ela, patrão. HELMER

Ele entrou direto para o meu escritório?

HELENA Sim, senhor.

(Helmer entra no escritório, Helena introduz a

senhora Linde que está em trajes de viagem. Helena fecha a porta.)

SENHORA LINDE (numa voz tímida e insegura)

Como vai você, Nora? NORA (hesitante)

Bem, obrigada. SENHORA LINDE

Pelo jeito, você não está me reconhecendo. NORA

Não, não sei... mas parece... é! Cristina! É você mesma? SENHORA LINDE

Sou eu mesma.

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NORA Cristina! Como é que eu pude não reconhecer você! Mas, também, como é que eu podia... Como você está mudada, Cristina!

SENHORA LINDE

Estou sim, muito. Foram nove ou dez longos anos. NORA

Faz tanto tempo assim que a gente não se vê? Acho que faz sim. Ah, você não pode imaginar como eu tenho sido feliz nesses últimos oito anos. Quer dizer então que você resolveu vir até a cidade e fazer essa viagem no inverno. É muita coragem sua.

SENHORA LINDE

Cheguei no vapor desta manhã. NORA

Para aproveitar a noite de Natal, é claro! Nós vamos nos divertir tanto! Mas tire esse casaco ou você ainda está com frio? (Ajuda-a.) Agora nós vamos nos sentar e ficar bem à vontade. Não, você nessa poltrona aqui e eu aqui, na cadeira de balanço. (Segura as mãos dela.) Pronto, agora é bem você mesma, foi só no primeiro momento... você está um pouco mais pálida, Cristina, e talvez um pouco mais magra.

SENHORA LINDE

E muito, muito mais velha, Nora. NORA

Talvez um pouco mais velha. Um pouquinho, não muito, de maneira nenhuma. (Interrompe-se bruscamente, num tom grave.) Que avoada que eu sou, tagarelando desse jeito. Cristina, meu bem, me desculpe.

SENHORA LINDE

O que é que você quer dizer? NORA (em voz baixa)

Pobre Cristina, você perdeu o marido. SENHORA LINDE

É, já faz três anos. NORA

Eu soube, li no jornal. Olhe, Cristina, eu tive vontade de escrever-lhe uma porção de vezes, é verdade, mas sempre eu adiava ou alguma coisa me impedia.

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SENHORA LINDE Minha querida, eu compreendo perfeitamente.

NORA

Não, Cristina, eu sei que fiz muito mal. Coitadinha, como você deve ter sofrido. E ele não lhe deixou nada.

SENHORA LINDE

Nada. NORA

Nem filhos. SENHORA LINDE

Não. NORA

Então... nada, nada? SENHORA LINDE

Nem uma saudade ou uma tristeza que pudesse preencher a minha vida. NORA (olhando incrédula para ela)

Mas, Cristina, isso é possível? SENHORA LINDE (acariciando os cabelos dela) Isso às vezes acontece, Nora. NORA

Então você está completamente sozinha, isso deve ser horrivelmente triste. Eu tenho três filhos maravilhosos. Não dá para eu lhe mostrar agora, saíram com a governanta. Mas você precisa contar-me tudo sobre você.

SENHORA LINDE

Não, não, eu quero saber de você. NORA

Não, é você quem começa, hoje eu não quero ser egoísta. Hoje eu sé quero pensar nos seus problemas. Mas há uma coisa que eu preciso contar-lhe. Sabe que há poucos dias nos aconteceu uma coisa maravilhosa?

SENHORA LINDE

Não, o que foi?

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NORA. Imagine só, meu marido foi nomeado diretor do Banco de Investimentos.

SENHORA LINDE

Seu marido? Que sorte! NORA

Extraordinária! A profissão de advogado é uma coisa tão incerta, principalmente para quem não aceita negociatas. Isso Torvald nunca fez e eu estou plenamente de acordo com ele. Você pode imaginar como nos estamos contentes. Ele assume o posto no Banco no ano novo. Aí vai ganhar um bom salário e uma porção de comissões. Daí em diante nós vamos poder viver uma vida bem diferente e fazer tudo que tivermos vontade. Oh, Cristina, como eu me sinto leve. Sim, porque é muito agradável ter bastante dinheiro e não precisar fazer economia, não é mesmo?

SENHORA LINDE

É. Pelo menos deve ser agradável ter o necessário. NORA

Não, não só o necessário, mas muito, muito dinheiro. SENHORA LINDE (sorri)

Nora, Nora, você ainda não criou juízo? Na escola você era uma esbanjadeira. NORA (ri docemente)

É. Torvald acha que eu ainda sou. (Ameaça com o dedo.) Mas sua “Nora, Nora” não é tão maluquinha quanto você pensa... Oh! nossa situação nunca me permitiu esbanjar. Foi preciso que nós dois trabalhássemos.

SENHORA LINDE

Você também? NORA

Também, pequenos trabalhos, costuras, crochê, bordados (baixando a voz) e muitos outros trabalhos. Você sabe que Torvald largou o Ministério, quando nos casamos? Não havia possibilidade de promoção na sessão dele, e era preciso ganhar mais do que antes. No primeiro ano ele se sobrecarregou terrivelmente. Precisava ganhar dinheiro de todas as maneiras, e teve que trabalhar noite e dia. Mas ele não resistiu, adoeceu gravemente, e os médicos disseram que era indispensável para a saúde dele uma viagem ao sul.

SENHORA LINDE

E, vocês passaram um ano na Itália, não?

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NORA É, mas asseguro-lhe que não foi nada fácil fazer essa viagem. Ivar tinha acabado de nascer, mas não podíamos deixar de ir. Foi uma viagem deliciosa, linda, e que salvou a vida de Torvald. Mas custou um dinheirão, Cristina.

SENHORA LINDE

Eu faço idéia. NORA

Quatro mil e oitocentas coroas! É um bocado de dinheiro, não é? SENHORA LINDE

E, mas numa hora dessas, já é uma sorte a gente ter o dinheiro. NORA

Bem, na verdade foi papai quem nos deu. SENHORA LINDE

Ah, sei. Foi por essa época que seu pai morreu, não foi? NORA

Foi. E eu nem pude ir cuidar dele. Ivar estava para nascer a qualquer momento e eu ainda tinha que tratar de Torvald que estava doente. Meu bom e querido pai nunca mais vi o rosto dele, Cristina. Essa foi a época mais triste que eu passei depois de casada.

SENHORA LINDE

Eu sei o quanto você gostava dele. E aí vocês viajaram para a Itália? NORA

Foi. Sabe, nós tínhamos o dinheiro e os médicos insistiram. Então, um mês depois, nós viajamos.

SENHORA LINDE

E seu marido voltou completamente curado? NORA

Forte como um touro! SENHORA LINDE

Mas... e esse médico? NORA

Que médico?

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SENHORA LINDE Eu pensei que a criada tinha dito que era um médico, esse senhor que chegou ao mesmo tempo que eu.

NORA

Ah, é o doutor Rank. Mas ele não vem aqui como médico, é o nosso melhor amigo e vem aqui pelo menos uma vez por dia. Não, desde aquela vez Torvald nunca mais teve nada, e as crianças são fortes e eu também. (Salta e bate palmas.) Ah, meu Deus! Cristina, como é bom viver e ser feliz... Oh, mas que horror... - não faço outra coisa senão falar da minha vida. (Senta-se num tamborete perto de Cristina e se apóia nos joelhos dela.) Não se zangue comigo. Diga-me, é verdade mesmo que você não amava seu marido? Então por que você casou com ele?

SENHORA LINDE

Minha mãe ainda era viva, estava de cama e desenganada, e eu tinha que sustentar meus dois irmãos mais moços. Por isso eu achei que não havia razão para recusar a oferta dele.

NORA

É. Talvez você tivesse razão, então ele era rico na ocasião? SENHORA LINDE

Acredito que ele estava bastante bem, mas os negócios dele eram precários, e quando ele morreu veio tudo abaixo.

NORA

E ai? SENHORA LINDE

Bem, eu tive que recorrer ao que estivesse ao meu alcance: primeiro uma lojinha, depois uma escolinha, e assim por diante. Esses três anos foram como um longo dia de trabalho sem descanso e agora isso acabou, Nora, minha mãe morreu, os rapazes estão bem empregados e não precisam mais de mim.

NORA

Isso deve ser um alívio para você... SENHORA LINDE

Não é não. O que eu sinto é um vazio indescritível. Ninguém mais por quem viver. (Levanta-se agitada.) Foi por isso que eu não agüentei mais viver lá naquele fim de mundo. Espero que aqui seja mais fácil encontrar alguma coisa que me absorva e ocupe meus pensamentos. Se eu tivesse a sorte de arranjar um emprego fixo. Algum trabalho de escritório.

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NORA Mas, Cristina, isso é tão cansativo, e você já está com um ar tão abatido. Seria melhor você passar uma temporada numa estação de águas.

SENHORA LINDE (andando em direção à janela)

Eu não tenho um pai que me pague a viagem, Nora. NORA (levantando-se)

Desculpe-me. SENHORA LINDE (indo para ela)

É você quem deve me desculpar, meu bem. O pior de uma situação como a minha é que ela faz a gente ficar amarga. Ninguém por quem trabalhar e, ainda assim, sendo obrigada a procurar uma oportunidade. A gente precisa viver, e então a gente se torna egoísta. Quando você me contou da mudança para melhor na vida de vocês — é difícil acreditar — eu fiquei mais contente por mim do que por vocês.

NORA

Como assim?... Ah, entendi. Você quer dizer que talvez Torvald pudesse arranjar alguma coisa para você.

SENHORA LINDE

É, é nisso que eu estava pensando. NORA

Ele vai, Cristina, deixe por minha conta, eu vou tocar no assunto com habilidade. Vou pensar em alguma maneira que agrade a ele, eu vou ficar tão contente se puder ser útil a você.

SENHORA LINDE

Como você é boa, Nora, tem tanta vontade de me ajudar. E mais ainda porque você não conhece o lado feio da vida.

NORA

Eu? Não conheço? SENHORA LINDE (sorrindo)

Meu bem! Uns trabalhinhos domésticos e outras coisas assim! Você é uma criança grande, Nora.

NORA (levanta a cabeça e cruza a cena)

Você não devia falar com esse ar de superioridade!

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SENHORA LINDE Não?

NORA

Você é igual aos outros. Todos pensam que numa hora decisiva eu não presto para nada! ...

SENHORA LINDE

Ora, ora. NORA

... Que eu nunca enfrentei um problema sério na vida. SENHORA LINDE

Mas, Nora, meu bem, você acaba de me contar todos os seus problemas. NORA

Bah! tudo bobagem. (Abaixando o tom da voz.) Eu não lhe contei a coisa mais importante.

SENHORA LINDE

Que coisa importante? O que você quer dizer? NORA

Vocês todos me olham de cima, mas não deviam, Cristina. Você se orgulha não é por ter trabalhado tanto para sustentar sua mãe?

SENHORA LINDE

Absolutamente eu não olho ninguém de cima. Mas e verdade que eu me sinto satisfeita e orgulhosa quando penso que pude tornar quase felizes os últimos dias de minha mãe.

NORA

E você se sente orgulhosa quando pensa no que fez por seus irmãos. SENHORA LINDE

Acho que tenho esse direito. NORA

Também acho. Mas escute uma coisa, eu também tenho alguma coisa de que me orgulhar.

SENHORA LINDE Não tenho a menor dúvida, mas de que se trata?

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NORA Fale baixo. Imagine se Torvald ouve isso! Ele não pode de maneira alguma, ninguém nesse mundo pode saber, Cristina, só você.

SENHORA LINDE

Mas o que é? NORA

Venha cá. (A senhora Linde se senta no sofá ao lado de Nora.) Agora você vai ver que eu tenho também uma razão para ficar orgulhosa e satisfeita. Fui eu quem salvou a vida de Torvald.

SENHORA LINDE

“Salvou”? Como? NORA

Eu te falei da viagem à Itália. Sem ela Torvald nunca teria sobrevivido. SENHORA LINDE

É, mas seu pai deu o dinheiro necessário. NORA

É, isso é o que Torvald e todos os outros pensam, mas... SENHORA LINDE

Mas... NORA

Papai não nos deu um níquel. Fui eu que arranjei o dinheiro. SENHORA LINDE

Você? Uma quantia tão grande? NORA

Quatro mil e oitocentas coroas. O que é que você me diz disso? SENHORA LINDE

Mas, como você conseguiu? Ganhou na loteria? NORA (desdenhosamente)

Na loteria? Não haveria nenhum mérito nisso. SENHORA LINDE

Então como é que você conseguiu?

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NORA (murmurando e sorrindo enigmaticamente) Hum... Hum... Hum... Hum...

SENHORA LINDE

Porque você nunca teria conseguido emprestado. NORA

Não? Por que não? SENHORA LINDE

Não, uma mulher casada não pode pedir emprestado sem consentimento do marido.

NORA (levantando a cabeça)

Ah, mas se a mulher casada tem um pouco de cabeça para negócios... Se ela sabe se comportar com alguma habilidade...

SENHORA LINDE

Mas, Nora, eu não estou compreendendo nada! NORA

Não precisa compreender. Eu não disse que tinha feito um empréstimo. Eu posso ter arranjado de outra maneira. (Deita-se no sofá.) Talvez eu tenha arranjado com algum admirador. Eu não sou de se jogar fora.

SENHORA LINDE

Você é louca! NORA

Agora você está morrendo de curiosidade, Cristina. SENHORA LINDE

Escuta aqui, meu bem. Será que não foi uma imprudência de sua parte? NORA

Imprudência salvar a vida do meu marido? SENHORA LINDE

Eu acho imprudência, sem que ele soubesse você... NORA

Mas era indispensável que ele não soubesse! Meu Deus, você não compreende? Ele não podia de maneira nenhuma saber da gravidade do estado dele. Foi a mim que os médicos procuraram para dizer que a vida dele estava em perigo, e

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que a única salvação era uma temporada no sul. Você acha que eu não tentei, em primeiro lugar, conseguir o que eu queria como se fosse para mim mesma? Eu disse a ele como adoraria fazer uma viagem ao estrangeiro, como tantas mulheres fazem. Chorei e supliquei, lembrei a ele que no estado em que eu estava ele devia ser amável e condescendente, e depois eu sugeri que ele podia muito bem fazer um empréstimo. Isso quase o fez ficar bravo de verdade. Disse que eu era uma desmiolada e que era seu dever como marido não ceder às minhas fantasias e aos meus caprichos... Acho que foram bem essas as palavras que ele usou. Eu disse para mim mesma: muito bem, agora é preciso salvá-lo. Foi aí que eu arranjei o dinheiro...

SENHORA LINDE

E seu marido não soube por seu pai que o dinheiro não tinha vindo dele? NORA

Não, nunca. Papai morreu exatamente naquela época. Eu tinha a intenção de contar a ele e pedir segredo. Mas ele já estava tão doente que... infelizmente nunca foi preciso contar a ele.

SENHORA LINDE

E até hoje você não contou nada a seu marido? NORA

Não, graças a Deus! Você já imaginou? Logo ele que é tão radical a respeito dessas coisas! Além do mais, seria doloroso e humilhante para Torvald, com sua independência masculina, saber que me deve alguma coisa, isso iria perturbar a nossa relação, nossa adorável vida em comum não seria mais a mesma coisa.

SENHORA LINDE

E você não pretende contar nunca? NORA (reflexiva, com um meio sorriso)

Talvez um dia, daqui a uns anos, quando eu não for mais tão bonita como agora. Não ria de mim! Eu quero dizer é que quando Torvald não achar mais tanta graça em me ver dançar, em me ver fantasiar e recitar, então pode ser que isso me sirva como um ponto de apoio... (Interrompendo) Que besteira! Esse dia nunca vai chegar. Bem, Cristina. o que é que você acha do meu grande segredo? Você ainda acha que eu não sirvo para nada? Pois fique sabendo que esse negócio me deu muita preocupação. Não foi nada fácil para mim pagar as prestações pontualmente. Fique sabendo também que existe em negócios uma coisa chamada juro trimestral e outra chamada amortização, e que é sempre terrivelmente difícil pagar. Então eu tinha que economizar um pouco daqui, um pouco de lá, você sabe, onde eu pudesse. Do dinheiro da despesa eu não podia tirar muita coisa, Torvald precisava alimentar-se bem. Não podia deixar meus

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filhos mal vestidos, todo o dinheiro que era para eles eu tinha que gastar com eles, os meus queridinhos!

SENHORA LINDE

Então você teve que sacrificar suas necessidades pessoais? Pobre Nora... NORA

Claro. Além do mais, a responsabilidade era minha mesmo. Quando Torvald me dava dinheiro para vestidos novos e coisas assim, eu gastava no máximo a metade. Eu sempre comprei as roupas mais simples e mais baratas. Graças a Deus tudo me assenta bem, dai Torvald nunca ter reparado. Mas muitas vezes foi duro para mim, Cristina. É tão delicioso a gente estar bem vestida, não é?

SENHORA LINDE

Se é! NORA

E depois eu descobri outras formas de ganhar dinheiro. No inverno passado eu dei a sorte de conseguir uma porção de cópias para fazer. Toda noite eu me trancava e escrevia até tarde. Muitas vezes eu me sentia exausta, mas ao mesmo tempo sentia um prazer enorme em estar ali sentada, trabalhando e ganhando dinheiro. Era como se eu fosse um homem.

SENHORA LINDE

Quanto você conseguiu pagar dessa maneira? NORA

Não sei ao certo. Sabe, é muito difícil manter uma contabilidade de um negócio desse tipo. Só sei que paguei tudo que eu pude juntar. Às vezes eu não sabia mais o que fazer. (Sorri.) Eu costumava sentar-me aqui e imaginar que um senhor muito rico tinha se apaixonado por mim...

SENHORA LINDE

Quem? Quem foi? NORA

Cale a boca!... E tinha morrido, e, quando abriram seu testamento, estava lá, escrito em letras bem grandes: “A encantadora senhora Nora Helmer deve receber todas as minhas posses, imediatamente e em dinheiro”.

SENHORA LINDE

Mas, minha querida Nora, quem poderia ser esse homem?

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NORA Pelo amor de Deus, você não entende? Não havia senhor nenhum, era só uma coisa que eu costumava imaginar sentada aqui, quando não tinha mais nenhuma idéia de como arranjar dinheiro. Mas agora estou pouco ligando. Esse velho aborrecido pode fazer o que bem entender, pouco me importa ele ou o seu testamento, pois agora eu não tenho mais preocupações! (Dá um pulo.) Meu Deus, isso é magnífico, Cristina! Livre das preocupações! Poder estar livre das preocupações, bem livre! Poder brincar e farrear com as crianças. Poder cuidar bem da casa e ter tudo exatamente como Torvald gosta! E logo vai chegar a primavera e o céu azul! Talvez a gente possa fazer uma viagenzinha, talvez eu possa ver novamente o mar! Oh! É uma coisa maravilhosa estar viva e ser feliz. (Tocam a campainha do vestíbulo.)

SENHORA LINDE

A campainha. Talvez seja melhor eu ir embora. NORA

Não, não, não vai, não vem ninguém para cá, com certeza é para Torvald. HELENA (da porta do vestíbulo)

Dá licença, madame. Há um senhor querendo falar com o patrão, e, como o doutor está com ele...

NORA Quem é?

KROGSTAD (na porta)

Sou eu, senhora Helmer. (A senhora Linde, trêmula, anda para junto da janela.)

NORA (dá um passo em direção a ele; fala em voz baixa, intrigada)

O senhor? O que é? O que é que o senhor quer com meu marido? KROGSTAD

Assuntos do banco, num certo sentido. Eu ocupo um pequeno cargo no banco e soube que seu marido vai ser nosso chefe agora.

NORA

Então é... KROGSTAD

Apenas negócios, senhora Helmer. Absolutamente nada além disso.

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NORA Então tenha a bondade de passar para o escritório. (Cumprimenta-o com indiferença, fecha a porta e então volta e aviva o fogo da estufa.)

SENHORA LINDE

Nora, quem era esse homem? NORA

Um advogado chamado Krogstad.

SENHORA LINDE Então era mesmo ele.

NORA

Você o conhece? SENHORA LINDE

Conheci, há muitos anos. Houve uma época em que ele foi escrivão na procuradoria de nossa cidade.

NORA

É, eu sei. SENHORA LINDE

Como ele está mudado! NORA

Ele teve um casamento muito infeliz. SENHORA LINDE

Ele está viúvo agora, não está? NQRA

E com uma porção de filhos. Pronto, agora o fogo está bom. (Fecha a portinhola da estufa e afasta a cadeira de balanço.)

SENHORA LINDE

Dizem que agora ele se dedica a negócios de toda espécie. NORA

Verdade? Pode ser. Eu não ouvi falar nada a esse respeito. Mas chega de pensar em negócio, é tão cansativo.

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DOUTOR RANK (vindo pela porta do escritório, antes de fechar, fala para Helmer)

Não, meu velho, de jeito nenhum. Eu não quero incomodá-lo. Prefiro fazer um pouco de companhia a sua mulher. (Fecha a porta e vê a senhora Linde.) Oh, perdão. Acho que aqui eu também estou incomodando.

NORA

Não, de modo algum. (Apresentando) Doutor Rank, senhora Linde. DOUTOR RANK

Eu já ouvi muitas vezes o seu nome nesta casa. Creio que passei pela senhora na escada quando cheguei, não foi, senhora Linde?

SENHORA LINDE

Foi, eu subo muito devagar. Não me dou bem com as escadas. DOUTOR RANK

Ah, um ligeiro estado de fraqueza. SENHORA LINDE

Não, a verdade é que eu tenho trabalhado em excesso. DOUTOR RANK

Nada além disso? Então eu suponho que a senhora veio a cidade para aproveitar um pouco as nossas diversões.

SENHORA LINDE

Eu vim procurar trabalho.

DOUTOR RANK E será isso uma boa cura para excesso de trabalho?

SENHORA LINDE

A gente precisa viver, doutor Rank. DOUTOR RANK

É, parece que existe uma opinião geral de que isso seja necessário. NORA

Olhe aqui, doutor Rank, o senhor também quer viver, não quer? DOUTOR RANK

Certamente. Por pior que seja o meu estado, eu quero prolongar a minha agonia. Todos os meus pacientes pensam assim e também as pessoas que sofrem de

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doenças morais, aliás, uma dessas, um caso grave, está precisamente neste momento no escritório de Helmer.

SENHORA LINDE (com tristeza) Ah!!

NORA

De que o senhor está falando? DOUTOR RANK

Um advogado chamado Krogstad, uma pessoa que a senhora absolutamente não conhece. Ele sofre de uma doença chamada falta de caráter, senhora Helmer, pois mesmo assim ele começou falando de como era importante para ele continuar vivendo.

NORA

Foi? De que assunto ele queria tratar com Torvald? DOUTOR RANK

Não tenho idéia. Só o ouvi dizer que era alguma coisa a respeito do banco. NORA

Eu não sabia que esse — como é o nome dele? Krogstad — tinha alguma coisa a ver como banco.

DOUTOR RANK

Sim, sim, parece que deram a ele um emprego por lá. (À senhora Linde) Não sei se na sua terra existe esse tipo de gente que vive farejando à procura de podridão moral, e, quando encontra, coloca o indivíduo em questão numa boa situação para poder ficar observando. Enquanto isso, os de bom caráter são deixados de fora.

SENHORA LINDE

Mas ainda assim me parece que são os doentes os que mais precisam de ajuda. DOUTOR RANK (dá de ombros)

Aí está. É essa maneira de pensar que transforma a sociedade num imenso hospital. (Nora, que estava pensativa, irrompe numa gargalhada e bate palmas.) Por que a senhora ri disso? A senhora tem alguma noção do que realmente seja a sociedade?

NORA Que me importa essa tal sociedade? Eu estou rindo de uma coisa muito diferente, de uma coisa extremamente divertida. Diga, doutor, todas as pessoas

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que trabalham no banco agora passam a depender de Torvald? DOUTOR RANK

É isso que a senhora acha extremamente divertido? NORA (sorrindo e cantarolando)

Isso é assunto meu! (Andando pela sala.) É glorioso pensar que nós, que Torvald tem tanto poder sobre tanta gente. (Tira o pacote do bolso.) Doutor Rank, que tal um caramelo?

DOUTOR RANK

O quê? Caramelos? Eu pensei que isso fosse mercadoria proibida por aqui. NORA

É, mas foi Cristina quem me deu esses. SENHORA LINDE

Eu?... NORA

Não precisa ficar assustada! Você não podia adivinhar que Torvald tinha proibido. Ele acha que isso pode estragar meus dentes. Mas, ah, só uma vez ou outra, não é verdade, doutor Rank? Com sua licença. (Põe um caramelo na boca dele.) Você também, Cristina. E eu também vou comer um, só um pequenininho, ou no máximo dois. (Passeando.) Eu estou tremendamente feliz. Agora, só tem uma coisa no mundo que eu adoraria fazer.

DOUTOR RANK Ah! E o que é? NORA

É uma coisa que eu adoraria fazer na frente de Torvald. DOUTOR RANK

E por que não faz? NORA

Não posso, é muito feio! SENHORA LINDE

Feio? DOUTOR RANK

Então é melhor não fazer. Mas a nós a senhora poderia muito bem dizer o que

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é... O que é que a senhora tem tanta vontade de fazer na presença de Helmer? NORA

Eu estou tão contente que minha vontade é dizer um bruto palavrão. DOUTOR RANK

A senhora está louca? SENHORA LINDE

Nora, meu bem!.. RANK

Então diga, aí vem ele. NORA (escondendo o pacote)

Pss, pss, pss. (Helmer de capote no braço e chapéu na mão sai do escritório e Nora dirige-se a ele.) Então, meu bem, você se livrou dele?

HELMER

Sim, ele acaba de sair. NORA

Deixe-me apresentar-lhe. Essa é a Cristina, ela acaba de chegar à cidade. HELMER

Cristina? Desculpe, mas eu não estou... NORA

Senhora Linde, meu bem, Cristina Linde. HELMER

Claro. Uma colega de escola de minha mulher, eu suponho? SENHORA LINDE

Sim, somos amigas desde aquela época.

NORA E imagine que ela fez toda essa viagem enorme só para falar com você.

HELMER

O que é que você quer dizer? SENHORA LINDE

Não é bem isso, eu...

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NORA Cristina tem muito jeito para trabalho de escritório, e ela tem muita vontade de trabalhar sob as ordens de um homem experiente para se aperfeiçoar mais ainda...

HELMER

Muito bem pensado, minha senhora. NORA

E quando ela soube que você foi nomeado diretor do banco — ela soube por telegrama viajou para cá o mais depressa que pôde. Torvald, eu estou certa de que você pode fazer alguma coisa por ela, como um favor para mim, não pode?

HELMER

Bem, não é de todo impossível, creio que a senhora é viúva, senhora Linde? SENHORA LINDE

Sou. HELMER

E a senhora tem alguma experiência em trabalhos de escritório? SENHORA LINDE

Sim, razoável. HELMER

Bem, é bastante provável que eu possa ter alguma coisa para a senhora ... NORA (batendo palmas)

O que foi que eu lhe disse? HELMER

A senhora chegou no momento oportuno. SENHORA LINDE

Como é que eu posso lhe agradecer? HELMER

Não é preciso. (Veste o casaco.) Mas por hoje a senhora vai ter que me desculpar...

DOUTOR RANK

Espere um pouco, eu vou com você. (Pega seu capote de pele no vestíbulo e o aquece diante da estufa.)

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NORA

Veja se não demora, meu bem. HELMER

Uma hora mais ou menos. NORA

Você também já vai, Cristina? SENHORA LINDE (vestindo o casaco)

É. Eu tenho que ir, preciso procurar um quarto. HELMER

Então nós podemos descer à rua juntos. NORA (ajudando Cristina)

Que pena a gente ter tão pouco espaço aqui em casa, acho que seria impossível...

SENHORA LINDE Por favor, nem pense nisso. Adeus, minha querida, e muito obrigada.

NORA

Adeus não. até mais tarde. É claro que você vem aqui hoje à noite, e o senhor também, doutor Rank. O que é que o senhor me diz? Se o senhor estiver se sentindo bem? Ora, o senhor vai estar! Agasalhe-se bem. (Eles se dirigem à porta conversando, vozes de criança surgem na escada.)

NORA

Chegaram! Chegaram! (Corre e abre a porta. A governanta entra com as crianças.) Entrem logo! Entrem logo! (Abaixa-se e os beija.) Ah, meus amores. Olhe para eles, Cristina! Não são lindos?

DOUTOR RANK

Chega de conversa. Aqui há uma corrente de ar. HELMER

Venha, senhora Linde, só uma mãe agüentaria ficar aqui agora. (Rank, Helmer e a senhora Linde saem, entram a governanta e as crianças. Nora fecha aporta.)

NORA

Vocês estão com umas carinhas ótimas! Tão rosadinhas! Parecem maçãs! (As crianças todas falam ao mesmo tempo que ela.) Vocês se divertiram muito? Que bom! O quê? Você sozinho puxou Emmy e Bob no trenó? Os dois ao mesmo

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tempo? Formidável! Isso é que é um garoto forte. Ivar. Deixe-me pegá-la um pouco, Ana. Minha bonequinha adorada. (Pega o bebê do colo da governanta e dança com ele.) Está bem, está bem. Mamãe vai dançar com Bob também. O quê? Vocês fizeram uma batalha de bolas de neve? Que pena que eu não estava lá! Não, não, eu tiro os casaquinhos deles, por favor Ana, deixe que eu faço isso, é tão gostoso. Pode ir lá para dentro, você parece congelada. Tem café quente no fogão. (A babá entra no aposento à esquerda. Nora tira os agasalhos das crianças, enquanto elas falam todas ao mesmo tempo.)

NORA

Foi mesmo? Um cachorrão correu atrás de vocês? Mas não mordeu vocês? Não, cachorro nenhum morde meus bonequinhos... Não pode mexer nos embrulhos, Ivar. O que é que tem aí? Ah, acho que você ia gostar de saber. Não, não, é uma coisa feia. Vem, vem, vamos brincar! De quê? De esconder? Está bem, nós vamos brincar de esconder. Bob vai se esconder primeiro. Eu é que vou? Muito bem, então eu me escondo primeiro. (Ela e as crianças riem, gritam e correm pela sala e pelo aposento à direita. Finalmente, Nora se esconde debaixo da mesa; as crianças entram correndo, procuram, mas não a encontram, escutam o riso abafado dela, correm em direção à mesa, levantam a tapeçaria e a encontram. Grande entusiasmo. Ela engatinha para eles fingindo assustá-los. Gargalhada. Enquanto isso, alguém bateu na porta de entrada, mas nenhum deles ouviu. A porta está entreaberta e Krogstad aparece. Ele espera um pouco, a brincadeira continua.)

KROGSTAD

Com licença, senhora Helmer. NORA (com um grito abafado, volta-se e ergue se nos joelhos)

O que o senhor deseja? KROGSTAD

Queira me desculpar, a porta da rua estava entreaberta, alguém deve ter esquecido de fechar.

NORA (levantando-se)

Meu marido saiu, senhor Krogstad. KROGSTAD

Eu sei disso. NORA

Então, o que é que o senhor quer aqui?

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KROGSTAD Uma palavrinha com a senhora.

NORA

Comigo? (Ás crianças) Vão ficar com Ana Maria. O quê? Não, o homem não vai fazer nenhuma maldade com mamãe. Depois que ele for embora a gente brinca mais. (Conduz as crianças aos aposentos da esquerda e fecha a porta atrás de si.) O senhor quer falar comigo?

KROGSTAD

Quero, sim senhora. NORA

Hoje? Ainda não é primeiro do mês. KROGSTAD

Não, é véspera de Natal, e vai depender somente da senhora o tipo de noite de Natal que a senhora vai passar.

NORA

O que é que o senhor quer? Hoje é absolutamente impossível que eu possa... KROGSTAD

Mais tarde falaremos nisso. É uma outra coisa. Creio que a senhora dispõe de um momento?

NORA

Sim... sim, disponho... se bem que... KROGSTAD

Ótimo, eu estava no restaurante Olsen e vi seu marido passar, descendo a rua... NORA

Sim. KROGSTAD

Com uma senhora. NORA

E daí? KROGSTAD

Posso me atrever a perguntar se era a senhora Linde?

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NORA Era ela.

KROGSTAD

Recém-chegada à cidade? NORA

Sim, hoje. KROGSTAD

É uma grande amiga sua, não é? NORA

É, mas eu não vejo... KROGSTAD

Foi minha também, faz muito tempo. NORA

Eu sei disso. KROGSTAD

Sabe? Então a senhora está a par de tudo, foi o que eu supus. Sendo assim, eu posso perguntar à senhora sem rodeios: a senhora Linde vai ter um emprego no banco?

NORA

Que direito tem o senhor de me fazer perguntas, senhor Krogstad? O senhor, um subordinado de meu marido! Mas já que o senhor pergunta, terá uma resposta: a senhora Linde vai ter um emprego no banco. E fui eu quem interferi a favor dela, fique o senhor sabendo.

KROGSTAD

Então eu não me enganei. NORA (andando de um lado para outro)

Às vezes as pessoas têm alguma influência, eu creio. Só porque se é mulher, isso não quer dizer que... E quando uma pessoa está na posição de subordinado, senhor Krogstad, devia evitar com muito cuidado a possibilidade de ofender alguém que... que...

KROGSTAD

Que tem influência.

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NORA Exatamente. KROGSTAD (mudando de tom)

Senhora Helmer, poderia ter a bondade de usar sua influência em meu benefício?

NORA

O quê? O que o senhor quer dizer?

KROGSTAD A senhora poderia ter a bondade de conseguir que eu permaneça na minha posição de subordinado no banco?

NORA

O que significa isso? Quem quer tirar o senhor de sua posição?

KROGSTAD Oh! não precisa mais fingir ignorância. Eu compreendo perfeitamente que sua amiga não tenha muita vontade de se expor a um reencontro comigo. E eu compreendo perfeitamente também a quem eu devo minha demissão.

NORA

Mas eu lhe garanto que... KROGSTAD

Como a senhora quiser. Mas, falando claramente, chegou o momento para eu aconselhar a senhora a usar sua influência para impedir a minha demissão.

NORA

Mas, senhor Krogstad. eu não tenho nenhuma influência. KROGSTAD

Não tem? Parece-me que foi a senhora mesma quem disse isso, ainda há pouco. NORA

Não foi nesse sentido que eu quis dizer. Eu! O que é que faz o senhor pensar que eu tenha esse tipo de influência sobre meu marido?

KROGSTAD

Ora, eu conheço seu marido desde nosso tempo de estudante. Não creio que ele seja mais difícil de convencer do que outros maridos.

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NORA Se o senhor insinuar alguma coisa contra meu marido, eu o ponho para fora desta casa.

KROGSTAD

A senhora tem coragem, senhora Helmer. NORA

Eu não tenho mais medo do senhor. Depois do Ano Novo me verei livre disso tudo.

KROGSTAD (controlando-se)

Escute, senhora Helmer, se for preciso, eu lançarei mão de qualquer recurso para conservar meu posto no banco.

NORA

Está se vendo. KROGSTAD

Não é só por causa do ordenado. A verdade é que isso é o que menos importa no caso. Há uma outra razão. Ora, eu posso muito bem lhe contar. Creio que a senhora, como todo mundo, sabe que uma vez, há muitos anos, eu cometi uma imprudência.

NORA

Acho que ouvi alguma coisa nesse sentido. KROGSTAD

O caso nunca chegou a ir aos tribunais. Mas, depois disso, todos as portas se fecharam para mim. Então eu passei a me dedicar aos negócios que a senhora sabe quais são. Eu tinha que fazer alguma coisa e, honestamente, não acho que eu tenha sido dos piores no ramo. Mas agora tenho que me libertar de tudo isso. Meus filhos estão crescendo. Pelo bem deles eu preciso recuperar o máximo de respeito que eu puder nesta cidade. Este emprego no banco era como o primeiro degrau na minha subida — e agora seu marido vai me empurrar escada abaixo, novamente para a lama.

NORA

Mas, acredite em mim, eu não tenho nenhum poder para lhe ajudar. KROGSTAD

Então é porque a senhora não tem vontade. Mas eu tenho um meio de forçá-la.

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NORA O senhor não está querendo dizer que vai contar ao meu marido que lhe devo dinheiro?

KROGSTAD

Hum!... e se eu contasse a ele? NORA

Seria uma infâmia de sua parte. (Soluçante) Meu segredo, meu orgulho e minha alegria! E ele vir a saber, desta maneira feia e suja, através do senhor! E eu ficaria numa situação muito desagradável!

KROGSTAD

Só desagradável? NORA (impetuosamente)

Então conte! E vai ser pior para o senhor. Meu marido vai ver bem que tipo de pessoa o senhor é, e aí com toda certeza o senhor fica sem seu emprego.

KROGSTAD

Eu perguntei se a senhora tinha receio apenas de uma situação desagradável em casa.

NORA

Se meu marido vier a saber, naturalmente ele vai pagar o que ainda lhe devemos e não teremos mais nada a ver com o senhor.

KROGSTAD (aproximando-se um passo)

Escute, senhora Helmer, ou a senhora tem uma memória muito fraca ou não entende nada de negócios. Eu me vejo obrigado a lhe recordar alguns detalhes.

NORA

O que é que o senhor quer dizer? KROGSTAD

Quando seu marido estava doente, a senhora veio a mim para pedir quatro mil e oitocentas coroas.

NORA

Eu não tinha outra pessoa a quem recorrer. KROGSTAD

E eu lhe prometi que lhe conseguiria aquela soma.

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NORA E conseguiu.

KROGSTAD

Eu prometi que conseguiria a soma mediante algumas condições. A senhora estava tão preocupada com a doença de seu marido e tão ansiosa em conseguir o dinheiro para a viagem que parece não ter prestado atenção às condições do nosso trato. Portanto me parece oportuno lembrá-las à senhora. Bem, eu prometi conseguir o dinheiro, mediante a assinatura de uma promissoria que eu mesmo redigi.

NORA

Sim, e que eu assinei. KROGSTAD

Ótimo. Mas, abaixo da sua assinatura, havia algumas linhas em branco, onde seu pai devia assinar como avalista.

NORA

Devia? Ele assinou. KROOSTAD

Eu havia deixado a data em branco. Isso significa que seu pai deveria escrever a data quando assinasse o papel. A senhora se lembra?

NORA

Acho que me lembro. KROGSTAD

Eu lhe entreguei o documento para que a senhora enviasse a seu pai pelo correio. Não foi assim?

NORA

Foi. KROGSTAD

E a senhora naturalmente fez isso em seguida, pois cinco ou seis dias depois a senhora me trouxe o documento com a assinatura de seu pai, e então eu lhe entreguei o dinheiro.

NORA

Bem, e eu não tenho pago regularmente?

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KROGSTAD Mais ou menos, sim. Mas, voltando ao assunto em questão, aquela deve ter sido uma época muito difícil para a senhora, senhora Helmer.

NORA

Realmente foi. KROGSTAD

Seu pai estava muito doente, não estava?

NORA Ele estava para morrer.

KROGSTAD

E morreu pouco depois?

NORA Morreu.

KROGSTAD

Diga, senhora Helmer, a senhora, por acaso, se lembra em que dia seu pai morreu? Eu quero dizer, o dia do mês.

NORA

Papai morreu no dia 29 de setembro.

KROGSTAD Correto. Eu já havia me certificado disso. E, portanto, eis ai uma discrepância (tirando um papel do bolso.) que eu não consigo entender.

NORA

Que discrepância? Eu não sei... KROGSTAD

A discrepância consiste, senhora Helmer, no fato de seu pai ter assinado este documento três dias depois de morto.

NORA

O que é que o senhor quer dizer? Eu não estou entendendo. KROGSTAD

Seu pai morreu no dia 29 de setembro. Mas, olhe aqui, seu pai datou a assinatura de 2 de outubro. E uma discrepância, não é? (Nora não responde.) Outra coisa que chama a atenção é o fato das palavras “2 de outubro” e também o ano não estarem escritas com a letra de seu pai, e sim com outra que creio que conheço.

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Bem, é claro que isso pode ser explicado. Seu pai pode ter esquecido de datar a assinatura, e alguma outra pessoa pode ter arbitrariamente datado por ele antes de saber de sua morte, não há nada de mais nisso. Tudo depende da assinatura do nome e esta é legitima, não é, senhora Helmer? Foi realmente seu pai quem assinou este documento?

NORA (depois de uma curta pausa levanta a cabeça e olha desafiadora para ele)

Não, não foi. Fui eu quem assinei o nome de papai. KROGSTAD

A senhora tem idéia do quanto é perigosa essa confissão? NORA

Em que sentido? O senhor logo vai receber seu dinheiro.

KROGSTAD Deixe eu lhe perguntar uma coisa: por que a senhora não mandou este papel a seu pai?

NORA

Era impossível, papai estava tão doente. Se eu pedisse para ele assinar, eu ia ter que contar em que o dinheiro ia ser usado. E ele estava tão doente que eu não podia lhe contar que a vida de meu marido estava em perigo. Era impossível.

KROGSTAD

Então teria sido melhor desistir da viagem. NORA

Eu não podia fazer isso. A viagem era para salvar a vida de meu marido. Eu não podia desistir dela.

KROGSTAD

Mas nunca ocorreu à senhora que estava cometendo uma desonestidade contra mim?

NORA

Eu não podia levar isso em consideração, não me preocupei nem um pouco com o senhor. Eu não podia tolerar o senhor, a frieza dos obstáculos que o senhor colocava no meu caminho, apesar de saber que meu marido estava em perigo de vida.

KROGSTAD

Senhora Helmer, é evidente que a senhora não se dá conta da gravidade da falta que cometeu. Mas eu posso lhe assegurar que o meu mau passo, que arruinou a

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mim e a minha reputação, não foi nada pior nem nada além do que a senhora fez. NORA

O senhor? O senhor espera que eu acredite que o senhor teve a coragem de correr um risco para salvar a vida de sua mulher?

KROGSTAD

A lei não leva em consideração esses motivos. NORA

Então deve ser uma lei estúpida. KROGSTAD

Estúpida ou não, é a lei pela qual a senhora será julgada se eu entregar este papel à justiça.

NORA

Não acredito. Uma filha não tem o direito de poupar aborrecimentos ao pai agonizante? Uma mulher não tem o direito de salvar a vida do marido? Eu não conheço bem as leis, mas estou certa de que devem existir leis que assegurem esses direitos. Como é que o senhor não conhece essas leis, o senhor que é advogado? O senhor deve ser um péssimo advogado, senhor Krogstad.

KROGSTAD

Pode ser. Mas de negócios — de negócios do tipo que fizemos — a senhora acha que eu não entendo? Muito bem. Faça o que achar melhor. Mas fique sabendo de uma coisa, se eu cair pela segunda vez, a senhora e seu marido vão cair junto comigo. (Cumprimenta e sai pelo vestíbulo.)

NORA (parece mergulhada em pensamentos por algum tempo. Levanta a cabeça) Besteira. Meter-me medo com isso! Eu não sou tão boba quanto ele pensa. (Começa a arrumar os agasalhos das crianças.) Mas será?... Não. É impossível! Eu o fiz por amor.

AS CRIANÇAS (na soleira da porta esquerda) Mamãe, o homem já saiu pela porta da rua. NORA

Eu sei, meu bem. Mas não contem a ninguém que esse homem veio aqui, nem ao papai.

AS CRIANÇAS

Está bem. Agora vamos brincar mais?

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NORA Não, agora não.

CRIANÇAS

Ah, mamãe, você prometeu. É, mas agora não posso. Vão lá para dentro, eu tenho tanto o que fazer. Vão lá para dentro, meus amorzinhos. (Ela os conduz ao quarto e fecha a porta; então senta-se no sofá, pega um bordado, dá uns pontos e pára.) Não! (Abandona o bordado, levanta, vai à porta do vestíbulo chama.) — Helena, traga-me a árvore. (Vai à mesa da esquerda, abre uma gaveta, pára de novo.) Não, não. E completamente impossível!

HELENA (entrando com a árvore) Onde é que a senhora quer que eu ponha?

NORA

Aqui, no meio da sala. HELENA

Quer que traga mais alguma coisa? NORA

Não, obrigada. Aqui tem tudo que eu quero. (Sai Helena, Nora começa a enfeitar a árvore.) Uma vela aqui, flores ali.... Que homem horrível ! Tudo besteira... não tem nada de errado. A árvore vai ficar uma beleza! Eu vou fazer tudo para agradar-lhe, Torvald. Vou dançar para você, vou cantar para você. (Helmer entra com alguns papéis debaixo do braço.) Ah, você já voltou?

HELMER

Já. Veio alguém aqui? NORA

Aqui? Não HELMER

Estranho. Eu vi Krogstad saindo pelo portão NORA

Você viu? Ah, é, eu me esqueci. Krogstad esteve aqui um instante. HELMER

Nora, eu vejo pelo teu jeito que ele veio aqui para pedir a você que intercedesse a favor dele.

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NORA Foi.

HELMER

E você devia fingir que fazia isso por sua própria conta. Devia esconder de mim o fato de ter ele vindo aqui. Ele não pediu isso também?

NORA

Pediu, Torvald, mas... HELMER

Nora, Nora, como você pôde concordar com uma coisa dessas? Falar com um homem dessa espécie e ainda prometer alguma coisa a ele? E ainda por cima mentir para mim?

NORA

Mentir?... HELMER

Você não me disse que não tinha vindo ninguém? (Aponta o dedo para ela ameaçando.) Minha cotoviazinha não deve fazer isso nunca mais. Uma cotovia tem que ter o biquinho limpo para poder cantar sem desafinar. (Abraça-a pela cintura.) E assim que deve ser, não é? Isso, eu sabia. (Deixa-a.) E não se fala mais no assunto. (Senta-se perto da estufa.) Ah, como aqui está quentinho e gostoso. (Remexe os papéis.)

NORA (depois de uma curta pausa durante a qual se ocupa da árvore de Natal)

Torvald.

HELMER Que é?

NORA

Eu estou louca para chegar logo a hora do baile a fantasia dos Stenborg, depois de amanhã.

HELMER

E eu estou louco de curiosidade para ver a surpresa que você vai me fazer. NORA

Foi bobagem minha querer fazer surpresa. HELMER

Por quê?

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NORA Eu não consigo ter nenhuma idéia boa. Tudo que eu penso parece bobo e insignificante.

HELMER

Ah, então agora minha Norinha reconhece isso? NORA (de pé atrás da cadeira dele, com os braços apoiados no encosto)

Você está muito ocupado, Torvald? HELMER

Bem... NORA

O que são esses papéis?

HELMER Negócios do banco.

NORA Já? HELMER

Eu consegui autorização do atual diretor para fazer a necessária renovação de pessoal e reorganizar o trabalho antes da minha posse e tenho que fazer isso na semana do Natal, assim tudo estará em ordem para o ano novo.

NORA

Então é por isso que esse pobre Krogstad... HELMER

Hum! NORA (inclina-se sobre o espaldar da cadeira e toca no cabelo dele)

Se você não estivesse tão ocupado, eu ia lhe pedir um favor enorme, Torvald. HELMER

O que é? Diga. NORA

Ninguém tem tanto bom gosto quanto você e eu queria tanto ficar bonita no baile a fantasia. Torvald, você não podia cuidar de mim, resolver de que é que eu vou me fantasiar e como é que vai ser a fantasia?

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HELMER Ah! Então minha mulherzinha teimosa não sabe o que fazer e precisa de socorro.

NORA

É, Torvald, se você não me ajudar eu não vou conseguir. HELMER

Muito bem, eu vou pensar no assunto. Nós vamos arranjar uma boa idéia. NORA

Você é um amor. (Vai até a árvore de Natal. Pausa curta.) Que lindas essas flores vermelhas!... Mas, conte para mim, o que esse Krogstad fez foi mesmo uma coisa muito grave?

HELMER

Ele falsificou uma assinatura. Você tem idéia do que significa isso? NORA

Mas não pode ser que ele tenha feito isso num momento de necessidade? HELMER

Pode, ou, como na maioria dos casos, por imprudência. Eu não seria insensível ao ponto de condenar o caráter de um homem apenas por um ato isolado.

NORA

Você não seria, não é, Torvald? HELMER

Muitos homens já conseguiram reabilitar seu caráter, confessando abertamente sua falta e recebendo o justo castigo.

NORA

Castigo?...

HELMER Mas Krogstad não agiu assim, ele usou de artimanhas e conseguiu safar-se. Foi isso que fez com que ele se perdesse moralmente.

NORA

Mas você acha que seria...

HELMER Imagine como um homem assim tem que mentir e ser hipócrita com todo mundo, como ele tem que fingir com as pessoas mais chegadas e mais queridas.

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Até com a mulher e com os filhos. E na presença dos filhos isso é o mais terrível de tudo, Nora.

NORA Como?

HELMER

Uma atmosfera de mentira infecciona e envenena uma casa, Nora. As crianças respiram o micróbio do mal.

NORA (aproximando-se dele)

Você tem certeza? HELMER

Meu bem, eu já vi muitos desses casos na minha carreira de advogado. Quase todo criminoso jovem tem uma mãe desonesta.

NORA Porque é que você diz só... mãe?

HELMER

A má influência da mãe é mais freqüente, se bem que um mau pai deve causar o mesmo resultado. Todo advogado sabe que isso é assim. Esse Krogstad vem envenenando constantemente seus próprios filhos com mentira e fingimento. É por isso que eu digo que ele tem o caráter arruinado. (Estende a mão para e/a.) É por isso que meu amorzinho vai me prometer não advogar a causa dele. Dê-me a mão e prometa. Vamos, vamos! O que é isso? Dê-me a mão. Pronto, está selado o compromisso. Garanto a você que seria impossível para mim trabalhar com ele. Eu sinto um verdadeiro mal-estar físico quando estou com gente dessa espécie.

NORA (tira a mão da mão dele e passa para o lado oposto da árvore de Natal)

Que calor está fazendo aqui, e eu tenho tanto o que fazer. HELMER (levantando-se e arrumando seus papéis)

É. E eu tenho que ler um pouco isto antes do jantar. Vou pensar na sua fantasia. E quem sabe se eu já não tenho alguma coisa embrulhada em papel dourado para a árvore de Natal? (Põe a mão na cabeça dela.) Meu bichinho lindo. (Vai para o escritório e fecha a porta.)

NORA (depois de uma pausa sussurra)

Não, não. Não é verdade. É impossível. Tem que ser impossível. (A governanta abre aporta da esquerda.)

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ANA MARIA As crianças estão pedindo para vir brincar com a mãe. Posso deixá-las vir para cá?

NORA

Não, não. Não as traga para cá. Fique você com elas, Ana. ANA MARIA

Está bem, patroa. NORA (pálida de terror)

Corromper meus filhinhos — (curta pausa, e/a abaixa a cabeça.) — não é verdade, não pode ser verdade.

ATO II

O mesmo cenário. A árvore de Natal está no canto, perto do piano, despida dos ornamentos, com tocos de vela queimados nos galhos despencados. O casaco e o chapéu de Nora estão no sofá. Ela está sozinha na sala, andando agitada, pára perto do sofá e pega o casaco.

NORA (larga o casaco)

Há alguém chegando! (Vai até a porta e escuta.) Não, não é ninguém. Claro, não vai aparecer ninguém hoje, é dia de Natal. Nem amanhã. Mas talvez... (Abre a porta e olha para fora.) Não, nada na caixa do correio, ela está bem vazia. (Vem à frente.) Que bobagem! Claro que ele não falou sério. Uma coisa dessas não pode acontecer, é impossível. Eu tenho três filhos pequenos. (Entra a babá, vindo do quarto da esquerda, carregando uma grande caixa de papelão.)

ANA MARIA

Até que enfim achei a caixa da fantasia. NORA

Obrigada. Ponha em cima da mesa.

ANA MARIA (obedecendo) Mas está precisando muito de conserto.

NORA

Minha vontade é picar em pedacinhos essa fantasia.

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ANA MARIA

Que idéia! É um conserto fácil, basta um pouco de paciência. NORA

É, eu vou buscar a senhora Linde para vir ajudar-me nisso. ANA MARIA

O quê? Sair de novo? Com esse tempo horrível? A senhora vai pegar um resfriado, vai acabar ficando doente.

NORA

Bem, podia acontecer coisa pior. Como é que estão as crianças? ANA MARIA

As pobrezinhas estão brincando com os presentes de Natal, mas... NORA

Elas perguntam muito por mim? ANA MARIA

É, elas estão tão acostumadas a ficar com a mãe delas. NORA

Pois é, mas escute, Ana Maria, agora eu não vou mais poder ficar tanto com elas.

ANA MARIA

Bem, criança pequena se acostuma logo com qualquer coisa. NORA

Você acha mesmo? Você acha que elas iam se esquecer da mãe se ela fosse embora de repente?

ANA MARIA

Cruz credo! Fosse embora de repente? NORA

Ana Maria, eu tenho pensado muito numa coisa que eu quero que você me explique: como é que você teve coragem para largar sua filha com pessoas estranhas?

ANA MARIA Eu fui obrigada, se eu quisesse ser a babá de Norinha...

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NORA Sei, mas como é que você pôde querer isso? ANA MARIA O quê? Onde é que eu ia arranjar outro emprego tão bom? Uma moça pobre que

tinha se metido em encrenca, só podia levantar as mãos para o céu. Além do mais, aquele malvado nunca fez nada por mim.

NORA Mas com certeza sua filha se esqueceu de você.

ANA MARIA

Esqueceu, que nada. Ela escreveu para mim quando foi crismada e quando casou. NORA (abraçando-a pelo pescoço)

Ana, minha querida, você foi uma mãe para mim quando eu era pequena. ANA MARIA

A Norinha menina não tinha outra mãe que não fosse eu. NORA

E se os meus filhinhos não tivessem outra mãe, eu tenho certeza de que você podia... Que besteira eu estou dizendo! (Abre a caixa.) Vá ficar com eles. Agora eu preciso... Você vai ver amanhã como eu vou ficar bonita.

ANA MARIA

Ah, eu tenho certeza de que não vai haver no baile nenhuma mulher tão bonita quanto a senhora, patroa. (Sai para o aposento da esquerda.)

NORA (começa a abrir a caixa, mas logo a deixa de lado)

Se pelo menos eu me atrevesse a sair. Se pelo menos não viesse ninguém. Se pelo menos eu pudesse ter certeza de que não ia acontecer nada aqui enquanto isso. Bobagem, não vai vir ninguém. Só preciso parar de pensar nisso. Vou escovar meu cabelo. Que luvas lindas, lindas! Esquecer, esquecer... (Grita.) Vem alguém aí... (Faz um movimento em direção a porta, mas fica indecisa.)

(Entra a senhora Linde, vindo do vestíbulo, onde

já deixou o casaco e o chapéu.) NORA

Ah, é você, Cristina? Não há mais ninguém aí fora, há? Que bom que você veio! SENHORA LINDE Eu soube que você esteve procurando por mim.

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NORA

É, eu estava passando lá por perto. Mas há uma coisa em que você poderia me ajudar. Vamos sentar aqui no sofá. Olhe aqui, amanhã à noite vai haver um baile a fantasia em casa dos Stenborg. Eles moram aqui no andar de cima e Torvald quer que eu vá fantasiada de pescadora napolitana e dance a tarantela, que eu aprendi em Capri.

SENHORA LINDE

Ah, quer dizer então que você vai fazer uma representação completa?

NORA É. Torvald quer que eu faça. Olhe, aqui está o vestido. Torvald mandou fazer para mim quando estivemos lá, mas está todo rasgado, eu não sei como...

SENHORA LINDE

Está fácil de consertar, são só os enfeites que estão descosturados aqui e ali. Agulha e linha. Ah, aqui há tudo que a gente precisa.

NORA Você é muito gentil.

SENHORA LINDE (costurando)

Então você vai fantasiar amanhã! Pois vou fazer uma coisa, eu dou um pulinho aqui e vejo você fantasiada. Ora, não é que me esqueci completamente de lhe agradecer pela deliciosa noite de ontem?

NORA (levanta e atravessa a cena)

Eu não achei a noite de ontem tão agradável como costuma ser. Você devia ter vindo a mais tempo. Torvald sabe receber muito bem, ele torna a casa alegre e acolhedora.

SENHORA LINDE

E você também, pelo menos é o que eu acho. Não é à toa que você é filha de seu pai. Mas, diga-me, o doutor Rank está sempre tão deprimido como ontem?

NORA

Não, ontem estava mais do que de costume. É preciso que eu lhe diga que ele sofre de uma doença muito perigosa. Ele tem tuberculose na coluna vertebral, coitado. O pai dele era um homem horrível, que se entregava à toda espécie de excessos, por isso o filho é doente desde a infância, você compreende?

SENHORA LINDE (largando a costura)

Mas, Nora, meu bem, como você sabe dessas coisas?

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NORA (passeando)

Ora! Quando você tem três filhos, você recebe visitas de... de senhoras casadas, que conhecem um pouco de medicina e falam sobre uma ou outra coisa.

SENHORA LINDE (continua costurando; pausa curta)

O doutor Rank vem aqui todo dia? NORA

Regularmente todo dia. Ele é o melhor amigo de Torvald desde a infância, e um grande amigo meu também. É como se fosse da família.

SENHORA LINDE

Mas diga-me uma coisa, ele é sincero? Quero dizer, não é do tipo de homem que está sempre se esforçando para ser agradável?

NORA

Nem um pouco. De onde você tirou essa idéia? SENHORA LINDE

Ontem, quando você me apresentou a ele, ele disse que já tinha ouvido muito o meu nome nessa casa; mas depois eu reparei que seu marido não tinha a menor idéia de quem eu pudesse ser. Então como é que o doutor Rank sabia?

NORA

É isso mesmo, Cristina. Torvald gosta de mim de uma maneira tão exagerada que ele me quer inteira só para ele, como ele sempre diz. No começo ele chegava a ficar com uma espécie de ciúme quando eu mencionava alguma pessoa querida de casa, então naturalmente eu fui deixando de fazer isso. Mas com o doutor Rank eu converso sobre esses assuntos com freqüência, ele gosta.

SENHORA LINDE

Escuta, Nora, você é ainda muito infantil sob vários aspectos, e sob vários aspectos eu sou mais velha do que você, e tenho um pouco mais de experiência. Quero dizer-lhe uma coisa: você devia acabar com essa situação com o doutor Rank.

NORA

Que situação que eu devia acabar? SENHORA L1NDE

Acho que são duas. Ontem você falou uma bobagem sobre um admirador que deveria deixar-lhe uma herança.

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NORA Um admirador que infelizmente não existe! Mas, o que mais?

SENHORA LINDE

O doutor Rank é um homem de posses?

NORA É sim.

SENHORA LINDE E não tem família?

NORA

Não, não tem, mas... SENHORA LINDE

E vem aqui todo dia? NORA

Vem, eu já lhe disse. SENHORA LINDE Mas como é que um homem tão educado pode ser tão indiscreto? NORA

Eu não estou entendendo nada. SENHORA LINDE

Chega de fingimento. Nora, você pensa que eu ainda não adivinhei quem foi que lhe emprestou as quatro mil e oitocentos coroas?

NORA

Você está louca? Como você pode pensar uma coisa dessas? Um amigo nosso que vem aqui todo dia! Você não vê em que situação horrível eu ficaria?

SENHORA LINDE

Então realmente não é ele? NORA

Não, claro que não, isso nunca passou pela minha cabeça. Além do mais, na época ele não tinha dinheiro para emprestar, ele só herdou mais tarde.

SENHORA LINDE

Bem, acho que isso foi uma sorte para você.

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NORA Não, nunca passou pela minha cabeça pedir ao doutor Rank. Se bem que eu tenho quase certeza de que se tivesse pedido...

SENHORA LINDE Mas é claro que você não vai.

NORA

Claro que não. Não vejo por que pensar na necessidade de fazer isso. Mas eu tenho certeza de que, se eu contasse a ele...

SENHORA LINDE

Escondido de seu marido? NORA

Eu preciso liquidar a questão com a outra pessoa. E isso também tem que ser escondido de meu marido. Eu preciso liquidar essa questão.

SENHORA LINDE

Sim, foi isso que eu lhe disse ontem, mas... NORA (andando de um lado para o outro)

Um homem pode resolver um assunto desses muito melhor do que uma mulher. SENHORA LINDE

Um marido pode. NORA

Bobagem! (Detém-se) Quando você paga uma dívida recebe a promissória de volta, não recebe?

SENHORA LINDE

Evidente que sim. NORA

E eu posso picar em pedacinhos e queimar o maldito papel! SENHORA LINDE (olha para ela, abaixa a costura e levanta devagar)

Nora, você está me escondendo alguma coisa. NORA

Eu estou dando essa impressão?

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SENHORA LINDE Alguma coisa aconteceu de ontem para hoje. Nora, o que foi?

NORA (aproximando-se dela)

Cristina! (Escuta.) Psiu. Torvald está chegando. Será que você se importa de ir para o quarto das crianças? Ele detesta ver a gente costurando. Ana Maria pode ajudar você.

SENHORA LINDE (ajuntando as coisas)

Claro. Mas eu não vou embora sem antes ter uma conversa franca com você. (Sai pela porta da esquerda, enquanto Helmer entra pela porta do vestíbulo.)

NORA (indo para Helmer)

Eu te esperei tanto, meu bem. HELMER

Era a costureira? NORA

Não, era Cristina, ela está me ajudando a consertar o vestido. Você vai ver como eu vou ficar bem.

HELMER

Então, eu não tive uma boa idéia? NORA

Ótima! Mas eu também não fui boazinha, fazendo a sua vontade? HELMER

Boazinha? Por que faz a vontade do seu marido? Ora, ora, sua louquinha, eu sei que não era isso que você queria dizer. Mas eu não quero atrapalhá-la, com certeza você vai provar o vestido.

NORA

E você vai trabalhar? HELMER

Vou. (Mostra a ela um monte de papéis.) Olhe só. Eu acabo de passar pelo banco. (Vira-se em direção ao escritório.)

NORA

Torvald.

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HELMER Que é?

NORA

Se o seu esquilinho pedisse uma coisa com muito carinho... HELMER

O que há? NORA

Você faria? HELMER

Primeiro eu gostaria de saber o que é.

NORA O esquilinho ia pular de alegria, se você fosse bonzinho, ele ia pular pela casa toda.

HELMER

Fale claro. NORA

Tua cotovia ia cantar o dia inteiro. HELMER Isso ela já faz. NORA

Prometo fazer o que você quiser. Pode imaginar qualquer coisa. HELMER Nora, não é aquele pedido que você me fez hoje de manhã? NORA (chegando-se a ele)

É sim, Torvald, eu lhe peço muito, imploro-lhe. HELMER

Você tem mesmo coragem de voltar a tocar nesse assunto. NORA

Sim, meu amor, você precisa fazer o que eu pedi. Você precisa deixar Krogstad continuar no banco.

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HELMER Meu bem, esse é o emprego que eu vou arranjar para a senhora Linde.

NORA

É, isso foi muita bondade sua. Mas você podia muito bem despedir um outro funcionário ao invés de Krogstad.

HELMER Que obstinação incrível! Só porque você, sem pensar prometeu a ele que falaria comigo, eu tenho que...

NORA Não é por isso, Torvald. É para o nosso bem. Esse homem escreve nos piores jornais, foi você mesmo quem me contou. Ele pode prejudicá-lo de uma maneira horrível. Eu morro de medo dele...

HELMER

Ah, agora eu entendi. São velhas lembranças que a fazem ter medo. NORA

O que que você quer dizer? HELMER

Você deve estar pensando em seu pai. NORA

É... É claro. Não se esqueça do que aquela gente ruim escreveu de papai nos jornais, como ele foi caluniado. Eu acredito que ele teria sido demitido se o departamento não tivesse mandado você para fazer um inquérito e se você não tivesse sido tão benevolente e tão atencioso com papai.

HELMER

Minha Norinha, existe uma grande diferença entre seu pai e eu. Seu pai não era um funcionário inatacável, eu sou e espero continuar sendo, enquanto estiver no meu posto.

NORA

Ora, nunca se sabe as intrigas que essa gente pode inventar. Nós agora poderíamos ficar tão bem, tão tranqüilos e tão felizes na nossa casa, bem sossegados... Você, as crianças e eu, Torvald. É por isso que eu te suplico e insisto tanto.

HELMER

E é justamente pedindo por ele que você me obriga a mandá-lo embora. No banco já se sabe que eu quero despedir Krogstad. Se começassem a falar que o

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novo diretor mudou de opinião por influência da mulher. NORA

Que é que tem? HELMER

Claro! Desde que a minha teimosinha consiga o que ela quer!... Você acha que eu vou expor-me ao ridículo diante de todo o meu pessoal, deixar que pensem que eu sou um homem influenciável por uma pessoa estranha ao trabalho? Garanto-lhe que logo, logo eu sofreria as conseqüências e, além do mais, há um fato que torna impossível a permanência de Krogstad no banco enquanto eu for diretor.

NORA

O que é? HELMER

Na verdade, talvez eu pudesse passar por cima de sua falta de caráter, se fosse preciso.

NORA

É, você podia, não podia? HELMER

E também me disseram que ele é um bom funcionário. Mas eu e ele nos conhecemos desde o tempo de estudante. Uma dessas amizades passageiras que depois nos incomodam o resto da vida. Bem, falando claro, graças àquela época de amizade ele não me trata de “senhor”. E esse sujeito não usa do menor tato quando há outras pessoas presentes. Pelo contrario, ele se acha no direito de me tratar com a maior intimidade, e toda hora é “Helmer, escuta aqui, meu velho” e outras coisas desse tipo. Eu lhe garanto que é muito desagradável para mim. Ele faria com que minha situação no banco se tornasse insuportável.

NORA

Torvald, eu não acredito que você esteja falando sério. HELMER

Não? Por que não?

NORA Porque isso é uma razão mesquinha.

HELMER

O quê? Mesquinha? Você acha que eu sou mesquinho?

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NORA

Não, pelo contrário, meu bem, e é exatamente por isso... HELMER

Dá na mesma. Você diz que as minhas razões são mesquinhas, então eu também devo ser. Mesquinho! Muito bem, vou acabar com isso logo de uma vez. (Vai à porta do vestíbulo e chama Helena.)

NORA

O que é que você vai fazer? HELMER (procurando entre os seus papéis)

Resolver o caso. (Entra a empregada) Olhe aqui, pegue essa carta. Vá até a rua imediatamente. Arrume um mensageiro e mande entregar. E depressa. O endereço está escrito. Tome o dinheiro.

HELENA

Sim, senhor. (Sai com a carta.) HELMER (arrumando os papéis)

E então, dona teimosona? NORA (sem fôlego)

Torvald, o que era essa carta?

HELMER A demissão de Krogstad.

NORA

Chame-a de volta, Torvald! Ainda dá tempo, Torvald, chame-a de volta. Você não sabe o mal que aquela carta pode nos fazer.

HELMER

Agora é tarde. NORA

É, agora é tarde. HELMER

Nora, meu amor, eu desculpo essa insegurança em que você está, se bem que no fundo seja um insulto para mim. É, é sim. É um insulto pensar que eu ia ter medo da vingança de um advogadozinho sem escrúpulos. Mas mesmo assim eu te desculpo, porque é uma grande prova do teu amor por mim. (Abraça-a.) E é

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assim que deve ser, meu amor, minha Nora. Aconteça o que acontecer, você pode ter certeza de que eu tenho coragem e força para quando for preciso. Você vai ver como eu sou homem o bastante para arcar com toda responsabilidade.

NORA (com horror na voz)

O que é que você quer dizer? HELMER

Eu quero dizer toda. NORA (recuperando-se)

Você nunca vai ter que fazer isso. HELMER

Está bem. Então nós vamos compartilhar, como marido e mulher. É assim que deve ser. (Acariciando-a) Está contente agora? Ah, ah, nada desses olhos de coelhinha assustada! Tudo não passa de fantasia sem fundamento... Agora você precisa ensaiar a tarantela e praticar com o pandeiro. Eu vou para o escritório, fecho a porta e não escuto nada. Você pode fazer o barulho que quiser. (Vira-se em direção à porta.) E quando Rank chegar, diga a ele onde é que eu estou. (Faz um gesto com a cabeça, pega os papéis e vai para o escritório, fechando a porta atrás de si.)

NORA (perturbada e ansiosa, fica como que pregada ao chão e sussurra)

Ele seria capaz de assumir. É o que ele vai fazer. É o que ele vai fazer apesar de tudo — não, isso não! Nunca! Nunca! Qualquer coisa menos isso! Ah, preciso de ajuda, tenho que encontrar uma saída. (A campainha da porta toca.) Doutor Rank! Qualquer coisa menos aquilo, qualquer coisa, seja lá o que for! (Cobre o rosto com as mãos, recupera-se, vai à porta e abre. Rank está pendurando seu casaco. Durante a cena que se segue, começa a escurecer.)

NORA

Boa tarde, doutor Rank. Reconheci seu toque. Mas Torvald não pode receber o senhor agora, acho que ele está ocupado.

DOUTOR RANK

E a senhora? NORA (manda-a entrar e fecha a porta)

Ora, o senhor sabe muito bem que eu sempre tenho tempo para o senhor. DOUTOR RANK

Obrigado. E eu vou aproveitar o máximo que eu puder.

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NORA O que o senhor quer dizer com isso — o máximo que puder?

DOUTOR RANK

Oh, isso assusta a senhora? NORA

O senhor falou de um jeito esquisito. Está acontecendo alguma coisa? DOUTOR RANK

Um acontecimento para o qual eu estou preparado há muito tempo. Mas, a bem da verdade, eu não esperava que viesse tão cedo.

NORA (segurando-o pelo braço)

O que é que o senhor descobriu? Doutor Rank, o senhor tem que me contar. DOUTOR RANK (sentado perto da estufa)

Está tudo acabado. E não se pode fazer nada. NORA (suspira de alívio)

Ah, o senhor está falando do senhor mesmo?

DOUTOR RANK De quem mais? É inútil mentir a si mesmo. Eu sou o mais infeliz de todos os meus pacientes, senhora Helmer. Ultimamente eu venho dando um balanço na minha economia interior. Falência! Provavelmente dentro de um mês eu estarei apodrecendo no cemitério.

NORA

O senhor acaba de dizer uma coisa muito feia. DOUTOR RANK

A coisa em si é que é diabolicamente feia, e vou ter que enfrentar muita coisa mais feia ainda antes de chegar até lá. Só me falta fazer mais um exame. Quando eu o tiver feito, vou saber com bastante exatidão quando é que vão começar os horrores da decomposição. Há uma coisa que eu quero lhe dizer. Helmer, com seu temperamento refinado, tem uma aversão invencível às coisas feias. Não quero que ele esteja à minha cabeceira.

NORA

Oh, mas, doutor Rank... DOUTOR RANK

Não o quero lá. De maneira nenhuma. Minha porta vai estar fechada para ele.

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Assim que eu tiver certeza que o pior começou, eu mandarei meu cartão marcado com uma cruz preta. Então ficarão sabendo que começou o fim.

NORA

Hoje o senhor está impossível. E eu queria tanto que o senhor estivesse de bom humor.

DOUTOR RANK

Com a morte me esperando? Ter que pagar os pecados de outro homem! Será que isso é justo? E em todas as famílias, de uma maneira ou de outra, neste momento, está acontecendo o mesmo castigo...

NORA (tapa os ouvidos) Que absurdo! Fale de alguma coisa alegre. DOUTOR RANK

Ora, mas isso tudo é uma grande piada. Minha pobre e inocente espinha tendo que pagar pelas farras que meu pai fazia no tempo em que era tenente.

NORA (sentando-se na mesa da esquerda)

Suponho que o senhor quer dizer que ele gostava muito de aspargos e de patê de foie gras, não é mesmo?

DOUTOR RANK É, e de trufas. NORA Trufas, é. E ostras também, não é? DOUTOR RANK Ostras, claro. Isso nem se fala. NORA

E um bocado de vinho do Porto e de champanha. É triste que todas essas coisas boas se vinguem nos nossos ossos.

DOUTOR RANK

Especialmente se elas se vingam nos pobres ossos de quem não as aproveitou nem um pouco.

NORA

Ah, e, isso é o mais triste.

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DOUTOR RANK (olhando perscrutadoramente) Hum!...

NORA (depois de uma certa pausa)

Por que o senhor sorri? DOUTOR RANK

Não, foi a senhora quem riu. NORA

Não, foi o senhor quem sorriu, doutor Rank. DOUTOR RANK (levantando)

A senhora é muito mais travessa do que eu pensava. NORA

Eu estou meio inquieta hoje. DOUTOR RANK

Está se vendo. NORA (colocando as mãos nos ombros dele)

Querido doutor Rank, o senhor não pode morrer e nos deixar, a Torvald e a mim.

DOUTOR RANK

Não é uma perda difícil de reparar. Quem se vai é logo esquecido. NORA (olhando ansiosa para ele)

O senhor acredita mesmo nisso? DOUTOR RANK

As pessoas criam novos laços, e então...

NORA Quem vai criar novos laços?

DOUTOR RANK

A senhora e o Helmer, quando eu não estiver mais aqui. A senhora me parece que já está com meio caminho andado para isso. O que é que aquela senhora Linde estava fazendo aqui, ontem à noite?

NORA

O senhor não vai querer me convencer de que está com ciúmes da coitada da

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Cristina? DOUTOR RANK

Estou sim. Ela vai ser minha sucessora nesta casa. Quando eu não estiver mais, essa mulher vai...

NORA

Psiu. Não fale tão alto. Ela está naquele quarto ali. DOUTOR RANK

Hoje de novo! Ai está, a senhora vê?

NORA Ela só veio para consertar meu vestido. Deus me livre, o senhor precisa ser mais razoável. (Senta-se no sofá.) Seja bonzinho agora, doutor Rank, e amanhã o senhor vai ver como eu vou dançar bem, e o senhor pode imaginar que eu estou dançando para o senhor e para Torvald também, é claro. (Tira uma porção de coisas da caixa.) Doutor Rank, venha sentar-se aqui, ou quero mostrar-lhe uma coisa.

DOUTOR RANK (sentando-se) O que é? NORA

Veja que beleza. DOUTOR RANK

Meias de seda. NORA

Cor de carne. Não são lindas? Agora está tão escuro aqui, mas amanhã. Não, não, não, o senhor só deve olhar para os pés. Ou... Está bem, o senhor pode levantar um pouco os olhos e... talvez veja a meia toda.

DOUTOR RANK

Hum!... NORA

Por que esse olhar tão crítico? O senhor não acha que vai ficar bem em mim? DOUTOR RANK

Não tenho nada em que me basear para dar uma opinião a esse respeito.

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NORA (olha para ele por um instante) O senhor não tem vergonha? (Bate de leve com a meia na orelha dele.) Isso é para aprender. (Enrola as meias de novo.)

DOUTOR RANK

Que outras coisas bonitas eu vou poder ver? NORA

Não vai ver nada de nada, porque é muito atrevido. (Ela remexe nas coisas resmungando.)

DOUTOR RANK (depois de uma pausa curta)

Sentado aqui, conversando com a senhora assim, com tanta intimidade, eu não consigo imaginar o que teria sido de mim se eu nunca tivesse vindo a esta casa.

NORA (sorrindo)

Acho que o senhor se sente bem à vontade aqui em casa conosco. DOUTOR RANK (num tom mais baixo, olhando direto em frente)

E ter que deixar tudo isso. NORA

Que bobagem, o senhor não vai deixar nada. DOUTOR RANK (como antes)

E de mim não vai restar nem uma prova de gratidão, apenas uma tristeza passageira... Nada além de um lugar vazio, que o primeiro a chegar pode ocupar, tão bem quanto qualquer outro.

NORA

E se eu pedisse ao senhor uma... não! DOUTOR RANK

Uma o quê? NORA

Uma grande prova da sua amizade. DOUTOR RANK

Claro, claro. NORA

Um favor enorme...

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DOUTOR RANK A senhora me daria realmente essa felicidade por uma vez?

NORA

Mas o senhor ainda não sabe o que é. DOUTOR RANK

Não, mas diga. NORA

Eu não posso, doutor Rank. É demais, é absurdo. É ao mesmo tempo um conselho, uma ajuda e um favor...

DOUTOR RANK

Quanto maior melhor. Eu não consigo imaginar o que a senhora quer. Diga, por favor. A senhora não confia em mim?

NORA

Mais do que em qualquer outra pessoa. Eu sei que o senhor é o meu melhor e mais verdadeiro amigo, e por isso eu vou lhe dizer o que é. Bem, doutor Rank, é uma coisa que o senhor deve me ajudar a evitar. O senhor sabe o quanto o como profundamente Torvald me ama. Ele não teria a menor dúvida em dar a vida por mim.

DOUTOR RANK (inclinando-separa ela)

Nora... Você acha que ele é o único?... NORA (com um estremecimento)

O único?

DOUTOR RANK O único que daria a vida com prazer por você.

NORA (triste)

Então é assim? DOUTOR RANK

Eu tinha resolvido te contar antes de morrer, e não podia haver ocasião melhor do que essa. Agora você sabe. E agora você sabe também que pode confiar mais em mim do que em qualquer outra pessoa.

NORA (levanta-se deliberada e calmamente)

Com licença.

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DOUTOR RANK (dá passagem a ela mas permanece sentado) Nora!

NORA (na porta do vestíbulo) Helena, traga o lampião. (Vai até a estufa.) Caro doutor Rank, isso foi horrível de sua parte.

DOUTOR RANK Amar você mais do que qualquer outra pessoa nesse mundo? Isso foi horrível? NORA Não, dizer-me isso. Não havia a menor necessidade. DOUTOR RANK

O que você quer dizer? Você sabia? (A criada entra com o lampião, coloca-o na mesa e sai.) Nora... Senhora Helmer... Diga, a senhora sabia?

NORA

Ora, como é que eu posso saber se sabia ou não sabia? Eu realmente não sei dizer... Como o senhor pôde ser tão desastrado, doutor Rank. Estava indo tudo tão bem.

DOUTOR RANK

Bem, de qualquer maneira agora a senhora sabe que pode dispor de mim de corpo e alma. Por que não fala?

NORA (olhando para ele) Depois do que aconteceu? DOUTOR RANK Por favor, diga-me o que é. NORA Agora eu não posso dizer-lhe mais nada. DOUTOR RANK Pode, pode. A senhora não precisa me castigar desta maneira. Permita-me fazer

pela senhora tudo o que um homem possa fazer. NORA

Agora não há mais nada que o senhor possa fazer por mim. Além do mais, eu não preciso de ajuda nenhuma. O senhor vê, era tudo imaginação minha. É mesmo, claro que é! (Senta-se na cadeira de balanço e olha para ele com um sorriso.) O senhor é um homem de bem, doutor Rank!... O senhor não se sente

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envergonhado agora que o lampião veio? DOUTOR RANK

Nem um pouco. Mas talvez seja melhor eu ir embora... para sempre? NORA

Não, de jeito nenhum, o senhor não deve fazer isso. Claro que o senhor deve vir aqui como sempre veio. O senhor sabe muito bem que Torvald não pode passar sem o senhor.

DOUTOR RANK

Sei, mas e a senhora? NORA

Oh, eu sempre adoro quando o senhor vem. DOUTOR RANK

É exatamente isso. Foi isso que me fez confundir as coisas. Eu não consigo entender a senhora. Muitas vezes eu achei que a senhora gostava de estar comigo tanto quanto com Helmer.

NORA

É, o senhor vê, existem pessoas de quem a gente gosta mais, e existem outras pessoas cuja companhia a gente quase sempre prefere.

DOUTOR RANK

É, acho que há alguma verdade nisso. NORA

Quando eu era pequena, eu gostava mais de papai, e claro. Mas, sempre que eu podia, adorava ficar no quarto das empregadas, elas nunca me reprovavam em nada, e tinham umas conversas tão divertidas.

DOUTOR RANK

Entendi — foi o lugar delas que eu ocupei. NORA (saltando e indo a ele)

Oh, meu caro doutor, isso nunca passou pela minha cabeça. Mas o senhor deve compreender que estar com Torvald é como estar com papai... (Entra a criada, vinda do vestíbulo.)

HELENA

Dá licença, patroa. (Cochicha e dá a ela um cartão.)

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NORA (olha de relance para o cartão) Oh! (Guarda-o no bolso.)

DOUTOR RANK

Algum problema? NORA

Não é nada. É só uma coisa à toa... É o meu vestido novo...

DOUTOR RANK Mas não está tudo aí?

NORA

Não, esse não, é outro. Eu encomendei. Torvald não deve saber disso. DOUTOR RANK

Ah! Então esse era o grande segredo? NORA

Claro. Vá ficar com Torvald. Ele está no escritório. Fique lá com ele enquanto eu...

DOUTOR RANK

Pode ficar descansada. Eu não o deixo escapar. (Vai para o escritório de Helmer.)

NORA (a Helena)

Ele está esperando na cozinha? HELENA

Está, ele entrou pelos fundos. NORA

Mas você não disse que não tinha ninguém em casa? HELENA

Disse, mas não adiantou nada. NORA

Será que ele não vai embora?

HELENA Não, ele disse que não vai enquanto não falar com a senhora.

Page 75: Casa de bonecas

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NORA Bom, então deixe-o entrar, mas sem fazer barulho. Helena, você não conta isso para ninguém. E uma surpresa para meu marido.

HELENA

Sim, senhora. Já compreendi. (Sai.) NORA

Essa coisa horrível vai acontecer! Vai acontecer e eu não posso fazer nada! Não, não pode acontecer, não deve acontecer! (Tranca a porta do escritório com o ferrolho. Helena abre a porta para Krogstad e fecha depois. Ele usa casaco de

pele, botas altas e gorro de pele.) NORA (avançando para ele)

Fale baixo, meu marido está em casa. KROGSTAD

Isso não faz diferença. NORA

O que é que o senhor quer de mim? KROGSTAD

Uma explicação. NORA

Então diga logo. O que é?

KROGSTAD Creio que a senhora já sabe que eu recebi minha demissão!

NORA

Eu não pude evitar, senhor Krogstad. Eu fiz tudo o que pude pelo senhor, mas não adiantou nada.

KROGSTAD

Seu marido gosta tão pouco assim da senhora? Ele sabe a que eu posso expor a senhora, e ainda assim ele se atreve.

NORA

Como o senhor pode pensar que ele sabe? KROGSTAD

Eu não pensei isso, não. Não seria do estilo do nosso querido Torvald Helmer

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demonstrar tanta coragem... NORA

Senhor Krogstad, um pouco de respeito por meu marido, por favor. KROGSTAD

Claro, todo o respeito que ele merece. Mas, já que a senhora guardou o segredo com tanto cuidado, eu suponho que já faça uma idéia mais clara do que fazia ontem sobre a gravidade do seu ato.

NORA

Mais do que poderia aprender do senhor. KROGSTAD Claro, de um péssimo advogado como eu. NORA O que é que o senhor quer de mim? KROGSTAD

Saber como a senhora está passando, senhora Helmer. Eu estive pensando na senhora o dia inteiro. Até um simples caixa, um advogado de segunda, enfim até um homem como eu tem um pouco dessa coisa que se chama sentimento, a senhora sabe.

NORA

Mostre isso, então, pense nos meus filhos. KROGSTAD

A senhora e seu marido pensaram nos meus? Mas deixemos isso de lado. Eu só queria lhe dizer que a senhora não precisa levar o assunto tão a sério. Em primeiro lugar, eu não pretendo apresentar queixa-crime contra a senhora.

NORA Não, claro que não, tenho certeza disso. KROGSTAD Tudo pode se arranjar amigavelmente. Ninguém vai ficar sabendo de nada. Será um segredo entre nós três. NORA

Meu marido não pode saber de nada disso.

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KROGSTAD Como é que a senhora pode evitar? Será que a senhora pode pagar o restante da dívida?

NORA

Não, no momento não. KROGSTAD

Ou talvez a senhora tenha um plano para levantar logo o dinheiro? NORA

Nenhum plano que eu possa pôr em prática. KROGSTAD

Bem, em todo caso, agora seria inútil. Mesmo que a senhora estivesse ai com um monte de dinheiro na mão, eu não lhe entregaria a promissória.

NORA

O que é que o senhor pretende fazer? KROGSTAD

Eu vou apenas conservar a promissória, guardá-la comigo. Ninguém estranho ao caso ficará sabendo que ela existe. Portanto, se a senhora chegou a pensar em alguma solução desesperada.

NORA

Pensei. KROGSTAD

Se a senhora teve a intenção de fugir de sua casa... NORA Eu tive. KROGSTAD

Ou até mesmo coisa pior. NORA

Como é que o senhor sabe? KROGSTAD

Desista da idéia.

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NORA Como é que o senhor sabe que eu pensei “naquilo”?

KROGSTAD

É a primeira coisa em que a gente pensa. Eu também pensei... Mas não tive coragem.

NORA (voz embargada)

Nem eu. KROGSTAD (com alívio)

Não. É isso mesmo, não é? A senhora também não teve coragem. NORA

Não, não tenho... Não tenho.

KROGSTAD Além do mais, teria sido uma grande asneira. Uma vez passada a primeira

tempestade doméstica... Eu tenho uma carta para seu marido, aqui no meu bolso.

NORA

Contando tudo? KROGSTAD

Da maneira mais suave que eu pude. NORA (com pressa)

Ele não deve receber essa carta. Rasgue depressa. Eu vou dar um jeito de arranjar dinheiro.

KROGSTAD

Perdão, senhora Helmer, mas acho que acabei de dizer à senhora... NORA

Não estou falando que lhe devo. Diga quanto o senhor está pedindo ao meu marido e eu conseguirei o dinheiro.

KROGSTAD

Eu não estou pedindo um níquel ao seu marido! NORA Então o que é que o senhor quer?

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KROGSTAD Eu lhe digo. Eu quero me reabilitar, senhora Helmer, quero subir na vida, e nisso seu marido vai ter que me ajudar. Faz um ano e meio que não toco em nada desonesto, e durante esse tempo todo tenho lutado contra miséria. Eu estava conformado em construir meu caminho passo a passo. Agora, eu fui posto para fora, e não vou me contentar com uma simples readmissão. Eu quero subir. Eu quero subir. Eu quero voltar ao banco numa posição mais alta. Seu marido tem que criar um cargo para mim...

NORA

Isso ele nunca vai fazer! KROGSTAD Vai! Eu conheço ele! Ele não vai se atrever a protestar. Tão logo eu esteja lá,

novamente com ele, a senhora vai ver! Dentro de um ano eu vou ser o braço direito do diretor. Vai ser Nils Krogstad, e não Torvald Helmer quem vai mandar no banco.

NORA

Isso é uma coisa que o senhor nunca vai ver. KROGSTAD A senhora está querendo dizer que vai... NORA

Agora eu tenho coragem KROGSTAD

Ora, a mim a senhora não mete medo. Uma filhinha de papai, mimada como a senhora.

NORA

O senhor vai ver, o senhor vai ver. KROGSTAD

Um mergulho por baixo do gelo, talvez? Afundando na água gelada e negra como carvão? E depois, na primavera, vir à tona, toda inchada e irreconhecível, com o cabelo caindo.

NORA

O senhor não me mete medo. KROGSTAD

Nem a senhora a mim. As pessoas não fazem essas coisas, senhora Helmer. E

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depois, de que adiantaria? Ele estaria completamente em meu poder, do mesmo jeito.

NORA

Depois? Quando eu já... KROGSTAD

A senhora se esqueceu de que a sua reputação depende de mim? (Nora fica muda, olhando para ele.) Bom, agora eu já avisei à senhora. Não faça nenhuma asneira. Quando o Helmer tiver recebido minha carta, eu estarei esperando por uma resposta dele. E não se esqueça que foi seu marido mesmo quem me forçou a agir novamente desta maneira. Eu nunca vou perdoar a ele por isso. Adeus, senhora Helmer. (Sai pelo vestíbulo.)

NORA (vai até à porta do vestíbulo, abre ligeiramente e escuta)

Ele está indo embora. Não vai colocar a carta na caixa do correio. Oh, não, não, é impossível! (Abre a porta aos poucos.) O que é isso? Ele parou ali fora. Não está descendo. Está hesitando? Será que.

(Cai uma carta na caixa, então ouvem-se os

passos de Krogstad, descendo a escada, até que desaparecem. Nora dá um grito abafado e corre pela sala, em direção a mesa que fica perto do sofá. Pausa curta.)

NORA

Na caixa do correio. (Aproxima-se medrosa da porta do vestíbulo.) Lá está ela, Torvald, Agora não há mais esperança para nós!

SENHORA LINDE (vem do quarto da esquerda, carregando o vestido)

Pronto, acho que não falta consertar mais nada. Você quer experimentar?

NORA (com um fio de voz) Cristina, venha cá. SENHORA LINDE (jogando o vestido no sofá) O que há com você? Parece tão agitada! NORA Venha cá. Você está vendo aquela carta? Lá, olhe, dá para ver pelo vidro da

caixa do correio. SENHORA LINDE É, estou vendo.

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NORA Aquela carta é do Krogstad. SENHORA LINDE Nora! Então foi o Krogstad que lhe emprestou o dinheiro! NORA Foi, e agora Torvald vai saber de tudo. SENHORA LINDE Acredite, Nora, é a melhor coisa para vocês dois. NORA

Você não sabe de tudo. Eu falsifiquei uma assinatura. SENHORA LINDE

Meu Deus!

NORA Eu só quero contar isso a você, Cristina. Você vai ser minha testemunha.

SENHORA LINDE

Sua testemunha? O que é que eu tenho.... NORA

Se eu perder a cabeça... E isso pode muito bem acontecer... SENHORA LINDE

Nora! NORA

Ou se me acontecer qualquer outra coisa... qualquer coisa que possa, por exemplo, impedir que eu esteja aqui...

SENHORA LINDE

Nora! Nora! Você já perdeu a cabeça. NORA

E se por acaso alguém quiser assumir a responsabilidade, toda a culpa, você entende...

SENHORA LINDE

Sei, sei, mas como é que você pode imaginar...

Page 82: Casa de bonecas

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NORA

Então você tem que ser testemunha de que isso não é verdade, Cristina. E eu não perdi a cabeça coisa nenhuma, estou raciocinando perfeitamente bem. E digo-lhe que ninguém mais sabe nada sobre esse assunto. E que fui eu sozinha quem fez a coisa toda, não se esqueça.

SENHORA LINDE Não vou esquecer! Mas não estou entendendo nada. NORA Como é que você podia entender? Vai acontecer um milagre. SENHORA LINDE Um milagre? NORA É, um milagre! Mas é tão terrível, Cristina, não deve acontecer por nada deste mundo. SENHORA LINDE Eu vou agora mesmo falar com o Krogstad. NORA Não vá. Ele pode fazer alguma maldade com você. SENHORA LINDE Já houve tempo em que ele faria qualquer coisa para me ajudar. NORA Ele? SENHORA LINDE

Onde é que ele mora? NORA

Como é que eu vou saber!. . . Ah! (Apalpando o bolso.) Está aqui o cartão dele. Mas a carta, a carta!...

HELMER (chamando de seu escritório, batendo na porta)

Nora! NORA (grita ansiosa)

O que é? O que você quer?

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HELMER

Não precisa se assustar. Nós não podemos entrar, você fechou a porta. Você está experimentando o vestido?

NORA

Estou sim. Fica tão bem em mim, Torvald. SENHORA LINDE (que leu o cartão)

Ele mora aqui pertinho. NORA

Mas não adianta. Não tem jeito. A carta está ali na caixa. SENHORA LINDE

E é seu marido quem tem a chave? NORA

É, sempre.

SENHORA LINDE Krogstad tem que pedir a carta de volta antes que ele leia, ele tem que encontrar algum pretexto.

NORA

Mas geralmente é a essa hora que Torvald... SENHORA LINDE

Você tem que atrasá-lo. Enquanto isso eu vou procurar o Krogstad. Volto assim que puder.

(Sai correndo pela porta do vestíbulo.)

NORA (vai à porta de Helmer, abre-a e olha para dentro) Torvald!

HELMER (do fundo do escritório)

Então! Será que eu já posso entrar na minha própria sala? Venha, Rank, você vai ver... (Parando na porta.) Mas o que é isso?

NORA

O que é o que, meu bem? HELMER

Rank tinha me anunciado uma transformação espetacular.

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DOUTOR RANK (na soleira da porta)

Foi o que eu entendi, mas acho que me enganei. NORA

É, ninguém pode me ver fantasiada antes de amanhã à noite. HELMER

Nora, meu bem, você parece tão cansada. Não andou ensaiando demais? NORA

Não, eu nem cheguei a ensaiar. HELMER

Mas você precisa... NORA

Preciso mesmo, Torvald. Mas não consigo nem começar sem você para me ajudar. Eu esqueci completamente como é a dança.

HELMER

Num instante a gente lembra. NORA

Ah, ajude-me, Torvald. Prometa. Eu estou tão nervosa, toda aquela gente... Você tem que se dedicar exclusivamente a mim esta noite. Nada de trabalho, você não pode nem pegar na caneta. Prometa?

HELMER

Prometo. Esta noite eu estou inteiramente as suas ordens, minha desprotegidazinha. Ah, por falar nisso, antes de mais nada eu vou só... (Vai em direção ao vestíbulo.)

NORA

O que que você vai fazer aí? HELMER

Vou ver se chegou alguma carta.

NORA Não, não faça isso!

HELMER

Por que não?

Page 85: Casa de bonecas

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NORA

Não, Torvald, por favor, não há nada aí. HELMER

Ora, deixe-me dar uma olhada. (Vira-se para ir à caixa do correio. Nora, ao piano, toca os primeiros acordes da tarantela. Helmer pára na soleira da porta) Ah!

NORA

Eu não vou conseguir dançar amanhã se eu não ensaiar com você. HELMER (indo em direção a ela)

Meu bem, você está mesmo com tanto medo assim? NORA

Estou morrendo de medo, quero ensaiar agora, dá tempo antes do jantar, sente-se aqui e toque para mim, Torvald. Preste atenção e me corrija enquanto toca.

HELMER

Com prazer, já que você quer. (Senta-se ao piano. Nora tira da caixa um pandeiro e um grande xale multicolorido. Rapidamente se enrola no xale. Planta-se no meio do palco e grita.)

NORA

Agora toque para mim! Eu vou dançar!

(Helmer toca e Nora dança. Rank fica perto do piano, olhando)

HELMER (enquanto toca)

Devagar, devagar! NORA

Não consigo. HELMER

Não com tanta violência, Nora! NORA

É assim que tem que ser! HELMER (pára de tocar)

Não, não, está tudo errado.

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NORA (rindo e fazendo soar o pandeiro)

Eu não lhe falei? DOUTOR RANK

Deixe que eu toque o piano. HELMER

Isso. Assim eu posso corrigir melhor.

(Rank senta-se ao piano e toca. Nora dança cada vez mais furiosamente. Helmer coloca-se perto da estufa e durante a dança lhe dó instruções com freqüência. Ela não parece ouvir o que ele diz; o cabelo dela se desprende e cai sobre os ombros, ela não liga e continua dançando. Entra a senhora Linde.)

SENHORA LINDE (parada, atônita, na soleira da porta) Oh! NORA (enquanto dança)

E tão divertido, Cristina! HELMER

Nora, meu amor, você está dançando como se sua vida dependesse disso! NORA

É, depende. HELMER

Pare, Rank, isso é pura loucura. Pare, estou falando para parar! (Rank pára de tocar, e Nora de repente fica imóvel. Helmer vai até ela) Eu custo a acreditar. Você esqueceu tudo o que eu lhe ensinei.

NORA (jogando para longe o pandeiro)

Pois é, você viu. HELMER

Você precisa de muito ensaio. NORA

É, você viu como eu preciso. Você tem que me ensaiar até o último instante, prometa Torvald!

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HELMER

Pode contar comigo. NORA

Você tem que pensar só em mim, hoje e amanhã, você não deve abrir nenhuma carta nem abrir a caixa do correio.

HELMER

Você ainda está com medo daquele sujeito. NORA

Estou, muito.

HELMER Nora, eu vejo pelo seu rosto que há uma carta dele na caixa do correio.

NORA Eu não sei. Eu acho que há. Mas você agora não deve ler essas coisas. Nada deve nos perturbar até a apresentação à noite.

DOUTOR RANK (segreda a Helmer)

Não custa nada fazer a vontade dela. HELMER (abraçando-a)

Vai ser como minha criancinha quer. Mas, amanhã à noite, depois que você tiver dançado...

NORA

Aí você pode fazer o que quiser. (Aparece Helena na porta da direita.) HELENA

O jantar está servido, patroa. NORA

Nós vamos tomar champanha, Helena. HELENA

Sim, senhora. (Sai) HELMER

Epa! Isso vai ser um banquete? NORA

E, um banquete com champanha até de madrugada. (Grita) E depois, uns

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caramelos. Muitos, só por essa vez. HELMER

Vamos, vamos. Não fique tão excitada e nervosa. Quero a minha cotoviazinha de sempre.

NORA

Está bem, meu amor, mas vá para a mesa, e o senhor também, doutor Rank. Cristina, você me ajuda a arrumar o cabelo.

DOUTOR RANK (em voz baixa, para Helmer, enquanto saem)

Será que não há nada ou alguma coisa está para acontecer? HELMER

Que nada, meu velho, não passa do nervosismo infantil de que eu estava lhe falando. (Entram no aposento da direita)

NORA Então?

SENHORA LINDE

Saiu da cidade. NORA

Eu vi pela tua cara. SENHORA LINDE

Ele está de volta amanhã à noite. Eu deixei um bilhete. NORA

Você devia ter desistido. Você não precisa impedir nada. Afinal de contas, é maravilhoso estar esperando um milagre.

SENHORA LINDE

E qual é esse milagre que você tanto espera? NORA

Ah, você não ia entender. Vá jantar, eu vou em seguida. (A senhora Linde entra na sala de jantar. Nora fica parada um pouco, como que se recompondo. Olha para o relógio.) Cinco horas. Sete horas para a meia-noite e vinte e quatro horas até a meia-noite de amanhã. Aí acaba a tarantela. Vinte e quatro mais sete? Trinta e uma horas de vida.

HELMER (na porta da direita)

Onde está minha cotovia?

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NORA (indo para ele de braços abertos)

Está aqui!

ATO III

A mesma cena. A mesa foi colocada no centro,

com cadeiras em volta, e um lampião aceso está colocado sobre ela. A porta do vestíbulo está aberta. Ouve-se música de dança no andar de cima. A senhora Linde está sentada à mesa, folheando um livro; mal consegue concentrar-se. De vez em quando presta atenção a algum ruído de fora.)

SENHORA LINDE (olhando seu relógio)

Ainda não. E quase não dá mais tempo. Se pelo menos ele não... (Escuta novamente.) Ah, aí vem ele. (Vai ao vestíbulo e abre a porta da rua com cuidado. Ouvem-se passos leves na escada. Ela sussurra.) Entre, não há ninguém em casa.

KROGSTAD (na porta)

Eu encontrei seu bilhete em casa. Que significa tudo isso?

SENHORA LINDE Eu preciso muito falar com você.

KROGSTAD

É mesmo? E também precisa ser aqui? SENHORA LINDE

Onde eu moro é impossível. Não há nenhuma entrada particular para o meu apartamento. Entre, estamos sozinhos. A criada está dormindo e os Helmer estão no baile ali em cima.

KROGSTAD (entrando na sala)

Ah, os Helmer estão num baile! Na noite de hoje? SENHORA LINDE

Sim, por que não? KROGSTAD

Claro, por que não?

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SENHORA LINDE Agora, nós, vamos conversar.

KROGSTAD

Será que nós dois temos alguma coisa que conversar? SENHORA LINDE

Nós temos muito o que conversar. KROOSTAD

Não é o que eu pensava.

SENHORA LINDE Não, você nunca me compreendeu bem.

KROGSTAD

Havia alguma coisa a mais para compreender além daquilo que estava óbvio para todo mundo? Uma mulher calculista deixa um homem quando aparece uma oportunidade mais lucrativa.

SENHORA LINDE

Você acha que eu sou tão calculista que eu não me arrependi? KROGSTAD

Acho sim. SENHORA LINDE

Mas, você acha mesmo isso? KROGSTAD

Se fosse como você diz, por que você ia escrever-me da maneira que escreveu?

SENHORA LINDE Era a única coisa que eu podia fazer. Eu tinha que romper com você e tinha

também a obrigação de acabar com seus sentimentos por mim. KROGSTAD (apertando as mãos)

Então foi assim. E tudo isso, só por causa de dinheiro! SENHORA LINDE

Não se esqueça de que eu tinha uma mãe doente e dois irmãos pequenos. Nós não podíamos esperar por você, Nils. Naquele tempo, seus projetos pareciam longe de chegar a um bom resultado.

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KROGSTAD Pode ser, mas você não tinha o direito de me trocar por outro homem.

SENHOR A LINDE

Na verdade, eu não sei. Muitas vezes eu me perguntei se eu tinha esse direito ou não.

KROGSTAD (mais gentilmente)

Quando eu perdi você foi como se o chão tivesse afundado embaixo de mim. Olhe para mim agora, um náufrago agarrado a uma tábua.

SENHORA LINDE

A salvação pode estar perto. KROGSTAD

Já esteve. Mas então chegou você e roubou meu lugar. SENHORA LINDE

Foi sem querer, Nils. Só hoje eu soube que era o seu lugar que eu ia ocupar no banco.

KROGSTAD

Acredito, já que é você quem diz. Mas agora que você sabe, você não vai desistir e deixar o lugar para mim?

SENHORA LINDE

Não, porque no final das contas isso não ia lhe trazer nenhum proveito.

KROGSTAD Ora, proveito, proveito, eu desistiria de qualquer maneira.

SENHORA LINDE Eu aprendi a usar a prudência. A vida e a necessidade, às vezes bem amargas, me ensinaram isso.

KROGSTAD

E a mim, a vida ensinou a não acreditar em palavras bonitas. SENHORA LINDE

Então a vida lhe ensinou uma coisa muito certa. Mas em fatos você acredita? KROGSTAD

O que é que você quer dizer?

Page 92: Casa de bonecas

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SENHORA LINDE Você disse que é um náufrago agarrado a uma tábua. KROGSTAD

E tenho boas razões para dizer isso.

SENHORA LINDE Bom, eu também estou agarrada a uma tábua. Ninguém por quem sofrer, ninguém de quem cuidar.

KROGSTAD

Foi você que escolheu.

SENHORA LINDE E será que eu não tenho outra escolha?

KROGSTAD

Ora, o que há? SENHORA LINDE

Nils, o que aconteceria se dois náufragos juntassem suas forças? KROGSTAD

O que é que você está dizendo? SENHORA LINDE

Dois juntos teriam mais chances do que cada um sozinho. KROGSTAD

Cristina! SENHORA LINDE

O que é que você pensa que eu vim fazer na cidade? KROGSTAD

Quer dizer que você pensou em mim? SENHORA LINDE

Eu não posso suportar a idéia de viver sem trabalhar. Em toda a minha vida, desde que eu me entendo por gente, eu trabalhei e isso foi sempre meu maior e único prazer. Mas agora eu estou muito sozinha no mundo. Minha vida está tão vazia, eu me sinto tão abandonada. Não há o menor prazer em trabalhar para si mesmo. Nils, dê-me alguma coisa ou alguém por quem trabalhar!

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KROGSTAD Não confio nisso. E só um exagero de generosidade feminina que faz você se oferecer dessa maneira.

SENHORA LINDE

Alguma vez você reparou nesse tipo de coisa em mim? KROGSTAD

Você seria mesmo capaz? Diga-me, você sabe tudo do meu passado? SENHORA LINDE

Sei. KROGSTAD

E sabe que opinião eles têm de mim nesta casa? SENHORA LINDE

Parece-me que você sugeriu que comigo teria sido um outro homem. KROGSTAD

Disso eu tenho certeza. SENHORA LINDE

Será que já é tarde demais? KROGSTAD

Cristina, é serio mesmo isso que você está dizendo? É, pelo seu rosto eu vejo que é. Então você teria realmente coragem de..

SENHORA LINDE

Eu quero muito ser mãe de alguém e seus filhos precisam de mãe. Nós precisamos um do outro. Nils, eu tenho fé no seu verdadeiro caráter, com você eu aceito qualquer risco.

KROGSTAD (segura as mãos dela)

Obrigado, obrigado, Cristina! Agora eu vou encontrar uma maneira de me reabilitar aos olhos de todo o mundo. Ah, mas eu me esqueci...

SENHORA LINDE (hesitando)

Psiu! A tarantela! Vá embora, vá embora! KROGSTAD

Por quê? Que é isso?

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SENHORA LINDE Está ouvindo lá em cima? Quando esta música acabar eles vão voltar

KROGSTAD

Ah. sei, então já vou. Mas agora é inútil. Claro que você não sabe das medidas que eu tomei na minha questão com os Helmer.

SENHORA LINDE Sei sim. Sei de tudo. KROGSTAD

E apesar disso você ainda tem a coragem de... SENHORA LINDE

Eu compreendo muito bem até onde o desespero pode levar um homem como você.

KROGSTAD

Se pelo menos eu pudesse desfazer o que eu fiz! SENHORA LINDE

Você não pode, sua carta agora está ali, na caixa do correio. KROGSTAD

Tem certeza? SENHORA LINDE

Absoluta, mas... KROGSTAD (com um olhar indagador)

Então foi por isso?... Você queria salvar sua amiga a qualquer preço? Fale a verdade. É isso?

SENHORA LINDE

Nils, quando uma mulher já se vendeu uma vez pela felicidade dos outros, não repete o erro.

KROGSTAD

Vou pedir minha carta de volta. SENHORA LINDE

Não, não.

Page 95: Casa de bonecas

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KROGSTAD Claro que vou. Vou esperar aqui até Helmer voltar, aí digo a ele que me devolva minha carta que só se refere a assuntos do banco, e que ele não pode ler.

SENHORA LINDE

Não, Nils, você não deve pedir sua carta de volta.

KROGSTAD Mas não foi para isso mesmo que você me chamou aqui?

SENHORA LINDE

Foi, num primeiro momento de susto. Mas já se passaram vinte e quatro horas e nesse tempo eu presenciei coisas incríveis nessa casa. Helmer precisa saber de tudo. Esse segredo infeliz precisa ser conhecido. Eles precisam de um entendimento completo, o que é impossível com toda essa dissimulação e falsidade que eu tenho visto por aqui.

KROGSTAD

Muito bem, já que você assume a responsabilidade. Mas em todo caso há uma coisa que eu posso fazer e vou fazer já.

SENHORA LINDE (escutando)

Agora você tem que ir depressa. A tarantela acabou e num minuto eles estarão aqui.

KROGSTAD

Eu a espero lá embaixo. SENHORA LINDE

Está bem. Depois você me acompanha até minha casa. KROGSTAD

Nunca me senti tão espantosamente feliz na minha vida! (Sai pela porta da rua. A porta do vestíbulo, que é intermediária, permanece aberta.)

SENHORA LINDE (arrumando um pouco a sala e deixando à mão seu casaco e

seu chapéu) Que diferença! Que diferença! Alguém para quem trabalhar, de quem cuidar. Uma casa para tomar conta. Isso eu vou fazer muito bem. Por que é que eles não chegam logo? (Escuta.) Ah, aí estão! Deixem-me aprontar. (Pega o chapéu e o casaco. Ouvem-se as vozes de Helmer e de Nora. Uma chave gira na fechadura e Helmer traz Nora quase à força para dentro do vestíbulo. Ela está fantasiada de pescadora de Capri, envolta num grande xale negro, ele vestido para a noite, com um grande dominó aberto.)

Page 96: Casa de bonecas

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NORA (segurando-se no umbral da porta e lutando com ele)

Não, não, não. Não quero entrar. Eu quero voltar lá para cima, não quero vir embora tão cedo.

HELMER

Mas, Nora, meu bem... NORA

Por favor. Torvald. por favor, meu benzinho, só mais uma hora. HELMER

Nem um minuto a mais, minha doçura. Esse foi nosso trato. Ande, entre na sala, você vai se resfriar ficando ai. (Ele a conduz severamente para dentro da sala, apesar da resistência dela.)

SENHORA LINDE

Boa noite.

NORA Cristina!

HELMER

A senhora aqui, tão tarde, senhora Linde? SENHORA LINDE

É. Eu peço desculpas, mas é que eu queria tanto ver Nora fantasiada. NORA

Você ficou ai sentada esperando por mim? SENHORA LINDE

É. Infelizmente eu cheguei tarde, vocês já tinham subido. Aí eu achei que não devia ir embora sem primeiro ver você.

HELMER (tirando o xale de Nora)

Então, olhe bem, acho que vale a pena. Ela não está maravilhosa, senhora Linde?

SENHORA LINDE

Está mesmo! HELMER

Ela não está excepcionalmente bonita? Foi a opinião geral na festa. Mas ela é

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terrivelmente teimosa, essa pessoinha. O que é que a gente pode fazer com ela? A senhora nem vai acreditar, mas eu quase tive que trazê-la à força.

NORA

Torvald, você vai se arrepender de não ter deixado que eu ficasse mais, nem que fosse só meia hora.

HELMER

Escute só isso, senhora Linde! Ela dançou a tarantela e foi um tremendo sucesso, aliás merecido. Se bem que o desempenho tivesse uma pitadinha a mais de realismo. Só um pouquinho além do que seria o ideal dentro dos limites da arte, mas não vamos dar importância a isso. O principal é que ela fez sucesso. Ela fez um tremendo sucesso. A senhora acha que eu ia deixa-la ficar lá depois disso e estragar o efeito? De maneira nenhuma! Peguei minha radiosa pescadora de Capri, ou melhor, minha caprichosa pescadora de Capri pelo braço, demos uma rápida volta no salão. Um cumprimento aqui, outro ali, e como dizem nas novelas, a deslumbrante aparição desapareceu. Uma boa saída sempre faz seu efeito, senhora Linde. Mas é isso que eu não consigo fazer com que Nora entenda. Puxa, como esta casa está quente. (Joga o dominó numa cadeira e abre a porta de seu quarto.) Nossa, que escuridão! Ora, é lógico. Com licença. (Entra e acende umas velas.)

NORA (num rápido e sufocado sussurro)

Então? SENHORA LINDE (em voz baixa)

Eu tive uma conversa com ele. NORA

E... SENHORA LINDE

Nora, você precisa contar tudo ao seu marido. NORA (numa voz incolor)

Eu sabia. SENHORA LINDE

Não há nada a temer da parte de Krogstad, mas você vai ter que contar tudo. NORA

Eu não vou contar.

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SENHORA LINDE Então ele vai saber pela carta.

NORA

Obrigada. Cristina. Agora eu sei o que é que eu tenho que fazer. Psiu! HELMER (voltando)

Então, senhora Linde, admirou bastante? SENHORA LINDE

Já, e agora já vou indo. HELMER

Já, tão cedo? É seu esse tricô? SENHORA LINDE (pegando o tricô)

É sim, obrigada, eu já ia esquecendo. HELMER

Então a senhora gosta de fazer tricô?

SENHORA LINDE Claro.

HELMER

Sabe, acho que a senhora devia bordar. SENHORA LINDE

Acha mesmo? Por quê? HELMER

Porque é muito mais bonito. Deixe que eu lhe mostre. A senhora segura o bordado assim, com a mão esquerda, e com a direita a senhora manobra a agulha, assim, com um gesto longo e suave, está vendo?

SENHORA LINDE

É, pode ser. HELMER

Mas tricotando, só pode ser um gesto sem graça: olhe os braços juntos, as agulhas se mexendo para cima e para baixo, parece um trabalho chinês... Excelente a champanha que nos serviram.

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SENHORA LINDE Bem, boa noite, Nora, e deixe de ser teimosa.

HELMER

Isso mesmo, senhora Linde. SENHORA LINDE

Boa noite, senhor Helmer. HELMER (acompanhando-a até aporta)

Boa noite, boa noite. Espero que a senhora chegue bem em casa. Eu teria o maior prazer em... mas não é muito longe, não é mesmo? Boa noite, boa noite. (Ela sai, ele fecha a porta e se volta.) Até que enfim ela foi embora. Que mulher inoportuna!

NORA

Você está muito cansado. Torvald? HELMER

Não, nem de longe. NORA

Nem com sono? HELMER

Nem um pouco, pelo contrário, eu me sinto extraordinariamente acordado. E você? Você parece estar com as duas coisas: sono e cansaço.

NORA

É. Estou muito cansada. Quero ir dormir agora mesmo. HELMER

Aí está, viu como eu tinha razão de não deixar você ficar lá mais tempo? NORA

Você sempre tem razão, Torvald. HELMER (beijando-a na testa)

Agora minha cotoviazinha está falando como eu gosto. Você reparou como o Rank estava de bom humor essa noite?

NORA

É, estava? Eu nem cheguei a falar com ele.

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HELMER E eu muito pouco, mas faz muito tempo que eu não o via tão disposto. (Olha um pouco para ela e depois se aproxima.) Que prazer estar de novo em casa, sozinho com você, só com você, minha mulher encantadora, fascinante!

NORA

Não olhe assim para mim, Torvald. HELMER

Porque é que eu não posso olhar para a minha coisa mais querida? Toda essa beleza que é minha, só minha?

NORA

Não quero que você fale assim comigo esta noite. HELMER (indo atrás dela)

Estou vendo que a tarantela ainda está no seu sangue. Isso faz você mais sedutora do que nunca. Ouça, os convidados estão começando a ir embora. (Num tom mais baixo) Nora, logo, logo a casa toda vai estar em silêncio.

NORA

É, eu espero que sim.

HELMER Vai sim, minha querida. Sabe por que é que quando nós estamos numa festa como essa eu falo tão pouco com você, fico longe de você, e só de vez em quando lhe dirijo um olhar? Sabe por que é que eu faço isso? É porque eu fico imaginando que nós estamos apaixonados em segredo e que você é minha noiva, prometida em segredo, e ninguém suspeita que haja alguma coisa entre nós.

NORA

Sei, sei. Eu sei muito bem que você pensa em mim o tempo todo. HELMER

E quando nós estamos indo embora e eu coloco o xale nos seus ombros que eu adoro, no seu pescoço lindo, aí eu imagino que você é a minha noiva e que nós acabamos de nos casar e eu estou trazendo-a para a nossa casa pela primeira vez. Só nós dois, sozinhos! A noite inteira. eu só pensei em você. Quando vi você dançando a coreografia provocante da tarantela, senti o sangue ferver. Eu não agüentava mais, por isso eu a trouxe para casa tão cedo...

NORA

Não. Torvald! Deixe-me. Eu não quero.

Page 101: Casa de bonecas

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HELMER Que é isso? Você está brincando, meu amor! Você não quer, não quer? Eu não sou seu marido?... (Alguém bate na poria da rua.)

NORA (num salto)

Você ouviu? HELMER (indo ao vestíbulo)

Quem é? DOUTOR RANK (de fora)

Sou eu. Posso entrar um pouco? HELMER (em voz baixa, contrariado)

Ora, que será que ele quer? (Em voz alta.) Espere um instante. (Abre a porta.) Entre. Fez bem em não passar pela nossa porta sem bater.

DOUTOR RANK

Achei que tinha ouvido sua voz e senti vontade de dar uma olhada. (Com uma rápida olhada ao redor.) Ah, esta é a sala tão familiar e tão querida. Vocês dois têm uma casa muito acolhedora e muito feliz.

HELMER

Pareceu-me que você também estava se dando bastante bem lá em cima. DOUTOR RANK

Maravilhosamente. E por que não? Por que razão uma pessoa não deve aproveitar bem tudo neste mundo? Pelo menos o máximo que puder, pelo maior tempo que puder. O vinho estava excelente!

HELMER Especialmente a champanha. DOUTOR RANK

Você também reparou? É quase inacreditável a quantidade que eu consegui engolir!

NORA

Torvald também bebeu bastante champanha esta noite. DOUTOR RANK

Bebeu?

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NORA Bebeu, e isso sempre o deixa de bom humor.

DOUTOR RANK

Bem, por que não aproveitar bem a noite depois de um dia proveitoso? HELMER

Proveitoso? Acho que disso eu não posso me gabar. DOUTOR RANK (dando um tapa nas costas dele) Mas, eu posso, sabia? NORA

Doutor Rank, o senhor deve ter passado o dia fazendo alguma pesquisa científica.

DOUTOR RANK

Exatamente. HELMER

Olhem isso! Minha menininha falando de pesquisa científica! NORA

E posso dar-lhe os parabéns pelo resultado?

DOUTOR RANK Se pode!...

NORA

Então foi favorável? DOUTOR RANK

O melhor possível, para ambos, médico e paciente: a certeza. NORA (indagadora) Certeza? DOUTOR RANK

Certeza absoluta. Então eu não tinha direito a uma boa noitada depois disso? NORA

Claro que tinha, doutor Rank.

Page 103: Casa de bonecas

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HELMER Eu também estou de acordo, desde que não se tenha que pagar caro na manhã seguinte.

DOUTOR RANK

Ora, não se tem nada nessa vida sem pagar. NORA

Doutor Rank, o senhor gosta de baile a fantasia? DOUTOR RANK

Gosto, quando há muitas fantasias bonitas. NORA

Diga, de que é que nós dois vamos nos fantasiar no ano que vem? HELMER

Cabecinha de vento! Já está preocupada com o baile do ano que vem? DOUTOR RANK

Nós dois? Já lhe digo. A senhora vai de mensageira do sol. HELMER

Sim, mas como você acha que deve ser essa fantasia? DOUTOR RANK

Basta você deixar sua mulher ir ao baile com a roupa com que anda em casa. HELMER

Hum, essa tirada foi realmente boa, mas e você? De que é que você vai? DOUTOR RANK

Sim, meu amor, isso eu já resolvi. HELMER

Então? DOUTOR RANK

No próximo baile a fantasia eu vou invisível. HELMER

Gostei da piada.

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DOUTOR RANK Existe um chapelão preto. Você nunca ouviu falar na lenda do chapéu que deixa a gente invisível? Você o põe na cabeça e ninguém o vê.

HELMER (reprimindo um sorriso)

É, é verdade. DOUTOR RANK

Mas, não é que eu ia esquecendo o motivo da minha visita. Um daqueles havanas escuros.

HELMER Com o maior prazer. (Estende a caixa para ele.)

DOUTOR RANK (pega um charuto e corta-lhe a ponta) Obrigado. NORA (riscando um fósforo)

Deixe-me acender para o senhor. DOUTOR RANK

Obrigado. (Ela estende o fósforo, ele acende o charuto.) E agora, adeus. HELMER

Adeus, adeus, meu bom amigo NORA

Descanse bem, doutor Rank. DOUTOR RANK

Agradeço seus bons desejos. NORA

Deseje o mesmo para mim. DOUTOR RANK

A senhora? Já que a senhora quer, durma bem. E obrigado pelo fogo. (Cumprimenta os dois e sai.)

HELMER (falando baixo)

Ele bebeu mais do que devia. NORA (distante)

Talvez. (Helmer tira um molho de chaves do bolso e caminha para o escritório.)

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Torvald, o que é que você vai fazer aí? HELMER

Esvaziar a caixa do correio. Está bem cheia. Não vai haver lugar para o jornal, amanhã de manhã.

NORA

Você vai trabalhar agora à noite? HELMER

Você sabe muito bem que não. O que é isso? Alguém andou mexendo na fechadura.

NORA

Na fechadura? HELMER

Sim, alguém mexeu. Que pode ser isso? Nunca pensei que a empregada... há um grampo quebrado. Nora, é um grampo seu.

NORA (com presteza)

Então devem ter sido as crianças. HELMER

Então você tem que dizer a elas que não façam mais isso. Pronto, até que enfim consegui abrir. (Esvazia a caixa e grita para a cozinha.) Helena, Helena! Apague a luz da porta da entrada. (Volta para a sala e fecha a porta do vestíbulo. Tem a mão cheia de cartas.) Olhe só! Que monte! (Virando as cartas) Que diabo será isso?

NORA (junto da janela)

A carta! Não! Torvald, não! HELMER

Dois cartões de Rank. NORA

Do doutor Rank? HELMER (olhando os cartões)

Doutor Rank — médico —, estavam por cima. Ele deve ter deixado ao sair. NORA

Tem alguma coisa escrita?

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HELMER

Tem uma cruz preta em cima do nome. Olhe aí, que idéia desagradável! Parece que ele está anunciando a própria morte!

NORA

É exatamente o que ele está fazendo. HELMER

O quê? O que é que você sabe a esse respeito? Ele lhe falou alguma coisa? NORA

Falou. Ele me disse que, quando chegassem esses cartões, ele estaria despedindo-se de nós. Ele vai se fechar em casa para morrer.

HELMER

Pobre amigo velho! Eu sabia que ele não ia durar muito. Mas tão cedo! Então ele vai se esconder como um animal ferido.

NORA

Se tem que acontecer, é melhor que seja sem nenhuma palavra, você não acha, Torvald?

HELMER (andando de um lado para o outro)

Ele ocupava um lugar tão grande na nossa vida. Não consigo pensar que ele vai desaparecer. Ele, com seu sofrimento e sua solidão, era como um pano de fundo cinzento para a nossa felicidade luminosa. Bem, talvez seja melhor assim, pelo menos para ele. (Parando.) E talvez para nós também, Nora. Agora só temos um ao outro. (Abraça-a.) Minha mulher querida, acho que nunca vou conseguir abraçá-la apertado o bastante. Sabe, muitas vezes eu desejei que você corresse um grande perigo, para que eu pudesse arriscar minha vida, meu sangue. tudo, para salvá-la.

NORA (solta-se e diz firme e decidida)

Agora você deve ler suas cartas, Torvald. HELMER

Não, não. Essa noite não. Eu quero estar com você, meu amor. NORA

E a idéia da morte do seu amigo? HELMER

Voa tem razão. Fez mal a nós dois. Surgiu uma coisa feia entre nós. A idéia do

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horror da morte. Nós precisamos nos esforçar para tirar isso da cabeça. Até que isso aconteça, cada um vai para o seu próprio quarto.

NORA (,pendura-se no pescoço dele)

Boa noite, Torvald. Boa noite. HELMER (beijando-a na testa)

Boa noite, meu bichinho. Durma bem, Nora. Agora vou ler minhas cartas. (Pega as cartas, entra em seu quarto e fecha a porta.)

NORA (olha em volta, distraída, pega o dominó de Helmer, enrola-se nele,

enquanto diz em voz baixa, rápida, em espasmos roucos)

Nunca mais vou Torvald! Nunca! Nunca! (Põe o xale na cabeça.) Nunca mais vou ver meus filhos também, nunca mais. Nunca! Nunca! Ah, a água escura, gelada. O fundo escuro. Se ao menos já tivesse acabado! Ele entrou, agora está lendo. Adeus, Torvald. Adeus, meus filhos! (Está quase saindo pelo vestíbulo quando Helmer abre sua porta apressadamente e pára com uma carta aberta na mão.)

HELMER

Nora! NORA

Ah! HELMER

O que é isso? Você sabe o que é que esta carta diz? NORA

Sei. Deixe-me ir embora. Deixe-me sair. HELMER (segurando-a)

Onde é que você vai? NORA (tentando se soltar)

Você não deve me salvar, Torvald! HELMER (soltando-a)

Verdade? É verdade o que eu li aqui? é impossível que seja verdade! NORA

É verdade. Eu amei você acima de qualquer coisa no mundo.

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HELMER Ora não venha com desculpas bobas.

NORA (dando um passo para ele)

Torvald! HELMER

Miserável, o que é que você fez?

NORA Deixe-me ir embora. Você não vai sofrer por minha causa. Você não deve assumir a responsabilidade.

HELMER

Nada de tragédias, por favor. (Tranca a porta do vestíbulo.) Você vai ficar aqui e me dar uma explicação. Você compreende o que você fez? Responda! Você compreende o que você fez?

NORA (olha fixo para ele e diz, com uma frieza crescente no rosto)

É, acho que agora estou começando a compreender direito. HELMER (andando pela sala)

Que maneira horrível de acordar para a realidade! Todos esses oitos anos, ela que foi minha alegria e meu orgulho, uma hipócrita, uma mentirosa. Pior, pior, uma criminosa! Como tudo isso é repugnante! Que vergonha! Que vergonha! (Nora está calada e olha firme para ele, que pára na frente dela.) Eu devia ter suspeitado de que alguma coisa assim ia acontecer. Eu devia ter adivinhado. Toda a falta de princípios de seu pai. Cale a boca! Toda a falta de princípios de seu pai você herdou! Nada de religião, nada de moral, nada de sentido do dever. Como eu estou sendo castigado por ter sido benevolente com ele! Eu fiz isso por você, e é assim que você me paga!

NORA

É, é isso mesmo. HELMER

Você destruiu toda a minha felicidade. Você arruinou meu futuro. Sinto horror só em pensar nisso. Eu estou nas mãos de um homem sem escrúpulos. Ele pode fazer o que quiser comigo, pedir o que quiser de mim, dar-me as ordens que bem entender, eu não me atrevo a recusar. E eu tenho que cair em toda essa baixeza por causa de uma mulher sem princípios!

NORA

Quando eu não existir mais, você vai ficar livre.

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HELMER

Nada de belas palavras, por favor. Seu pai também tinha sempre um discurso pronto. O que vai me adiantar você não existir mais, como você mesma diz? Nada. Ele pode tornar pública toda a história e, se ele fizer isso, eu posso ser considerado suspeito como cúmplice no seu crime. Muita gente boa vai pensar que eu estava por trás de tudo, que fui eu que a induzi. E é a você que eu devo agradecer tudo isso. Você, que eu mimei tanto durante toda a nossa vida de casados. Você compreende agora o que é que você fez comigo.

NORA (fria e calma)

Compreendo. HELMER

É tão incrível que eu não consigo aceitar. Mas nós precisamos fazer um acordo. Tire esse xale, tire, estou mandando. Eu tenho que tentar satisfazer esse sujeito de uma maneira ou de outra. O caso tem que ser abafado a qualquer preço e quanto a você e eu, devemos dar a impressão de que tudo continua como antes aos olhos dos outros, é claro. Você continua morando na minha casa, isso é evidente. Mas não vou deixar você educar as crianças, não me atrevo a confiá-las a você. Ser obrigado a dizer isso à mulher que eu amei tanto e que agora ainda... não, isso está acabado. De agora em diante, felicidade não consta mais. Agora se trata de salvar os restos, os fragmentos, as aparências. (Tocam a campainha da porta da frente. Helmer se assusta.) Que é isso? Tão tarde! Será o pior?... Será que ele... esconda-se Nora, diga que está doente. (Nora permanece imóvel, Helmer vai e destranca a porta do vestíbulo.)

HELENA (meio vestida, vem até a porta)

Uma carta para a patroa. HELMER

Dê para mim. (Pega a carta e bate a porta.) — É, é dele. Mas não vou entregá-la a você, quem vai ler sou eu.

NORA

Lê. HELMER (próximo ao lampião)

Mal tenho coragem. Pode ser a nossa ruína... Não, tenho que saber. (Abre a carta, lê depressa algumas linhas, olha para um papel anexado e dá um grito de alegria.) Nora! (Ela olha intrigada.) Nora!... Não, tenho que ler novamente... é, é verdade! Estou salvo! Nora, eu estou salvo!

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NORA E eu?

HELMER

Você também, é claro. Estamos salvos os dois, você e eu. Olha, ele devolve sua promissória. Ele diz que se arrepende e lamenta. Que houve uma mudança feliz em sua vida. Não importa o que ele diz! Nós estamos salvos, Nora! Ninguém pode fazer nada contra você, oh, Nora, Nora!... Não, primeiro vou destruir essas coisas horríveis. Deixe-me ver... (Dá uma olhada na promissória.) Não, não quero nem olhar. Tudo isso não vai passar de um pesadelo para mim. (Rasga a promissória e as duas cartas, joga tudo na estufa e fica olhando queimar.) Pronto... acabou. Ele diz que desde a véspera de Natal você... Estes devem ter sido três dias terríveis para você, Nora.

NORA

Foram três dias de luta constante. HELMER

E a agonia de não ver uma saída... Não vamos pensar nesses horrores agora. Nos vamos apenas gritar de alegria e repetir: “Acabou”. Escute, Nora... Você parece não entender que acabou. Que é isso?... Essa frieza no seu rosto! Minha pobre Norinha, eu compreendo muito bem, você custa a acreditar que eu a tenha perdoado. Mas é verdade, Nora, eu juro. Eu a perdoei por tudo. Eu sei que tudo que você fez, fez por amor a mim.

NORA

Isso é verdade. HELMER

Você me amou como uma mulher deve amar seu marido. Só que você não teve discernimento suficiente para julgar os meios que você usou. Mas você acha que eu vou querê-la menos só porque você não tem capacidade para agir por sua própria conta? Não, não, basta apoiar-se em mim, eu a aconselho e a oriento. Eu não seria homem se essa sua inferioridade feminina não a fizesse duplamente sedutora aos meus olhos. Você não deve mais pensar nas palavras duras que eu lhe disse na hora do choque, quando eu achei que tudo ia desabar sobre a minha cabeça. Eu a perdoei, Nora. Eu juro a você que a perdoei.

NORA

Obrigada pelo seu perdão. (Sai pela porta da direita.) HELMER

Não, espere. (Olha para dentro.) O que é que você está fazendo ai?

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NORA Tirando minha fantasia.

HELMER (diante da porta aberta)

Isso mesmo. Trate de se acalmar e abrandar suas idéias, meu bichinho assustado. Descanse e fique tranqüila. Eu tenho asas largas para protegê-la. (Caminha de um lado para outro em frente à porta.) Como a nossa casa é agradável e acolhedora. Nora, aqui é o seu abrigo. Aqui eu a protejo como se você fosse uma pombinha que eu tivesse salvo das garras de um falcão. Eu vou trazer paz ao seu coraçãozinho que bate apressado. Isso vai vir pouco a pouco, Nora, acredite em mim. Amanhã de manhã, você vai ver as coisas de uma maneira bastante diferente, logo tudo vai ser como antes. Logo, logo você não vai precisar que eu repita que a perdoei. Você mesma vai sentir a certeza disso. Você acha que eu jamais ia pensar no absurdo de repudiar você ou mesmo de reprovar você? Você não tem idéia do que seja o coração de um homem de verdade, Nora. Há uma satisfação indescritivelmente doce para um homem, no fato de ter consciência de que perdoou sua mulher de livre e espontânea vontade e de todo o coração. Isso, num certo sentido, faz com que ela seja duplamente propriedade dele. É como se ele, por assim dizer, a trouxesse ao mundo uma segunda vez. De uma certa maneira ela se torna ao mesmo tempo sua mulher e sua filha. Portanto, de agora em diante, é isso que você vai ser para mim, minha coisinha assustada e indefesa, não tenha nenhuma preocupação, basta ser franca e abrir-se comigo, e eu vou ser ao mesmo tempo sua consciência e sua vontade... Que é isso? Você não se deitou? Você trocou de roupa?

NORA (com um vestido comum)

É, Torvald, eu acabo de mudar minha roupa. HELMER

Mas para que... tão tarde. NORA

Eu não vou dormir essa noite. HELMER

Mas, Nora, meu bem... NORA (olhando o relógio)

Não é tão tarde assim. Sente-se aqui, Torvald. Você e eu temos muito o que conversar. (Ela senta-se de um lado da mesa.)

HELMER

Que significa isso? Essa frieza no seu rosto?

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NORA Sente-se. Vai ser uma conversa longa, tenho muito o que falar com você.

HELMER (senta-se do outro lado da mesa)

Você me assusta, Nora! E eu não a estou compreendendo. NORA

Não, é exatamente isso. Você não me compreende, e eu nunca compreendi você, até esta noite. Não, não me interrompa. Ouve o que eu tenho para dizer. Torvald, isso é um ajuste de contas.

HELMER

Que significa isso? NORA (depois de uma curta pausa)

Você não sente uma coisa estranha no fato de nós dois estarmos conversando assim?

HELMER

O quê? NORA

Nós estamos casados há oito anos. Você reparou que esta é a primeira vez que nós dois, você e eu, temos uma conversa séria, como marido e mulher?

HELMER

Séria? Como? NORA

Durante esses oito anos, até antes, desde o nosso primeiro encontro, nós nunca trocamos uma palavra sobre um assunto sério.

HELMER

Será que eu devia então envolvê-la toda hora nos meus problemas, trazendo-lhe preocupações inúteis, coisas em que você não poderia nem ao menos me ajudar?

NORA

Não estou falando de assuntos de negócios. Estou dizendo que nunca nos unimos seriamente para chegar ao fundo de nenhum assunto.

HELMER

Mas, Nora, meu bem, de que é que isso ia lhe servir?

Page 113: Casa de bonecas

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NORA E exatamente isso, Torvald, você nunca me compreendeu. Eu fui muito incompreendida, primeiro papai, depois você.

HELMER

O quê? Nós dois, nós dois que a amamos mais do que qualquer outra pessoa neste mundo?

NORA (balançando a cabeça)

Vocês nunca me amaram. Vocês só achavam que era divertido pensar que me amavam.

HELMER

Nora, o que é que você está dizendo? NORA

É a pura verdade, Torvald. Quando eu morava em casa de papai, ele me dizia a opinião dele a respeito de tudo. Assim, eu tinha as mesmas opiniões. Se eu discordasse dele, eu escondia, porque ele não ia gostar. Ele me chamava de sua bonequinha e brincava comigo da mesma maneira que eu brincava com as minhas bonecas e quando eu vim morar com você...

HELMER

É assim que você se refere ao nosso casamento? NORA (sem se perturbar)

Eu quero dizer que eu fui simplesmente passada das mãos de papai para as suas. Você organizou tudo de acordo com o seu gosto, e assim eu passei a ter o mesmo gosto ou talvez tenha fingido, já não sei mais distinguir mais uma coisa da outra. Acho que às vezes é uma coisa e às vezes é outra. Agora quando penso nisso, tenho a sensação de ter vivido aqui como uma mendiga, vivendo do que me era dado. Minha vida tem sido fazer gracinhas para você, Torvald. Mas era isso que você queria. Você e papai me fizeram um grande mal. Foi por culpa de vocês que eu desperdicei minha vida.

HELMER

Como você é injusta e ingrata, Nora! Você não tem sido feliz aqui? NORA

Não, eu nunca fui feliz. Eu pensava que era, mas na verdade nunca fui. HELMER

Nunca foi feliz?

Page 114: Casa de bonecas

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NORA Não, só alegre. E você sempre foi gentil comigo. Eu tenho sido sua boneca-mulher, como fui a filha-boneca de papai. E agora os nossos filhos têm sido as minhas bonecas. Eu me divertia muito quando você brincava comigo, da mesma forma que eles se divertiam muito quando eu brincava com eles. E isso que tem sido nosso casamento, Torvald.

HELMER

Há alguma verdade no que você diz, exagerada e distorcida, como é o seu ponto de vista. Mas, de agora em diante, vai ser diferente. Acabou-se o tempo de brincadeira, vai começar o tempo da educação.

NORA

Educação de quem? Minha ou das crianças? HELMER

Todos, você e as crianças, minha querida. NORA

Ora, Torvald, você não é o homem indicado para me ensinar a ser uma verdadeira mulher para você.

HELMER

E você é a pessoa indicada para dizer isso? NORA

E eu, por acaso, eu estou preparada para educar as crianças? HELMER

Nora!

NORA Você mesmo não disse ainda agora que não se atrevia a deixá-las entregues a mim?

HELMER

Numa hora de raiva! Como você pode levar isso em conta? NORA

Mas você estava mesmo com toda a razão. Eu não estou preparada para a tarefa. Existe outra tarefa de que eu tenho que me desembaraçar primeiro. Eu preciso tentar educar a mim mesma. E você não é o homem que pode me ajudar nisso. Eu tenho que fazer isso sozinha. E é por isso que agora eu vou deixá-lo, vou embora.

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HELMER (de um salto)

O que é que você disse? NORA

Eu preciso ficar sozinha, se eu quiser compreender a mim mesma e se possível todo o resto. E por essa razão que eu não posso mais ficar com você.

HELMER

Nora! Nora! NORA

Eu vou embora agora, já. Tenho certeza de que Cristina me deixará passar a noite com ela.

HELMER

Você perdeu a cabeça! Eu não permito! Eu a proíbo!

NORA Não adianta mais me proibir nada. Vou levar minhas coisas comigo. Não quero nada seu, nem agora nem mais tarde.

HELMER

Que loucura é essa? NORA

Amanhã eu vou viajar para casa, minha antiga casa. Vai ser mais fácil achar algum trabalho lá na minha terra.

HELMER

Oh, mulher cega, inexperiente! NORA

Eu preciso tentar ganhar alguma experiência, Torvald. HELMER

Abandonar sua casa, seu marido e seus filhos. E você não pensa no que as pessoas vão dizer?

NORA

Não, nisso eu não penso de maneira nenhuma. Só sei que preciso. HELMER

É revoltante você ser capaz de abandonar assim seus deveres mais sagrados

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NORA

O que é que você considera meus deveres mais sagrados? HELMER

Preciso dizer-lhe? Não são seus deveres para com seu marido e seus filhos? NORA

Eu tenho outros deveres igualmente sagrados. HELMER

Não tem não. Que deveres seriam esses? NORA

Para comigo mesma. HELMER

Antes de tudo você é esposa e mãe. NORA

Não acredito mais nisso. Eu acredito que antes de tudo eu sou um ser humano, exatamente como você é ou, pelo menos, eu devo tentar me transformar nisso. Eu sei muito bem, Torvald, que a maioria das pessoas lhe daria razão, e que essa é a opinião que se encontra nos livros. Mas eu não posso mais me contentar com a opinião da maioria das pessoas nem com o que está nos livros. Eu tenho que pensar por mim mesma, se quiser compreender as coisas.

HELMER

Você não compreende seu lugar na sua própria casa? Você não tem uma orientação segura nesses assuntos?... Não tem religião?

NORA

Olha, Torvald, eu acho que não sei muito bem o que seja religião. HELMER

O que é que você está dizendo? NORA

Da religião eu só sei o que o pastor Hansen me disse quando eu fui confirmada. Ele disse que a religião era isso, aquilo e aquilo outro. Quando eu estiver longe disso tudo e sozinha, eu vou pensar nesse assunto também. Eu vou ver se é verdade o que o pastor Hansen disse ou, em todo caso, se é verdade para mim.

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HELMER Isso é inédito numa mulher da sua idade! Mas se a religião não pode mostrar-lhe o bom caminho, deixe-me tentar acordar sua consciência. Pois eu presumo que você tenha algum senso moral ou... responde-me... Devo achar que você não tem nenhum?

NORA

Garanto-lhe, Torvald, que essa não é uma pergunta fácil de responder, eu realmente não sei. Estou perplexa diante de tudo. Só sei que você e eu encaramos o problema de maneiras diferentes. Eu aprendi também que as leis são muito diferentes do que eu pensava, mas não consigo convencer-me de que as leis sejam justas. De acordo com elas, uma mulher não tem o direito de poupar seu pai agonizante nem de salvar a vida do marido. Não consigo acreditar nisso.

HELMER

Você fala como uma criança. Você não compreende a sociedade em que você vive.

NORA

Não. Mas agora eu vou tentar, vou ver se consigo entender quem está com a razão, a sociedade ou eu.

HELMER

Você está doente, Nora. Está delirando. Chego quase a pensar que você perdeu a razão.

NORA

Nunca raciocinei com tanta clareza, como agora. HELMER

E é com um raciocínio claro que você abandona seu marido e seus filhos? NORA

É, é sim. HELMER

Então só existe uma explicação possível. NORA

Qual é? HELMER

Você não me ama mais.

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NORA

Não. É isso mesmo. HELMER

Nora, e você tem a coragem de dizer isso. NORA

Isto me machuca muito, Torvald, pois você sempre me tratou bem, mas não posso evitar. Eu não o amo mais mesmo.

HELMER (recompondo-se)

Isso também é um raciocínio lúcido e claro? NORA

Absolutamente lúcido e claro. É por isso que eu não vou mais ficar aqui. HELMER

E você pode me dizer o que é que eu fiz para perder seu amor? NORA

Posso sim. Foi hoje à noite, quando o milagre não aconteceu, aí eu vi que você não é o homem que eu pensava que fosse.

HELMER

Explique melhor, não estou entendendo. NORA

Eu esperei pacientemente durante oito anos. Porque, sabe Deus, eu sei que milagres não acontecem todo dia. Depois essa coisa horrível desabou sobre a minha cabeça e eu tive quase certeza de que o milagre enfim estava para acontecer. Enquanto a carta de Krogstad esteve ali, nem por um momento eu imaginei que você ia aceitar as condições daquele homem. Eu tinha certeza absoluta de que você ia responder a ele: pode contar para todo mundo. E quando isso tivesse acontecido...

HELMER

Sim, e aí? Quando eu tivesse submetido minha mulher à vergonha e à humilhação?

NORA

Quando isso tivesse acontecido, eu tinha certeza absoluta que você ia se apresentar e assumir toda a responsabilidade e dizer: eu sou o culpado.

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HELMER Nora! NORA

Você vai dizer que eu nunca aceitaria um sacrifício tão grande de sua parte? Não, claro que não. Mas de que valeria minha palavra contra a sua? Esse era o milagre que eu esperava e temia, e era para evitar isso que eu queria me matar.

HELMER

Eu trabalharia dia e noite, com prazer, por você, Nora... Eu suportaria miséria e sofrimento. Mas nenhum homem sacrificaria sua honra pela mulher amada.

NORA

Isso é uma coisa que centenas e milhares de mulheres já fizeram. HELMER

Você pensa e fala como uma criança sem juízo. NORA

Pode ser. Mas você também não pensa nem fala como homem a quem eu poderia me unir. Assim que o seu medo passou e não era medo do que pudesse acontecer comigo e sim com você mesmo, quando tudo passou, para você era exatamente como se nada tivesse acontecido. Exatamente como antes, eu era sua cotovia, sua boneca, que no futuro você poderia tratar com o dobro de carinho, porque eu era tão indefesa, tão frágil. (Levantando-se) Torvald, foi naquele momento que veio como um relâmpago à minha cabeça a idéia de que eu tinha vivido oito anos com um desconhecido, tinha dado a ele três filhos. Não agüento nem pensar. Dá vontade de me arrebentarem mil pedaços...

HELMER (triste)

Estou vendo, estou vendo. Abriu-se um abismo entre nós dois, é inegável. Mas, Nora, não seria transponível?

NORA

Como eu sou agora, eu não sou mulher para você. HELMER

Eu sou capaz de mudar. NORA

Talvez, se levarem embora sua boneca.

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HELMER Mas separar-me! separar-me de você! Não, não, Nora. Não posso aceitar essa idéia.

NORA (saindo pela direita)

Isso só aumenta a certeza do que precisa ser feito. (Volta com o casaco, o chapéu e uma maleta que ela põe numa cadeira, perto da mesa.)

HELMER

Nora, Nota, ainda não! Espere até amanhã. NORA (vestindo o casaco)

Não posso passar a noite com um desconhecido. HELMER

Mas não podemos viver como irmãos?... NORA (colocando o chapéu)

Você sabe muito bem que isso não ia durar muito tempo. (Põe o xale.) Adeus, Torvald. Não quero ver os meninos. Sei que eles estão melhor do que comigo. Como estou agora, não sirvo para eles.

HELMER

Mas, algum dia, Nora, algum dia? NORA

Como é que eu posso saber? Não tenho idéia do que vai acontecer comigo. HELMER

Mas você é minha mulher, haja o que houver. NORA

Escuta, Torvald. Eu ouvi dizer que quando uma mulher abandona a casa do marido, como eu estou fazendo agora, ele está legalmente livre de qualquer compromisso com ela. Em todo caso, eu o liberto de qualquer compromisso. Você fica sem a menor obrigação, assim como eu. Deve haver liberdade total de ambas as partes. Olhe, aqui está sua aliança, dê-me a minha.

HELMER

Isso também? NORA

Isso também.

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HELMER Tome.

NORA

Pronto, agora está tudo acabado. Eu deixei as chaves aqui. As criadas sabem de tudo na casa, melhor até do que eu. Amanhã, depois de eu ter ido embora, Cristina vem aqui e empacota as minhas coisas, as que eu trouxe de casa comigo. Depois eu mando buscar.

HELMER

Tudo acabado! Tudo acabado! Nora, você nunca mais vai pensarem mim? NORA

Eu sei que vou pensar muito em você, nas crianças e nesta casa. HELMER

Posso escrever para você, Nora? NORA

Não, nunca. Nunca faça isso. HELMER

Mas deixe que eu pelo menos lhe mande... NORA

Nada. Nada. HELMER

Deixe que eu a ajude, se você precisar. NORA

Não. Não posso aceitar nada de um desconhecido. HELMER Nora, eu nunca vou passar de um desconhecido para você? NORA (pensando)

Ah, Torvald, o maior milagre de todos teria que acontecer. HELMER

Diga o que seria isso! NORA

Nós dois, você e eu, teríamos que nos modificar a ponto de... Ah, Torvald, eu

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não acredito mais em milagres. HELMER

Mas eu vou acreditar. Diga? Teríamos que nos modificar a ponto de... NORA

De poder fazer do nosso casamento uma verdadeira vida em comum. Adeus. (Sai pelo vestíbulo.)

HELMER (afunda-se numa cadeira, perto da porta, e esconde o rosto nas mãos)

Nora! Nora! (Olha em volta. Levanta-se) Vazio. Foi embora. (Uma esperança passa pelo seu pensamento.) O maior milagre de todos?...

(Ouve-se o som de uma porta que bate lá embaixo)

CAI O PANO