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    37 Encontro Anual da ANPOCS

    Cartografias Afetivas na Cidade:

    As esferas de per tencimento de jovens trafi cantes da Baixada F lumi nense

    Diogo Lyra

    Sobre Periferias: novos conflitos no espao pblicoST 15

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    Cartografias Afetivas na Cidade:

    As esferas de pertencimento de jovens traficantes da Baixada Fluminense

    Diogo Lyra 1

    Resumo:

    Este paper trata da subjetividade de jovens traficantes do estado do Rio de Janeiro, maisespecificamente sobre os processos de construo e ampliao de suas esferas de pertencimento a partir das interaes que estabelecem com outros indivduos e lugares.Com base no exame de algumas de suas categorias nativas, pretendo oferecer umcontraponto noo de ruptura social evocada por uma parcela considervel de pesquisadores como termo explicativo de sua condio singular.

    Palavras-chave: juventude; trfico; violncia; valores; etnografia.

    Introduo:

    Com algumas excees, a linguagem da violncia parece ser o ponto de encontro entre pesquisadores e pesquisados quando o tema em foco so os jovens pertencentes sfaces criminosas ligadas ao comrcio de drogas. Identificados como protagonistas daviolncia urbana, esses jovens comumente so interpretados como indivduos rompidos

    com a ordem social, refutando seus valores mais caros em nome da satisfao de seusdesejos mais mundanos. Alheios moralidade vigente, responderiam apenas s suas pulses sem considerar mecanismo outro que no a instrumentalizao de objetos e seres

    1 Doutor em Sociologia pelo IUPERJ. Pesquisador no programa Drugs, Security and Democracy Fellowship Social Science Research Council. Pesquisador Associado do Ncleo de Estudos daCidadania, Conflito e Violncia Urbana (NECVU/UFRJ ). Este artigo fruto de uma pesquisa empricarealizada entre jovens internos de uma unidade socioeducativa na cidade de Nova Iguau, estado do Rio deJaneiro. O trabalho de campo, realizado em 2008, constituiu a base da minha tese de doutorado defendida

    no IUPERJ em 2010, A Repblica dos Meninos , publicada em 2013 pela editora Mauad em parceria com aFAPERJ.

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    humanos no intuito da maximizao de seus interesses, construindo-se ambiguamente nolimiar entre a racionalidade de suas escolhas e a irracionalidade de seus atos2. Uma vezque sua conduta seria marcada apenas pela violncia, todas as suas aes tendem a seranalisadas sob este prisma, de forma a confirmar um status presumido de incivilidade,concebido a partir de repertrios culturais rgidos, que encapsulam a existncia desses jovens no plano mais bvio da fora, do egosmo e da ruptura social.

    Minha inteno neste trabalho oferecer um contraponto a esta perspectiva. Nessesentido, comeo com uma inverso de proposies: o interesse subjacente a esta reflexo o de compreender traos de uma determinada juventude e no um determinado tipo deviolncia do qual certa juventude constitui um dado agregado. Para tanto, parto do pressuposto consolidado entre tericos do interacionismo de que indivduos agem emrelao s coisas conforme o significado que a elas atribuem e que este significadoantecede ou deriva da prpria interao, sendo controlado ou transformado a partir de processos interpretativos levados a cabo por esses indivduos3. Assim, minha nfaserecair nos processos de interao social descritos pelos jovens que estudei durante meutrabalho de campo com internos de uma unidade socioeducativa da cidade de NovaIguau, buscando compreender de que maneira esses adolescentes so capazes de criarlaos coletivos, situando-os para alm do mero interesse racional/irracional evocado poruma parcela expressiva de pesquisadores.

    A partir da anlise de algumas de suas categorias nativas, demonstrarei que no lugar danoo de ruptura como elemento definidor da condio desses jovens persiste o temado isolamento social, que se manifesta de maneira geogrfica tanto quanto simblica,

    dificultando, mas no impedindo, a ampliao de suasesferas de pertencimento .

    Por esfera de pertencimento me refiro ao conjunto de pessoas e lugares aos quais esses jovens se sentem ligados afetivamente e que se afirma como produto direto de suas trocassociais. Sua composio determinada por categorias que ilustram no s diferentesnveis de interao, como tambm graus variados de identidade que dialogam

    2Este ponto de vista pode ser encontrado em Zaluar (1985; 1994); Velho (1996); Spagnol (2005); Gomes

    (2003), entre inmeros outros.3 Cf. Blummer (1969), mas tambm em Mead (1962), Schutz (1979) e Garfinkel (1984).

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    diretamente com os significados atribudos a cada uma destas interaes. Trata-se de umsistema classificatrio pautado no clculo afetivo, cujas categorias ora podem se referir aum determinado tipo de indivduo, e nesse caso eles so apresentados como personagensde afeto ; ora a algum lugar, constituindoespaos simblicos de identidade . Minhainteno apresentar trs nveis de interao distintos que redundam na ampliao daesfera de pertencimento desses jovens. Analiso ocria , o nibus e o playboy , categoriasrepresentadas como uma escala crescente de ampliao de identidades coletivas. Vamosa elas.

    1- O cria:

    A categoriacria diz respeito a todo morador, envolvido ou no com o crime, cujas razesao mesmo tempo remetam e se encontrem fincadas na favela4 onde vive. Ele , portanto,a forma maiselementar de classificao produzida pelos garotos armados; a primeiraidentidade coletiva gerada nos crculos concntricos de afeto mobilizados pelos jovens naconstruo simblica do seu mundo social. Mas o que faz docria um indivduo especial?Quais so seus atributos sui generis ?

    As qualidades docria dizem respeito s qualidades da prpria comunidade. Ocria asencarna, personifica num nico corpo todas as instncias simblicas da dinmicacoletiva. Ocria homem e memria, substncia e sentimento, carne e esprito de suacomunidade. Sujeito nascido e criado no morro onde vive, com ele se confunde a tal ponto que partilha, junto aos outroscrias , de um status fraternal cujo peso simblico considervel. Ocria por si s uma identidade poltica, mas tambm uma categoriaafetiva na qual todos so percebidos como filhos da comunidade e esto, por isso,

    obrigados a certos deveres uns com os outros.

    O cria , como filho da comunidade, tambm um irmo local. Aqueles que sereconhecem enquanto tais esto, portanto, entrelaados por uma origem comum enascem, por assim dizer, como seres sociais reciprocamente atados por ns de lealdade.Enquanto a comunidade aparece como a fonte dos valores comuns que distinguem os

    4 Utilizo livremente os termos favela, morro e comunidade para designar de forma genrica as

    localidades perifricas em que os garotos entrevistados viviam. A liberdade terminolgica advm, por umlado, do prprio discurso dos jovens, mas tambm mobilizada de forma a assinalar no o particular, masaquilo que h de comum nas dinmicas coletivas que caracterizam tais espaos.

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    crias de outros personagens, estes constituem, por sua vez, os portadores desses valores.H entre eles um lao, que no biolgico, como na relao me e filho, mas que emulaesse status e o transfere aos entes coletivos mais prximos dessa relao.Comunidade ecria esto parame e filho como a vida coletiva e a biolgica esto para cada um desses pares respectivamente. O que ambas as representaes possuem em comum, no entanto, o fato de que espelham repositrios afetivos, referncias morais, mas tambm razesfsicas, ncleos existenciais que projetam nos envolvidos sentimentos de confiana,fidelidade e identidade, um lao presumido que aferrolha indivduos relativamentedistantes. Se, como diz um dos jovens, na favela as famlia so tudo misturada , poucoimporta saber se este o caso de uma filiao afetiva ou biolgica, pois ambas se fundemna representao docria como um filho da comunidade e um irmo de esprito. estaintimidade presumida que far docria um indivduo com qualidades sui generis ,sagradas, no arranjo da vida coletiva do morro, compondo um personagem de afeto elementar que corresponde aoespao simblico de identidade da comunidade onde o prprio jovem reside.

    A simbologia contida na construo docria significativa e ajuda a compreender melhorsua condio especial. Em primeiro lugar, o status decria no implica ausncia deconflitos. Como em todo arranjo coletivo, tambm oscrias brigam entre si, brigam comno-crias e ambos,crias e moradores comuns, tambm protagonizam conflitos com ostraficantes, que tambm podem ser ou nocrias da comunidade. Em todas essascircunstncias a condio decria por si s no garante a estabilidade do indivduo ougrupo, nem a vitria de umcria sobre um morador comum no caso de conflito. Tambmno significa que ele ser perdoado pelos traficantes se vier a infringir suas leis, mas em

    todos esses exemplos seu status diferenciado ensejar condies facilitadas pela lealdadeinata a ele devida. Mesmo em situaes crticas nas quais se registra a infrao de algumalei grave, como o roubo na comunidade, o status decria pode ser acionado, ou melhor,considerado, pelos garotos armados de modo a suspender ou amenizar a punio.

    O ritmo esse, dos cara l. Quer roubar nibus tambm, roubarmorador na favela, eles pegam, a d madeirada. A quando tu rouba

    morador, se tu cria da favela e os cara te conhece, a os cara te drecuperao. A tem uns que no faz nada se eles te conhecer na moral,

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    v que tu mora ali desde pequeno. Mas se for outros, mora na favelaagora e rouba, a o morador vai l dar queixa, a tem que botar a mo pros cara bater com a madeira. A outros no, j apanha, bate na canelacom a madeira...

    Se esta condio produz certos privilgios que se confirmam mesmo em situaes gravesque, a princpio, ensejam punio, para os garotos tais privilgios constituem umadecorrncia natural da intimidade que caracteriza ocria , afinal, ele nasceu na favela,onde as pessoas acompanharam seu crescimento, tendo convivido com ele durante todasua vida. Ele desfruta, portanto, de confiana e afeto, sentimentos que se interpem ante

    o castigo e que mediam, em certo sentido, os conflitos de lealdades entre o trfico e osvalores docria . No lugar da madeirada, ele ter seu status jurdico modificado, ser umsujeito em recuperao instrumento utilizado pelos garotos armados do morro queimplica a suspenso da punio e a suspeio do indivduo afetado (LYRA, 2013).

    O que a simbologia docria nos transmite a representao da vida coletiva regida porvalores comuns, valores que por sua vez apaziguaro os apetites sociais dos indivduos,

    mediando seus conflitos por meio de clculos afetivos e de identidade. Ocria mais queum emblema local. Ele a metfora da ponderao, da virtude, das relaes sadias entreseres sociais competitivos. A dinmica de uma vida social regida por um conjunto de princpios tico-morais est integralmente refletida na metfora que faz docria um filhoda comunidade e um irmo de todos.

    2-

    O nibus:O tema donibus remete a uma classificaointermediria dos garotos armados domorro. So interaes com grau mdio de proximidade, que ensejam uma lealdaderelativa entre os indivduos envolvidos nesta experincia. Na verdade, existe apenas uma projeo de proximidade, uma abstrao ainda maior do que aquela exigida para formulara categoriacria . No se tratam mais de trocas situadas na zona de conforto da favela, masde circunstncias nas quais se imprime um distanciamento objetivo que obriga o jovem aum maior grau de generalizao. Se no caso docria a experincia concreta entre me efilho que d vida a uma abstrao coletiva que representa a comunidade como genitora

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    tambm transmitido aos usurios donibus , que passam a invocar seus atributosespeciais.

    Por isso onibus percebido pelos garotos armados como uma extenso da sua prpriacomunidade, pois ambos os espaos afirmam repositrios de identidade partilhada, personificam lugares e seres sociais cujos laos exigem confiana e respeito. Isto ficaevidente na distino que o jovem mobiliza ao refletir sobre a moralidade do assaltoocorrido na rua e no nibus. No primeiro caso, a prtica categorizada como157 , isto ,o assalto assume o significado detrabalho , enquanto a mesma ao, quando passada nonibus , categorizada comovacilao , ou seja, um ato moralmente condenvel. Ao fazero assalto na rua, somente o azar poderia levar o garoto a um encontro com o personagem me , que representa a uma extenso docria . Entretanto, ao assaltar um nibus, o jovemno estar mais operando com o azar e sim com a conscincia davacilao , justamente porque ele sabe das qualidades sui generis atribudas ao coletivo,espao simblico deidentidade , uma extenso de sua comunidade que, por analogia, igualmentefrequentado porcrias , ainda quecrias distantes . A narrativa a seguir refora e sofisticaeste argumento:

    P: J roubou nibus?R: nibus nunca roubei no porque esse negcio a vacilao.P: Por que voc acha vacilo roubar nibus? No a mesma coisa?R: No, sabe por qu? Ns vai roubar nibus e se tiver a me de umamigo? A mesma coisa ns no quer que acontea com a me da gente.Ela t pegando nibus, outro vem e assalta...P: Mas se a mulher do roubo (na rua) for me de um amigo?R: A ns sabe que no me de amigo, porque a mulher vem de MacDonalds, vem de Habibs, vem de hospital... a ns sabe que no mede amigo. A ns vai e prende...

    De forma semelhante ao jovem que lhe precedeu, este outro garoto apresenta uma versomais sofisticada de seu sistema de classificao. O personagem me dessa vez aparecemobilizado a partir de uma categoria mais abrangente, a me do amigo, como

    representao dos usurios do nibus. Afora essa pequena generalizao, o argumento

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    quase o mesmo que o de seu colega. Contudo, existe uma diferena fundamental entreeles. Se no primeiro caso o jovem atribui ao azar seu encontro na rua com o personagemde afeto me, no depoimento acima o garoto se utiliza dos espaos simblicos deidentidade dispostos na prpria rua para selecionar e evitar esses encontros. Ame doamigo ser associada aos espaos simblicos com os quais ela de alguma forma serelaciona, sagrando-os perante o sistema classificatrio dos jovens.

    Da mesma forma que a categoriame do amigo est vinculada aonibus , isto , quedeterminado personagem de afeto corresponde a umespao simblico de identidade especfico, aquele que no me do amigo tambm poder ser identificado e classificadoa partir de sua relao com lugares que expressam, no lugar da identidade, uma relaode distncia. Porque aquele que vem de Mac Donalds, vem de Habibs, vem de

    hospital (que acredito se tratar de uma clnica particular) no pode serme do amigo , pois a me do amigo no frequenta esses lugares, no corresponde a estes espaossimblicos; a me do amigo est no nibus, mas no est nas redes de fast-food ; a me doamigo est na rua tambm, mas no cuida de sua sade em uma clnica particular.

    Nesse sentido, onibus especial porque nele circulam pessoas cujas identidadesremetem diretamente, ainda que de forma mais ampla, aos personagens de afeto produzidos na relao elementar de classificao docria , isto , os passageiros do nibuscorrespondero a uma extenso desse elemento primrio. Ame , nesse caso, no tem omesmo peso que na classificao elementar, quando ento a referncia de fato biolgica. Aqui ela apenas retrata, de forma inconteste, a presena da identidade, dosvalores comuns e ampliados, partilhados entre os frequentadores do nibus. Existe uma

    progresso evidente, uma cumulao de identidades generalizadas, uma lgica particularque incorpora pessoas e lugares de acordo com uma identidade presumida. pelo clculoafetivo que este sistema de classificao operar esse processo de incorporao, que vaiampliando o espectro de pessoas e lugares catalogados pelos jovens a partir das trocassociais que eles estabelecem. No trecho a seguir veremos que a categoriame de amigo substituda por outra, a do trabalhador, sem prejuzo da classificao at o momentoapresentada, pois consiste em uma nova nomenclatura para o mesmo tipo de personagem

    de afeto :P: Mas (assaltava) o qu? nibus, na rua?

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    R: No, nibus vacilao! Manso, t ligado?! Ouro, t ligado?!P: Por que no nibus vacilao?R: P, vrios trabalhador! A maior vacilao que tem roubartrabalhador, t ligado?! Fica at no seguro pra no ficar junto com ns...maior vacilao! Tipo, tu t ralando, s ganha s o teu salrio mesmo pra se sustentar. Chega l e te enquadra como, um roubo, umassalto!, porra, tu d teu dinheiro suado! Tu tem tua famlia, parceiro!Vai ficar desesperado no bagulho!!!

    No lugar da prpriame ou dame do amigo , este jovem mobilizar, sem prejuzo para a

    dinmica do sistema classificatrio em questo, o personagemtrabalhador comorepresentao dos usurios do nibus. Porm, ainda que se trate de um mesmo

    personagem de afeto , nomeado de maneira diferente, sua substituio s categoriasme ou me de amigo representa um passo adiante no processo de ampliao de sua esfera de pertencimento. Pela primeira vez temos uma representao que no diz respeito senouma relao secundria com as instncias elementares da famlia, j que, diferente dasobreposio de sentidos entre os pares me/filho e comunidade/cria, a duplanibus/trabalhador est, no seu plano simblico, relativamente apartada da experincianuclear do jovem. Assim, otrabalhador j no mobilizado como um elementointeiramente familiar, ainda que dialogue diretamente com a prpria existncia dafamlia: Tu tem tua famlia, parceiro! Vai ficar desesperado no bagulho ! Otrabalhador tem uma famlia, que no exatamente a famlia do jovem, outra qualquerna qual ele se reconhece. Por outro lado, o personagem de afeto trabalhador no umassalariado qualquer. Ele representa o morador no envolvido, indivduo que no seencerra nocria , mas que abrange todos aqueles que residem na favela:

    P: E o que voc acha do pessoal que rouba nibus?R: Merece a morte todos!P: Por qu?R: S trabalhador! Todo mundo chegando tarde, cochilando nonibus...

    A definio dotrabalhador uma generalizao domorador . A noo de distncia, decansao, conexa ao tema do nibus e de seus usurios, nos permite imaginar uma cena

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    familiar ao jovem, na qual o indivduo chega ao seu morro na Baixada, vindo de longe, jtarde da noite, aps um longo dia de trabalho. No h mais uma noo explcita deirmandade, mas ela ainda subsiste, de maneira difusa, na identidade subjacente aoconceito detrabalhador . Pode-se dizer que ele ocria do mundo exterior ou ocriadistante , representando todos aqueles que moram no morro, ou melhor, nos morros, e quese relacionam com a cidade por meio do trabalho. Como est claro no depoimento aseguir, morar no morro a caracterstica fundamental do conceito detrabalhador , cujaclassificao no se vincula ao sujeito que exerce uma atividade remunerada, mas aosfavelados no envolvidos com o crime:

    P: Pra voc tem diferena entre quem mora na pista e no morro? melhor ou pior?R: A nica coisa que quem morador mora no morro, quem no mora na pista, na Baixada.

    De forma similar ao dilema moral contido no tema doassalto no nibus x assalto na rua ,em que a condenao no estava no ato em si, o assalto, mas na identidade do assaltado,

    o enquadramento simblico de quem ou no trabalhador tambm depende de umclculo afetivo e no de uma constatao objetiva. No depoimento a seguir, o garotonarra um assalto praticado contra funcionrios de uma clnica particular. A trama sedesenrola em um ponto de nibus na Praa da Bandeira. As vtimas j tinham sido previamente apontadas por meninas que trabalhavam na mesma clnica e que conheciamos garotos assaltantes. Com elas teriam, inclusive, que partilhar seu botim, caso fossem bem sucedidos. um depoimento aparentemente contraditrio, pois trata objetivamente

    de trabalhadores, isto , pessoas que exercem uma atividade remunerada e que, almdisso, estavam espera de um nibus. Entretanto, analisando esta narrativa luz dosistema de classificao que compe a esfera de pertencimento dos jovens, percebemosque no existem contradies, pois os cenrios e atores desse drama no refletem asqualidades sui generis que tornam um nibus qualquer em umespao simblico deidentidade tanto quanto um trabalhador comum em umtrabalhador , ou seja, um

    personagem de afeto que representa umcria distante .

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    P: J roubou nibus?R: No.P: Mas o que voc acha?R: Eu acho isso errado.P: Por qu?R: Todos ns que bandido acha isso errado. Quem pega nibus maistrabalhador, nossa famlia mesmo...P: Mas voc no acha que aquele dia na Praa da Bandeira tinhatrabalhador?R: Tinha nada! As meninas que trabalhava na clnica j tinha dado prans j, que era dia de pagamento, que hora que eles ia sair da clnica,onde ficava o ponto... se ns se desse bem, ns tambm ia ter que darum dinheiro pras menina l.

    O tema do nibus foi um importante passo para compreendermos como o jovemclassifica o que faz parte ou no de sua esfera de pertencimento. Com ele, os limitesafetivos da comunidade foram transpostos para o mundo exterior, ampliando osespaosde identidade simblica da favela para o transporte coletivo. Alm disso, vimos a

    representao coletiva primria docria , primeiro personagem de afeto emulado de umaexperincia concreta junto ao ncleo familiar, se expandir a um nvel mais abrangente, deforma a abarcar indivduos fora da comunidade. Aos poucos os personagens de afeto vose distanciando da realidade emprica do jovem e tomando formas cada vez maisabstratas. Da prpriame , como representao dos passageiros, chegamos me doamigo e, finalmente, aotrabalhador . A passagem para esta ltima categoria, que remetea qualquer favelado no envolvido, marca a construo de uma identidade coletiva ainda

    mais geral, entendida como uma espcie de cria distante. Contudo, mes, irmos, crias,comunidades, trabalhadores, so todos personagens e espaos que remetem a variadosgraus de experimentao, mas que ainda esto presos aos limites ora espaciais, orasimblicos da favela. Eles so como o prximo, construdo imagem e semelhana dos jovens e daqueles que os cercam. No entanto, at que ponto esses garotos so capazes deampliar suas identidades coletivas?

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    3- O playboy:

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    O tema do playboy exemplifica um tipo de classificaocomplexa , que nasce de umencontro entre indivduos com pouco ou nenhum grau de proximidade e que pode gerarlaosdifusos de lealdade. Encontros como este representam uma ampliao considervelda esfera de pertencimento do jovem por duas razes. A primeira consiste no fato de queo playboy e os espaos com os quais ele ser identificado encontram-se muito distantesdos espaos e personagens at ento estudados nas relaes passadas no mbito dacomunidade ou do nibus. No temos mais a expanso do sentimento familiar encontradono cria , tampouco a transmisso de suas qualidades sui generis como constatadas notema do nibus. Trata-se de um retorno ao tema emprico, s que, dessa vez, no existeum lao prvio, como na relao me e filho, mas exige sua construo independente junto a indivduos completamente estranhos. A segunda razo que faz do playboy umacategoria de expanso plena da esfera de pertencimento do jovem porque no s o

    playboy um estranho, mas, especialmente, porque ele um tipo ideal antittico aosgarotos armados do morro. Como veremos, para inclu-lo em sua esfera de pertencimento, os jovens tero que romper fortes barreiras que, a priori, definem acategoria playboy sob um ponto de vista estritamente negativo. Mas para analisar essecontexto, preciso antes compreender o que um playboy e o que ele representa paraesses garotos.

    P: E como um playboy?R: Ah mano, quando eu vejo logo esses maluco todo engomadinho,sapato grando, cordozinho de ouro...

    A expresso mais bvia do playboy est nas suas qualidades materiais. Ele seria entoaquele que possui coisas, que as ostenta, aquele que detm bens e prestgio fora doalcance do jovem. Na descrio que o garoto faz do playboy , os elementos que ocaracterizam nos do a ideia de um executivo, engomadinho, sapato grando,cordozinho de ouro , transitando apressado pelas ruas de uma cidade qualquer.Aparentemente, temos uma oposio puramente material, o indivduo que um playboy parece, aos olhos desse menino, algum plenamente distinguvel na multido por contados smbolos de status que o diferenciam da realidade a qual ele est acostumado. Mas a

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    classificao do playboy no to simples quanto supomos. Em primeiro lugar, o aspectomaterial que a princpio constitui seu elemento definidor muito relativo, podendoabranger perfis bem mais humildes que o de nosso suposto executivo. Como nos conta omenino do depoimento seguinte, um playboy pode ser simplesmente outro garoto comoele, mas que no precisa trabalhar para conseguir o que quer. De executivoengomadinho o playboy se transforma em apenas mais um menino cujos pais podemgarantir a satisfao de seus desejos.

    P: O que um playboy pra voc?R: Pra mim quem no faz nada, tem tudo do pai e da me.

    Essa maneira abrangente de perceber o playboy insinua modulaes mais sutis que nodizem respeito propriamente ao seu alcance material. Existe uma questo moral implcitanesta narrativa que o qualifica como aquele que tem tudo do pai e da me . Para essesmeninos, o playboy aquele que no precisa se esforar para ter aquilo que quer. No ofato de possuir que importa na sua classificao, mas os mecanismos que ele aciona paraatingir seus intentos. De um lado, essa caracterstica encarada com certo pesar, afinal,

    ela remete a um status socialmente desigual, uma relao que, narrada por um menino pobre, vem carregada de uma melancolia inescapvel. Porm, em outros contextos, estafragilidade ser mobilizada pelos prprios jovens como um elemento de fora, queincide sobre seu carter, distinguindo-o moralmente, em chave positiva, do playboy . A prxima narrativa apresenta este tema sob um ponto de vista interessante:

    P: E nego rouba mais por qu?

    R: Esses playboyzinho, vou mandar o papo reto, eles roba iludido pelodinheiro, pelas droga, pelas mul. s vezes playboy e no consegue pegar uma mina na moral. V ns, ns mora em favela o playboy defavela mendigo, t ligado?! como, bota uma beca maneira, faz umreflexo, bota um celularzinho, chega em Copacabana como, dehumilde, desenrola com uma gata e consegue pegar e ele t como?Desenrolando o maior tempo com a gata e no consegue pegar. Porqu? Nego acha que tem que ser fora, o bagulho no se trata assim.

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    O tema das conquistas amorosas mobilizado de modo a espelhar esse antagonismomoral entre os garotos do morro e o playboy . A primeira distino que o menino faz sobre a polivalncia deste conceito. Ele diferencia o playboy da favela, o qualclassifica como mendigo e o ope a um playboy tpico, morador do asfalto e da zonasul carioca. o tipo ideal de playboy que retrata no s as disparidades econmicas, mas,sobretudo, a ndole oposta de cada um. O garoto do morro sai arrumado para uma noitena zona sul, rea do playboy . Com uma beca maneira, faz um reflexo, bota umcelularzinho, chega em Copacabana de humilde, desenrola com uma gata e consegue

    pegar . a vitria do playboy-mendigo , contrastada automaticamente com o insucessodo playboy-ideal que o jovem deseja destacar, sendo as razes alegadas para o triunfo e ofracasso de cada um a chave principal sobre essa oposio moral estabelecida entre eles. No caso do garoto do morro, muito embora ele destaque os adereos dos quais lana mo para impressionar o sexo oposto, a tnica de sua vitria reside no desenrole, isto , nopapo, na astcia, na conversa habilidosa e cuidadosa que conquista aos poucos sua pretendente. J o playboy falha e falha porque acha que tem que ser fora . O playboy , que no faz nada, tem tudo do pai e da me , apresentado como incapaz deconseguir o que deseja por seus prprios meios. O tema da conquista amorosa no mobilizado ao acaso pelo jovem, que prope um dilema interessante passado justamentenum plano em que a facilidade inata de satisfao do playboy no pode ser resolvida porterceiros, dependendo nica e exclusivamente de seu esforo pessoal.

    A cena apresentada desde o incio como uma competio entre os dois tipos de playboys, o mendigo, da favela, astuto, e o ideal, da zona sul, mimado. At mesmo umcronmetro interno marca o tempo dos competidores. O garoto do morro chega na

    humildade, no desenrole, atinge seu intento enquanto o playboy ainda faz suatentativa. O tema da fora vem em seguida, como se sugerisse uma abordagem maisagressiva do playboy-ideal , que parece frustrado com seu fraco desempenho. Trata-se deuma batalha simblica entre estes dois indivduos e a disputa narrada pelo garoto seapresenta como uma forma de revanche. O que est em jogo no a conquista amorosaou o quo rpido ela sucedeu. A tnica do depoimento reside nos recursos do playboy-mendigo e do playboy-ideal , contrapondo a vitria do esforo e da astcia sobre a apatia

    daquele que consegue tudo de fontes externas a ele prprio. O revanchismo contido nestanarrativa no parte de um rancor especialmente fundado no desequilbrio material, mas

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    conota um antagonismo moral, uma antipatia implcita e pr-existente que inferida a partir dessa diferena. Nesse sentido, ter mais dinheiro, mais recursos, no a razo emsi desta oposio, mas um fator que contribui para que o playboy se torne dependentedesses recursos e que, por isso, faz de suas conquistas no um emblema pessoal, masuma aquisio vazia, comprada, por assim dizer, sem esforo ou merecimento. Assim,considerando a vida difcil de muitos desses garotos, tanto o menino que bancado pelos pais quanto o executivo engomadinho constituem representaes diferentes desta mesmacaracterstica comum, isto , a facilidade com que satisfazem suas necessidades esuperficialidades vitais. Como recurso reativo, h um desdm que se manifestaa priorinesta relao, uma projeo de distncia que intimida os garotos e, ao mesmo tempo, osimpele guerra.

    P: Voc se considera um cara maneiro?R: Mais ou menos.P: Qual o teu ponto fraco?R: Eu acho que eu sou marrento um pouco. Mais ou menos, no tantoassim no. mais quando eu no conheo a pessoa assim e eu acho que

    a pessoa marrenta, a eu quero ser mais marrento que a pessoa ainda.P: Voc me achou marrento?R: No, tranquilo.P: Voc acha que eu tenho tipo de playboy?R: P, tem tipo cara daqueles cara da antiga, tipo aqueles pensador!

    Esta uma narrativa fulcral para a compreenso dos mecanismos de classificaooperados em circunstncias totalmente novas. preciso analis-la com cuidado. Nela o

    garoto acima destaca o tema da reciprocidade como determinante para suas trocas sociaise, sobretudo, para seu sistema de classificao. Inquirido sobre seu ponto fraco, eleremeter suamarra , isto , um sentimento de superioridade que, no entanto, enfatizado pelo jovem como sendo de origem defensiva. Nesse sentido, seria amarra presumida do indivduo estranho, desconhecido, que ativaria nesse garoto uma reaoantecipada baseada num comportamento ainda maismarrento . Obedecendo a mesmadinmica observvel na construo dos personagens de afeto , nos quais o jovem projeta

    intimidade, ele construir o outro, aquele que lhe estranho, a partir de impresses de

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    distncia, nele projetando sentimentos de desconfiana e enfrentamento. O playboy , portodas as caractersticas ressaltadas at aqui, simboliza o elemento mais desafiador autoestima desses meninos pobres. Sem dvida, a vontade de sobrepuj-lo, aludidaanteriormente, decorre desse sentimento que mistura inferioridade e fora. Mas at que ponto essa uma condio definitiva?

    Como venho afirmando, o sistema de classificao utilizado pelos jovens entrevistados sed com base nas trocas sociais que eles experimentam. So seus desfechos, positivos ounegativos, que determinaro o lugar sentimental de cada uma delas na esfera de pertencimento dos garotos armados do morro. Tomemos um exemplo factual. No cursodas entrevistas, costumava perguntar aos garotos se eu era um playboy. A julgar pelasnuances de sua definio, eu preencheria, aparentemente, todos os pr-requisitosnecessrios para ser enquadrado como tal. Usava trajes diferenciados, residia na zona sule me impunha no seu ambiente realizando um tipo de trabalho estranho ao seu cotidiano.Mas seria eu um playboy ?

    claro que, pelas experincias que tive durante o trabalho de campo, eu poderiafacilmente prever que a resposta dos garotos me situaria fora desta categoria. Sabia quenossa relao, embora marcada pela diferena, j tinha sido categorizadasentimentalmente no quadro simblico de experincias positivas, razo pela qual eu noera mais um estranho. Minha inteno, nesse caso, era avaliar quais as razes alegadas por eles para que eu fosse um prximo e no mais o outro. No ltimo depoimento, perguntado se eu representava um playboy , o garoto foi obrigado a improvisar um personagem de afeto , o cara das antiga, aqueles pensador , que remete no s ao meu

    papel de pesquisador naquela instituio, como prope sutilmente um lao de afetividadesemelhante ao percebido na relao professor e aluno. Analisando a lgica empregadanesta classificao, o pesquisador seriaum indivduo tranquilo , sem marra , fatordeterminante para negar a categoria de playboy que ele mesmo props ao jovem, cujarplica implicou a construo imediata de um novo personagem de afetono-playboy .Contudo, parece que esta categoria teima em se repetir como uma classificao negativasobre o outro, uma aluso pejorativa que perde a validade sempre que a experincia de

    troca se mostra vlida. Os indcios levam a crer que o termo de fato distingue o indivduofamiliar de um outro indevassvel, repulsivo, uma verdadeira anttese social. Se assim

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    o fosse, ento seramos obrigados a admitir que, sendo m a experincia com o outro,ele poder ser classificado como playboy ; j uma troca bem sucedida implica aconstruo de outra categoria qualquer no- playboy. Encontrar -se no playboy , ento,seria o maior desafio do garoto do morro para um pleno reconhecimento da alteridade,uma vez que a prpria classificao aparentemente encontra-se eivada de significadosnegativos. Mas vejamos o prximo depoimento:

    P: Pra voc o que um playboy?R: Ah, o menor que tipo como, s fica em casa e na escola e mais nada.Tudo o que quer ganha: carro, moto, t ligado?!

    P: Se voc me visse na rua ia me achar playboy?R: Que nada!P: Mas qual a diferena entre eu e um playboy?R: P, nenhuma!P: Pra voc o playboy mais o vacilo ou quem tem dinheiro?R: Mais o vacilo, eles so muito arrogante.Mas os playboy que usadroga so tranquilo, zoa pra caralho...

    O contedo desta ltima narrativa praticamente igual a todos os outros. A conceituaoelstica do playboy , seu antagonismo mais moral que material, sua inaplicabilidade minha pessoa, mesmo sem diferenas objetivas entre ns. So temas que se repetem econfirmam o argumento que apresentei at aqui. Porm, na ltima sentena destedepoimento, o garoto do morro finalmente constri um personagem de afeto que escapaao dualismo playboy/no-playboy, sem deixar de remeter a esta categoria e diferenci-lade sua concepo negativa inicial: o playboy drogado . a primeira referncia positiva

    que incorpora o playboy gerando uma identidade coletiva ampliada e independente dacomunidade. Trata-se, em essncia, de uma classificao afetuosa que s foi possvel a partir de uma experincia bem sucedida entre um playboy-ideal e um garoto armado. Foina relao estabelecida entre eles, possvel no contexto de uma inverso de status, j que provavelmente se passa no morro, relao na qual o playboy o elemento frgil esubserviente vontade dos garotos da boca, que eles puderam conhecer melhor este que,at ento, era seu antagonista. Decerto, o uso recreativo de drogas aos poucos foi

    apaziguando a tenso inicial e o que era apenas uma relao comercial entre estranhos se

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    transforma em bons momentos de riso, de zoao conjunta. Notem que o adjetivoutilizado para caracterizar o playboy drogado foi tranquilo, o mesmo empregado poroutro jovem para definir meu status. Como vimos no tema donibus , em que ascategoriasme , me do amigo e trabalhador consistiam em diferentes nomenclaturas para o mesmo personagem de afeto (o usurio do nibus), os conceitos de playboydrogado e de cara das antiga so apenas diferentes nomes para um mesmo tipo deindivduo, no caso, o outro positivamente enquadrado. Por outro lado, a partir destaclassificao complexa, que resulta em um novo personagem de afeto completamentealheio sua realidade, que o jovem passar a identificar, fora de sua comunidade, novosterritrios simblicos de identidade paulatinamente associados ao playboy drogado . Estadinmica se encontra expressa no prximo trecho:

    P: Voc j curtiu praia?R: Vrias praia. Barra, Copacabana, Ipanema, Leblon...P: E os playboys se bolavam?R: P, ficavam. Depende da praia. Tem praia que s tem maconheiromesmo...

    A construo do personagem de afeto playboy drogado baseada em uma troca que se passa no contexto de um uso coletivo de drogas, provavelmente em uma boca-de-fumo.Porm, conforme as caractersticas deste conceito vo se firmando, compondo umaidentidade ampliada, o jovem capaz de associ-lo, como fez noutros casos, a lugaresespecficos, dotados de qualidades sui generis . So muitas as praias que ele frequenta,mas existem aquelas nas quais seus visitantes contumazes no se importam, ou ao menosassim so percebidos, com a presena desses garotos. na praia em que s temmaconheiro , alm da boca, que ele encontrar o personagem playboy drogado ,modulao positiva de um tipo tomado a priori como hostil. Temos, finalmente, aconstruo de um novo par, playboy drogado/praia de maconheiro , respectivamente, um

    personagem de afeto e umespao simblico de identidade, totalmente desvinculados desuas experincias sociais cotidianas. uma ampliao significativa da esfera de pertencimento dos garotos armados do morro e sua dinmica pode ser replicada adiversos outros personagens igualmente estranhos e distantes como, aparentemente, seapresenta o playboy .

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