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BIBLIOTECA VIRTUAL DE CINCIAS HUMANAS

A ESCOLA DE MINAS DE OURO PRETO:O PESO DA GLRIAJos Murilo de Carvalho

Jos Murilo de Carvalho

A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glria

Rio de Janeiro 2010

SUMRIO:Esta publicao parte da Biblioteca Virtual de Cincias Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.bvce.org

LISTA DE TABELAS: ......................................................................... 1 PREFCIO PRIMEIRA EDIO.................................................... 2 PREFCIO SEGUNDA EDIO.................................................... 4 APRESENTAO................................................................................ 5Francisco Iglsias

Copyright 2010, Jos Murilo de Carvalho Copyright 2010 desta edio on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da ltima edio: 2002

INTRODUO................................................................................... 10Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicao para uso comercial sem a permisso escrita dos proprietrios dos direitos autorais. A publicao ou partes dela podem ser reproduzidas para propsito no-comercial na medida em que a origem da publicao, assim como seus autores, seja reconhecida.

PARTE 1: SUBIDA AOS CUSCRIAO E CONSOLIDAO ............................................................ 14

Antecedentes........................................................................................ 15 Criao................................................................................................. 33 A Consolidao: Pedras no Caminho .................................................. 45 PARTE 2: NAS ALTURASIMPACTO ............................................................................................. 81

ISBN 978-85-7982-005-2

O Esprito de Gorceix.......................................................................... 82 Destino dos Ex-Alunos........................................................................ 93Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Piraj, 330/1205 Ipanema Rio de Janeiro RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: [email protected]

Impacto .............................................................................................. 103 PARTE 3: DESCIDA AOS INFERNOSCREPSCULO ................................................................................... 130

Entre 1939 e 1976.............................................................................. 131 Sintomas e Causas do Declnio ......................................................... 145 Morte Digna ou Vida Nova? ............................................................. 165 CONCLUSO................................................................................... 172I I

FONTES E BIBLIOGRAFIA............................................................178 FONTES PRIMRIAS......................................................................178 BIBLIOGRAFIA ...............................................................................186 APNDICE........................................................................................194

LISTA DE TABELAS:1. Matrcula em Coimbra, por Cursos 1772/1773 ............................ 17 2. Tipo de Formao dos Ministros, por Perodos 1822/1889.......... 30 3. Frequncia de Alunos por Cursos 1876/1909............................... 54 4. Candidatos Inscritos e Aprovados 1897/1906 .............................. 55 5. Engenheiros Formados pela Politcnica e pela Escola de Minas, por Quinqunios 1875/1922.................................................................... 68 6. Salrios dos Empregados das Escolas Superiores 1878 (em mil-ris) ........................................................................................ 71 7. Gastos Oramentrios com a Politcnica, a Escola de Minas e o Museu Nacional 1875/1889.......................................................................... 73 8. Tempo de Permanncia dos Professores de Fora ............................ 91 9. Tempo de Servio e Local de Formao dos Professores 1911 ... 92 10. Ocupao dos Graduados por Perodos 1878/1931 .................... 95 11. Ocupao dos Engenheiros da Escola de Minas 1934/1945....... 98 12. Ocupao dos Engenheiros de Minas 1934/1945....................... 99 13. Origem Geogrfica dos Engenheiros da Escola de Minas 1878/ 1931 ................................................................................................... 102 14. Publicaes de Geologia, Mineralogia e Paleontologia 1850/ 1909 ................................................................................................... 105 15. Nmero de Candidatos, Vagas e Matrculas na Escola de Minas 1966/1975 .......................................................................................... 138 16. Matrcula e Pr-Opo por Cursos .............................................. 140 17. Qualificao e Regime de Trabalho do Corpo Docente 1974 .. 141 18. Anos de Docncia na Escola 1974............................................ 142 19. Local de Residncia dos Professores, por Departamentos 1974 ................................................................................................... 144II 1

PREFCIO PRIMEIRA EDIOEste trabalho foi escrito a pedido do Prof. Simon Schwartzman, coordenador do Programa de Estudos sobre o Impacto da Cincia e Tecnologia no Desenvolvimento Nacional, da FINEP, e financiado com recursos desse rgo. A coleta de dados foi realizada em Ouro Preto, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, com a assistncia competente das historiadoras Maria Virgnia F. Schettino, Zuleica Rocha e Maria Regina G. B. Kleinsorge. Nos passos iniciais da pesquisa contei com sugestes de Jos Pelcio Ferreira, Jos Israel Vargas, John Milne A. Forman e Simon Schwartzman. O trabalho s se tornou possvel graas total colaborao que recebi dos professores e funcionrios da Escola de Minas de Ouro Preto, desde seu diretor na poca, Jos Campos Machado Alvim, at o funcionrio Geraldo Pinto da Rocha, que serve Escola h 33 anos, passando pelo secretrio Alencar Amaral e pelas bibliotecrias. Em Belo Horizonte, contei com a boa vontade do Diretor do Arquivo Pblico Mineiro, Prof. Francisco de Assis Andrade, e de seus funcionrios. Igualmente importante foi a cooperao daqueles que procurei para entrevistas pessoais. Na Escola de Minas, alm do Diretor, devo especial ajuda ao Prof. Cristiano Barbosa da Silva, que me deu acesso parte de seu material sobre a histria da instituio, inclusive aos documentos provenientes do Arquivo Nacional. Outros professores que prestaram informaes e discutiram problemas da Escola foram: Moacir do Amaral Lisboa, Walter Jos von Kruger, Jos Jaime Rodrigues Branco e Jos Pedro Xavier da Veiga. Sobre a Universidade Federal de Ouro Preto, ouvi o reitor Thedulo Pereira. O Secretrio da Fundao Gorceix, Jos Ramos Dias, alm de dar informaes sobre as atividades da Fundao, colocou a meu dispor seus servios de reproduo grfica. Em Belo Horizonte, entrevistei os ex-alunos Francisco de Magalhes Gomes, ex-diretor do Instituto de Pesquisas Radioativas da Universidade Federal de Minas Gerais, Manuel Teixeira da Costa e2

Mrcio Quinto Moreno, da Universidade Federal de Minas Gerais, Octvio Elisio Alves de Brito, presidente da METAMIG. No Rio de Janeiro, beneficiei-me de sugestes dos ex-alunos Glycon de Paiva Teixeira e Amaro Lanari Jr., bem como do Prof. Othon Henry Leonardos. O Prof. Francisco Iglsias sugeriu ideias e fontes de pesquisa, evitou erros mais grosseiros que poderia ter cometido em minhas incurses histricas e revisou, ainda, o texto final. , no entanto, minha a responsabilidade pelo trabalho.

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PREFCIO SEGUNDA EDIOEsgotada h muito tempo a primeira edio deste livro, surgiu a possibilidade de reedio pela Editora UFMG. Como sempre acontece nesses casos, o Autor se perguntou se devia ou no atualizar o texto. A favor da atualizao, pesava o fato de j se terem passado 22 anos. Nesse intervalo, tanto a Escola de Minas de Ouro Preto, objeto direto do estudo, como a Fundao Oswaldo Cruz, utilizada como marco comparativo, passaram por mudanas que convinha incorporar na anlise. Contra a atualizao, militava o fato de que ela haveria seguramente de requerer pesquisa nova de no pequena monta. Para tanto, faltava-me tempo e faltava-me, sobretudo, a segurana de que, caso voltasse ao tema, adotaria o mesmo esquema de anlise. Mudado este, mudaria o livro e no haveria reedio. Decidi manter o texto original. A soluo pode ser criticada por ser fcil. Mas isso no impede que seja correta. Mantido o contedo, no me pareceu aceitvel a forma. Ao reler o texto, achei-o tosco e pedregoso. Por ocasio da primeira edio, Francisco Iglsias j chamara a ateno para as deficincias do estilo. Ele prprio fizera uma primeira limpeza, eliminando repeties, demonstrativos, artigos indefinidos, impropriedades, deselegncias. Mas restou muita ganga a ser separada do ouro, muita escria a ser eliminada do ferro. Transformado em mineiro da palavra e metalurgista da frase, voltei bateia e ao forno, na expectativa de conseguir produto mais refinado. Ainda restar o que purificar, mas acredito que Francisco Iglsias, onde estiver, se sentir menos desconfortvel com o novo texto. Tornei tambm mais precisas as indicaes de fontes. Nessa tarefa contei com a colaborao de Maria de Ftima Moraes Argon para a documentao existente no Arquivo Histrico do Museu Imperial, e de Marcello Basile para a parte guardada no Arquivo Nacional. A ambos meus agradecimentos. A Iglsias, que me honrou com a apresentao da primeira edio, dedico esta segunda, em homenagem no menos comovida por ser pstuma.

APRESENTAODuas instituies de ensino tm importncia decisiva na vida de Minas Gerais: o Caraa e a Escola de Minas de Ouro Preto. Elas realizaram, em certa poca, trabalho expressivo em matria de educao, valendo pelo que foi feito no preparo de pessoal e pelo acento de originalidade dado vida da rea. Da o seu relevo, justificativo de atenes. Mais que simples escolas, so unidades formadoras de determinada marca regional. Seu estudo se impe e pode contribuir para esclarecimento da realidade tanto como as notas polticas ou econmicas. E ele vem sendo feito, como se v pelas obras dedicadas fixao de trajetrias de escolas e cursos, reveladoras de algo mais que resultado de aulas, ou de centros de investigao. A Escola de Minas vem de ser objeto de bem elaborado livro, pelo socilogo e cientista poltico Jos Murilo de Carvalho, A Escola de Minas de Ouro Preto o peso da glria. Nele, mais uma vez se evidenciam suas qualidades de pesquisador, j afirmadas antes, em tese de doutorado, na Universidade de Stanford, sobre as elites polticas na construo do Estado no Brasil imperial (Califrnia, 1974)1.O pesquisador fez levantamento to completo quanto possvel do material indispensvel compreenso de seu tema e o elabora com metodologia severa, de pronunciada conotao histrica. Com o domnio de instrumental terico e fina acuidade, pde realizar interpretao dos elementos obtidos, de modo que os temas so convenientemente explicados em anlises que se afirmam pela abrangncia e profundidade. Assim este livro. O Autor dividiu-o em trs partes: criao e consolidao da Escola, seu impacto, dificuldades e declnio. Na primeira, os antecedentes da iniciativa, a personalidade do fundador, o ato de fundao, os embaraos at que a ideia se consolidasse; na segunda, a peculiaridade da promoo, o destino dos ex-alunos e o papel da Escola no desenvolvimento econmico, na poltica e na poltica mineral; na terceira, como as dificuldades levam ao crepsculo,1

A mais recente edio da tese foi feita pelas Editoras UFRJ/Relume Dumar em 1996 sob o ttulo A construo da ordem: a elite poltica imperial e Teatro de sombras: a poltica imperial. (N.E)

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com os sintomas de decadncia e suas causas convenientemente apontadas, bem como a alternativa possvel ante o dilema de morte digna ou vida nova. A slida arquitetura do trabalho permite ao Autor escrever a concluso de modo objetivo, pois desenvolveu o esforo em busca de um resultado. interessante, assim, acompanhar a iniciativa em todas as vicissitudes, da criao atualidade. Como esclarece, dificilmente se poderia dizer que havia uma demanda efetiva por gelogos e engenheiros de minas na economia exportadora e escravocrata de 1876. A criao da Escola foi, antes de tudo, um ato de vontade poltica orientado em boa parte por motivos de natureza antes ideolgica do que econmica. De fato, a criao quela altura se explica como deciso poltica: o pas tinha economia eminentemente agrcola, pesando pouco a atividade industrial, muito incipiente. Ensino do gnero oferecido pela Escola, no entanto, era solicitado pela Provncia de Minas, como se v pela insistncia na ideia desde bem antes. A soluo para o declnio econmico em que se debatia era apontada, por vezes, na indstria mineral, j pelos administradores portugueses, como em 1780; e, depois, por encarregados pelo governo de estudar a realidade, que visitam a Provncia no fim do sculo XVIII e incio do seguinte. Brasileiros e portugueses so incumbidos de cursos tcnicos em grandes centros europeus, com vistas elevao econmica, como decorrncia da mentalidade ilustrada, crente na contribuio da cincia para o bom desempenho da poltica, existente em Portugal desde a reforma pombalina da Universidade de Coimbra, e que se mantm mesmo depois da queda do ministro, na conhecida ao da chamada Viradeira. A favor de uma orientao mais tcnica que humanstica do ensino se empenham os reformadores. Da e de razes regionalistas a ideia de uma escola de minas na Provncia central, como se v nos debates da Assemblia Constituinte em 1823. O curso ento proposto ser criado em lei da Regncia, em 1832, mas no ter pronta execuo; ser reclamado diversas vezes, at ser repetido em lei de 1875, posta em prtica no ano seguinte. O xito se dever em grande parte aos favores de D. Pedro II: ele que, em viagem Europa no incio da dcada de setenta, entra em contato com membros da Academia de Cincias de Paris, pelo culto que sempre teve6

da produo intelectual estrangeira, e pede a Auguste Daubre orientao quanto s riquezas minerais, convidando-o a vir ao Brasil. Daubre no aceita, mas indica pessoa capaz de realizar trabalho de vulto. A indicao no podia ser mais feliz, pois Claude Henri Gorceix possua alto preparo e capacidade de direo. Ele escolheu o local e indicou as linhas bsicas do estabelecimento; trabalhou at 1891, como seu primeiro diretor, executando tarefa meritria. Teve dificuldade de todo tipo, como a insuficincia de recursos de Ouro Preto, a campanha de polticos inimigos e a rivalidade da Escola Politcnica do Rio de Janeiro; se conseguiu sobrepor-se a tudo foi pela proteo permanente de D. Pedro II, que o sustentou na defesa de suas ideias e prticas. As atividades da Escola eram rigidamente traadas, com tempo integral de professores e alunos. O ensino era eminentemente objetivo, e a pesquisa cultivada de forma ainda desconhecida no Brasil. Criou-se, assim, um estilo de trabalho, com a formao severa de quadro docente e preparo tcnico dos estudantes. Ao fim de poucos anos comeam os efeitos positivos: diplomados ocupam posies relevantes no ensino, reparties pblicas e empresas particulares; da investigao de professores e alunos resulta bom conhecimento da realidade mineral da Provncia, como resultam, ainda, contribuies para a cincia no pas. Poucos estabelecimentos de ensino tiveram, como a Escola de Minas de Ouro Preto, impacto na vida social, econmica e cientfica: ela criou um estilo, um padro de trabalho. As dificuldades aumentaram, e Gorceix preferiu voltar a seu pas, em 1981. Com a Repblica, faltou a proteo de D. Pedro II; vrios professores eram polticos e ocuparam postos no Executivo e no Legislativo do Estado de Minas; a capital se transferiria para Belo Horizonte. Se antes era possvel Escola superar as dificuldades, s vezes adaptando-se com concesses no-desfiguradoras de suas caractersticas, tem agora de vencer os embaraos do meio, o isolamento de Ouro Preto, a falta de professores qualificados. Em 1931, a Escola passa para o Ministrio da Educao, como rgo da Universidade do Brasil, do Rio de Janeiro. A discusso sobre qual a melhor forma de sobreviver frequente: se no Ministrio da Educao, no da Agricultura, ou no das Minas e Energia; como escola7

tcnica isolada ou como parte de uma universidade, se unida de Viosa ou de Minas Gerais, de Belo Horizonte. Em 1960, desligada da Universidade do Brasil, voltando a ser apenas Escola de Minas de Ouro Preto. Temerosa da ligao com Viosa ou Belo Horizonte, empenha-se em passar a ser Universidade de Ouro Preto, o que consegue em 1969, sob a forma de fundao de direito pblico. Aps algumas dvidas, o Estatuto de 1972, baseado na Universidade de Braslia, transforma a Fundao Escola de Minas em Universidade Federal de Ouro Preto. Vrios problemas precisam ser vencidos, acumulados j de muitos anos; as crticas se sucedem, no s de fora como tambm partindo da prpria congregao, sobretudo depois de 1939, quando se agravam as questes. O Autor sumaria as crticas nos seguintes pontos, convenientemente esclarecidos no texto: a Escola se fechou sobre si mesma; o ensino massificou-se e tornou-se mais terico; o tempo integral passa a exceo; sente-se a falta do bafejo do poder (amplo no Imprio, raro depois, como na gesto do ministro da Educao Clvis Salgado, no governo Kubitschek); a perda do sentido de criatividade. So sintomas facilmente identificveis de declnio, para o qual se apontam fatores externos e internos, como perda da autonomia, reformas do ensino, descaso das autoridades, condies fsicas, insuficincia salarial, Universidade de Ouro Preto (sua interferncia nos negcios da Escola), isolamento geogrfico e cultural, excessivo inbreeding do corpo docente, culto da tradio, atividade da Associao dos Ex-alunos, estrutura dos cursos e dos currculos. Ante a crise, coloca-se a alternativa: morte digna ou vida nova? Como se v, h dificuldades e h conscincia de embaraos, hesitando os responsveis a congregao ou o servio federal ante o caminho a adotar. O certo, como est na concluso de Jos Murilo de Carvalho, que s um pensamento superior, com vistas a fazer que a Escola retome a sua grandeza, ter sentido, pois de nada adiantam providncias tmidas, parciais. A concluso otimista: para uma volta a Gorceix, no seria preciso hoje buscar outro Gorceix na Frana ou em qualquer outro lugar. J existem muitos Gorceix no Brasil, capazes de enfrentar com xito a tarefa. essa trajetria, da criao crise atual, que o livro estuda. De maneira segura, pois o Autor acerta na escolha do essencial para8

caracterizar cada momento. As fontes esclarecedoras so consultadas em pesquisas nos arquivos. A secretaria da Escola, as atas da congregao, testemunhos de professores, alunos, autoridades todos so ouvidos, no escrito que ficou ou nas entrevistas com elementos que podem ser encontrados. As fontes so inteligentemente usadas; o Autor sabe construir a narrativa com segurana, em harmoniosa coerncia entre os captulos. Da o valor do presente estudo: retrato fiel de uma instituio, do que ela e do que foi em diferentes momentos. Caracteriza-se, assim, o significado da Escola de Minas de Ouro Preto como rgo de ensino e de pesquisa, sua contribuio para a sociedade e a economia de Minas Gerais e do Brasil; para a cincia, como atitude ou maior conhecimento de minerao e geologia. A Escola ter contribudo para uma linha nacionalista na poltica mineral brasileira, como se nota das posies de seus ex-alunos na maior parte dos pronunciamentos. Estudos monogrficos do gnero permitem aprofundar quanto se conhece da histria intelectual brasileira. Espera-se por outros, pois h diversas instituies de ensino, investigao cientfica ou associaes de especialistas a Escola de Direito de So Paulo, a Academia Brasileira de Cincias, a Sociedade Brasileira de Fsica, por exemplo que exigem estudo, pela produo realizada e seus impactos, no plano nacional ou nos diversos planos regionais. A histria do Brasil ser melhor conhecida quando se escreverem monografias sobre unidades como o Jardim Botnico, o Museu Nacional, a Escola Militar, o Observatrio Astronmico, a Escola Politcnica, o Instituto Agronmico de Campinas, o Museu Goeldi, o Instituto Butant, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia, o Departamento Nacional de Produo Mineral, a Universidade de So Paulo e de vrios Estados, j de alguns anos, ou as Universidade de Braslia e de Campinas, entre experincias recentes. A trajetria de instituies culturais tem muito a dizer. O desenvolvimento da atividade cientfica, em seus avanos, estagnaes e recuos, interessante e til, pelo que esclarece ou pelo muito que d, como se v nesta contribuio segura e inteligente de Jos Murilo de Carvalho, modelo a ser seguido.

Francisco Iglsias9

INTRODUOEste estudo pretende ser uma histria institucional da Escola de Minas de Ouro Preto, que, em 1976, completou cem anos de existncia1. Pretende ainda fornecer elementos para a discusso dos problemas que afetam a Escola, dentro da perspectiva mais ampla da histria das instituies de ensino e pesquisa no Brasil. J surgem estudos sobre tais instituies, alguns com importantes contribuies, como o de Nancy Stepan sobre o Instituto Oswaldo Cruz2. A Escola de Minas difere um pouco desse Instituto que , sobretudo, um rgo de pesquisa. Com o correr do tempo, ela se foi transformando em instituio quase que exclusivamente de ensino. No entanto, por sua orientao original, pela prtica de seus anos iniciais e mesmo pela natureza de seu ensino, deve ser considerada instituio fundamental para a implantao no Brasil da cincia geolgica, da mineralogia, da metalurgia e do desenvolvimento tecnolgico nessas reas. Alm disso, foi fator importante na implantao do esprito cientfico, graas valorizao da pesquisa emprica, feita na contramo da tradio livresca predominante no pas. A nfase que sempre deu s cincias bsicas, a matemtica, a fsica, a qumica, impediu que a preocupao com a aplicao prtica dos ensinamentos transformasse os ex-alunos em simples tcnicos ou tecnlogos. Vrios deles, os mais inclinados ao estudo, se dedicaram pesquisa cientfica e constituram a primeira gerao de gelogos brasileiros. Como no caso do Instituto Oswaldo Cruz, a Escola foi tambm exemplo da transplantao, com xito, do que havia de melhor na cincia europia da poca em seu campo de conhecimento3. As duasO nome da Escola variou ao longo das transformaes por que passou. Para maior simplicidade, usei neste trabalho os nomes de Escola de Minas de Ouro Preto, Escola de Minas, ou, simplesmente, Escola. 2 Ver STEPAN. Gnese e evoluo da cincia brasileira: Oswaldo Cruz e a poltica de investigao cientfica e mdica. Sobre Manguinhos, ver tambm FONSECA FILHO. A Escola de Manguinhos. Contribuio para o estudo do desenvolvimento da medicina experimental no Brasil. Tomo II. 3 Outra instituio importante em nossa histria cientfica, e que est a pedir um estudo, o Museu Nacional que foi durante o sculo XIX, por muito tempo, um dos refgios da pesquisa no Brasil.1

instituies contriburam poderosamente para colocar a geologia e a pesquisa biolgica no ponto de passagem do que Basalla chama de cincia colonial para a cincia nacional, isto , da cincia feita totalmente na dependncia de pesquisadores e centros externos para a cincia realizada em instituies nacionais por pesquisadores nacionais1. Como esse processo se prolongou no Brasil por muito tempo, podendo-se dizer que em vrios campos ainda no se completou, o estudo das causas do xito, ou fracasso, da experincia adquire interesse que ultrapassa as fronteiras das duas instituies. O exame da implantao da Escola de Minas, mais ainda do que o do surgimento do Instituto Oswaldo Cruz chama a ateno para um ponto que distingue pases como o Brasil de outros, como os Estados Unidos, no que se refere criao de instituies cientficas. Neste ltimo pas, por exemplo, a introduo de escolas tcnicas, ou mesmo das cincias naturais, nas universidades se deu aps ter havido considervel desenvolvimento tecnolgico independente da cincia, incentivado e financiado por industriais interessados em seus possveis benefcios2. Embora houvesse nos Estados Unidos a mesma resistncia das universidades tradicionais em aceitar as escolas de engenharia e o ensino de cincias, l essas escolas e esse ensino surgiram em funo do que se poderia chamar de demanda social por seus produtos. No Brasil, sobretudo no caso da Escola de Minas, tal no se deu. Dificilmente se poderia dizer que havia demanda por gelogos e engenheiros de minas na economia exportadora e escravocrata de 1876. A criao da Escola foi, antes de tudo, um ato de vontade poltica, orientado em boa parte por motivos de natureza antes ideolgica do que econmica. Embora os efeitos deste voluntarismo tenham sido limitados por restries econmicas, no h dvida de que eles se fizeram sentir com nitidez e exerceram impacto sobre o prprio desenvolvimento econmico e tecnolgico do pas. Ao lado das razes do xito das instituies, no menos importante estudar as causas de sua decadncia. Como o Instituto Oswaldo Cruz e quase todas as outras instituies brasileiras de pesquisa, a Escola de Minas conheceu, e conhece ao celebrar o1 2

Ver BASALLA. Science, v. 156, p. 611-622. Ver STRUIK. Yankee science in the making, sobretudo p. 421-444.

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centenrio de sua criao, uma fase de decadncia. Sua sobrevivncia foi mais prolongada do que a daquele Instituto porque, tendo-se transformado quase que exclusivamente em instituio de ensino, eralhe mais fcil resistir aos fatores de desgaste e ocultar os sintomas da decadncia. Uma escola medocre pode sobreviver indefinidamente, ou quase, mas no assim uma instituio de pesquisa. O trabalho divide-se em trs partes. A primeira dedicada ao estudo das circunstncias em que foi criada a Escola, das razes da implantao, dos obstculos que teve de vencer e dos fatores de xito. A segunda trata de seu esprito, ou etos, e de seu impacto na cincia, na tecnologia, na economia e na poltica. A terceira discute sua situao nos ltimos anos, a natureza e as causas do declnio, e algumas possveis opes de renovao. Esta diviso, que atende necessidade de discutir os problemas que me pareceram mais importantes, fez com que o trabalho se concentrasse sobretudo nas fases mais antiga e mais recente: os perodos que vo de 1876 a 1893 e de 1939 a 1976, aproximadamente. Os fatos relevantes do perodo intermedirio so, no entanto, mencionados e analisados. As principais fontes primrias utilizadas foram, para as duas primeiras partes, a correspondncia de Gorceix com o Imperador, com os ministros do Imprio e com os presidentes da Provncia de Minas Gerais, alm de seus relatrios anuais e dos relatrios dos ministros. Para a terceira parte, servi-me, sobretudo, das atas da Congregao e de entrevistas. Antes de iniciar a exposio, dirijo uma palavra especial aos professores, sobretudo aos da gerao mais antiga, que ainda carregam todo o peso da tradio, vrios dos quais se dispuseram com grande generosidade a discutir comigo os problemas da Escola. Este trabalho, em sua ltima parte, contm diagnsticos que lhes parecero injustos, se no equivocados. S posso dizer-lhes que os resultados a que cheguei foram fruto de lio que faz parte do esprito que Gorceix pretendeu introduzir, ou seja, s conclu aps cuidadoso levantamento de dados em vrias fontes, inclusive depoimentos de professores. Se, apesar disso, as anlises e concluses forem consideradas incorretas, o caminho est aberto para revises e correes. S espero que, ao ser contestado, se o for, o seja dentro dos mesmos padres de trabalho12

estabelecidos por Gorceix. O debate s poder ser benfico para a instituio. Seja como for, comigo ficam, ao trmino do trabalho, ao lado da admirao por um cientista francs dedicado cincia e ao Brasil, o respeito pela dedicao com que serviram sua obra os professores da Escola de Minas e a esperana de que, de algum modo, o esplendor antigo possa ser restaurado.

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Nesta parte analiso os antecedentes da Escola, isto , os fatores que condicionaram sua criao; a prpria criao, com nfase na personalidade do criador e na organizao inicial; e a consolidao a despeito dos obstculos enfrentados nos anos hericos, sobretudo os provenientes da situao do ensino no pas, do mercado de trabalho e das injunes polticas.

ANTECEDENTESAo estudar a Escola de Minas, importante tomar sua criao como problema e no como dado. Por que foi criada? Por que uma escola de minas em 1876? Por que no simplesmente uma outra escola de engenharia civil em Minas ou mesmo uma escola de direito? Havia pessoas ou grupos que lutavam por uma escola de minas? Havia a percepo de que uma escola de minas seria fundamental ou simplesmente importante para resolver problemas econmicos ou sociais do pas ou da Provncia de Minas? Estavam, por fim, as finanas pblicas em condies de arcar com os custos de uma escola de cuja utilidade no se tinha muita certeza? As perguntas so importantes para o entendimento correto da criao e da evoluo da Escola1. Entre as possveis razes para a criao oficial de um estabelecimento de ensino dessa natureza, podem ser apontadas as de natureza cultural ou ideolgica e as de natureza social ou econmica. A Escola poderia ter sido criada porque havia no Brasil uma tradio de ensino na rea da geologia e da mineralogia; porque havia um consenso entre os grupos dirigentes quanto ao valor da cincia natural. Ou poderia ter sido criada porque, na poca, a economia estava enfrentando problemas para cuja soluo o ensino da geologia, da mineralogia e da metalurgia poderia contribuir. Ou poderia ter sido criada pelas duas razes.IDEOLOGIA E ECONOMIA

PARTE 1: SUBIDA AOS CUSCRIAO E CONSOLIDAO

Para responder pergunta sobre as possveis origens culturais e ideolgicas ser necessrio examinar alguns aspectos da tradio1

Glycon de Paiva me fez algumas dessas perguntas em entrevista pessoal.

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cultural do pas. A primeira reao de quem conhece um pouco dessa tradio ser apontar para os efeitos do Iluminismo, introduzido em Portugal pela reforma da Universidade de Coimbra, promovida por Pombal em 1772, um sculo antes da criao da Escola de Minas. Apesar da distncia no tempo, convm examinar se esses efeitos perduraram o suficiente no Brasil para constituir tradio capaz de ter influenciado a criao da Escola. A reforma pombalina, como se sabe, mudou radicalmente os mtodos e o contedo da educao coimbr, anteriormente controlada pelos jesutas. A nfase do ensino deslocou-se da teologia e do direito civil e cannico para a histria natural, a botnica, a mineralogia, a qumica, a fsica, a matemtica. Apesar de ter sido severamente prejudicada pela reao, chamada de Viradeira, que se seguiu queda de Pombal, a reforma produziu um dedicado grupo de cientistas. Muitos desses cientistas eram brasileiros que atuaram no pas a partir da ltima dcada do sculo XVIII e estavam ainda presentes poca da Independncia. Entre seus principais representantes estavam Jos Bonifcio de Andrada e Silva e Manuel Ferreira da Cmara Bitencourt. O impacto da reforma sobre a matrcula de estudantes por cursos na Universidade de Coimbra pode ser visualizado na Tabela 1.

Tabela 1 Matrcula em Coimbra, por Cursos 1772/1773CURSOS Direito (Civil e Cannico) Teologia Medicina Matemtica Filosofia TOTAL 393 ANOS 1772 360 14 14 5 1773 531

62 162 78 833

Fonte BRAGA. Histria da Universidade de Coimbra, p. 465-527. Os dados para 1772 no esto completos. Para uma discusso do impacto da reforma sobre a elite poltica brasileira ver CARVALHO. A construo da ordem e Teatro de sombras, p. 55-82.

Segundo dados calculados por Maria Odila da Silva Dias, nos vinte anos que se seguiram reforma da Universidade, 430 brasileiros l se formaram em cincias, e apenas 262 em humanidades, sobretudo direito2. Lembre-se, em relao Tabela 1, que o que na poca se entendia por filosofia era antes histria natural, fsica, qumica, mineralogia, isto , cincias da natureza. Desta gerao de cientistas, muitos, sobretudo os brasileiros, foram enviados ao Brasil para estudar suas riquezas vegetais e minerais. Tinham instrues para mandar relatrios a Portugal, com sugestes sobre aproveitamentos que pudessem ser teis s combalidas finanas do Reino. Pombal foi o primeiro a envi-los colnia, em busca de riquezas explorveis3. Uma consequncia disso foi que a primeira atividade cientfica exercida no pas foi realizada por brasileiros, o que contrasta com o modelo geral de implantao da cincia moderna em colnias europias. Essa implantao se iniciou, em geral, pela2 3

Ver DIAS. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, n. 278, p. 116. Para um modelo de implantao da cincia ocidental, ver BASALLA. Science.

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atividade de cientistas, a maioria botnicos e mineralogistas, ou naturalistas, como eram chamados, pertencentes aos pases colonizadores que buscavam nas colnias riquezas explorveis. Em Minas Gerais, pela concentrao de recursos e de exploraes minerais, houve tambm urna concentrao desses cientistas. Ao fim do perodo colonial, havia 34 deles ocupando postos pblicos na Capitania. A liderana da Inconfidncia contou com a presena de alguns deles, que viam exatamente nas riquezas locais uma justificativa para a independncia. Como era de esperar, ao tirarem tal concluso, os cientistas perderam o apreo do governo colonial e sentiram o peso de sua coero4. O auge da atuao dos cientistas verificou-se durante o governo do Conde de Linhares, D. Rodrigo de Souza Coutinho, que se estendeu de 1796 a 1812. Na rea que mais nos interessa, D. Rodrigo, secundado por Jos Bonifcio e Manuel Ferreira da Cmara, tomou vrias medidas de importncia. A primeira foi enviar esses dois cientistas em longa viagem de estudos, de quase dez anos, por vrios pases da Europa. Levaram consigo cuidadosas instrues no sentido de se especializarem na teoria e na prtica da mineralogia e da siderurgia5. No incio do sculo XIX, os dois j eram os responsveis pela poltica mineralgica do reino, em Portugal e no Brasil. Jos Bonifcio, alm de dirigir a cadeira de mineralogia, para ele criada na Universidade de Coimbra, era o Intendente Geral das Minas e Metais do Reino. Manuel Ferreira da4 Vtima pouco conhecida da perseguio aos inconfidentes foi Jos de S Bittencourt, irmo de Manuel Ferreira da Cmara Bittencourt. Em memria dedicada a Jos Bonifcio, escrita logo aps a Independncia, Jos de S conta seus planos de cientista no Brasil: Quando deixei a Universidade, abrasado de um ardente desejo de ser til minha ptria, comprei livros, todos os vasos de vidro prprios para o estabelecimento de um laboratrio, todos os reagentes e mquinas que me eram necessrias para pr em exerccio o meu gnio, fazer a escola aos patrcios que dela quisessem utilizar. Mas veio a denncia de Silvrio dos Reis e homens inocentes nada temiam; mas porque uns diziam que sabia fundir o ferro, outros que era da sua arte a manipulao do salitre e o fabrico de plvora, operaes das suas faculdades, foram logo suspeitos de inconfidncia. Jos de S conseguiu escapar para a Bahia, onde foi preso, trazido a Minas, julgado e absolvido. Mas achou mais seguro voltar Bahia, onde reside h muitos anos, no dando exerccio algum a minha faculdade, e no querendo mesmo ser por ela conhecido, uma vez que era um crime o apelido de naturalista. Ver CMARA. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano II, fasc. 4, v. 2, p. 599-609. 5 As instrues acham-se reproduzidas em FALCO (Org.). Obras cientficas, polticas e sociais deJos Bonifcio de Anclrada e Silva, p. 169-170.

Cmara fora nomeado Intendente Geral das Minas na Capitania de Minas Gerais e no Serro Frio6. A pedido de D. Rodrigo, o naturalista mineiro Jos Vieira Couto, residente em Diamantina, escreveu, em 1799, uma Memria, em que sugeria a implantao de grandes usinas de produo de ferro, alm da construo de estradas para o escoamento da produo. Segundo Calgeras, essa Memria foi o documento bsico por trs da poltica siderrgica de D. Joo. J anteriormente, governadores portugueses da Capitania haviam sugerido medidas para a melhoria da minerao do ouro e para a implantao de fbricas de ferro. A Exposio sobre o estado de decadncia da Capitania de Minas Gerais, escrita em 1780 pelo governador D. Rodrigo Jos de Menezes, sugeria a criao de uma fbrica de ferro, pelo Estado ou por particulares, por razes estratgicas e econmicas. Segundo o Governador, o ferro era excessivamente caro em Minas porque todo ele era comprado aos suecos, hamburgueses e biscainhos. Em caso de guerra na Europa, haveria total interrupo da importao, paralisao da minerao do ouro e grandes perdas para a Coroa7. O prprio Jos Vieira Couto escreveu, em 1801, outra Memria em que tambm fala da decadncia total das minas: tudo so ruirias, tudo despovoao, devido ao alto preo do ferro, da roupa e dos alimentos, sujeitos importao e a altos impostos. Mas desta vez preferiu sugerir, como soluo para a crise, medidas fiscais e a promoo da agricultura8. Outro produto tpico da Ilustrao foi o bispo Azeredo Coutinho, ex-senhor de engenho. O bispo escreveu, em 1804, um livro sobre o estado das minas do Brasil em que repetia e desenvolvia as discusses anteriores. Aparecem de novo as convices iluministas quanto ao poder da cincia sobre as artes e a preocupao com o que se chamaria hoje de desenvolvimento econmico. O prprio livro Sobre a poltica siderrgica na poca, ver BARBOSA. Digesto Econmico, n. 144, p. 151161. Sobre Manuel Ferreira da Cmara, ver MENDONA. O Intendente Cmara. 7 Citado em CALGERAS. As minas do Brasil e sua legislao, p. 48-53. 8 COUTO. Memria sobre as minas da Capitania de Minas Gerais, escrita em 1801 pelo Dr. ... Nessa memria, Vieira Couto julga serem de chumbo as grandes jazidas de ferro de Minas, o que no depe muito em favor de sua cincia.6

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dedicado Cincia do Governo e a esta cincia que se ocupa essencialmente da prosperidade do Estado, da Felicidade dos Povos e dos verdadeiros meios de a procurar9. No exame da situao das minas, denunciava sua decadncia, em boa parte devida escassez do ferro, que era o elemento que mais pesava nos custos da minerao. Um quintal (60 kg) de ferro, segundo ele, custava na metrpole 3.800 ris e em Minas 19.200 ris. Como o ferro vem de fora, o mineiro portugus no faz mais do que trabalhar para o sueco e para o biscainho10. Como remdio, Azeredo Coutinho sugeria a explorao de outros minerais que no o ouro. Mas para isto seria necessrio conhecimento da mineralogia para os saber distinguir e extrair das suas minas. E perguntava-se como fazer progressos se nas serranias de Minas no haviaum s homem inteligente na mineralogia? Logo, absolutamente necessrio que se estabeleam escolas de mineralogia nas praas principais das Capitanias e especialmente na de So Paulo, Minas 11 Gerais, Gois, Cuiab, Mato Grosso .

interpretao de Maria Odila, a preocupao bsica dos ilustrados era integrar o Brasil na cultura ocidental traduzindo, aprendendo e, sobretudo, tentando aplicar. No foi por outro motivo que eles foram enviados Europa, aos Estados Unidos, s Antilhas para observar, anotar e depois adaptar ao Brasil e a Portugal, ou mesmo tentar solues originais12. Na rea do ensino da mineralogia deve-se notar a criao, em 1810, do Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, destinado a administrar as 3.500 amostras da chamada Coleo Werner, trazida para o Rio pelo Prncipe Regente. Para dirigir o Gabinete foi contratado o Baro de Eschwege, aluno de Werner, o primeiro sistematizador da mineralogia. Eschwege j trabalhara para o governo em Portugal em estabelecimentos metalrgicos. O gabinete foi transferido em 1811 para a Academia Militar e foi incorporado ao Museu Nacional em 1818. O prprio Museu, outra instituio que se destacou durante o sculo XIX na pesquisa cientfica, fora criado com a finalidade de propagar os conhecimentos e estudos das cincias naturais no Brasil. Nele foi criada uma Seo de Mineralogia e Geologia que, juntamente com uma cadeira na Escola Militar, foram os nicos instrumentos de ensino e pesquisa dessa cincia at a criao da Politcnica e da Escola de Minas, na dcada de 70. No que se refere a medidas de poltica mineral, o primeiro documento importante, aps o alvar de 1795 que liberou a produo de ferro em Minas, foi outro alvar de 1803, cuja redao teria sofrido influncia de Manuel Ferreira da Cmara. Seu objeto foi a criao da Real Junta Administrativa de Minerao e Moedagem na Capitania de Minas Gerais. Entre as medidas que a Junta deveria tomar a fim de melhorar a situao das minas e, portanto, do errio rgio, inclua-se o estabelecimento de escolas mineralgicas e metalrgicas, semelhantes s de Freyberg e Schemnitz, de que tm resultado queles pases to grandes e assinaladas vantagens13. O alvar de 1803 criou ainda o

tambm da poca de Pombal a criao da Academia Cientifica do Rio de Janeiro, que durou de 1772 a 1779, seguida pela da Sociedade Literria, que sobreviveu de 1786 a 1794. Ambas dedicavam-se a estudos prticos de agricultura, promoviam culturas novas, incentivavam produtores. D. Rodrigo mandou publicar e distribuir os 11 volumes do Fazendeiro do Brasil, coletnea de instrues prticas aos agricultores, organizada pelo botnico Frei Mariano da Conceio Veloso. Nos primeiros anos do sculo XIX, sobretudo durante o governo de D. Rodrigo, prevaleceu entre a elite governante portuguesa, com a franca colaborao de muitos cientistas brasileiros, uma forte mentalidade iluminista, caracterizada pela f no poder da cincia e pela preocupao pragmtica de aplicar os conhecimentos cientficos a bem da prosperidade do Estado e da felicidade dos Povos, no dizer de Azeredo Coutinho. Na prtica, mais a bem daquela do que desta. NaCOUTINHO. Discurso sobre o estado atual das minas do Brasil, p. 3. COUTINHO. Discurso sobre o estado atual das minas do Brasil, p. 2. A desigualdade nos preos do ferro no Brasil e na Europa seria salientada por Gorceix, 70 anos mais tarde. 11 COUTINHO. Discurso sobre o estado atual das minas do Brasil, p. 33. nfase de JMC.10 9

DIAS. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, p. 134. O alvar encontra-se no Arquivo Nacional, Cdice 952, v. 46. A citao est na pgina 3. Sobre a influncia de Manuel Ferreira da Cmara em sua elaborao, ver MENDONA. Revista da Escola de Minas, v. XXII, n. 6, p. 279.13

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cargo de Intendente Geral das Minas, para o qual D. Rodrigo nomeou logo a seguir Manuel Ferreira da Cmara. Ainda no perodo de D. Rodrigo verificaram-se as primeiras tentativas de implantar no pas a indstria siderrgica. Antes, s houvera os frustrados esforos de Afonso Sardinha, feitos em Sorocaba no sculo XVI. Pombal tentara retornar as experincias de Sorocaba, tendo instrudo nesse sentido o governador D. Luiz Antnio de Souza. Apesar dos esforos oficiais, no foi frente o empreendimento. Segundo o Governador, tudo isto se malogra pela pouca experincia do Mestre e pela falta de pessoas hbeis e curiosas, pois me no tem sido possvel descobrir sujeitos que, aplicando-se, conseguissem o descobrimento deste segredo, diz ele em carta de 1769 ao Conde de Oeiras, futuro Marqus de Pombal. O que mais valia ao Governador era a rude inteligncia de um negro que tirava melhores fundies que o Mestre14. Das tentativas da poca de D. Rodrigo, duas foram oficiais, a de Ipanema e a de Gaspar Soares, e uma particular, embora com o apoio pblico, a de Congonhas do Campo. Para Ipanema, foram trazidos, em 1810, tcnicos suecos, dirigidos por Hedberg. A experincia fracassou devido incompetncia dos suecos. S em 1814, j sob a direo de Varnhagen, que comearam a surgir resultados. Varnhagen construiu dois altos-fornos que em 1818 produziram fonte em condies industriais. A histria da fbrica de ferro de Ipanema atravessou todo o sculo XIX, com altos e baixos. Fechada em 1860, foi reaberta por ocasio da Guerra do Paraguai. Em 1895, foi fechada em definitivo por causa dos grandes prejuzos em que incorria. Segundo Calgeras, nos oito ltimos exerccios antes de ser fechada, a fbrica dera prejuzo de mais ou menos 750 contos de reis15. poca de seu fechamento, graas a anlises feitas na Escola de Minas e estudos de especialistas, evidenciara-se a presena de titnio e fsforo no minrio por ela

utilizado. Tal presena fora uma das principais causas das constantes dificuldades l encontradas para a reduo do minrio. Uma carta rgia de 1808, assinada por D. Rodrigo, encarregou Manuel Ferreira da Cmara de construir uma usina estatal de ferro no morro do Gaspar Soares, em Minas Gerais. Cmara tentou pela primeira vez no Brasil a reduo do minrio pelo mtodo indireto de altosfornos. Aparentemente, a tentativa no foi muito bem-sucedida, tendo seu alto-forno produzido apenas 300 arrobas de fonte. Cmara construiu ento fornos suecos com o auxilio do tcnico alemo Sch5newolf, cedido de m vontade por Eschwege. Foi provavelmente o ferro produzido nesses fornos que em 1815 foi transportado em caravana para o arraial do Tijuco em meio a grandes festividades em homenagem ao Intendente. Voltando Schnewolf Alemanha, o empreendimento foi abandonado, e em 1830 j quase nada existia em Gaspar Soares16. A tentativa de maior xito foi a de Eschwege em Congonhas do Campo. Optando por empresa particular, encorajada por D. Rodrigo e com a participao acionria do governador da Capitania, D. Francisco de Assis Mascarenhas, Eschwege deu rpido inicio aos trabalhos, numa corrida para produzir ferro antes de Ipanema e de Gaspar Soares. Escolhendo o mtodo direto, Eschwege adaptou o processo dos cadinhos trazido pelos escravos, aperfeioando-o pela introduo de uma trompa hidrulica para injeo de ar no forno. Calgeras considera esta inovao uma verdadeira revoluo tecnolgica, que rapidamente se espalhou por Minas Gerais. A fora hidrulica foi tambm usada para movimentar os martelos ou malhos usados para a expulso das escrias. Antes trabalhava-se com foles e martelos manuais de muito baixo rendimento. Em 1812, conseguindo bater Cmara, Eschwege produziu ferro em seus fornos, para o que contou com a preciosa colaborao de Schi5newolf, depois requisitado por Cmara.

Citado em CALGERAS. As minas do Brasil e sua legislao, p. 43. O segredo a que se refere o conhecimento do ponto em que se deve queimar a pedra para a boa produo do ferro. 15 Sobre a experincia de Ipanema, ver CALGERAS. As minas do Brasil e sua legislao. Ver tambm DUPR. Anais da Escola de Minas de Ouro Preto, n. 4, p. 51-90.

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Sigo aqui principalmente CALGERAS. As minas do Brasil e sua legislao. O autor no tem boa imagem da competncia de Cmara como metalurgista, ao passo que a tem muito boa de Eschwege. Os dois, alis, mantinham constante competio, cada qual tentando provar sua maior habilidade na produo do ferro. As festas do Tijuco, por ocasio da chegada das primeiras barras de ferro de Gaspar Soares, em 1815, duraram quatro dias. Sua descrio, transcrita do INVESTIGADOR portugus, foi publicada na Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano 7, v. 7, fasc. 1/2, p. 13-21.

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Um depoimento de Jos de S Bitencourt fala da rpida difuso da tcnica da trompa hidrulica, cuja introduo, em Minas Gerais, ele atribui ao irmo. Diz ele: todo aquele que pode levantar a sua trompa a fabrica, e mais adiante:No se pode meter mais a ridculo aos fabricantes de ferro da Europa do que o que vi no Stio do Campeble onde um crioulo alfaiate tinha uma pequena trompa muito malconstruda, com o cano condutor do ar para a fornalha de embaba, com tubo que introduzia o ar no algaraviz da forja de taquara e, deste modo, fazia o seu ferro muito 17 bom a quem comprei oito arrobas .

no foi captado pelo taqugrafo, de modo que s nos restou a emenda que dizia:Que haver na Provncia de Minas Gerais uma academia montanistica, na qual se ensinaro as seguintes doutrinas: 1. a qumica em geral; 2. a docimasia e metalurgia; 3. a mineralogia compreendendo a orictognosia, a geognosia e a teoria dos files e mais formaes metlicas; 4. a geometria e trigonometria, como os primeiros elementos do clculo, aplicando todos estes conhecimentos geometria subterrnea, mecnica e hidrulica; 5. a arte de edificar as minas com segurana; 6. a agricultura e a arte 18 veterinria .

A ltima experincia feita no perodo colonial, j aps a morte de D. Rodrigo, se deveu a um particular, aparentemente sem nenhuma ligao com o governo. Trata-se da iniciativa de Joo Antnio de Monlevade, grande mineralgico, grande qumico, alm de outros conhecimentos de fsica, matemtica e literatura, no dizer de Jos de S Bitencourt. Monlevade chegou a Minas em 1817, onde construiu um alto-forno em Caet e, posteriormente, uma forja catal. Esses estabelecimentos desapareceram aps sua morte, surgindo em seu lugar uma forja do tipo italiano que tambm influenciou outras fundies. At o ltimo quartel do sculo, predominou em Minas o mtodo dos cadinhos, reformado por Eschwege, e o mtodo italiano. Nenhuma outra inovao foi feita por iniciativa oficial ou particular. A Independncia trouxe preocupaes polticas imediatas para o novo governo. Apesar da participao nos acontecimentos, pelo menos no incio, de dois mineralogistas e cientistas, Jos Bonifcio e seu irmo Martim Francisco, outras eram as prioridades. O prprio Jos Bonifcio se dedicou em tempo integral construo do novo pas, deixando de lado a pesquisa cientfica. As duas ltimas manifestaes em favor do desenvolvimento do ensino tcnico na rea de mineralogia se deram na Assemblia Constituinte de 1823 e no Conselho da Provncia de Minas em 1832. Na Constituinte, ao ser discutida a criao de universidades, Manuel Ferreira da Cmara apresentou emenda que previa o estabelecimento, em Minas, de uma escola mineralgica. Seu discurso17

A Constituinte foi dissolvida e nada se fez. Quando da discusso da criao dos cursos jurdicos em 1827, ningum mais se lembrou da academia montanstica. Somente no Conselho Geral da Provncia de Minas em parte por no ter sido a Provncia, uma das mais importantes do Imprio, aquinhoada com um curso superior continuou a discusso em torno do assunto. As discusses, que contaram com a participao decisiva de Bernardo Pereira de Vasconcelos, resultaram num projeto que foi aprovado pela Assemblia Geral Legislativa e transformado em lei em 1832. Essa lei considerada o documento oficial de criao da Escola de Minas de Ouro Preto, efetivada 43 anos depois19. (Ver Apndice) A justificativa do Conselho Geral para o projeto de lei ainda refletia as preocupaes do perodo anterior com o estado de decadncia das minas e com a necessidade de desenvolver a cincia e a tcnica como soluo para o problema. Dizia ela:Considerando que a arte das minas consiste em muitos conhecimentos cientficos e especialmente em mineralogia, qumica e mecnica, e convencido de que o estado estacionrio da minerao18 ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL. Assemblia Constituinte, 1823, t. VI, p. 134. O ponto mais discutido pelos constituintes foi a localizao das universidades ou escolas. No esforo de levar para sua provncia o benefcio, os constituintes recorriam a argumentos notveis. Um deputado pela Paraba apontou como razo para instalar a universidade em sua terra o fato de l no haver nem mesmo um teatro que pudesse distrair os estudantes. 19 Ver COLEO DE LEIS DO IMPRIO DO BRASIL, 1832, p. 98-100. Ver tambm os RELATRIOS DO CONSELHO GERAL DA PROVNCIA, 1830, p. 102-103 e de 1832, p. 116-117; e VEIGA. Ephemerides mineiras (1664/ 1884), v. I, p. 189-190.

CMARA. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, p. 607.

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nesta Provncia provm da falta de conhecimentos destas cincias, das quais, no porvir, poder ela tirar urna fonte perene de riqueza, por isto que as suas montanhas encerram incalculveis produtos do reino 20 mineral, os quais se acham hoje desprezados, resolveu etc .

A organizao dada por Gorceix Escola de Minas, intencionalmente ou no, apresentava vrias semelhanas com as indicaes da lei de 1832, que previa um curso preparatrio, exame de entrada, curso de quatro anos, ano letivo de setembro a maio, com quatro meses para excurses e trabalhos prticos, e a contratao de professores estrangeiros para as cadeiras novas. Quase tudo isso se concretizou na Escola de Minas. Salvas algumas menes espordicas nas mensagens dos presidentes da Provncia pedindo sua efetivao, a lei de 1832 foi a ltima manifestao importante antes da criao da Escola em 187521. Na prtica, cessaram tambm os esforos oficiais para implantar a siderurgia. O ensino de mineralogia reduziu-se cadeira da Escola Militar que servia para fornecer os diretores de Ipanema, todos militares , e a pesquisa limitou-se aos poucos trabalhos da Seo de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional. Teriam mudado os homens ou teria mudado o pas? Mudaram os dois. preciso no esquecer que a reforma pombalina do ensino era parte de um esforo mais amplo de reerguer a economia portuguesa, em grandes dificuldades por causa da decadncia das minas de ouro, das flutuaes nos preos do acar e da dependncia em relao Inglaterra22. A nfase na cincia natural, na botnica, na mineralogia; os relatrios pedidos aos governadores; as memrias solicitadas aos cientistas; as medidas prticas de difuso do conhecimento tcnico via sociedades cientficas e publicao de livros do tipo Fazendeiro do Brasil; tudo isto tinha a finalidade de encontrarCitado em OLINTO. Anais da Escola de Minas, n. 7, p. 32-34. Ver, por exemplo, o relatrio apresentado ao Presidente Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, em 1855, pelo vice-diretor da Instruo Poltica, Antnio Ribeiro Bhering, em que dito que, urna vez acalmadas as dissenses internas, e estando crescendo as receitas pblicas, era hora de dar a Minas o que outras provncias j tinham obtido: uma Academia. In: RELATRIO DO PRESIDENTE DA PROVNCIA, 1855, p. 5. 22 Sobre as razes econmicas das polticas pombalinas, ver, por exemplo, CARNAXIDE. O Brasil na administrao pombalina (economia e poltica externa).21 20

alternativas econmicas para o Reino. A essas medidas se juntaram outras, como a criao de companhias de comrcio, a tentativa de desenvolver a siderurgia, o combate aos jesutas e nobreza, a luta contra o domnio ingls. A preocupao com a aplicao dos conhecimentos, to em evidncia entre os cientistas da poca, tinha um alvo muito claro e era, certamente, motivada pelos interesses da economia portuguesa. Como boa parte das receitas do Reino provinha da extrao do ouro, nada mais razovel do que a direo dos esforos dos cientistas para as possibilidades de revitalizar a minerao ou encontrar para ela um substituto. A prpria crise na minerao do ouro, conforme o relatrio j citado de D. Rodrigo Jos de Menezes, chamava a ateno para a necessidade de introduzir a siderurgia, a fim de baratear os custos da atividade. possvel que a preocupao tenha pesado na deciso de enviar Jos Bonifcio e Manuel Ferreira da Cmara Europa para se especializarem em mineralogia e metalurgia. Certamente, pesou nas medidas concretas tomadas no Brasil em relao siderurgia. At a Independncia, a situao no melhorara para Portugal, pois no melhorara para os produtos bsicos da colnia mais rica. O ouro continuava minguando e os preos do acar no eram bons. Continuava, por isso, a busca de alternativas que os lderes mais influenciados pelo esprito ilustrado acreditavam poder vir da aplicao do conhecimento cientfico. Poder-se-ia perguntar aqui pelas razes do fracasso das iniciativas siderrgicas da poca, urna vez que estavam presentes a demanda econmica e a convico da necessidade de uma abordagem tcnica do problema. As causas so vrias. Podem citar-se o curto tempo de experincias (apenas uma dcada), dificuldades que as prprias cincia e tcnica de ento no poderiam resolver, como as da qualidade do minrio de Ipanema; problemas de tcnica produtiva (a opo por pequenos fornos e pelo mtodo direto adotada por Eschwege, por exemplo, parece que seria a mais acertada para a poca, em comparao com os altos-fornos tentados por Cmara); a prpria incompetncia tcnica das pessoas envolvidas; e problemas econmicos derivados da dificuldade de competir com o produto europeu mais barato. De qualquer modo, como vimos algo restou de importante em Ipanema e nas dezenas de pequenas forjas espalhadas por Minas Gerais que, bem ou mal, contriburam para reduzir a dependncia da27

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importao do ferro e serviram de base para os desenvolvimentos do final do sculo, j com nova tcnica e urna economia em transformao. Seja como for, a situao predominante poca da Independncia sofreu grandes mudanas que afetaram a demanda por medidas econmicas na rea mineira e metalrgica e a oferta de conhecimentos nestas reas e na rea das cincias naturais em geral. Quanto ao primeiro ponto, o processo da Independncia e, posteriormente, as lutas polticas da Regncia no permitiam maior ateno ao desenvolvimento de urna alternativa econmica que se tinha mostrado custosa e de resultado duvidoso pelas experincias iniciais. Alm disso, os oramentos na poca eram deficitrios. O incio do Segundo Reinado trouxe reduo dos conflitos internos e folga no oramento, graas diminuio dos gastos com as foras armadas. Parecia que o pas entraria num perodo de certa tranquilidade. Mas nesse momento a alternativa econmica to procurada desde Pombal fazia sua entrada triunfal no pas: o caf assumia o primeiro lugar na pauta de exportao. Ele j conquistara a Provncia do Rio de Janeiro, sede do governo e terra de alguns dos principais polticos responsveis pela reao centralizadora que deu base ao Segundo Reinado. Nem mesmo um homem ligado minerao, autor do projeto que levou lei de 1832 e autor tambm, ou inspirador, das principais leis da centralizao, Bernardo Pereira de Vasconcelos, se lembrou mais de tentar promover o ensino ou a prtica da mineralogia e da siderurgia23. Nas prximas dcadas, o destino do pas estaria ligado economia do caf. Paralelamente a essa transformao, mudaram tambm os homens. A gerao ilustrada desapareceu ao final do Primeiro Reinado. Houve um grande lapso de tempo at que outra gerao, chamada por alguns tambm de ilustrada, dominasse o cenrio cultural do pas. H quem discorde dessa afirmao. Maria Odila, por exemplo, sustenta ter havido uma continuidade do Iluminismo, Segundo Reinado adentro, atravs da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, criada em 1827, e da publicao dO auxiliador da indstria nacional. A ilustraoA pouca ateno do governo de Minas indstria siderrgica mostrada em IGLSIAS. Poltica econmica do governo provincial mineiro (1835-1889), p. 90-118.23

teria sobrevivido at fundir-se com a corrente positivista do ltimo quartel do sculo, que retomou a bandeira ilustrada do cientificismo e do pragmatismo24. A tese duvidosa. Roque Spencer Maciel de Barros exagera ao considerar a renovao intelectual, que teve incio ao redor de 1870, como a ilustrao brasileira, rplica do Iluminismo europeu do sculo XVIII. Ele se esquece do Iluminismo de fins do sculo XVIII e comeos do sculo XIX, estudado por Maria Odila. Mas os dois movimentos foram distintos, sem a continuidade entre um e outro, pretendida por Maria Odila. Uma indicao da ruptura a ausncia de cientistas no perodo intermedirio e, portanto, de produo cientfica. A ausncia era inevitvel, uma vez que a educao superior implantada pelo Imprio no era de molde a formar cientistas. O predomnio era das escolas de direito, mais prximas da Coimbra prpombalina. As escolas de medicina, dada a natureza de seu ensino, s excepcionalmente poderiam produzir cientistas. E foi, de fato, necessrio surgir o Instituto Oswaldo Cruz para iniciar a pesquisa biolgica em escala significativa. Restava a Escola Militar, posteriormente Escola Central, como o nico centro de treinamento cientfico nas cincias exatas, na engenharia e nas cincias naturais. No entanto, a Escola Militar tinha pouca influncia fora do Exrcito, e s raramente seus ex-alunos atingiam posio de importncia poltica, como foi o caso do Visconde do Rio Branco. Como instituio de pesquisa propriamente dita, restava apenas o Museu Nacional. No entanto, o Museu passou tambm por um longo perodo de estagnao e, somente aps o incio da nova ilustrao, com a incorporao de vrios pesquisadores estrangeiros, que recobrou dinamismo. Na rea geolgica e mineralgica, por exemplo, o nico pesquisador a se salientar foi o Baro de Capanema, que trabalhava na Seo de Mineralogia e Geologia do Museu e lecionava na Escola Central. A grande obra de geologia at a criao da Comisso Geolgica do Imprio continuou sendo o Pluto brasiliensis, de Eschwege, publicada em 183325.

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DIAS. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, p. 163. Ver, sobre o tema, LEINZ. A Geologia e a Paleontologia no Brasil, p. 243-263.

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A descontinuidade pode ser verificada tambm na formao dos polticos da poca. A Tabela 2 indica a formao dos ministros de Estado. V-se que a gerao de polticos da independncia ainda inclua um bom nmero de cientistas remanescentes da reforma pombalina. Seu nmero reforado pela substancial presena de militares, na sua maioria formados no Colgio dos Nobres, instituio criada por Pombal em 1761 para treinar os filhos da nobreza, tambm com muita nfase em cincias exatas e naturais. Contando tambm os militares, pode-se ver que quase a metade dos ministros do Primeiro Reinado tinha formao em cincias, a outra metade, em direito. Em contraste, no ltimo perodo, de 1871 a 1889, os civis formados em cincias tinham desaparecido totalmente. Restavam apenas os militares, mas em nmero bem menor e certamente com formao menos apurada do que a do Colgio dos Nobres. O mesmo quadro poderia ser obtido para senadores do Imprio. Tabela 2 Tipo de Formao dos Ministros, por Perodos 1822/1889FORMAO PERODOS 1822/31 1831/40 1840/53 1853/71 1871/89 56,67 85,00 77,09 85,73 51,29 20,51 28,20 0,00 0,00 100,00 (N=39) 13,33 20,01 6,66 5,00 10,00 0,00 2,08 18,75 2,08 0,00 7,93 6,34 0,00 100,00 (N=63) TOTAL 72,50 7,00 16,50 3,50 0,50 100,00 (N=200)

engenharia de pontes e caladas. Tais necessidades eram inicialmente supridas pela Escola Militar, posteriormente pela Escola Central. O aumento da demanda de engenheiros civis levou transformao da Escola Central em Politcnica, em 1874. A agronomia s veio mais tarde. Em Minas Gerais, os nicos estabelecimentos que requeriam engenheiros no civis eram as mineraes pertencentes a estrangeiros, especialmente ingleses, que no utilizavam tcnicos brasileiros. A produo de ferro se dava em umas 75 pequenas fbricas, que utilizavam cadinhos ou forjas italianas, sem capital para ampliar a produo e introduzir novas tcnicas26. Era esse, simplificadamente, o panorama da oferta e da demanda de tecnologia no Brasil em torno de 1870. Quase o oposto daquele verificado no incio do sculo.SINAIS DE MUDANA

Direito Cincias Exatas Militar Medicina Religiosa TOTAL

O quadro apresentado acima levaria a crer na inexistncia de qualquer motivao, ideolgica, cultural ou econmica, para a criao da Escola de Minas. No bem assim. No mundo das ideias, algumas mudanas j se faziam sentir, sobretudo no que se refere aos estudos geolgicos. O fato mais importante talvez tenha sido a visita de Agassiz acompanhando a expedio Thayer em 1865. A fama desse sbio despertou interesse pelas pesquisas geolgicas, sobretudo por parte do Imperador, conhecido entusiasta da cincia, no obstante as observaes desairosas feitas pelo prprio Agassiz em relao aos cientistas brasileiros e aos brasileiros em geral. O mais importante da expedio, no entanto, foi a presena de Frederick Hartt, gelogo de Cornell, que regressou ao Brasil em 1870 com a primeira expedio Morgan, para continuar os estudos iniciados em 1865. Hartt voltou ainda outra vez e foi encarregado, em 1875, de organizar a Comisso Geolgica do Imprio. A Comisso foi extinta dois anos depois pelo recm-empossado gabinete liberal, cujo presidente, o visconde de Sinimbu, se recusou a receber Hartt para discutir o assunto. A razo apresentada para a extino foi a escassez de26

3,33 0,00 0,00 100,00 100,00 100,00 (N=30) (N=20) (N-48)

Fonte CARVALHO. A construo da ordem, p. 4.

Tudo indica, portanto, que houve corte entre um perodo e outro. A gerao ilustrada desapareceu e foi substituda por magistrados e advogados. A economia passou a girar em torno do caf, inclusive a de Minas Gerais. O tipo de formao tcnica exigido por essa economia restringia-se engenharia civil e militar e agronomia. Na rea civil, precisava-se de construtores de estradas de ferro e da clssica30

Existem vrias descries da situao da indstria do ferro em Minas por essa poca, algumas j feitas por professores e alunos da Escola de Minas. Ver, por exemplo, SENA. Anais da Escola de Minas, n.1, p. 106-143; OLIVEIRA. Anais da Escola de Minas, n. 5 e 6, p. 157-112, p. 14-81; THIR. Lindustrie du fer dans la Province de Minas Gerais.

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recursos. Hartt morreu em 1876, no Rio de Janeiro, de febre amarela. Apesar da curta existncia, a Comisso reuniu um grupo de excelentes gelogos, quase todos estrangeiros. Os mais importantes foram Orville A. Derby, John Casper Branner e R. Rathbun. Desses pesquisadores sairia a maior parte da produo cientifica brasileira na rea da geologia at o final do sculo, realizada, sobretudo, no Museu Nacional. A extino da Comisso indica que os governantes no valorizavam os estudos geolgicos ao ponto de comprometer recursos oramentrios para sua promoo. No entanto, algo estava, de fato, mudando no pas, conforme registrou Derby em precioso documento escrito em 1883. Segundo o norte- americano, os ltimos 10 ou 15 anos testemunharam um notvel despertar no Brasil para a importncia da pesquisa cientifica27. Tratava-se, para ele, de nova era, da qual os brasileiros no pareciam estar ainda bem conscientes e da qual a criao da Escola de Minas era parte importante. Em sua opinio, as causas da renovao eram o aumento das comunicaes com outros pases, as novas energias geradas pela Guerra do Paraguai, a visita de Agassiz e, sobretudo, as visitas do Imperador aos Estados Unidos e Europa. Nessas viagens, o Imperador entrara em contato com cientistas e instituies de pesquisa e regressara com noo mais clara sobre o que devia ser encorajado e promovido em seu prprio pas28. A reforma do Museu Nacional e do Observatrio Nacional, a criao da Escola de Minas e da Politcnica, as tentativas de reforma das Escolas de Medicina e mesmo pesquisas feitas por particulares em seus laboratrios eram os principais indicadores da renovao em andamento. A mudana foi reforada pelo movimento que Roque Spencer chamou de ilustrao brasileira e que, segundo ele, teria tido incio em torno de 1868 e duraria at a Primeira Guerra. Os lderes dessa ilustrao estavam preocupados com problemas de natureza mais filosfica do que cientfica. Mas sua preocupao com a renovao do ensino, a nova confiana no valor da cincia e a quebra do domnio do27 DERBY. Science, v. 1, n. 8, p. 211. A autoria do artigo por Derby foi estabelecida por GONSALVES (Org.). Orville Derbys studies ou the Paleontology of Brazil: selection and coordination of this geologists out of print and rare works, p. 154. 28 DERBY. Science, p. 212.

ecletismo catlico no pensamento foram elementos importantes para o renascimento cientfico. A ao prtica dos ilustrados foi, no entanto, limitada por sua viso equivocada sobre a maneira de promover as reformas. Insistiram na faculdade livre, na frequncia livre e na livredocncia. As medidas foram teis para quebrar a rigidez anterior, elas no produziram os efeitos desejados. A retirada do poder pblico do ensino, uma reivindicao dos positivistas, se efetivada, seria desastrosa nas circunstncias em que se achava o pas. Na pesquisa cientfica, foi exatamente o apoio governamental que garantiu o que de bom se fez29. Quanto frequncia livre, ela foi um dos inimigos que Gorceix teve de enfrentar para preservar o tipo de ensino que desejava implantar em Ouro Preto. A atmosfera de renovao pode ter afetado a deciso de criar a Escola, mas essa ltima foi, ela prpria, um captulo importante do renascimento. A situao do ensino e da pesquisa no pas, como se ver adiante, foi um dos principais obstculos implantao de uma instituio renovadora como queria Gorceix que fosse a sua. Foi nessa conjuntura de pequena demanda social pela engenharia de minas e metalrgica, de interesse apenas incipiente pelos estudos cientficos, centrado, sobretudo, no Imperador, que Gorceix foi convidado para criar no Brasil o que ele quis chamar no incio de uma Escola de Mineiros.

CRIAOA iniciativa foi toda de D. Pedro II. Em viagem Europa, entre maio de 1871 e maro de 1872, o Imperador entrou em contato com Auguste Daubre, seu colega na Academia de Cincias de Paris e diretor da Escola de Minas, tambm de Paris. Pediu-lhe um documento sobre a melhor maneira de conhecer e explorar as riquezas minerais no Brasil. Daubre sugeriu a elaborao da carta geolgica e o ensino da geologia por professores estrangeiros ou por brasileiros treinados no exterior. De volta ao pas, em carta pessoal de 6 de julho de 1872, enviada por intermdio do ministro do Imprio, Joo Alfredo Correa de Oliveira, um pernambucano formado em direito, o Imperador convidou29

Ver BARROS. A ilustrao brasileira e a ideia de universidade, passim.

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Daubre a visitar o Brasil. Com a visita, disse na carta, no somente o pas ganhar com o maior aproveitamento de suas minas; as cincias naturais, em geral, dela recebero forte impulso. E traindo talvez sua maior preocupao com a cincia do que com a economia, acrescentou: Embora simples amador, sabeis que lhes dedico [s cincias naturais] afeio30. Daubre, recm-nomeado diretor da Escola de Minas de Paris, no quis abandonar o posto. Ofereceu, em compensao, seus servios no sentido de procurar algum que pudesse encarregar-se da tarefa. Mas s em 29 de dezembro de 1873 conseguiu anunciar que uma das pessoas que poderiam convir encontra-se momentaneamente na Grcia, onde faz muito boas observaes. Em 28 de maro de 1874, de volta da Grcia, Gorceix assinou em Paris o contrato para organizar no Rio de Janeiro o ensino da mineralogia e da geologia, com o salrio de 8:000$000 anuais. Em fins de julho de 1874 chegou ao Rio, com 32 anos incompletos.CLAUDE HENRI GORCEIX O melhor da seo de fsica: muito fogo e zelo. Pasteur

Achille Delesse, que era tambm professor da Escola de Minas de Paris e, como Daubre, membro da Academia de Cincias, foi nomeado agreg-prparateur de geologia e mineralogia na Escola Normal. Nessa Escola ele fora aluno de Pasteur, sobre quem fizera muito boa impresso, como indica a citao acima31. Dois anos depois, seu esprito de aventura foi satisfeito com a ida para a Escola Francesa de Atenas, para onde eram anualmente enviados os melhores entre os diplomados pela Escola Normal, Na Grcia, dedicou-se principalmente ao estudo do vulcanismo. Em 1870, voltou Frana para lutar na guerra contra a Prssia, mas regressou logo Grcia, onde retomou o estudo do vulco Nisiros, que dera sinais de erupo. Em 1874, voltou Frana e publicou vrias memrias nos Anais da Escola Normal e nos Anais de Qumica e Fsica de Paris. Foi ento que recebeu o convite para vir ao Brasil e o aceitou. A estada na Grcia serviu para revelar seu temperamento arrebatado, sua resistncia fsica e seu entusiasmo pelo trabalho. Um historiador da Escola Francesa de Atenas deixou dele essas impresses: Uma figura curiosa... Henri Gorceix deveria ter vivido poca do Diretrio e deveria ter participado da expedio ao Egito. Ele nasceu para observar a natureza sob o troar dos canhes. Tal esprito se reflete na carta que escreveu ao irmo antes de viajar para o Brasil, pedindolhe que lhe remetesse o fuzil de viagem: Ele voltou do fundo da cratera do Nisiros; ele retornar a salvo do Brasil! E acrescentou uma das poucas confisses mais ntimas que deixou escapar em sua correspondncia: Sonhei com um pouco de glria, com um pouco de barulho ao meu redor: carrego o peso do meu orgulho!32. Esse jovem entusiasmado pelo trabalho e pela cincia, cujo temperamento os brasileiros considerariam rude, chegou ao Brasil em 1874 para dar incio a uma tarefa que lhe consumiria 17 dos anos mais produtivos da vida.

consensual entre os estudiosos da Escola da Minas, e entre os que de alguma forma a conheceram, a opinio de que ela em grande parte foi Gorceix, tanto pela organizao que ele lhe deu, como, sobretudo, pelo esprito que lhe imprimiu. importante ento dar uma ideia, mesmo que ligeira, de quem era esse cientista e da formao que trouxe para o Brasil. Filho de pequenos proprietrios rurais, Gorceix ficou rfo de pai aos 9 anos de idade. Com auxlio de uma bolsa do governo (este fato teve influncia na organizao da Escola), frequentou o Liceu de Limoges e, ainda com a bolsa, entrou para a Escola Normal Superior de Paris em 1863, na seo de cincias. Licenciou-se em cincias fsicas e matemticas em 1866. No ano seguinte, por sugesto de seu professorA carta vem reproduzida em LIMA. D. Pedro II e Gorceix. A fundao da Escola de Minas de Ouro Preto, p. 247.30

Ver LISBOA. Revista da Escola de Minas, ano XIII, n. 4, p. 19. Ver tambm sobre Gorceix e a criao da Escola: GORCEIX. Revista da Escola de Minas (daqui para a frente REM), v. XX, n. 5, p. 1-6; MORAES. REM, ano XIX, n. 2 a 6, p. IX a XXVI; LIMA. D. Pedro II e Gorceix, p. 23-26. 32 LISBOA. REM, p. 9-21.

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Sua formao cientfica era slida e possua j boa experincia de trabalho de campo. Daubre o chama de jovem sbio. A Escola Normal em que se formou fora criada pela Conveno em 1794 e, junto com a Politcnica, renovara o ensino na Frana, alm de ter sidoo estabelecimento de ensino superior que exerceu maior influncia na formao sistemtica das elites intelectuais francesas at 1903, quando se transformou na Escola Pedaggica de Paris. Quando Gorceix a cursou, de 1863 a 1866, ela se encontrava no apogeu da 33 eficincia e reputao .

Gorceix tambm trabalhou na Itlia com Fouquet, continuador de Des Cloiseaux no campo da fsica mineral e um dos iniciadores da petrologia. A geologia vivia na Frana um perodo de grande dinamismo. Alguns cientistas franceses comeavam a desafiar o neptunismo de Werner e a teoria das crateras de levantamento de von Bush, os dois alemes que tinham dominado o pensamento geolgico francs at a segunda metade do sculo XIX. Entre os contestadores dessas teorias, estavam Fouquet, com quem Gorceix trabalhou na Itlia, numa rpida fugida da Grcia, Delesse, professor de Gorceix na Escola Normal, e Daubre, muito chegado a Delesse e amigo tambm de Gorceix. Arrojado Lisboa conclui sua anlise da formao de Gorceix dizendo que, ao chegar ao Brasil, era ele um completo qumico e mineralogista, e um consumado gelogo, colaborador da mais adiantada cincia de seu tempo34.A CRIAO DA ESCOLA

O ensino era gratuito e os alunos do primeiro ano (100 vagas) eram selecionados entre os melhores egressos dos liceus. Os bacharis dos liceus, candidatos a ingressar na Escola Normal, tinham que se submeter a aulas de reforo em matemtica e outras cincias, antes de tentar o concurso. Os cursos duravam trs anos. Uma srie era dedicada s letras, outra s cincias fsicas e matemticas. De seus bancos saram nomes como Victor Cousin, Pasteur, Lemoine, Levasseur, Georges Dumas, Henri Bergson, Pierre Dnis, Langevin, Picarei, Halvy e outros. Na poca de Gorceix, a instituio possua excelentes laboratrios, onde trabalhavam Pasteur, Delesse, Saint-Claire Deville entre outros. Igualmente seletiva era a Escola Francesa de Atenas, que s recrutava os melhores professores entre os de menos de 30 anos, para um estgio de dois a trs anos de aperfeioamento e pesquisa. Acrescente-se que a Frana da poca de Gorceix estava na fronteira da cincia em algumas reas bsicas. O prprio Gorceix era ligado por parentesco ao qumico Gay-Lussac. O laboratrio de qumica orgnica da Escola Normal, quando Gorceix a cursou, era dirigido por Pasteur, o de qumica inorgnica seria logo depois dirigido por SaintClaire Deville, os dois maiores qumicos da Frana de ento. Gorceix trouxe para o Brasil o que de melhor havia na qumica europia do momento. Tambm em fsica sua formao era excelente. Foi aluno de Des Cloiseaux, um dos pioneiros do que seria a petrologia, desenvolvida depois pelo alemo Rosenbuch. Segundo Arrojado Lisboa, que me serve de fonte nessa parte, Gonzaga de Campos reconheceu no ensino de Gorceix, em Ouro Preto, a clarividncia em preparar os alunos para o futuro uso das tcnicas microscpicas.33

Logo aps sua chegada, em julho de 1874, Gorceix partiu, acompanhado por Ladislau Neto, diretor do Museu Nacional, para uma excurso ao Rio Grande do Sul, no se sabe bem por qu. De volta ao Rio de Janeiro, comeou a organizar um laboratrio de mineralogia e geologia, tarefa para a qual contou com o auxlio de um dos futuros professores da Escola de Minas e seu sucessor na direo, Archias Eurpedes da Rocha Medrado. S em fins de 1874 foi enviado a Minas Gerais pelo ministro do Imprio, para escolher um local para a instalao de uma escola de minas. Em julho de 1875, submeteu ao governo o relatrio indicando o local e sugerindo o regulamento do estabelecimento. Esse relatrio contm suas ideias bsicas sobre o que se deveria fazer. Pode-se dizer que at 1891, quando, por razes polticas, teve que abandonar o pas, ele nada mais fez do que defender as ideias nele expostas, cedendo quando necessrio, mas insistindo sempre nos princpios fundamentais.

MORAES. REM, p. X.

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LISBOA. REM, p. 29.

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Partindo da necessidade do controle do Estado sobre as riquezas minerais e da importncia do desenvolvimento da minerao e da metalurgia, o futuro diretor colocou como objetivo bsico da instituio a ser criadafornecer administradores para a explorao das minas e para as empresas metalrgicas e engenheiros empregados pelo Estado nas diversas provncias do Imprio para se encarregarem das exploraes 35 geolgicas e da fiscalizao dos trabalhos de minerao .

que, em primeiro lugar, havia ignorncia do que fosse o ensino de Sainttienne. Em segundo lugar, no era absolutamente essa sua inteno. Queria formar engenheiros de minas e no apenas tcnicos ou mestres mineiros36. Alm desses dois modelos, Gorceix tinha diante de si, inevitavelmente, o exemplo da Escola Normal, pelo menos para a parte referente aos mtodos de ensino. Segundo Arrojado Lisboa, a prtica e os mtodos de ensino introduzido em Ouro Preto vieram da Escola Normal Superior e no de Saint-tienne37. Quanto ao contedo do ensino, com a evoluo da Escola e a introduo de mais anos de estudo, certos traos da Escola de Minas de Paris se fizeram notar tambm, no sentido de que foi sempre dada nfase especial s matrias bsicas, a matemtica, a fsica e a qumica. um trao que ainda hoje marca a instituio. Essa filosofia concretizou-se em dispositivos que se chocavam com a prtica vigente no pas e foram motivos de resistncias e crticas. Os mais importantes eram os seguintes: 1 curso de dois anos, com dez meses de aulas, iniciando em agosto e terminando em junho; os dois meses restantes seriam empregados em excurses e trabalhos prticos; 2 tempo integral para professores e alunos, com aproveitamento inclusive de sbados e domingos; 3 seleo dos alunos por concurso e um sistema de exames frequentes durante o ano; 4 limitao do nmero de alunos a dez por turma; 5 boa remunerao para professores; 6 intensa prtica de laboratrio e viagens de estudos; 7 bolsas de estudos para os estudantes pobres e prmios de viagem Europa ou aos Estados Unidos para os melhores alunos, a fim de se aperfeioarem em escolas e estabelecimentos mineiros e metalrgicos;36 37

Para atingir o objetivo, ele dispunha de dois modelos de organizao, a Escola de Minas de Paris e a Escola de Minas de Sainttienne. A primeira tinha um curso de trs anos de durao e dava formao bsica mais slida. Recrutava os alunos de um curso anexo que mantinha e dentre os melhores ex-alunos da Escola Politcnica. Formava no apenas engenheiros, mas homens capazes de resolver problemas pertencentes ao domnio das cincias fsicas e matemticas. A Escola de Minas de Saint-tienne, criada em 1817, formava os alunos em dois anos e fornecia, no que se refere matemtica e fsica, as partes indispensveis para tratar das questes de mecnica de mquinas, de metalurgia e de explorao. Essa formao bsica era suficientemente slida para permitir, aos que assim o desejassem, dedicar-se pesquisa puramente cientfica. Na verdade, segundo Gorceix, muitos dos ex-alunos de Saint-tienne se tornaram cientistas ilustres. Tendo em vista as circunstncias brasileiras, a opo foi feita pelo modelo de Saint-tienne. Era mais fcil de implantar e daria resultados mais rapidamente, isto , forneceria logo engenheiros para desenvolver a indstria mineradora. A preocupao prtica refletia-se no nome que sugeria para a escola, cole des Mineurs, Escola de Mineiros, e era certamente uma reao ao carter livresco que detectara no ensino brasileiro. A mesma preocupao levou a algumas interpretaes equivocadas de suas ideias. Quando alguns adversrios da Escola insistiram em que ela devia formar apenas fiscais de minas e mestres ferreiros, como a Escola de Saint-Etienne, Gorceix respondeu35

H. Gorceix, Rapport sur lorganization dune cole des mines dans Ia Province de Minas Gerais. Arquivo Nacional (AN), 1E3177, pasta Observao do Visconde do Rio Branco sobre o regulamento da Escola dos Mineiros, p. 184.

In: RELATRIO DO MINISTRO DO IMPRIO, 1878, Anexo B, p. 13. LISBOA. REM, p. 31.

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8 contratao pelo Estado dos que melhor aproveitassem a viagem de aperfeioamento; 9 ensino gratuito. Completando o relatrio, Gorceix sugeriu a cidade de Ouro Preto para a sede da Escola, com base na ideia de que urna escola tcnica e prtica no precisava localizar-se em centros de civilizao. Ela devia, antes, estabelecer-se em centros industriais e mineiros, para os quais forneceria engenheiros. Tal proximidade permitiria que aos estudos tericos se aliassem demonstraes prticas. Exemplos desse tipo de escola podiam ser encontrados, ainda segundo Gorceix, em Freyberg, na Alemanha, e em Saint-Etienne. Ouro Preto, alm das riquezas minerais, encontrava-se no centro de grande nmero de pequenas fbricas de ferro, que poderiam constituir a futura riqueza da Provncia. Esperava que fosse uma glria da escola dar nova vida a essa indstria. Em outra oportunidade, justificando a escolha de Ouro Preto, afirmou que na cidade, se o professor quisesse falar de veieiros, em vez de os desenhar no quadro, abriria a janela e os apontaria com o dedo38. O projeto inicial foi enviado a Daubre, que o aprovou plenamente, fazendo o mesmo com o relatrio. Foi tambm enviado Congregao da Escola Politcnica, ao engenheiro Francisco Pereira Passos e ao Visconde do Rio Branco, diretor interino, para comentrios. A deciso de criar a escola, no entanto, a essa altura, j estava tornada. O ofcio do ministro do Imprio, Jos Bento da Cunha Figueiredo, que encaminhou o projeto de Gorceix ao diretor interino da Politcnica, dizia: Tendo o Governo Imperial resolvido criar uma Escola de Mineiros na Provncia de Minas Gerais (...) foi incumbido o professor Henrique Gorceix de organizar os respectivos planos e oramentos.39. A lei oramentria para 1875/1876 j inclura urna verba de 60 contos de ris para a instalao. A autorizao legislativa j teria sido dada pela lei de 1832. Faltava apenas o decreto de criao que viria em novembro de 1875.

A Congregao da Politcnica nomeou uma comisso composta dos professores Jos de Saldanha, Miguel Antnio da Silva e Joaquim Duarte Murtinho, para dar parecer. Aprovado integralmente pela Congregao, o parecer j antecipava a rivalidade que iria acompanhar a histria das duas escolas por um longo tempo, exigindo por vezes a interveno pessoal do Imperador em favor da Escola de Minas. As objees principais do parecer se referiam aos seguintes pontos: 1 no havia necessidade de assinatura do ministro nos diplomas dos engenheiros da Escola de Minas, pois os diplomas das outras escolas eram assinados apenas pelos diretores (Gorceix fizera a reivindicao por se tratar de instituio nova e de um diretor desconhecido); 2 a Escola de Ouro Preto devia limitar-se a formar homens puramente prticos e no engenheiros de vasta cincia como soem ser os que saem das Faculdades do Imprio; 3 o concurso para admisso podia ser substitudo por exames perante as Comisses de Instruo Pblica das Provncias; 4 o ano letivo devia durar sete meses, de abril a outubro; 5 os salrios das outras escolas do Imprio deviam ser equiparados aos pedidos para a Escola de Ouro Preto40. Pereira Passos observou que: 1 como consequncia da criao da Escola, deveria ser fechado o curso de engenharia de minas criado na Escola Politcnica em 1874; 2 no deveria haver limitao do nmero de alunos a 10 por turma; 3 no havia necessidade de duplo exame de admisso (Gorceix, alm do exame perante professores da Escola, pedira outro preliminar nas provncias para uma primeira seleo); 4 no se devia dar bolsa de estudo a alunos pobres;

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In: RELATRIO DO MINISTRO DO IMPRIO, 1878, Anexo B, p. 13. OFCIO do ministro do Imprio, Jos Bento da Cunha Figueiredo, ao diretor interino da Escola Politcnica, em 19 de agosto de 1875. AN. 1E3 177.

PARECER sobre o projeto do professor Henrique Gorceix, relativo criao de uma escola de minas na Provncia de Minas Gerais, de 27 de agosto de 1875. AN, 1E3 177, doc. 23.

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5 no se deviam enviar recm-formados ao exterior, mas exigir, primeiro, experincia no Brasil; 6 os salrios dos professores eram muito altos; 7 o Estado no devia ser obrigado a contratar engenheiros da Escola41. Rio Branco manifestou-se fortemente contrrio limitao do nmero de alunos. S o nmero dos alunos pobres deveria ser limitado, por causa das penses. Disse que devia ser eliminado o concurso de admisso e adotado o sistema das outras escolas superiores, que aceitavam todos os que fossem aprovados nos exames preparatrios do ensino secundrio. O Estado no deveria ser obrigado a contratar. Para ele, tambm os dez meses de aulas eram excessivos42. Consegui localizar as respostas de Gorceix s observaes de Pereira Passos e da Congregao. Nelas, ele repete o que estava no relatrio inicial, aduzindo novos argumentos para defender seus pontos de vista. No que se refere aos comentrios da Congregao, responde que a ideia bsica desse colegiado parecia serno rejeitar a criao de uma escola de minas em Ouro Preto, mas reduzir seu papel formao de mestres operrios, ou criar para o diretor dificuldades to grandes no recrutamento de alunos e de funcionrios que fosse impossvel para um homem super-las por 43 mais dotado que fosse de boa vontade e energia .

Com relao proposta de Pereira Passos de acabar com o curso de minas da Politcnica, opina que essa Escola deveria copiar exatamente seu modelo francs e tornar-se uma instituio de ensino terico geral. As escolas tcnicas, como a de Ouro Preto, deveriam ser espalhadas pelo pas de acordo com as exigncias locais. A penso para alunos pobres era, segundo ele, uma medida de justia que no gostaria nem mesmo de defender, e ai pensava certamente no fato de que tambm fora bolsista do governo. Quanto aos salrios (ele pedira 8 contos anuais, Pereira reduzira para 6), diz que mesmo por 8 contos no seria fcil achar bons professores. Em documentos posteriores, defenderia os salrios altos, dizendo que, para uma escola nova como a de Ouro Preto, a qualidade dos professores era fundamental. Os de geologia, mineralogia e explorao de minas teriam provavelmente que vir do exterior, o que tornaria mais difcil o recrutamento. Alm disso, seria exigido tempo integral dos professores. Em Ouro Preto no seria possvel complementar salrios com outros empregos. Em certa ocasio, recusou um professor porque ele seria, ao mesmo tempo, diretor geral de obras pblicas da Provncia. Finalmente, diz ele, o programa de Ouro Preto prev uma carga didtica para cada professor equivalente a umas trs cadeiras nas outras escolas, sendo, portanto, o salrio muito razovel e talvez at relativamente mais baixo em relao ao trabalho exigido44. No regulamento definitivo, promulgado pelo decreto de 6 de novembro de 1875, o diretor teve confirmados os principais pontos de seu projeto. As nicas mudanas referiam-se a itens que implicavam gastos e apenas atenuavam os dispositivos originais. As bolsas de estudos, chamadas de penses, o envio de alunos ao exterior e a contratao de engenheiros pelo Estado deixaram de ser obrigao para se tornarem opo. O governo poderia dar as bolsas etc. O resto permaneceu conforme queria Gorceix, mudando-se o nome, que em vez de Escola de Mineiros ficou sendo Escola de Minas45. Tal fora de um estrangeiro recm-chegado ao pas, capaz de derrotar opinies de um homem como o Visconde do Rio Branco, que acabara de presidir o44 In: RELATRIO DO MINISTRO DO IMPRIO, 1878, p. 14. Tambm ofcio ao ministro do Imprio em 25 de agosto de 1883. AN, IE3 127, pasta 4. 45 O Regimento acha-se reproduzido em A Escola de Minas, 1876/1966. Ouro Preto: Escola Federal de Ouro Preto, 1966. p. 15-21.

Defende especialmente a necessidade do concurso, cuja eliminao seria fatal. Sem ele no haveria maneira de garantir a entrada de bons alunos e predominaria a mediocridade. Se o concurso contra os hbitos do pas, pergunta, ser isto razo para elimin-lo?

41 F. P. Passos. Criao de uma escola de minas em Ouro Preto Projeto do professor Henrique Gorceix, parecer de 9 de agosto de 1875. AN, 1E3 177, doc. 26. 42 Visconde do Rio Branco. Regulamento da Escola de Mineiros na Provncia de Minas Gerais, parecer de 30 de outubro de 1875. AN, 1E3 177, pasta Observao do Visconde do Rio Branco sobre o regulamento da Escola dos Mineiros. 43 H. GORCEIX. cole des Mineurs dOuro Preto. Rponse aux modifications proposs pour les conditions dadmission et les rglements de cette cole. AN, 1E3 177, doc. 27, p. 77v.

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ministrio de mais longa durao e dos de maior prestgio do Imprio e que