cartografia científica a história da teoria da terra redonda · e o seu raio será r = p/(2 ii)....

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Cartografia científica A história da teoria da terra redonda

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CartografiacientíficaA históriada teoriada terraredonda

CIÊNCIA

Seria a

Terraredondaem 1500?O mais antigo episódio histórico

que ilustra a relevância técnica e

estratégica da curvatura e do tamanhoda Terra é a proposta apresentada porCristóvão Colombo aos reis católicosde Espanha, em 1486, de chegar à índianavegando para ocidente

Série (IX)Joaquim Alves Gaspar

abe-se que a Terra é

redonda desde a an-tiguidade. Os gregosnão só reconhece-ram a forma esféricada Terra desde, pelomenos, o século IV

Ha.C, mas tambémfizeram várias esti-mativas do seu tama-

nho. A mais antiga referência queconhecemos é de Aristóteles (384-322a.C), segundo o qual o perímetroda Terra pode ser estimado atravésda distância entre dois lugares si-

tuados no mesmo meridiano e da

respectiva diferença de latitudes.Mas a mais célebre determina-

ção foi a realizada pelo geógrafoEratóstenes (276-196 a.C), que terá

comparado a inclinação dosraios solares ao meio-dia,em dois lugares situadosno mesmo meridiano pa-ra, juntamente com a dis-tância entre eles, deduziro valor do raio da Terra.O princípio do processo,muito simples, é idêntico ao de

Arquimedes e a exactidão do resul-tado só depende da qualidade das

observações. Se dois lugares situa-dos no mesmo meridiano estão à dis-

tância d entre si e têm uma diferença

de latitudes et, então o perímetro daTerra é a quantidade p = d x (360%)e o seu raio será R = p/(2 ii). Era-tóstenes estimou o raio da Terraem 5000 estádios, valor consi-

derado pelos historiado-res como uma exce-

lente aproximação,

No entanto, para' se saber quão

próximo es-taria do valor

correcto serianecessário conhecer

a medida do estádio utilizado, maté-ria ainda hoje objecto de discussão.Passados cerca de 300 anos, Ptolo-meu de Alexandria escreveu o seu

importante manual Geografia, onde

não só a Terra é apresentada comouma esfera, mas também se mostracomo a representar no plano, atra-vés das coordenadas geográficas dos

seus lugares e de três projecções car-

tográficas criadas por si. Na época de

Ptolomeu, o mundo conhecido eracomposto por três continentes — a

Europa, a África e a Ásia - que ocu-

pavam, segundo a Geografia, cercade um quarto da superfície terres-

tre. Tudo o resto era desconhe-cido dos ocidentais e objecto

de especulação. No entan-to, a importância práticada forma da Terra eranula e a única razão quelevava académicos como

Ptolomeu a ocuparem-seda matéria era pura curiosi-

dade intelectual.Durante a Idade Média, grande

parte do conhecimento geográficodos antigos foi esquecido, incluindoo contributo de Ptolomeu. Contudo,e contrariamente ao que por vezesse supõe, o conhecimento sobre aredondeza da Terra foi preservadoentre as pessoas cultas, e até ilustra-do em iluminuras medievais. Tal não

significa que o facto tivesse qualquerrelevância para a vida do dia-a-dia.Nem mesmo quando as primeirascartas náuticas foram construídas,em data incerta dos séculos XII ouXIII, a verdadeira forma da Terra foitida em conta. Pelo contrário, essas

cartas eram desenhadas transferin-do directamente para o plano os ru-mos e as distâncias observados à su-

perfície, ignorando que as mediçõestinham sido feitas sobre uma super-fície esférica. Contudo, as distorçõesresultantes de tal processo eram pe-quenas, quando comparadas comos erros associados aos métodos de

navegação então usados.Mesmo depois do renascimento

da cartografia científica europeia,durante o século XV, que se seguiuã redescoberta e tradução para la-tim da Geografia de Ptolomeu, ascartas náuticas continuaram a serconstruídas como antes. Não devidoà ignorância de pilotos e cartógrafos,mas porque esta solução era a quemelhor se adequava aos métodos de

navegação da época, ainda baseados

em rumos da bússola e distâncias es-

timadas.Com o advento das grandes via-

gens oceânicas, a partir de meadosdo século XV, iniciou-se uma lentarevolução na forma como o nossoplaneta passou a ser imaginado, per-corrido e representado. A relativapequenez do Mediterrâneo e da Eu-

ropa Ocidental deu lugar aos gran-des espaços marítimos, nos quais acurvatura e tamanho da Terra assu-miram relevância técnica e estraté-gica crítica. O mais antigo episódiohistórico que ilustra tal relevância é,

porventura, a proposta apresentadapor Cristóvão Colombo aos reis cato-

licos de Espanha, em 1486,de chegar à índia navegan- i

do para ocidente. |

Como sabemos, o usualcaminho marítimo para aíndia, inaugurado por Vas-co da Gama em 1497-99, es-

tava interdito aos navegado-res espanhóis pelos termosdo Tratado de Tordesilhas. Aalternativa seria navegar paraocidente, tirando partido daesfericidade da Terra e da suaassumida navegabilidade. Mastal só seria viável se a distânciaa percorrer não fosse demasia-do grande. Colombo lidou ha-bilmente com o problema. Emvez de utilizar os modelos daTerra então conhecidos, cujasdimensões não favoreciam as su-

as teses, propôs uma Terra subs-tancialmente menor, em que ocaminho pelo ocidente pareciamais curto do que o caminho pa-ra oriente. Sabemos que Colombose enganou: não só no tamanho da

Terra, bastante superior ao espera-do, mas também no facto de não ter

alcançado a índia. Tal não impediuque o fruto desse enorme engano, adescoberta do Novo Mundo, tivesseuma importância transcendente pa-ra a civilização ocidental.

Contemporâneo da primeira via-

gem de Colombo é o globo terres-tre construído pelo comerciante ehumanista alemão Martin Behaim,cerca de 1492, o mais antigo que che-

gou aos nossos dias, a que ele cha-mou Erdapfel (o mundo-maçã). Nãotendo ainda conhecimento daquelaviagem, Behaim representou o Adân-

tico de acordo com as convicções da

Na Idade Média, muitodo conhecimentogeográficodos antigos foi

esquecido. Mas o

conhecimento sobrea redondeza da Terrafoi preservado entreas pessoas cultas,e até ilustrado emiluminuras medievaisépoca, isto é, com a Europa e Áfricaa oriente, e a China (Mangi) e o Ja-

pão (Cipangu) a ocidente.Martin Behaim estabeleceu-se

em Portugal a partir de 1484 e aí

| casou e permaneceu até à suaI morte (1506), tendo participado| numa das missões de explora-I ção de Diogo Cão. O seu céle-I bre globo foi construído quan-I do se deslocou a Nuremberga,I e estabelece a transição entreI os conhecimentos clássico e1 moderno do mundo, tendo-se1 baseado numa grande multipli-I cidade de fontes, tradicionaisI e contemporâneas. O mapa--1 mundo construído em cerca1 de 1489 pelo seu compatriotaI Henricus Martellus Germanus,1 o qual já reflecte os resultados

da viagem de exploração re-alizada por Bartolomeu Dias,

em 1487-88, terá sido provavel-mente uma dessas fontes.

Uma proposta semelhante à de Co-lombo foi apresentada por Fernãode Magalhães cerca de 25 anos maistarde, ao rei Carlos I de Espanha.Fernão de Magalhães propunha-se alcançar as ilhas Molucas, fontedo valioso cravo, navegando maisuma vez para ocidente, e provarque estas ilhas se situavam no he-misfério espanhol. Tendo em conta

que uma Terra pequena favorecia asua tese, não é certamente por aca-so que o tamanho do Pacífico tenhasido substancialmente encurtado no

mapa que Magalhães terá usado paraconvencer o rei, o planisfério anóni-mo de Kunstmann IV (cerca de 1519).

Hoje sabemos que os espanhóis nãotinham razão na alegação de que as

Molucas se situavam no seu hemis-

fério, embora fosse muito difícil deo provar naquela época.

Com o início das viagens oceâni-

cas, as técnicas tradicionais de na-vegação, baseadas na estimação das

distâncias percorridas, foram com-plementadas pelos novos métodosastronómicos, com que se passou adeterminar a latitude no mar. Umavez que esses métodos pressupu-nham uma Terra esférica, poderí-amos pensar que tal conceito se re-flectiu imediatamente na cartografianáutica. Mas não foi assim que acon-teceu. Mais uma vez, não por igno-

rância de pilotos e cartógrafos, masdevido às limitações dos métodos de

navegação, que ainda não permitiama determinação da longitude no mar.Somente na segunda metade do sé-

culo XVIII, quando o problema da

longitude foi resolvido, foi possívelultrapassar aquele obstáculo e fazerreflectir plenamente nas cartas náu-ticas a redondeza da Terra. Por essa

altura, já a projecção de Mercator,baseada nas latitudes e longitudesdos lugares, aguardava há quase 200anos a adopção pelos navegadores.Mas essa é outra história fascinante

para se contar depois!Nesta página: mapa-mundo deHenricus Martellus Germanus(cerca de 1489), o mais antigoque chegou até nós com osresultados da viagem deBartolomeu Dias (1487-88);cópia do início doséculo XIV deImage dv Monde, de Gautier deMetz (1246): dois peregrinossaem do pólo Norte emdirecções opostas eencontram--se no pólo Sul; e o Atlânticonuma reprodução do globo deMartin Behaim (1492). E réplicadesse globo, o mais antigo globoterrestre que chegou até hoje

Historiador de ciênciaEsta série, às segundas-f eiras,está a cargo do ProjectoMedea-Chart do CentroInteruniversitário de Históriadas Ciências e Tecnologiada Faculdade de Ciências daUniversidade de Lisboa, queé financiado pelo ConselhoEuropeu de Investigação