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CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Conclusão de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011. (c) Copyleft – É livre a reprodução deste material para fins não comerciais. Cite a fonte! UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO REGULAÇÃO PÚBLICA E EXPLORAÇÃO DO TRABALHO RURAL: RELAÇÕES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMÉDIO SÃO FRANCISCO Salvador 2011

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  • CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAO PBLICA E EXPLORAO DO TRABALHO RURAL: RELAES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMDIO SO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Concluso de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011.

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE GRADUAO EM DIREITO

    FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO

    REGULAO PBLICA E EXPLORAO DO TRABALHO RURAL: RELAES DE ASSALARIAMENTO NA

    FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMDIO SO FRANCISCO

    Salvador 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE GRADUAO EM DIREITO

    FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO

    REGULAO PBLICA E EXPLORAO DO TRABALHO RURAL: RELAES DE ASSALARIAMENTO NA

    FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMDIO SO FRANCISCO

    Monografia de Concluso de Curso, sob orientao da Prof. Dra. Isabela Fadul de Oliveira, apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

    Salvador 2011

  • CARVALHO, Felipe S. Estrela de. REGULAO PBLICA E EXPLORAO DO TRABALHO RURAL: RELAES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMDIO SO FRANCISCO. 08 de Julho de 2011. 137 folhas. Monografia de Concluso de Curso. Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2011.

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    FOLHA DE AVALIAO

    A presente monografia de concluso do Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia, elaborado pelo graduando FELIPE SANTOS ESTRELA DE CARVALHO, sob o ttulo REGULAO PBLICA E EXPLORAO DO TRABALHO RURAL: RELAES DE ASSALARIAMENTO NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SUBMDIO SO FRANCISCO ser submetida em 08 de Julho do ano de 2011, s 11 horas, banca examinadora composta pelos seguintes docentes: (i) Samuel Santana Vida (Presidente), (ii) Isabela Fadul (Orientadora) e (iii) Vitor de Athayde Couto (Examinador), sendo considerada _______________ (aprovado/reprovado) com nota _______.

    Salvador, 08 de Julho de 2011.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    Isabela Fadul de Oliveira (Orientadora) Universidade Federal da Bahia/ UFBA

    Doutora em Direito Universidade de So Paulo/ USP, Brasil

    _______________________________________________________________

    Samuel de Santana Vida (Presidente da Banca/ Examinador) Universidade Federal da Bahia/ UFBA

    Mestrando em Direito, Universidade Federal da Bahia/ UFBA, Brasil

    _______________________________________________________________

    Vitor de Athayde Couto (Examinador) Universidade Federal da Bahia/ UFBA

    Doutor em Economia, Universit de Toulouse II, Frana

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    AGRADECIMENTOS

    Po, Terra e Liberdade. Dedico esta monografia luta dos movimentos populares campesinos que com sangue e suor cultivam o mundo novo. bem provvel que ao final destas linhas eu cometa alguma injustia, pois, esta monografia no resultado exclusivo desses ltimos meses de estudo, mas fruto de uma longa caminhada construda dentro e fora do espao acadmico. Por isso, agradeo logo a todas as pessoas que contriburam de alguma maneira para a construo daquilo que sou hoje. No poderia deixar de agradecer a Dona Lcia, me querida, pelo amor imensurvel. As horas de riso largo ficaram a cargo de Mozart, irmo e amigo. A trajetria na Faculdade de Direito s foi possvel pela caminhada ombro a ombro junto a grandes amigos e muitos coletivos. Pelo calor vivo em meio ao mrmore frio, ao Ncleo de Educao Popular NEP/SAJU, que j foi GTAC junto e misturado com Assessoria, quase fora NAJEGA, qui Ncleo Sem Nome (NSN). Rumo aliana camponesa e operria.

    De mos dadas num grande MUTIRO, cultivamos as flores do MANDACARU para VIRAR o MUNDO em festa, trabalho e po. Por um CARB dos/as trabalhadores/as. Lugar especial para o p-de-pau e nossa galera. rvore da resistncia que nos rendeu sombra e bons frutos quando nada fazia mais sentido. amizade que ali pude cultivar com outros tropicais.

    doce degustao dos dias na forma de poemas, cores, dizeres, gritos e amores. Paredes e balaustradas coletivas. Pinte (n) o peripattico!

    A Isabela, pela orientao pedaggica no presente trabalho. Obrigado pela disposio e por ter ajudado a dar corpo s minhas inquietaes. Como a Universidade no se restringe a nossa isolada torre de marfim, agradeo ao coletivo LEPEL/FACED/UFBA, em especial educadora militante Celi Taffarel pelo exemplo e mstica revolucionria. Aos meus companheiros e companheiras do Ncleo de Estudos e Prticas em Polticas Agrrias NEPPA. Pelo desafio histrico que assumimos

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    e construmos juntos nesses cinco anos. Obrigado por me mostrar que novas prticas e valores so possveis. Agradeo a AATR pela oportunidade de formao crtica dentro do Direito. Um agradecimento especial ao SINTAGRO, na figura de Domingos Rocha, e a CPT de Juazeiro, em nome de Marina Rocha, pelo apoio realizao da pesquisa. Exemplos de militncia junto ao povo.

    Aos trabalhadores e trabalhadoras da fruticultura irrigada do Plo Juazeiro e Petrolina. rebeldia necessria. Por fim, agradeo a Joice, pela maravilhosa companhia; pelas longas conversas s vezes levadas horas a fio, e principalmente pelo nosso despertar repleto da preguia dos gatos. Muito obrigado!

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    Patro:

    Meus senhores, vou lhes apresentar uma gente no sei de que lugar, uma coisa que imita a raa humana: eis aqui o trabalhador da cana. Pois agora eles s querem falar em direitos e leis a registrar, imagine a confuso que d! Eu explico pra eles a tarde inteira esse tal de registro na carteira atrapalha, burrice, besteira.

    Bia-Fria: Mas o traquejo da lei e do direito no degrada quem dele se apetece pois enquanto se nutre de respeito o trabalhador que se enobrece. Alm disso quem chega-se virtude e da lei se aproxima e se convm t mostrando ao patro solicitude por querer o que dele advm. Desse modo o registro na carteira ser nossa causa verdadeira.

    Patro: Mas que raa de gente muquirana me saiu esse trabalhador da cana! ignora que a lei e a justia da autoridade submissa e quando jegue se mete a gato mestre vai um p pr'oeste e outro pro leste. E assim no seu tema predileto o diabo j passa por dileto com esse tal de registro na carteira que atrapalha, burrice, besteira.

    Bia-Fria: Da justia e da lei quem se aproxima t louvando o que vem de l de cima mas o luxo, o palcio, o desperdcio com Deus que se ajusta cada vcio. Sei que a nossa caneta o machado mas poetas da popularidade

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    com sonetos e versos caprichados j disseram por ns l na cidade: Que lutar por registro na carteira ser nossa causa verdadeira.

    Patro: No me traga cantores de protesto, eta raa de gente que eu detesto, s de ouvir este nome de poltica eu j fico agastado e com azia, sinto dores, a febre me arrepia tenho a tosse a maleita e a raqutica, pelo campo o voto, a abertura, j no tem mais pureza a criatura com esse tal de registro na carteira que atrapalha, burrice, besteira.

    Bia-Fria: Pois pra mim voc t misturando ter pureza com ser ignorante t chamando a burrice de elegante a bobeira mental advogando. Se eu estudo lutando na peleja da maneira de a vida melhorar e com isso no vou abandonar a pureza da alma sertaneja. Desse modo o registro na carteira ser nossa causa verdadeira.

    Desafio do Bia-Fria, Tom Z

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    RESUMO

    Da colnia ao atual modelo do agronegcio, o desenvolvimento do capitalismo na agricultura nacional teve [tem] na intensa explorao da fora de trabalho seu mote de reproduo ampliada. Nesse processo, a interveno estatal ocupou papel fundamental tanto na regulao das formas de acesso propriedade da terra como na organizao social do trabalho no meio rural. Mesmo com o advento da legislao social trabalhista, a regulao pblica encontrou dificuldades em incidir concretamente na vida dos/as trabalhadores rurais. Nesse sentido, a presente pesquisa se prope a analisar o processo de regulao pblica das relaes de assalariamento na agricultura brasileira, a partir da confrontao dos postulados protetivos do Direito do Trabalho (bem como de seus instrumentos normativos) com a realidade concreta dos/as assalariados/as da fruticultura irrigada do Plo Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), a fim de se problematizar a capacidade da legislao social em dar respostas significativas s contradies impostas pela relao capital-trabalho no campo.

    Palavras-Chaves: Direito do Trabalho; Emprego Rural; Fruticultura; Agronegcio; Precarizao do Trabalho

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    LISTA DE TABELAS E GRFICOS

    TABELA 1: Uso de Tratores no Brasil (1950 1985).......................................91

    TABELA 2: Populao Desocupada em reas Rurais (1992 2009)..............99

    TABELA 3: Faixa de renda: Empregados Permanentes e Temporrios (2008)...............................................................................................................100

    TABELA 4: Rendimento Mdio Mensal da Atividade Principal (2008)...........101

    TABELA 5: Valor (em R$) do rendimento mdio mensal da PEA rural por regio e por sexo (2008)..................................................................................101

    GRFICO 1: Contingente de Pessoas Ocupadas em Atividades Agrcolas (2008) ............................................................................................................102

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    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................11

    1. TERRA DE NEGCIO, TERRA DE TRABALHO..................................15 1.1. A Questo Agrria: decifra-me ou devoro-te.....................................15 1.2. Terra vista... A colonizao e as formas de explorao do trabalho

    rural....................................................................................................17 1.2.1. A colonizao do Vale do So Francisco..........................................20 1.3. O Trabalho Cativo..............................................................................23 1.3.1. A Fora de Trabalho Indgena...........................................................24 1.3.2. A Fora de Trabalho Negra Africana.................................................27 1.4. Crise e Transio do Trabalho Cativo..............................................30 1.4.1. A Transio Nordestina.....................................................................37 1.4.2. A Transio Sudestina....................................................................39 1.4.2.1. A Intermediao de mo-de-obra estrangeira e as relaes de

    assalariamento na agricultura brasileira.......................................42

    2. O TRAQUEJO DA LEI E DO DIREITO1: A REGULAO PBLICA DO TRABALHO RURAL........................................................................46

    2.1. A Regulao Jurdica como Categoria Histrica...............................46 2.2. A Legislao Trabalhista Rural no Perodo Pr-Vargas....................54 2.2.1. Leis de 1830, 1837, 1879: o contrato como expresso do trabalho

    livre....................................................................................................54 2.3. Gnese do Direito do Trabalho no Brasil...........................................59 2.3.1. A Regulao Social do Trabalho na Era Vargas...............................62 2.4. Princpios Protetivos e os Sujeitos Protegidos pela CLT................70 2.5. A Regulao Social do Trabalho Rural em Tempos de

    Modernizao....................................................................................79 2.5.1. Sujeitos Protegidos pela Lei n. 5.889/1973.......................................83

    1 Trecho da msica Desafio do Bia-Fria do compositor baiano Tom Z.

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    3. FRUTOS DA MODERNIZAO: RELAES DE ASSALARIAMENTO E EXPLORAO CONTINUADA DO TRABALHO RURAL O CASO DA FRUTICULTURA IRRIGADA NO SUBMDIO SO FRANCISCO...........................................................................................87

    3.1. Bases da Modernizao Conservadora da Agricultura no Brasil......88 3.1.1. O Agronegcio como Sntese Histrica da Modernizao................94 3.2. Modernizao da Agricultura e os Impactos nas Relaes de

    Trabalho Assalariado Rural...............................................................97 3.3. Relaes de Assalariamento na Regio Submdio do So Francisco:

    explorao da fora de trabalho rural na fruticultura irrigada..........103 3.3.1. A Enxurrada Modernizadora: CVSF, SUVALE, CODEVASF e Poltica

    de Desenvolvimento da Agricultura Irrigada no Vale do So Francisco.........................................................................................105

    3.3.2. Fruticultura Irrigada e Relaes de Assalariamento: entre a proteo social e a realidade do trabalho rural...............................................108

    3.4. As Condies de Trabalho Pelos/as Prprios/as Trabalhadores/as.............................................................................110

    CONSIDERAES FINAIS.......................................................................122 REFERENCIAS..........................................................................................127

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    INTRODUO Dificilmente um jovem parado na sesso de frutas de um supermercado

    qualquer dos pases da Unio Europia chegaria a imaginar que por de trs dos volumosos cachos de bolinhas rosadas e uniformes pudesse existir outra coisa seno a mais pura candura das uvas do Vale do So Francisco. A coisa pronta esconde o processo que a criou. Concentrao fundiria, destruio da natureza, altas taxas de informalidade, jornadas exaustivas, intoxicao por agrotxicos, baixos salrios. A lista de violaes longa e no necessrio cruzar o Atlntico para se verificar o grau de desconhecimento acerca da dura realidade do trabalho rural no s na regio Submdio So Franciscana, mas nos diversos ramos da moderna agricultura brasileira.

    O padro intenso de explorao da mo-de-obra rural no exclusividade do atual modelo do agronegcio. Encontra suas bases no prprio desenvolvimento do capitalismo na agricultura nacional, a partir da articulao de uma diversidade de fatores como as formas histricas de apropriao da propriedade da terra, de organizao social do trabalho e principalmente na interveno exercida pelo Estado na mediao desse processo.

    A regulamentao pblica tambm no fato recente na histria do trabalho rural. Desde o perodo colonial, a reproduo das relaes trabalhistas no setor agropecurio contou com a intensa normatizao estatal. Entretanto, o que se pode verificar ao longo da histria foi o exerccio estratgico da atividade jurdico-legislativa com vistas ao atendimento dos interesses do capital em expanso, muito mais do que garantir melhores condies de trabalho para o homem e a mulher do campo. O movimento crescente de industrializao das atividades agrcolas, vivenciado de maneira mais intensa a partir da dcada de 1970, repercutiu diretamente nas formas de insero da mo-de-obra no mercado de trabalho rural, trazendo a reboque novos desafios ordem jurdico-trabalhista.

    justamente nesse sentido que a presente pesquisa se prope a analisar o processo de regulao pblica das relaes de assalariamento na agricultura brasileira, a partir da confrontao dos postulados protetivos do Direito do Trabalho (bem como de seus instrumentos normativos) com a

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    realidade concreta dos/as trabalhadores/as rurais da fruticultura irrigada do Plo Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), a fim de se problematizar a capacidade da legislao social em dar respostas significativas s contradies impostas pela relao capital-trabalho no campo.

    A monografia tem no materialismo histrico-dialtico sua vertente metodolgica, pois se coloca a compreender as intersees entre o movimento de regularizao jurdica das relaes trabalhistas e o fenmeno da explorao continuada do trabalho assalariado no campo no interior do processo histrico, j que essa empreitada no se d de maneira deslocada dos movimentos gerais da histria. O mtodo tem na incessante dialtica entre o passado e o presente sua dinmica fundamental, enriquecendo-se com o desenvolvimento histrico das sociedades e atualizando-se luz das experincias prticas das lutas populares e das estruturas e processos que tm lugar no contexto atual do capitalismo contemporneo (BORON, et al, 2006: 34).

    A perspectiva adotada a interdisciplinar, j que os debates em torno dos direitos sociais trabalhistas, sua incidncia concreta no cotidiano dos/as trabalhadores/as e a situao da mo-de-obra rural no atual estgio da crise estrutural de acumulao capitalista no se inserem somente como variveis apreendidas pela ordem jurdico-legalista. Desta forma, o fenmeno em destaque no pode ser compreendido isoladamente, hermtico s implicaes do real, j que so processos em constante transformao, dotados de relaes contraditrias e complementares, influenciados por uma dada conjuntura poltica, social e econmica.

    Assim, estrutura-se a pesquisa em trs partes fundamentais. A primeira se dedica realizao de um panorama histrico tanto do processo de formao da estrutura fundiria como da explorao do trabalho rural ao longo do desenvolvimento do capitalismo no meio rural brasileiro, pontuando as formas de insero da mo-de-obra rural (escrava e livre) no processo produtivo agrcola, com o intuito de evidenciar a prxis construda e seus possveis desdobramentos na realidade atual do trabalho assalariado no campo.

    J o segundo momento cuidar da gnese do processo de construo da legislao social no pas, abordando elementos fundamentais compreenso de como se deu a insero dos trabalhadores rurais nesse novo

    CarmenResaltado

    CarmenResaltado

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    projeto de proteo social trabalhista, principalmente no que diz respeito aos contedos e abrangncia dos instrumentos normativos e principiolgicos realidade do trabalhador rurcola.

    Ser dada prioridade contextualizao do desenvolvimento do Direito do Trabalho no Brasil, em sua perspectiva histrica, poltica, econmica e social, caracterizando seus institutos protetivos basilares [e sua evoluo] a partir da anlise do movimento real e da correlao de foras entre capital e trabalho na sociedade brasileira. Sero analisadas ainda as especificidades da regulao do trabalho rural, a partir do estudo dos seus instrumentos jurdicos, problematizando sua compatibilidade com as orientaes gerais do ordenamento trabalhista, com destaque Lei n. 5889/73.

    Por fim, a monografia se dedicar ao estudo da situao jurdico-trabalhista dos assalariados (diaristas, safristas) da fruticultura irrigada na regio Submdio do Vale do So Francisco, a partir da anlise dos mecanismos de compra e venda e de insero da fora de trabalho rural na estrutura produtiva do agronegcio, a fim de se verificar a dimenso da regulao pblica e a incidncia/observncia dos direitos e garantias sociais na relao estabelecidas entre empregadores e assalariados rurais. Para tanto, a pesquisa cuidar de analisar o processo de transformao das relaes produtivas vivenciados na agricultura a nvel nacional e regional, bem como as condies concretas em que se do a realizao do trabalho do assalariado.

    Do ponto de vista da abordagem, a pesquisa se apresenta num vis qualitativo, na medida em que a verificao da relao dinmica entre o mundo real e os sujeitos dessa realidade seu principal objetivo. Optou-se pela realizao de entrevistas (viabilizadas pela imensurvel contribuio do SINTAGRO2 a quem dedico os maiores votos de luta e esperana) para melhor apresentar os fenmenos e indicadores da situao dos/as trabalhadores/as na regio em destaque.

    A invisibilidade dos conflitos existentes no interior das relaes de emprego no meio rural muitas vezes encontra resposta na fragilidade e

    2 As entrevistas foram viabilizadas, primeiramente pela disponibilidade e colaborao dos/as

    trabalhadores que aceitaram a relatar o cotidiano dos seus processos de trabalho na fruticultura irrigada da regio; e segundo, pela imensurvel contribuio do SINTAGRO - Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Agrcolas, Agroindustriais e Agropecurias dos Municpios de Juazeiro, Cura, Casa Nova Sobradinho e Sento S na figura de Domingos Rocha, militante de base e presidente da entidade de representao de classe.

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    dependncia econmica dessa fora de trabalho frente s grandes empresas agrcolas, motivo pelo qual o sigilo foi uma das condies para realizao dos depoimentos. Sem delongas, est dado o desafio.

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    1. TERRA DE NEGCIO, TERRA DE TRABALHO.

    Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negcio, em terra de explorao do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. (Jos de Souza Martins)

    O presente captulo tem por intuito fundamental discutir o processo de explorao da fora de trabalho a partir da anlise histrica da formao da estrutura fundiria brasileira. Tomar-se- como ponto de partida, a contextualizao do desenvolvimento do capitalismo na agricultura nacional atravs da percepo crtica das mediaes estabelecidas entre capital, terra, trabalho humano e Estado. Para tanto, ser dada prioridade: (i) construo de um panorama da estrutura agrria no Brasil ao longo da histria; (ii) caracterizao das formas histricas de insero e explorao da fora de trabalho na unidade produtiva latifundiria; (iii) participao do Estado na manuteno e [re] produo de um padro precrio de relao de trabalho no campo.

    1.1. A QUESTO AGRRIA: decifra-me ou devoro-te!

    A histria do/a trabalhador/a rural a histria da luta pela terra. Assim, a realidade agrria brasileira, em toda sua complexidade, pode ser apreendida atravs da nfase dada s inmeras variveis que a compem. Seja pela relao que a concentrao fundiria tem no desenvolvimento das foras produtivas e de sua repercusso nas formas de dominao poltica e econmica; pelas formas sociais de apropriao da terra e da ocupao territorial humana; ou mesmo pela evoluo da luta poltica e da luta de classes na disputa pelo domnio da terra (STEDILE, 2005: 18), a questo agrria assume uma dimenso dialtica e multifacetria.

    O presente trabalho se prope iniciar a anlise da espoliao continuada da mo-de-obra assalariada rural a partir do resgate histrico tanto das formas de organizao das relaes sociais produtivas no campo, como dos mecanismos de acesso, utilizao e explorao das terras na sociedade brasileira. A propriedade privada rural deve ser apreendida enquanto construo social, que no desenvolvimento intestino do modo de produo capitalista no Brasil, configurou-se num complexo envolvendo trocas, mediaes, contradies,

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    articulaes, movimentos, transformao (MARTINS, 1981: 169) e seu controle concentrado numa determinada classe potencializa-se a opresso poltico-econmica desta sobre os demais setores do meio social.

    O modo de produo capitalista possui como caracterstica bsica a subordinao do trabalho humano ao capital, tendo nessa relao dialtica a base da sua dinmica. Em um dos lados dessa relao tm-se a figura do capitalista que, detentor da propriedade privada dos meios de produo, compra a fora de trabalho necessria expanso do capital, e do outro, o trabalhador materialmente expropriado vende seu potencial de trabalho3 como condio de sobrevivncia. Esse movimento se realiza historicamente, portanto no se desenvolve de forma apartada da realidade, manifestando suas contradies a partir das especificidades de conformao histrica, ambiental e cultural de cada sociedade, tendo na intensificao da expropriao do trabalho livre seu mote de reproduo ampliada. O capital no uma entidade homognea, estrutura-se a partir de uma multiplicidade de interesses e antagonismos, sendo o capital social total a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradies (MSZROS, 2007:66). Assim como dialeticamente, a totalidade do trabalho tambm no pode ser homognea, na medida em que aglutina uma diversidade de trabalhadores e pautas histricas. Cumpre destacar que o capitalismo tem por caracterstica sua tendncia expansionista, direcionando-se apropriao progressiva de todos os setores de produo tanto na cidade como no campo.

    No meio rural, o processo de expanso do modo de produo capitalista materializa-se, dentre outras formas, na crescente dissociao dos trabalhadores dos meios necessrios produo de sua subsistncia (sejam estes posseiros ou pequenos proprietrios). Apropria-se a terra como forma de liberar a mo-de-obra. A maior sntese dessa relao reside justamente na transformao continuada do homem e da mulher do campo em trabalhadores livres, isto , libertos de toda propriedade que no seja a propriedade da sua fora de trabalho, da sua capacidade de trabalhar (Idem, 152). No so

    3 Segundo Marx, a utilizao da fora de trabalho o prprio trabalho. O comprador da fora

    de trabalho a consome ao fazer trabalhar o vendedor dela. O ltimo torna-se, desse modo, actu [de fato], fora de trabalho realmente ativa, o que antes era potentia [em potencial] (MARX, 1983:149)

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    proprietrios de nada, nem dos instrumentos necessrios realizao do seu trabalho; so livres para colocar as horas do seu dia disposio das vontades de um terceiro. A fora de trabalho a nica mercadoria capaz de extrair mais-valor, criando a riqueza, cuja medida se d pelas horas de trabalho socialmente necessrias produo de uma dada mercadoria. Desta maneira, o salrio aparece como contraprestao venda da fora de trabalho, cumprindo um papel de reposio do trabalhador no cenrio produtivo, sendo tal troca processada aparentemente entre iguais. Contudo, ao final da relao de subsuno do trabalho ao capital, o que se verifica so resultados distintos para as partes envolvidas. De forma bastante simplificada, enquanto o trabalhador, aps disponibilizar sua fora de trabalho, termina com o salrio que malmente o ajuda a reproduzir-se como era no dia anterior; o empregador capitalista, com a apropriao privada dos meios de produo e dos produtos do trabalho alheio, ao raiar o novo dia, passa a deter mais riqueza do que se tinha anteriormente. Isso possvel por que a desigualdade econmica entre o capitalista e o trabalhador s pode ocorrer com base na igualdade jurdica sob a qual eles se defrontam (Idem, 154-5).

    Em 2004, 17 813 802 milhes de pessoas tinham na agricultura sua atividade econmica principal, sendo desse total 4 907 998 milhes de empregados (27,6% do total de ocupados)4. Nos ltimos anos essa relao tem crescido vertiginosamente (ampliao do assalariamento via contratos temporrios) e como ela o avano da explorao. Entretanto, as razes da expropriao do trabalho assalariado rural encontram-se articuladas com o desenvolvimento das relaes sociais produtivas na agricultura, cujas bases histricas se deram nos movimentos privados e institucionais de controle sobre a terra e a mo-de-obra. Eis o primeiro desafio.

    1.2. TERRA VISTA: A COLONIZAO E AS FORMAS DE EXPLORAO DO TRABALHO RURAL

    A terra queimar e haver grandes crculos brancos no cu. A amargura surgir e a abundncia desaparecer. A terra queimar. A poca mergulhar em grandes trabalhos. De qualquer modo, isso ser visto. Ser tempo de dor, das lgrimas e misria. o que est para vir (Profecia Maia sobre a chegada dos europeus s Amricas).

    4 Dados PNAD 2005.

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    No caso brasileiro, a constituio das estruturas de dominao do trabalho e da terra remonta ao perodo da colonizao portuguesa, onde a organizao da produo e apropriao dos bens da natureza aqui existentes estiveram sob a gide das leis do capitalismo mercantil (STEDILE, 2005: 22). A maioria significativa das atividades produtivas e/ou extrativistas desenvolvidas estavam direcionadas expanso e dinamizao do capital metropolitano europeu atravs do pacto colonial. As condicionantes histricas do processo colonialista brasileiro favoreceram o predomnio da grande propriedade rural como unidade central de produo da riqueza e organizao da sociedade. Para Prado Junior, o carter mais profundo da colonizao reside na forma pela qual se distribui a terra. (PRADO JR, 1980: 16) O Direito vigorante no Brasil durante o perodo colonial se encontrava fundamentado basicamente nas Ordenaes Reais Lusitanas (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas). O modelo jurdico colonial foi fortemente caracterizado pelos princpios e normas j consolidados em nas terras portuguesas, refletindo nitidamente a estrutura de dominao metropolitana. A constituio desse modelo estatal garantiu a manuteno do poder poltico nas mos das elites colonialistas, na medida em que a atividade institucional (no plano executivo e legislativo) estava orientada para a ampliao das atividades privadas, e conseqentemente, dos lucros repassados monopolicamente Coroa via pacto colonial. Assim, regula-se a terra e o trabalho como forma de maximizar os interesses impostos pelo regime da acumulao primitiva. Experincia adotada em larga escala nas colnias do Aores e da Madeira, o regime das capitanias hereditrias cumpriu funo dplice para a Coroa lusitana, pois, a poltica de colonizao do extenso litoral, ao mesmo tempo em que representou mecanismo de preservao do domnio portugus sobre frao do novo mundo (combatendo constantemente as irrupes das demais naes europias), desonerou a metrpole dos significativos gastos da ocupao efetiva do territrio, pois iniciativa privada foi dado o convite para a execuo da empreitada. Nessa linha, pontua COUTO (1998: 219):

    Por carta de 28 de setembro de 1532, o rei comunicou ao encarregado da Governana da Terra do Brasil que decidira demarcar o litoral sul-americano compreendido entre Pernambuco e o rio da Prata em capitanias, cada uma de 50 lguas de costa, com o objetivo de ocupar toda aquela orla martima, ficando os respectivos

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    titulares obrigados de armar os navios, a proceder ao recrutamento da gente e a arcar com as restantes despesas.

    Os beneficirios faziam parte de um seleto grupo, escolhidos em funo da combinao de uma srie de requisitos, passando por gargalos como o aspecto pessoal (convivncia com a Coroa), o poltico (identidade de projeto), o religioso (tinham de seguir a Ordem de Cristo) e de sua capacidade econmica para empreender e defender as terras concedidas (FERRARO JR, 2008: 22). Em funo da ineficcia do sistema de capitanias, muito pela onerosidade elevada do empreendimento, o processo de colonizao passou a contar com uma nova forma jurdica de regulao do uso territorial. O regime das sesmarias, integrante do corpo de leis das Ordenaes Filipinas de 11 de janeiro de 1603, tornou-se arcabouo jurdico para a consolidao da colonizao das terras de alm-mar (MOTTA, 2009: 129). Uma das caractersticas fundamentais do instituto das sesmarias era a reversibilidade das glebas Coroa portuguesa no caso de improdutividade. Assim, entre os sujeitos se firma uma relao jurdica cuja obrigao principal era o devido aproveitamento das reas por parte do beneficirio dentro de certo prazo. Como sano ao descumprimento, previa-se multa pecuniria podendo chegar at a devoluo da rea concedida para explorao (PRADO JR, 1980: 16).

    Para FAORO (1975: 123), o colono (beneficirio de terras) constitua-se em agente de uma imensa obra semipblica, pblica no desgnio e particular na execuo. Quanto a sua aplicao concreta, se pouco se fazia valer no seu cotidiano, em caso de disputas polticas, desavenas pessoais, ou por simples vontade real, ela mostrava toda sua fora cogente.

    A Coroa ignorava a maior parte das terras mantidas sob seu domnio, conhecidas ou desconhecidas. Por outro lado, abdicava de qualquer controle sobre elas, na medida em que cedia a sditos de posses, em troca de contribuies anuais, imensas reas e todo o poder fiscal, militar, judicirio e poltico exigida para administr-las (FERRARO JR, 21).

    Em termos jurdicos, o regime de sesmarias dividia a propriedade em direta e til, onde a primeira ficava com o proprietrio primitivo, no caso a Coroa Portuguesa concedente das lguas, e a ltima com aquele que deveria faz-la produzir (BALDEZ apud MOLINA et al,, 2002: 98).

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    A imensido foi o parmetro para as concesses. reas de 10 a 100 lguas foram distribudas por toda a colnia, no Nordeste foram freqentes as concesses de terras, mais largas do que Estados de nossos dias, como as da Casa da Torre, dos Guedes de Brito, de Certo, etc. (FAORO, 1975: 124).

    1.2.1. A COLONIZAO DO VALE DO SO FRANCISCO

    A colonizao do Vale do So Francisco remonta aos idos de 1553, quando o ento monarca D. Joo III ordena o Governador Tom de Souza a explorar as terras banhadas pelo rio.

    Apesar da base econmica colonial ter sido a grande produo aucareira, coube pecuria extensiva cuidar da interiorizao das ocupaes no Nordeste brasileiro. Enquanto a zona litornea era concentradora de lavouras de cana, escravos e engenhos, sendo sua sociedade acentuadamente senhorial e hierarquizada, a sociedade pastoril tinha linhas de diferenciao social um pouco diludas caracterizada basicamente pelo trabalho livre do vaqueiro, ocupando pouca gente (MARTINS, 1981: 50). No plano da agricultura, ao lado da produo do acar se tinha ainda o cultivo do algodo, cultura agroexportadora mais democrtica do que a canavieira. Permitia no s aos grandes proprietrios o seu plantio, mas tambm aos pequenos produtores e posseiros da regio, viabilizada em funo dos custos reduzidos de seu beneficiamento quando comparados com a unidade produtiva do engenho com todos os seus encargos (ANDRADE, 1973: 151). A criao de gado ao longo do processo de colonizao sertaneja sempre se desenvolveu subsidiariamente lavoura da cana-de-acar. No seu incio, a pecuria se deu como resposta rgida e onerosa hierarquia social da sociedade aucareira, fixando estruturas de abastecimento de alimentos, couro e transportes grande propriedade senhorial (ANDRADE, 1973). Em 1701, a Coroa portuguesa decreta a proibio da criao de gado numa faixa de 10 lguas da costa, dando calo ao processo de interiorizao pecuria (FERRARO JR, 2008: 29). Foi no Vale do So Francisco que as maiores casas senhoriais de toda a colnia foram desenvolvidas, com as sesmarias da Casa da Torre (pertencente a Garcia Dvila) e da Casa da Ponte (pertencente a Antonio Guedes de Brito).

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    O desenvolvimento especfico dessas propriedades de currais configura-se como caso representativo da histria fundiria nacional, externalizando todo seu carter elitista e concentrador. Os avanos na ocupao dos territrios se deram a base de grandes investidas militares, assassnio indgena e criao de enormes fazendas-currais (concesses pblicas voltadas no para produo agrcola, mas para reas de livre pasto para o gado), empregando pouqussimos trabalhadores. Construram assim, os maiores latifndios da histria brasileira, em 1710, [os vila] tornaram-se senhores de 340 lguas de extenso territorial, s margens do Rio So Francisco e de alguns afluentes (ANDRARDE, 1973: 180). Entretanto, ao contrario da historiografia oficial das elites, no foi incumbncia destes grandes homens a ocupao do serto nordestino. Os movimentos de interiorizao sertaneja foram tocados pelos vaqueiros, muitos ex-escravos, posseiros da regio, cuidando da criao do gado, sofrendo os ataques defensivos dos indgenas. As populaes originrias que dominavam a caatinga sertaneja no viam com bons olhos a vinda do homem branco, sendo a guerra uma constante nesse processo. A ocupao espacial se deu forma bastante singular, tendo em vista a diferenciao dos aspectos produtivos desenvolvidos na regio. Os grandes sesmeiros mantinham seus currais nas reas mais frteis, abundantes em recursos hdricos, cujo comando comumente estava nas mos de algum escravo de confiana ou agregado mais prximo, cuja remunerao se dava, no em pecnia, mas no regime da quarteao, onde a cada quatro crias vingadas, uma lhe pertencia (Ibidem). A este ainda era dado o direito de produzir alimentos para subsistncia numa pequena gleba. Do outro lado se tinha os chamados foreiros, indivduos que reconhecendo a propriedade do grande senhor, submetiam-se a um regime similar ao da enfiteuse, formando os stios e obrigando-se ao pagamento de um foro anual. A agricultura se desenvolveu em pequenas reas, preocupadas essencialmente com o abastecimento alimentar dos currais, cabendo ao vaqueiro e sua famlia garantir o trabalho na terra. Com a crise da produo do acar, principal mercado consumidor de carne e couro do serto nordestino, os grandes currais comearam a entrar em processo de decadncia e suas terras aos poucos foram sendo ocupadas por posseiros e pelos trabalhadores

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    das prprias fazendas (escravos, libertos e livres). Gradualmente, o gado foi sendo substitudo pelos caprinos, por serem animais de pequeno porte, de manejo mais simples e barato, mais resistentes ao clima do semi-rido. Assim, constituiu-se uma forma singular de ocupao, produo e gesto da vida social na Caatinga (AATR, 2008: 19).

    A histria do serto tambm a histria das comunidades de fundo e feche de pasto5. Tais grupos sociais constituem um sistema de ocupao coletiva de terras que dentre os diversos elementos especficos de suas trajetrias histricas, trazem como traos caractersticos6: (i) forte relao de compadrio; (ii) herana da cultura indgena; (iii) presente a tradio africana; (iv) preservao da memria dos antepassados; (v) livre utilizao das reas pelos membros da comunidade; (vi) relao harmoniosa com o meio ambiente. Aspectos como auto-definio coletiva, forma de organizao social baseada na solidariedade, construo tradicional de prticas agro-silvo-pastoris, delinearam um jeito prprio de criar, viver e fazer prticas coletivas no serto (NOVA, 2007). A resistncia na luta pela terra tambm uma caracterstica marcante dessas comunidades sertanejas que ainda hoje lutam pelo direito de reproduzir seus modos de vida nos territrios tradicionalmente ocupados. As formas histricas de regulao jurdica do acesso a terra guardam relao direta com as formas tambm histricas de explorao do trabalho rural. O fundamental neste processo compreender o movimento de segregao dos trabalhadores rurais do meio de produo bsico sua subsistncia, que a terra. Essa paulatina dissociao amplia a converso dos antigos trabalhadores autnomos em assalariados rurais dos grandes empreendimentos agrcolas, e nesse movimento, o Estado cumpre papel protagonista contribuir para a reproduo dessas relaes precrias de

    5 Existem cerca de 300 de associaes de fundos de pasto na Bahia, totalizando 20 mil

    famlias, e mais de 100 mil sertanejos. At o momento foram regularizadas cerca de 60 reas. As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de foras sociais e polticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noo de "combate s secas" pela "convivncia com o semi-rido IN: http://www.pambazuka.org/pt/category/comment/52758 acessado s 21h45min. 6 Tais caractersticas foram definidas pelo conjunto de trabalhadores/as organizados/as na

    Articulao Estadual de Fundo de Pasto da Bahia constante na seguinte publicao: http://biblioteca.inga.ba.gov.br/phl82/img/arquivo/34_mma_02_fundodepasto.pdf

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    trabalho, atravs das polticas institucionais de fomento desse padro produtivo, mediada pelo seu exerccio jurdico.

    1.3. O TRABALHO CATIVO

    A economia colonial estava estruturada a partir dos desgnios da acumulao primitiva, com base na grande lavoura monocultora, direcionada ao abastecimento do mercado internacional em expanso, alicerada pela explorao intensiva de significativo contingente de mo-de-obra e enclausurada pelo pacto metrpole-colnia. A pequena propriedade rural no encontrou suporte para seu desenvolvimento integrado, restando-lhe papel secundrio na reproduo da ordem social vigente.

    A economia colonial movimentava-se em torno da agricultura de exportao e tinha no acar seu produto mais lucrativo. O processo de implantao da grande propriedade aucareira remonta aos idos de 1530-40, onde extenses infindveis de terra foram destinadas ao cultivo da cana-de-acar, sendo a sociedade do perodo colonial, reflexo fiel da sua base material (PRADO JR, 1980: 23-5).

    Baseado em um regime de explorao permanente, a unidade produtiva colonial encontrava-se alicerada sobre o pilar do trabalho escravo, j que no se mostrava possvel o usufruto de um contingente consideravelmente vantajoso (para os interesses econmicos metropolitanos) de trabalhadores livres, disponveis para vender sua fora de trabalho a preos miserveis. Isso porque, mesmo marginalmente, estes, em ltima hiptese, poderiam promover sua subsistncia atravs da posse da terra (ainda livre at a lei de 1850) ou da execuo de servios acessrios ao latifndio monocultor. Alm de cativo, o trabalho deveria ser compulsrio, devido s baixas taxas de produtividade e s margens estreitas de lucro, fatores que obrigavam a empresa colonial a subjugar permanente e disciplinadamente um grande quantitativo de trabalhadores expropriados.

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    1.3.1. A FORA DE TRABALHO INDGENA

    Inicialmente, a economia aucareira se desenvolveu atravs do subjugo da fora de trabalho das populaes que historicamente j ocupavam o territrio sul-americano. A insero da mo-de-obra indgena nas estruturas econmicas colonialistas, segundo SCHWARTZ (1988: 40-72), se deu, dentre outras formas especficas, atravs de trs estratgias mais expressivas do ponto de vista da espoliao do trabalho, articuladas por setores diferentes da sociedade da poca, segundo seus interesses. (1) Os senhores titulares das concesses de explorao utilizavam-se da coero direta, escravizando as populaes originrias em funo das necessidades de reproduo ampliada da produo aucareira, j caracterizada pelo uso intenso do trabalho humano cativo. (2) J as ordens religiosas, onde se destaca a atuao dos jesutas, cuidaram da formao de pequenas unidades produtivas campesinas indgenas, orientadas pela aculturao das comunidades em funo do padro cristo europeu de civilizao. E em menor escala, (3) a integrao atravs do trabalho assalariado, a partir de setores mdios, em atividades complementares grande lavoura. O que todas tinham em comum: o carter fsico e culturalmente depredatrio da explorao do trabalho, embora levadas a cabo de maneiras distintas. A escravido dos indgenas durou pouco em termos legais (aproximadamente de 1500 a 1570); contudo, [a grande propriedade aucareira] lanou mo de vrias formas de coero, bem depois dessa poca, para se obter o trabalho indgena (Idem, 40). Mesmo aps a edio da legislao que restringiu a escravido em 1570, a explorao da mo-de-obra originria continuou a ser utilizada. A produo aucareira era o sustentculo da acumulao da metrpole lusitana e a grande lavoura monocultora sua principal unidade produtiva (empreendimento privado dos colonos portugueses). O aumento dos valores recebidos como contraprestao concesso das sesmarias guardava relao diretamente proporcional com o aumento da produtividade agrcola. Os pontos de interseo entre concentrao fundiria, ampliao da mo-de-obra e intensificao da explorao do trabalho se tornam cada vez mais imbricados.

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    O ritmo de trabalho no campo era to intenso que repercutiu na desestruturao social de vrios grupos indgenas:

    As novas relaes de incorporao compulsria do trabalho ncola [indgena], alm de implicarem na desestruturao e inviabilizao da sobrevivncia do sistema organizacional dos grupos indgenas, tambm violava a diviso do trabalho tradicional das sociedades Tupi. (...). Outras razes tornavam a nova forma de trabalho para o grupo. Uma delas era a ruptura das suas formas de organizao do sistema produtivo e do consumo, que no se baseava nos moldes portugueses, mas numa concepo comunitria, na qual a preocupao com a formulao da solidariedade e das alianas era o elemento ordenador; e inviabilizar a reproduo social do grupo por no dispor do tempo necessria para as prticas tradicionais (PARASO, 2005: 6)

    Todo esse processo no se deu livre de tensionamentos. Revoltas, fugas, sabotagens, emboscadas, queimadas. Muitas foram as formas de resistncia indgena, obrigando a unidade produtiva a assumir tambm um carter militar. A guerra justa7 (similar ao instituto da legtima defesa, s que usada para dizimar e aprisionar povos) garantia a reposio legal da mo-de-obra escrava mesmo na vigncia da legislao restritiva de 1570, pois, autorizava o cativeiro dos indgenas rebeldes mobilizados contra o processo de colonizao. Brecha estratgica, pois, com um estado belicoso permanente, fruto das contradies impostas pelo regime aos povos originrios, a exceo j nascia regra.

    Em relao ao trabalho assalariado indgena, este era aplicado em atividades especficas na indstria do acar, variando a remunerao conforme a especialidade da mo-de-obra. Em 1596, a metrpole portuguesa passa a legislar sobre o assalariamento da fora de trabalho originria, estabelecendo taxativamente que os trabalhadores indgenas no poderiam passar mais de dois meses seguidos de prestao de servios ao engenho. Sem estruturas efetivas de cumprimento da lei, a norma jurdica vira letra morta, ficando o indgena a merc dos desgnios particulares da lavoura e sua dinmica destrutiva. A legislao proibia o uso desses trabalhadores a no ser como assalariados e assim deveriam ser tratados. Todavia, o padro de

    7 Autorizao do aprisionamento indgena nos casos de guerra contra os povos locais. Sobre o

    tema: (PARASO, 2005: 1-21).

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    explorao do trabalho era bastante precrio em comparao ao uso da fora de trabalho branca ou negra.

    No engenho de Sergipe, um nativo [indgena] carpinteiro recebia 20% do salrio pago aos brancos pela mesma tarefa. Durante o sculo XVII, os trabalhadores indgenas receberam apenas $020 por dia, e os artesos especializados, $030. Na dcada de 1630, a cmara municipal de Salvador pagou aos trabalhadores nativos um salrio dirio de $030, (...). Os escravos negros em contraste podiam ganhar em mdia $240 ris por dia (SCHWARTZ, 1988: 70).

    O uso da mo-de-obra indgena cativa esteve presente no processo de gnese da economia colonial e seu sistema de relaes de trabalho no pode ser compreendido como uma fase prfuga do perodo de acumulao primitiva do capital no Brasil. As formas de regulao e de insero da fora de trabalho dos/as ndios/as contriburam para a delimitao dos aspectos sociais e raciais que caracterizariam a sociedade colonial e marcariam profundamente a histria nacional, principalmente no que diz respeito relao do Estado com os povos primeiros8.

    O fato da fora de trabalho negra africana ter assumido dimenso preponderante na reproduo do capitalismo mercantil no interior da colnia, no representou obstculo contnua explorao dos indgenas ao longo do desenvolvimento das relaes sociais de produo no campo.

    8 Predominou durante muito tempo uma viso eurocntrica sobre a formao social das

    comunidades tradicionais, sendo estas consideradas resqucio de um passado remoto, reduzidas ao rtulo pseudo-cientfico de primitivas, cristalizadas no tempo, prontas a serem conduzidas ao caminho da civilidade, por meio da tutela do Estado. O Cdigo Civil de 1916 considerava como relativamente incapazes os ndios que ainda viviam em seus territrios tradicionais e mantinham suas culturas e modos de vida, intitulando-os de silvcolas (moradores das selvas). Fruto de uma srie de polticas institucionais de integrao (leia-se, aculturao) desenvolvidas desde o incio do sculo XX, com a criao do SPI Servio de Proteo ao ndio (1910), em 1973 entra em vigncia o Estatuto do ndio (Lei n. 6001/73), mesmo a norma elencando como uma de suas prioridades a garantia de preservao das culturas indgenas, ainda se verifica a poltica integracionista com vistas segurana e ao desenvolvimento nacional. Ver (AATR, 2008, p. 10-12).

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    1.3.2. A FORA DE TRABALHO NEGRA AFRICANA.

    [...] gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de trguas, nem de descanso: quem vir em fim toda a mquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilnia, no poder duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesvios, que uma semelhana de inferno (Pe. Antonio Vieira - 1633)

    A transio do uso da fora de trabalho indgena para a negra africana se deu num processo lento e gradual, encontrando-se intimamente ligada ampliao e complexificao das relaes sociais de produo na economia colonial (acelerada expanso em funo do crescimento do mercado europeu e dos elevados preos internacionais do acar). A substituio paulatina da mo-de-obra no pode ser compreendida pelas teses [racistas] da predisposio natural dos/as negros/as ao cativeiro, nem pela ociosidade das populaes originrias, guardando relao com um leque mais amplo de elementos sociais, polticos, econmicos e culturais.

    KOWARICK (1994) pontua que enquanto o aprisionamento da fora de trabalho indgena mostrava-se como problema exclusivo a ser resolvido internamente pela Coroa portuguesa (altos custos com as guerras justas), o trfico de africanos/as surgia como singular instrumento de acumulao primitiva mercantilista, na medida em que proporcionava a extrao de um duplo excedente de capital via comercializao monopolizada tanto da mo-de-obra como da produo agrcola gerada por esta9.

    A escravido dos povos africanos j se encontrava legislada num complexo de normas (codificadas, extravagantes e gerais do reino) antes da colonizao das terras brasileiras, sendo aqui introduzida como coisa lcita, onde o comrcio de escravos foi natural e suavemente estabelecido para a colnia, e at protegido e promovido pelo Governo (MALHEIRO, 1866: 24).

    9 Boa parte da mo-de-obra escrava provinha da parte ocidental do continente africano, de

    culturas que j dominavam o trabalho com o ferro, com pastoreio de gado e tinham familiaridade com a agricultura em longo prazo. Todos esses aspectos tornavam a apropriao da fora de trabalho africana mais estratgica na reproduo do capital aucareiro Segundo SCHWARTZ (1988: 72), o preo mdio de um africano arrolado com ocupaes em 1572 era de 25 mil-ris enquanto o de nativos com a mesma habilidades atingia apenas 9 mil-ris.

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    Assim, as polticas institucionais direcionadas ao trabalho agrcola tinham por objetivo maior resguardar

    O direito do senhor proprietrio sobre o homem escravizado, a lei garantia a imposio da vontade, o arbtrio do senhor sobre o escravo. A barateza e estabilidade forada do trabalhador agrcola sob a garantia da lei, sua obedincia rigorosa disciplina e submisso absoluta ao domnio e mando do proprietrio (ANLISE apud KIRDEIKAS, 2003: 3).

    O entendimento das condies e formas de trabalho travadas entre senhores e escravos na grande propriedade aucareira fundamental para se explicar a natureza das relaes sociais estabelecidas nessa sociedade. A intensa disciplina foi marca caracterstica das relaes escravocratas, onde a fora fsica e as punies faziam parte da jornada. Entretanto, os senhores tinham de lidar com uma contradio: ao passo que o disciplinamento rigoroso se mostrava fundamental para garantir a produtividade, seus excessos poderiam representar-lhes prejuzos devido ao alto custo de aquisio da mo-de-obra. Devido severidade do tratamento no interior das relaes de trabalho, com todos seus castigos e abusos fsicos, juntamente com a intensificao da resistncia dos escravos (aumento das revoltas, dos boicotes produtivos em funo das condies de trabalho) e da mobilizao da Igreja, a Coroa promulga duas leis dando a qualquer um, inclusive aos prprios escravos, o direito de denunciar os abusos s autoridades civis ou eclesisticas como forma de garantir o mnimo de proteo aos trabalhadores (SCHWARTZ, 1988: 123).

    Pssimas condies nutritivas, de alojamento, de vestimenta, a maioria dos/as africanos/as passava boa parte do dia labutando nos campos de cana-de-acar, quando no se faziam jornadas noturnas. Ao analisar os processos de trabalho nos engenhos da Bahia, o historiador detalha que se exigia de cada trabalhador cativo sete mos de cana por dia de lida. Cada mo consistia em cinco dedos, cada dedo continha dez feixes e cada feixe doze canas. Portanto a cota diria era de 7 mos x 5 dedos x 10 feixes x 12 canas ou seja 4200 canas o total apontava o historiador (Idem, 129).

    O canavial e o interior da manufatura aucareira representavam os trabalhos regulares que ocupavam a maior parte da jornada da fora de

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    trabalho africana, afora todos os tipos de servios eventuais orientados pelas necessidades e desejos dos senhores de engenho a completar a jornada dos trabalhadores. Os aparatos de controle da produtividade e da disciplina dentro do canavial se davam atravs do terror premeditado exercido pela figura do gerente-feitor-capataz (incentivo negativo produo). Entretanto, essa vigilncia apesar de intensa no obstava a resistncia do trabalhador escravizado dentro do processo de produo (principalmente por meio dos boicotes10), impondo grande lavoura latifundiria sempre um padro baixo de produtividade. Sem falar nos mtodos precrios de cultivo, na destruio da biodiversidade, no empobrecimento do solo, na reduo das reas de subsistncia, fatores que contribuam para a manuteno da taxa mdia de produo em nveis rasteiros.

    O ritmo intenso de trabalho tambm advinha da alta quantia investida para se ter acesso mo-de-obra. Assim, como o senhor de engenho aplicava um alto custo na compra da fora de trabalho, o retorno do seu investimento somente viria ao longo da vida produtiva do escravo. A imposio de uma rotina extenuante de trabalho surgia como forma de se tentar resgatar o investido o mais rpido e extrair o mximo de excedente possvel. A rentabilidade da economia colnia encontra-se vinculada ao grau de explorao do trabalho. O envelhecimento precoce da mo-de-obra ocasionado pela intensa explorao da fora de trabalho era um problema enfrentado pelos senhores latifundirios, mais ainda pelos prprios escravizados. Acidentes de trabalho eram comuns, principalmente nas atividades mais delicadas, como nas moendas.

    Um [a] escravo [a] inexperiente, ou que se tornasse desatento por haver trabalhado demais ou se embriagado com a garapa distribuda aos cativos durante a safra, podia facilmente ter a mo esmagada pelos tambores, junto com a cana. Se tal acontecesse numa moenda de grande porte, o corpo inteiro poderia seguir-se ao brao. [...] um p-de-cabra e uma machadinha eram mantidas prximos moenda para, no caso de um escravo ser apanhado pelos tambores, estes serem separados e a mo e o brao amputado, salvando-se a mquina [a produo] de maiores estragos (Idem, 130).

    10 Destruio dos instrumentos de trabalho, controle do tempo de execuo das tarefas,

    incndios nos canaviais, revoltas, dentre outras.

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    Os incentivos positivos (prmios e recompensas) produo tambm foram utilizados pela grande lavoura como forma de ampliar a produtividade e para se conquistar, mesmo que temporariamente, a colaborao dos escravizados. Porcentagens sobre a produo, distribuio de bebidas alcolicas, brecha camponesa11, eram algumas dessas formas que obviamente variavam a depender de senhor para senhor, dos costumes regionais, das demandas especficas do mercado, do grau de satisfao com o regime, mas no geral guardavam similitudes.

    A atribuio de salrio por cotas de produo ou por tarefas aos assalariados especializados tambm era utilizada como estmulo mo-de-obra. Atravs do uso combinado dos incentivos produtivos e da coero, a grande lavoura conformava um sistema de trabalho orientado extrao da mxima produtividade do trabalhador a ela vinculado, regime cujas marcas desdobram-se ainda hoje nas formas de insero do trabalhador rural no mercado de trabalho.

    Todos esses elementos mostram que as relaes de trabalho estabelecidas entre proprietrios e escravos eram mais complexas do que o simples cativeiro. Articulavam uma srie fatores visando ampliao da produtividade dos empreendimentos agrcolas, avanando ou recuando a depender da correlao de fora das partes envolvidas.

    1.4. CRISE E TRANSIO DO TRABALHO CATIVO

    As determinaes especficas tanto da unidade produtiva colonial (latifndio) como da organizao social do trabalho (escravo e livre) so partes constitutivas do desenvolvimento singular do capitalismo no Brasil. Sua compreenso deve ser dar a partir da relao dialtica, e no subordinada, entre formaes sociais distintas (metrpole e colnia), articuladas num determinado perodo histrico. So estruturantes e estruturados. Por isso, a anlise combinada dos fatores endgenos e exgenos referentes colonizao

    11 Possibilidade [consentida ou no] do escravo cultivar seus prprios alimentos atravs do

    trabalho em roas de subsistncia, sendo uma das pouqussimas possibilidades de acumulao de algum ordenado, normalmente poupado para no futuro ser despendido na compra da sua prpria liberdade e/ou de seus familiares. Na verdade alm dos dias trabalhados na grande lavoura, para o senhor era interessante que o escravo retirasse seu sustento atravs da sua cona e risco.. Sobre o tema: (REIS, 2005.)

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    brasileira se torna fundamental, na medida em que se busca compreender os pontos de interseo entre o desenvolvimento das foras gerais do capital a nvel global e as especificidades do processo histrico brasileiro.

    Durante a maior parte do sculo XIX, a economia nacional vivenciou um forte perodo de expanso da lavoura exportadora, com o crescimento das cidades e a intensificao do trabalho escravo. tambm neste sculo que a escravido brasileira chega a seu pice, difundida como estava em todo o territrio nacional, nos diversos setores da economia, conformando praticamente todas as instituies sociais (REIS, 1995: 2).

    A escravido estruturou-se [de maneira geral e sistemtica] ao longo de quase quatro sculos e os mecanismos de resistncia do povo negro dominao poltico-econmica estiveram fortemente presente em seu desenvolvimento interno. Desde o boicote ao sistema produtivo a insurreies envolvendo grande contingente de africanos/as12, as respostas populares ao regime escravista se deram de variadas formas e por uma quantidade igual de motivos.

    As rebelies representaram a via mais incisiva de resistncia coletiva dos escravos. Seja pela destruio completa do escravismo; pela sua simples reforma visando corrigir excessos de tirania at um limite tolervel de opresso ou mesmo no intuito de se conseguir benefcios em funo do trabalho prestado os objetivos estratgicos que orientaram as lutas dos/as trabalhadores/as negros/as foram muitos (Idem). As revoltas ganharam amplitude no sculo em destaque pela conjuntura favorvel de expanso dos ideais libertrio-abolicionistas na sociedade brasileira, ficando a batalha de idias a cargo dos setores mdios. Somente na Bahia, num curto perodo de tempo, revoltas e rebelies fervilharam a sociedade escravocrata podendo-se citar as de 1798 (Revolta dos Bzios), 1807, 1809, 1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, 1828, 1830, 1835 (Revolta dos Mals), alm de inmeras outras travadas silenciosamente no interior do regime e que no viraram registro na historiografia brasileira (VERGER, 1987).

    12Segundo o historiador Joo Reis (1995), foi no sculo XIX que o pas recebeu o maior nmero de africanos, estima-se que na primeira metade do sculo tenham chegado mais de um milho e meio de africano principalmente pelo porto do Rio de Janeiro, o maior porto escravista do Atlntico.

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    Outro importante instrumento de luta para a derrocada do escravismo foi o processo de formao dos quilombos. Baseando-se no reconhecimento tnico-racial, proporcionado pela opresso poltica e econmica dos povos negros, os quilombos materializavam outra forma de vida, de relao de produo. Para Joo Reis (1996: 16), alm dos africanos e seus descendentes, as formaes quilombolas aglutinavam uma diversidade de segmentos sociais explorados13 direta e indiretamente pela escravido, sendo o local onde se administravam as diferenas, forjando novos laos de solidariedade, recriando culturas. O Conselho Ultramarino de 1740 definia quilombos como toda habitao de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que no tenham ranchos levantados e nem se achem piles nele. Tal conceito no exprimia de fato a realidade, no representando a complexa rede de relaes que envolviam os agrupamentos quilombolas. Combatendo a historiografia oficial, REIS (1996: 18) atesta que

    embora [as comunidades estivessem situadas] em lugares protegidos, os quilombolas na sua maioria viviam prximos a engenhos, fazendas, lavras, vilas e cidades, na fronteira da escravido, mantendo uma rede de apoio e interesses que envolvia escravos, negros livres e mesmo brancos, de quem recebiam informaes sobre movimentos de tropas e outros assuntos estratgicos. Com essa gente eles trabalhavam, se acoitavam, negociavam alimentos, armas, munies e outros produtos; com escravos e libertos podiam manter laos afetivos, amigveis, parentais e outros.

    Assim, os quilombos representavam risco em potencial aos interesses econmicos e polticos das elites agrrias, pois, concreta e simbolicamente manifestavam para os escravos possibilidade de vida diversa ao cativeiro imposto pelo senhorio latifundista, comprometendo a ordem social vigente. Por isso foram to duramente combatidos. As comunidades negras de quilombos trouxeram na sua gnese a intensa resistncia que no ficou restrita ao passado. Mais de duas mil comunidades quilombolas disseminadas ao longo de todo territrio brasileiro mantiveram-se vivas e atuantes, lutando pelo reconhecimento do direito de reproduo sociocultural de suas formas de vida em suas terras tradicionalmente ocupadas14.

    13 Para ali tambm convergiram outros tipos de trnsfugas, como soldados desertores, os

    perseguidos pela justia secular e eclesistica, ou simples aventureiros, vendedores, alm de ndios pressionados pelo avano europeu (REIS, 1996: 16). 14

    Ver http://www.cpisp.org.br/comunidades/; S na Bahia, de 2004 a 2009, 258 comunidades remanescentes quilombolas foram certificadas, segundo dados da SEPROMI Secretaria de

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    As presses pelo fim da escravido tambm chegavam de alm-mar. Impulsionando o ritmo da acumulao de capitais a nvel global, a Inglaterra forjava em seu interior revolues urbano-industriais que gradualmente foram repercutindo nas estruturas socioeconmicas do regime escravista. As transformaes do modo de produo capitalista, por meio de sua tendncia expansionista, alavancadas pela ampliao da maquinofatura, exigiam a ampliao do mercado de consumo como forma de absorver a produo em larga escala e o escravismo mostrava-se como problema a ser superado. No sistema colonial, o pagamento da fora de trabalho se dava inteiramente fora da colnia, limitando a baixos nveis o fluxo monetrio consumidor interno (GNACCARINI, 1980). Em 1845, o parlamento ingls aprova a Lei do Bill Aberdeen15, marco [institucional] no combate internacional do trfico de escravos. A legislao autorizava a marinha britnica a interceptar os navios e submeter sua tripulao jurisdio inglesa como forma de coagir o comrcio ilegal de mo-de-obra.

    No Brasil, em 1830, o trfico de escravos j tinha sido considerado atividade ilegal, mas com a edio da Lei n. 581 de 4 de setembro de 1850, mais conhecida como Lei Eusbio de Queiroz, que a poltica legislativa de combate ao trfico de escravos, pelo menos simbolicamente, assume maior dimenso. Nesta data, o comrcio de mo-de-obra escrava africana estava [institucionalmente] proibido, entretanto, no impediu a continuidade das prticas de submisso dos trabalhadores ao cativeiro. Uma informao interessante que muitos escravos de origem africana, importados aps o ano de 1831, impetraram aes contra seus proprietrios, por se encontrarem em estado de escravido ilegal. Embora as aes de liberdade tivessem um carter mais individualizado de resistncia escravido (na medida em que no se estruturava como instrumento coletivo de enfrentamento), exerceram grande papel na conjuntura das lutas antiescravistas, principalmente pelos boatos generalizados atravs dos canais informais sobre tal possibilidade de

    Promoo da Igualdade do Governo do Estado da Bahia. Destas, somente quatro tiveram reconhecidos seus direitos de propriedade com base no art. 68 do ADCT/CF-88 e no decreto n. 4887/2003 (cuja validade constitucional deste ltimo instrumento vem sendo atacada pelos setores conservadores na ADIN n. 3239). 15Texto legal na ntegra: http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=bill-aberdeen-integra-londres-1845, acessado em 08 de maio de 2011.

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    ruptura com o domnio da grande propriedade, incrementando o estado de mobilizao das populaes negras (S, 2010).

    Outra frente importante de presso internacional pelo fim da escravido foi impulsionada pela fora dos trabalhadores de outras terras. A metrpole francesa amargou a tomada do poder poltico da ilha caribenha de So Domingos, uma das colnias mais lucrativas [e exploradas] do Novo Mundo. A Revoluo Haitiana ou Revolta de So Domingos (1798-1804) marcou a construo do primeiro Estado negro das Amricas, aps sangrentas batalhas entre escravos revolucionrios, elites coloniais e o Estado francs. Os transtornos foram fatais para os senhores, suas famlias e propriedades (AZEVEDO, 2008: 28). A revoluo tornara-se smbolo das lutas escravas em todo o hemisfrio, mostrando que a classe senhorial no era invencvel (REIS, 95: 10). Para os latifundirios brasileiros tal rumo no parecia impossvel de se reproduzir por aqui. Isso porque, elementos concretos podiam ser retirados da realidade histrica do sistema colonial nacional como sua grande absoro de mo-de-obra africana, forjando um imenso contingente de escravos e principalmente pelas insurreies terem sido uma constante em seu desenvolvimento.

    Seja por fatores internos ou externos ao sistema colonial brasileiro, a questo da transio do trabalho escravo estava colocada. No primeiro quarto do sculo XIX, a escravido j apresentava seus limites estruturais frente s novas demandas impostas pelo capital a nvel global, principalmente no que diz respeito ao seu baixo padro de produtividade. Num cenrio crescente da competitividade internacional e de perda de posio dos produtores nacionais, a substituio da fora de trabalho aparecia como importante elemento a ser pensado.

    As elites polticas entediam que o fim do escravismo sem a construo de um processo planejado de reposio da mo-de-obra poderia acarretar numa grave crise econmica, uma vez que todo o sistema de extrao do excedente se encontrava estruturado na intensa explorao de um grande contingente de trabalhadores. Aliado a isso vinha a questo da subordinao regular dessa nova fora de trabalho, que sob novas orientaes precisava ser disciplinada.

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    Assim, ao longo da segunda metade do sculo XIX foram promovidas inmeras medidas com vistas a cuidar da transio do trabalho escravo, mas sem alterar os interesses e privilgios polticos da ordem social vigente. A atuao do Estado no intuito de viabilizar esse processo foi crucial. Comeando pela terra.

    A independncia do Brasil no ano de 1822 representou juridicamente o fim da vigncia do corpo de leis lusitanas no territrio brasileiro. Com ela se foi o regime de sesmarias, ficando a estrutura fundiria sem regulamentao pelas dcadas seguintes. Nesse perodo, multiplicaram as ocupaes de pequenas glebas por posseiros voltadas tanto para subsistncia como para o abastecimento do mercado local. Com um regime de posse aberto, o trabalhador poderia ter acesso ao meio de produo necessrio sua sobrevivncia sem ter que se subjugar aos mandos dos latifundirios. Foi em 18 de setembro de 1850, com a edio da Lei n. 601, mas conhecida como a Lei de Terras, que se impe o instituto da compra e venda como mecanismo legal de aquisio de novas terras. Legitimava-se a grande propriedade, batizando o latifndio, ao mesmo tempo em que liberava os trabalhadores para venderem sua fora de trabalho, j que no tinham condies de acessar formalmente o meio de produo. A pequena posse do trabalhador rural negro no foi reconhecida, pois, a preferncia estava nas reas adquiridas por doaes de sesmarias.

    A Lei de Terras (BRASIL, 1850) cumpriu um papel estratgico num momento de significativas mudanas na forma de organizao e reproduo do capital no campo e na cidade, afastando o trabalhador do acesso ao meio de produo, legitimando sua condio de proletrio, pronto para vender sua fora de trabalho para o projeto em ascenso.

    Em 1871, a Lei n. 2040, ou Lei do Ventre Livre, extinguia o ltimo elemento de reposio da mo-de-obra no cativeiro (tirando o fato de que os filhos de escravas nascidos na vigncia dessa lei se mantinham vinculados ao senhor latifundirio at os vinte e um anos completos). Dentre sua disposies destacam-se duas mais significativas para a anlise. A primeira foi a preocupao do legislador (leia-se Estado) com a questo da disciplina para o trabalho do liberto ao estabelecer a necessidade desse indivduo recm sado

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    da escravido voltar a submeter regularmente sua fora de trabalho aos comandos da capital:

    Art. 6. - Sero declarados libertos: 5. - Em geral, os escravos libertados em virtude desta lei ficam durante 5 anos sob a inspeo do govrno. les so obrigados a contratar seus servios sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos pblicos. Cessar, porm, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exigir contrato de servio (BRASIL, 1871).

    O que a transio tinha que representar era a substituio das formas de aprisionamento do trabalho humano, passando gradualmente da coero fsica [mas sem super-la] para os tipos de assalariamento, condicionando a sobrevivncia do trabalhador venda da sua fora de trabalho. Assim, era fundamental que o recm liberto continuasse a subjugar seu trabalho, continuasse a submeter-se regularmente a vida do trabalho, no podia ser autnomo (pois no tinha condies) e nem vadio (pois sua fora de trabalho era indispensvel para o projeto de acumulao em andamento) (KIRDEIKAS, 2003: 5).

    O segundo elemento da Lei do Ventre Livre (BRASIL, 1871) foi a autorizao da formao de um peclio (tipo de poupana) prprio do escravo, proveniente de doaes, heranas, legados ou mesmo de remunerao por trabalhos.

    Art. 4. - permitido ao escravo a formao de um peclio com o que lhe provier de doaes, legados e heranas, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O governo providenciar nos regulamentos sbre a colocao e segurana do mesmo peclio.

    Esse dispositivo incidiu diretamente na configurao da situao da mo-de-obra anos depois, no momento da abolio. O peclio foi utilizado em larga escala como forma do escravo comprar sua liberdade nas mos do seu senhor, garantido de alguma forma a disciplina necessria ao trabalho e a restituio do valor investido com a mo-de-obra, dinamizando a extrao do seu excedente. Em seu conjunto, os escravos no Brasil eram 1.715.000 em 1864, 1.540.829 em 1874, 1.240.806 em 1884 e apenas 723.419 em 1887, s vsperas da abolio (REIS, 95: 3).

    As mesmas preocupaes com a submisso regular da fora de trabalho liberta foram expressas na Lei dos Sexagenrios n. 3270 de 28 de setembro de 1885, destacando-se os pargrafos 17 e 18 do artigo 3 ao disporem:

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    17. Qualquer liberto encontrado sem occupao ser obrigado a empregar-se ou a contratar seus servios no prazo que lhe fr marcado pela Policia (BRASIL, 1885). 18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinao da Policia, ser por esta enviado ao Juiz de Orphos, que o constranger a celebrar contrato de locao de servios, sob pena de 15 dias de priso com trabalho e de ser enviado para alguma colonia agricola no caso de reincidncia (BRASIL, 1885).

    Bem como o pargrafo 5 do artigo 4 estabelece: 5 O Governo estabelecer em diversos pontos do Imperio ou nas Provincias fronteiras colonias agricolas, regidas com disciplina militar, para as quaes sero enviados os libertos sem occupao (BRASIL, 1885).

    Depois de um longo perodo de transio, de forte atuao institucional, onde boa parte da fora de trabalho j no mais se encontrava no cativeiro, depois de anos de sangue e suor dos povos negros, a Lei n. 3353 de 13 de Maio de 1888, com a assinatura da Princesa Imperial Regente Izabel em nome de sua Majestade Imperador, declara extinta [formalmente] a escravido.

    1.4.1. A TRANSIO NORDESTINA

    O processo de ocupao territorial do nordeste brasileiro esteve diretamente ligado ao desenvolvimento das atividades econmicas da grande lavoura canavieira, desde o perodo colonial. Paralela produo do acar, a pecuria extensiva ocupou papel caracterstico na conformao da estrutura fundiria nordestina e nas formas de vida do semi-rido.

    No incio da produo pecuria no serto, os primeiros senhores de engenho assumiram a promoo de unidades de produo pecuria subordinadas e mantidas por eles. Com o tempo, criadores especializados foram assumindo a atividade, consolidando enormes sesmarias dedicadas pecuria (FERRARO JR, 2008:30)

    Um fator singular no desenvolvimento socioeconmico nordestino foi o processo de transferncia da competncia jurdico-administrativa das terras devolutas16 para o domnio dos estados federados. s oligarquias regionais foi dada a responsabilidade pelo desenvolvimento das polticas institucionais de concesso de terras, ampliando o domnio poltico local e a concentrao

    16 A Lei de Terras passou a estabelecer que as propriedades que no fossem regularizadas,

    segundo os critrios imperativos (art. 3 e ss.) seriam devolvidas ao patrimnio do Estado, por isso chamada de terras devolutas. Ver: (TEIXEIRA, 2008).

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    fundiria (MARTINS, 1981). Esse processo contribuiu para o desenvolvimento do fenmeno do coronelismo17, trao marcante da histria poltica nordestina.

    Um dos aspectos da diferenciao da poltica de terras entre nordeste e sudeste estava na forma de insero da fora de trabalho livre nas grandes unidades de produo.

    No Sudeste, mais especificamente em So Paulo, os trabalhos anteriormente executados pela fora de trabalho negra escravizada passaram a ser realizados por colonos europeus, sendo este trabalhador livre que recebia salrio (em espcie e/ou in natura), tinha direito a uma gleba de subsistncia, recebendo eventualmente por servios extraordinrios, sendo permitido contratar trabalhadores avulsos para auxili-lo na cultura particular, trabalhando ainda uma quantidade de dias gratuitos para o fazendeiro (Idem, 44).

    Na regio Nordeste, a economia canavieira j demonstrara a muito sua derrocada como plo dinmico da produo nacional, muito em funo das conseqncias sociais do regime da grande lavoura, da baixa produtividade dos empreendimentos, da alta concorrncia internacional (antilhana e cubana) e da interrupo [legal] do trfico de escravos africanos. Com a transferncia do centro de reproduo econmica para o eixo sudestino, tendo no estado de So Paulo seu plo mais importante, juntos foram tambm boa parte dos escravos, vendidos como forma de recompor as divisas do senhorio em forte crise econmica. Os antigos moradores da regio (ex-escravos, trabalhadores livres), dedicados produo de subsistncia e a prestao de trabalhos eventuais ao latifndio, foram sendo incorporados como trabalhadores assalariados. Para ter acesso terra de subsistncia, deveria oferecer seu trabalho por determinados nmero de dias gratuitos ou mediante baixa remunerao no canavial (Ibidem). Diretrizes histricas distintas produzem snteses sociais distintas.

    As relaes de trabalho desenvolvidas na produo agroexportadora nordestina, em especial na cana-de-acar sempre tiveram na intensa explorao da mo-de-obra sua caracterstica fundamental, impondo ao

    17 Os chefes polticos municipais ou regionais acabaram sendo conhecidos como coronis.

    [...] O coronelismo se caracterizou pelo rgido controle dos chefes polticos sobre os votos do eleitorado , constituindo [aquilo que se intitula pejorativamente em relao figura do/a nordestino/a] os currais eleitorais e produzindo o voto de cabresto (MARTINS, 1981: 46)

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    trabalhador um ritmo de trabalho altamente degradante que ainda hoje se reproduz. Tal tema ser objeto de anlise mais aprofundada no captulo terceiro do presente trabalho, com destaque s relaes de assalariamento temporrio rural na regio Submdio do So Francisco.

    1.4.2. A TRANSIO SUDESTINA

    O processo de transio do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil no pode ser apreendido pela relao simplria e maniquesta que contrape um suposto negro despreparado para o trabalho livre, incapaz de interagir com os novos padres do capitalismo em expanso contra um europeu racionalista, politicamente ativo, forjado pelas contradies da grande produo agrcola e industrial (AZEVEDO, 2008: 18).

    Mais do que alardear uma dicotomia entre a irracionalidade do regime escravocrata e a racionalidade do trabalho livre ou mesmo uma hierarquizao abstrata e ahistrica de variveis mais ou menos importantes para se explicar a gnese do assalariamento no Brasil, o presente trabalho buscar abordar o tema atravs da anlise articulada das especificidades do desenvolvimento das formas de organizao da produo e do trabalho no sistema colonial brasileiro com as transformaes ocorridas no modo de produo capitalista a nvel global.

    A marginalizao do povo negro no pode ser explicada somente pelos elementos internos do escravismo (polaridade senhor-escravo manifestada em diversas dimenses da vida social), pois, sendo as relaes sociais escravistas desenvolvidas no Brasil componentes de um todo (processo de colonizao envolvendo outros atores sociais),

    a desarticulao e a fragmentao desse todo opera uma amputao do mesmo e elimina a possibilidade de conhec-lo como tal. O conhecimento de uma regio do todo no ainda conhecimento do todo, porque o conhecimento de partes isolados do conjunto no conhecimento nem das partes e nem do conjunto (CARVALHO, 2008: 2).

    O ponto de partida a compreenso de que os rearranjos da substituio do trabalho cativo para o trabalho livre orientaram-se [prioritariamente] pela manuteno dos privilgios classistas da elite agroexportadora brasileira. A partir desse entendimento, pode-se partir para

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    uma breve anlise de como se deu a insero da fora de trabalho imigrante na grande lavoura nacional e analisar sua dinmica de explorao.

    O desenvolvimento das relaes sociais de produo no sistema colonial brasileiro esteve baseado na concentrao de recursos em grandes unidades produtivas, no regime de plantation, explorando grande contingente de mo-de-obra. Tal formao no impediu, mas obstaculizou formas de produo alternativas ao modo imposto pelo monoplio comercial metropolitano, relegando as pequenas propriedades e os trabalhadores livres nacionais execuo de atividades acessrias ao latifndio monocultor.

    Com o fim do trfico de escravos, o problema da reposio da fora de trabalho aparecia, no mnimo, como elemento preocupante para a economia, j que a base de extrao de excedente da classe senhorial se encontrava na explorao intensa de grande quantidade de trabalhadores. Nesse sentido, a grande lavoura precisa no necessariamente de escravos (que no perodo da abolio j eram reduzidos), mas sim de mo-de-obra suficientemente barata para que as fazendas produzissem em custos mnimos, ampliando a acumulao.

    O empresariado no tinha como se apoiar no contingente interno de trabalhadores livres, tendo em vista a relao social especfica desenvolvida historicamente deste segmento com o trabalho, ainda mais o braal, para quem no era escravo. Assim, em funo da rigidez da ordem escravista colonial, resumidamente composta pelos senhores, escravos e a burocracia cvico-militar, a insero produtiva fixa dos homens livres na estrutura social se mostrou insuficiente, restando a estes o desenvolvimento de atividades marginais nas grandes glebas senhoriais (KOWARICK, 1994).

    Os negros escravizados e o conjunto dos trabalhadores livres j conheciam e muito as benesses advindas dos servios prestados ordem senhorial e construram historicamente, no interior do regime escravista, seus mecanismos de resistncia dominao poltica, econmica e cultural impostos por essa ordem.

    nesse contexto que insere os movimentos de intermediao internacional de mo-de-obra, alavancados em meados do sculo XIX. Nessa poltica institucional, o negro foi preterido do processo produtivo, inexistindo

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    mecanismos compensatrios s mazelas sociais produzidas pelo cativeiro prolongado. A ao oficial proporcionou o aprofundamento da marginalizao e proletarizao do povo negro. A imigrao de trabalhadores estrangeiros para os cafezais paulistas veio como estratgia das elites para dinamizar a produo agropecuria numa conjuntura crescente de competitividade mercantil, sem falar nos sinais claros de definhamento do regime escravista. Os grandes produtores necessitavam de trabalhadores material e culturalmente expropriados para manuteno/reproduo lucrativa dos empreendimentos agrcolas.

    Nessa transio, diversos outros aspectos perpassaram os planos discursivos pblicos e privados, tendo como idia central a passagem de um Brasil repleto de arcasmos, marcado pela relao antagnica entre senhores e escravos, para um novo Brasil, orientado pelas leis de mercado, onde trabalhadores e patres teriam liberdade e igualdade de condies jurdicas para celebrar relaes trabalhistas (AZEVEDO, 2008).

    Sem dvida, os contornos e conflitos tnico-raciais estiveram presentes tambm como elementos condicionantes das polticas de imigrao, alavancados pelo crescimento das teses do racismo cientfico tanto na Europa como nos Estados Unidos. Disseminao de idias como a inferioridade natural dos/as negros/as, colocando os problemas estruturais do regime de trabalho escravo como questes inerentes prpria raa foram justificativas utilizadas para explicar a nova fase de desenvolvimento do capitalismo no Brasil (Idem, 54).

    Era necessrio embranquecer a populao brasileira, com base na idia de inferioridade do negro, da sua no adaptabilidade aos novos moldes de produo (trabalho livre para o desenvolvimento do liberalismo e capitalismo), e de decretao da sua invisibilidade (BONFIM, 2008: 66).

    Um aspecto interessante que o problema da substituio do trabalhador escravo exprimia-se de formas distintas tanto para o Estado (atravs do exerccio jurdico-normativo) como para os grandes produtores latifundistas. Para o