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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    Bonecas Karaj:

    modelando inovaes, transmitindo tradies.

    Sandra Maria Christiani de la Torre Lacerda Campos

    - 2007 -

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para a obteno do ttulo de doutora em Ci-

    ncias Sociais Antropologia -, sob a orientao da

    Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti.

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    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________

    ______________________________

    ______________________________

    ______________________________

    ______________________________

    Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti

    Orientadora

    Profa. Dra. Regina P. Mller

    Profa. Dra. Mrcia Angelina Alves

    Profa. Dra. Carmen Junqueira

    Prof. Dr. Rinaldo Arruda

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    Dedico este trabalho aos meus pais, com

    profunda, gratido pelo apoio e respeito

    s minhas opes.

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    Agradecimentos

    Muitas pessoas e instituies foram indispensveis para a realizao destetrabalho, e certamente, algumas no recebero o reconhecimento devido,

    apesar de meu empenho e esforo de memria.

    Carmen Junqueira e Dorothea Passetti, que me ensinaram com sabedoria

    a seguir minhas escolhas, devo as orientaes fundamentais.

    Aos colegas do MAE, que torceram pela concluso deste trabalho. Em es-

    pecial profa. Mrcia Angelina Alves, pelo estmulo e conana depositado

    neste trabalho.

    Aos colegas da Universidade Anhembi Morumbi, que direta ou indireta-

    mente, colaboraram para a concluso de um desao.

    Ktia Huertas, que em uma brincadeira matinal, criou esta preciosa capa.

    A Thiago Rodrigues, pela pacincia e esmero, na formatao do trabalho.

    Ao amigo Ijesseberi, em memria, e a Hatawaki, pela reviso dos termosna lngua Karaj.

    Ao Joo e aos meus lhos, Thiago e Gabriel, que sofreram comigo as angs-

    tias e alegrias deste processo de aprendizado.

    CAPES, pelo auxlio nanceiro.

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    s ceramistas Karaj, sem dvida, co-autoras deste trabalho.

    A Iwraru e esposa, que me escolherampara fazer parte de sua famlia.

    Korixa Herenaki Kaherero

    Komantira Mahuederu

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    RESUMO

    Este trabalho analisa as conexes entre arte e sociedade a partir de colees debonecas cermicas armazenadas em museu. A sistemtica de classicao e orga-

    nizao de colees em museus etnogrcos vem reduzindo essa categoria da arte

    gurativa a brinquedo de menina, ao passo que para a antropologia, o objeto assu-

    me o papel de testemunho de prticas sociais vinculadas a cultura de origem.

    O exame das colees de bonecas Karaj do Museu de Arqueologia e Etnologia da

    Universidade de So Paulo, o dilogo com a sociedade produtora em que o objetocircula entre vrias esferas da vida cultural, e a incorporao de bases conceituais

    da antropologia, tem como foco as referncias simblicas das divises sociais e a

    transmisso de saberes e fazeres acerca da relao entre arte e vida social. Ana-

    liso a pintura corporal e os padres ornamentais das guras Karaj, na condio de

    manifestaes estticas que se caracterizam como insgnias de identicao tribal

    e uma forma peculiar dessa sociedade explicitar seu universo cosmolgico. A circu-

    lao interna das bonecas, diferente do que ocorre nas colees de museus, se d

    em forma de conjuntos que so presenteados s meninas. Cada conjunto chamado

    de famlia representa as fases de idade, identicadas pelos atributos ornamen-

    tais e pelas caractersticas fsicas expressas no corpo correspondentes a cada uma

    delas. Essa forma de circulao submetida a uma srie de regras tradicionais inter-

    nas vem corroborando a hiptese de que os objetos superam a categoria brinquedo,

    levando compreenso da estrutura familiar Karaj e da dinmica de mudanas ou

    permanncias de vrias esferas da vida social.

    Palavras chave: bonecas cermicas; antropologia; cultura de origem; refe-

    rncias simblicas; arte e vida social.

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    ABSTRACT

    From the collections of stored ceramic dolls in museum, in this work areanalysed the connections between art and society. The systematics of

    classication and organization of collections in ethnographic museums is

    reducing that category of gurative art to a toy of girl, while for the

    Anthropology, the object assumes the role of a proof of social practices

    as a product of its origin culture.

    The examination of Karaj dolls collections at the Museum of Archaeology

    and Ethnology of So Paulo University, the dialogue with the producingsociety where the object circulates among several spheres of the cultural

    life, and the incorporation of conceptual bases of an anthropology of ob-

    jects, has as focus the symbolic references of the social divisions and the

    knowledges and making transmissions about the relation between art and

    social life. There is an analysis on the corporeal painting and the ornamen-

    tal standards of the gures, believing that the aesthetic manifestationsare characterized as insignia of tribal identication and a peculiar way of

    that society to make explicit its cosmological universe. The internal circu-

    lation of the dolls, differently of what occurs in the museums collections,

    happens in a manner of sets which are offered to the girls. Each set named

    of family represents the age phases, identied by ornamental attributes

    corresponding to each one of them. That way of circulation, subordinated

    to a series of internal traditional rules comes corroborating the hypoth-esis of that the objects surpass the toy category, leading to the under-

    standing of Karaj familiar structure and of the dynamics of changes or

    permanencies of several spheres of the social life.

    Keywords: Ceramic dolls; Anthropology; Origin culture; Symbolic references;

    Art and social life.

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    SUMRIO

    Agradecimentos 4

    Resumo 6

    Abstract 7

    Introduo 10

    Captulo 1 - Situao atual e organizao social Karaj 1 6

    1.1 Histria, territrio, demograa. 17

    1.2 Hawal: Os Karaj da Ilha do Bananal 28

    1.3 JK e Wata: Dois Polticos, duas Aldeias. 35

    Captulo 2 Ritxok do barro fez-se o homem 41

    2.1 As mos que tecem o barro: As Oleiras 42

    2.2 Hknaritxok e Ritxok - as bonecas antigas e as modernas 462.3 De Dentro e de Fora: Contexto espacial e circulao dos Objetos 49

    2.4 Para Alm do Brinquedo:

    Bonecas como referncias simblicas das divises de idade 56

    2.5 Categorias de idade 63

    2.6 Jyr e Ijadokoma os segredos da iniciao 79

    2.7 A Famlia 84

    Captulo 3 Tecnologia Cermica Karaj 86

    3.1 Processos de produo da cermica gurativa 87

    3.2 Etapas de confeco da boneca 89

    3.2.1 Coleta da argila 91

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    3.2.2 Preparo da massa para modelar 93

    3.2.3 Modelagem 96

    3.2.4 Secagem 983.2.5 Alisamento 100

    3.2.6 Queima 100

    3.2.7 Pintura 105

    3.3 Estilo 109

    3.4 Padres temticos 115

    3.4.1 Hnknaritxoko 1153.4.2 Ritxok 117

    3.4.3 Irodusmo 119

    3.4.4 Ani seres sobrenaturais 120

    Captulo 4 O museu e o campo 125

    4.1 Mosaicos indgenas: acervos etnolgicos dos museus 126

    4.2 Os museus etnogrcos brasileiros 128

    4.3 Composies: a formao das colees Karaja 135

    4.4 A descoberta da famlia 139

    Referncias Bibliogrcas 145

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    INTRODUO

    O propsito deste trabalho o de examinar uma categoriaartefatual, a cermica, inserida no contexto de uma cultura

    amerndia, a Karaj. Este estudo constitui uma anlise sobre

    a funo classicatria, segundo abordagens de Durkheim e

    Mauss (1903), Boas (1996) e Lvi-Strauss (2005) acerca da

    maneira como os Karaj apreendem seu mundo em gneros e

    em espcies, a partir de mecanismos complexos de construo, projeoexterior, localizao espacial de representao do mundo sensvel. Busca

    tambm destacar a atualidade da forma como Boas e Lvi-Strauss articu-

    lam Antropologia e Arte, centrando a anlise nos objetos.

    A escolha desta temtica surgiu com o desao etnolgico de

    se trabalhar com acervos de museus, e para isto, desenvolver metodolo-

    gias que permitam explorar o potencial de pesquisa dos objetos extraindo

    o contedo intangvel desse universo material. Esta abordagem est ligada

    formao prossional desta pesquisadora, cujo contato cotidiano com

    a produo material de diversos povos indgenas despertou a percepo

    de uma multidimensionalidade de fenmenos artsticos, motivando o de-

    senvolvimento da pesquisa com objetivos de anlise que envolve diversos

    aspectos relacionados aos processos de difuso, inovao e permanncia

    de tcnicas de confeco e de traos estilsticos, observados nas colees

    de museus.

    A pesquisa tem como base bibliogrca diferentes autores

    que procuram discutir as possibilidades de investigao de sistemas de

    classicao de sociedades indgenas, a partir do conceito de estilo, ou dos

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    elementos formais, de carter geral (Boas, 1996:137), e sua aplicao

    ao estudo da produo de registros materiais colecionados em museus em

    diferentes pocas, como Mauss, Boas, Lvi-Strauss, entre outros.Para justicar a escolha da produo cermica das populaes

    Karaj a pesquisa direciona-se para os trabalhos de Vilma Chiara (1970)

    e Helosa Fnelon Costa (1984), que apresentam uma dimenso histrica

    sobre a confeco das Ritxok, ou bonecas, como so mais conhecidas.

    Os resultados destas abordagens apontam para o fato de o estilo assumir

    funes variadas nos diferentes contextos socioculturais, em que as auto-ras destacam o sentimento de identicao e diversidade de organizao

    social das sociedades amerndias.

    A cermica uma das modalidades da produo material dos

    Karaj, ao lado de uma srie de categorias como cestaria, plumria, ador-

    nos e armaria, entre outras que abrangem o campo das atividades culturais.

    Vale ressaltar que o estudo centrado nas bonecas nos permite estender a

    anlise a outras categorias, por se encontrarem associadas s guras cer-

    micas, como a pintura corporal, os adornos e a representao de cenas da

    vida cotidiana reproduzidas na cermica, que sintetizam e documentam, ao

    seu modo, elementos singulares da cultura Karaj.

    O conceito de cultura indgena um desao para a Antropo-

    logia, levando-se em conta a grande diversidade existente, tanto de de-

    nies quanto de populaes indgenas. A cultura pode ser entendida como

    um conjunto de sistemas simblicos segundo Lvi-Strauss, pelo estabele-

    cimento de relaes necessrias do homem com a natureza. Na introduo

    obra de Marcel Mauss, (1974:9) o autor dene que,

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    Pode-se ento esperar que para os Karaj, transformar o bar-

    ro em guras antropomorfas, zoomrfas e sobrenaturais signica, para

    esses povos, ir alm de uma expresso relacional com a natureza e a sobre-

    natureza. Na reproduo do nexo social nas guras, os signicados podem

    ser inscritos e lidos no simbolismo impresso na cermica, estabelecendo

    relaes simultneas com os vrios tipos de seres. No entender de Lvi-

    Strauss (2005a:33), Assim como a imagem, o signo um ser concreto,

    mas assemelha-se ao conceito por seu poder referencial: um e outro no se

    referem a si mesmos, alm de si prprios, podem substituir outra coisa.

    Nesse sentido, a pintura corporal, os adornos, o corte de

    cabelo, entre outros elementos utilizados na vida cotidiana da aldeia e

    acrescentados nas guras cermicas, desempenham o papel de signos ho-mlogos aos referenciais simblicos da organizao cultural Karaj, pro-

    jetados nos indivduos.

    A pesquisa com os objetos de museus um dos caminhos e

    possibilidades investigativas que a antropologia percorre, tendo sua impor-

    tncia ressaltada por Lvi-Strauss na dcada de 70, que teceu conside-

    raes sobre o valor dos museus de antropologia como um prolongamento

    Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas sim-

    blicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras ma-

    trimoniais, as relaes econmicas, a arte, a cincia, a religio. Todos

    esses sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidade fsica e

    da realidade social e, ainda mais, as relaes que estes dois tipos de re-

    alidade mantm entre si e que os prprios sistemas simblicos mantm

    uns com os outros.

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    da pesquisa de campo, onde o contato sistemtico com os objetos acaba

    estabelecendo um sistema de comunicao com o meio indgena e o respeito

    pela diversidade das manifestaes culturais (Lvi-Strauss, 1975:419).Esse fato motivou a anlise de autores como Boas, Lvi-

    Strauss, Mauss, Berta Ribeiro, Fnelon Costa, Chiara, Vidal, Velthem, en-

    tre outros, que desenvolveram essa abordagem e que buscaram demonstrar

    que os artefatos no se restringem sua materialidade, sendo possvel

    articular os objetos s vrias esferas da cultura, uma vez que manifestam

    mltiplas informaes e atuam como veculos de idias que revelam a lgicadas relaes sociais (Boas, 1996).

    Com a anlise das colees Karaj do MAE, organizadas entre

    1904 e 1966, aliada aos dados de referncia que foram buscados nas trs

    expedies em campo com os Karaj, nos anos de 2005 e 2006 da ilha do

    Bananal/TO, foi possvel analisar os processos de incorporao, inovao e

    permanncia de estilos na produo cermica da aldeia de Santa Isabel. A

    escolha do local deveu-se ao fato de grande parte das colees estudadas

    ser de procedncia dessa aldeia, levando busca de referncias no con-

    texto de produo em que os artefatos foram coletados.

    Essas referncias permitiram compreender categorias que

    suplantaram a estilstica, tais como a dos referenciais simblicos da orga-

    nizao da famlia Karaj representados nas fases de idade e nos papis

    sociais, distinguidos pela pintura corporal, pelos adornos e outros cones

    associados que esto reproduzidos de maneira homloga nas bonecas, se-

    guindo os padres culturais praticados na vivncia cotidiana.

    Frente diculdade de recompor um elenco de famlia nas

    colees do MAE, a opo foi utilizar, em maioria, as imagens das peas

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    recentemente coletadas, associadas s do acervo.

    O trabalho com colees etnogrcas de museus desemboca

    freqentemente nos limites da discusso entre tradio e inovao, arteprimitiva e dinmicas sociais, universo material e imaterial (simblico), es-

    ttica e tcnica, no mbito de vrios binmios conceituais recriados ao

    longo da histria, para julgamento do homem ocidental.

    Todos esses apelos so muito justos e eloqentes quando con-

    siderados os rumos traados pela histria da Antropologia, em relao s

    sociedades classicadas como primitivas e especialmente para compreen-der como estas foram tratadas nos museus, tendo em vista que as teorias

    antropolgicas tiveram, em um determinado perodo, laos muito estreitos

    com essas instituies, como preconizam Boas, Mauss e Lvi-Strauss.

    Na atualidade, constante a preocupao com os acervos

    preservados em museus. Dentro dessa preocupao pode-se destacar a

    relacionada ao patrimnio etnolgico indgena, entendido como a repre-

    sentao da memria histrica e cultural dessas sociedades que habita-

    vam o territrio nacional antes da conquista europia, e de muitas que o

    habitam at hoje.

    Nossa anlise sobre as colees cermicas Karaj do Museu

    de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo, com enfoque na

    arte gurativa resulta dessa perspectiva. Essas colees so as mais anti-

    gas e uma das mais signicativas expresses materiais de grupos indgenas

    do Norte do Brasil.

    O trabalho procura ser analtico e compreensivo dos proces-

    sos de mudanas e das dinmicas de reordenao social, em que o objeto

    artstico se situa como o foco central de interesse desta tese.

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    O estudo compreende quatro captulos.

    O primeiro trata dos aspectos histricos de maneira a siste-

    matizar as formas de contatos, bem como do reconhecimento da ocupaoda regio por esses povos antes da chegada dos colonizadores, segundo

    comprovaes arqueolgicas. Alm disso, procura fornecer elementos de

    contexto das relaes com as populaes no indgenas desde os primeiros

    momentos de colonizao, e compreender de que maneira tais relaes in-

    terferem na ordenao poltica e sociocultural dos Karaj.

    Dada a importncia fundamental da boneca cermica comoelemento socializador da criana, o segundo captulo aborda as formas de

    circulao e dos detalhes simbolizantes da diviso das classes de idade,

    muitas, representadas nessa arte gurativa.

    Delineado o cenrio da representao, o terceiro captulo re-

    fere-se aos processos de confeco dos artefatos, da cadeia de produo

    e das construes estilsticas, bem como das relaes envolvidas no tra-

    balho das ceramistas, responsveis exclusivas pela confeco, circulao e

    comercializao do objeto.

    O quarto captulo aborda a formao dos acervos etnolgicos

    no contexto da criao dos museus nacionais, ressaltando a importncia do

    tratamento museolgico das colees para torn-las acessveis pesquisa,

    educao, exposio e difuso de conhecimentos, deixando claro o po-

    tencial de pesquisa que envolve os objetos, na explorao de informaes

    que ultrapassam o seu carter material.

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    Captulo 1

    Situao Atual e Organizao

    Social Karaj

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    1.1 Histria, Territrio, Demograa.

    Os Karaj ocupam regies que margeiam o rio Araguaia, emuma rea de abrangncia entre os Estados de Gois, Mato Grosso, Par e

    Tocantins, gurando como ocupantes da Regio Centro-Oeste do Brasil1

    , pressupostamente antes da chegada dos colonizadores, como apontam

    Ehrenreich (1948), Krause (1940-1943), Fnelon Costa (1978), Taveira

    (1982), Toral (1994) e Lima Filho (2001), com grande concentrao na

    ilha do Bananal.

    Mapa da Regio Norte

    Fonte: Marques, J.F. 1989.

    1 Com a Constituio brasileira de 1988 hove alterao geopoltica na regio em que o Estado do Tocantins passoua ser localizado na Regio Norte.

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    As primeiras notcias de que se tem registro sobre os Kara-

    j datam do sculo XVI, com a organizao do movimento bandeirista de

    1590, que pretendia ampliar a explorao das minas de ouro, saindo deMinas Gerais em busca de novas jazidas nos sertes dos Goiazes. Os pri-

    meiros exploradores percorriam os limites das terras goianas, que apre-

    sentavam uma congurao geogrca muito diferente da que se conhece

    hoje, estendendo suas fronteiras at os Estados do Par e Maranho, fa-

    zendo fronteira ainda com os Estados de Minas Gerais, Bahia, Piau e Mato

    Grosso. A expanso da explorao de territrios que iam alm dos limiteslitorneos, levou desbravadores missionrios e bandeirantes para Gois,

    considerado o corao geogrco do Brasil, que ocupava grande parte do

    territrio nacional. O primeiro desmembramento goiano se deu no sculo

    XIX, quando se cogitava a mudana da capital da provncia para o norte,

    sendo parte de seu territrio incorporado s provncias de Maranho e

    Minas Gerais.

    Tal arranjo geogrco tornou as regies prximas aos rios

    Tocantins e Araguaia povoadas por criadores de gado, o que tornava mais

    ativa a navegao pelo Araguaia, intensicando as rotas de comrcio uvial.

    Por sua vez, o Estado de Tocantins foi criado pela Constituio Federal de

    1988, desmembrando mais uma parcela das terras goianas.

    A corrida pelo ouro se estendeu at 1618 e cou conhecida

    como ciclo Paraupava, (Neiva, 1986:50), nome atribudo pelos paulistas

    ao rio Araguaia na poca. De acordo com o descrito por Neiva (1986:145),

    o movimento era composto por sete Bandeiras que foram descendo o rio

    Araguaia e Tocantins, escravizando ndios para a explorao das minas au-

    rferas. Nessa poca registraram-se contatos com os Carajana, tambm

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    citados por Ehrenreich e por Krause no sculo XX, como sendo os Karaj

    que habitam historicamente grandes extenses de terras nas margens do

    Araguaia, os mesmo ainda encontrados na regio.A riqueza mineral da regio e a privilegiada situao geogr-

    ca do rio Araguaia, com mais de trs mil quilmetros de curso navegvel,

    atraiu conquistadores que tomando terras indgenas formavam pequenos

    povoados ribeirinhos. Esse foi um cenrio propcio para a instalao da

    misso religiosa vinda da Amaznia, cheada por frei Cristvo de Lisboa

    em 1625, que ao catequizar os ndios favorecia a arregimentao de m-de-obra para a explorao das minas, visto que eram bons remadores e

    grandes conhecedores da regio.

    Alm desses, outros personagens que guraram como os pri-

    meiros desbravadores da regio do Araguaia at o sculo XVIII foram

    frei Custdio (1625), padre Antonio Vieira e o capito mor Igncio Rego

    Barreto (1635), os sertanistas Manoel Brando e Gonalo Paes (1669), ca-

    pito Diogo Pinto Garcia (1720), capito Paulo Fernandes e Manoel Joaquim

    de Mattos (1782) e capito-general Joo Manoel de Menezes (1799). Dos

    poucos registros que deixaram, mencionaram apenas a audcia que era ne-

    cessria para investir contra a barbaria selvagem (Silva, 1936:52). O

    movimento mais intenso de colonizao da regio se deu a partir de 1863

    com o governador de Gois, Couto de Magalhes, tambm diretor do servi-

    o de catequese que pretendia desenvolver a navegao a vapor nos cursos

    do Araguaia e Tocantins. No ideal de integrar os ndios sociedade bra-

    sileira e trein-los para o trabalho nas frentes de colonizao, fundou em

    1871 o Colgio de Santa Isabel para educar os meninos Karaj, Tapirap e

    Kayap. Sem conquistar os objetivos idealizados, o colgio foi fechado em

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    1890 (Krause, 1940-43:184). O sculo XIX cou marcado por uma srie

    de conitos e movimentos de resistncia e reconquista dos territrios

    Karaj. Em 1813 foi destrudo o presdio colonizador de Santa Isabel(Mattos, 1874:362), e os Karaj que habitavam a regio passaram a

    proibir a navegao.

    A primeira monografia sobre os Karaj foi publicada em 1908, resulta-

    do das investigaes de Fritz Krause, antroplogo alemo interessado

    nas populaes indgenas das proximidades do rio Araguaia. Este tra-

    balho somado aos estudos de classificao dos povos indgenas de PaulEhrenreich, publicado em 1888, so estudos bsicos para a etnografia

    do grupo, inclusive por chamarem a ateno para as bonecas cermicas

    Karaj, foco deste estudo.

    Segundo Krause, o grupo se dividia em trs subgrupos com-

    postos da seguinte forma:

    a )

    b )

    c )

    Os Karaj - da horda setentrional com 14 aldeias, ocupan-

    tes da extremidade norte da ilha do Bananal at o rio das

    Mortes, e

    - a meridional, com 8 aldeias formadas em decorrncia de

    movimentos migratrios da parte setentrional, em virtu-

    de da instalao dos ncleos neobrasileiros de Carreto eSalinas, prximos aos rios Crix e Vermelho, pressuposta-

    mente nos cem anos anteriores visita do autor.

    Os Xambio que se instalavam prximos ao trecho enca-

    choeirado do Araguaia no sul da ilha do Bananal, e

    Os Java, em seu interior. (Krause, 1940-43, 233:242).

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    Trinta anos aps a visita de Krause, a distribuio registrada

    por Lipkind em 1939 apontava a ocupao de 20 aldeias Karaj, entre a

    regio de Leopoldina at o norte da ilha do Bananal, a quase extino dosXambio que resistiam em duas aldeias prximas a Conceio do Araguaia,

    e 8 aldeias Java no interior da ilha (Lipkind, 1948:179).

    Carajana ou Karaj uma atribuio Tupi herdada, possivel-

    mente, do perodo anterior a 1500 em que eles habitaram regies prximas

    a grupos que formavam a provncia Tupi Guarani do Par, citada por Vivei-

    ros de Castro (1986:137).Por possurem traos sionmicos que os distinguiam dos gru-

    pos Tupi, estes lhes atriburam de forma depreciativa o nome Karaj. Em

    contraste com os Tupi, geralmente de pequena estatura, os Karaj so

    altos, fortes e de pele escura decorrente de longos perodos de exposio

    ao sol, por serem pescadores por excelncia. Por esse motivo foram asso-

    ciados ao macaco guariba que teria caractersticas fsicas semelhantes aos

    Karaj, que em uma traduo livre signica macaco preto, de acordo com

    informao dos Guarani atuais2. No entanto, os Karaj se autodenominam

    como In ou Inmahadu (nosso povo) e so apontados pelo lingista Aryon

    dall Igna Rodrigues, como pertencentes ao tronco lingstico Macro-J,

    com formas diferenciadas de falar, de acordo com o sexo do falante.

    A auto-designao In3, uma categoria que vincula os Karaj

    a um passado mtico. Traduzido como ns mesmos ou gente, a categoria

    pode ser denida, segundo o contexto, em oposio a ixju, que designa

    a alteridade, a exterioridade, como se fossem os estrangeiros, sendo

    aplicado tanto para outros povos indgenas, como para os Tori, como so

    chamados os no indgenas (Toral, 1992).2Foi presenciada a conversa de uma liderana Karaj com os Guarani, no Encontro Nacional dos ndios que acon-tece anualmente em Bertioga, litoral sul de So Paulo, onde o assunto estava sendo debatido.3Pronuncia-se In.

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    Lutas seculares garantiram a permanncia dos Karaj em seu

    territrio, disputado com os grupos indgenas Kayap, Tapirap, Xavante,

    Av Canoeiro e com os exploradores no indgenas. Do contato pacco comos Kayp Xicrim e com os Tapirap houve trocas culturais decorrentes de

    alguns casamentos intertribais, que podem ser observadas principalmen-

    te na produo material. Os Xavante, entretanto, sempre foram temidos

    pelos Karaj e os relacionamentos entre os dois povos foram de antago-

    nismos por disputas de territrio. Depois de muitas lutas histricas, hoje

    os Xavante ocupam a margem esquerda do rio Araguaia no Estado de MatoGrosso, em terras que j foram de domnio Karaj, que hoje esto concen-

    tradas na margem direita do rio, em Tocantins.

    Mesmo com a ocupao de grande parte da regio dos Karaj,

    sobretudo com a formao dos ncleos pioneiros que se instalaram ao lon-

    go do Araguaia, eles nunca se afastaram de seu territrio tradicional. O

    mais importante aldeamento foi se formando na ilha do Bananal, prximo

    corredeira de Santa Isabel, que d o nome aldeia principal, conhecida

    como Santa Isabel do Morro, local onde se instalou em 1928 o Posto Ind-

    gena Redeno do Servio de Proteo ao ndio (SPI), cheado por Manuel

    Sylvino Bandeira de Mello.

    O SPI foi criado pelo governo federal sob o comando do gene-

    ral Cndido Rondon em 1910 que no dizer de Bandeira de Mello, instalou o

    Posto na ilha do Bananal para pacicao leiga dos Karaj. Segundo Darcy

    Bandeira de Mello (1982), lho de Manuel Sylvino Bandeira de Mello, a

    decadncia do SPI motivou que o posto sob o comando de Bandeira de

    Mello fosse desativado em 1930, ocasionando o afastamento do Servio

    de Proteo ao ndio.

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    A populao Karaj passou por momentos difceis com a falta

    de assistncia a que estava acostumada. Muitos caram doentes, com v-

    rios casos de bitos, ocorrendo tambm grande incidncia de alcoolismo.As condies precrias ocasionadas pela sada do SPI de Santa Isabel fa-

    voreceram a intensicao do movimento de catequese indgena adventis-

    ta, que tambm no alcanou totalmente os objetivos esperados.

    Comandado pelo pastor Allen, vindo dos Estados Unidos para

    instalar em 1928 o ncleo Adventista do Stimo Dia, a Misso Araguaia ti-

    nha objetivos evangelizadores, com a edicao de igrejas, escolas e hospi-tais nas proximidades das aldeias de Santa Isabel e Fontoura, por estarem

    ali concentradas as maiores populaes indgenas Karaj. O movimento no

    teve sucesso, enfrentando a resistncia e indisposio de Manuel Sylvino

    Bandeira de Mello que cheava o posto do SPI at 1930, estabelecido na

    regio cobiada pelos adventistas, bem como dos Karaj que preferiam

    viver em liberdade seguindo seu estilo tradicional de vida. Sem desistir da

    idia, na dcada de 1930, instalaram um posto da misso em Fontoura, mas

    no conseguiram converter os indgenas pelo batismo, sendo os mission-

    rios expulsos da aldeia poucos anos depois (Prestes, 2007).

    Com pequenas interrupes, a misso se mantm at hoje

    em contatos amistosos com os Karaj na ilha do Bananal, no entanto,

    poucos vo aos cultos celebrados aos sbados em igreja construda pela

    misso na dcada de 1990 com auxlio nanceiro internacional, na aldeia

    de Santa Isabel, o maior e principal aldeamento Karaj da ilha. Mesmo

    com a ocorrncia de alguns batismos, da formao de um pastor adven-

    tista Karaj e da traduo da Bblia em sua lngua, o adventismo pare-

    ce no ter alcanado um signicado relevante, pois a manuteno das

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    prticas tradicionais Karaj e de seus rituais manifesta a resistncia

    adeso aos valores da misso.

    Apesar de terem sido alvos fceis de inmeras frentes decolonizao, de catequeses e da aproximao com a sociedade local, os Ka-

    raj demonstram grande fora de resistncia ao preservar suas principais

    categorias sociais, mantendo viva sua identidade Karaj atravs de perma-

    nncias das principais tradies de sua organizao social.

    Contudo, a ampliao dos povoamentos sertanistas no incio do

    sculo XX acarretou algumas alteraes no modo de vida da populao Ka-raj local. O nomadismo sazonal deixou de ser freqente, ocasionando a or-

    ganizao e crescimento das aldeias Karaj na margem direita do Araguaia.

    Houve poca em que no possuam aldeias permanentes e a localizao dos

    grupos variava segundo a condio do nvel de gua do rio. Nos perodos

    de cheias, entre os meses de outubro e junho, construam suas casas nos

    barrancos das margens, acima do nvel das enchentes. Nos perodos de es-

    tiagem, entre os meses de julho e setembro, montavam acampamentos nas

    inmeras praias que se formam ao longo do rio.

    As casas tradicionais eram reconstrudas conforme as exi-

    gncias do perodo. S (1983:120) esclarece:

    Na estao das chuvas, a casa tradicional Karaj possua uma estru-

    tura slida, formada por trs arcos, com vigas de amarrao junto

    ao piso, e tetos e paredes em palha, que possibilitavam seu completo

    fechamento, para proteo das chuvas e dos ventos. Na estao de

    seca, a casa erguida nas praias do rio Araguaia era como que uma

    simplicao da utilizada nas estaes de chuvas, um simples para-

    vento de palha e madeira.

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    Casa da estao seca.

    Fonte: S, 1983.

    Com a xao dos aldeamentos, as casas passaram a ter uma

    estrutura mais slida e resistente, pois mesmo que ainda haja a prtica dos

    acampamentos nas praias, no retorno para o local de moradia no mais

    necessria a construo de uma nova casa.

    Padro de construo que se tornou tradicional a partir a partir da xao local, cominuncia neo-braileira. Aldeia Wata.

    Foto: Sandra L. Campos/2005.

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    O movimento de sedentarismo teve incio com a instalao do

    Posto Indgena do SPI em 1928 dentro da aldeia, quando grandes ncleos

    habitacionais foram formados. O padro arquitetnico passou a se espe-lhar no das casas no-indgenas, construindo-se as moradias com quatro

    paredes e divises internas. No entanto, continuam seguindo os padres de

    distribuio espacial tradicional de acordo com a maneira como percebem

    o espao por eles habitado, mantendo o alinhamento paralelo das casas

    voltadas para o rio ao longo de sua margem, podendo ocorrer mais de um

    arruamento formado pelo enleiramento das construes.Tradicionalmente os Karaj buscam momentos de isolamento

    do grupo maior, em especial no ms de julho no perodo de estiagem do rio

    Araguaia, quando as famlias montam pequenos acampamentos nas praias

    que se formam com a baixa do nvel das guas. Curiosamente, no so mais

    construdas as cabanas temporrias de vero. O que se v a substituio

    por barracas de camping, compradas na cidade. As temporadas de per-

    manncia tambm no so to longas como antes, e dicilmente ocupam a

    estao completa do vero. Isto se d por motivo das vrias atividades cul-

    turais a que so convidados a participar em diferentes Estados brasileiros

    como, por exemplo, os jogos indgenas organizados nos perodos de frias

    escolares, acontecendo a cada ano em um Estado nacional. Outro fator

    a escola indgena, freqentada por adultos e crianas, que segue o mesmo

    calendrio ocial das escolas estaduais, em que o perodo de frias ocorre

    no ms de julho, obrigando a reduo de tempo dos acampamentos.

    Entretanto, essa prtica de distanciamento tornou-se mais

    constante a partir de 1980, em decorrncia dos conitos internos provoca-

    dos pelos efeitos do alcoolismo e do crescente uso de drogas que atingem a

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    populao da aldeia de Santa Isabel. Em conseqncia desses fatos, vrias

    famlias comearam a migrar para reas distantes, ocasionando a expanso

    do territrio da aldeia grande. Algumas iniciaram a construo de doisnovos aldeamentos JK e Wata, distantes mais de trs quilmetros de

    Santa Isabel, seguindo o padro tradicional de ocupao dos territrios e

    construo das casas, em linha paralela ao rio Araguaia. Alm do isolamen-

    to e fuga de problemas resultantes do aumento populacional, essa uma

    forma de garantir a ampliao e ocupao das terras indgenas. Trata-se

    de uma prtica de carter cultural no se congurando como estratgiapoltica, visto que os Karaj possuem o reconhecimento de uso das Terras

    Indgenas Araguaia.

    A distribuio espacial no deixa de ser, tambm, uma forma

    de manuteno da estrutura social e familiar dos Karaj.

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    1.2 Hawal: Os Karaj da Ilha do Bananal

    Os Karaj, como j foi dito, so ocupantes histricos da Re-gio Centro-Oeste do Brasil, hoje localizados na Regio Norte, segundo

    a diviso geopoltica delimitada na Constituio de 1988. Sempre estive-

    ram prximos do territrio considerado tradicional, sendo Santa Isabel do

    Morro seu principal aldeamento formado por grupos que se estabeleceram

    na ilha do Bananal muito antes de 1500 (Toral, 1992:5). Pressupe-se que o

    nome Santa Isabel seja herana do perodo da catequese catlica, quandoera comum atribuir nomes de santos catlicos a determinadas regies ou

    acidentes geogrcos, a exemplo da corredeira, com o mesmo nome, nas

    proximidades da aldeia.

    Diante da referida corredeira, local preferido para a pescaria,

    foi erguida uma grande gruta de pedras para abrigar uma imagem de Santa

    Isabel com mais de um metro e meio de altura, e que pode ser avistada de

    longe, servindo como ponto de referncia de localizao. Os Karaj no sa-

    bem explicar ao certo a data e o responsvel pela sua instalao na regio

    e, tampouco, ela signica algo de grandioso, apenas respeitam a iniciativa,

    mas no manifestam nenhum esforo para sua conservao e nem para seu

    necessrio restauro, visto que se encontra quebrada h muitos anos.

    No entanto, para os ndios o local onde a imagem foi co-

    locada um marco importante de referncia por ser a rea do cemi-

    trio indgena onde residem seus ancestrais. Ainda ativo, possvel

    encontrar nele evidncias de vestgios arqueolgicos das antigas urnas

    funerrias que afloram na superfcie, testemunhando a permanncia

    secular desses grupos na regio.

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    O restante da populao se encontra distribudo em mais de

    vinte comunidades margeando o rio Araguaia, nos Estados de Gois, To-

    cantins, Mato Grosso e Par, somando uma populao prxima de trs mil

    habitantes, segundo dados demogrcos da FUNASA/2005 .

    Atualmente o grupo permanece na mesma regio, com uma

    produo material semelhante encontrada por Krause e Ehrenreich, no

    se reduzindo apenas confeco das bonecas, mas confeco de uma

    variada arte plumria, cestaria, madeira, contas e sementes alm de uten-

    slios em cermica. Santa Isabel do Morro, ou Hawal como chamada pelo

    grupo indgena, a maior e mais antiga das aldeias, com uma populao esti-

    So Felix doAraguaia

    TO

    MT

    PALMAS

    GO

    DF

    Localizao das Aldeias Karaj: (MT, TO, GO)

    01 Lago Grande - MT

    02 Macaba Ilha do Bananal - TO

    03 Maitiry Tawa Sta. Terezinha - MT

    04 Itxal Sta. Terezinha - MT

    05 So Domingos Luciara - MT

    06 Fontoura - Ilha do Bananal - TO

    07 Santa Isabel - Ilha do Bananal - TO

    08 JK - Ilha do Bananal - TO

    09 Wata - Ilha do Bananal - TO

    10 Nova Tytem Formoso do Araguaia - TO

    11 Mirindiba S. Miguel do Araguaia - GO

    12 Aruan GO

    Croquis AdaptadoFonte: Associao In Mahadu(de assistncia a sade indgena Karaj)

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    mada em 612 habitantes distribudos em 96 casas, segundo dados relativos

    a 2005, fornecidos pelo plo da FUNASA de So Flix do Araguaia/TO.

    Pelas caractersticas de localizao, supe-se que seja uma das aldeiascitadas por Krause em 1908 (Krause, 1911a), por Machado (1947), Lipkind

    (1948), e em estudo arqueolgico de Wst (1981). Esta ltima autora men-

    ciona referncias populacionais, contando em 1940 com 52 adultos. Fnelon

    Costa (1978:23) se estende nas referncias demogrcas estabelecendo

    um quadro comparativo entre a dcada de 1957, com ndice populacional

    estimado em 208, e a de 1959/60 com uma populao de 194 pessoas. Aaldeia grande, como apontada, com seu crescimento populacional expan-

    diu-se nos ltimos anos, subdividindo-se em novos aldeamentos.

    A construo das aldeias JK e Wata segue o padro tradi-

    cional de distribuio espacial, onde as casas se alinham na margem do rio

    Araguaia, por ser este o principal ponto de referncia cultural e cosmo-

    gnica do povo In. Apesar da distncia, Santa Isabel ainda o ponto de

    referncia das duas aldeias, pois l que se encontra a casa-dos-homens,

    ou das mscaras de Aruan, em que so realizadas as principais cerimnias.

    Fica localizada a uma certa distncia atrs das leiras de casas, em oposi-

    o ao rio Araguaia.

    A comunidade Karaj de Santa Isabel, em relao a outras

    aldeias, o povoado que mantm seus costumes mais prximos dos tra-

    dicionais, dando maior importncia permanncia dos rituais de iniciao

    masculina, das festas de Aruan, do uso da indumentria, da pintura cor-

    poral e da manuteno do corte de cabelo das meninas solteiras, entre ou-

    tras caractersticas. Costumam realizar os grandes festejos do Hetohoky,

    cerimnia que culmina com o ritual de transio de idade do menino para a

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    vida adulta. Recebem, na ocasio, inmeros visitantes das aldeias vizinhas,

    com destaque para as de Fontoura e Macaba, que trazem mais de 50

    participantes para compartilhar a luta intertribal, que em clima festivo ecompetitivo reproduz as antigas disputas com inimigos vizinhos.

    A viagem de Macaba at a primeira parada em Fontoura, por

    deslocamento uvial, leva mais de quatro horas, seguindo-se viagem por

    mais de uma hora at a chegada na aldeia Santa Isabel.

    O barco da comunidade, que leva o nome de Tebukua, em

    homenagem a um dos grandes lideres polticos Karaj j falecido, sai deSanta Isabel no dia anterior festa para buscar os convidados das duas

    aldeias vizinhas. Estes so recebidos pelo lder poltico, por amigos e

    parentes, cando hospedados na aldeia at o nal da festa, quando so

    levados de volta.

    Foto: Sandra L. Campos, 2006.

    Barco da comunidade Karaj com convidados para a festa.

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    O canto ritmado acompanhado pela batida dos ps anuncia a

    chegada dos lutadores, antes do barco ser avistado, dando incio s festi-

    vidades de recepo na margem do rio.

    Tebukua barco da comunidade de Santa Isabel, com os convidados da festa.

    Foto:Sandra L. Campos/ 2005.

    Esse o mesmo barco que faz viagens dirias transportando

    os moradores de Fontoura e Santa Isabel para a cidade de So Flix do

    Araguaia. Leva grande maioria dos homens das aldeias, para cumprimento

    de suas jornadas de trabalho nos rgos pblicos (FUNAI e FUNASA), eoutros para vender peixes para os moradores da regio. As mulheres se

    dirigem cidade para a venda do artesanato, frutas nativas, compra de

    alimentos e roupas ou para tratamento de sade, delas e de seus lhos.

    A sociedade Karaj mantm restries ao trabalho feminino

    fora da aldeia. As poucas que trabalham, exercem funes de auxiliar de

    enfermagem no posto de sade mantido pela FUNASA em Santa Isabel

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    ou so professoras contratadas para a escola estadual indgena da aldeia.

    Estas fazem parte de uma gerao que vem rompendo com a resistn-

    cia sada das mulheres para fora, e esto saindo para estudar em SoFlix do Araguaia, Goinia Braslia ou So Paulo, dependendo da rea de

    atuao. Recentemente duas jovens saram para estudar em So Paulo na

    universidade adventista, UNISA. Uma j concluiu sua formao em Peda-

    gogia e retornou para assumir a diretoria da escola da aldeia; a outra est

    cursando o segundo ano de enfermagem superior e aps sua formatura

    voltar para trabalhar no posto de sade de Santa Isabel. A formaodas irms tem sido possvel com o fornecimento de bolsa de estudos da

    universidade e com apoio nanceiro da FUNAI, que auxilia nas despesas

    de moradia, transporte e alimentao. Iniciativas que alteram o compor-

    tamento comunitrio.

    A sada do ambiente domstico, a proximidade com a cidade

    e a facilidade de contato, que de Santa Isabel no leva mais do que meia

    hora de travessia, vem criando novos hbitos alimentares, muito distin-

    tos dos tradicionais. Aliado ao acesso ao dinheiro, passou a ser comum o

    consumo de vveres usuais do cardpio no indgena, como sal, caf, ma-

    carro, leo, acar, biscoitos e refrigerantes, revelando-se verdadeiros

    viles da sade indgena. Em conseqncia do alto consumo de sacarde-

    os, verica-se um aumento signicativo de casos de cegueira provocados

    pelo diabetes, bem como de outras doenas decorrentes da mudana nos

    padres alimentares.

    Os Karaj j foram grandes plantadores de roas de ar-

    roz, feijo, milho, mandioca e batata doce, que juntamente com o pei-

    xe em abundncia, compunham sua alimentao de forma muito mais

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    saudvel do que a adotada atualmente. At o cardpio tradicional das

    festas est sendo substitudo por bolos, biscoitos, pes, e se renden-

    do ao fascnio pelos refrigerantes.Vrias festas importantes acontecem durante o ano, como a

    dana de mscaras, ou a festa de Aruan, com as caractersticas mscaras

    que personicam animais relacionados ao mundo natural e ao sobrenatural,

    dos trs nveis do cosmos: terra, gua e cu. Segundo Toral (1992a), os

    Karaj acreditam que as cerimnias agradam aos seres representados, que

    satisfeitos, protegem a aldeia de possveis desgraas.A continuidade das festas tradicionais preservada pelos ho-

    mens mais velhos da aldeia, que procuram estimular o cumprimento do ciclo

    dos festejos como forma de revitalizao da cultura, uma vez que os mais

    jovens manifestam certa descrena e desinteresse por esses rituais. Como

    aponta Fnelon Costa, (1978:36),

    (...) esses ciclos relembram repetidas vezes as experincias de or-

    dem religiosa por que tm passado os Karaj h sculos, e ainda, a

    prpria experincia individual de todo Karaj.

    Acredita-se que a persistncia dos mais velhos em dar con-tinuidade a tais prticas seja responsvel pela permanncia dos principais

    traos da cultura tradicional e de sua resistncia diante de tantos apelos

    religiosos externos, como os do catolicismo e do adventismo.

    Santa Isabel se destaca das outras aldeias Karaj pela per-

    manncia de prticas tradicionais, a exemplo das expresses artsticas,

    como cermica, plumria, cestaria, entre outras que se mantm, e ainda so

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    de domnio dos membros dessa aldeia, fato que traz indivduos de outras

    aldeias Karaj das proximidades para reaprenderem certas tcnicas que se

    perderam, revitalizando, assim, alguns elementos da cultura Karaj.Uma caracterstica contempornea a fundao de asso-

    ciaes indgenas para o desenvolvimento de projetos coordenados por

    membros da comunidade. So organizaes com reconhecimento pblico e

    registro em rgos federais, que conquistam auxlio de entidades nancia-

    doras para desenvolvimento de projetos culturais. Como exemplo, em 2006

    os Karaj, por meio da Associao Cultural In Bededyynana, obtiverama aprovao do projeto de revitalizao da arte de confeco de canoa,

    cestaria, cermica e indumentria, enviado Petrobrs. O projeto tem

    por nalidade estimular os mais velhos que ainda dominam tcnicas pouco

    praticadas pelos mais jovens, a transmitirem seu conhecimento. O espao

    da escola da aldeia est sendo utilizado para as ocinas pedaggicas que

    so documentadas e lmadas pelos Karaj, para serem transmitidas para

    os alunos na escola de Santa Isabel, nos anos seguintes.

    1.3 JK e Wata: Dois polticos, duas aldeias.

    Durante os perodos de estadia em 2005 e 2006 entre os

    Karaj, a aldeia JK estava ocupada com 57 habitantes migrados de Santa

    Isabel, distribudos em 9 casas, segundo relatrios da FUNASA. Distante

    cerca de 3 km da aldeia grande, JK est sendo formada na regio onde o

    presidente Juscelino Kubitschek havia construdo o Hotel Turismo JK na

    dcada de 1960. A construo do hotel fazia parte de um projeto ambicio-

    so dos ltimos 8 meses de mandato do presidente, que visava o desenvol-

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    vimento do vale do Araguaia. Para realizar o seu sonho desenvolvimentista,

    Lima Filho (2001:101) lembra que Juscelino,

    Convocou Oscar Niemayer, que projetou o Hotel Turismo, o hospi-

    tal indgena e um prdio administrativo que se chamou Alvoradinha.

    Ainda foram construdas uma escola, uma pista asfaltada e uma base

    militar da FAB.

    Hotel inacabado, registrado por viajante.

    Foto: Ruy Reis Costa/1961.

    As questes polticas do perodo impediram a concluso do

    luxuoso hotel de turismo, que foi inaugurado em 1961 sem a concluso das

    obras, funcionando inacabado em condies precrias. Juscelino freqen-tou vrias vezes o hotel e o prdio administrativo Alvoradinha, recebendo

    vrios membros do cenrio poltico da poca.

    Aps a sada de Juscelino da presidncia, o hotel foi geren-

    ciado em um breve perodo por uma agencia de turismo de Gois, que no

    obteve lucros e abandonou o negcio. Antes de ser desativado, em 1964,

    foi utilizado temporariamente como posto da Fundao Nacional do ndio

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    (FUNAI), que se mudou no ano seguinte para So Flix do Araguaia, em

    Mato Grosso. Foi saqueado na poca de abandono, mas pode-se encontrar

    no Museu da cidade mantido pela Prefeitura, alguns exemplares dos cris-tais e pratarias gravados com as insgnias de JK.

    At ns da dcada de 1970 o gerenciamento do hotel passou

    por vrias administraes at ser totalmente destrudo por um incndio.

    Os sonhos de JK de promover um desenvolvimento acelerado do Centro

    Oeste podem ser traduzidos como pesadelo, pois o que resta hoje da ope-

    rao Bananal so runas de um ufanismo desenvolvimentista. As poucasconstrues do complexo que ainda esto erguidas em Santa Isabel foram

    ocupadas como moradia por algumas famlias indgenas. O hospital, em ru-

    nas e tomado pela vegetao, est irrecupervel. Sobrevive apenas a pista

    de pouso, utilizada pelos meninos da aldeia como pista de bicicletas desde

    que foi desativada no governo Collor de Mello na dcada de 1990, ocasio-

    nando a retirada da base da FAB ali instalada durante o governo militar

    para facilitar o combate guerrilha do Araguaia. Na aldeia JK, onde havia

    sido construdo o hotel, nada restou alm da memria do presidente que

    tanto havia prometido aos Karaj.

    Das lembranas da poca e da marca emblemtica desejada

    por JK, restou apenas o nome da aldeia, que se instalou desde a dcada de

    1980 em uma rea privilegiada na margem direita do rio Araguaia, em linha

    contgua aldeia de origem. Pode-se armar que essa tem sido uma situa-

    o de fuga de Santa Isabel, local que est se tornando cada dia mais popu-

    loso e com problemas srios de alcoolismo e drogas, trazidos da populao

    local no indgena para o ambiente da aldeia, provocando brigas e cises en-

    tre famlias. Com a ampliao de JK, a aldeia busca sua autonomia poltica

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    desvinculando-se da liderana de Santa Isabel, contando hoje com um lder

    poltico, Paulo Krumare, seu fundador. Reconhecido pela comunidade como

    importante liderana poltica, assume a posio de cacique4

    de JK.Situao distinta a da aldeia vizinha, Wata, que ainda no

    tem uma liderana poltica desvinculada de Santa Isabel. Fundada em nais

    da dcada de 1990, por Iwraru e seu irmo Marvel Tuil, foi construda pr-

    xima de JK, correspondendo a uma distncia que no ultrapassa 300 metros,

    oriunda de uma nova onda de migrao de Hawal. Os fundadores so netos

    do capito Wata que, em homenagem ao av deram seu nome para a aldeia.At o ano de 2006 Iwraru ocupava a posio de cacique de Santa Isabel,

    abrangendo Wata, onde mora com sua famlia. Foi substitudo por Idiahina

    seu antecessor no cacicado, eleito pela comunidade como liderana poltica,

    em agosto de 2006. Nesse aldeamento habitam cerca de 50 pessoas distri-

    budas em 10 casas, mais uma que est sendo construda por parentes da

    esposa de Iwraru e em 2007 foi construda outra casa, habitada pelo lho

    de Iwraru e a esposa. um dos raros caso de alterao da regra social, em

    que o lho mora ao lado do pai e no do sogro, como o costume.

    4Cacique uma atribuio genrica que se aplica todas as lideranas polticas indgenas.

    Foto: Sandra L. Campos

    Aldeia Wata, com 9 casas em 2005

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    O ttulo de capito foi atribudo a Wata pelo Presidente

    Getlio Vargas em uma de suas visitas Aldeia de Santa Isabel e que, de

    maneira geral e amistosa, era favorvel ao cumprimento de muitas das rei-vindicaes de Wata. As visitas dos vrios presidentes incluindo a mais

    recente, de Luiz Incio Lula da Silva, reetem o grande interesse poltico

    pela regio. O rio Araguaia cobiado por vrios governos para a constru-

    o de uma hidrovia, que beneciaria o transporte comercial. Existe um

    forte movimento de resistncia no sentido de impedir a construo, pois

    sem dvida, os menos favorecidos seriam os indgenas que habitam suasmargens, por gerar um grande impacto ambiental e, conseqentemente,

    cultural s populaes ribeirinhas.

    Aldeia Santa Isabel do Morro em: 1977, 1981 e 2006.

    Fonte: S, 1983.

    1977

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    Fonte: Fnelon Costa, 1988.

    1981

    Croquis: Sandra L.Campos/2006Arte nal: Denise Dalpino/MAE

    2006

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    Captulo 2

    Ritxok do barro fez-se o homem

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    2.1 As mos que Tecem o Barro: As Oleiras.

    Habilidosas oleiras, as artess Karaj praticam tradicional-mente a arte da modelagem de objetos em cermica, pressupostamente

    antes dos primeiros contatos com os colonizadores. Segundo Schmitz

    (1976/77) e Wst (1975, 1981), as prospeces arqueolgicas na regio

    evidenciaram vestgios cermicos de antigas populaes, que recuam a

    produo ao incio do sculo XII, com caractersticas semelhantes ao que

    ainda produzido.Segundo os autores, originalmente as ceramistas modelavam

    vrios objetos utilitrios e cerimoniais que acompanhavam os ciclos de vida

    e de morte dos Karaj, podendo ser distinguidos morfologicamente em cin-

    co tipos de recipientes. De acordo com a forma e a variedade de tamanho,

    tinham funes distintas, a saber:

    Besgrande, com base plana e borda baixa era utilizado para

    assar o beiju e servir alimento para grandes grupos nas festividades. Os de

    dimenses menores podiam ser utilizados como pratos individuais ou como

    tampa do Boti, recipiente fabricado at hoje para armazenar gua. O

    bestambm era utilizado para tampar a watxiwi, panela utilizada para

    cozinhar o calog, alimento tpico dos Karaj a base de milho ou mandioca

    adoado com mel, consumido hoje, com a substituio do mel por acar.

    Em pocas remotas, quando praticavam o sepultamento secun-

    drio de seus mortos, o watxiwi, ou watxiwihikytidena(watxiwi panela,

    hiky grande, ti osso, dena colocar), era ritualisticamente confecciona-

    do pela av materna ou me do falecido para enterrar os ossos exumados,

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    e o bes, nessa ocasio, era colocado com alimento nas sepulturas.

    Esse ritual de exumao dos ossos no mais praticado, mas a

    forma e a funo do objeto reside na memria dos mais velhos e na curio-sidade dos mais jovens, quando observam no cemitrio o aoramento dos

    vestgios cermicos de antigos sepultamentos. Na maioria dos casos de

    falecimento, os corpos dos Karaj so enterrados no cemitrio da aldeia,

    local onde foi colocada a imagem de Santa Isabel.

    Atualmente as sepulturas seguem a caracterstica tradicional

    Karaj, de enterramento em valas rasas. O fundo da sepultura forradolongitudinalmente com uma srie de pequenos troncos, alguns centmetros

    acima do cho para que o corpo no que em contato direto com a terra,

    operao que se repete na parte superior a uma determinada distncia do

    sepultado. Os mais velhos contam que os espaos deixados abaixo e acima

    so necessrios para que o esprito possa se movimentar ao olhar por seus

    parentes e sair para se alimentar. Com a ao de religiosos cristos e a

    assistncia da FUNASA, as esteiras em que os mortos eram enrolados e

    suspensos por duas hastes nas sepulturas, esto sendo substitudas por

    caixes funerrios cedidos pelo rgo de sade.

    No constante confronto entre tradio e inovao, algu-

    mas permanncias podem ser observadas com pequenas adaptaes,

    a exemplo do alimento que continua sendo depositado na sepultura,

    porm, em recipientes plsticos ou de metal substituindo o watxiwi.

    O luto e o choro ritual do funeral tambm so mantidos, sendo respei-

    tados pela comunidade os cinco dias aps a morte, causando a suspen-

    so de toda e qualquer atividade festiva na aldeia, seja ela uma das

    grandes festas do ciclo ritualstico ou uma simples partida de futebol.

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    O alimento reposto nesse perodo, para que o esprito se alimente em

    sua jornada para o mundo dos mortos.

    A cena do sepultamento e do choro ritual registrada embonecas cermicas que so comercializadas.

    No uso cotidiano, o watxiwi era utilizado como panela

    para coco de alimentos, e estas apresentando uma variedade de di-

    menses de acordo com o tamanho da famlia. Com a gradativa substi-

    tuio por panelas industrializadas, sua produo foi abandonada, fi-

    cando registrada apenas em acervos dos museus, assim como os wal,recipientes menores utilizados para beber gua e armazenar o mel.

    Essa riqueza material existe hoje em pequena escala, pois

    a maioria dos objetos foi substituda pelos industrializados, sendo o

    bot o nico sobrevivente aos apelos de consumo, cuja tcnica de

    manufatura ainda dominada por algumas ceramistas de Santa Isabel

    que o fornecem, sob encomenda, para vrias famlias da aldeia.

    Quase todas as casas tm um ou dois desses potes, com

    capacidade de armazenar cerca de 10 litros de gua cada um, mas tam-

    bm no incomum encontrar ao lado deles um filtro comprado direta-

    mente na cidade ou por meio de catlogos, com entrega dos produtos

    escolhidos, pelo posto de correio de So Flix do Araguaia, na margem

    oposta do rio.

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    Essa modalidade de consumo atravs de catlogos tem se tor-

    nado uma prtica comum. Isto se deve ao fato de muitos Karaj serem

    funcionrios assalariados dos rgos pblicos, como FUNAI e FUNASA,

    em So Flix do Araguaia. Houve a oportunidade de presenciar a chegada

    de um desses catlogos causando certa euforia nas mulheres da aldeia que

    escolheram seus produtos, aguardaram ansiosas a chegada das encomen-

    das e receberam os bens industrializados em um clima muito festivo. Uma

    grande variedade oferecida por esse sistema, como utenslios doms-

    ticos, brinquedos, roupas, entre outros. O pagamento feito geralmentepelo marido com seu salrio, ou pelas mulheres com o dinheiro ganho com a

    venda de seu artesanato.

    Muitos dos produtos industrializados acabam substituindo

    determinados itens, mas no impede que alguns de confeco artesanal

    ainda sejam produzidos e usados, tanto pelos homens como pelas mulheres,

    a exemplo das cuias utilizadas em lugar de copos, tigelas ou pratos.

    Bot.Com gua retirada de poo artesiano, prximo casa.

    Foto Sandra L. Campos/2005.

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    2.2. Hknaritxoko e Ritxok: bonecas antigas e

    modernas

    O fato de os Karaj terem hoje certo domnio da escrita e

    da lngua portuguesa, torna possvel sanar alguns equvocos de pronuncia

    e graa de termos de sua lngua, reproduzidos por autores que estiveram

    em contato, a exemplo de Baldus (1936) e Fnelon Costa (1978), quando se

    referem s bonecas atravs de termos como Licocs ou litjok, e outros

    modos semelhantes. Hoje podemos armar que a forma correta, discursivae grafada Ritxok, na fala feminina ou Ritxo, na masculina, sendo que o

    R tem o som como se estivesse entre duas vogais. Esse dado foi conrmado

    pelas ceramistas de Santa Isabel, com Ijesseberi5, lingista Karaj que

    auxiliou na pesquisa com a graa das palavras de seu idioma, e com Hata-

    waki Karaj que se disps a revisar os termos reproduzidos neste estudo.

    Hknaritxoko outro termo usado pelas ceramistas, para designar as

    bonecas antigas, diferentes em alguns aspectos da moderna.

    As colees de bonecas Karaj do MAE apresentam uma va-

    riao temporal de coleta entre 1904 a 2006 e pode-se armar a partir

    delas, que as bonecas antigas no esto superadas e no foram substitu-

    das pelas novas, pois at hoje elas fazem parte das preferncias e esco-

    lhas temticas das ceramistas de Santa Isabel. Verica-se a ocorrncia

    de mudanas de ordem tecnolgica, medida que as mais recentes no so

    cruas como as antigas.

    As evidncias empricas conrmam a convivncia dos dois pa-

    dres, pelo fato das meninas pequenas ganharem conjuntos de bonecas

    de padro antigo, porm processados da mesma forma que as de padro5Ijesseberi Karaj auxiliava o lingista David Fortune na elaborao do vocabulrio Karaj e na traduo do Bbliapara a lngua In. Faleceu em maio de 2006.

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    moderno. As meninas recebem uma famlia de bonecas, composta de

    peas que representam os pais, os irmos os avs. Em outras palavras,

    as avs que presenteiam, espelham nas Hknaritxoko sua ancestralida-de, seguindo padres tradicionais da constituio familiar. As bonecas,

    alm de simularem as diversas fases do crescimento biolgico e de suas

    respectivas categorias sociais, bem como a forma antiga da estrutura

    familiar Karaj, reproduzem o ato tradicional das avs presentearem as

    netas, que mantido e rearmado nas relaes sociais, submetido a re-

    gras para esse acontecimento.As ceramistas tm preservado expresses tradicionais na ce-

    rmica gurativa, mantendo nas duas conguraes as caractersticas for-

    mais e de contedo que podem ser identicadas na pintura corporal, no corte

    de cabelo e nos adereos, como resultantes de sua cultura secular.

    A famlia de bonecas, sempre produzida pela av (ou tia) para

    a neta no padro antigo, um presente que todas as meninas recebem,

    quando completam cinco ou seis anos de idade. A av materna se dedica a

    confeccionar o presente e caso no tenha habilidade para a confeco, a

    tarefa transmitida para uma das tias. No entanto, possvel que ambas

    ofeream o presente.

    As peas de argila so frgeis e requerem certos cuidados de

    manuseio. este o motivo que determina a idade a partir dos cinco anos

    para as meninas receberem as bonecas, em que j desenvolveram a noo

    dos cuidados de manipulao para no quebrar o brinquedo. O conjunto de

    peas tem durao prevista at o nal da infncia, aproximadamente at os

    doze anos de idade, quando a menina vai receber outros atributos e outros

    objetos referentes ao estgio seguinte. No costumam guardar as poucas

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    bonecas que resistem quebra, cando preservadas apenas nas lembran-

    as referentes infncia.

    Elas brincam com as bonecas na companhia de outras meninase s vezes tambm com a participao dos meninos, fato que acaba acar-

    retando a quebra dessas pequenas bonecas de cermica, que variam entre

    seis e doze centmetros de altura. Quando as meninas completam onze a

    doze anos de idade, restam poucos exemplares do conjunto que pode ser

    composto por mais de dez guras. Talvez seja este um dos motivos que jus-

    tique o fato dos museus no registrarem essas famlias em seus acervos,e os autores que antes estudaram os Karaj no se referirem a elas. Por

    outro lado, em virtude da circulao das bonecas pertencer ao universo fe-

    minino, parece no ter despertado a ateno dos coletores (homens), acer-

    ca da produo das ceramistas e da utilizao das bonecas pelas meninas

    Karaj. Essa questo comea a ser destacada com a participao feminina

    nas pesquisas de campo, nos estudos de Wilma Chiara, Maria Heloisa Fne-

    lon Costa e neste estudo que d enfoque famlia de bonecas.

    Em relao fase moderna, iniciada no nal da dcada de

    1940, prevalece a representao de variadas cenas da vida cotidiana da

    sociedade Karaj. Essas peas cnicas so mais destinadas ao comrcio,

    no fazendo parte do conjunto de peas presenteadas s crianas. Esses

    fatores no impedem que as bonecas de estilo antigo tambm sejam co-

    mercializadas, fato comprovado pelos museus, que abrigam centenas de

    peas avulsas. Porm, so vendidas isoladas de seu conjunto, no formando

    as famlias como as meninas pequenas ganham de presente, caracterizando

    assim, a distino do contexto de circulao dos objetos.

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    2.3 De Dentro e de Fora: Contexto Espacial e

    Circulao dos Objetos.

    Tradicionalmente existe entre as ceramistas Karaj uma

    grande produo de guras cermicas, cumprindo funes plurais de cir-

    culao. Nesse sentido, o repertrio gurativo est sujeito a uma srie

    Foto: Joo Derado/2006.

    Korixa vendendo bonecas de estilo mo-derno, em Bertioga/SP 2006

    Bonecas de estilo moderno para comrcio na aldeia JK,

    Foto: Sandra L. Campos/2006.

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    de fatores condicionados sua distribuio. O repertrio, assim como os

    motivos ornamentais, representa padres aprendidos na infncia e mais

    tarde aplicados nas guras, na pintura corporal e em vrias categorias deobjetos que produzem.

    Em estudos etnogrcos sobre os Karaj, Krause (1911b),

    apresenta um repertrio de motivos que se repetem na aplicao dos tran-

    ados, na cermica e em vrios tipos de objetos. Os mesmos motivos so

    apresentados por Taveira (1982) em estudo voltado para a cestaria Karaj,

    por Toral (1992 b) na pintura corporal, e por mim em artigo recente (Cam-pos, 2002), na cermica gurativa. Taveira (1982:235) elucida que,

    Os desenhos representam elementos da fauna terrestre e aqutica,

    como o quati, a formiga, a cobra, o urubu, o morcego, o peixe-faca,

    etc., numa exposio de partes de seus corpos, nunca o animal todo.

    Representaes de objetos e aes do cotidiano tambm se cons-

    tituem em motivos ornamentais, sendo exemplos os que signicam

    tembet, gancho, ou dar uma volta.

    Entre os Karaj, a produo da cermica est restrita rea

    domstica. As oleiras modelam seus objetos em espaos no fundo do quintal

    e prximos cozinha ou em pequenos espaos construdos para esse m,prximos da casa. O maior uxo de produo est voltado para a venda, por

    causa do aumento do grau de dependncia econmica gerada em conseqn-

    cia do estreitamento das relaes estabelecidas com a sociedade nacional

    e com a economia local, que intensica as necessidades de consumo de bens

    industrializados. Outro fator a facilidade de contato com a cidade mais

    prxima, distante cerca de 2 km entre a margem onde se encontra a

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    aldeia na ilha do Bananal/TO e o porto de So Flix do Araguaia/MT.

    A ilha do Bananal, pertencente ao Estado de Tocantins, tem o

    rio Araguaia como fronteira com Mato Grosso, sendo So Flix do Araguaiaa cidade mais prxima da aldeia de Santa Isabel. Com a instalao do posto

    da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) e da Fundao Nacional de Sade

    (FUNASA), rgos governamentais que incorporam um nmero repre-

    sentativo de indgenas como funcionrios, intensicou-se o contato dirio

    com a localidade. O meio de transporte comum o barco da comunidade,

    comprado e mantido pelos Karaj com recursos de arrendamento de pastospara no indgenas no interior da ilha, que em acordo com os Karaj, criam

    gado em territrio indgena.

    O fato de a embarcao comportar mais de cem pessoas, fa-

    zendo um trajeto que no dura mais de vinte e cinco minutos, facilita o

    acesso cidade e, conseqentemente, o escoamento dos objetos produzi-

    dos para a venda.

    Esse fator vem dando nfase produo destinada para o co-

    mrcio que, paradoxalmente, estimula as ceramistas a preservar aspectos

    identicadores da cultura Karaj. Por um lado, existe um pblico consu-

    midor cada vez mais exigente na aquisio de uma cermica autntica e,

    por outro, h a inteno das ceramistas de manter as prticas e saberes

    tradicionais, como forma de valorizao de seus objetos. Com isso, a venda

    da cermica e de outras categorias de objetos, como cestaria, colares,

    etc., vem sendo uma das maneiras de garantir tanto a sobrevivncia fsica

    quanto a sobrevivncia cultural dessa populao, sendo esta uma forma de

    desenvolver mecanismos de ajustes nas prticas culturais como garantia

    de comercializao do objeto.

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    Pode-se associar esse fenmeno natureza da participao

    da mulher na vida social da comunidade, sendo ela a principal responsvel

    em manter a estrutura tradicional dos padres e costumes da sociedadeem que vive. Como produtora, aplica a fora expressiva da representao

    simblica no objeto para o comrcio.

    As mulheres ocupam lugar de prestigio no meio Karaj. Sua

    ascendncia sobre os homens decorrente de um casamento matrilocal,

    que garante a propriedade da casa e o conseqente domnio do espao onde

    vivem. Alm disso, ela quem educa os lho, transmitindo e garantindo ocumprimento das normas sociais. Dominam, tambm, o repertrio do gra-

    smo simblico sendo elas que aplicam a pintura corporal nos homens e nos

    demais membros da comunidade.

    Embora a responsabilidade poltica seja de domnio masculino,

    os homens no desfrutam da mesma segurana que as mulheres, pois se-

    gundo as regras Karaj, os homens devem se adaptar ao meio, j que quan-

    do se casam vo morar junto famlia da noiva, mesmo que isso represente

    mudar-se de aldeia. Este um dos fatores que reforam a autoridade das

    mulheres nessa sociedade. No entanto, isso no signica eliminar a ocor-

    rncia da grande discriminao ostensiva entre homens e mulheres. Certos

    rituais, como a iniciao masculina, rearmam o poder e a superioridade

    do homem, que restringindo a participao e o acesso da mulher a certos

    espaos (casa de Aruan), a coloca em um papel secundrio, marcando a

    oposio entre os sexos.

    Ainda que sejam consideradas dependentes, as mulheres de-

    sempenham um papel importante na economia domstica, em funo da

    comercializao das peas artesanais que produzem, sendo que o maior

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    uxo de objetos de cermica se d para a circulao fora dos limites da

    comunidade, inserida no circuito comercial. A despeito da venda ser uma

    das prticas mais freqentes e para onde se concentra a produo daspeas, os objetos tambm so utilizados como moeda de troca, no sendo

    incomum o escambo por pequenos bens utilitrios ou por alimentos, num

    sistema comumente aceito por alguns comerciantes locais, ou ainda como

    troca de presentes.

    Seguindo uma prtica tradicional, o ato de presentear conti-

    nua freqente entre os Karaj, tendo carter de reciprocidade, reconhe-cimento ou agradecimento por algum benefcio auferido para o grupo. A

    reciprocidade ou a ddiva, segundo as analises de Mauss, um fundamento

    da sociabilidade e da comunicao humana em que a vida social marcada

    por uma constncia entre dar e receber. A retribuio de tributos pode

    estabelecer uma aliana poltica onde os contratos fazem-se sob a forma

    de presentes (Mauss, 1974b - 41).

    Os Karaj sempre foram destacados na bibliograa como as-

    tutos polticos, dotados de uma diplomacia mpar, acostumados a estabele-

    cer alianas e conquistar interesses com representantes governamentais.

    Em alguns casos, as trocas foram prerrogativas de cheas que, ao pre-

    sentear, representavam os interesses de sua sociedade. O prestgio do

    lder Karaj Wata cou marcado por episdios com dois presidentes da

    Repblica brasileira, que tinham interesses no desenvolvimento da regio

    Centro-Oeste. O primeiro foi com o Presidente Getlio Vargas na dcada

    de 40, que recebeu a atribuio de capito Wata, quando este visitou a

    aldeia de Santa Isabel na ilha do Bananal, sendo reconhecido at hoje pelos

    Karaj, muito tempo aps sua morte.

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    O segundo, foi com o presidente Juscelino Kubitschek, como

    j mencionado. Essa caracterstica dos Karaj mereceu destaque na mdia,

    sendo muito divulgada por ocasio da inaugurao de Braslia na dcadade 1960. Na poca, Juscelino Kubitschek, que tinha interesses declarados

    no desenvolvimento do centro-oeste brasileiro, convidou um grupo indge-

    na para a missa inaugural de Braslia. Como agradecimento e retribuio,

    Juscelino recebeu do capito Wata, liderana poltica que representava

    sua sociedade nesse perodo, e do grupo que o acompanhou, uma srie de

    presentes gurando entre eles um conjunto de bonecas.Este procedimento uma herana histrica desde os tempos

    da colonizao, quando acordos estabelecidos com os portugueses para a

    navegao do rio Araguaia garantiram a permanncia de ocupao da Ilha

    do Bananal por parte dos Karaj.

    Wata e sua esposa (com bonecas nas mos), JK e Dna. Sarah Kubitschek, na primeiramissa em Braslia.

    Foto: autor desconhecidoFonte: arquivo pessoal de Iwraru

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    Essa foi uma das formas de selar uma aliana com o presi-

    dente, atravs da qual ele poderia dar continuidade aos seus projetos de

    desenvolvimento da regio, desde que no trouxesse prejuzos s terrasindgenas e aos Karaj das diversas aldeias locais.

    Com a facilidade de transito dos Karaj, o principal foco das

    relaes externas ocorre com a venda dos objetos, sendo esta uma das

    maneiras de garantir parte da estabilidade econmica das famlias para

    aquisio de bens de primeira necessidade que no produzem. Aproveitam

    os nais de semana, quando aumenta o nmero de turistas na regio, prin-cipalmente nas temporadas de praia, ocasio em que aoram uma srie

    de bancos de areia formando as praias de rio. Este fenmeno atrai muitos

    turistas que se interessam pelos objetos regionais associados identica-

    o dos indgenas intensicando, assim, o comrcio dos objetos Karaj.

    No caso da circulao interna da cermica as bonecas ganham

    destaque. comum, como j mencionado, que sejam confeccionadas para

    presentear as meninas pequenas, tratando-se de uma prtica simblica tra-

    dicional em que a av materna ou uma das tias tenha habilidade e empenho

    em manufaturar um elenco de guras que projetam por recursos simblicos

    uma pequena famlia. Dessa forma, as bonecas assumem um carter peda-

    ggico: as meninas enquanto brincam, reproduzem o cotidiano familiar dos

    Karaj, organizado segundo normas e valores.

    As bonecas e outros objetos cumprem tipos distintos de uso:

    - para socializao dos Karaj

    - para troca e presente (dentro e fora das aldeias)

    - para comrcio

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    2.4 Para Alm do Brinquedo: Bonecas como

    Referncias Simblicas das Divises de Idade.

    No ambiente cultural da aldeia, o primeiro contato com as bo-

    necas se d na infncia, na fase pr-pubertria, em que a educao integra

    brincadeira e reconhecimento dos graus de idade, determinantes das di-

    vises sociais. Fritz Krause (1911a-332) foi o pioneiro a indicar os graus

    de idade formais dos Karaj, tendo como seguidores Lipkind (1948-187) e

    Dietschy (1978-69). Com os dados coletados nos trs meses de permann-cia em campo em 2005 e 2006, e com a colaborao de algumas famlias

    Karaj de Santa Isabel, procuro ampliar as informaes desses autores,

    buscando associar as divises de idade com as bonecas que as meninas ga-

    nham como brinquedo.

    As crianas brincam com esses pequenos objetos com cerca

    de seis a quinze centmetros, simulando com eles situaes que envolvem a

    vida cotidiana. Embora seja uma brincadeira de menina, o menino tambm

    pode participar na dramatizao representando papeis sociais que no es-

    tejam contemplados nas guras, por exemplo, o pai ou o lho mais velho,

    que pode ser incorporado na brincadeira como o responsvel por trazer

    alimento para a famlia, simulando uma pescaria.

    Brincar conhecer e conhecer objetivar; poder distinguir

    no objeto o que lhe intrnseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e

    que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto (Vi-

    veiros de Castro, 2002-358). Na brincadeira, as crianas se reconhecem

    nas guras cermicas; seu papel explicitado no objeto e na cadeia de re-

    laes que estabelecem com o conjunto de guras da famlia que assume

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    expresses das formas sociais.

    Nesse teatro onde os personagens se opem, se complemen-

    tam e se integram no funcionamento da organizao social em nveis cres-centes de abstrao, as crianas aprendem a incorporar atitudes e valores

    prprios de sua sociedade, permitindo atravs de seu carter simblico,

    outras formas de conhecimento do mundo e de seus semelhantes.

    A cermica gurativa Karaj pode ser retratada como forma

    simblica da produo da vida social. O objeto no uma representao

    realista, mas concentra contornos acentuados de valores que se articulamcom os papis sociais dos Karaj. Pode-se encontrar nas bonecas traos

    que enfatizam os referenciais simblicos da cultura Karaj, por intermdio

    da articulao do objeto com as demais esferas da sociedade.

    Nesse sentido, a pintura corporal, os adornos, o corte de ca-

    belo, entre outros elementos utilizados na vida cotidiana da aldeia e acres-

    centados nas guras, caracterizam-se como cdigos culturais, que cum-

    prem a funo distintiva e identicadora entre os indivduos.

    A linguagem modelada no barro e pintada sobre as guras re-

    trata esses traos diferenciais, destacando as semelhanas da organiza-

    o familiar Karaj. Dessa maneira, quando a menina ganha a sua famlia

    de bonecas, ela refora seu processo de reconhecimento da organizao

    social de seu povo, o aprendizado do ambiente se processa antes mesmo do

    domnio completo da linguagem.

    As crianas costumam acompanhar seus pais at So Flix do

    Araguaia, o que faz com que entrem em contato com um ambiente dife-

    rente do tradicional. Novos cdigos de comunicao, outras linguagens so

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    apreendidas e alguns modelos so inseridos em suas brincadeiras na aldeia,

    no sendo incomum a presena de bonecas Tori, ou seja, no indgenas,

    incorporando brincadeira a relao com o mundo da cidade que vem setornando cada vez mais intenso, inserindo assim, novos elementos que se

    mesclam aos padres de comportamento da vida na aldeia.

    Como exemplo, a boneca de plstico reproduzida acima, que

    embora seja de outra sociedade est recebendo os atributos Karaj, como

    ocorre com a boneca cermica. A irm mais velha da menina que ganhou

    esta boneca estava confeccionando os adereos tradicionais para serem

    colocados, como o colar de miangas marani, j colocado no pescoo da bo-

    neca, enquanto os outros adereos estavam sendo preparados. Os Karaj

    usam o maranidesde pequenos. Com poucos meses de vida, independente-

    mente do seu sexo, meninos e meninas ganham o colar que ser trocado por

    outros de dimenses maiores, acompanhando as suas fases de crescimento.

    Ele ser utilizado junto com outros adereos referentes s fases de idade,

    Boneca industrializada com colarKaraj.

    Foto: Sandra L. Campos/2006.

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    nas cerimnias festivas e nas apresentaes em eventos fora de seu espa-

    o de convivncia.

    Os Karaj esto em contato constante com a sociedade envol-vente, tanto na regio prxima de suas aldeias, quanto com outros Estados

    brasileiros. Todos os anos participam de uma srie de eventos voltados

    para as culturas indgenas, como os jogos intertnicos, a cada ano sediados

    em um Estado brasileiro, a festa Nacional do ndio, no ms de abril em

    Bertioga litoral de So Paulo, entre outras, que favorecem a assimilao

    de hbitos distintos de sua cultura adquiridos pelos contatos com outrassociedades. Porm, no h ruptura ou ciso de seus costumes, pois os Kara-

    j conservam as relaes domsticas denidas pelo sistema de organizao

    tradicional. A boneca de plstico, mesmo incorporando um elemento novo,

    ao substituir a boneca de cermica, mantm o cdigo de comunicao, in-

    corporando novos materiais.

    Kussina, (10 anos) e Nawaritxo (9). Brincam com bonecas cermicas e de plstico na aldeia JK.

    Foto: Sandra L. Campos/2006.

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    As crianas brincam com as bonecas tradicionais juntamente

    com as industrializadas, simulando a convivncia dos Karaj com os no

    indgenas, conforme ocorre nas relaes cotidianas. Mas a boneca de pls-tico, quando usa o colar e outros adereos, uma Karaj, no uma tori.

    As mulheres so mais preservadas do contato com estranhos,

    tanto que so poucas as que dominam outro idioma, sendo este um dos fato-

    res que as tornam resistentes s mudanas. Com isto, sua atuao deter-

    minante na manuteno de sua cultura, legitimada na educao dos lhos,

    fato este que refora a posio das ceramistas que utilizam a linguagemmodelada para representar nas bonecas os principais padres tradicionais

    do ciclo de vida Karaj.

    Assim, ao completarem cinco ou seis anos de idade, as meninas

    recebem de presente sua famlia de bonecas. Dependendo da ceramista,

    pode representar o modelo da famlia nuclear, com cinco a seis peas, ou

    ser mais completa, com um elenco maior de onze ou mais guras, repre-

    sentando a tipologia da famlia extensa, composta pelos avs maternos,

    pais, irmos jovens e crianas. Durante a infncia, as meninas podem ser

    presenteadas por mais de uma vez com a famlia, no sendo incomum, aps

    os estreitamentos das relaes de contato, que a recebam de presente de

    Natal ou aniversrio.

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    Em um exerccio de classicao, solicitou-se a uma jovem

    Karaj que alinhasse as guras de acordo como brincava em sua infncia.

    Apesar da idade de 27 anos, agrupou as guras seguindo a maneira como as

    crianas brincam, no sendo diferente de sua poca de infncia.

    Foto: Sandra L. Campos. JK/2005.

    Menina com sua famlia de bonecas em cesta prpria para guard-las

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    Nesta seqncia organizada por Hatawaki, lha de uma pres-

    tigiada ceramista e sobrinha de Iwraru, dentre as vrias possibilidades

    combinatrias, transparece a congurao hierarquizada das categorias

    sociais, reetindo o respeito pelos mais velhos, principalmente pela av

    materna que ca responsvel pelos netos. O respeito pelos idosos, deten-

    tores dos saberes e fazeres, e transmissores dos conhecimentos de sua

    cultura, comum nas sociedades indgenas. Esse reconhecimento poten-

    cializado na sociedade Karaj, que atribui aos avs maternos a responsa-

    bilidade da educao de seus netos. No incomum, por exemplo, uma av

    que tenha lho em fase de lactao amamentar seus netos, como forma de

    fortalecimento dos vnculos familiares e dos ciclos sociais.

    O reconhecimento dos graus de idade e dos ciclos sociais pe-

    los Karaj ocorre pelo emprego de uma multiplicidade de cdigos estticos,

    com elementos visuais e componentes materiais, como j visto: a pintura

    corporal, os adereos, o corte de cabelo, entre outros, num profuso uni-

    Av materna, recm nascido, menina pequena, av, me, pai, lho, lha em iniciao pubertria, jir (iniciado),lho e lha solteiros.

    Foto: Wagner Souza e Silva/2007.

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    verso de formas e cores simbolizantes de cada etapa, que expandidas no

    corpo identicam, distinguem e comunicam. Esses elementos so espelha-

    dos na maneira como as ceramistas documentam as fases de transio dascategorias sociais.

    2.5 Categorias de Idade

    Os graus de idade so unidades de classicao Karaj co-

    muns a homens e mulheres at o sexto ano de vida. Outra diviso marcanteocorre quando esto prximos ao perodo das fases de transio, ou seja,

    os meninos entre onze e treze anos de idade e as meninas na menarca. So

    momentos determinados pelas transformaes biolgicas denidoras da

    diviso sexual dos papis, pela capacidade de procriao e organizao fa-

    miliar. Essa bifurcao de compromissos marcada por atividades cerimo-

    niais que determinam sexualmente a atuao e o comprometimento de cada

    um com a vida social, poltica, econmica e religiosa da comunidade.

    A partir da iniciao, as categorias denidoras das divises

    etrias passam por sistemas classicatrios distintos para homens e mu-

    lheres, existindo um sistema de correspondncia de algumas fases nas -

    guras cermicas, que exemplicam uma srie de valores a serem rmados

    na infncia e realizados na vida adulta.

    Para ns de classicao, estabeleceu-se expressar a nomen-

    clatura dos graus de idade, iniciada pelo nascimento.

    Quando nasce um Karaj, em seu primeiro dia de existncia

    ele tem seu corpo pintado de vermelho marcando sua entrada no mundo

    In. Geralmente o ritual de passagem de responsabilidade da av ou da

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    tia materna, que tinge o recm nascido com urucum, marcando, de forma

    ritual, o seu primeiro dia de vida no InMahadu. Esta a fase inicial que

    encabea a seqncia da infncia, e que se estende at o nal do primeiroms. Atribui-se a ela o nome de Tohokua xoxo. Outra nalidade do tingi-

    mento com urucum, considerado como perfume, a de tirar o aroma carac-

    terstico do parto.

    Ao completarem um ms, superando a fase crtica de latncia

    onde qualquer descuido pode ser fatal, passam para outra fase Kytydu

    ritxor. Nesta fase os bebs comeam a car mais rmes e resistentes,contando ainda com a ateno constante da me e da av materna. Este

    perodo superado aos trs meses, pelo Iwebo webo, onde permanecem

    at carem rmes, aproximadamente at os cinco ou seis meses. Para cada

    fase h uma correspondncia de classicao, acompanhando as caracte-

    rsticas de desenvolvimento fsico e biolgico da criana. At aqui so con-

    siderados bebs, alimentadas apenas pelo aleitamento materno e os ris-

    cos de vida ainda so presentes, requerendo ateno constante. Superada

    esta etapa, entram na fase inicial da infncia, por volta dos cinco meses,

    quando so perdidas as caractersticas de beb, passando a ser designada

    como criana - Kuladu. A alimentao comea a ser alternada gradativa-

    mente com mingaus, suco de f