cartografando os espaÇos nos compassos e …

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CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E DESCOMPASSOS DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS Diana Sueli Vasselai Simão 1 Joana Cecília Biss Silva 2 Para a criança, o espaço é o que sente, o que vê, o que faz nele. Portanto o espaço é sombra e escuridão; é grande, enorme ou, pelo contrário, pequeno; é poder correr ou ter de ficar quieto, é esse lugar onde pode ir olhar, ler, pensar. O espaço é em cima, embaixo, é tocar ou não chegar a tocar; é barulho forte, forte demais ou, pelo contrário, silêncio, são tantas cores, todas juntas ao mesmo tempo ou uma única cor grande ou nenhuma cor... O espaço, então, começa quando abrimos os olhos pela manhã em cada despertar de sono; desde quando, com a luz, retornamos ao espaço. (FORNEIRO, APUD ZABALZA, 1998, p.231) 1 INTRODUÇÃO: Meu interesse pelo tema surgiu durante minha experiência profissional nos espaços de educação infantil. É o que venho me desafiando nesses últimos tempos, olhar para o espaço e trazer outras possibilidades de experiência, de estética, de materiais, de cuidado com as pessoas que ali transitam. Neste artigo apresento uma parte do projeto da dissertação de mestrado ainda em andamento. Tem como tema: Problematizar as práticas discursivas dos Documentos Oficiais (Constituição Federal de 1988, LDB de 1996 e DCNEI de 2010) e o cotidiano das instituições de educação infantil a partir de como os sujeitos organizam os espaços. 1 Coordenadora Pedagógica no Centro de Educação Infantil Hilca Piazera Schnaider em Blumenau SC Cursando Mestrado na Universidade Regional de Blumenau FURB. . Grupo de Pesquisa, Politicas de Educação na Contemporaneidade, Orientadora Profª Drª Gicele Maria Cervi . 2 Professora de Língua Inglesa da Rede Municipal de Blumenau. Mestranda em Educação pela FURB Blumenau SC, Graduada em Letras pela FURB Blumenau SC. Grupo de Pesquisa, Politicas de Educação na Contemporaneidade, Orientadora Profª Drª Gicele Maria Cervi .

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Page 1: CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E …

CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E DESCOMPASSOS

DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS

Diana Sueli Vasselai Simão1

Joana Cecília Biss Silva2

Para a criança, o espaço é o que sente, o que vê, o que faz nele.

Portanto o espaço é sombra e escuridão; é grande, enorme ou, pelo contrário,

pequeno; é poder correr ou ter de ficar quieto, é esse lugar onde pode ir olhar,

ler, pensar.

O espaço é em cima, embaixo, é tocar ou não chegar a tocar; é

barulho forte, forte demais ou, pelo contrário, silêncio, são tantas cores, todas

juntas ao mesmo tempo ou uma única cor grande ou nenhuma cor...

O espaço, então, começa quando abrimos os olhos pela manhã em

cada despertar de sono; desde quando, com a luz, retornamos ao espaço.

(FORNEIRO, APUD ZABALZA, 1998, p.231)

1 INTRODUÇÃO:

Meu interesse pelo tema surgiu durante minha experiência profissional nos

espaços de educação infantil. É o que venho me desafiando nesses últimos tempos, olhar para

o espaço e trazer outras possibilidades de experiência, de estética, de materiais, de cuidado

com as pessoas que ali transitam.

Neste artigo apresento uma parte do projeto da dissertação de mestrado ainda

em andamento. Tem como tema: Problematizar as práticas discursivas dos Documentos

Oficiais (Constituição Federal de 1988, LDB de 1996 e DCNEI de 2010) e o cotidiano das

instituições de educação infantil a partir de como os sujeitos organizam os espaços.

1 Coordenadora Pedagógica no Centro de Educação Infantil Hilca Piazera Schnaider em Blumenau – SC

Cursando Mestrado na Universidade Regional de Blumenau FURB. . Grupo de Pesquisa, Politicas de Educação

na Contemporaneidade, Orientadora Profª Drª Gicele Maria Cervi .

2 Professora de Língua Inglesa da Rede Municipal de Blumenau. Mestranda em Educação pela FURB –

Blumenau – SC, Graduada em Letras pela FURB – Blumenau – SC. Grupo de Pesquisa, Politicas de Educação

na Contemporaneidade, Orientadora Profª Drª Gicele Maria Cervi .

Page 2: CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E …

Busca-se em Foucault entender a noção de problematização que está na base

de seu pensamento. Termo esse, utilizado em suas pesquisas nos últimos dois anos de sua

vida, e que como observa Revel (2005, p. 81), mostra forte interesse do autor de

problematizar, “não a de reformar, mas de instaurar uma distância crítica, de desprender-se,

de retomar os problemas”.

No desafio de pensar o objeto de pesquisa “espaço” como o diferente, o

singular, o descontínuo, pode-se definir a pesquisa como um método arqueológico, que

segundo Severino (2011, p. 26), se propõe a “resgatar outras dimensões da vivência humana,

supostamente negligenciada pelos filósofos modernos, como o sentimento, a paixão, a

vitalidade, as energias distintas”.

Ainda num enfoque genealógico na obra de Foucault, Revel (2005, p.52) tem

como objetivo “ativar os saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados,

contra a instância teórica unitária que pretende hierarquizar, ordená-lo em nome de um

conhecimento verdadeiro”.

A proposta é olhar para os documentos não como um memorial histórico, mas

como uma possibilidade de escavar esses documentos, retirar deles o objeto “espaço” e

perceber como ao longo do tempo fez suas rupturas, não para encontrar um caminho, uma

ordem, uma forma, mas para problematizar buscando multiplicidade, nas suas diferenças.

Com esse olhar atravesso a escrita a partir da criança e o devir-espaço, entre

discursos e práticas, espaços e mecanismos de poder.

O espaço que problematizo é o espaço da instituição de Educação Infantil

Pública. Olho para o espaço e visualizo a criança ou olho para a criança e visualizo o espaço?

Seria preciso fazer o inverso, seria preciso compreender em intensidade. Essa pesquisa pensa

o espaço a partir da criança e o quanto eles estão imbricados. Perceber se os documentos, as

práticas e os discursos acompanham os mecanismos de poder e como as atualizações desses

dispositivos atuam no cotidiano. O instrumento de coleta de dados empíricos foi observação

com registro fotográfico e grupo focal. A pesquisa foi realizada num CEI público de

Blumenau.

Page 3: CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E …

A observação com registro fotográfico3 foi realizada no espaço externo e

interno do CEI. Com estes dados fez-se a descrição e análise, apresentando alguns

movimentos do espaço externo e interno4.

2 CRIANÇA E DEVIR ESPAÇO

Minha provocação tem sido pensar os espaços junto com as crianças. Arrisco-

me dizer que pensar em espaços enquanto criança, já é mover os pensamentos, por mais que o

adulto organize de acordo com a lógica de gente grande a criança reinventa. Com isso preciso

pensar o impensável, saindo do meu repouso.

E parece que gente grande não entende gente pequena, sua porta de entrada

ainda é para espaços fechados, com grades, carteiras, paredes, filas, num movimento de

silenciar os corpos.

Como disse Foucault (2014, p.132) “É dócil um corpo que pode ser

submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Esses

métodos que permitem esse controle são os que podemos chamar de disciplina. O momento

histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, aumenta

suas habilidades, um mecanismo que o torna tanto mais obediente quanto mais útil. A

disciplina aumenta as forças do corpo ( em termos econômicos de utilidade) e diminui (em

termos políticos de obediência). Foucault (2014).

A análise foucaultiana nos alerta para um olhar mais atento quanto as relações

de poder no cotidiano da escola e os regimes de verdade que se criam e vão se consolidando

nos discursos, nos planejamentos, na ação docente, nas práticas avaliativas, nas brincadeiras,

que buscam regular e controlar as aprendizagens das crianças.

Cabe lembrar que as sociedades disciplinares foram mudando, e Deleuze

(1997, p.223) evidencia outros tempos que marcam a sociedade de controle e nos mostra

isso através de certos tipos de máquina.

3 As fotos utilizadas são do ano de 2014.

4 Pesquisa e análise dos dados em andamento.

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“(...) elas exprimem as formas sociais capazes de lhe darem nascimento e utilizá-las.

As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas,

roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento

máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da

sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie,

máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e, o

ativo, a pirataria e a introdução do vírus”,

É toda essa tecnologia que vem sendo incorporada pelos mais recentes projetos

que alimentam a sociedade de controle e atravessam sem mesmo nos dar conta. E o tempo de

viver a infância se esvazia num mundo de tarefas, tempos, documentos, resultados,

compromissos. Outras forças podem se conectar as máquinas de pensar e de viver, numa força

infinita de desterritorializar, de modo a pensar e criar outros movimentos de espaço.

Para dar visibilidade ao conceito de espaço, como possibilidade de sair do

decalque, do que está definido, busca-se o conceito de criança a partir de Larrosa, (2004) que

desafia a pensar a criança como um acontecimento, uma descontinuidade. Mas para isso é

preciso abdicar de um pensar que projeta a criança para o futuro, encaminhando-nos para a

continuidade da vida. E Larrosa (2004, p.192) ainda nos evoca a pensar na contra mão desse

olhar “que poderia resultar da inversão da direção do olhar” de perceber o que de diferente

tem nesse olhar misterioso de uma criança, “de perceber o que, nesse olhar, existe de

inquietante.” Mas isso exige a renúncia a todo modelo de criança que se projeta, e assim

possibilite um espaço múltiplo, fluído, inquietante.

Num exercício de escavar, procurar, e não oferecer uma ideia da qual bastaria

apropriar-se, mas oferecer uma tensão, uma vontade, um desejo. Trago alguns conceitos de

espaço para dialogar sobre essas questões num movimento de perceber como o espaço é

pensado para as pessoas que ali convivem. E com isso trago as palavras de Lima (1987, p.13)

que traduzem com clareza:

Não há espaço vazio, nem de matéria nem de significado; nem há espaço imutável.

Nada é mais dinâmico do que o espaço por que ele vai sendo construído e destruído,

permanentemente, seja pelo homem, seja pelas forças da natureza. Também nada

existe nem se articula fora dele. Justamente porque ninguém escapa à inevitabilidade

de viver e de se relacionar com pessoas e objetos num espaço material e concreto,

carregado de significado.

A organização do espaço busca alternativa, se permite experimentar, correr

riscos, esvaziar-se e começar de novo, numa dose de aventura, redescobrindo possibilidades

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para encontrar outros saberes, outras sensibilidades. Assim talvez seja possível olhar o espaço

na perspectiva de desafiar a criança num movimento de liberdade e não de opressão, tão

comuns nos espaços de educação infantil.

Para Horn (2004) os espaços devem permitir ao professor um olhar atento e

sensível, portanto, qualquer professor tem, na realidade, uma concepção pedagógica

explicitada no modo como planeja suas aulas, na maneira como se relaciona com as crianças,

na forma como organiza seus espaços na sala de aula.

De acordo com Faria ( 2007, p.79), nas muitas discussões para a infância, o

espaço tem sido uma ferramenta fundamental para se pensar a educação das crianças e suas

aprendizagens.

O espaço, externo e interno, deve permitir o fortalecimento da independência das

crianças: mesmo sendo seguro, não precisa ser ultraprotetor, isto é, em nome da

segurança não deve impedir experiências que favoreçam o autoconhecimento dos

perigos e obstáculos que o ambiente proporciona. Assim, as crianças, vão aprender,

por exemplo, a subir e descer dos móveis que estão na altura do adulto, vão aprender

a tomar cuidado redobrado quando pegarem uma faca ou tesoura com ponta e corte

etc.

Faria neste livro “Educação Infantil Pós-LDB: Rumos e Desafios” apresenta

uma discussão viva para aquele momento histórico. Com as DCNEI (2010), percebe-se uma

consonância com a escrita do documento.

Hoje em Deleuze e Guattari encontro algumas possibilidades de pensar e

escrever o espaço de uma forma que se pretenda inquietar, distanciados de qualquer

pretensão de objetividade, de universalidade e verdade. E Shopke (2012, p. 14) nos atenta:

“precisamos ser cuidadosos na compreensão dos conceitos deleuzianos. Afinal, tal como ele

próprio afirmou, os conceitos precisam ser inventados, e isso não se faz senão no embate, no

confronto”. É preciso mover o olhar abrindo mão de um pensamento territorializado, num

convite de nos desterritorializar

Nos espaços escolares, onde as crianças tentam saídas nos seus movimentos de

fuga, de um olhar não convencional em que o adulto insiste em fixar, em ordenar. Parece que

estamos o tempo todo nos territorializando, procurando caminhos, trajetos, marcando nossos

lugares, programando nossas vidas. Pensar nos espaços é buscar esse emaranhado que às

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vezes são raízes e às vezes são rizomas que ainda se apresentam e se confundem, hora são

mapas, horas são decalques.

E assim poderia pensar no espaço liso e estriado – que por vezes se marcam

numa oposição simples, outras vezes mais complexa, lembrando que só existem graças às

misturas entre si: “o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o

espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso” (...) as razões da

mistura que de modo algum são simétricas, e que fazem com que ora se passe do liso ao

estriado, ora do estriado ao liso, graças a movimentos inteiramente diferentes. Deleuze e

Guattari (1997, p.180). O espaço liso é ocupado por acontecimentos, não busca uma precisão,

um formato, uma propriedade, enquanto que o espaço estriado é algo que pode ser mensurado,

medido.)

3 ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS

É importante ressaltar que as instituições de educação infantil começam a ter

visibilidade e foco de estudo no contexto histórico a partir da abertura política, década de 80

no Brasil, que trouxe um novo ordenamento legal iniciado com a Constituição Federal (CF)

de 1988 que se desmembra através do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), pela Lei

Orgânica da Assistência Social (1993) e pela lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB,

1996). Marca o reconhecimento da Educação Infantil no atendimento em creches e pré-

escolas, passando a serem respeitados como cidadãos, sujeito de direitos.

A Constituição Federal (CF) de 1988 não traz o termo “espaço” em seu texto,

mas aborda a preocupação com o estabelecimento dos direitos sociais e o atendimento da

criança pequena menor de seis anos de idade. Percebe-se a presença espaço a partir das

organizações das idades, dos tempos, dos materiais, que esquadrinham , classificam e marcam

o lugar de cada criança.

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, CF, 1988, art.208)

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Observa-se que após a Constituição Federal, a criança passou a ser concebida

como sujeito de direitos e destaca-se ainda que é dever do estado oferecer atendimento

educacional em creches e pré-escolas às crianças menores de seis anos, através de ações

complementares que envolvam a família, a sociedade e o estado.

Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)- Lei nº 9.394 de

1996 percebe-se que foi ela que trouxe, pela primeira vez, o termo educação infantil como

instrumento legal. A tradução deste direito em diretrizes e normas, no âmbito da educação

nacional, representa um marco para a educação infantil em nosso país.

Art. 29º. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como

finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus

aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família

e da comunidade.

Art. 30º. A educação infantil será oferecida em: I - creches, ou entidades

equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II - pré-escolas, para as

crianças de quatro a seis anos de idade.

Art. 31º. Na educação infantil a avaliação far-se-á mediante acompanhamento e

registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso

ao ensino fundamental. (Brasil, LDB, 1996)

Como aponta Cerisara (2002) “a partir das deliberações encaminhadas dessas

duas leis e das suas consequências para a área que os desafios e perspectivas têm sido

colocados”. Dentro deste contexto das reformas educacionais situo o RCNEI como mais

uma ação do governo FHC. Vale ressaltar que esse documento produzido pelo MEC integra

a série de documentos Parâmetros Currriculares Nacionais. A fim de orientar as concepções

e práticas, o Ministério da Educação (MEC) lança a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de

2009, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.

Algumas observações sobre o Relatório do Parecer do CNE/CEB nº 20/2009

da revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.

As instituições de Educação Infantil devem tanto oferecer espaço limpo, seguro e

voltado para garantir a saúde infantil quanto se organizar como ambientes

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acolhedores, desafiadores e inclusivos, plenos de interações, explorações e

descobertas partilhadas com outras crianças e com o professor. Elas ainda devem

criar contextos que articulem diferentes linguagens e que permitam a participação,

expressão, criação, manifestação e consideração de seus interesses. (Parecer do

CNE/CEB nº 20/2009 MEC 2009, p. 12)

Também podemos perceber a ideia de proteção à infância presente na

legislação, embora parece natural é preciso fazer um olhar, pois a infância historicamente tem

se revelado como uma categoria que necessita ser controlada e regulada.

Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar

que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é

portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade de

residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o

ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de

intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila,

e de técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma

localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de

relações... (FOUCAULT, 2004a, p.125).

Analisando os documentos percebe-se que as concepções de infância são

reflexos dos discursos que se anunciam sobre ela e que tem orientado as práticas cotidianas

de atenção e de cuidados para a criança. Gondra (2010) em seus estudos ajuda a mostrar as

visões que naturalizam a vida e a infância.

É certo que o saber médico organizou uma representação da vida e da infância,

construindo uma grade de inteligibilidade para ambas que, em muito colonizou

nosso pensamento, instaurando uma espécie de verdade no que se refere à vida e à

infância, em relação à qual é muito difícil instaurar uma diferença. (...) o

aparecimento e o desenvolvimento das potências da vida parece não obedecer ao

doce e monótono ritmo do relógio e de nossa forma tradicional de contabilizar o

tempo. (GONDRA, 2010, p.201)

4 ESPAÇOS E MECANISMOS DE PODER

Num desejo de cartografar, de pensar como os espaços foram organizados a partir da abertura

política é que trago o que vivi na década de 1990 como coordenadora pedagógica nos espaços

de educação infantil5. Assim a pesquisadora pode adentrar numa viagem ao tempo, reativando

a memória, buscando sentidos, recuperando práticas, num movimento de desconstrução de um

5 Nomenclaturas utilizadas pela Secretaria de Educação no município de Blumenau. Nos anos 80: Centro Social; nos anos 90 Unidade Pré Escolar e a partir de 1995 Centro de Educação Infantil.

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sistema de regras e critérios, assumindo o papel que perpassa por um olhar criterioso, secreto,

não visto.

Ao entrar nos espaços de educação infantil nos anos 90 o que se via eram salas

com muitas crianças, com poucos objetos o, apenas com ganchos para pendurar mochilas de

roupas, armários que eram guardados os materiais das professoras e das crianças.

Com a passar dos anos as salas foram se modificando, com espaços para guardar

brinquedos, cantos para casinha, para salão de beleza, lembrar que os cantos, espaços estes,

em que as brincadeiras mais utilizadas eram de reproduzir atividades domésticas, como lavar,

passar, cozinhar, etc. Esses cantos às vezes permaneciam na sala o ano inteiro e com os

mesmos cenários.

Figura 1: Canto das bonecas na Turma de 4 a 5 anos

Fonte: Arquivo pessoal

Esse canto possuem vários brinquedos como: bonecas, banheiras, que estão dentro

de caixas fixadas na parede. O que chama a atenção, que está na caixa mais ao alto são loucinhas

de barro ao alcance das crianças. Na prateleira enfeitada com fios de malha são brinquedos e

jogos. O acesso de entrada das crianças não tem porta e sim uma cortina feita de tecido

simbolizando a porta.

E nas palavras de Lima (1989, p. 38 e 39) os espaços escolares buscam: “uma

padronização na forma e na organização das salas, fechando as crianças para o mundo,

policiando-as, disciplinando-as”. “(...) assim a infância é tratada como uma doença a ser

curada, um estado de desvio a ser corrigido.” E cada vez mais estratégias são utilizadas para

manter o corpo sem movimento, se busca um controle, um domínio para deter os corpos.

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Também posso lembrar as salas, tudo muito claro, paredes brancas, os cheiros de

produto de limpeza era o que predominava naquele ambiente, o chão com piso de madeira

sempre tinha um brilho, janelas muito altas para que as crianças não pudessem alcançar,

impedindo assim o olhar curioso das crianças, a mesa da professora no fundo da sala ainda se

encontra nos dias de hoje.

Confirmando as afirmações de Lima (1989, p.58) “todo o esquema espacial

reflete a relação de autoridade, de disciplina” (...) o condicionamento a disciplina dá o tom

geral dos espaços escolares.

Nas salas das crianças até três anos de idade, com nomenclatura creches, que

acompanhava essa subdivisão: Berçário – 0 a 1 ano; Maternal I – 1 a 2 anos; e Maternal II – 2

a 3 anos, se diferenciavam da sala dos maiores principalmente porque ficava quase o tempo

inteiro dentro da sala (alimentação, higiene, recreação). A sala do Berçário era o espaço com

o maior cuidado quanto à higiene e posso lembrar de uma das regras de que para entrar na

sala dos bebês tinha que fazer uso do propé ( material feito de malha ou tnt para calçar)

utilizado contra a propagação de microorganismos e sujidades. E os berços, eram muitos, um

para cada criança, diminuindo assim o espaço para a criança movimentar-se. Eram poucos os

brinquedos e a maioria de borracha, só eram disponibilizados nos momentos que a professora

desejasse. Espaços mais preocupados em domesticar do que libertar.

Figura 2: Portão da turma dos bebês

Fonte: Arquivo pessoal

Nesta sala tem porta e portão, na maioria do tempo a porta está aberta, e o

portão sempre se encontra fechado.

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Na sala do Maternal I e II, muitos eram os pinicos, numa concepção de que

todas as crianças tivessem vontade na mesma hora de suas necessidades fisiológicas. Quanto

aos brinquedos eram sempre os mesmos e com um número bem reduzido, e o critério de

escolha era para que fossem bem fortes, assim impediam a criança de estragar.

As salas de pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos que contavam

com turmas em Jardim I, Jardim II Jardim III, essas salas não se diferenciavam muito, então

descrevo para as três. Com mobiliário de mesas e carteiras de madeira, as crianças sentavam

em grupos de quatro crianças. Brinquedos eram em número pequeno e o que se via eram

bonecas, carrinhos, bolas. Alguns jogos, brinquedos, revistas vinham das famílias, da

comunidade, eram materiais que não serviam mais e a creche era o espaço para receber esses

materiais, em bom ou mau estado. Todos esses materiais ficavam em espaços que as crianças

não tinham acesso, a professora é que decidia quando utilizar com as crianças.

Figura 3: A cabana do espaço externo

Fonte: Arquivo pessoal

Uma cabana feita de estrutura de madeira, com duas trepadeiras que cobriram o

teto da mesma. Embaixo possui brinquedos e muitos materiais como: tijolos, tocos, pedaços

de madeira, papelão, potes variados, chaleira, panelas grandes e pequenas, algumas colheres

de plástico, bacias, baldes, etc.

4 PROBLEMATIZANDO OS ESPAÇOS

Page 12: CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E …

Por meio de uma análise das fotos procuro problematizar os espaços a partir da

sociedade disciplinar que se reatualiza para a sociedade de controle. A disciplina tenta

resolver os problemas através do confinamento dos espaços, e podemos perceber isso na sua

arquitetura, investe cada vez mais em espaços que disciplinam, hierarquizam, individualizam

(cada criança na sua cadeira, no seu berço, nas brincadeiras de competição). A escola é uma

instituição que tem articulado com eficiência as relações de saber e poder e utiliza

dispositivos disciplinares que visam, segundo Foucault, tornar o exercício do poder menos

custoso. Para esse autor, “São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação;

recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e

indicam valores, garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia

dos tempos e dos gestos.” (Foucault, 2014, p.142).

Na foto 1 - Banheira em prateleira de ferro, espaços com cantos, cortina de fios,

canto da fantasia com caixas, roupas de adultos, perucas, bijuterias. Neste espaço não tem

porta, a cortina inibi a passagem. A criança mesmo sabendo que pode entrar, não entra, qual

o controle que exerce sobre ela? Segundo Deleuze ( 1997, p. 223) Há uma mudança de

natureza do próprio poder, que não é mais hierárquico, e sim disperso numa rede planetária,

difuso. “O homem da disciplina era um produtor contínuo de energia, mas o homem do

controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo”.

Na foto 2 – Criança, portão, adulto do lado oposto onde permite sair. Segundo

Foucault as sociedades disciplinares, esquadrinham, demarcam.. Ao descrever essa foto os

dispositivos disciplinares de Foucault (2014) se mostram na infância. “Os lugares

determinados se definem para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as

comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. Este espaço útil serve para

controlar os corpos, para demarcar as hierarquias do saber e do poder nas instituições

escolares.”

Nos espaços escolares, onde as crianças tentam saídas nos seus movimentos de

fuga, de um olhar não convencional em que o adulto insiste em fixar, em ordenar. Busco um

movimento de inquietação para pensar outros percursos e outras contribuições para

construção dos espaços.

Page 13: CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E …

5 Tentando concluir

Penso que não cheguei ao fim, portanto não concluo, não encerro, muitas

reticências. Como me propus na introdução do artigo busco no conceito de rizoma algo que

não está pronto, que vai se fazendo, provocando um olhar diferente sobre aquilo que está

dado. No rizoma são múltiplas as linhas de fuga, portanto as possibilidades são múltiplas.

Assim o espaço pode ser pensado a partir de um rizoma, como nos aponta Deleuze e Guatari

(1997, p.48).

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre coisas,

inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente

aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção

“e... e... e...”. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo

ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões

inúteis.

Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.

Espaços esses que não buscam uma rota, um caminho, uma repetição, um trajeto, mas se

aventuram nos descaminhos, fazendo emergir novos movimentos, querendo ir mais

longe, ou seja, passamos a vê-lo de forma diferente.

Problematiza-se sobre a necessidade de participação das crianças no

planejamento, nas brincadeiras, valorizando como seres ativos, capazes de questionar,

criar, investigar. Pressupõem-se que a criança, juntamente com os adultos, pode ser

protagonista na tomada de decisões e nas ressignificações dos modos como o espaço vai

se (re)construindo.

REFERENCIAS

BRASIL. Ministério da Educação/ SEF/ COEDI. Política Nacional de Educação

Infantil. Brasília, 1993.

______.Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases

da Educação Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v.

134, n. 248, 23 dez. 1996. Seção 1, p. 27834-27841.

Page 14: CARTOGRAFANDO OS ESPAÇOS NOS COMPASSOS E …

______. Parecer CNE/CEB Nº 20/2009. –– revisão das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Infantil – Ministério da Educação- Conselho Nacional da

Educação Básica - Brasília –DF. Aprovado em 11/11/2009. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br> acesso em 12 abril/2015.

______.Conselho Nacional de Educação. Parecer CEB n. 22 de 17 de dezembro de

1998. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.

Disponível em: http://www.mec.gov.br/cne/parecer.shtm

______.Resolução CEB nº. 1, de 7 de abril de 1999. Institui as Diretrizes Curriculares

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