cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

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Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não ilustre Érica Nascimento Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Maio de 2012

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Page 1: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não

ilustre

Érica Nascimento Silva

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Maio de 2012

Page 2: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

2

Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não

ilustre

Érica Nascimento Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do

título de Mestre em Letras Vernáculas

(Língua Portuguesa).

Orientadora: Célia Regina dos Santos

Lopes

Volume I

Rio de Janeiro

Maio de 2012

Page 3: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

3

Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal não

ilustre

Érica Nascimento Silva

Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas.

Examinada por:

______________________________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes

______________________________________________________________________

Professor Doutor Afrânio Gonçalves Barbosa – UFRJ

______________________________________________________________________

Professora Doutora Márcia Cristina de Brito Rumeu – UFMG

______________________________________________________________________

Professora Doutora Sílvia Regina de Oliveira Cavalcante – UFRJ, Suplente

______________________________________________________________________

Doutora Juliana Barbosa de Segadas Vianna – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Maio de 2012

Page 4: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

4

Silva, Érica Nascimento.

Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de um casal

não-ilustre / Érica Nascimento Silva. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2012.

xvi, 70f.:il.; 30 cm.

Orientador: Célia Regina dos Santos Lopes

Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas, 2012.

Referências bibliográficas: f. 68-70

1. Formas pronominais no português brasileiro. 2. Análise Filológica. 3.

Análise Linguística. II. Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas. III. A variação entre as formas pronominais tu e você em cartas

amorosas dos anos de 1930.

Page 5: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

5

Dedico esta dissertação à minha mãe Clézia pelo amor, doçura e carinho que sempre

derramou sobre mim.

Page 6: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

6

Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus, que foi quem me deu forças para continuar

escrevendo este trabalho mesmo diante das várias dificuldades inerentes ao nível do

curso. Ele que tem me acompanhado desde sempre zelando pelos meus caminhos a fim

de que eu possa colher bons frutos.

À Célia Lopes por ter dedicado muito tempo à produção desta pesquisa,

apontando sempre os problemas, sugerindo reflexões e contribuindo de forma positiva

para que se tornasse um trabalho relevante e com aspectos inovadores. E agradeço ainda

mais por ter sido mais do que uma orientadora, mas também uma mãe que soube cobrar

quando devia, mesmo que houvesse de utilizar a boa e infalível fórmula das broncas.

Não podia deixar de citar a minha maior incentivadora na continuidade dos meus

estudos, sendo a pessoa que mais me apoiou quando precisei de um pouco de aconchego

materno. É por essas razões e tantas outras, que certamente não caberiam aqui se eu

resolvesse discorrer sobre as mesmas, que agradeço à minha mãe Clézia, pelos tantos

momentos de carinho, amor e paciência. Foi, sem dúvidas, um importante elemento

para que eu não desistisse e continuasse persistindo ainda que houvesse dificuldades a

serem transpostas.

Ao meu pai Antonio Carlos que, embora não podendo estar perto fisicamente de

mim todo o tempo, sempre se mostrou interessado em saber como estava indo essa

etapa da minha vida e, o mais importante, questionando se era um caminho que me fazia

feliz.

Agradeço a todos os meus familiares, mas, cito nominalmente o meu irmão

Marcelo e a minha tia e madrinha Maria Auxiliadora por estarem sempre presentes na

minha vida e torcerem pela minha vitória. Meu irmão sempre me estendendo a mão

quando, por algum motivo, me sentia abatida e minha madrinha que desde que eu era

criança zelava para que eu prosseguisse estudando firme.

Trago-os no peito desde a graduação, mas pude perceber nesses dois anos de

mestrado que não eram só amigos acadêmicos, e sim companheiros que se leva por toda

a vida. Agradeço ao Caio, Criatura, por ser a minha alma-gêmea como amigo, sempre se

mostrando interessado em saber como estava indo a minha vida acadêmica e pessoal,

me socorrendo todas as vezes em que pedi socorro, seja através de palavras, ações, ou

levando um lenço para secar as minhas lágrimas. À Elaine, ou Michelaine para os

íntimos, por ter me dado o privilégio de ser minha amiga, preocupando-se com tudo o

que me ocorria, demonstrando ser uma boa e paciente ouvinte seja qual fosse o assunto,

e uma pessoa da qual cada gargalhada vale muito. À Ana, atendendo pelos nomes de

Cabeção ou Niña também, por ser essa pessoa maravilhosa que sempre foi,

compreensiva a ponto de entender comportamentos displicentes que me assombraram

em alguns momentos e participando, mesmo que com um pouco mais de ausência, de

todo esse processo, seja ouvindo ou incentivando.

A todos os meus amigos que me acompanharam durante essa jornada não só de

escritura da dissertação, mas ao longo de todo o curso do mestrado. Destaco aqueles

Page 7: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

7

que, por terem estado comigo na mesma etapa acadêmica, puderam me ajudar

diretamente em qualquer dificuldade que surgia. Amigos, como a Rachel, Janaína e

Mayara, que foram pessoas que se tornaram bem mais que meras conhecids.

Aos professores que me deram importantes lições, acrescentando de maneira

significativa mais reflexão e conhecimento não só a este trabalho, mas a mim, como

pesquisadora linguista. Agradeço em especial àqueles que tive o prazer de fazer algum

curso durante o ano de 2011, como: Carlos Alexandre Gonçalves, Maria Eugênia

Lamoglia, Sílvia Regina Cavalcante, Dinah Callou, Filomena Varejão, Célia Lopes,

João Moraes e Afrânio Barbosa.

À Rachel pelo seu apoio, incentivo e carinho nos críticos momentos finais do

mestrado.

Às bolsistas de iniciação científica Karine e Stephanie pela paciência em me

ensinar, em tão pouco tempo, a mexer eficientemente no programa E-dictor, que foi de

suma importância para o desenvolvimento desta dissertação, e por terem editado parte

do corpus utilizado neste trabalho.

À Janaína por ter transcrito e editado metade da amostra utilizada na presente

pesquisa.

À CAPES pelo financiamento parcial deste trabalho, fato esse que me

possibilitou poder me dedicar mais à pesquisa e leitura pertinentes ao meu tema.

Page 8: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

8

SILVA, Érica Nascimento. Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil

sociolinguístico de um casal não ilustre. Dissertação de Mestrado em Língua

Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2012.

Resumo

O presente trabalho pretende estudar a variação entre tu e você na posição de sujeito em

cartas pessoais trocadas por um casal de noivos – Jayme S. e Maria C. – entre os anos

de 1936 e 1937 no Rio de Janeiro. O corpus é composto de 97 cartas, sendo 68 do

Jayme e 29 da Maria. As hipóteses levantadas para esse trabalho são formadas a partir

dos resultados de outros estudos, que mostram que o uso majoritário de tu – forma

recorrente no início do século XX (cf. Lopes, 2008; Duarte, 1993, entre outros) – será

suplantado por você por volta dos anos 30 sendo as mulheres as que mais utilizam esse

pronome (cf. Lopes e Machado, 2005; Rumeu, 2008). Observa-se também que nesse

mesmo período haverá uma maior tendência de preenchimento do sujeito no português

brasileiro. O trabalho levará em conta os pressupostos teóricos da teoria variacionista

quantitativa laboviana (Labov, 1994), visando a identificar os fatores linguísticos e

extralinguísticos que determinam o uso dos pronomes de tratamento de referência à

segunda pessoa no período em questão. Trabalhos como o de Marquilhas (1996) e

Barbosa (1999) serão considerados para a análise de cunho filológico, a fim de que se

possa identificar através da grafia aspectos que ajudem a traçar o perfil sociolinguístico

do casal de noivos – já que, por não serem pessoas ilustres, não há muitas informações

acerca dessas duas pessoas presentes nas cartas.

Palavras-chaves: formas pronominais tratamentais, variação, cartas amorosas.

Page 9: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

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SILVA, Érica Nascimento. Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil

sociolinguístico de um casal não ilustre. Dissertação de Mestrado em Língua

Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2012.

Abstract

The present paper aims to study the variation between tu and você in the subject

position in personal letters exchanged by a couple of newlyweds - Jayme S. and

Maria C. - Between the years 1936 and 1937 in Rio de Janeiro. The corpus is composed

of 97 letters, 68 of Jayme and 29 of Maria. The hypotheses for this study are

formed from the results of other studies that show that the majority of tu use - a

recurring basisin the early twentieth century (cf. Lopes, 2008, Duarte, 1993, among

others) - will be supplanted by você around 30 years of women being the more use

that pronoun (cf. Lopes and Machado, 2005; Rumeu, 2008). It was also noted that in the

same period there will be a greater tendency to fill the subject in Brazilian Portuguese.

The study will take into account the theoretical quantitative laboviana

varionational theory (Labov, 1994), to identify the linguistic and extralinguistic factors

that determine the use of pronouns in reference to the treatment of second person in the

period in question. Works such as Marquilhas (1996) and Barbosa (1999) will be

considered for the analysis of philological nature, so that one can

identify through spellings aspects that help to trace the sociolinguistic profile of

the engaged couple - since, by not be distinguished people, there is

little information about these two persons present in the letters. To verify that

occur frequently in the pronouns tu and você in letter and linguistic context for the

occurrence thereof, will be used methodological tool Goldvarb. A philological analysis

will be performed with the help of the E-dictor, whereby the survey will be done

graphematic traces of the authors.

Key words: pronoun forms treatments, change, love letters.

Page 10: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

10

SINOPSE

Estudo de variação das formas

pronominais tu e você em posição de

sujeito. Análise linguística e

filológica de cartas pessoas da década

de 1930. Edição de corpora

discrônicos.

Page 11: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

11

Sumário

Volume I

Agradecimentos .............................................................................................................. 6

Número de cartas transcritas ...................................................................................... 15

Normas de edição .......................................................................................................... 15

Índice de Figuras, Gráficos, Esquemas, Quadros e Tabelas .................................... 16

Introdução ..................................................................................................................... 18

1. Descrição do objeto de estudo.................................................................................. 21

1.1. As formas pronominais: um breve percurso diacrônico ................................ 21

1.2. Os pronomes pessoais segundo as gramaticas tradicionais .............................. 23

1.3. Alguns estudos diacrônicos acerca do tema ................................................ 26

1.3.1. A alternância entre tu e você ........................................................................... 26

2. Aparatos teóricos ...................................................................................................... 31

2.1. Teoria variacionista laboviana ........................................................................... 31

2.2. Estudos filológicos .............................................................................................. 34

2.3. O modelo epistolar .............................................................................................. 38

2.4. Corpus ................................................................................................................. 43

2.4.1. A constituição da amostra ............................................................................... 43

2.4.2. Quem foi Jayme e Mariquinhas? Breve perfil sociolinguístico dos autores

das cartas .................................................................................................................... 44

3.2. O conteúdo das missivas ..................................................................................... 49

Page 12: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

12

3. A análise filológica das missivas ............................................................................... 51

3.1. Metodologia ........................................................................................................ 52

3.1.1. A edição de corpora diacrônicos ..................................................................... 52

3.1.2. O E-dictor ......................................................................................................... 53

3.2. Parâmetros relativos ao grau de letramento ...................................................... 69

3.3. Os critérios gerais de análise das missivas ...................................................... 70

3.4. A análise das formas linguísticas submetidas a critérios de edição ................. 73

3.4.1 Segmentação/Junção ........................................................................................ 75

3.4.2. Desvios grafemáticos ....................................................................................... 79

3.4.2.1. Monotongação e ditongação ........................................................................ 81

3.4.2.2. Alternância entre [e] e [i] e entre [o] e [u] ................................................... 82

3.4.2.3. Nasalização e desnasalização ....................................................................... 83

3.4.2.4. Síncope de vogais e consoantes .................................................................... 84

3.5. Etimologização .................................................................................................... 85

3.6. Abreviatura ......................................................................................................... 88

3.3. Resultados ........................................................................................................... 89

4. As estratégias em análise .......................................................................................... 93

4.1. Os grupos de fatores ........................................................................................... 93

4.2. A análise dos dados ............................................................................................. 97

4.2.1. O preenchimento do sujeito ........................................................................... 101

4.2.2. A questão do gênero ...................................................................................... 108

4.2.3. A concordância .............................................................................................. 109

Considerações finais ................................................................................................... 114

Page 13: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

13

Referências bibliográficas .......................................................................................... 118

Anexo............................................................................................................................117

Volume II

Cartas de Maria

10 de Setembro de 1936.........................................................................................18

12 de Setembro de 1936..........................................................................................20

14 de Setembro de 1936..........................................................................................22

21 de Setembro de 1936..........................................................................................24

22 de Setembro de 1936..........................................................................................26

23 de Setembro de 1936..........................................................................................29

26 de Setembro de 1936..........................................................................................32

28 de Setembro de 1936..........................................................................................35

29 de Setembro de 1936..........................................................................................38

1 de Outubro de 1936.............................................................................................41

5 de Outubro de 1936.............................................................................................43

6 de Outubro de 1936.............................................................................................44

7 de Outubro de 1936.............................................................................................47

11 de Outubro de 1936..........................................................................................49

13 de Outubro de 1936..........................................................................................51

Cartas de Jayme

27 de Junho de 1936..........................................................................................53

30 de Junho de 1936..........................................................................................54

20 de Agosto de 1936..........................................................................................56

22 de Agosto de 1936..........................................................................................58

25 de Agosto de 1936..........................................................................................61

Page 14: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

14

9 de Setembro de 1936..........................................................................................62

10 de Setembro de 1936..........................................................................................65

11 de Setembro de 1936..........................................................................................67

13 de Setembro de 1936..........................................................................................69

15 de Setembro de 1936..........................................................................................72

21 de Setembro de 1936..........................................................................................75

21 de Setembro de 1936..........................................................................................78

22 de Setembro de 1936..........................................................................................80

23 de Setembro de 1936..........................................................................................83

21 de Setembro de 1936..........................................................................................85

25 de Setembro de 1936..........................................................................................87

26 de Setembro de 1936..........................................................................................89

28 de Setembro de 1936..........................................................................................92

29 de Setembro de 1936..........................................................................................95

30 de Setembro de 1936..........................................................................................97

1 de Outubro de 1936..........................................................................................100

5 de Outubro de 1936..........................................................................................102

6 de Outubro de 1936..........................................................................................104

7 de Outubro de 1936..........................................................................................106

8 de Outubro de 1936..........................................................................................108

9 de Outubro de 1936..........................................................................................110

10 de Outubro de 1936..........................................................................................112

11 de Outubro de 1936..........................................................................................114

12 de Outubro de 1936..........................................................................................116

13 de Outubro de 1936..........................................................................................118

14 de Outubro de 1936..........................................................................................120

15 de Outubro de 1936..........................................................................................122

Page 15: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

15

29 de Outubro de 1936..........................................................................................124

19 de Outubro de 1936..........................................................................................125

19 de Dezembro de 1936..........................................................................................126

Anexos.....................................................................................................................127

Número de cartas transcritas

Normas de edição

Cartas transcritas em versão fac-símile: 30 cartas de Maria e 68 cartas de Jayme

Page 16: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

16

Índice de Figuras, Gráficos, Esquemas, Quadros e Tabelas

Figuras

Figura 1: Expansão dos contextos pragmáticos de uso da forma Vossa mercê > você nos

........................................................................................................................................ 22

Figura 2: Tela de edição do E-dictor .............................................................................. 55

Figura 3: Tela léxico de edições do E-dictor .................................................................. 56

Figura 4: Trecho de carta com texto sobrescrito (Maria) ............................................... 60

Figura 5: Trecho de carta com texto sobrescrito (Jayme) .............................................. 60

Figura 6: Trecho de carta com texto ilegível .................................................................. 61

Figura 7: Trecho de carta com texto rasurado (Maria) ................................................... 62

Figura 8: Trecho de carta com texto rasurado (Jayme) .................................................. 63

Figura 9: Trecho de carta com texto subscrito (Maria) .................................................. 64

Figura 10: Trecho de carta com texto subscrito (Jayme) ................................................ 65

Figura 11: Trecho de carta com texto tachado (Maria) .................................................. 65

Figura 12: Trecho de carta com texto tachado (Jayme) .................................................. 66

Gráficos

Gráfico 1: O preenchimento do sujeito ao longo das décadas (SOUZA, 2012) ........... 104

Gráfico 2: Todos os sujeitos plenos das cartas ............................................................. 105

Gráfico 3: Tu e você plenos nas cartas de Jayme e Maria ............................................ 105

Gráfico 4: Dados percentuais das formas de segunda pessoa na posição de sujeito

conforme o gênero. ....................................................................................................... 108

Gráfico 5: A não concordância entre o pronome sujeito e o verbo .............................. 110

Page 17: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

17

Esquemas

Esquema 1: Abreviatura ................................................................................................. 88

Esquema 2: Continuum sobre o grau de letramento dos missivistas .............................. 91

Tabelas

Tabela 1: Distribuição geral dos critérios nas cartas do Jayme e da Maria .................... 73

Tabela 2: Alternância entre e e i e entre o e u ................................................................ 83

Tabela 3: Nasalização ..................................................................................................... 84

Tabela 4: Síncope de vogais e consoantes ...................................................................... 85

Tabela 5: Quadro geral dos tipos de pronomes presentes nas cartas .............................. 97

Tabela 6: Preenchimento do sujeito nas cartas ............................................................. 102

Page 18: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

18

Introdução

Esse trabalho tem como objetivo traçar o perfil sociolinguístico dos remetentes

de cartas amorosas datadas do final da década de 1930 para fundamentar uma análise de

cunho variacionista sobre a alternância entre as formas pronominais de segunda pessoa

– tu e você – na posição de sujeito.

Estudos como os de Rumeu (2008), Machado (2006), Lopes & Machado (2005),

Souza (2011), entre outros analisaram a variação das formas pronominais de segunda

pessoa do singular, buscando (i) evidenciar os contextos linguísticos e extralinguísticos

que atuam nessa alternância, e (i) identificar o período em que você teria suplantado tu.

Trabalhos como os de Duarte (1993, 1995) – feito com base em peças teatrais dos

séculos XIX-XX – apontam que a inserção de você no paradigma pronominal do

português brasileiro (PB) ocorreu por volta da década de 1930, implementando-se mais

rapidamente na posição de sujeito. Esse resultado também é atestado em Souza (2012),

cujo trabalho mapeou a entrada de você no PB a partir da análise de missivas

particulares do século XX, norteando-se pela hipótese levantada em Duarte (1995).

Outro aspecto hipótese que fundamenta a análise aqui proposta refere-se às

considerações de Labov (1994) sobre o papel do gênero nos processos de variação e

mudança linguísticas. Para o autor, a mulher assumiria um caráter inovador nos

processos de mudança linguística, sendo a precursora na inserção de novas formas na

língua. Nos processos de variação, entretanto, as mulheres seriam conservadoras,

tendendo a usar as formas não estigmatizadas socialmente e preferindo estratégias

próximas da norma padrão. Em vários estudos sobre o tema da alternância pronominal

de segunda pessoa, percebe-se que um comportamento inovador das mulheres quanto à

inserção da nova forma, embora o uso de você em documentação do século XIX ainda

sinalize certo distanciamento – advindo da sua forma originária – em relação ao

interlocutor (RUMEU, 2008; SOTO, 2001).

Tendo em vista esses aspectos que nos serviram como hipóteses básicas,

propõem-se a análise e a edição semidiplomática de um corpus constituído por 98 cartas

trocadas entre um casal de noivos – Jayme de Oliveira Saraiva e Maria Ribeiro da Costa

– escritas nos anos de 1936 e 1937, no Rio de Janeiro. Não há informações disponíveis

acerca de quem foram esses dois missivistas em arquivos públicos, pois se tratam de

Page 19: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

19

pessoas não-ilustres, por isso houve a necessidade de buscar outra alternativa para traçar

o seu perfil social – aspecto imprescindível em uma análise sociolinguística.

Nesse sentido, para fazer essa incursão sobre o processo de variação pronominal,

primeiramente serão traçados os perfis sociais dos missivistas com base na análise das

cartas. O intuito da proposta era encontrar dados que revelassem, ao menos, o grau de

letramento dos informantes, observando aspectos grafemáticos que pudessem evidenciar

o nível de contato dos mesmos com a modalidade escrita. Foram utilizados estudos de

natureza filológica, para que fossem identificadas marcas de oralidade nos textos

escritos dos remetentes (desvios grafemáticos, etimologizações, abreviaturas e

segmentação/junção de parte de um mesmo segmento silábico). Levantaram-se, assim,

conforme fossem pertinentes, aspectos que contribuíssem com a descrição relativa à

habilidade de escritura dos indivíduos analisados. Tal proposta baseou-se em estudos de

Marquilhas (1996) e Barbosa (1999) com o objetivo de demonstrar o grau de letramento

e a habilidade dos escreventes.

A análise de natureza filológica está, desse modo, articulada ao estudo

qualitativo das formas de segunda pessoa – tu e você, pois se pretende observar a

influência do perfil social dos remetentes na análise variacionista.

Esta dissertação está dividida em quatro capítulos, além da introdução e das

considerações finais. No capítulo um, será apresentada a descrição do objeto de estudo –

no caso, dos pronomes tu e você – retomando acepções das gramáticas tradicionais

acerca das formas tratamentais (ROCHA LIMA (2003), LUFT (1991), BECHARA

(2004) e CUNHA & CINTRA (1985) relativas à segunda pessoa. Descrevem-

se,brevemente, as formas pronominais em questão a fim de discuti-las segundo as

descrições das gramática tradicional, e, em seguida, o percurso diacrônico de Vossa

Mercê (FARACO, 1988) até chegar a você. Na sequência, apresentam-se as análises

linguísticas e respectivos resultados sobre o tema (RUMEU, 2008, MACHADO, 2006).

No capítulo dois, constará o aporte teórico utilizado nesta análise. Levam-se em

conta os pressupostos labovianos (LABOV, 1994), discussões acerca do gênero

epistolar (MARCUSCHI, 2001, BLAS, 2003) e postulados filológicos baseados nos

trabalhos de Barbosa (1999) e Marquilhas (1996). Ao final desse capítulo será descrita a

amostra das cartas mais detalhadamente e serão apresentadas as questões norteadoras.

Page 20: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

20

O capítulo três apresenta uma análise de cunho filológico partindo de evidências

grafemáticas para atentar o grau de letramento dos missivistas. Esta análise utiliza a

ferramenta metodológica E-dictor para quantificar as ocorrências de alterações

grafêmicas que possam dar indícios sobre o perfil social dos missivistas.

O capítulo quatro traz uma análise descritiva acerca do sujeito de segunda

pessoa – tu e você – nas missivas. Essa seção se apóia em diversos trabalhos sobre o

tema, a fim de tentar explicar os contextos linguísticos e discursivos que favorecem o

emprego das formas variantes.

As considerações finais vêm logo em seguida apresentando os resultados obtidos

e as questões que foram levantadas ao longo do trabalho. Serão retomadas questões

inicialmente propostas e as hipóteses que permearam a análise.

Page 21: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

21

1. Descrição do objeto de estudo

Neste capítulo será apresentado um breve percurso histórico acerca dos

pronomes de segunda pessoa e das formas nominais de mesma referência, observando a

origem e inserção de você no português.

1.1. As formas pronominais: um breve percurso diacrônico

Do século XIII ao XIV, como aponta Cintra (1986), as únicas formas de

referência à segunda pessoa eram tu (singular) e vós (plural) – podendo esse, em alguns

casos, referir-se a um só interlocutor, como uma maneira de demonstrar polidez,

conforme aponta Cunha & Cintra (2001). A partir dos séculos XIV e XV, as formas

nominais de tratamento, como, por exemplo, Vossa Senhoria, Vossa Alteza e Vossa

Mercê passam a ser utilizadas para marcar a posição social dos referentes,

principalmente nas Crônicas de Fernão Lopes. Nesse caso, aparecem acompanhadas de

verbos flexionados na terceira pessoa do singular. A inserção dessas formas

pronominais de base nominal, como aponta Faraco (1996), foram decisivas para que

houvesse uma mudança no quadro pronominal do português, já que foi a partir desse

momento que formas de terceira pessoa passaram a ser utilizadas em um contexto de

referência à segunda pessoa.

De acordo com Faraco (1996), em meados dos anos de 1460, Vossa Mercê era

uma estratégia linguística para marcar hierarquicamente a posição do rei de Portugal em

relação aos seus súditos, pois era empregado exclusivamente em referência ao monarca.

Já no final desse mesmo século, a forma nominal Vossa Mercê tem seu uso estendido a

outros membros da nobreza, como duques e fidalgos, e passa a não ser mais uma

referência exclusiva do rei. A partir do século XVI, com advento da burguesia, foi

ficando mais evidente a necessidade de haver formas de tratamento para marcar o

distanciamento dos membros desse novo seguimento social em relação a outras pessoas

sem posses. Com isso, o uso da forma de tratamento Vossa Mercê, que primeiramente

(século XIII) referia-se somente ao rei, passou a ser utilizada também para demais

aristocratas e burgueses, o que ocasionou seu esvaziamento semântico resultando,

assim, numa forma pronominal (apud Menon, 1995). A partir desse momento, por volta

do século XVI, a forma Vossa Mercê vulgarizou-se e perdeu o seu caráter exclusivista,

Page 22: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

22

passando a ser empregada largamente em diferentes contextos em que não havia

nenhuma demarcação hierárquica entre os indivíduos que a usavam.

Na proposta de Rumeu (2008), acerca do alargamento do uso de Vossa Mercê

em contextos em que inicialmente essa forma não era utilizada, pode-se observar tal

processo na figura a seguir retirada de Machado (2006).

Figura 1: Expansão dos contextos pragmáticos de uso da forma Vossa mercê > você nos

século XV e XVI.

Na figura (1), tem-se a pirâmide social indicando a expansão no uso de Vossa

Mercê. No começo, conforme indica o topo da pirâmide, só era utilizada como

referência aos reis, mas, com o passar dos anos, passou a ser uma estratégia utilizada

também pela nobreza, alcançando a burguesia em meados do século XVI.

A forma nominal Vossa Mercê teve seu uso ampliado para diferentes

interlocutores e não só mais ao monarca, servindo para delimitar hierarquias sociais.

Uma das mudanças advindas dessa maior utilização de Vossa Mercê é verificada nos

processos fonético-fonológicos sofridos por essa forma nominal ao longo dos séculos,

resultando no pronome você no século XVII. Por volta do século seguinte, percebe-se

que você deixa de ter seu significado tão atrelado à posição social dos indivíduos e

passa a ter seu uso expandido sempre se referindo à segunda pessoa do discurso.

± 1460

± 1490

± XVI

Page 23: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

23

1.2. Os pronomes pessoais segundo as gramaticas tradicionais

Embora a forma Vossa Mercê tenha se transformado no pronome você, a

gramática tradicional ainda apresenta uma perspectiva controvertida e variada para a

nova forma pronominal: forma variante ao pronome tu que assume, muitas vezes, o seu

lugar.

Gramáticos como Luft (1990), Rocha Lima (1991), Cunha & Cintra (2001) e

Bechara (2004) são unânimes em afirmar que a função principal dos pronomes é a de

apontar as pessoas participantes do discurso. Dessa forma, as primeiras pessoas indicam

o indivíduo que fala – eu (singular) e nós (plural) –; as segundas, aquele com quem se

fala – tu (singular) e vós (plural) –; e as terceiras, aquele com quem se fala – ele(a) e

eles(as). Bechara (2004) afirma que no discurso há apenas duas pessoas determinadas

no discurso – referentes à primeira e segunda pessoas – e uma indeterminada – referente

à terceira pessoa – que apontam outro participante em relação ao discurso.

A tabela abaixo sintetiza as definições de pronomes pessoais retos das

gramáticas dos autores já citados, mostrando diferenças quanto à classificação de você:

Bechara

(2004)

Luft (1990) Cunha &

Cintra (2001)

Rocha Lima

(2005)

Pronomes

pessoais retos

Designam as

duas pessoas

do discurso e a

não-pessoa

(não-eu, não-

tu),

considerada,

pela tradição, a

3ª pessoa, com

a função de

sujeito.

São aqueles

que designam

os sujeitos

(“pessoas”) do

discurso – o

falante: eu, o

ouvinte: tu,

(você, o

senhor, etc.) –

e o assunto:

ele(s), elas(s).

Só este é “pro”

nome

substantivo no

sentido de

“substituir” um

nome

substantivo

(sintagma

substantivo).

Caracterizam-

se:

1.°) por

denotarem as

três pessoas

gramaticais.

2.°) por

poderem

representar,

quando na 3.ª

pessoa, uma

forma nominal

anteriormente

expressa;

3.°) por

variarem de

forma:

a) a função que

desempenham

na oração;

b) a acentuação

que nela

recebem.

São palavras

que

representam as

três pessoas do

discurso,

indicando-as

simplesmente,

sem nomeá-las.

Os pronomes

pessoais retos

são os que

assumem a

função de

sujeito da

oração.

Page 24: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

24

Observações

A forma você

de uso familiar

é arrolada entre

os pronomes de

tratamento.

O autor inclui

você entre as

formas de

tratamento e

evidencia que o

pronome veio

da de Vossa

Mercê.

Inclui você

somente entre

as formas de

tratamento

____________

Quadro 1: Os pronomes pessoais retos segundo as gramáticas tradicionais

Como se vê no quadro-síntese, as gramáticas normativas tratam tu da mesma

maneira, ou seja, todas agrupam tal forma pronominal entre os pronomes pessoais retos.

Já você, por seu turno, é apontado como um pronome pessoal sem ressalvas somente na

gramática de Rocha Lima (2005), sendo arrolado entre as formas pronominais retas

referentes à segunda pessoa, embora a concordância se realize na terceira. Nas demais

gramáticas – Cunha & Cintra (2001), Bechara (2004) e Luft (1990), você é inserido

entre as formas de tratamento. Bechara (2004), no entanto, faz uma observação quanto

ao pronome você, pois reconhece que o mesmo, no plural, funciona como um substituto

da forma vós – que já não é mais utilizada na modalidade oral da língua – sendo o plural

(vocês) utilizado em contextos familiares.

Você, hoje usado familiarmente, é a redução da forma

reverência Vossa Mercê. Caindo o pronome vós em

desuso, só usado nas orações e estilo solene, emprega-se

vocês como plural de tu. (BECHARA, 2004, p. 166)

Cunha & Cintra (2001) fazem ainda um adendo acerca dos pronomes tu e você.

No português europeu normal, o pronome tu é empregado

como forma própria da intimidade. Usa-se de pais para

filhos, de avós ou tios para netos e sobrinhos, entre

irmãos ou amigos, entre marido e mulher, entre colegas

de faixa etária igual ou próxima. O seu emprego tem-se

alargado, nos últimos tempos, entre colegas de estudo o

da mesma profissão, entre membros de um partido

político e até, em certas famílias, de filhos para pais,

tendendo a ultrapassar os limites da intimidade

propriamente dita, em consonância com uma intenção

igualitária ou, simplesmente, aproximativa. No português

do Brasil, o uso do tu restringe-se ao extremo Sul do país

e a alguns pontos da região Norte, ainda não

suficientemente delimitados. Em quase todo o território

brasileiro, foi ele substituído por você como forma de

intimidade. Você também se emprega, fora do campo da

intimidade, como tratamento de igual para igual ou de

superior para inferior.

Page 25: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

25

É este último valor, de tratamento igualitário ou de

superior para inferior (em idade, em classe social, em

hierarquia), e apenas este, o que você possui no português

normal europeu, onde só excepcionalmente – e em certas

camadas sociais altas – aparece usado como forma

carinhosa de intimidade. No português de Portugal não é

ainda possível, apesar de certo alargamento recente do

seu emprego, usar você de inferior para superior, em

idade, classe social ou hierarquia. 1

No fragmento acima retirado da gramática de Cunha & Cintra (2001), os autores

fazem referência à generalização do uso de você em contextos que normalmente a

preferência seria pelo pronome tu. Cunha & Cintra (2001) assumem que você, no

português europeu, não é utilizado em relações assimétricas ascendentes, ou seja, de

inferior para superior, pois ainda carrega em si a noção de indiretividade advinda da sua

origem Vossa Mercê. Os autores advertem que o uso de você como forma de intimidade

no português europeu não é comum, preferindo-se tu. Pode-se ainda tecer um

comentário contrário sobre a afirmação dos autores de que no português brasileiro o

pronome você não é utilizado em relações assimétricas de inferior para superior, estando

de acordo com a norma lusitana. No português brasileiro, o uso de você se ampliou em

contextos que antes só se usava tu perdendo, dessa maneira, sua característica principal

de marcação de distanciamento hierárquico e passando a ser utilizado em relações

simétricas e assimétricas descendentes e ascendentes. A forma pronominal você,

portanto, no português brasileiro entra em confluência com tu assumindo valor similar,

uma vez que passa a ser utilizado por diferentes interlocutores, tendo seu uso

generalizado.

Observando essa descrição das gramáticas tradicionais, à exceção do Rocha

Lima (2003), percebe-se que todas insistem em tratar você, como um pronome de

tratamento, embora usualmente o mesmo figure como um pronome reto. Além disso, a

mistura de tratamento, entre as formas de segunda pessoa, tu e você, demonstram uma

confluência de formas que podem assumir, em determinados contextos o mesmo

significado referencial. Para ilustrar melhor essa questão, na seção seguinte serão

apresentados trabalhos atuais acerca da alternância das formas pronominais de segunda

pessoa, a fim de que sejam mostradas algumas reflexões acerca do tema.

1 Bechara (2004), p. 291-292.

Page 26: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

26

1.3. Alguns estudos diacrônicos acerca do tema

Para a análise da variação pronominal das formas de segunda pessoa em dados

diacrônicos, é preciso levar em conta os trabalhos específicos sobre a questão do

tratamento pronominal, como é o caso de Rumeu (2004, 2008), Barcia (2006),

Marcotulio (2008). No primeiro caso, serão levantados os estudos referentes,

principalmente, ao final do século XIX e início do XX com base em diferentes

amostras: cartas de leitores, cartas pessoais, peças teatrais. O objetivo desse

levantamento é identificar os pontos confluentes em diferentes materiais.

1.3.1. A alternância entre tu e você

Com relação a estudos acerca das formas pronominais de segunda pessoa – tu e

você – os estudos são unânimes em observar a expansão do uso da forma advinda do

pronome de tratamento – Vossa Mercê –, que, primeiramente era utilizado em contextos

em que houvesse marcação hierárquica entre os interlocutores. No fim do século XIX e

início do XX, no entanto, passa a ocupar os mesmos contextos funcionais do pronome

tu em sua forma contrata você.

Barcia (2006) fez um estudo com base em cartas de leitores do século XIX

publicadas em jornais brasileiros, com o objetivo de investigar as formas pronominais

de segunda pessoa, apontando em que momento ocorreu a pronominalização de Vossa

Mercê, dando origem a você.

No corpus utilizado pela autora são encontradas diferentes formas pronominais e

nominais de tratamento – tu, vós, você, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Vossa Mercê

– que se comportam de maneira diferente. As formas tratamentais Vossa Excelência e

Vossa Senhoria são utilizadas em situações cerimoniosas, ao passo que Vossa Mercê

tem um caráter menos cortês e mais solidário utilizado em relações sociais

transacionais. Conforme Barcia (2006), tal forma teria sofrido um processo de

Page 27: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

27

dessemantização – Lehmann (1985), Hopper (1991) e Heine (2002) – com a expansão

do seu uso em contextos diversos.

Nessas cartas de leitores oitocentistas, a presença de tu é verificado em textos

em que o grau de formalidade entre os interlocutores é menor. A forma pronominal

você, ao sofrer perdas semânticas quanto ao seu caráter menos solidário, acaba

concorrendo com tu em contextos menos formais, o que demonstra uma expansão no

seu uso. Embora seja evidenciada nessas cartas a presença de você em situações em que

não prevalecem relações hierárquicas, essa forma ainda é encontrada em alguns

momentos denotando situações transacionais em que se aproxima do originário Vossa

Mercê de caráter mais cerimonioso. O uso de você nessas cartas, portanto, oscila entre o

cerimonioso e o solidário, sendo, por isso, uma forma híbrida em processo de

gramaticalização.

Lopes e Machado (2005), utilizando-se de cartas familiares datadas do final do

século XIX redigidas por um casal de brasileiros cultos – Christiano Benedicto Ottoni e

Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni – aos seus netos – Mizael e Christiano –,

observam as estratégias pronominais usadas pelos missivistas, constatando a presença

de formas referentes tanto a tu quanto a você. O avô Christiano era professor e prezava

pela escrita conforme ditava às normas gramaticais da época. Isso fica evidente nas

cartas dele, pois, ao contrário de sua mulher Barbara, que mesclava formas do

paradigma de tu com formas do paradigma de você, o avô preocupava-se em manter o

paralelismo pronominal, fazendo sempre as correspondências dentro do mesmo

paradigma (tu, teu, te, contigo). Ele utiliza muito mais tu que você – segundo o que é

previsto pela tradição gramatical.

Essa “mescla” de tratamento que Barbara Ottoni fazia nas cartas – alternando em

um mesmo contexto entre formas referentes aos dois paradigmas – fez as autoras

perceberem que havia posições em que persistiam os pronomes associados a tu:

possessivos e complementos não preposicionados. O fato de haver essa combinação

entre formas de relativas a tu e a você já evidenciava que, nos finais do século XIX, em

relações íntimas e solidárias, essas estavam disputando espaço dentro do paradigma

pronominal do português brasileiro.

Machado (2006), em conformidade com o alargamento do uso de você previsto

em Barcia (2006) e utilizando peças teatrais do século XIX, mostra que essa nova forma

Page 28: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

28

passa a ser utilizada em diferentes situações, tanto em relações simétricas quanto

assimétricas.

A substituição de tu por você ocorreu nos domínios

funcionais que pertenciam ao pronome tu no século XIX

e princípio do XX — relações simétricas (entre iguais) e

assimétricas descendentes (de superior para inferior),

cabendo às formas nominais, o predomínio nas relações

assimétricas ascendentes (de inferior para superior).

(MACHADO, 2006, p. 99.)

Assim, as situações não solidárias e mais formais em que antes era utilizado o

pronome você passam a ser os contextos em que se prefere o uso de formas nominais

para marcar o caráter cortês do discurso, ao passo que você assume posições antes

ocupadas por tu.

Soto (2001) fez um estudo que mostra, com base em cartas brasileiras do século

XIX e XX, haver uma dinâmica instável no quadro pronominal do português brasileiro.

Essa dificuldade em demarcar o lugar do outro no discurso se deve à entrada de você

como segunda pessoa. Esse estudo evidenciou que, em meados do século XX, ocorreu

uma ruptura na semântica de Poder relacionada a essa nova forma pronominal, uma vez

que o pronome você passou a ocupar espaço em discursos informais em que os

interlocutores encontravam-se em posições sociais simétricas.

O trabalho de Soto (2001) reitera esse valor flutuante e híbrido da forma você

nas cartas do século XIX. Por um lado, tal forma era empregada nas cartas do imperador

D. Pedro II à Condessa de Barral, por outro, aparecia nas cartas bastante informais de

Bárbara Ottoni quando se referia aos netos, filha e criada. Como afirma Lopes (2009), a

forma inovadora você transitava por espaços discursivo-pragmáticos distintos. Era um

tratamento veiculado pela elite brasileira com caráter cerimonioso, ao mesmo tempo em

que circulava como variante pronominal de tu-íntimo.

Outro dado importante do trabalho de Soto (2001) e, principalmente, de Rumeu

(2008), é o uso expressivo de você presente em produções femininas no mesmo período.

Tal preferência poderia ser uma estratégia de preservação, já que essa forma ainda

herdara o caráter indireto e atenuante da estratégia nominal de tratamento Vossa Mercê.

Nesse sentido, seria menos invasivo, menos “ameaçante ao interlocutor”. O tratamento

direto com o pronome tu poderia não ser adequado à mulher oitocentista numa

sociedade patriarcal.

Page 29: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

29

Rumeu (2008) levanta algumas questões acerca desse uso, mostrando que a

difusão de você em diferentes relações sociais – tanto simétrica quanto assimétrica –

evidencia uma vulgarização e generalização dessa nova forma, passando a atuar em

confluência com tu.

O que os diversos trabalhos sobre o tema têm mostrado é

que a partir do século XVIII a forma vulgar Você torna-

se produtiva nas relações assimétricas de superior para

inferior, podendo até assumir, em algumas situações

sócio-pragmáticas, “conteúdo negativo intrínseco”, em

oposição à sua contraparte desenvolvida “Vossa Mercê”.

Por outro lado, no Brasil do século XIX, a concorrência

passa a ser maior entre Tu e Você em relações solidárias

mais íntimas, não sendo tal estratégia negativamente

marcada. (RUMEU, 2008, p.56)

O pronome você, portanto, embora tenha expandido seus contextos de uso em

fins do século XIX e início do XX, ainda preservava um valor discursivo-pragmático

atrelado à sua origem, sendo essa uma das hipóteses em que Rumeu (2008) se baseou

para justificar o uso dessa forma pelas mulheres.

Todos os estudos diacrônicos citados corroboram com a visão de que o pronome

você foi perdendo seu caráter que marcava o distanciamento entre os interlocutores,

passando a ser usado nos mesmos contextos que tu a partir do século XX. Apesar desse

espraiamento semântico no uso de você, tal forma ainda apresentava resquícios de

formalidade na documentação descrita nos estudos apresentados. Algumas questões

ainda não foram, contudo, respondidas:

a) A entrada de você no paradigma pronominal, como apontam alguns trabalhos

com corpora diacrônicos – Duarte (1993, 1995), Lopes (2008) – ocorreu por

volta da década de 1930. A frequência de você, nesse período analisado, supera a

de tu?

b) Trabalhos como de Rumeu (2008), Lopes & Machado (2005) apontam as

mulheres como sendo as maiores responsáveis pela inserção de você no

português brasileiro. Em razão de você ter um caráter mais indireto referente a

sua origem Vossa Mercê, a mulher, utilizaria mais essa forma como uma

maneira de resguardar-se do seu interlocutor. Esse resultado também se

confirma neste trabalho ou haveria outras questões relativas ao perfil

Page 30: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

30

sociolinguístico dos remetentes que influenciariam no uso dessas formas de

segunda pessoa?

c) As missivas utilizadas neste trabalho não são de pessoas ilustres, por isso, os

indivíduos que as escreveram possivelmente não possuem uma cultura letrada

elevada. Em função disso, questiona-se se o grau de letramento2 dos remetentes

e a habilidade de escritura3 dos mesmos têm relação com a ocorrência dos

pronomes tu ou de você e as formas a eles associadas nas cartas?

2 Entende-se como letramento a capacidade de ler e escrever segundo às necessidade sociais do ambiente

em que o indivíduo está inserido. Ao contrário da alfabetização, o letramento não é só a habilidade em

reproduzir um sistema de códigos da escrita, mas a capacidade de leitura e escrita, cujas funcionalidades

relacionam-se com a aprendizagem de todo o contexto social e histórico que cerca o indivíduo. Letramento é palavra e conceito recentes, introduzidos na linguagem

da educação e das ciências linguísticas há pouco mais de duas

décadas; seu surgimento pode ser interpretado como decorrência

da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas

sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do

sistema alfabético e ortográfico, nível de aprendizagem da língua

escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo de alfabetização.

(SOARES, 2004)

Desse modo, saber elaborar textos mais ordenado, respeitando às normas da escrita e, sobretudo,

consciente quanto à função do discurso produzido é um indício de que o indivíduo possui um grau de

letramento elevado.

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31

2. Aparatos teóricos

A investigação que se pretende fazer nesse trabalho, como já expresso

anteriormente, consiste em uma análise sociolinguística quantitativa laboviana

(LABOV, 1994) das formas pronominais de segunda pessoa – tu e você – em cartas

particulares trocadas entre um casal em fins dos anos 30 do século passado. Para tanto,

levantaram-se diferentes grupos de fatores linguístico-discursivos e sociais a fim de

verificar como se dava essa alternância pronominal nesses âmbitos.

Como o corpus é constituído por cartas de cunho amoroso, será necessário

discutir as propriedades típicas desse subgênero, como a sua estrutura fixa

(BAZERMAN, 2006; MARCUSCHI, 2001), e, mais do que isso, o lirismo poético

próprio de um discurso íntimo (WATTHIER, 2010).

Outro aspecto primordial para uma análise, que se propõe sociolinguística, é a

identificação do perfil social dos missivistas. Como não foi possível identificar os dados

sociais referentes aos autores das cartas do corpus, foi necessário elaborar uma proposta

metodológica alternativa para a caracterização do grau de letramento dos remetentes a

partir da análise de aspectos textuais e grafemáticos da documentação. Para tanto, foram

utilizados os trabalhos de Marquilhas (1996) e Barbosa (1999) na análise de natureza

filológica, a fim de evidenciar marcas de oralidade no texto escrito e transposição de

propriedades da fala para a modalidade escrita.

A seguir serão apresentados alguns princípios da teoria variacionista postulados

por Labov (1994) que nortearam este estudo. Na sequência, serão apresentados alguns

aspectos que orientaram a análise filológica e, por fim, discutem-se as vantagens e

desvantagens da análise do gênero epistolar em estudos de sincronias passadas.

2.1. Teoria variacionista laboviana

Um dos pontos de maior discussão no Estruturalismo Saussuriano refere-se ao

fato de a língua ser analisada como um sistema homogêneo, ou seja, como uma

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32

construção estrutural cujo domínio não assume variações. Nesse sentido, o contexto

social que motivaria a interação e o uso da língua acabam sendo desconsiderados.

Assim, temos o paradoxo saussuriano: o aspecto social

da língua é estudado pela observação de qualquer

indivíduo, mas o aspecto individual somente pela

observação da língua em seu contexto social. (LABOV,

2008, p.218)

Em conformidade com essa proposição, Labov (2008) aponta que a linguística

não só saussuriana, como também a teoria gerativa levavam em conta o conceito de

língua abstrata excluindo o comportamento social e o estudo da fala, o que torna as

análises que não se pautem somente na estrutura interna da língua inconsistentes.

É nesse contexto que surge a Sociolinguística Variacionista tendo como

princípios norteadores os postulados de Labov (1994) ao considerar que a língua é um

sistema heterogêneo regido por aspectos sociais, sendo por isso imprescindível observar

questões extralinguísticas. Para Labov (1994), Variação e Mudança são características

inerentes às línguas humanas, dado o seu caráter heterogêneo, sendo resultado de

manifestações constantes. Dessa forma, para entender a língua hoje é necessário que se

considerem as mudanças e variações que estão em curso, entendendo que aquelas são

oriundas de transformações graduais.

Os procedimentos da linguística descritiva se

fundamentam na concepção de língua como um conjunto

estruturado de normas sociais. Foi útil no passado

considerar essas normas como invariantes, e

compartilhadas por todos os membros da comunidade de

fala. Entretanto, estudos mais acurados do contexto social

em que a língua é usada mostram que muitos elementos

da estrutura linguística estão envolvidos numa variação

sistemática que reflete tanto mudanças temporais quanto

processos sociais extralinguísticos (LABOV, 1968,

p.110)

A variação linguística seria condicionada por fatores internos e externos,

devendo ser analisada sob uma perspectiva social, observando as mudanças passadas na

língua através da percepção de comportamentos sistemáticos. É exatamente essa

questão que Lucchesi (2004) levanta ao apontar essa nova maneira de fazer uma análise

linguística dos dados:

Era preciso considerar a variação como parte integrante

do sistema linguístico para que ela constituísse objeto da

análise linguística sistemática; rompendo, assim, com a

Page 33: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

33

visão estruturalista de que o sistema linguístico seria o

domínio da invariância. A tarefa de determinar a

sistematicidade da variação levantava a necessidade de se

considerar os chamados fatores externos na análise

linguística, pois o que era, no plano estritamente

estritamente linguístico, aleatório tornava-se sistemático

quando correlacionado com fatores sociais estilísticos.

(LUCCHESI, 2004, p.166)

A sociolinguística, grosso modo, à luz dos postulados labovianos tem como

principais objetivos: perceber se o fenômeno analisado estaria em variação estável ou se

configuraria como um processo de mudança em curso; e postular os fatores internos e

externos da língua que condicionam o fenômeno variável.

Os apontamentos apresentados anteriormente serão considerados na análise, pois

nosso estudo tem por finalidade correlacionar o estudo da alternância entre formas

pronominais de segunda pessoa ao perfil social dos missivistas. Por isso, faz-se

necessário observar a influência de fatores extralinguísticos, ou seja, os que estão

estritamente relacionadas ao contexto social – nesse caso, aspectos relativos aos autores

das cartas, tais como o grau de letramento e o gênero –, no fenômeno analisado.

No caso específico da análise proposta aqui em que se analisam cartas ativas e

passivas de um casal, além dessas questões teóricas gerais, serão consideradas algumas

postulações feitas por Labov (1994) acerca da influência do gênero na mudança

linguística. Para o autor a mulher assumiria um caráter inovador nos processos de

mudança linguística, sendo a precursora na inserção de novas formas na língua. Nos

processos de variação, entretanto, as mulheres tenderiam a usar as formas não

estigmatizadas socialmente, preferindo estratégias próximas da norma padrão.

Rumeu (2008), por exemplo, em estudo sobre o tratamento em cartas

oitocentistas e novecentistas, confirma as hipóteses de Labov (1994) sinalizando um

comportamento relativamente inovador das remetentes femininas em seus dados:

É interessante observar os resultados de alguns estudos

sobre processos de variação lingüística que permitem

evidenciar a influência da variável gênero (sexo) na

escolha de uma dada forma variante. Tais constatações

confirmam a hipótese laboviana (1990) de que, nos

processos de variação, as mulheres tendem a usar as

formas que refletem a norma padrão, desviando-se, pois,

das variantes linguísticas socialmente estigmatizadas.

(RUMEU, 2008, p.90)

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34

É importante evidenciar que o fato de a mulher ser inovadora não faz com que

opte pela estratégia linguística não padrão. No caso da forma pronominal você, apesar

de seu uso ter se estendido aos contextos de tu, perdendo assim seu caráter inicial de

distanciamento, tal estratégia não pode ser considerada como uma variante marcada

negativamente e muito menos estigmatizada.

Em síntese, nossa proposta de análise adota duas perspectivas intrinsecamente

relacionadas. Propõe-se, por um lado, estudar o uso variável de tu e você em cartas

trocadas por um casal de noivos em fins dos anos 1930, a fim de verificar: i) a forma

variante mais produtiva nas cartas produzidas pela noiva (Maria) e pelo noivo (Jayme);

ii) os fatores que motivam o emprego das duas formas pronominais; iii) o valor mais ou

menos conservador da forma você em processo de implementação no quadro

pronominal do português brasileiro. Por outro lado, pretende-se traçar o grau de

letramento dos missivistas tanto em termos das propriedades linguísticas presentes na

documentação quanto pelo uso mais ou menos generalizado do pronome você.

Parte-se da hipótese de que a forma você empregada nessas cartas seria o

prenúncio do pronome que se generalizou no português brasileiro. Nesse sentido, os

traços de distanciamento ou indiretividade advindos de Vossa Mercê, ainda

identificados na documentação remanescente de fins do século XIX, não estariam mais

presentes na variante você utilizada em nossas cartas de amor.

Para caracterizar o perfil dos remetentes e descrever as propriedades da amostra

de cartas editadas, faz-se necessário ainda uma incursão filológica, a fim de evidenciar

grafematicamente aspectos pertinentes à escrita dos autores das missivas e mostrar o

nível de domínio da norma padrão que os mesmos possuíam.

2.2. Estudos filológicos

Como já expresso anteriormente, o corpus utilizado neste trabalho é composto

de missivas de pessoas não-ilustres. Apesar das diversas visitas feitas a cartórios, ao

endereço constante nos envelopes e aos arquivos históricos, não foi possível obter dados

sobre os informantes. Em função dessas limitações, optou-se por tentar captar na própria

documentação características sociais dos remetentes, observando na estrutura das cartas,

propriedades da escrita referentes à grafia e a organização do próprio texto. Para tanto,

partiu-se dos estudos de Marquilhas (1996) e de Barbosa (1999) com o intuito de

Page 35: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

35

identificar os traços que apontem os autores das cartas em questão – Jayme e Maria –

como remetentes mais ou menos letrados.

O grau de escolaridade (nível fundamental, médio e superior) tem sido um fator

importante na análise de certos fenômenos variáveis nos estudos baseados em dados da

oralidade. Isso se deve ao fato de os falantes com alto nível de escolarização

apresentarem maior sensibilidade às variantes prestigiosas, evitando as formas

socialmente estigmatizadas. Para sincronias passadas, contudo, os parâmetros de

escolarização devem ser mensurados por critérios de outra natureza seja por não se ter

informações sobre o nível de escolaridade do escrevente, seja pelo fato de os critérios

não serem comparáveis.

Atualmente é comum utilizar como critério para determinar falantes cultos, por

exemplo, o fato de o indivíduo possuir ensino superior completo. No entanto, percebe-

se que o mesmo parâmetro não pode ser adotado para analisar corpora diacrônicos em

virtude da quase inexistência de cursos superiores no Brasil de fins do século XIX e

início do XX e dos parâmetros educacionais basearem-se em outros critérios. Barbosa

(2005) propõe que é necessário conhecer os valores de letramento da época em análise

para que seja possível traçar um parâmetro que vá guiar o estudo no que se refere ao

planejamento linguístico e à formalidade do texto.

Teoricamente, para sabermos o quão culto um dado

redator seria em uma determinada fase histórica, será

necessário, primeiro, vislumbrar os valores de letramento

da época que difiram dos da nossa; depois reconhecer os

modelos textuais de padrão culto objetivamente à

disposição. (BARBOSA, 2005, p. 30).

Utilizando-se de documentos oficiais e cartas de comércio do século XVIII,

Barbosa (1999), com base em critérios estipulados por Marquilhas (1996), analisou tais

textos a fim de evidenciar as características que permeavam os escritos de “mãos

hábeis” e “mãos inábeis”, procurando identificar aspectos fonético-fonológicos e

filológicos que evidenciassem o grau de letramento dos redatores dos mesmos.

Marquilhas (1996), em trabalho com manuscritos do Português Clássico do

século XVII, dispõe as cartas observando as características que essas apresentam, a fim

de observar uma manifestação física da escrita. Para tanto, a autora levanta algumas

características que seriam típicas das mãos inábeis, ou seja, de redatores com menos

Page 36: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

36

habilidade com a escrita, estabelecendo um parâmetro para medir o grau de letramento

dos indivíduos.

A autora tenta traçar a letramento por meio da observância de alguns critérios

que qualifiquem indivíduos de mãos hábeis e inábeis, atestando que os primeiros seriam

aqueles que tivessem mais domínio do registro escrito e os outros, em contrapartida, os

que tivessem menos contato com esse registro. O quadro a seguir apresenta algumas das

características levantadas por Marquilhas (1996):

Características dos textos de mãos inábeis

1. Ausência de cursus

2. Uso de módulo grande

3. Ausência de regramento ideal

4. Traçado inseguro

5. Tendência às letras desenquadradas

6. Irregularidade da empaginação

7. Elenco limitado de abreviaturas

8. Falta de leveza ao conjunto

9. Uso de maiúsculas no interior das palavras

10. Hipersegmentação

Quadro 2: Critérios para caracterizar as mãos inábeis

Esses critérios funcionam como referência balizar que auxilia na identificação

dos autores com menos intimidade com o registro escrito, por isso, algumas dessas

características dizem respeito à qualidade da forma da letra do indivíduo. É de se

imaginar que pessoas com mais habilidade na escrita consigam ter traços mais firmes,

letras mais arredondadas e interligadas, mantendo uma cursividade homogênea.

Embora essas características já possam demonstrar que os remetentes dos

documentos têm ou não mais contato com textos escritos, essas não são suficientes para

provar o grau de letramento dos mesmos. Isso é verificado na própria análise de

Marquilhas (1996), pois, embora os indivíduos que apresentassem algumas das

características mostradas acima, linguisticamente, o conteúdo dos escritos transparecia

um nível de letramento mais elevado. Para tanto, a autora analisou a escrita tomando

como base à ortografia para que conseguisse uma descrição mais sólida acerca dos

escreventes em questão, agrupando os aspectos grafemáticos em dois grupos: o de

aquisição da escrita e o de marcas de oralidade na escrita.

Page 37: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

37

Para o trabalho que é proposto aqui, não serão levados em conta todos os

aspectos levantados por Marquilhas (1996) e por Barbosa (1999). Foram necessárias

algumas adaptações e atualizações para que se dê conta da natureza da amostra

analisada. Diferentemente dos textos clássicos de Marquilhas (1996) e oitocentista de

Barbosa (1999), o corpus em análise é mais recente (século XX), sendo composto por

cartas de amor particulares.

O foco em nossa proposta se limita a aspectos que abrangem à presença de

oralidade no texto escrito e desvios grafemáticos. Para os manuscritos do Português

Clássico apontados por Marquilhas (1996), a autora levanta algumas marcas de

oralidade que estão apresentados de maneira sintetizada no quadro a seguir:

Monotongação / ditongação

Síncope de vogais pretônicas

Variação entre <e> e <i> / <o> e <u>

Alteamento das vogais [e] e [o] quando pretônicos

Variantes em [i] e [u] em monossílabos

Abaixamento das vogais [i] e [u]

Centralização

Epênteses

Nasalização

Variação entre [b] e [v]

Quadro 2: Marcas de oralidade

Na nossa amostra alguns aspectos, como a variação entre [b] e [v], por exemplo,

foram desprezados, visto que não são fenômenos recorrentes em textos contemporâneos

brasileiros ou tem baixa frequência no corpus.

Outro aspecto observado pelos dois autores refere-se à presença de formas

etimologizadas. Os manuscritos investigados por Marquilhas (1993) foram escritos no

chamado de período etimológico (ou pseudoetimológico). Nessa fase eram privilegiadas

as grafias mais antigas em função da sua origem grega e latina. Nesse sentindo, era

comum encontrar, em alguns documentos manuscritos do português clássico, termos

etimológicos como um subterfúgio do escrevente de se fazer passar por letrado.

Page 38: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

38

No século XVIII, Barbosa (1999) também identifica a presença de formas

etimologizadas como vestígios de letramento:

Esses procedimentos por parte dos homens que

escrevem no Brasil do século XVIII configura-se,

pois, em um contraponto: ao invés de deixarem

passar, fosse por qualificação no domínio do sistema

escrito, fosse por cochilo, certos hábitos normais de

sua oralidade, as etimologizações, espelhadas nas

grafias dos impressos, representavam um esforço de

investir o texto manuscrito de qualidade.

(BARBOSA, 1999, p. 190).

Para Barbosa (1999) havia um esforço por parte das pessoas do período para

tentarem reproduzir as formas de origem latina, a fim de garantir um nível de letramento

maior aos textos que essas escreviam. Além disso, o autor afirma que a melhor maneira

de analisar os dois corpora setecentistas é fazer um balanço entre as formas

etimologizadas e os critérios que abarcam as questões fonéticas, pois, desta maneira,

seria possível medir o valor dos termos encontrados nos textos da época.

Tendo por base tais considerações e pela natureza de uma amostra de cartas dos

anos 30 do século passado, propõe-se quantificar aspectos relativos a desvios

grafemáticos, transposição da oralidade para a escrita e, em menor escala, a

etimologização das palavras. Será dada maior ênfase, contudo, na análise da frequência

dos desvios de grafia, visto que nossos missivistas eram indivíduos, aparentemente, sem

tanta letramento.

2.3. O modelo epistolar

O modelo epistolar, conforme aponta Souto Maior (2001), compõe um gênero

textual que abarca outros subgêneros, que seriam classificados de acordo com a sua

função discursiva – missivas comerciais, religiosas, tratados, particulares, etc. Vale

ressaltar, no entanto, que esses subgêneros seguem, no geral, o modelo de carta e a

variação do seu conteúdo está intimamente ligada à distância entre os interlocutores,

que atuam no texto, conforme aponta Bazerman (2006).

Do seu amplo uso no mundo clássico, podemos ver como

a carta, uma vez criada para mediar a distância entre dois

indivíduos, fornece um espaço transacional aberto, que

pode ser especificado, definido e regularizado de muitas

Page 39: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

39

maneiras diferentes. As relações e transações em curso

são mostradas para o leitor e o escritor diretamente

através das saudações, das assinaturas e dos conteúdos da

carta. Além do mais, cartas podem descrever e comentar

– frequentemente de modo explícito – a relação entre os

indivíduos e a natureza da transação corrente [...] a

organização e as transações podem alcançar distâncias

maiores, como também os laços sociais entre os

indivíduos podem ser reforçados e até criados através de

relações indiretas com outras pessoas. (BAZERMAN,

2006c, p. 87-88).

Segundo Marcuschi (2001), a estrutura pré-fixada da carta (a datação, saudação

inicial, corpo do texto e saudação final) e as suas propriedades particulares fazem com

que seja reconhecido em qualquer língua histórica como um gênero textual.

Apesar de as cartas apresentarem uma estrutura relativamente fixa (como

saudações, assinaturas e conteúdos repetitivos), trata-se de um gênero que permite

identificar o nível de relação estabelecida entre remetente e destinatário naquele

contexto comunicativo e o grau de intimidade entre eles (BAZERMAN, 2006). Nesse

sentido, é um tipo de documento bastante vantajoso como fonte para estudos de

sincronias passadas por possibilitar a identificação da origem do remetente, do local e

época em que foi produzido, além de outras informações relevantes extraídas do próprio

texto como será discutido.

A seguir apresenta-se uma carta da Maria que servirá de exemplo para

demonstrar essa estrutura fixa da carta e a pertinência do gênero para o estudo proposto:

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Paulo de Frontem 10 – 9 – 1936 LOCAL / DATA

Querido Jayme SAUDAÇÃO INICIAL

Saudades

Desejo que já estejas passando melhor de saude que e

O meu deseijo eu e a Hilda chegamos bem grasas a Deus

CAPTAÇÃO DA

BENEVOLÊNCIA

mas com muita chuva a qui fais muito fro e

bom para que e casado a qui sotem mato tem

muito sapo grilo e gafanhoto sam os bichos do lugar

Jayme isto não entereça o que entereca e o nosso

a mor eu tenho chorado muito con saldades tuas

a qui e muito triste era bom sevoce estivese a

qui com migo.

Jayme manda-me dizer se tua mãe falou

alguma cousa com voce au meu respsito eu espero

voce no dia 27 sepoder vin no dia 20 era

bom por que estou com tantas saudades tuas

NÚCLEO

muitas lembranças da minha irma Imenia e dos meus

sobrinha e da Hilda e desta tambem te ama muitos

beijo e abraços

SAUDAÇÃO FINAL

Mariquinhas ASSINATURA

Jayme não repare a minha carta por que eu

não sei escrever quando a cabar de ler voce

rasga a carta

vai uma rosinha por nome roso Mariquinhas

do quintal da minha Irma

OBSERVAÇÃO

Quadro 3: Estrutura de carta

A carta de Maria, apresentada no quadro 3, segue basicamente a estruturação do

gênero prevista em Marcotulio (2009), pois há a datação e indicação do lugar, saudação

inicial, o núcleo da carta, a saudação final – na qual está contida a despedida – e a

assinatura. Na saudação a Maria chama o noivo de “querido”, que é uma forma que

aparece muito em cartas, como forma de qualificar o vocativo a quem a missiva se

destina, estabelecendo uma relação [+ solidária, + íntima, - formal, - distante, + simétrica]

(BRAVO; BRIZ, 2004, p.80). Na seção destinada à saudação inicial, é comum aparecer

uma subseção intitulada de “captação da benevolência”. Trata-se de um trecho

repetitivo em todas as cartas do missivista e serve para captar a boa vontade do

destinatário para com o conteúdo da carta que vem em seguida. Como as cartas são

documentos em que estão explícitos ou subentendidos algum tipo de pedido,

reclamação ou solicitação, a captação da benevolência costuma ser bastante recorrente

Page 41: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

41

para que haja uma atitude cooperativa entre remetente-destinatário. Dessa forma, a

captação de benevolência nessas cartas analisadas costuma apresentar desejos de boa

saúde para o remetente e os familiares dele (LOPES, 2011).

Após essa parte inicial da carta, há o núcleo constituído do assunto a ser tratado

na missiva. Essa é a parte mais criativa da carta, já que é mais livre para o remetente

utilizá-la como achar melhor. Nas cartas em questão, os assuntos tratados giram em

torno do sentimento que o casal de noivos sente um pelo outro, já que são missivas

amorosas. Nessa seção, contudo, há sempre referências sobre as cartas anteriormente

enviadas, bem como o as atividades que têm feito. Tal aspecto é bastante interessante e

peculiar nesse corpus, porque se tem a possibilidade de acompanhar o “diálogo” travado

entre os dois missivistas durante dois anos. Há as cartas enviadas e as respectivas

respostas de cada um deles (cartas ativas e passivas), o que permite controlar facilmente

a história de vida de cada um como um casal e o tratamento empregado entre eles.

Ao final da carta há a uma seção na qual o remetente despede-se enviando

abraços ou saudações ao destinatário e, muitas vezes, aos familiares. As cartas

amorosas, por terem um teor mais intimista, acabam tendo uma saudação final que

denota essa proximidade entre os missivistas, como pôde ser observado no quadro 3. A

noiva manda saudações de familiares, e beijos e abraços ao noivo, antepostos sempre de

um intensificador muitos, que atribui mais particularidade sentimental ao texto.

Em seguida há a assinatura da remetente que se identifica como “Mariquinhas”.

Trata-se de uma forma carinhosa pela qual a própria noiva se denomina. O noivo,

diferentemente de Maria, assina sempre o nome completo ao final da carta.

Em várias cartas de Maria há observações que constituem recados além do

conteúdo da carta e outros lembretes que servem de alerta ao noivo, como pode ser

observado também no quadro 3. Nesse trecho ela informa a Jayme como proceder ao ler

a missiva. Apesar de essa seção – mais denominada post scriptum (P.S.) – ter como

principal função avisar o remetente sobre algo, Maria utiliza-a como prolongação do

núcleo da carta, fazendo longos comentários. Já o noivo escreve poucas observações

(P.S.), utilizando tal seção de forma mais objetiva, como, por exemplo, o horário do

trem em que a noiva chegará para poder encontrá-lo.

Page 42: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

42

As cartas de amor têm como principal característica o caráter íntimo e os

assuntos que permeiam a subjetividade sentimental dos remetentes, de forma que o

conteúdo das missivas são sempre poéticos e líricos. Esse é um aspecto que será

trabalhado nas cartas na análise linguística, já que se levantam, para esse trabalho,

questões pertinentes à influência do gênero textual na análise proposta acerca das

formas de tratamento de segunda pessoa.

As cartas de amor, embora não tenham um formato específico como os outros

gêneros epistolares, apresentam algumas particularidades temáticas, como aponta

Bastos (2003). O autor ressalta que o tom subjetivo e existencial da carta de amor são

aspectos característicos, embora, tais missivas não abandonem, conforme aponta Bastos

(2003), o “código de civilidade epistolar”. Nesse sentido, as cartas de amor abarcam o

conteúdo de caráter confidencial e intimista, mas obedecem ao formato previsto pelo

gênero. Watthier (2010) destaca que a carta de amor é um gênero utilizado nas relações

amorosas, tendo os remetentes e destinatários laços de grande proximidade que os

tornam íntimos.

Sob tal enfoque, caracterizada por uma certa intimidade

entre remetente e destinatário, respeitando, entretanto, os

costumes do grupo social a que pertencem, a carta de

amor pode ser empregada como veículo de expressão dos

sentimentos mais profundos, sejam eles causados pela

dor de um amor não correspondido ou por uma paixão

profunda e recíproca. (WATTHIER, 2010, p. 45)

O caráter particular das cartas, em especial as amorosas, é um dos aspectos que

favorece ao estudo das formas de tratamento de segunda pessoa, uma vez que se espera

que, nesse tipo de texto, haja uma interação dos interlocutores com maior proximidade,

observando as variáveis linguísticas e sociais que favorecem a manifestação de um ou

outro pronome. Watthier (2010), analisando tal subgênero, elenca as formas tu e você

dentre as mais íntimas:

Entre as expressões mais comuns, Jiménez (2000) aponta

tu ou você aos mais íntimos, aos amigos e aos parentes e

senhor ou senhora para os mais idosos, devido a uma

hierarquia, na qual os menores se dirigem com respeito

aos maiores e esses se dirigem com afeto àqueles. Nesse

último tratamento citado, podemos incluir, também, o

tratamento do aluno ao professor, ou do empregado ao

patrão. (WATTHIER, 2010, p. 59)

Page 43: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

43

A utilização de cartas para esta análise dos pronomes de segunda pessoa – tu e

você – tem grande importância, dado o caráter bastante pessoal da documentação, o tipo

de relação estabelecida entre o remetente-destinatário, o gênero dos missivistas, o perfil

social de cada um e o papel assumido por eles nesse “diálogo escrito” travado em fins

de uma época bastante representativa para a história do Brasil.

2.4. Corpus

Nesta seção será descrito o corpus, sendo abordados os aspectos que parecerem

mais relevantes acerca do material utilizado na análise.

2.4.1. A constituição da amostra

O corpus deste trabalho, ao todo, é composto de noventa e sete cartas que foram

trocadas por um casal de noivos residentes no estado do Rio de Janeiro, Jayme de

Oliveira Saraiva e Maria Ribeiro da Costa, entre os anos de 1936 e 1937. Da Maria há

um total de vinte e nove cartas escritas, em sua maioria, na cidade de Petrópolis. Já do

Jayme há sessenta e oito cartas remetidas da cidade do Rio de Janeiro, sendo duas

dessas missivas, poemas.

Essa documentação que serviu de base para esta análise, ao contrário de outros

materiais utilizados em estudos linguístico-históricos, não foi localizado em nenhum

acervo ou arquivo de acesso público, e sim recolhido, ao acaso, no lixo, no bairro de

Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro4. Por essa razão, todos os dados obtidos foram

retirados das próprias cartas a fim de que se fosse possível fazer uma descrição acerca

dos autores das mesmas.

4 As cartas foram encontradas por um estudante da Faculdade de Letras da UFRJ, Delano de Souza

Garcia, que gentilmente cedeu o material para o projeto de pesquisa coordenador pela Professora Célia

Regina dos Santos Lopes. Agradecemos muitíssimo ao estudante por sua importante colaboração dada a

originalidade e valor histórico do material para estudos linguísticos e histórico-sociais.

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44

Apesar do esforço em tentar traçar o perfil dos remetentes dessas missivas,

informações sobre quem foram essas duas pessoas tornaram-se difíceis5 porque se

tratavam de indivíduos não-ilustres, por isso não há quaisquer materiais que descrevam

a genealogia familiar deles. Mesmo com tais limitações, a descrição sociolinguística dos

autores das cartas pode ser depreendida através do conteúdo das mesmas, já que o texto

é um produto social e cultural (MARCUSCHI, 2008, p.151), e, portanto, reflete as

interações histórico-sociais das pessoas em discursos proferidos em diferente meios,

incluindo os de modalidade escrita, como a carta.

Tendo os dados deste trabalho sido retirados de cartas particulares, faz-se

necessário uma descrição mais detalhada acerca dos remetentes e das missivas que

escreviam. Por essa razão, a seção seguinte trará informações obtidas através da leitura

das missivas e todo o contexto social que envolvia o casal, perpassando a

particularidade das relações familiares com as quais conviviam.

2.4.2. Quem foi Jayme e Mariquinhas? Breve perfil sociolinguístico

dos autores das cartas

Foram feitas diversas tentativas em busca de informações que identificassem os

missivistas das cartas analisadas – Jayme e Maria –, para que fosse possível traçar o

perfil social do casal de noivos. As buscas consistiram em idas a arquivos históricos e

religiosos, incursões a endereços e sedes administrativas, conforme estão enumeradas a

seguir:

a) Tentou-se, primeiramente, buscar informações acerca de Jayme, já que os dados

referenciais mostrados na maioria das missivas do noivo remetem a um endereço

situado no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro: Rua Diomedes Trota, Ramos, número

37. Não foi possível obter nenhum dado nesse endereço, pois a rua sofreu, ao longo de

várias décadas, sucessivas mudanças, que resultaram em exclusões de alguns números

(incluindo o que estava sendo procurado). Ao conversar com moradores da rua,

informaram-me de que naquela localidade era onde passava o bonde, sendo, atualmente,

apenas uma rua residencial.

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45

b) Em função dessa tentativa frustrada em buscar informações no endereço indicado nas

cartas de Jayme, os moradores residentes dessa localidade indicaram uma sede

administrativa em que talvez pudessem ser conseguidos os dados buscados. Nessa

região administrativa, localizada no bairro de Ramos, funcionários informaram que

ainda não havia um sistema informatizado que permitissem buscas extensas. Além

disso, declararam que poderia ser difícil achar as informações que eram buscadas em

virtude de as regiões limítrofes dos bairros terem se modificados, e aquela sede

administrativa englobar outros bairros adjacentes, como Bonsucesso e Penha. Isso

significava que os dados antigos do bairro de Ramos poderiam estar em alguma região

administrativa próxima, e não necessariamente naquela. Com a impossibilidade de

busca de informações nas regiões administrativas do bairro de Ramos, procurou-se uma

alternativa para chegar a dados reais que identificasse os imóveis que apareciam nas

missivas.

c) As cartas possuem os dados dos endereços de onde foram remetidas, por isso buscou-

se informações no Registro de Imóveis, a fim de buscar dados da empresa onde Jayme

trabalhou – localizada na Rua Buenos Aires, Centro do Rio de Janeiro – e a residência

dele. Não foram obtidos dados da empresa que pudessem levar ao missivista, mas foi

possível saber que a empresa – especializada em importação e exportação de produtos

têxteis – não existe mais nem em um endereço diferente ao indicado na carta. As

informações residenciais também não puderam ser obtidas, já que não havia como

conseguir detalhamento quanto a Jayme ou a casa onde ele morou. Dessa forma, o passo

seguinte seria tentar buscar dados em arquivos históricos, que contivessem dados de

pessoas não ilustres.

d) Foram feitas incursões no Arquivo da Cúria, localizada na Catedral Metropolitana de

São Sebastião do Rio de Janeiro, na capital carioca, a fim de buscar dados históricos que

pudessem relevar o perfil social dos missivistas. Por se tratarem de indivíduos católicos,

levantou-se a hipótese de que haveria dados no Arquivo da Cúria referentes a

celebrações típicas do catolicismo, como batismo e comunhão. Na Cúria, a funcionária

informou que naquele arquivo havia apenas registros mais antigos – do século XIX para

trás – por isso, informações da década que eu procurava – 1930 – não podia ser

encontrada lá. Registros mais recentes são arquivados nas arquidioceses situadas nos

bairros em que ocorre a celebração. A fim de indicar a possível arquidiocese

responsável pelos registros dos missivistas, a funcionária da Cúria buscou igrejas

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46

localizadas no bairro de Ramos, que já existiam na década de 1930. Embora tenha sido

encontrada uma só igreja na região por volta da década de 1930 – Nossa Senhora das

Mercês de Ramos –, a funcionária avisou que não seria possível a obtenção de dados

relativos às pessoas buscadas. Informações sobre os missivistas só poderiam ser obtidas

mediante autorização da família ou em caso de parentesco, já que não são pessoas, cujos

dados estão disponíveis em domínio público – período que corresponde a cem anos após

a morte da pessoa.

e) A funcionária do Arquivo da Cúria, apesar de não poder ajudar quanto às

informações que haveria nos registros da Igreja, indicou uma página eletrônica em que

poderia ser buscados dados genealógicos relativos a famílias e indivíduos que já haviam

falecidos. A página6 não foi suficiente para revelar nenhum dado dos missivistas, pois

não traz todos os registros de óbito. E por se tratarem de sobrenomes comuns – Oliveira

e Ribeiro da Costa – havia um grande volume de indivíduos com o mesmo nome.

f) Em função dessa busca por nome de família, tentou-se vasculhar através dos meios

virtuais o nome completo dos missivistas. Maria Ribeiro da Costa, por ser um nome

comum, não indicou nenhum endereço eletrônico que pudesse relevar informações

importantes. Já no caso de Jayme de Oliveira Saraiva, por não ser um nome comum,

apareceram dados referentes a um concurso – registro em Diário Oficial – em que ele

havia sido aprovado, na 1ª Região Militar, que fica no Centro do Rio, no Palácio Duque

de Caxias, datados de 1940. Devido a essas informações, houve idas ao Arquivo

Histórico do Palácio Duque de Caxias para que pudesse ser obtido qualquer dado sobre

Jayme. Os militares que trabalhavam no arquivo fizeram buscas entre os servidores

civis e militares que atuaram nesse período, mas não conseguiram encontrar nenhum

dado. Informaram que o registro dessa pessoa que era buscada poderia estar nas outras

regiões militares espalhadas pelo Brasil, já que era época em que estava ocorrendo a

Segunda Guerra Mundial, e havia convocação e alistamento em massa de homens.

Apesar de os funcionários desse arquivo terem se disposto a procurar dados sobre

Jayme, foram contundentes em afirmar que informações pessoais não poderiam ser

reveladas, já que se tratava de um registro que não era de domínio público.

6 http://pilot.familysearch.org/recordsearch/start.html#p=collectionDetails&c=fs%A1582573

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47

Devido à impossibilidade de obter informações através de informações em

registros públicos e arquivos históricos, a descrição do perfil sociolinguístico dos

remetentes está respaldada somente nas missivas.

Por informações que constam das cartas, Maria tinha três irmãos: Ismênia,

Neuzinho e Antoninho. A primeira, juntamente com os seus filhos, vivia na mesma casa

que ela em Petrópolis e os dois rapazes moravam com os pais na capital, na Rua São

Francisco Xavier, Zona Norte do Rio. Além desses familiares, Maria tinha uma filha

chamada Hilda e era mãe solteira, pois em nenhum momento faz menção ao pai da

criança.

Jayme trabalhava em uma empresa de importação e exportação de produtos

têxtis situada na Rua Buenos Aires, 160, no Centro da então capital federal. Esses dados

puderam ser obtidos através dos envelopes ainda mantidos. Ao longo das cartas,

localizaram-se alguns endereços que sugerem ter ocorrido uma mudança de imóvel por

parte de Jayme. O noivo morava com os pais e irmãos, sendo que um deles chamava-se

Zezinho. Por morar em bairros localizados no subúrbio do Rio, Jayme costumava se

deslocar para o trabalho por meio de bonde e tinha como hábito ir à igreja da Penha.

A mãe de Jayme não parecia gostar da relação que ele mantinha com Maria e

isso fica evidente em vários momentos das cartas dele e dela:

1) “Minha mãe falou também, que não se metia em mais nada, porque | se fosse o

nosso destino nos casavamos mesmo e não adiantava estar se me- |tendo, ela

culpa somente a sua irmã, a sua irmã é que foi afronta-la.” (Jayme /Maria –

10/09/1936)

Maria solicitava em várias cartas que ele a avisasse caso a sua mãe falasse

alguma coisa a respeito dela, o que evidencia o quanto a noiva não era bem vista pela

família do rapaz. Outro fato curioso é que Maria sempre pedia ao noivo que ele rasgasse

as cartas para que ninguém na casa dele as visse e descobrisse os encontros secretos que

mantinham:

2) “Jayme manda-me dizer se tua mãe falou |alguma cousa com voce au meu

respsito [...] eu pesso-te para rasgares a |carta” (Maria – 12/01/1937)

3) “[...] estou e m- |uito triste e de saber que o ambiente em tua |casa e suportável

isto tudo e por minha cau- |as eu peco-te perdão e não fiques san- |gado com

migo, e não se esqueça da tua |noivinha que tanto te ama. | [...] Eu acho melho

que tu não deves vir na minha |casa tam sedo a te os teus pais ficarem cal- |mos

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com você, se você não ficares sangado |eu posso-te esperar todos os sábados a

noite para |evitar de vires da minha casa” (Maria/Jayme – 14/02/1936)

Por causa da desaprovação dos pais do Jayme quanto ao relacionamento que ele

mantinha com Maria, muitas cartas dela eram enviadas à casa dos seus pais, cabendo ao

noivo, com a ajuda do irmão dela, pegá-las.

Jayme mostrava-se disposto a enfrentar os pais para manter a relação com Maria

e para assumir Hilda como filha. Esse talvez fosse um dos motivos do desgosto dos pais

de Jayme, já que ela tinha uma filha, fruto de um relacionamento com outra pessoa e,

para os padrões da época, isso não era bem visto. Por essa razão, muitos dos encontros

do casal se davam de maneira secreta, sendo necessário, algumas vezes o uso de

desculpas a fim de disfarçar desconfianças que pudessem surgir por parte da mãe de

Jayme. A igreja da Penha aparece na documentação, aliás, como um local onde Maria e

Jayme se encontravam. Os encontros ocorriam, na maioria das vezes, aos domingos, já

que a distância entre os dois impedia que pudessem se encontrar com muita frequência:

4) “[...] eu no Domingo de |carnaval eu vou a missa na Penha |ve se pode ir com

migo se pode man- |da-me dizer que eu te espero no por- |tam da Penha as 8 ½

horas” (Maria/Jayme – 28/01/1937)

Havia ocasiões em o casal combinava de se encontrar na estação de trem Barão

de Mauá, na região portuária da cidade:

5) “Amanhã nos encontraremos de manhã em |Barão de Mauá, a hora do costume e

combinaremos, |encontros.” (Jayme/Maria – 29/10/1936)

Por vezes, os noivos não utilizavam esse local de encontro porque o irmão do

Jayme, Zezinho, muitas vezes o acompanhava até a estação de trem. Essa é uma das

razões de o ponto de encontro do casal ser a igreja, já que não seria um lugar que

despertaria qualquer desconfiança por parte da família do Jayme. No fragmento, a

seguir, Maria marca um encontro na igreja da Penha:

6) “[...] eu no Domingo de |carnaval eu vou a missa na Penha |ve se pode ir com

migo se pode man- |da-me dizer que eu te espero no por- |tam da Penha as 8 ½

horas” (Maria/Jayme – 28/01/1937)

Page 49: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

49

Além de contextualizar o casal em termos do bairro em que moravam, a atuação

ocupacional de um dos remetentes, o local de trabalho de Jayme, a descrição da família

e os problemas vividos pelo casal, faz-se necessário destacar, na próxima seção, a

temática que permeia a documentação produzida.

3.2. O conteúdo das missivas

As missivas trocadas por Jayme e Maria, por se tratarem de textos amorosos, são

repletas de versos e discursos repetidos que remetem ao gênero cartas amorosas. Dessa

forma, é fácil encontrar nas cartas, sobretudo nas de Jayme, trechos que mais parecem

versos, embora estejam em forma de prosa, e palavras e expressões de uso literário,

aproximando-se de textos poéticos. No exemplo (7) a seguir, há um trecho que foi

retirado de uma carta que o Jayme enviou à Maria:

7) Para mim tu es maior que toda | a riqueza que há neste mundo, | Tu és toda a

minha fortuna a minha | riqueza, e meu ser, a minha maior ventu- | ra neste

mundo é amar-te e querer-te cada | vez mais. | Sinto que em ti é que esta toda a |

minha existencia, por isso quero-te muito | para poder viver eternamente, sempre

em teus | braços recebendo as caricias tuas, que tanto me | acalentam e me dão

vida.” (Jayme/Maria – 02/03/1937)

Pode-se perceber no trecho (7) que Jayme utiliza-se de palavras não usuais em

discursos orais e de expressões que se aproximam de textos mais poéticos – “acalentam

e me dão vida”. Expressões que denotam o sentimento que o noivo sente por Maria e o

desejo de tê-la ao seu lado são frequentes nas cartas de Jayme, o que reflete nos textos

dele uma subjetividade lírica, como se observa nesse fragmento: “Para mim tu es maior

que toda a riqueza que há neste mundo, Tu és toda a minha fortuna [...]”. É importante

destacar que alguns desses trechos líricos que ocorrem na carta aparecem com mais

frequência em estruturas fomulaicas, repetindo-se em várias missivas: tu es.... tu és...

Através da leitura das cartas, percebe-se que há uma diferença quanto ao grau de

instrução dos missivistas. Embora se possa dizer que Jayme não dominava plenamente a

norma padrão em suas cartas pela presença de alguns desvios recorrentes, notou-se que,

em termos comparativos, ele apresentava maior contato com os modelos de escrita.

Maria, apesar de apresentar mais desvios grafemáticos e uma estruturação sintática das

Page 50: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

50

sentenças bem simples, pode ser considerada como alfabetizada (sabia ler e escrever) e

possuidora de uma cultura mediana nos termos de Barbosa (2005).

8) “não repares a minha carta nei os meus eros, | eu não sei escrever cartas de amor

como voce eu quando | lei chego a chorar, voce sabe que eu sou uma burinha”.

(Maria/Jayme – 07/10/1936)

Maria tem consciência de que não possui tanta familiaridade com o texto escrito,

como se constata em (8), pois repete sistematicamente para o Jayme não reparar na falta

de domínio dessa modalidade.

9) “eu não queria te dizer eu fui aumedico | no dia 20 de manha por que eu passei |

mal de noite não pude dormir com | muita no meu coração e com falta | de ar o

medico de me deu calmante | elle me perguntou se eu tinha me a | borecido eu

dise que sim ella falou | que era por causa disso de meaborecer | que eu estava

muito nervosa mas | agora vou melho com a graça de | Deus. a pesar de voçe me

mandar | uma carta alegre a indanão estou | comformada eu veijo a carta | do dia

17 as minhas lagrima comesão | a cair.” (Maria/Jayme – 21/01/1937)

As cartas da Maria apresentam vários desvios ortográficos, como ausência de

sinais de pontuação e insegurança na escrita das palavras. No trecho (9), nota-se que não

há planejamento textual, o que evidencia a falta de contato da Maria com textos escritos.

Já as cartas do Jayme não apresentam muitos desvios grafemáticos e demonstram

conhecimento acerca da modalidade escrita. Isso fica evidente, principalmente, quando

comparamos as cartas dele e dela e observamos o quão diferente é a estruturação do

texto. Além disso, o texto do Jayme, em muitos momentos, tem um cunho poético,

denotando que ele, de alguma forma, domina, ou ao menos, tem contato com discursos

líricos tão comuns ao gênero carta de amor.

Page 51: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

51

3. A análise filológica das missivas

Nesta seção, será feita uma incursão filológica utilizando-se alguns tópicos

levantados por Marquilhas (1996) e Barbosa (1999), a fim de que se possa traçar o perfil

sociolinguístico dos remetentes das missivas.

As hipóteses que nortearão esta análise filológica, dispostas em seguida,

baseiam-se nos trabalhos já citados7, e têm como objetivo propor uma metodologia

alternativa para identificação do grau de escolarização e/ou letramento dos remetentes a

partir de uma visão escalar: [+] ou [-] letramento:

1. A ausência ou presença desvios grafemáticos pode ser um indício do grau de

letramento dos remetentes, por isso espera-se que as taxas de frequência

desses desvios sejam mais altas na produção dos missivistas com pouco

domínio da norma escrita. A transposição da oralidade para a escrita é um

fator que contribui para que haja mais realizações de desvios grafemáticos,

portanto, é um indício de baixa letramento do missivista, uma vez que

evidenciaria pouca intimidade com textos escritos.

2. O uso de variadas palavras etimologizadas ou pseudo-etimologizadas pode

indicar que o missivista tenha tido mais contato com textos escritos e, por

isso, tenha maior letramento, conforme trabalho de Barbosa (2005).

3. A variabilidade de abreviaturas pode ser um indicativo de maior domínio por

parte do remetente desse artifício linguístico. Espera-se que o missivista que

detenha um maior aporte linguístico-cultural seja capaz de utilizar esse

recurso mais eficientemente – embora não seja esse o critério mais relevante

para o nivelamento da letramento dos remetentes.

7 Marquilhas (1996) e Barbosa (2005) e (1999).

Page 52: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

52

4. A segmentação e junção silábica e/ou vocabular8 é um dos principais

aspectos para caracterização dos missivistas em mais ou menos letrados, pois

são questões que refletem o contato e domínio dos mesmos com textos

escritos, como aponta Marquilhas (1999).

Optou-se por esse viés de análise devido à impossibilidade de serem obtidas

informações acerca dos autores das cartas – Jayme e Maria – em repartições públicas,

dada à particularidade do corpus, como já foi explicitado em outra seção. Dessa forma,

tentou-se buscar um método que pudesse ser eficiente para levantar dados dos

remetentes através da sua própria produção escrita. Trata-se de uma tentativa de

identificar o perfil social dos missivistas a partir de características peculiares à sua

escrita de maneira a explicitar o seu grau de letramento. Para tal tarefa foi utilizada uma

ferramenta computacional auxiliar, o programa de edição eletrônica E-dictor (PAIXÃO

DE SOUZA; KEPLER, 2007), que será apresentado mais detalhadamente a seguir. A

proposta é apresentar alguns desdobramentos desse programa como um aparato

metodológico complementar na coleta automatizada de itens que possam evidenciar o

nível do domínio da escrita por parte dos autores das cartas.

3.1. Metodologia

3.1.1. A edição de corpora diacrônicos

Os estudos no âmbito da linguística histórica que fazem uso de macro corpora

diacrônicos sempre se depararam com dois problemas aparentemente insolúveis. Por um

lado, há a preocupação de uma edição o mais possível fidedigna do documento e, por

outro, existe o afã de se obter, por buscas automáticas, um número significativo de

textos de épocas passadas9. Dessa forma, uma ferramenta que confira a integridade do

texto e que, ao mesmo tempo, tenha a agilidade do sistema computacional torna-se cada

vez mais necessária, uma vez que cresce a demanda por mecanismos que possibilitem

8 Chama-se de segmentação neste trabalho vocábulos fragmentados, como: a qui, com migo e estaç-ão. A

junção, por sua vez, é o processo inverso no qual há a união de elementos que deveriam estar separados,

como em mezango e pramin. 9 Não serão discutidos aqui, os problemas advindos de análises baseadas em textos escritos para retratar a

língua de um dado momento no tempo

Page 53: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

53

mais facilmente o acesso a textos antigos diversificados de vários gêneros e autores com

perfis distintos.

Uma das maneiras de se reproduzir um texto antigo é através do fac-símile, em

que são dispostas imagens dos escritos, seja por meio de foto ou de aparelhos de

obtenção de imagem digital. Embora o objetivo de estudos linguísticos diacrônicos leve

em consideração sempre a fidelidade da escrita, a transcrição é uma maneira de torná-lo

mais fácil de ser manuseado e trabalhado pelo pesquisador. Nesse ponto, podem-se

distinguir dois tipos de edições: Edição Diplomática e Edição Semi-Diplomática. A

Edição Diplomática consiste na reprodução do texto, com interferência mínima do

editor, por isso mantêm-se expressões e construções, por exemplo, que possam soar

estranhas a um falante atual da língua. Já a Edição Semi-Diplomática, que é a usada

com mais frequência em estudos de fenômenos linguísticos, sofre algumas

interferências por parte do editor como o desenvolvimento de abreviaturas e até mesmo

modernização de termos antigos. Esse tipo de edição facilita a preparação dos textos

para estudos linguísticos porque torna o texto mais acessível sem deixar, no entanto, de

mostrar a sua morfologia e sintaxe.

Para uma análise linguística com textos digitais, além de haver a necessidade de

o texto ser fiel ao seu original, é importante que haja mecanismos que facilitem a busca

dos fenômenos que são interessantes ao pesquisador e agilizem o trabalho de seleção de

dados pertinentes. Nesse sentido, o E-dictor é uma ferramenta criada para garantir essa

tarefa, pois é um editor que consegue resguardar informações do texto de interesse

linguístico e filológico e, ao mesmo tempo, gera a versão modernizada empregada nas

buscas automáticas.

3.1.2. O E-dictor

O programa E-dictor

10 foi criado primeiramente para atender às necessidades do

Corpus Anotado Tycho Brahe, conforme ressalta Paixão de Sousa (2009) – que consiste

em um grande arquivo de textos de autores portugueses do século XIV ao XIX . A

finalidade era desenvolver uma ferramenta que pudesse auxiliar no processo de edição

10 O E-dictor pode ser obtido gratuitamente através do endereço eletrônico

http://www.ime.usp.br/~tycho/corpus/manual/prep/index.html

Page 54: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

54

de escritos antigos. Um dos aspectos de maior vantagem no uso do E-dictor refere-se ao

fato de ele dar agilidade a processos de busca e facilitar notações de expressões

editadas, tornando possível ver versões atualizadas e antigas de um mesmo documento.

O funcionamento do E-dictor consiste em gerar arquivos XML – responsáveis

por facilitar buscas e possibilitar notações diversas no texto editado. Há diversas opções

quanto à manipulação do texto editado, conforme aponta Paixão de Souza (2009)11

.

Não interessa aos objetivos desse trabalho discutir todos os recursos,

possibilidades e vantagens que o programa disponibiliza ao usuário. O intuito é centrar

no processo de edição da versão original para a versão modernizada. Os mecanismos de

edição consistem em notações que são atribuídas ao programa conforme a necessidade

do texto. O E-dictor vem, inicialmente, com alguns mecanismos, como a junção e a

segmentação, além de outras indicações (ilegível, rasurado, tachado, sobrescrito).

Durante o processo de edição do texto informações são indicadas pelo usuário para que

seja possível, a qualquer tempo, comparar ou acessar a versão original e a modernizada.

O E-dictor atribui uma hierarquização dessas propriedades conforme a vontade do

editor, sendo essa característica que torna possível ver todos os níveis de mudança que

uma palavra pode sofrer. Dessa forma, mesmo que uma palavra seja marcada com as

notações de segmentação e junção, por exemplo, será possível recuperar todos os

processos feitos ao longo da edição. Essa função fica evidente no trecho a seguir:

Por padrão, o E-Dictor assume dois níveis básicos de

edição, a saber, junção e segmentação. O primeiro

permite a junção de segmentos de palavras eventualmente

separadas no original (por quebra de página, por

exemplo) e o segundo é utilizado para (des)segmentar

uma palavra. Estes são os níveis mínimos necessários à

ferramenta. A partir daí, os níveis são cadastrados pelo

usuário, com base nas necessidades de edição de seu

contexto. Os níveis de edição devem ser cadastrados e

ordenados, conforme a prioridade de aplicação. Este

sistema foi pensado para um contexto em que um nível

de edição não pode "conter" outro(s). Ou seja, o objetivo

do E-Dictor é manter a informação sobre cada nível

(inclusive o "nível" original). Assim, o usuário poderá,

11 As opções descritas por Paixão de Souza são: conversão do texto transcrito para XML, informações

dos mecanismos a serem utilizados no documento; edição de propriedades do texto (título, ano de

produção, autor, ano de nascimento e extensão do texto - parcial ou completo), bem como registro de

comentários gerais sobre este (comentários de edição/codificação); inserção de cabeçalho e rodapé; e

inserção de número de paginação;

Page 55: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

55

num segundo momento, acessar o texto em diferentes

"versões", cada uma relativa a um dado nível de edição.

De acordo com a edição que se propõe, podem-se marcar

as palavras – selecionando-as e atribuindo uma notação –

do texto transcrito e transformado em XML de forma que

esse apresente as propriedades gráficas pertinentes.

(PAIXÃO DE SOUZA, 2009)

Os mecanismos ou processos de edição têm a função de caracterizar melhor o

documento antigo, conservando as informações originais. Na aba do programa de

edição podem ser marcados diversos aspectos gráficos presentes no texto como: junção,

segmentação, expressões e/ou palavras sobre e subscritas, caligrafia ilegível, rasuras,

termos que se encontram tachados com risco, expansão (palavras abreviadas) e

modernização (grafia atualizada dos itens marcados). Na figura a seguir, reproduz-se a

tela que aparece para o usuário durante a edição. A título de exemplificação marcou-se a

palavra “poçivel” para ser modernizada, acrescentando-se a acentuação gráfica ausente

no texto original:

Figura 2: Tela de edição do E-dictor

Essa marcação é feita em todas as palavras que apresentam algum aspecto das

notações indicadas. O objetivo é permitir o resgate, em caso de buscas automáticas

através de meios eletrônicos, de todos os processos de edição pelos quais o texto passou

Page 56: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

56

desde a primeira edição até a última. Assim será possível, a quem acessar o texto,

identificar os itens originais e as atualizações.

O programa E-dictor permite ainda que sejam listadas todas as palavras

marcadas – através do comando ARQUIVO > EXPORTAR >LÉXICO DE EDIÇÕES –

de maneira ordenada e agrupada segundo a notação proposta. A partir desse recurso,

que permite uma visualização mais isolada de todos os itens selecionados na edição,

pode-se identificar, e até mesmo quantificar, o nível de atuação do usuário no processo

de edição. A reprodução da tela abaixo ilustra a tabela gerada pelo programa:

Figura 3: Tela léxico de edições do E-dictor

Na figura 3 há um quadro – chamado de léxico de edições – dividido em colunas

com diferentes notações. Na primeira coluna ficam os itens, ou seja, as palavras

marcadas no texto e nas demais, os aspectos referentes às notações. Para melhor

entendimento, serão detalhadas todas as notações arroladas:

a) Junção

O mecanismo de junção, como o próprio nome diz, serve para alinhar em um

mesmo vocábulo elementos que, pelas regras ortográficas atuais, aparecem separados

Page 57: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

57

pelo espaço em branco. O parâmetro é sempre a forma modernizada da palavra. Essa

separação nos textos antigos pode ocorrer por vários motivos, entre eles: distração ou

equívoco do autor do texto; pouco contato com padrões de escrita vigentes na época da

escritura do documento, não delimitação precisa do vocábulo formal e fonológico, etc.

Os exemplos abaixo são ilustrativos:

1) “Jayme isto não entereça o que entereca e o nosso | a mor eu tenho chorado

muito con saldades tuas | a qui e muito triste era bom sevoce estivese a | qui

com migo.” (Maria/Jayme – 10/09/1936)

No exemplo (1) retirado da carta da Maria, há a separação da primeira sílaba da

palavra em relação ao restante do vocábulo como se fosse um vocábulo distinto. Os

itens amor, aqui e comigo aparecem segmentados e precisam ser unidos na edição

atualizada (junção de partes da palavra). No processo de edição através do E-dictor, o

comando “junção” une todos os vocábulos, sílabas ou letras que deveriam estar

contíguas, mas que, por alguma razão, aparecem separadas.

É preciso destacar que, nem de sempre, a ausência de “junção” espelharia o não

domínio dos modelos de escrita como ocorre no vocábulo, comigo, escrito com migo.

Nesse caso, bastante comum em textos mais antigos, ainda se registrava a separação da

preposição da parte que se refere ao pronome (migo).

Essa forma de escrita é bastante recorrente nas cartas da noiva, mas são raras nas

cartas de Jayme. Nas missivas de Jayme, exemplificado em (2) a necessidade da junção

deve-se a uma quebra de linhas. O remetente se vê obrigado a separar silabicamente a

palavra e continuar escrevendo na linha abaixo, como ocorre em mandado.

2) “Minha querida noivinha | Espero que não te zangues comigo, por ter man- |

dado este, mas se o fiz foi somente para te prevenir, | e para não ficares a minha

espera” (Jayme/Maria – 29/10/1936)

No caso do corpus em análise, tem-se como hipótese que a presença excessiva

de palavras que necessitam de “junções” do tipo (a mor por amor), durante o processo

de edição, evidenciaria que o autor do documento tinha pouco domínio com os modelos

de escrita e, possivelmente, menor escolarização. As junções advindas de mera

separação de sílaba por quebra de linha não teriam, obviamente, a mesma interpretação.

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58

b) Segmentação

A segmentação é um processo oposto ao da junção, pois em vez de juntar

elementos, separam-se. Deve-se, no entanto, ressaltar que a junção consiste apenas em

desvios grafemáticos, como pode ser atestado nos exemplos observados anteriormente,

ao contrário da segmentação que, também inclui além das separações consideradas

como erros, aquelas em que houve de fato a separação silábica por conta da quebra de

linha (como pôde ser visto no exemplo (2)).

3) “A saudade começa a apoderarce se mim ja sinto que tua ausencia | é para mim

um martirio, [...]” (Jayme/Maria – 11/09/1936)

4) “Aminha distração sam são as tuas cartas |12

eu leio toda as noites antes de me

deitar | e olho para os teus retratos que tantas | saudades me dar” (Maria/Jayme –

26/01/1937)

Em (4) há o artigo a unido ao pronome minha como se houvesse apenas um

vocábulo. A missivista apresenta um grande número de vocábulos segmentados e

unidos equivocadamente. Embora Jaime apresente também alguns dados de elementos

que deveriam estar separados, mas que, em suas cartas aparecem juntos, seus desvios

ocorrem como mostrado em (3). A necessidade de segmentação, nas cartas do noivo,

ocorre basicamente com pronomes enclíticos ao verbo. Dessa forma, em vez de escrever

apoderar-se, o noivo grafou apoderarce. É preciso considerar ainda que houve, além da

junção, um outro desvio grafemático, uma vez que o remetente grafou com <c> no

lugar de <s>. Essa palavra, no processo de edição, sofreria tuas marcações: segmentação

e modernização.

5) [...] tua imagem, em tudo pareço ver os teus olhos | a me dizerem coisas

maravilhosas de nosso amor, | ou então pareço ouvir teus labios a dizer-me que

tam- | bem sentes saudades minhas ou pareços ouvil-os | suplicantes a pedirem

beijos, enquanto vou para bei- | jal-as. ho desilusão [...] (Jayme/Maria –

20/08/1936)

12 Todas as ocorrências de barra nos fragmentos de cartas indicam quebra de linha.

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59

No exemplo (5) retirado da carta do Jayme, observam-se os processos de

segmentação e de junção atuando nas mesmas palavras. A maioria das ocorrências de

junção e segmentação do noivo apresenta-se dessa maneira: um pronome enclítico a(s) e

o(o) precedidos pela consoante l. Na escrita de Jayme é recorrente esse tipo de junção

comum também em textos mais antigos: o <l> de –lo(s)/la(s) fica anexado ao verbo

(ouvil-os em vez de ouvi-los). No processo de edição, nesse caso, tem-se,

primeiramente, a junção13

dos verbos com os pronomes enclíticos (ouvil-os ouvilos),

depois há um processo de segmentação (ouvilos ouvi-los). Vale ressaltar, como

apresentado anteriormente, que, se o item apresentar uma grafia que não condiz com a

atual, é necessário modernizar a palavra, como ocorre com beijá-la:

Junção Segmentação Modernização

ouvil-os Ouvilos ouvi-los _______ _______

bei-jal-as Beijalas beija-las beijá-las

b) Sobrescrito

É a marcação que evidencia os vocábulos que aparecem escritos acima do nível

da linha como uma forma de acréscimo ou correção do texto. A figura 3 a seguir mostra

um fragmento de carta enviada pela Maria ao noivo em que é possível observar uma

palavra sobrescrita à linha do texto.

13 Como a junção e segmentação são os únicos mecanismos que vêm no E-dictor, eles já estão

hierarquizados nessa ordem, sendo possível, no entanto, escalonar os demais grupos à maneira que o

editor achar conveniente.

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60

Figura 4: Trecho de carta com texto sobrescrito (Maria)

6) “voce manda dizer a minha mãe que eu vou | neste trem, eu pesso-te para voce

marcares um | encontro para Domingo si Deus quiser, não repares | esta carta por

que quando estava escrevendo | estava [↑] passado [↑]14

um pouquinho mal mais

isto passa, eu [...]” (Maria/Jayme – 12/01/1937)

Neste trecho a Maria solicita ao Jayme que marque o encontro de domingo – dia

em que tradicionalmente costumam se ver – e justifica o fato de a carta não estar à

altura do que ela poderia escrever por estar se sentindo mal.

A palavra que aparece sobrescrita é um acréscimo feito pela autora a fim de

corrigir o texto ou atribuir-lhe uma ideia diferente. Costumeiramente a noiva tinha

alguns problemas de saúde e, para deixar claro no trecho destacado que se tratava de um

mal físico e não psicológico, ela escreveu “passado” 15

.

Figura 5: Trecho de carta com texto sobrescrito (Jayme)

14 O símbolo [↑] foi adotado na edição semi-diplomática utilizada neste corpus para indicar termos que

aparecem sobrescritos à linha do texto. 15

Pela leitura da carta, percebe-se que a noiva queria usar a palavra “passando” em vez de “passado”.

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61

7) “[...] comigo por causa do que houve, só tu sabes | a extensão do nosso amor, e

podes avaliar | o quanto tenho sofrido, para mim nada mais | resta neste mundo a

não [↑] ser [↑] o teu amor,” (Jayme/Maria – 19/01/1937)

Na figura (5) percebe-se que na última linha desse trecho o noivo faz uma

pequena correção no texto inserindo a palavra “ser” em um nível acima das demais. É

evidente que se trata de uma correção, pois a frase sem o vocábulo que foi acrescido

teria seu significado incompleto. O uso de sobrescrito também dá indícios de releitura

do texto e ausência de rascunhos.

c) Ilegível

Nas cartas no corpus, tanto as de Jayme quanto da Maria, há poucas palavras

tomadas como ilegíveis. No geral, os vocábulos apontados como impossíveis de serem

lidos são aqueles escritos em algum papel que foi danificado pela ação do tempo e pela

falta de conservação, como pode ser observado na figura abaixo que representa um

fragmento de carta do Jayme.

Figura 6: Trecho de carta com texto ilegível

8) “[...] do meu viver, mas não me satisfazem ainda; porque estes instantes | tão

doces no sonambulismo da minha existencia não são mais que | essas chimeras

ilusorias, que o tempo caprichoso, no seu marchar | 16

faz desaparecer como

folhas mortas levadas pelo vento | á correnteza do rio...” (Jayme/Maria –

22/08/1936)

16 As palavras ilegíveis são marcadas com nota de rodapé.

Page 62: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

62

No exemplo (8) há um trecho retirado da carta do Jayme para a Maria em que

ele escreve palavras pouco usuais e que denotam muito sentimentalismo pela noiva. A

carta é longa e escrita em um tipo de papel diferente dos demais. O documento acabou

sendo mais danificado por ter sido dobrado em várias partes. O dano no papel prejudica

a leitura da carta e torna algumas palavras ilegíveis. O amarelado por conta do tempo e

o fato de ser uma missiva escrita a lápis prejudicaram a leitura da carta, uma vez que a

dobradura foi feita em cima de uma das linhas do texto.

d) Rasurado

São consideradas rasuras vocábulos corrigidos com rabiscos, mas que possam

ser lidos sem dificuldade17

. No trecho abaixo retirado de uma carta que a Maria enviou

ao Jayme mostrando a saudade que sente do noivo pode-se observar uma palavra

rasurada:

Figura 7: Trecho de carta com texto rasurado (Maria)

9) “[...] e combinamos tudo direitinho eu peco-te para não ficares sangado com

migo | que eu não sou culpada deu ficar a qui se eu 18

paça-se uma | vida a legre

em tão sim mais e paço uma vida tão trite e choran- | do so por causa do meu

noivinho Jayme.” (Maria/Jayme – 01/10/1936)

17 As edições feitas com os corpora que compõem a página eletrônica www.letras.ufrj.br/laborhistorico

seguem a mesma regra quanto a rasuras. Essas são apresentadas, por meio de nota embutida no próprio

XML do E-dictor e apontada nas edições em fac-símile semi-diplomáticas como rabiscos para fins de

correção. Diferencia-se do aspecto “ilegível” porque, no geral, caracteriza uma palavra que não foi

inteiramente inutilizada e que faz parte do conteúdo do texto.

18

As rasuras são indicadas com uma nota de rodapé, já que não é possível transcrevê-las.

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63

Na figura (7) a palavra rasurada não pode ser resgatada, pois foi inteiramente

descartada através de rabiscos que tornaram a leitura impossível de ser realizada. É um

tipo de correção que ocorre, sobretudo, nas cartas da Maria, embora também haja alguns

dados nas cartas do noivo.

A figura (8) traz um trecho retirado da carta do Jayme em que ele mostra sua

insatisfação com a tristeza da noiva, pois não se conforma que ela se sinta infeliz por

causa da saudade, apesar de mostrar compreensão quanto ao porquê de a noiva

mencionar em várias cartas que passa o dia chorando.

Figura 8: Trecho de carta com texto rasurado (Jayme)

10) “[...] martirisar a ti e a mim, eu sei 19

que te perguntando tudo isso tú me dirias |

que é porque tú me amas, e bem sei minha querida, que teu amor é muito | as

tuas lagrimas, meu amor fica tão 20

amargurado com esses teus sentimento, que

[...]” (Jayme/Maria – 21/09/1936)

No trecho acima há duas palavras ou letras que foram rasuradas pelo autor da

missiva – no caso, o Jayme. Não é possível ler o que foi descartado do texto pelo

remetente.

e) Subscrito

Esse critério opõe-se ao sobrescrito, pois, em vez de estar posto acima da linha

do texto, encontra-se abaixo dela. Percebe-se, no entanto, que as correções dos

missivistas a partir desse recurso são menos frequentes que os sobrescritos. Tal recurso

19 Palavra rasurada.

20

Palavra rasurada.

Page 64: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

64

é usual para dar um recado a mais ao remetente além do que foi tratado no conteúdo da

carta ou para continuar um assunto que não coube na pauta da folha de papel.

No fragmento a seguir, a noiva Maria alerta Jayme para que ele não repare na

carta dela porque contém inúmeros erros. Essa informação aparece na carta da Maria

sempre em forma de observação ao final da missiva. Tal alerta da autora quanto ao não

domínio da escrita é bem recorrente.

Figura 9: Trecho de carta com texto subscrito (Maria)

11) “[...] a minha irman esta te esperando no | dia 18. | não repares a minha carta nei

os meus eros, | [↓] eu não sei escrever cartas de amor como voce eu quando |

lei chego a chorar, voce sabe que eu sou uma burinha. [↓]21

” (Maria/Jayme –

07/10/1936)

Na figura (9), uma carta da Maria, percebe-se que o texto, fora da linha, foi

escrito como se fosse uma informação a mais além do conteúdo da carta. Outro aspecto

importante a ser destacado se refere ao espaço para escrever esse pequeno trecho que,

como pode ser observado na imagem, é pequeno, sendo esse, possivelmente, um dos

motivos que leva a noiva a escrever várias palavras subscritas.

Jayme, a exemplo da Maria, também coloca alguns trechos e palavras subscritas,

embora a sua frequência seja bem menor que a da noiva. No trecho a seguir – figura

(10) – retirado de uma das cartas do Jayme, observa-se que o noivo questiona Maria

quanto a chamá-la de noivinha. Para tanto, coloca uma informação a mais – “responda-

me” – abaixo da linha, como se quisesse enfatizar que essa pergunta deve ser

respondida pela noiva.

21 Na edição em fac-símile semi-diplomática utilizada neste corpus fez-se o uso do símbolo [↓] para

indicar palavras ou trechos da carta que aparecem subescritas à linha do texto.

Page 65: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

65

Figura 10: Trecho de carta com texto subscrito (Jayme)

12) “Minha querida Mariqunhas, é melhora chamar-te de minha querida noivinha:

consentes? [↓] responda-me [↓] | Espero que esta té vá encontrar um pouco

mais descansada do que eu assim | como as teus, eu sei que tú choraste muito, eu

te pedi tanto para que tú não” (Jayme/Maria – 21/09/1936)

f) Tachado

O tachado é outro critério que mostra a interferência da correção dos missivistas

em relação ao texto. Tachado, diferentemente do rasurado, não é um emaranhado de

rabiscos sobre a palavra, mas sim um ou mais riscos de forma que ainda é possível lê-la.

Na carta de Maria mostrada abaixo através da figura (10), a missivista comenta

sobre a expectativa de encontrar seu noivo e pede que ele avise caso não haja nenhum

imprevisto no horário em que pretende estar na estação para que ela possa esperá-lo.

Figura 11: Trecho de carta com texto tachado (Maria)

13) “é muito trite. Eu fiquei tam com temte saber que | voce vinha22

vem no dia 20

do corente voce manda-me | dizer a certesa sivem mesmo para eu ir esperarte |

com a Ismenia e manda dizer en que trem” (Maria/Jayme – 12/09/1936)

22 O recurso adotado na edição semi-diplomática para marcar indicar que uma palavra foi tachada é o

risco sobre a mesma.

Page 66: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

66

A figura (11) mostra um exemplo de palavra que foi tachada pela noiva (vinha).

A missivista corrige o tempo do verbo – de pretérito para presente. Mesmo rabiscada,

ainda é possível a leitura da palavra sem grandes dificuldades.

A figura (12) a seguir apresenta a queixa de Jayme quanto ao fato de o irmão de

Maria ter reclamado de o casal de noivos sentirem muito falta um do outro. Jayme se

justifica afirmando que o irmão da noiva não vive longe da pessoa que ama como

acontece com eles – o noivo mora na cidade do Rio de Janeiro e Maria, em Petrópolis.

Figura 12: Trecho de carta com texto tachado (Jayme)

14) “[...] que ainda vaes ficar mais uns tempos, minha | flor, eu juro como nesse

momento pensei que o | teu irmão não sabia o quer era amor, mas | como ele

esta perto de quem gosta não avalia, o que [...]” (Jayme/Maria – 25/09/1936)

Jayme, como pode ser visto na figura (12), equivoca-se na escritura da

conjunção “que” colocando um “r” ao final da palavra – o que a transformaria em um

verbo. Apesar dos vários riscos sobre a palavra, a leitura ainda é possível.

g) Expansão

Esse critério refere-se a termos que foram abreviados ou escritos através de

abreviaturas. A expansão consiste em expandir a palavra, ou seja, transformá-la em um

item que não seja uma sigla ou abreviaturas.

Page 67: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

67

15) “Lembranças a D.ona23

Marietta | E deste teu apaixonado noivinho recebe |

muitos beijos e abraços” (Jayme/Maria – 06/04/1937)

16) “Logo mais espero ficar sosinho em | casa, então te escrever uma carta maior |

mais agora não me é possível porque | tenho muita pressa, domingo de manhã

talvez | vá a S.ão João de Merity, e a tarde irei na | tua casa conforme prometi.”

(Jayme/Maria – 30/03/1937)

17) “A S.enhora Marietta manda-te lembranças e pedete | para não esqueceres de

rezares.” (Maria/Jayme – 22/02/1937)

18) “[...] eu vou muito triste e com muitas saudade | tuas, neta vai uma santinha que

e N.ossa S.enhora da | Penha para tu guardares com tigo e não | se esquesa de ir

3 vese a missa que tu | prometeste [...]” (Maria/Jayme – 05/10/1936)

Em todos os exemplos de expansão – do (15) ao (18) – tanto Jayme quanto

Maria abreviam as palavras que podem ser facilmente resgatadas pelo contexto, mesmo

que a abreviatura não seja a correspondente ao vocábulo, como é o caso de S. que

aparece referindo-se a senhor, senhora ou são.

h) Modernização

A modernização é o critério mais abrangente de todos, pois engloba todas as

palavras que atualmente são grafadas de maneira distinta da apresentada no documento

antigo. Essa marcação exigiu certo cuidado na hora da edição do texto, pois entre esses

estavam processos que não eram interessantes para esta análise – como a acentuação e

separação silábica. Nos exemplos a seguir, podem-se observar vocábulos que sofreram

processo de modernização por apresentarem uma grafia diferenciada da atual:

19) “Hoje e que o Nelzinho deve entregar-me a tua carta | registrada, porque hontem

não a fui buscar porque | são sahi de casa,” (Jayme/Maria – 13/10/1936)

23 Na edição em fac-símile semi-diplomática adotada para este corpus, os termos que estão abreviados ou

em forma de sigla são desenvolvidos em itálico. Como exemplo, pode-se citar D. que, no texto transcrito

vira Dona (somente a parte expandida aparece em itálico).

Page 68: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

68

20) “Espero que esta te vá encontrar em perfeito estado | de saude assim como todos

os teus, [...]” (Jayme/Maria – 10/10/1936)

21) “não repares na carta porque foi feita no escretorio.” (Jayme/Maria –

08/03/1937)

22) “Eu chegei muito bem em petropolis mais estou | com muitas saudades tuas eu

sonhei muito | com voce na noite de Domingo para segun- | da feira, voce não

dis nada aus meus irmã(os) | que eu vou te espera no sabado por que | eu não

avizei a minha mãe. (Maria/Jayme – 15/03/1937)

O exemplo (19) retirado da carta de Jayme mostra os vocábulos hontem (por

ontem) e sahi (por sai) grafados de maneira diferente da atual. Esse é um recurso que

Jayme utiliza o tempo todo em suas cartas com muito mais frequência e variedade que a

noiva: uma suposta aproximação de alguns termos do português a formas latinas

(etimologização por termos latinizados). Na maior parte das vezes em que faz uso de

termos que tentam resgatar a etimologização da palavra, o noivo acerta, como foi o caso

de sahi. Percebe-se, no entanto, que há algumas ocorrências nas cartas dele de palavras

“falsamente” etimologizadas, pois não se assemelham a nenhuma forma etimológica do

vocábulo, como acontece com hontem (pseudoetimologização).

Tanto Jayme quanto Maria não costumam usar a acentuação gráfica com

frequência, mas todas essas ocorrências de ausência de acento são marcadas pelo

comando modernização. Dessa forma, a palavra saude, grafada conforme aparece no

exemplo 20, é atualizada em saúde.

Os exemplos (21) e (22) apresentam desvios grafemáticos influenciados pela

fonética das palavras e ausência de acentuação gráfica, falta de inicial maiúscula em

nomes próprios e hifenização. Dos vocábulos com ausência de acentuação gráfica

presentes nos exemplos estão: petropolis, voce, sabado e escretorio. A ausência de letra

inicial maiúscula é observada em Petrópolis. A falta de hifenização ocorre em: segunda

feira. Nas formas chegei e escretorio, nota-se a falta de domínio da representação

gráfica do dígrafo e possivelmente uma hipercorreção na flutuação das pretônicas. As

demais palavras – avizei, aus, dis, espera (em vez de esperar) – têm sua grafia

influenciada pela confusão entre fone e grafema.

Embora todos os mecanismos de edição listados tenham sido utilizados para fins

de edição, optou-se por fazer a análise baseada em apenas quatro deles: segmentação,

Page 69: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

69

junção, expansão e modernização. Tais aspectos foram privilegiados por se

relacionarem aos critérios discutidos em trabalhos de cunho filológico, como é o caso de

Marquilhas (1996) e de Barbosa (1999). Esses autores buscam determinar aspectos

linguísticos que identifiquem mais facilmente os indivíduos com mãos hábeis e inábeis.

Como o objetivo dessa análise de natureza mais filológica é tentar resgatar um pouco do

perfil sociolinguístico dos remetentes observando o grau de letramento deles, traçaram-

se parâmetros relativos à norma culta da época, através de comparações de textos de

mesma natureza. Além disso, foram consideradas as propriedades – no caso, a

modernização, segmentação, junção e expansão – que mais auxiliariam no estudo

proposto, como será explicitado a seguir mais detalhadamente.

3.2. Parâmetros relativos ao grau de letramento

Em termos da caracterização social dos remetentes das cartas, um dos problemas

que o corpus utilizado neste trabalho ofereceu foi a ausência de informações sobre os

fatores externos tradicionalmente utilizados em estudos sociolinguísticos, tais como:

faixa etária, origem, escolarização. Para poder delinear os autores das missivas com

maior precisão, fez-se necessário propor parâmetros que servissem para mensurar o

nível de escolarização ou, mais precisamente, o maior ou menor contato dos missivistas

com a norma culta da época. Não foram utilizadas gramáticas vigentes no período,

porque, através da leitura dos textos, percebeu-se que o Jayme e a Maria diferenciavam-

se mais na estruturação do conteúdo da carta e na presença de vocábulos com desvios

grafemáticos. A análise, portanto, vai considerar não apenas a estruturação da carta

conforme o modelo epistolar, mas também questões que se referem à grafia das palavras

que aparecem no texto. Em seu texto, Barbosa (2005) é enfático quanto à importância

de se observar o modelo – que reflete à tradição discursiva – e o gênero ao qual o

discurso pertence. Assim seria possível determinar o quanto o domínio da norma culta

da época pelo indivíduo aparece em seu texto. Espera-se que uma pessoa com maior

contato com modelos de escrita (escrituralidadade) seja mais íntima da norma culta e,

consequentemente, siga mais rigidamente as regras do modelo do texto que adota.

Veja-se que um redator culto, mesmo quando escreve

sem a pressão de formalidades, sem preocupação de

vigiar seu próprio produto, sempre deixa, em algum nível

– e de alguma forma – em seu texto, alguma marca

Page 70: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

70

daquilo que, no contexto de sua época, é considerado

padrão culto. (...) É o raciocínio inverso ao aplicado ao

redator tido como não culto, afastado dos ditames do

modelo padrão de comportamento linguístico (contado na

escola e/ou na leitura frequente de textos ao padrão). Esse

tipo de redator, mesmo que decida redigir um texto

formal, deixará evidente, pelos seus desvios, que ele não

convive com os gêneros discursivos modelares da cultura

erudita de sua comunidade. (BARBOSA, 2005, p.29)

O indivíduo mais culto, mesmo que não esteja sob pressões normativas, deixará

transparecer em sua produção escrita, em algum momento, reflexos do seu nível de

contato com textos escritos, conforme afirma Barbosa (2005).

A análise proposta nesta seção busca evidências filológicas e textuais para

comprovar qual dos remetentes – Jayme ou Maria – apresenta maior grau de letramento.

3.3. Os critérios gerais de análise das missivas

Considerando a dificuldade obter dados sobre os remetentes, buscou-se um

método de análise que captasse a diferença entre os missivistas. O objetivo, como

mencionado, era identificar um perfil sociolinguístico que vislumbrasse o grau de

letramento dos mesmos. A análise baseia-se nos critérios levantados por Marquilhas

(1996) e Barbosa (1999), mas com algumas adequações que foram consideradas

pertinentes em função da natureza do corpus e da proposta da pesquisa.

Dessa forma, foram levantados os seguintes critérios para a identificação do

perfil sociolinguístico dos missivistas:

Critérios gerais para análise

1) Segmentação

2) Junção

3) Modernização

4) Expansão Quadro 1: Critérios gerais para análise

As cartas foram agrupadas de acordo com os remetentes e seguindo os quatro

aspectos de edição citados anteriormente: junção/segmentação, modernização e

expansão. Os critérios dispostos quadro 1 foram ordenados conforme o grau de

relevância na caracterização do perfil social dos missivistas. Levaram-se em

consideração as observações já feitas por Barbosa (1999) e Marquilhas (1996), que

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71

atestam a segmentação e junção vocabular como um dos pontos que evidenciam as

mãos inábeis. Por isso, esses dois aspectos foram ordenados em primeiro lugar,

seguidos pela modernização e expansão como critérios complementares.

Para a segmentação e junção de vocábulos, observou-se o limite silábico e

vocabular das palavras selecionadas pelo E-dictor, a fim de salientar os contextos de

ocorrência das mesmas nas cartas do Jayme e da Maria. Segundo Marquilhas (1996), a

hipersegmentação é um critério que serve para demonstrar o grau de habilidade do

indivíduo com textos escritos, pois – conforme Barbosa (2005) – o fato de haver uma

segmentação que não corresponde à norma, pode apontar a familiaridade do sujeito com

a escrita.

O segundo critério adotado na análise foi a modernização, já que esse é um

aspecto que mostra as diferenças grafemáticas por parte dos missivistas. Apesar de o

programa E-dictor ter agrupado todas as manifestações gráficas no critério

modernização, preferiu-se nesse trabalho separar os vocábulos segundo duas

características: desvios grafemáticos e etimologização. Os desvios grafemáticos são

importantes indícios para traçar o grau de letramento de um indivíduo, pois é um fator

que pode indicar o contato que ele tem com textos escritos. Através da análise dos

traços gráficos que aludam a aspectos fonético-fonológicos da língua oral da época, é

possível identificar o nível de domínio da escrita por parte do autor do texto. Por essa

razão, tornou-se necessário observar os tipos de desvios de grafia presentes nas cartas

ressaltando as características que possam relevar a transposição da língua oral para a

escrita, o que já seria um indício de que o indivíduo que as realizasse com maior

frequência teria menos contato com a escrita, logo seu grau de letramento seria menor.

Ainda dentro desse grupo de palavras que foram modernizadas, encontram-se as

que são etimologizadas ou pseudo-etimologizadas. Na língua portuguesa, mesmo no

período medieval em que havia forte influência da oralidade na escrita e transcrições de

natureza grafo-fonética, encontravam-se termos que faziam alusão à etimologia helênica

ou latina da palavra. Já nos períodos mais recentes da língua, como atestam os dados de

Barbosa (1999) em análise feita com cartas comerciais, percebe-se que, mesmo com

manuais de escrita de diferentes tipos de textos, sobretudo epistolares, ainda havia

presença de termos que remetiam à etimologia das palavras – ou uma tentativa de

etimologização – presentes nos textos.

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72

Até as bases da ortografia de 1885, de Gonçalves Viana

e Vasconcellos Abreu, e a efetiva comissão de 1911, as

grafias etimológicas, ou pseudo-etimológicas,

imperaram na língua portuguesa. Barbosa (BARBOSA,

2005, p.30)

Como se vê no trecho acima, até o começo do século XX, vigoravam textos com

grafias etimologizantes ou pseudo-etimologizantes (tentativas errôneas de

etimologização) na língua portuguesa. É de se esperar que essa tradição gráfica se

estendesse por algumas décadas além da vigência de 1911, conforme atesta Barbosa

(1999) ao observar que a etimologização era um recurso utilizado por redatores do

século XIX para se mostrarem mais letrados. O conhecimento da origem da palavra

utilizada no texto demonstrava mais domínio estilístico que valorizava a escrita. Essa

afirmação está de acordo com a análise feita com base nas cartas da família Ottoni

trocada entre o casal Barbara e Cristiano no final do século XIX (BARBOSA, 2005).

Nessas missivas, observa-se que a esposa de Cristiano Ottoni, Barbara, recorre menos

ao uso de palavras de natureza etimologizada, não tendo, além disso, um arcabouço

variado de vocábulos desse tipo. O marido, em contrapartida, utilizava com mais

frequência uma gama maior de palavras de origem latina, cometendo, ainda, menos

equívocos. Em uma breve análise, Barbosa (2005) constatou que o marido Cristiano

Ottoni, através de evidências gráficas referentes não só a etimologização, como a

variação grafemática, tinha mais domínio da norma escrita, ou seja, apresentava um

grau de letramento maior que sua esposa. Ela, ao que parece, detinha uma cultura

mediana: sabia ler e escrever mais não tinha contato com textos formais.

Por essa razão, separaram-se as etimologizações, uma vez que essas trazem

consigo a informação de que o indivíduo que as utiliza, no mínimo, tem algum contato

com textos escritos, o que pode ser uma importante evidência para a caracterização do

perfil sociolinguístico dos missivistas.

Por fim, o último critério analisado foi a expansão, que se refere a termos que

precisaram ser desenvolvidos, ou seja, palavras que apareciam no texto em forma de

abreviaturas. Embora essa questão seja colocada em Marquilhas (1996) como um ponto

que pode não ser tão eficaz na identificação de mãos hábeis e inábeis, dada a repetição e

pouca variedade das abreviaturas, optou-se por fazer um levantamento de todas as

ocorrências desse tipo que ocorreram nas cartas. Por esse não ser um aspecto tão

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relevante na descrição do grau de letramento dos remetentes, colocou-se em último

lugar na hierarquização dos critérios levantados para a análise.

A seguir os critérios serão dispostos de maneira geral e, nas seções seguintes,

serão apresentadas as análises de cada um deles acompanhados de exemplos.

3.4. A análise das formas linguísticas submetidas a critérios de

edição

Na tabela (3) a seguir consta o resultado da quantificação das formas linguísticas

que sofreram algum tipo de intervenção no processo de edição. Foram quantificados os

seguintes recursos: segmentação/junção, desvios grafemáticos, etimologização e

abreviatura. Foram selecionadas 1353 palavras correspondentes a esses critérios.

Na primeira coluna foram dispostos os parâmetros de medição utilizados para

apurar o grau de letramento dos missivistas, de forma que [-] domínio da escrita implica

em números mais elevados de segmentação/junção e desvios grafemáticos, ao passo que

[+] domínio da escrita resulta em frequência maior de etimologização e abreviatura.

Nas colunas seguintes são apresentados as ocorrência dos critérios nas cartas de

Jayme e Maria, como pode ser observado a seguir.

Na quantificação geral das intervenções feitas durante o processo edição,

verifica-se, na tabela 3, uma discrepância significativa no número de palavras analisadas

segundo esses critérios nas cartas do Jayme e da Maria. Foram localizados 290 dados

Critérios Jayme Maria Total

[-] domínio de

escrita

Segmentação /

Junção

21

8% 255

92% 276

Modernização

(grafia)

126

14% 748

86% 874

[+] domínio de

escrita

Modernização

(etimologização)

122

73% 45

27% 167

Expansão

(abreviaturas)

21

58% 15

42% 36

Total 290 - 100% 994 - 100% 1353

Tabela 1: Distribuição geral dos critérios nas cartas do Jayme e da Maria

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74

nas missivas do noivo e 994 nas da noiva. Esse resultado evidencia um número

significativo de intervenções no processo de modernização das cartas de Maria. Os

resultados da modernização da grafia demonstram que Maria apresenta mais desvios

grafemáticos do que o Jayme – 86% contra 14%. Foram encontrados, nas cartas da

Maria, 748 desvios de grafia e nas do Jayme, apenas 126.

Em relação à segmentação e junção das palavras encontradas nas missivas pode-

se dizer que a Maria apresenta 255 dados referentes a esse critério – o que corresponde a

92% - enquanto que o Jayme, apenas 21 (8%).

Esses dois critérios analisados – segmentação/junção e desvios grafemáticos – já

apontam a Maria como sendo uma pessoa com menos domínio da escrita, já que a

frequência de dados correspondentes a esses aspectos são maiores do que as observadas

nas cartas do Jayme.

Outro resultado que reforça tal postulação está relacionado ao controle das

etimologizações. Nesse caso, ao contrário do observado na segmentação/junção e nos

desvios de grafia, quanto maior a presença de termos etimologizados maior o grau de

letramento do informante. Na tabela verifica-se que Jayme apresenta 73% de dados (122

palavras etimologizadas) e Maria apenas 27% (45 palavras). Tal aspecto será melhor

discutido mais adiante.

O número pouco expressivo de abreviaturas que foram expandidas no processo

de edição e a proximidade numérica entre os remetentes (21 dados de Jaime e 15 de

Maria) não nos pareceu relevante para referendar a hipótese da diferença entre a

habilidade com a escrita dos dois informantes.

No geral, esses resultados quantitativos preliminares já são claros em mostrar

que em termos escalares Jayme apresenta em sua escrita mais evidências do seu maior

contato com variados textos e modelos de escrita e, consequentemente, o seu maior grau

de letramento se comparado com o perfil de escrita de sua noiva. Maria, por sua vez,

não demonstra ter muito domínio da norma escrita, visto que comete mais desvios

referentes à segmentação e à grafia das palavras. A presença significativa de palavras

latinizantes nas cartas de Jayme, mesmo que nem sempre o missivista seja feliz nessa

tentativa de se aproximar dos vocábulos mais próximos dos originais gregos e latinos,

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75

demonstra grande contato de Jaime com o texto escrito e sua preocupação em parecer

mais letrado.

A seguir, será analisada de maneira pormenorizada cada um dos critérios

adotados para mensurar o grau de letramento e suposta escolarização dos remetentes.

3.4.1 Segmentação/Junção24

Observando o número de dados retirados das cartas da Maria e comparando-os

com os encontrados nas cartas de Jayme, percebe-se que as missivas de Maria

apresentam maior incidência de vocábulos que sofreram algum tipo de segmentação

e/ou junção de sílabas ou palavras. Esse resultado, como mostrado anteriormente, já

indicaria, que a noiva possuía um grau de letramento menor que seu companheiro,

embora o Jayme também apresente esses processos. Nesses casos, como afirma Oliveira

(2009, p. 163), o escrevente tem uma percepção da fala como um contínuo fônico que se

reflete na escrita. Há, no entanto, diferenças significativas relacionadas à frequência das

junções e segmentações identificadas nas cartas do noivo e da noiva e ao tipo de

vocábulos envolvidos nesses processos. Os exemplos a seguir apresentados na tabela

ilustram a diferença apontada entre os missivistas nesse quesito.

A tabela a seguir apresenta todos os casos de junção e segmentação encontrados

nas cartas de Jaime, indicando-se o dado na versão original, seguido por todas as etapas

da edição (junção, segmentação e modernização). Na última coluna da tabela, tem-se o

número total de ocorrências da forma editada:

Dado Junção Segmentação Modernização Frequência

1 ati ________ a ti 2

2 sentil-o ________ senti lo senti-lo 2

3 a onde aonde ________ 1

4 bei- jal-as bei-jal-as ________ beijá-las 1

5 conhecela ________ conhece la conhecê-la 1

5 demolil-o , demolil-o, demoli-l-o, demoli-lo, 1

6 dizerte ________ dizer-te 1

7 enalteceme ________ enaltecer me enaltece-me 1

24 Estão sendo considerados segmentação e junção quaisquer desvios quanto à separação silábica do

vocábulo segundo a grafia moderna.

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76

8 extasiarte ________ extasiar te extasiar-te 1

9 falarte-ei ________ falar te ei falar-te-ei 1

10 fazme ________ faz me faz-me 1

11 guardal-a ________ guarda-la guardá-la 1

12 informarte ________ informar te informar-te 1

13 ouvil-os ________ ouvi los ouvi-los 1

14 pagal- as pagal-as paga-l-as pagá-las 1

15 resta-se restase ________ Restasse 1

16 vel-a ________ ve la vê-la 1

17 vel-as , vel-as, ve-l-as, vê-las, 1

18 se quer sequer ________ 1

É possível perceber na análise da tabela que todas as ocorrências de

segmentação e junção nas cartas do Jayme aconteceram sempre em função do pronome

objeto em posição de ênclise ou mesóclise – à exceção de ati e a onde. O noivo

sistematicamente junta o pronome ao verbo. O remetente, portanto, alterna entre a

junção e a separação do pronome clítico ao verbo talvez influenciado pela característica

dessa partícula que é um clítico que pode se deslocar de posição (CAMARA JR, 1970,

[2006]).

23) “voce sabe perfeitamente que | só ati é que eu amo, tú sabes que só ati | é que

pertenço” (Jayme/Maria – 19/01/1937)

24) “sinto-me feliz, meu amor só a ti | pertence” (Jayme/Maria – 19/01/1937)

25) “ou então pareço ouvir teus labios a dizer-me que tam- | bem sentes saudades

minhas ou pareço ouvil-os | suplicantes a pedirem beijos [...]” (Jayme/Maria –

20/08/1936)

26) “Não posso informarte quando podemois | conversar. mais farei o possível para

| ser o mais breve” (Jayme/Maria – 19/01/1937)

27) “Espero dentro em breve ver-te novamente ao meu | lado [...]” (Jayme/Maria –

25/08/1936)

Destaca-se ainda que Jayme, embora tenha poucos dados referentes à

segmentação e junção (21 dados apenas), apresenta em suas missivas duas maneiras de

grafar a preposição – a – seguida pelo pronome de segunda pessoa ti: ati e a ti. Foram

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localizadas duas ocorrências de ati em uma única missiva, como pode ser observado nos

exemplos (23) e (24). No caso de me e te foram identificados também usos variáveis:

presença de hífen e junção do clítico ao verbo – ouvil-os – e ausência de segmentação

do pronome com a forma verbal – fazme. Vale ressaltar que as segmentações/junções

indevidas nas cartas de Jaime com os clíticos me e te ocorrem em poucos vocábulos,

sendo observados em verbos pouco usuais nas cartas, como enalteceme e informate. Já

o pronome -lo e suas variantes sempre aparecem segmentados equivocadamente.

Nas cartas de Maria, por outro lado, foi identificado um número bastante

significativo de junções/segmentações no processo de modernização (255 ocorrências).

A tabela a seguir reproduz apenas os 50 primeiros dados tendo em vista o número de

ocorrências25

:

Dado Junção Segmentação Modernização Frequência

1 tam bem tambem ________ também 11

com migo commigo ________ comigo 10

de pois depois ________ 10

a qui aqui ________ 8

5 a sim asim assim 6

a te ate ________ até 5

au- guma au-guma ________ alguma 5

a mor amor ________ 4

a quele aquele ________ 4

10 a té até ________ 4

aminha ________ a minha 4

com tigo comtigo ________ contigo 4

a braços abraços ________ 3

a cabar acabar ________ 3

15 a quela aquela ________ 3

atua ________ a tua 3

com binar combinar ________ 3

com- formar com-formar ________ conformar 3

deu ________ de eu 3

20 Domi- ngo Domi-ngo ________ Domingo 3

m- uito m-uito ________ muito 3

medar ________ me dar 3

melevantei ________ me levantei 3

a borecido aborecido ________ aborrecido 2

25 a cabado acabado ________ 2

25 A tabela completa encontra-se em anexo.

Page 78: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

78

a cabares acabares ________ 2

a inda ainda ________ 2

a legria alegria ________ 2

a onde aonde ________ 2

30 aumedico ________ au medico ao médico 2

chora- ndo chora-ndo ________ 2

com tente comtente ________ contente 2

com verça comverça ________ conversa 2

da quela daquela ________ 2

35 em velope emvelope ________ envelope 2

madeitar ________ ma deitar me deitar 2

memandace ________ me mandace 2

memandou ________ me mandou 2

na quele naquele ________ 2

40 o fendeu ofendeu ________ 2

orecado ________ o recado 2

pa- ssando pa-ssando ________ passando 2

sem pre sempre ________ 2

sevoce ________ se voce se você 2

sieu ________ si eu se eu 2

tepesso ________ te pesso te peço 2

vou menbora voumenbora voume enbora vou-me embora 2

a indanão aindanão ainda não 1

a legre alegre ________ 1

50 a legrou alegrou ________ 1

Nessa listagem, mesmo que parcial, percebe-se que Maria, diferentemente de

Jaime, apresenta diferentes tipos de junções e segmentações. Um uso bastante

recorrente da missivista é a separação do resto da palavra da vogal inicial de vocábulos

iniciados por “a” e “o”: alegria por a legria, aquele por a quele e ofendeu por o fendeu.

Aparentemente, Maria hesita no reconhecimento do limite vocabular de palavras

iniciadas por vogal, segmentando como se houvesse um artigo definido. A mesma

incerteza ocorre quando há semelhança entre parte da palavra e certas preposições como

em, com, na, etc Isso ocorreu em: em com tra, com tinua, sieu e na quele. Há casos,

entretanto, como em pramin, em que a missivista une o que deveria estar separado. Tais

incertezas constantes quanto ao limite vocabular na escrita evidenciam que Maria tinha

pouco domínio da escrita, uma vez que transpõe para escrita traços de oralidade o que é

notável também em vou menbora. Outro aspecto que ratifica tal comportamento da

remetente é a separação silábica que faz das palavras, desvio que, Jayme não comete.

Page 79: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

79

Há dados em que a noiva isola consoantes, como em m-uitos e gr-aças, por não ter

noção da segmentação das palavras e por não estar em constante acesso com textos

escritos.

Nas missivas de Maria há muitas ocorrências de junção e segmentação e, ao

contrário do que ocorre nas cartas do Jayme, esse tipo de desvio relativo ao domínio nas

fronteiras silábicas e vocabular é frequente nas correspondências da noiva – o que já

pode indicar o menor grau de letramento dela em relação ao noivo.

Outro diferencial entre as missivas da Maria e do Jayme, no que diz respeito à

segmentação e junção, é o fato de ela juntar o pronome enclítico e proclítico ao verbo

com frequência. Nas cartas do Jayme, como foi visto anteriormente, a junção só ocorre

com o pronome posposto ao verbo e, mesmo assim, com baixa frequência em vocábulos

menos usuais. Nas cartas da Maria esses dois processos são recorrentes seja qual for a

posição do pronome, como se pode ver nos exemplos (28) e (29), respectivamente,

pergunto-me e mezango. Vale destacar que, no exemplo (28), pouco antes do dado

selecionado como um exemplo de junção, vê-se em mandou-me o verbo devidamente

separado do clítico pelo hífen. Isso parece demonstrar que a noiva não tinha segurança

quanto à segmentação das palavras e a escrita formal, o que a levava a alternar grafias

similares.

28) “[...] levei o | dia inteirinho chorando muito | que a D. Carmen mandou-me | eu

madeitar ella perguntome [...] (Maria/Jayme – 12/01/1937)

29) “Eu não mezango com | voçe [...]” (Maria/Jayme12/01/1937)

30) “Que esta te vá encontrar um pouco melhor | do resfriado que e que todos os teus

estejão pa- | ssando bem, eu os meus vamos bem graças a Deus.” (Maria/Jayme

– 13/10/1936)

3.4.2. Desvios grafemáticos26

26 Para fins de sistematização, neste trabalho estão sendo considerados desvios grafemáticos as variações

na escrita que difiram da grafia moderna, excetuando-se os casos relativos à acentuação. Além disso,

foram abarcadas neste grupo as palavras cuja variação é meramente fonética – correspondendo a uma

transposição da língua oral para a escrita, como, por exemplo, “quzer”.

Page 80: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

80

Os desvios grafemáticos foram contabilizados separadamente, ou seja, não

foram incluídos os casos de segmentação e junção. A ausência do acento gráfico não foi

considerada como desvios grafemáticos, uma vez que ambos os remetentes não

costumam usá-la com rigidez, sendo, por isso seria desnecessário analisar esse aspecto

para fins de diferenciação dos remetentes.

A maior parte dos desvios grafemáticos encontrada nas cartas do Jayme parecem

provenientes de certa insegurança quanto ao sistema ortográfico vigente com uma

escrita um tanto fonética. Os desvios ocorrem principalmente por uma tentativa, comum

na fase de alfabetização, de criar uma biunivocidade grafema-fone, como se pode

observar em: dansei, fantazia, durmi e constitue. Embora essa questão revele algo sobre

o perfil sociolinguístico dos noivos, a sua presença na escrita não é o fator mais

eficiente para mensurar o grau de letramento dos missivistas, mas sim os tipos de

fenômenos observados e a frequência com que os mesmos ocorrem.

Quando se faz análise de qualquer material grafemático

pretende-se averiguar a relação entre o respectivo sistema

grafemático e o sistema fonológico ou, se possível, o grau

de correspondência entre as unidades das formas escrita e

falada da língua nessa época. (MAIA, 1986)

As cartas de Maria apresentam aspectos que evidenciam uma aquisição irregular

da escrita, pois há dados – como o deslocamento de /r/ na posição de coda – que,

segundo Marquilhas (1996), é uma característica de mãos inábeis:

31) “voçe pregunta | au neuzinho o que elle falou com | elle.” (Maria/Jayme –

12/02/1937)

Nesse trecho do exemplo (31), percebe-se que a Maria troca a consoante r de

posição – que originalmente deveria aparecer na coda – ficando, em vez CVC, CCV.

Isso ocorre também com a forma prefeita por perfeita.

A insegurança da missivista se mostra por um processo inverso que ocorre em

registar por registrar, desfazendo o encontro consonantal de CCVC para CVC:

(...) a ortografia irregular de formas com cadeias de

consoantes que incluam /r/ constituem a característica

mais recorrente das mãos inábeis seiscentistas. O traço

não é histórico, nem específico da escrita do português.

Entre inábeis franceses de 10 anos dos séculos XIX e XX

observou-se igual comportamento, descrito como

Page 81: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

81

“fenômeno de deslocação na ordem das letras,

especialmente do r, deslocado (...)”. Por outro lado, o

traço não é específico da aprendizagem da escrita, porque

entre crianças que adquirem o português como primeira

língua, há “trilhões de problemas” relacionados com a

produção da vibrante simples na posição silábica.

(MARQUILHAS, 1996, p. 238-239)

Embora o corpus utilizado por Marquilhas seja do português setecentista (mais

antigo que o material em análise), o noivo não apresenta tal fenômeno em sua escrita.

Nesse sentido, comete menos desvios e alternâncias grafemáticas em seu texto, como já

foi atestado pelas frequências brutas apontadas na tabela 2.

A seguir, serão descritos alguns fenômenos grafo-fonéticos que podem

evidenciar a transposição para a escrita de aspectos da pronúncia dos sons da fala. A

forte presença dos desvios mostra a falta de conhecimento do sistema ortográfico do

português e pouco contato dos remetentes com textos escritos. A proposta ainda é

identificar do grau de letramento dos remetentes por meio da análise desses desvios

encontrados nas suas cartas. Marquilhas (1996) aponta esse reflexo da fala na escrita:

O domínio da escrita alfabética implica a captação de um

princípio fonográfico segundo o qual as realizações orais

são sucessões lineares de segmentos consonânticos e

vocálicos. Pelo mesmo princípio, a língua escrita oferece

uma possibilidade de espelhamento dessa organização

fonológica, porque para segmentos individuais, há sinais

gráficos equivalentes os quais também se traçam numa

sequência linear. A aquisição da escrita alfabética exige

assim, junto dos iniciados, a emergência daquilo a que se

chama uma “consciência fonológica”, que lhes permite

segmentar as unidades da língua em consoantes e vogais.

Dessa forma, analisar os aspectos fonético-fonológicos é importante para

verificar o grau de familiaridade dos remetentes com a escrita, por isso foram dispostos

alguns pontos que serão discutidos a seguir.

3.4.2.1. Monotongação e ditongação

No corpus analisado, é possível identificar outros fenômenos fônicos que foram

transpostos da fala para a escrita fornecendo indícios do português popular brasileiro no

início do século XX. A tabela abaixo mostra que tanto a Maria quanto o Jayme

Page 82: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

82

apresentam dados de monotongação e ditongação, tendo a noiva uma ligeira

superioridade no número de ocorrência desses processos.

Ditongação Monotongação

Maria dezeijo desejo perguntome perguntou-me

esteije esteje troçe Trouxe

veijo vejo queras Queiras

ou brigado obrigado

Jayme passeiando passeando troçe Trouxe

Nesse fragmento a seguir, destaca-se a palavra em negrito passeiando porque o

Jayme coloca um ditongo onde não há.

32) “[...] eu | gosto de sonhar contigo, mais é quando estamos juntos | passeiando,

sentindo o calor de teus braços nos meus, | ouvir a tua voz sublime, colher de

teus labios o néctar | de meus desejos em teus beijos [...]” (Jayme/Maria –

20/04/1937)

No exemplo (33), percebe-se que a remetente faz uma ditongação no verbo,

deixando-o na forma esteije (por esteje). Além disso, chama a atenção nesse fragmento

a variação de formas no mesmo trecho. Nota-se a presença do mesmo verbo escrito sem

a ditongação – esteje – o que mais uma vez corrobora com a hipótese de que Maria é

mais insegura quanto a grafia das palavras do que seu noivo.

33) “Espero que ao receberes esta estejes passando bem | de saúde e que os teus pais

esteije mais cal- | mos com você” (Maria/Jayme – 14/02/1937)

3.4.2.2. Alternância entre [e] e [i] e entre [o] e [u]

Essa flutuação entre as variantes [e] e [i], [o] e [u] é resultado de transformações

fonéticas em posição átona e de restaurações eruditas ou semi-eruditas. Teyssier (1980),

sobre o português europeu, afirma que essas vogais átonas [e] e [o] em variação com [i]

e [u] datam do século XVIII, e foram influenciados pela ausência de uma ortografia

oficial.

Esse tipo de desvio grafemático reflete a oralidade, pois as variantes gráficas

entram em conflito com as representações fonético-fonológicos, gerando essa flutuação

na escrita. É o que pode ser observado na tabela abaixo:

Page 83: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

83

Maria Jayme

Defiçel difícil irrevugavel irrevogável

Devi deve Constitue Constitui

Duer doer durmente Dormente

Estante instante durmi Dormi

Intrega entrega enesquecível inesquecível

Iscondido escondido escretorio Escritório

Podece pudesse

Recibí recebi

Peor pior Tabela 2: Alternância entre e e i e entre o e u

Nas cartas do casal, percebe-se que ambos fazem essa variação das vogais átonas

pretônicas e postônicas, sendo, no entanto, tal flutuação mais recorrente nas da Maria27

– com 9 ocorrências – do que nas do Jayme – com 6 ocorrências.

Dentre os vocábulos coletados nas missivas do Jayme, a exceção de constitue –

que apresenta uma vogal átona final – todos possuem uma variação na posição

pretônica. As palavras irrevugavel, durmente e durmi apresentam alteamento da vogal

[o] para [u] e as demais, abaixamento de [i] para [e].

As cartas da Maria apresentam dois dados de palavras cujas vogais que variam

são as postônicas de [e] para [i], sofrendo um alteamento: devi e defiçel, destacando-se

que, no primeiro vocábulo (devi), a vogal que apresenta essa flutuação é a final. Nas

outras palavras, a variação ocorre em posições pretônicas (ocorrendo também em

defiçel), com abaixamento da vogal – estante, peor ([i] > [e]) e em podece ([u] > [o]) e

alteamento em duer, intrega, iscondido e recibí.

3.4.2.3. Nasalização e desnasalização

A nasalização ocorre em apenas um dado nas cartas do Jayme – mendigo >

mendingo –, mas nas cartas da Maria todos os vocábulos coletados sofreram processo

inverso de desnasalização com uma tentativa de representar o ditongo que se realiza

nesses casos com inserção de semivogais representadas pelos grafemas <i> e <o>, como

pode ser observado na tabela abaixo.

Maria Jayme

27 É importante ressaltar que a Maria apresenta mais dados de desvios referente à flutuação das variantes

[e]>[i] e [o]>[u] do que o Jayme, embora tenha bem menos cartas.

Page 84: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

84

bou mendingo

ei quato

maisinha

nei

peissei

quei

tam bei

teis

belicois Tabela 3: Nasalização

34) “[...] voçe nei presizavas pedir pela | carta o meu amor e sego [...]” (Maria/Jayme –

12/01/1937)

35) “Tu telembras da queles belicois no Do- | mingo, eu estou toda marcada

chega-me | duer [...]” (Maria/Jayme – 07/10/1936)

Nos exemplos (34) e (35) retirados das cartas da Maria, percebe-se que ela

representa grafematicamente os ditongos sem a presença da marca de nasalidade. Em

vez de usar a palavra nem, a noiva escreve nei. No segundo exemplo, a Maria fala de

uns beliscões (escrito por ela como beliscois). Nesses dados, Maria não marca a

nasalidade seja com a ausência do til seja com a ausência da consoante nasal de

travamento representada por <m> ou <n>.

Jayme, por outro lado, não apresenta nenhum dado referente a esses que ocorrem

nas cartas de Maria, tendo somente uma palavra que demonstra a transposição da

oralidade para o texto escrito pertinente a esse processo fonético-fonológico em todo o

corpus – mendingo.

3.4.2.4. Síncope de vogais e consoantes

Nesse corpus, no entanto, não só as vogais átonas como também algumas

tônicas e consoantes acabam desaparecendo de alguns vocábulos – sobretudo nas cartas

de Maria. As síncopes são mais frequentes em consoantes nas cartas dos noivos, como

pode ser observado na tabela a seguir:

Maria Jayme

atrite_za a tristeza camo Calmo

com p_ar comprar emora Embora

fr_o frio idal Ideal

Page 85: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

85

lo_ge longe netar Néctar

ma_do-te mando-te istante Instante

ne_ta nesta

tri_te triste Tabela 4: Síncope de vogais e consoantes

Nas cartas da noiva percebe-se que a síncope ocorre de diferentes maneiras,

desde em consoantes pretônicas átonas (trite), tônicas (neta em vez de nesta) até a

supressão da nasalização (loge, mado-te). Pode-se perceber que a noiva realiza mais

síncopes em consoantes na posição de coda. Já nos dados presentes nas cartas de Jayme,

os dados não apresentam simetria com a forma de escrita dele, sobretudo por tais

palavras aparecerem em outros momentos sem que apresentem tal processo fonético.

No exemplo idal (ideal) retirado da carta do Jayme, percebe-se que o noivo

realizou uma síncope da vogal pretônica /e/. A explicação disso, como aponta

Marquilhas (1996) é de que a vogal átona antes realizava-se como /Ɛ/, mas, sofreu uma

elevação, fator que favorece a queda da vogal pretônica.

Em posição tônica, há um exemplo de síncope da vogal /i/ na carta de Maria

(frio em vez de frio) e da semivogal /w/ na de Jayme (camo em vez de calmo). A queda

de vogais tônicas, contrariam a tendência do português, já que o enfraquecimento, e

possível síncope, são comuns em vogais átonas.

36) “Aceita desta que loucamente te | ama muitos beijos e abraços da | tua

noivinha trite” (Maria/Jayme – 12/02/1937)

Nesse exemplo (36) a palavra destacada no fragmento da carta ilustra bem o

processo da síncope – trite em vez de triste – que, como pode ser visto no quadro, é

mais recorrente nas cartas da Maria, apesar de ser encontrada também nas do Jayme.

3.5. Etimologização28

28 As etimologizações, neste trabalho, consiste em todas as manifestações que remetam à origem latina do

vocábulo. Grafias que demonstrem uma tentativa de se aproximar da etimologia da palavra – com a

inserção de “h” ou consoantes geminadas – são contabilizadas como pseudo-etimologizações.

Page 86: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

86

A etimologização é um processo em que se recorre à origem do vocábulo, a fim

de tornar o texto mais pomposo e que faça com que o redator pareça mais letrado. Esse

fenômeno está presente nas cartas de ambos os remetentes analisados, mas observa-se

uma gama maior de vocábulos nas missivas do Jayme, como já mostrou a tabela (1).

Apesar de a etimologização não poder por si só identificar indivíduos mais ou menos

letrados – assim como a abreviatura, muitos casos são mantidos por força do

tradicionalismo – já indica um pouco do perfil social de quem usa. Deve-se atentar, no

entanto, para o fato de que nem todas as palavras grafadas com duplas vogais

remeterem de fato a vocábulos helênicos ou latinos, constituindo uma tentativa de

etimologizar termos aleatoriamente. Em algumas situações, o indivíduo que utilizou

algum desses equivocadamente, na verdade, não é letrado – Barbosa (1999) e

Marquilhas (1996).

Nas cartas de Maria podem-se encontrar três vocábulos que aparentam estar de

acordo com a etimologia dos mesmos: elle (e variações, como ella, pellos), cousa e hia.

Dessas três palavras, o vocábulo hia não está de acordo com a etimologia dela, sendo,

portanto, uma falsa latinização.

Já nas cartas de Jayme, encontram-se inúmeros vocábulos que remetem à origem

latina deles. Embora o noivo também acabe cometendo faltas etimologizações, percebe-

se que ele, além de acertar a maioria, ainda utiliza uma variedade de vocábulos muito

mais ampla que a Maria, como ahi (aí), assumpto (assunto), contacto (contato), estrela

(estrela), ceo (céu), logar (lugar), comprehendes (compreendes), egreja (igreja), etc. É

importante salientar que, dos 46 lexemas, apenas 3 não estão de acordo com a

etimologia das mesmas, por isso esse processo, para esta análise, mostrou-se eficiente,

já que conseguiu, através da observância dos dados, trazer mais indícios sobre o perfil

sociolinguístico dos remetentes.

A seguir estão postos alguns trechos com exemplos retirados das cartas do

Jayme e da Maria:

37) “Só quero tu crêa em mim, porque | não te esqueço se quer um um minuto [...]”

(Jayme/Maria – 12/01/1937)

38) “Meu amor cresce tanto | Que já parece um trophéo | Pois de tanto crescer,

já...” (Maria/Jayme – 30/06/1936)

Page 87: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

87

39) “Cada vez comprehendo melhor, o que seria o | mundo para mim sem você

[...]” (Jayme/Maria – 25/08/1936)

40) “fais mal. as fotografias ainda não estão prontas nois fizemos | mal de deichar

as chapas com elle por que elle e muito m- | ole. (Maria/Jayme – 23/09/1936)

41) “Apesar de ter te visto hontem de manhã não queiras | saber a saudade que

invade meu peito.” (Jayme/Maria – 27/06/1936)

O emprego da etimologização nas cartas de Jaime mostra que ele tem um

contato maior com textos escritos do que a Maria que, no geral, apresenta mais dados de

termos etimologizados relativos ao pronome ele. Jayme, além de apresentar esses

pronomes com as consoantes laterais geminadas, utiliza vocábulos mais refinados e de

menos domínio público29

. É o que se pode observar no exemplo (39) em que Jayme

utiliza a palavra trophéo para se referir ao amor que sente pela noiva. Essa escolha

vocabular por parte do noivo não só indica que ele conhece um maior número de termos

etimologizados, como também tem maior domínio do gênero textual carta de amor, pois

se propõe a selecionar de maneira mais cuidadosa as palavras nas cartas.

Jayme, embora apresente maior frequência de termos etimologizados, também

comete alguns equívocos associados às tentativas de usar palavras conforme suas

origens. Para Marquilhas (1996) e Barbosa (1999, 2005), o uso de termos pseudo-

etimologizantes, ou seja, que não passam de tentativas equivocadas de uso de palavras

que parecem ser etimologizadas, mas não são, é um forte indício de que as pessoas que

os utilizam não possuem mãos hábeis. Neste trabalho, no entanto, leva-se em

consideração a frequência de ocorrências não usuais de termos etimologizados

corretamente, portanto, observar só os vocábulos pseudo-etimologizados – que

correspondem a dois dados nas cartas do Jayme iha e hontem – não daria todo o suporte

para evidenciar a diferenciação dos missivistas quanto a esse aspecto. Vale ressaltar que

Maria apresenta um dado de palavra pseudo-etimologizada, hia, e 7 tipos diferentes de

29 Algumas cartas datadas do final do século XIX e início do XX – família Afonso Pena (Pereira, 2012),

família Pedreira Ferraz Magalhães (Rumeu, 2008) e família Ottoni (Barbosa, 2005) – que já foram objeto

de estudo, também apresentam dados de etimologização com consoantes geminadas nos pronomes, o que

pode indicar que tal vocábulo – ele e suas variantes – talvez fosse de conhecimento geral.

Page 88: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

88

palavras etimologizadas, enquanto o noivo contabiliza nas cartas, nesse último grupo,

um total de 46 dados.

Pode-se observar diante dos dados que há uma diferença entre os remetentes das

cartas em relação ao grau de letramento, pois o Jayme demonstra ter mais conhecimento

vocabular no que remete à etimologia da palavra, fazendo uso, por isso, de um leque

maior de lexemas. Maria, por sua vez, utiliza um número restrito de palavras

etimologizadas, fato esse que já evidencia o menor contato da noiva com textos escritos.

Portanto, a hipótese levantada de que o missivista com maior variedade e ocorrência de

termos etimologizados teria maior domínio da norma escrita está de acordo com os

resultados obtidos com a análise e coleta de dados pertinentes a essa questão,

demonstrando, assim, que o noivo era uma pessoa de cultura mais erudita que a

companheira.

3.6. Abreviatura

As abreviaturas foram elencadas na análise, embora não tenham tido uma

contribuição efetiva para os resultados, visto que ambos – Jayme e Maria – utilizam

esse recurso e os tipos não variam. A frequência de uso de abreviaturas por Maria é

maior, mas com repetição das mesmas mudando apenas seus referentes, como se vê nos

exemplos a seguir:

São

S. Santa

Senhor

D. Dona

Snr. Senhor

Esquema 1: Abreviatura

42) “Lembranças a D. Marieta” (Jayme/Maria – 13/04/1937)

Page 89: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

89

43) “a Thereza sabe que | a jente mora na rua | S. Francisco Xavier (Maria/Jayme –

12/02/1937)

Nos exemplos (43) e (44) aparecem duas abreviaturas, uma retirada da carta do

Jayme em que ele manda lembranças à Marieta tratando-a como dona – nas cartas não

fica claro quem é essa pessoa, mas ao que tudo indica, é alguém que vive próxima à

Maria. No exemplo seguinte, Maria alerta Jayme sobre a Thereza, alguém da família

dele, que residia na rua São Francisco Xavier (que nesse trecho aparece em forma de

abreviatura), no bairro da Tijuca.

3.3. Resultados

As minuciosas descrições acerca das características gráficas presentes nas cartas

dos missivistas já mostram que há uma diferença entre o grau de habilidade dos

missivistas no que concerne às normas da escrita. Apesar disso, não se pode dizer que

os redatores das cartas ocupam posições extremas quanto ao domínio da escrita, já que

ambos apresentam evidências de transposição de aspectos fonético-fonológicos em seus

textos.

Barbosa (2005), para atestar a habilidade dos redatores das cartas da família

Ottoni, fez uso de outros textos da mesma época para que servissem de parâmetros de

avaliação. Neste trabalho, entretanto, não será levado em conta outros textos para

apresentar de maneira sintética como os missivistas podem ser enquadrados no que se

refere ao nível de contato com a escritura textual. Tendo em vista isso, propõe-se um

contiuum, a fim de apresentar as diferenças grafemáticas nos textos dos missivistas

através de uma escala que vai abarcar os seguintes critérios filológicos analisados:

a) Etimologização

Serão observadas as frequências dos termos etimologizados e a variabilidade de

palavras. Além disso, será considerado o grau de acerto na utilização desse aspecto nos

vocábulos.

b) Desvios grafemáticos

Page 90: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

90

Segundo este critério, serão considerados o número de ocorrência e o tipo de

desvios grafemáticos apresentados pelo missivista, conforme descrito na seção 3.4.2.

c) Junção/Segmentação

Além de serem observadas a frequência dessas ocorrências, serão considerados,

para fins de escalonamento, o tipo de desvio cometido. Separar fragmentos de

vocábulos que não sejam fronteiras silábicas, por exemplo, é um desvio que evidencia

que o indivíduo é menos letrado do que o que apresenta segmentações ou junções

indevidas em formas presas.

Page 91: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

91

Maria Jayme

Alta frequência de palavras etimologizadas corretamente;

Ausência de pseudo-etimologizações;

Baixa frequência de desvios grafemáticos

Ausência de segmentação/junção de sílabas ou palavras.

Presença de desvios grafemáticos em baixa ocorrência motivados pela

oralidade a palavras pouco usuais.

Presença de falsas etimologizações em baixa frequência;

Ausência de segmentação/junção de sílabas ou palavras.

Frequência mediana de palavras etimologizadas;

Média frequência de desvios grafemáticos, apresentando algumas oscilações

na grafia de uma mesma palavra;

Média frequência de segmentação/junção de formas presas;

Repetição e pouca variabilidade de etimologizações e presença de pseudo-

etimologizações;

Segmentação/junção de palavras de maneira sistemática tanto em formas

presas quanto em fronteiras silábicas .

Desvios motivados pela oralidade, apresentando muitas oscilações na grafia

de uma mesma palavra;

Baixa frequência de palavras etimologizadas e falsas etimologizações em

grande incidência;

Alta ocorrência de desvios grafemáticos motivados ou não pela oralidade,

com muitas oscilações na escrita de uma mesma palavra;

Alta ocorrência de segmentação/junção de sílabas e palavras Esquema 2: Continuum sobre o grau de letramento dos missivistas

Com base no continuum proposto, pode-se dizer que Jayme, embora apresente

menos desvios grafemáticos e uma gama de vocábulos de origem latina em seus textos,

não é um indivíduo com domínio pleno da norma padrão. Se comparado à Maria, no

entanto, pode-se dizer que o noivo detém um nível de conhecimento relativo a textos

escritos e um maior contato com a norma padrão que a noiva, já que ela apresenta mais

ocorrências de desvios grafemáticos e segmentação/ junção de palavras.

Após resultados da análise, observando os aspectos grafemáticos dos dois

missivistas, é possível chegar a algumas conclusões sobre o perfil sociolinguístico dos

remetentes em questão.

Page 92: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

92

Embora os dois transponham para a escrita marcas de oralidade, percebe-se que

texto de Maria, como afirma Oliveira (2009, p. 152), apresenta “precário conhecimento

formal da escrita”. Nele tem-se uma rica fonte para o estudo do português popular do

início do século XX. Os resultados mostraram que Maria tinha pouca familiaridade com

a escrita, pois se notam erros constantes na grafia de palavras, problemas de

junção/segmentação (ausência/presença de espaço em branco entre palavras), uso

escasso de etimologizações, etc. O uso indevido de vocábulos desnasalizados,

monotongados e ditongados traz para sua escrita fenômenos fônicos como indícios da

norma popular brasileira.

Jayme, comparativamente, utiliza mais termos etimologizados e suas escolhas

lexicais são bastante diversificadas. O que parece demonstrar que ele não só conhecia os

vocábulos, mas sabia do seu peso na escrita formal da época. Pode-se dizer, portanto,

em virtude do maior uso de palavras etimologizadas, que Jayme tinha um relativo

domínio de modelos de escrita, logo mais conhecimento da norma padrão.

Além disso, destaca-se nessa investigação – a fim de identificar o grau de

letramento dos remetentes um em relação ao outro – o aspecto referente à segmentação

e junção de vocábulos. Como já apostou Marquilhas (1996), essa é uma questão

relevante para provar o quão hábil é um indivíduo: o quanto menor o contato com textos

escritos em um registro formal mais equívocos relacionados a esses dois processos são

cometidos pelo escrevente.

Embora abreviatura tenha sido analisada, não foi possível encontrar dados que

pudessem demarcar a diferença cultural entre os remetentes, já que ambos faziam uso

das mesmas formas e com frequência similar.

Dessa forma, conclui-se que a Maria era uma moça com cultura mediana, nos

termos de Barbosa (2005), pois sabia ler e escrever, mas tinha pouco domínio das regras

de escrita. As cartas de Maria seriam uma fonte preciosa para o conhecimento da norma

popular do português brasileiro da primeira metade do século XX. Jayme, por outro

lado, demonstra ter um grau de letramento um pouco maior que a noiva. Não se trata de

um informante completamente escolarizado por também apresentar certos desvios de

grafia e marcas de oralidade em seu texto, mas certamente teve mais acesso aos bancos

escolares que sua noiva.

Page 93: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

93

4. As estratégias em análise

Nesta seção serão apresentados descritivamente os resultados da análise da

variação dos pronomes tu e você nas cartas editadas. Levam-se em consideração, em

termos teóricos e na formulação das hipóteses, o aporte variacionista laboviano (WLH,

1968) e os trabalhos anteriores acerca da alternância de formas pronominais de segunda

pessoa, como Marcotulio (2008), Rumeu (2008) e Machado (2006), Lopes & Machado

(2005). O objetivo é descrever o total das ocorrências das formas de segunda pessoa

tendo em vista os diferentes contextos morfossintáticos, privilegiando, contudo, a

posição de sujeito.

Para esta análise linguística, os dados foram submetidos, ao programa estatístico

Goldvarb X, a fim de observar as frequências brutas das formas de 2ª pessoa nas cartas.

A seguir, serão apresentados descritivamente os grupos de fatores postulados e a

estratégias linguísticas analisadas neste estudo, exemplificando com fragmentos

retirados das missivas.

4.1. Os grupos de fatores

a) Estratégias de segunda pessoa analisadas

Embora a ênfase da análise linguista esteja na variação entre os pronomes tu e

você na posição de sujeito, foram levantadas as formas verbo-pronominais relativas a

cada um dos dois paradigmas. Nesse sentido, consideraram-se no paradigma de tu: o

pronome pessoal do caso reto que exerce função de sujeito (tu), os pronomes

complementos não preposicionados (te), os pronomes oblíquos preposicionados (de ti,

para ti, contigo, entre outros), os pronomes possessivos (teu(s)/tua(s)) e as desinências

verbais correspondentes à segunda pessoa do singular, excluindo os casos de

imperativo. Para o controle do paradigma de você e de formas a ele relacionados, foram

levantadas, do mesmo modo: o pronome pessoal na função de sujeito (você), os

pronomes complementos não preposicionados (você, lhe, o), os pronomes

complementos preposicionados (para você, com você, entre outros) e as desinências

verbais correspondentes à terceira pessoa do singular, excluídos os casos de imperativo.

Page 94: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

94

Seguem alguns exemplos das formas analisadas tendo em vista o contexto

morfossintático controlado:

I – Pronome reto

1) “eu acho que voce não a recebeu si voce ti | vece a recebido voce merespondia”

(Maria/Jayme – 13/10/1936)

2) “tú tambem comprehendes, que te amo muito, [...]” (Jayme/Maria – 20/04/1937)

II – Pronome possessivo

3) “eu | quando recebi as tuas cartas fiquei tan contemte que [...]” (Maria/Jayme –

12/09/1936)

4) “Deste que jamais lhe esquecerá, e que viverá somente para o seu amor”

(Jayme/Maria – 19/06/1936)

III – Pronome complemento preposicionado

5) “[...] Eu tenho sonhado todas as noites com voce” (Maria/Jayme – 12/09/1936)

6) “Sinto que em ti é que esta toda a minha existencia, por isso quero-te muito

para poder viver eternamente, sempre em teus braços recebendo as caricias tuas,

que tanto me acalentam e me dão vida.” (Maria/Jayme, 2-03-1937)

IV – Pronome complemento sem preposição

7) “eu estou | muito triste com isto, eu pesso-te para [...]” (Maria/Jayme –

13/10/1936)

8) “a luz de teu olhar e que ilumina a estrada por aonde sigo para encontrar voce”

(Jayme/Maria – 22/09/1936)

V – Forma verbal não imperativa

9) “[...] e grande o nosso sofrimento, mais ainda maior | é o nosso amor, sei

perfeitamente que me Ø amas” (Jayme/Maria – 20/04/1937)

10) “voce manda dizer em que trem Ø vem para eu ir [...]” (Maria/Jayme –

29/09/1936)

A hipótese para o controle dos diferentes subtipos verbo-pronominais de 2ª

pessoa foi formulada a partir de alguns estudos sobre o tema com base em cartas

pessoais. Os trabalhos de Lopes (2011) Marcotulio (2008), Rumeu (2008) Machado

Page 95: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

95

(2006), Barcia (2006) mostraram que a inserção da nova forma (você) no sistema

pronominal do português brasileiro não se deu de maneira regular e simétrica em todos

os contextos morfossintáticos. Há contextos em que houve maior resistência à entrada

de formas do paradigma de você, persistindo as formas associadas a tu. Estão, nesse

caso, os pronomes complementos sem preposição, os verbos não imperativos e

pronomes possessivos. Por outro lado, os complementos regidos por preposição e o

pronome sujeito pleno foram os contextos que mais favoreceram à implemenntação de

você e suas respectivas formas. Em virtude dessa postulação, faz-se necessário mapear

os pronomes presentes nas cartas, observando as frequências de uso das estratégias ao

interlocutor utilizadas.

c) Realização plena ou nula do pronome sujeito

Diversos estudos anteriores, como os de Lopes e Machado (2005), apontam que

a nova forma pronomial você adentrou no paradigma pronominal do português

brasileiro inicialmente na posição de sujeito. Duarte (1993) mostra que o preenchimento

do sujeito está relacionado com a expansão do uso de você nessa posição, tendo um

crescimento acentuado na sua frquência em finais da década de 1930. Conforme

análises de Machado (2006), Rumeu (2008) e Souza (2011), esse você ocorre

preferencialmente pleno.

A hipótese que norteia esse grupo é a de que a expressão de você está

relacionada à posição preenchida do sujeito, sendo por volta da década de 1930 que o

uso da nova forma teria suplantado o pronome tu.

Nos exemplos a seguir retirados das cartas dos missivistas, observam-se

sentenças em que o sujeito aparece nulo – representado pelo símbolo Ø – e preenchido

(ambos destacados em negrito):

11) “Espero que ja Ø estejas um pouco refeita do golpe por | Ø que passaste.”

(Jayme/Maria – 27/06/1936)

12) “[...] tu melhor do que | ninguém Ø comprehendes a nossa dor, a saudade que

invade | nossos corações é imensa, [...]” (Jayme/Maria – 29/09/1936)

13) “[...] voce dise para eu não te esperar na Estação mais eu quero te esperar | voce

manda dizer em que trem Ø vem para eu ir [...]” (Maria/Jayme – 29/09/1936)

Page 96: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

96

d) Gênero do missivista

Soto (2001) e Rumeu (2008) mostraram, com base em cartas pessoais dos

séculos XIX e XX, que as mulheres utilizavam com mais frequência a forma você do

que os homens. As autoras defendem, pois, que a inserção desse novo pronome teria

ocorrido, sobretudo, em virtude do seu uso por parte do gênero feminino. Esse fato vai

ao encontro do postulado de Labov (1990) acerca do gênero. Como discutido

anteriormente, o autor defende que a mulher tende a utilizar as formas padrão em

detrimento das estratégias estigmatizadas, por isso atuariam diretamente na manutenção

ou inclusão de novos itens na língua.

A hipótese para o controle do gênero, no nosso caso, é a de que a mulher –

Maria – utilizava preferencialmente você não só por ser uma estratégia menos invasiva,

mas também pelo fato de tal forma estar se implementando, no período das cartas, como

a estratégia de 2ª pessoa preferida no português popular brasileiro.

e) Concordância verbal

A alternância das formas de tratamento tu e você já é verificada em trabalhos

com corpora epistolares diacrônicos do final do século XIX (LOPES E MACHADO,

2005; MARCOTULIO, 2008; RUMEU, 2008, entre outros tantos). São raros,

entretanto, os estudos que analisam a concordância verbal entre sujeito e verbo nesses

materiais de sincronias passadas, pois, como a maior parte da documentação foi

produzida por pessoas ilustres, a concordância é quase sempre categórica. Os casos de

ausência de marca desinencial no verbo, principalmente com o pronome tu, começam a

aparecer na documentação escrita, ainda timidamente, na segunda metade do século XX

(MACHADO, 2011). A eventualidade da ausência de marcas com as formas tu e você

em cartas do início do século XX poderia estar relacionada à instabilidade do sistema

pronominal em formação e o nível de escolarização dos nossos remetentes. A hipótese

norteadora, nesse sentido, é a de que a forma tu seguida de marca desinencial zero (tu

está) e o pronome você acompanhado de verbo com desinência de 2ª pessoa (você estás)

seriam bastante raros em textos escritos de pessoas que tinham grande contato com

modelos de escrita no início do século XX.

Page 97: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

97

O exemplo retirado da carta do Jayme, a seguir, apresenta o pronome tu diante

de um verbo não marcado morfologicamente:

14) “Minha querida, tú não pode avaliar quanto me faz bem este nosso encontro

[...]” (Jayme/Maria – 25/01/1937)

4.2. A análise dos dados

Nesta seção será apresentada a análise descritiva dos resultados referentes ao

paradigma de tu e de você de acordo com os grupos de fatores já citados. O objetivo é

mostrar com os dados e exemplos os contextos de ocorrência dos pronomes estudados.

A tabela a seguir apresenta a distribuição geral das formas de segunda pessoa

nas cartas de Maria e de Jayme separadas pelo contexto morfossintático:

Categoria

gramatical

Maria Jayme Total

Tu Você Tu Você Tu Você

Pronome Reto 19/94

20%

75/94

80%

147/168

88%

21/168

12%

166/262

63%

96/262

37%

Pronome

Possessivo

134/135

99%

1/135

1%

322/360

89%

38/360

11%

456/495

92%

39/495

8%

Pronome

complemento

Preposicionado

12/78

15%

66/78

85%

103/132

78%

29/132

22%

115/210

55%

95/210

45%

Pronome

complemento sem

Preposição

148/159

93%

11/159

7%

195/210

93%

15/210

7%

343/369

93%

26/369

7%

Forma verbal

(não imperativa)

89/102

87%

13/102

13%

144/160

90%

16/160

10%

233/262

89%

29/262

11%

Total 402/568

71%

166/568

29%

911/1030

88%

119/1030

12%

1313/1598

82%

285/1598

18%

Tabela 5: Quadro geral dos tipos de pronomes presentes nas cartas30

30 Nas colunas referentes aos missivistas – Jayme e Maria – somaram se, primeiramente, as formas

pronominais tu e você que ocorriam nas cartas de cada um dos remetentes. Na coluna de total foram

somados os valores globais de tu e você presente nas cartas – nas linhas tem-se a frequência total de cada

categoria gramatical. Na última linha “total” apresentam-se os valores totais de tu e você de cada

missivista e, na última coluna, os de todas as cartas.

Page 98: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

98

Em termos dos resultados globais na amostra de cartas, como se vê na tabela (7),

foram levantados 1858 dados no total, com predomínio de 80% das formas relativas ao

paradigma de tu (1313 ocorrências – 82%) e apenas 285 dados (18%) do paradigma de

você.

Observando as últimas duas colunas da tabela que apresenta o número total de

dados em função de cada subtipo pronominal, nota-se que as formas do paradigma de tu

são as mais produtivas em todos os contextos morfossintáticos controlados com índices

de: 63% contra 37% como pronome reto; 92% contra 8% como pronome possessivo;

55% contra 45% de pronome-complemento preposicionado; 97% contra 3% de

pronome-complemento não preposicionado; e 89% contra 11% de verbos não

imperativos. Como já apontavam trabalhos anteriores – Machado (2006), Rumeu

(2008), Lopes (2011), entre outros – os pronomes possessivos e os pronomes

complementos não preposicionados constituem grupos de resistência à entrada de você

no quadro pronominal brasileiro, sendo, por isso os contextos em que formas do

paradigma de tu são mais altos: 92% no primeiro caso e 93% no segundo.

Com base nesses resultados gerais, levando-se em conta os dados dos dois

remetentes globalmente, não houve diferenças significativas em relação a outros estudos

sobre o tema: as formas relacionadas ao pronome tu mostraram-se ainda bastante

produtivas nas cartas analisadas de fins da década de 30. Ressalte-se que os únicos

contextos em que as taxas de frequência de formas de você apresentaram índices mais

próximos aos de tu foram os pronomes complementos preposicionados: 45% para o

primeiro e 55% para o segundo. Tal comportamento linguístico também reitera o

observado em outros estudos realizados com base em cartas pessoais (cf. RUMEU,

2008; PEREIRA, 2012, entre outros).

Os resultados mais relevantes nesse estudo, contudo, referem-se a diferenças

quanto ao uso das formas pronominais tu e você pelo casal de noivos. Apesar de nos

valores globais, Maria e Jayme apresentarem o emprego mais frequente de formas do

paradigma de tu (64% para a noiva e 88% para o noivo), Maria utiliza muito mais

formas relacionadas ao novo pronome você do que Jayme. O noivo apresenta valores

acima de 70% quando a referência é ao pronome tu em todos os contextos

morfossintáticos controlados. Nas cartas da noiva, por sua vez, os índices de formas

relativas ao paradigma de você superam os de tu nos seguintes contextos: pronome

Page 99: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

99

sujeito com 80% e pronome complemento preposicionado com 85%. Seguem alguns

exemplos retirados das cartas de Jayme, ilustrando alguns contextos mencionados:

15) “Não posso durmir vivo só pensando em | ti e no nosso amor que tantas lagrimas

tem | nos custado, nas minhas horas de insonia fico | meditando o infinito que

tantas ilusões guardo | pareço ver-te numa imagem a chamar-me | e eu na minha

triste ilusão quero alcançar-te | mas tú desapareces” (Jayme/Maria –

24/01/1937)

16) “Tú não deves pensar em bobagens | pense unicamente em nosso amor, descansa

| bem, alivia o teu cérebro [...]” (Jayme/Maria – 19/01/1937)

17) “Mariquinhas... meu amor é todo teu eu pertenço, | somente a ti, é a voce

somente que eu amo, que dedico | toda a minha afeição, quero que tú me queiras

confor- | me eu te quero a ti. (Jayme/Maria – 30/06/1936)

18) “O mundo para mim sem voce, não é um pa- | raiso, e sim um inferno [...]”

(Jayme/Maria – 20/08/1936)

19) “Se voce não matar da saudade | A saudade vae me matar.” (Jayme/Maria –

22/08/1936)

Os exemplos de (15) a (19) já mostram que Jayme tem preferência pelas formas

relacionadas a tu em diferentes posições: pronome reto em (15) “Tú não deves pensar

em bobagens”; pronome-complemento preposicionado em (17); pronome-complemento

não preposicionado em (15) “pareço ver-te”; e possessivo em (16) “meu amor é todo

teu”.

Interessante observar os contextos discursivos que favorecem o emprego do

complemento preposicionado nas cartas de Jaime. Em estudo anterior, Oliveira et alii

(2011), analisando exclusivamente as formas alternantes oblíquas no mesmo corpus,

estabeleceram uma relação do emprego de complementos preposicionados à

proeminência discursiva típica dos objetos indiretos de 2ª pessoa. Os autores mostraram

que o remetente masculino do corpus analisado empregava a preposição +ti

preferencialmente em posição de foco, encabeçando as orações em as estruturas

clivadas, como se sê a seguir:

20) “De ti minha adorada é que eu espero todo o meu ideal, possuindo-te considero-

me o homem mais feliz do mundo” (Jayme/Maria, 23-09-1936)

21) “Sinto que em ti é que esta toda a minha existencia, por isso quero-te muito para

poder viver eternamente, sempre em teus braços recebendo as caricias tuas, que

tanto me acalentam e me dão vida.” (Jayme/Maria, -2-03-1937)

Page 100: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

100

22) “a ti é que depositei | toda a minha confiança, em ti é que vi que estava | preso o

meu futuro” (Jayme/Maria, 06-10-1936)

Na interpretação dos autores o significativo aparecimento dessas estruturas

nas cartas estudadas deu-se pelo fato de que “o emissor visa a dar maior destaque, maior

ênfase ao destinatário, individualizando-o e reforçando sua importância para o sujeito

remetente”. Por essa razão houve forte uso OI-V no gênero epistolar, particularmente,

no subgênero cartas de amor em que o objeto indireto costuma ser o destinatário da

missiva. A anteposição da ordem de V-OI para OI-V e o emprego do objeto indireto no

início da oração seriam motivados por ênfase discursiva.

As cartas de Maria, embora sejam em menor número do que as de Jayme,

apresentam um número maior de ocorrências do pronome você e das formas a ele

associadas. Os exemplos a seguir foram retirados das cartas da noiva:

23) “Eu te espero no Domingo | que e dia 4 na estacão e acho que voce devi vir no

trem das | 8 horas para tua mães não desconfiar voce dis que vai a um passeio

com | um colega e sair as 7 horas de casa que da muito tempo sem vindo [...]”

(Maria/Jayme – 28/09/1936)

24) “manda-me dizer se tua mãe falou au guma cou | sa com voçe do passeio |

Jayme se tua mãe falar com voçe au meu respeito | manda-me dizer.

(Maria/Jayme – 21/09/1936)

25) “Tu telembras da queles belicois no Do- | mingo, eu estou toda marcada [...]”

(Maria/Jayme – 07/10/1936)

Observando os exemplos anteriores – de (23) a (25) –, percebe-se o uso

constante das formas relacionadas a você e a presente variação entre as formas dos dois

paradigmas. Em (23), ilustra-se você como pronome reto: “voce devi vir” e “voce dis

que vai”. Em (24), têm-se casos de pronome-complemento preposicionado: “au guma

cousa com voçe” e “Jayme se tua mãe falar com voçe”. Houve poucos dados de formas

associadas a tu antepostos pela preposição “com” (contigo) nas cartas da Maria, sendo,

no total, só três ocorrências – “vai uma santinha que e Nossa Senhora da Penha para tu

guardares com tigo”. Em relação aos pronomes-complementos não preposicionados, a

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101

exemplo de Jayme, Maria utiliza frequentemente de formas advindas do paradigma de

tu (te), como mostra o exemplo 23 – “Eu te espero”.

Como houve uma relevante diferença entre o comportamento linguístico de

Maria e Jaime no que se refere, principalmente, aos pronomes na posição de sujeito

(pronome reto), serão apresentados a seguir os resultados relativos a essa função

distinguindo os casos de preenchimento e não preenchimento.

4.2.1. O preenchimento do sujeito

Alguns trabalhos – como os de Duarte (1993, 1995), Lopes (2005) e Machado

(2006, 2011) – evidenciam que houve uma mudança de comportamento no

preenchimento do sujeito a partir dos anos 30: a sua realização plena começa a superar o

uso como sujeito nulo. A entrada de você no paradigma pronominal brasileiro ocorreu

por volta desse período segundo esses estudos com base em peças teatrais e cartas

pessoais.

Para mostrar de que maneira a alternância entre as formas pronominais de

segunda pessoa ocorreram nas cartas do casal de noivos na posição de sujeito,

levantaram-se todos os dados referentes ao preenchimento e o não preenchimento do

mesmo, como ilustra a tabela a seguir:

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Jayme/Maria

Casal 1936-37

TU VOCÊ

Nulo Pleno Nulo Pleno

Mulher Maria-Jayme 89/233

38%

19/166

12%

13/29

45%

75/96

78%

Homem Jayme-Maria 144/233

62%

147/166

88%

16/29

55%

21/96

22%

Sub-total31

233/399

58%

166/399

42%

29/125

23%

96/125

77%

Total32

399/524

76%

125/524

24%

Tabela 6: Preenchimento do sujeito nas cartas

A tabela (6) mostra os resultados do preenchimento do sujeito de segunda pessoa

– tu e você – nas cartas do Jayme e da Maria. Em termos dos valores totais, percebe-se

que a ocorrência de tu (pleno ou nulo) é muito maior do que você: 76% contra 24%.

Com relação especificamente ao preenchimento dessa posição, nota-se que o

casal de noivos utiliza tu muito mais nulo do que pleno – 58% contra 42%. O emprego

da forma você apresenta comportamento oposto, pois essa forma aparece

preferencialmente preenchida – 77% contra 23%. Confirmando-se o que se observa em

outros trabalhos, nossos resultados reiteram que você, na posição de sujeito, aparecia

mais preenchido do que nulo. O pronome tu, por sua vez, em razão de ser marcado

morfologicamente, ocorria mais nulo do que pleno.

Em relação ao emprego de tu na amostra, tanto nulo quanto pleno, Jayme utiliza

mais que a Maria – 62% contra 38% e 88% contra 12%, respectivamente. Por outro

lado, o comportamento de Maria em relação a você é o inverso ao que ocorre com o

noivo nos dados que se referem ao pronome tu preenchido, pois ela apresenta uma

maior frequência dessa forma – 78% contra 22%. No que se refere a você nulo, Maria

apresenta valores próximos aos do Jayme, tendo 45% de frequência contra 55% do

noivo. Vale ressaltar que essa diferença entre os missivistas também está relacionada à

31 Foram somados os valores correspondentes aos pronomes tu e você conforme o preenchimento do

sujeito nas cartas do casal de noivos: tu nulo nas cartas de Maria + tu nulo nas cartas de Jayme; tu pleno

nas cartas de Maria + tu pleno nas cartas de Jayme; você nulo nas cartas de Maria + você nulo nas cartas

de Jayme; e você pleno nas cartas de Maria + você pleno nas cartas de Jayme. 32

Foram somados os valores seguintes valores: tu nulo e pleno e você nulo e pleno.

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103

frequência menor de tu na posição de sujeito nas cartas da noiva e, sobretudo, de você

nas de Jayme – como se pode observar nas missivas dele, o número de dados da nova

não ultrapassa 30 ocorrências em suas 62 cartas.

Nos exemplos (26)-(28) retirados das cartas de Jayme, há alguns dados

referentes tanto ao preenchimento do sujeito com tu quanto com você. Em (26),

percebe-se que Jayme utiliza muito a forma pronominal conservadora, aparecendo

recorrentemente nula, como em: “se Ø desceres” e “se não Ø estiveres”. Em (27), há

um exemplo de tu pleno: “Tú não deves pensar em bobagens”. Com relação a você,

pouco produtivo nas cartas do noivo, tem-se um dado de sujeito preenchido no exemplo

(28) – “Se você não matar da saudade” na carta de Jayme.

26) “Se Ø desceres na quinta-feira, vae me | esperar no nosso ponto, agora se Ø

desceres outro | dia quaquer [...] Ø não estiveres irei embora sosi- | nho.”

(Jayme/Maria – 03/05/1937)

27) “Tú não deves pensar em bobagens | pense unicamente em nosso amor, descansa

| bem, alivia o teu cérebro [...]” (Jayme/Maria – 19/01/1937)

28) “Se voce não matar da saudade | A saudade vae me matar.” (Jayme/Maria –

22/08/1936)

Os exemplos 29-31 foram retirados das cartas da Maria. Interessante observar

nesses dados da noiva, a forte alternância entre tu e você na mesma carta como se vê em

(29) e (30): “se voçe não puder vir... para Ø marcares”, “voce não se esqueça... Ø

podes rasgar”. Os dados de tu ora aparecem nulo ora preenchidos: “se tu queres ir com

elle” , “para Ø marcares um emcontro”:

29) “Jayme se voçe não puder vir no Domingo em minha casa | eu te pesso para Ø

marcares um emcontro no sábado [...]” (Maria/Jayme – 21/02/1937)

30) “[...] voce não se esqueça desta | tua noivinha que tamto te ama | Mariquinha |

não se esqueça de mandar as cartas Ø podes rasgar (Maria/Jayme – 07/03/1937)

31) “O meu irmão Antoninho manda-te comvidar- | te se tu queres ir com elle em

Paulo de | Frontem no dia 21 no trem das 8 horas [...]” (Maria/Jayme –

14/02/1937)

Page 104: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

104

Em um levantamento das cartas com uso categórico das formas variantes (só tu

ou só você) e variação entre tu e você na mesma carta (tu e você), verificou-se que

Jayme teve em 36 cartas do total de 62 (58%) o emprego categórico de tu na posição de

sujeito. Em apenas 26 missivas (42%), houve alternância de tratamento nessa posição.

Maria, por outro lado, assume outro comportamento. Em suas cartas, houve variação

entre as formas alternantes em todas as suas 25 missivas (100%). Esse aspecto pode

revelar que Jayme tinha um comportamento mais regular e sistemático quanto ao

emprego tratamental em sua documentação, o que poderia reiterar, mais uma vez, um

domínio maior da norma padrão em relação à Maria.

Com relação ao aumento do preenchimento do sujeito apontado, desde Duarte

(1993) e observada por Souza (2012), os autores têm demonstrado que é entre os anos

de 1930 e 1940 que o sujeito pleno passa a ser mais frequente no português brasileiro.

Em nossos dados, houve um comportamento semelhante, já que foi identificado um

índice percentual equivalente entre sujeitos plenos e nulos: 50% para cada um.

Souza (2012), analisando o percurso da implementação de você com base em

cartas pessoais – que vão desde o século XIX à segunda metade do XX –, chega a

resultados quase idênticos quanto ao preenchimento. No gráfico da autora a seguir,

nota-se que o índice de sujeito pleno (tu ou você) não ultrapassa 50% de frequência:

Gráfico 1: O preenchimento do sujeito ao longo das décadas (SOUZA, 2012)

Page 105: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

105

O ano que de fato é pertinente para esta análise é o de 1937 que evidencia o

comportamento do sujeito pleno você no período em que foram escritas as cartas de

Jayme e Maria. No gráfico a seguir apresenta-se o resultado obtido para cada um dos

missivistas:

51% 49%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

Jayme Maria

Sujeito pleno

Gráfico 2: Todos os sujeitos plenos das cartas

No gráfico (2), os missivistas Jayme e Maria aparecem com frequências

equilibradas no que diz respeito ao preenchimento do sujeito, apresentando,

respectivamente 51% (168 dados) contra 49% (94 dados). Embora esses valores já

estejam próximos do que seria esperado para o período, ainda faz-se necessário fazer

uma incursão nas formas pronominais de maneira discriminada, observando-se,

primeiramente, o sujeito pleno tu e você no gráfico a seguir:

62%

38%

22% 78%

0%

20%

40%

60%

80%

100%

Jayme Maria

Você pleno

Tu pleno

Gráfico 3: Tu e você plenos nas cartas de Jayme e Maria

Page 106: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

106

Jayme apresenta mais dados de preenchimento com tu do que Maria, tendo 62%

e sua noiva, 38%. Esse comportamento não é esperado – visto que o preenchimento da

forma conservadora não era usual na época (a marca desinencial da forma tu favorecia o

sujeito nulo).

O que poderia ter inflacionando o uso de sujeito preenchido com tu nas cartas de

Jayme? Como se viu em outros estudos, a década de 30-40 ainda é um período de

transição do parâmetro do sujeito nulo ao pleno. Os resultados relativos ao noivo não

evidenciam tal transição, mas apontam para um valor acentuado com mais de 60% de

frequência no sujeito pleno para tu. Em virtude desses altos índices de tu-pleno nas

cartas de Jayme, buscou-se observar os dados para identificar se havia alguma

motivação discursiva que o levasse a preencher o sujeito tantas vezes em suas nas

cartas. Os exemplos a seguir ilustram alguns desses contextos:

32) “A saudade começa a apoderarce se mim ja sinto que tua ausencia | é para mim

um martirio, só tú minha flor é que podes trazer a alegria | no meu viver, só tu

com o teu sincero amor é que poderá ilumi- | nasr a minha vida, tú és o meu

tezouro [...]”

33) “Embora eu saiba que tú me amas, e que perten- | ces só a mim, e que está

dentro do meu cora- | cão [...]”

34) “Para aliviar um pouco este meu coração | que é teu (porque o meu tú o levaste)

[...]”

Observando os exemplos de tu pleno nas cartas de Jayme, notam-se alguns

elementos e contextos discursivos que atuam na expressão desse sujeito. No exemplo

(32), todos os sujeitos tu destacados estão preenchidos devido ao discurso em que estão

inseridos, não podendo, dessa forma, aparecerem nulo. Em “só tú minha flor”, “só tu

com teu sincero amor” e “tú és”, a posição do sujeito aparece preenchida para enfatizar

o pronome. É um recurso usual para garantir o contraste e a individualização da pessoa

com quem se fala, não podendo, de maneira alguma aparecer nulo, pois a presença do

advérbio “só” impede que essa posição não seja preenchida.

Page 107: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

107

Em (33), há a mudança do referente do discurso da primeira oração, que começa

com eu e passa a ser “tu” na segunda, por isso o preenchimento, nesse caso, acaba sendo

favorecido.

No exemplo (34), o sujeito tu destacado também não pode aparecer nulo, visto

que se trata de uma inversão na sentença em que é preciso marcar o referente. Vale

lembrar, que a referência também mudou – de eu para tu – sendo por isso, necessário

que essa posição esteja preenchida.

Esse resultado acerca do preenchimento de tu por parte de Jayme fez com que

fosse necessário levantar a frequência em que os recursos discursivos de

ênfase/contraste e mudança de referente ocorriam nas cartas a fim de trazer uma análise

mais condizente com o missivista. Verificando os dados, observou-se que o noivo

apresenta 54 dados dentre os 147 (em torno de 26% do seu preenchimento de tu) em

que a forma pronominal conservadora aparece inserida em contextos discursivos que

motivam a sua expressão. Se fossem retirados esses dados, os percentuais de sujeito

pleno com a forma tu tanto de Jayme quanto de Maria seriam similares.

A explicação para essa manifestação de tantos dados referentes de sujeito

preenchido com motivação discursiva está relacionada ao tipo de texto de que se trata

nesta análise: cartas amorosas. Jayme escreve de maneira lírica e sempre tenta dar

destaque a sua noiva a fim de evidenciar o sentimento que tem por ela, por isso o

recurso da ênfase e contraste ocorre em vários momentos nas missivas do noivo. Maria,

por outro lado, não apresenta nenhum dado de ênfase no discurso dela, fato esse que

pode ter enviesado a análise. Ao que tudo indica, o noivo tinha mais conhecimento de

textos escritos e mais familiaridade com o modelo epistolar, demonstrando ter um nível

de letramento maior que o da noiva.

Em relação a você pleno, Maria apresentou frequências de uso bem maiores que

as de Jayme – 78% contra 22%, correspondendo, respectivamente a 75 e 21 dados.

Maria utilizava mais você que Jayme e, consequentemente, apresentava mais dados

relativos ao preenchimento do sujeito, já que essa forma pronominal, conforme já

mostravam outros estudos, aparecia de maneira expressa na posição de sujeito.

Ademais, as mulheres, como já apontado, utilizavam mais você que tu, como será

abordado a seguir.

Page 108: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

108

4.2.2. A questão do gênero

Nas cartas analisadas, retomando os resultados apresentados nos gráficos (2) e

(3), é possível perceber que a noiva utiliza mais você que tu, enquanto Jayme possui

comportamento contrário, preferindo tu a você. Uma das hipóteses levantadas para

justificar o uso da nova forma pronominal pelas mulheres, nessa época, é a de que você

guardava consigo um resquício de indiretividade originária da forma tratamental Vossa

Mercê (cf. RUMEU, 2008). Por essa razão, a mulher utilizaria uma estratégia menos

invasiva e direta que manteria ainda certo distanciamento entre ela e o interlocutor.

Cabe lembrar que você, apesar de ser a variante mais inovadora em relação ao pronome

tu de segunda pessoa, não era uma forma estigmatizada no português brasileiro.

Para ilustrar de maneira geral como se apresentam as formas pronominais

analisadas segundo o gênero, segue abaixo um gráfico referente aos missivistas:

73%

29% 27%

71%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

Jayme Maria

Tu

Você

Gráfico 4: Dados percentuais das formas de segunda pessoa na posição de sujeito conforme o gênero.

O gráfico 4 mostra que o uso de tu e você nas cartas de Jayme e de Maria

apresentam valores praticamente inversos. O noivo apresenta a maior parte das

ocorrências de sujeito tendo como referente tu de 73% dos casos contra 27% da Maria

(291 e 108 dados, respectivamente). Já em relação a você, a noiva apresenta uma

frequência muito maior que Jayme, com 71% (88 dados) contra 29% do noivo (37

dados). É importante observar os valores absolutos, pois Jayme apresenta menos

variação entre tu e você em suas cartas e uso majoritário de uma das formas variantes

Page 109: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

109

(79% de tu – 147 dados de tu contra 37 de você). Isso corrobora com a visão de que o

noivo alterna menos entre as formas pronominais, sendo, por isso, mais homogêneo no

tratamento utilizado nas cartas. Maria apresenta um número de dados de você e de tu

bem próximos, evidenciando que a noiva ora utiliza o sujeito com a forma

conservadora, ora com a inovadora. Esse aspecto pode ser um indício a mais que faz de

Jayme um indivíduo mais letrado que Maria.

Trabalhos como o de Lopes & Machado (2006), que estudaram cartas trocadas

entre um casal de idosos – o senhor e a senhora Ottoni – a seus netos no começo do

século XX, mostram que Barbara Ottoni empregava a forma você mais do que o marido,

alternando mais entre os pronomes. Isso ocorre não só pelo fato de a senhora, por ser

mulher, preferir uma estratégia não estigmatizada (LABOV, 1994) ou querer se

preservar mantendo distância do interlocutor (RUMEU, 2008, SOTO, 2001), mas

também por não possuir um grau de letramento muito elevado. Dito de outra forma, a

senhora Ottoni seria uma pessoa com cultura mediana (nos termos de BARBOSA,

2005), já que sabia ler e escrever, mas não possuía plenos domínios de modelos de

escrita mais elaboradas e, por consequência, da norma padrão.

A Maria, conforme a vovó Ottoni, teria as mesmas limitações com a escrita por

não possuir pleno domínio dessa modalidade, sendo nitidamente uma informante

representativa do português brasileiro popular, da fala cotidiana. A forte alternância

entre você e tu nas mesmas missivas seria mais uma evidência para confirmar tal

hipótese.

4.2.3. A concordância

Apesar do pouco número de dados de ausência de marca na concordância verbal

entre sujeito e verbo, a análise desse aspecto mostrou-se relevante por ser bastante raro

localizar tal fenômeno em textos escritos de sincronias passadas. A existência do

pronome sujeito tu sem a presença da desinência verbal correspondente é um importante

indício de que, conforme Lopes & Machado (2005), poderia estar havendo um

sincretismo entre as duas formais pronominais e a transição entre dois subsistemas de

tratamento em competição: o de tu e o de você. A insegurança do falante/informante

diante desses subsistemas em formação pode ter influenciado nessa concordância

variável tanto com o pronome tu como com o pronome você, gerando tal “confusão” no

Page 110: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

110

uso das formas de cada um dos paradigmas. Interessante ressaltar que também foram

localizados dados do pronome sujeito você associados a formas verbais de segunda

pessoa do singular do tipo (você sabes). Dessa forma, você, que teria adentrado no

paradigma pronominal do português brasileiro primeiramente, conforme estudos

apontam – Duarte (1993), Rumeu (2008), entre outros –, na posição de sujeito, passou a

competir com tu, sendo utilizado nos mesmos contextos formais.

O gráfico abaixo ilustra as ocorrências de pronomes junto a formas verbais sem

a marcação morfológica de concordância referente ao pronome:

36%

64%

Não concordância

Jayme (5 dados)

Maria (9 dados)

Gráfico 5: A não concordância entre o pronome sujeito e o verbo

O gráfico (5) apresenta os dados de não concordância nas cartas do casal de

noivos, tendo Maria 64% de frequência (9 dados), enquanto Jayme soma um total de 5

ocorrências, correspondendo a 36%. Os cinco exemplos a seguir foram retirados das

cartas de Jayme:

35) “Só quero “tu” crêa em mim, porque não te esqueço se quer um minuto”

(12/01/1937, Jaime para Maria)

36) “tú é a dona do meu coração” (19/01/1937, Jaime para Maria)

37) “eu sei que tú choraste muito, eu te pedi tanto para que “tu” não chorasse e não

me atendeste, porque tú fazes isso?” (21/09/1936, Jaime para Maria)

38) “Junto a esta mandas-te 20c000 (vinte mil reis) para pagares| as fotografias |

espero que tú mas mande com brevidade, se não chegar | o dinheiro manda

pedir mais” (Jayme/Maria – 22/09/1936)

39) “Minha querida, tú não pode avaliar quanto | me fez bem este nosso encontro”

(Jayme/Maria – 28/09/1936)

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111

Como mostram os cinco exemplos de Jayme, a ausência da concordância

canônica dá-se apenas com a forma tu que é predominante na documentação do noivo.

Embora sejam poucos dados, foram localizados três dados no subjuntivo (quero tu crêa,

tu mas mande, tu não chorasse) e dois no presente do indicativo (tu é a dona, tu não

pode).

Outro aspecto a destacar é o fato de a ausência da concordância nesses dados de

Jayme aparecer sempre quando há um elemento interveniente entre o verbo e o sujeito

tu (tu não chorasse, tú mas mande). No primeiro caso, tem-se uma partícula de negação

entre o pronome tu e o verbo “pode” não marcado. Embora não se possa considerar que

haja uma significativa distância entre sujeito e verbo, a intercalação de elementos é um

dos aspectos que dificultam a realização da concordância, conforme aponta o trabalho

de Scherre & Naro (1997). No segundo caso (“tú mas mande”), tem-se um exemplo

interessante de contração de dois pronomes átonos (me + as). Tal emprego ocorre

quando uma forma de objeto indireto (dativo), no caso o átono me, junta-se a um

pronome átono funcionando como objeto direto (as) em uma mesma oração. Como

afirmam Cunha e Cintra (1985, p. 300):

“No Brasil, quase não se usam as combinações mo, to, lho, no-

lo, vo-lo, etc. Da língua corrente estão de todo banidas e,

mesmo na linguagem literária, só aparecem em escritores um

tanto artificiais”

O emprego nas cartas de Jayme de uma contração pouco usual no português

brasileiro seria mais um indício de que o noivo de Maria tinha mais contato com

diferentes modelos de escrita. Trata-se, como afirmam os gramáticos, de um uso

bastante artificial e raro no português brasileiro, comum apenas no português europeu.

Seguem os exemplos identificados nas cartas de Maria:

40) “voce manda-me | dizer a certesa sivem mesmo para eu ir esperarte | com

Ismenia [...]” (Maria/Jayme – 12/09/1936)

41) “voce estas piora- | ndo muito não se e esquesa de ir au medico” (Maria/Jayme –

28/09/1936)

42) “voce já sabes como eu passei muito | resfriada e sozinha” (Maria/Jayme –

29/09/1936)

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112

43) “pesso-te pelo a mor de Deus para não Ø acabares com o nosso a mor eu nunca

peissei que “tu” memandace uma carta dessas” (19/01/1937, Maria para Jaime)

Enquanto Jayme apresenta dados de concordância não canônica com tu, nas

cartas de Maria, prevalecem dados com você. No exemplo (40) (voce manda-me |

dizer), teve-se uma dupla interpretação quanto ao tempo-modo verbal empregado. Por

um lado, pode-se assumir que “manda” está no presente do indicativo e, nesse caso, não

haveria falta de concordância verbal. Por outro, pode-se considerar como um imperativo

afirmativo e, nesse caso, não haveria concordância, uma vez que o verbo estaria

flexionado na segunda pessoa (tu) frente ao pronome você. Pela recorrência dessa forma

verbal (manda) em várias cartas de Maria, tal dado está sendo tomado como imperativo.

Há outros exemplos similares e frequentes nas missivas da noiva em que ela omite o

pronome, ficando mais evidente a ordem ou pedido emitido na sentença, como nos

exemplos a seguir:

a) “manda-me dizer se a tua maisinha | falou au guma cousa com voce do

passeio | mais beijinhos para voçe [...] não repare a minha carta nei os

eros | rasga” (Maria/Jayme – 05/10/1936)

b) “voce rasga | ou manda para mim” (Maria/Jayme – 12/01/1937)

Todas as ocorrências verbais expostas em (a) e (b) encontram-se na seção de

despedida ou P.S, que são as partes das cartas em que Maria costuma fazer pedidos e

solicitações ao noivo. Destaca-se que a dupla interpretação da sentença (Você manda-

me) está associada ao fato de as formas imperativas não virem comumente precedidas

de sujeito explícito. Outro aspecto que pode referendar essa interpretação é a

conjugação verbal da forma em questão. Estudos (cf. SCHERRE, 2007) indicam que

verbos de 1ª conjugação são contextos favorecedores do imperativo indicativo. Esse

uso variável de você com a forma indicativa do imperativo é hoje bastante comum no

português brasileiro, principalmente, na fala do Rio de Janeiro. Exemplos do tipo “Vem

pra Caixa você também” são veiculados até mesmo na imprensa oficial. De qualquer

forma que a estrutura seja interpretada, confirma-se a nossa hipótese inicial de que a

documentação de Maria é representativa da norma popular brasileira do início do século

XX.

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113

Em suma, mesmo que a frequência de tu sem concordância nessas cartas de

amor ainda seja baixa, esses resultados do início do século XX delineiam o que se

configurará estruturalmente no século XXI: a combinação entre tu com desinência zero.

Tal característica é atualmente vislumbrada em vários centros urbanos, incluindo o Rio

de Janeiro, conforme discutido por Lopes ET alli (2009). A falta das marcas de

concordância na produção escrita do casal de noivos evidencia que i) esse uso era

certamente bastante produtivo na fala da época ii) o nível de escolarização de nossos

informantes, principalmente o de Maria, não era tão alto.

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114

Considerações finais

A partir de uma proposta que pressupunha a articulação entre uma análise de

cunho filológico e o estudo da variação entre – tu e você – em cartas de dois missivistas,

foi possível comprovar algumas hipóteses e ratificar a influência do perfil social dos

remetentes na análise variacionista.

Alguns resultados mostraram-se relevantes no que diz respeito à tentativa de

traçar as características sociolinguísticas dos missivistas, levando-se em conta

propriedades depreendidas em suas produções escritas. O apoio da ferramenta

computacional – E-dictor – também mostrou-se eficaz para o levantamento e

quantificação de aspectos grafemáticos.

Considerando a análise de cunho filológico, foram levantadas as seguintes

questões que foram discutidas nessa dissertação:

5. A ausência ou presença desvios grafemáticos pode ser um indício do grau de

letramento dos remetentes, por isso as taxas de frequência desses desvios são

mais altas na produção dos missivistas com pouco domínio da norma escrita.

A transposição de traços da oralidade para a escrita também é um indício de

baixa letramento dos missivistas.

Os missivistas, tanto Jayme quanto Maria, apresentaram desvios grafemáticos. A

habilidade com a escrita não se mostrou idêntica para ambos. Nas cartas de Jayme,

identificou-se menor número de desvios grafemáticos e, no geral, seus equívocos

demonstraram a transposição da fala para a escrita. Esse aspecto deveria enquadrá-lo

como uma pessoa com um grau de letramento mediano. Tais dados, contudo, não foram

tão numerosos quanto os observados na produção escrita da noiva. A maioria deles

consiste em desvios aceitáveis, por serem termos com grafemas distintos para o mesmo

fone. Maria apresenta, por sua vez, uma grafia mais fonética e apresenta um índice alto

de desvios grafemáticos. Se for levada em conta a quantidade de cartas produzidas por

cada um, as taxas de Maria seriam proporcionalmente ainda maiores. Nesse sentido,

notou-se grande diferença quanto ao domínio da escrita por parte de Maria em relação

ao seu noivo.

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115

6. O uso de variadas palavras etimologizadas ou pseudo-etimologizadas indica

que o missivista tinha mais contato com textos escritos e, por isso, maior

letramento, conforme trabalho de Barbosa (2005).

De acordo com Barbosa (1999) a presença de palavras etimologizadas pode ser

um indício de que o escriba tinha noção de que certos termos podem dar ao seu texto

certo ar de letrado, mesmo que isso não corresponda de fato à realidade (Barbosa,

2005). Jayme apresentou um número maior de ocorrências e maior variedade de

palavras que fazem alusão à etimologia das mesmas. Maria utilizou esse recurso de

maneira mais tímida e sempre repetindo as mesmas palavras. Parece claro, portanto,

visto os valores de ocorrências de etimologizações nas cartas dos missivistas que havia

uma diferença quanto ao domínio da norma culta por parte de casal. Jayme, por

apresentar alto índice de etimologizações (73% com 122 dados), poucas pseudo-

etimologizações e uma grande variedade de vocábulos que refletem um conhecimento

sobre a origem da palavra, pôde ser apontado como mais letrado que Maria, observando

por este critério. Maria, por outro lado, apresentou uma frequência irrisória de palavras

etimologizadas (27%) nos mesmos vocábulos – ella, pella –, o que faz pensar que ela só

conhecia aquelas formas por força da repetição.

7. A variabilidade de abreviaturas não se mostrou, nessa amostra

especificamente, como um forte indicativo de maior domínio por parte do

remetente desse artifício linguístico. A ideia inicial era a de que o missivista

que detivesse maior aporte linguístico-cultural seria capaz de utilizar esse

recurso mais eficientemente.

A abreviatura, diferentemente do observado com os critérios analisados, não

pareceu ser um bom parâmetro para medir o grau de letramento dos missivistas em

nossa amostra especificamente. Ambos os escribas possuíam dados de abreviaturas

repetidas, e não foi possível traçar de maneira significativa um contraste entre Jayme e

Maria.

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116

8. A segmentação e junção silábica e/ou vocabular33

é um dos principais

aspectos para caracterização dos missivistas em mais ou menos letrados, pois

são questões que refletem o contato e domínio dos mesmos com textos

escritos, como aponta Marquilhas (1999).

A segmentação e a junção sinalizaram com bastante precisão a diferença entre os

indivíduos no que se refere às suas habilidades com a escrita (os chamados mãos

inábeis, conforme a autora coloca). Nas cartas de Jayme e de Maria, perceberam-se

resultados discrepantes em relação aos dois. O noivo apresentou dados de segmentação

e junção com formas presas – clíticos – enquanto Maria apresentou segmentação em

diferentes palavras. A noiva teve inúmeros dados de segmentação com palavras

iniciadas por vogais/ditongos, interpretados como formas dependentes nos termos de

Camara Jr. (1970): a mo (por amor), ou traveiz (por outra vez), ao passo que Jayme não

apresentou esse tipo de ocorrência nas cartas dele.

Considerando a análise da alternância entre as formas pronominais de segunda

pessoa, foram postas as seguintes questões:

a) A entrada de você no paradigma pronominal, como apontam alguns trabalhos

com corpora diacrônicos – Duarte (1993, 1995), Lopes (2008) – ocorreu por

volta da década de 1930. A frequência de você, nesse período analisado, supera a

de tu?

Os dados das missivas desta dissertação confirmaram que, em meados da década

de 1930, os índices de você aumentam significativamente em relação ao pronome tu. As

frequências para o sujeito pleno, em nossa amostra, foram equivalentes aos resultados

observados com outros materiais. A hipótese levantada por Duarte (1995) se confirmou

nesta análise, pois, conforme apontou Souza (2012), por volta da década de 1930

começa a haver um equilíbrio quanto à expressão plena ou nula do sujeito. Nos dados

analisados, você já se mostrou bastante produtivo. Na posição de sujeito, identificaram-

se altos índices para você e tu como sujeito preenchido, o que não tinha sido observado

em outros estudos (pelo menos no que se refere ao pronome tu).

33 Chama-se de segmentação neste trabalho vocábulos fragmentados indevidamente, como: a qui, com

migo e estaç-ão. A junção, por sua vez, é o processo inverso no qual há a união de elementos que

deveriam estar separados, como em mezango e pramin.

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117

b) Trabalhos como de Rumeu (2008), Lopes & Machado (2005) apontam as

mulheres como sendo as maiores responsáveis pela inserção de você no

português brasileiro. Em razão de você ter um caráter mais indireto referente à

sua origem Vossa Mercê, a mulher, utilizaria mais essa forma como uma

maneira de resguardar-se do seu interlocutor. Esse resultado também se

confirma neste trabalho ou haveria outras questões relativas ao perfil

sociolinguístico dos remetentes que influenciariam no uso dessas formas de

segunda pessoa?

Maria empregou com maior produtividade a forma você em relação a Jayme. Tal

comportamento ocorreu, sobretudo, com sujeito preenchido. Maria apresentou também

maior alternância entre as formas variantes, evidenciando a flutuação dos dois

subsistemas de tratamento em competição na fase em análise. O grau de letramento

traçado anteriormente acerca da missivista e o uso mais produtivo de você indicariam,

nesse caso, que tal variante não mais resguardava a indiretividade e distanciamento

observados no século XIX. O você, empregado por Maria, estaria funcionando como a

variante de segunda pessoa do singular que se generalizou na fala cotidiana do

português brasileiro novecentista.

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118

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122

Anexo:

Nesta seção são apresentadas todas as palavras que foram coletadas pelo

programa de edição E-dictor nas 97 cartas que compõem o corpus. Abaixo os vocábulos

foram discriminados segundo os processos analisados anteriormente – segmentação,

junção, desvios grafemáticos, etimologizações e abreviaturas – e os remetentes, sendo

contabilizada cada ocorrência dos dados nas missivas.

Cartas da Maria

Dado Junção Segmentação Palavra Frequência

1. a borecido aborecido ________ aborrecido 2

2. a braços abraços ________ 3

3. a cabado acabado ________ 2

4. a cabar acabar ________ 3

5. a cabares acabares ________ 2

6. a inda ainda ________ 2

7. a indanão aindanão ainda não 1

8. a legre alegre ________ 1

9. a legria alegria ________ 2

10. a legrou alegrou ________ 1

11. a manha amanha amanhã 1

12. a mor amor ________ 4

13. a onde aonde ________ 2

14. a paixonada apaixonada ________ 1

15. a panhei apanhei ________ 1

16. a pesar apesar ________ 1

17. a proveitava aproveitava ________ 1

18. a quela aquela ________ 3

19. a quele aquele ________ 4

20. a queles aqueles ________ 1

21. a qui aqui ________ 8

22. a sim asim assim 6

23. a simesmo asimesmo asim mesmo assim mesmo 1

24. a te ate ________ até 5

25. a té até ________ 4

26. ade ________ a de há de 1

27. ajente ________ a gente a gente 1

28. aminha ________ a minha 4

29. amuitos ________ a muitos 1

30. anda-nos ________ anda nos 1

31. anoite ________ a noite 1

Page 123: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

123

32. atarde ________ a tarde 1

33. atriteza ________ a triteza a tristeza 1

34. atua ________ a tua 3

35. au- guma au-guma ________ alguma 5

36. au mentado aumentado ________ 1

37. au mentarã aumentarã ________ aumentaram 1

38. aultuma ________ a ultuma a última 1

39. aumedico ________ au medico ao médico 2

40. ca- rta ca-rta ________ carta 1

41. cadaveis ________ Cada veis cada vez 1

42. chegame ________ chega me 1

43. chora- ndo chora-ndo ________ 2

44. co- m co-m ________ com 1

45. com binar combinar ________ 3

46. com binarmos combinarmos ________ 1

47. com cordou comcordou ________ concordou 1

48. com- formar Com-formar ________ conformar 3

49. com forme comforme ________ conforme 1

50. com migo commigo ________ comigo 10

51. com par compar ________ comprar 1

52. com tente comtente ________ contente 2

53. com tigo comtigo ________ contigo 4

54. com tinua comtinua ________ continua 1

55. com tinuam comtinuam ________ continuam 1

56. com verça comverça ________ conversa 2

57. con migo conmigo ________ comigo 1

58. da quela daquela ________ 2

59. da queles daqueles ________ 1

60. darte ________ dar te dar-te 1

61. de morar demorar ________ 1

62. de pois depois ________ 10

63. de presa depresa ________ depressa 1

64. deu ________ De eu 3

65. Domi- ngo Domi-ngo ________ Domingo 3

66. ei quanto eiquanto ________ enquanto 1

67. ei quato eiquato ________ enquanto 1

68. em com tra emcomtra ________ encontrar 1

69. em comtros emcomtros ________ encontros 1

70. em tão emtão ________ então 1

71. em trega emtrega ________ entrega 1

72. em velope emvelope ________ envelope 2

73. entregate ________ entregar te entregar-te 1

74. escrevite ________ escrevi te escrevi-te 1

75. esperarte ________ esperar-te 1

76. estaç- ao estaç-ao ________ estação 1

Page 124: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

124

77. Eua ________ Eu a Eu 1

78. gr- aças gr-aças ________ graças 1

79. jabotei ________ ja botei já botei 1

80. jáli ________ Já li 1

81. javi ________ Já vi já vi 1

82. lidarei ________ li darei lhe darei 1

83. m- ole m-ole ________ mole 1

84. m- uito m-uito ________ muito 3

85. ma- ndei ma-ndei ________ mandei 1

86. madeitar ________ ma deitar me deitar 2

87. mado-te ________ mado te mandou te 1

88. mandar te mandarte ________ mandar-te 1

89. meaborecer ________ me aborecer me aborrecer 1

90. meaborecido ________ me aborecido me aborrecido 1

91. medar ________ me dar 3

92. medeitar ________ me deitar 1

93. medeste ________ me deste 1

94. melevantei ________ me levantei 3

95. melevar ________ me levar 1

96. memandace ________ me mandace 2

97. memandou ________ me mandou 2

98. mepidiu ________ me pidiu me pediu 1

99. merespondas ________ me respondas 1

100. merespondia ________ me respondia 1

101. mezango ________ me zango 1

102. mu- itos mu-itos ________ muitos 1

103. na quela naquela ________ 1

104. na quele naquele ________ 2

105. o brigada obrigada ________ 1

106. o fendeu ofendeu ________ 2

107. o fereceu ofereceu ________ 1

108. ocontrario ________ o contrario o contrário 1

109. orecado ________ o recado 2

110. orosto ________ o rosto 1

111. ou tra- outra- ________ outra 1

112. pa- ssando pa-ssando ________ passando 2

113. paçouma ________ Paço uma passo uma 1

114. pe- sso-te pe-sso-te ________ peço-te 1

115. pergu- ntou pergu-ntou ________ perguntou 1

116. perguntome ________ perguntou me perguntou-me 1

117. piora- ndo piora-ndo ________ piorando 1

118. pramin pra min para mim 1

119. sau- de sau-de ________ saúde 1

120. sem pre sempre ________ 2

121. sepoder ________ se poder 1

Page 125: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

125

122. sepudece ________ se pudece se pudesse 1

123. sevoce ________ se voce se você 2

124. sieu ________ si eu se eu 2

125. sivem ________ si vem se vem 1

126. sivou ________ si vou se vou 1

127. sotem ________ so tem só tem 1

128. tam bei tambei ________ também 1

129. tam bem tambem ________ também 11

130. tecomto ________ te conto 1

131. teesquecerei ________ te esquecerei 1

132. telembras ________ te lembras 1

133. temandei ________ te mandei 1

134. tepesso ________ te pesso te peço 2

135. tersido ________ ter sido 1

136. ti vece tivece ________ estivesse 1

137. tiespero ________ te espero 1

138. tiver ________ ti ver te ver 1

139. v- oçe v-oçe ________ você 1

140. vou menbora voumenbora Voume enbora vou-me embora 2

Cartas do Jayme

Dado Junção Segmentação Palavra Frequência

1. a onde aonde ________ 1

2. Ati ________ a ti 2

3. bei- jal-as bei-jal-as ________ beijá-las 1

4. conhecela ________ conhece la conhecê-la 1

5. demolil-o , demolil-o, demoli-l-o, demoli-lo, 1

6. dizerte ________ dizer-te 1

7. enalteceme ________ enaltecer me enaltece-me 1

8. extasiarte ________ extasiar te extasiar-te 1

9. falarte-ei ________ falar te ei falar-te-ei 1

10. fazme ________ faz me faz-me 1

11. guardal-a ________ guarda-la guardá-la 1

12. informarte ________ informar te informar-te 1

13. Ouvil-os ________ ouvi los ouvi-los 1

14. Pagal- as pagal-as paga-l-as pagá-las 1

15. Resta-se restase ________ restasse 1

16. vel-a ________ ve la vê-la 1

17. vel-as , vel-as, ve-l-as, vê-las, 1

18. sentil-o ________ senti lo senti-lo 2

19. se quer sequer ________ 1

Page 126: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

126

3.1.2. Desvios grafemáticos

Cartas da Maria

Dado Palavra Frequência

1. a borecido aborrecido 2

2. a comtenção aconteçam 1

3. a manha amanhã 1

4. a sim assim 6

5. a simesmo assim mesmo 1

6. a te até 5

7. abicesso abcesso 1

8. açunto assunto 1

9. ade há de 1

10. ajente a gente 1

11. ali alí 1

12. almocou almoçou 1

13. almosar almoçar 3

14. amostrei-te mostrei-te 1

15. amuitos há muitos 1

16. aniverçario aniversário 1

17. aranjar arranjar 2

18. aras horas 1

19. asentados assentados 1

20. atrais atrás 1

21. atriteza a tristeza 1

22. au ao 27

23. au- guma alguma 7

24. au mentarã aumentaram 1

25. aultuma a última 1

26. aumedico ao médico 2

27. aus aos 3

28. auteu ao teu 2

29. auteulado ao teu lado 1

30. avizei avisei 1

31. beijado beijando 1

32. biliscois beliscões 1

33. bou bom 1

34. buriçe burrice 1

35. burinha burrinha 1

36. cadaveis cada vez 1

37. caião caiam 1

Page 127: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

127

38. cançada cansada 1

39. cançadinho cansadinho 1

40. carte carta 1

41. cauza causa 2

42. celo selo 1

43. certesa certeza 1

44. chega chegar 1

45. chegaçe chegasse 1

46. chegame 1

47. chegase chegasse 1

48. chegei cheguei 9

49. chegu chegou 1

50. cheve chove 1

51. chora chorar 2

52. chuveu choveu 1

53. chuvia chovia 1

54. com cordou concordou 1

55. com- formar conformar 3

56. com forme conforme 1

57. com migo comigo 10

58. com par comprar 1

59. com temte contente 2

60. com tigo contigo 4

61. com tinua continua 1

62. com tinuam continuam 1

63. com verça conversa 2

64. combinamo combinamos 1

65. comesão começam 1

66. comfiansa confiança 4

67. comformada conformada 1

68. comformar conformar 1

69. comserve conserve 1

70. comtente contente 1

71. comto conto 1

72. comtra contar 2

73. comverçando conversando 1

74. comvidar- convidar- 1

75. con com 1

76. con migo comigo 1

77. confesou confessou 2

78. coreio correio 6

79. corente corrente 3

80. couza coisa 5

81. couzas coisas 1

82. culhado cunhado 1

Page 128: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

128

83. da dar 3

84. de presa depressa 1

85. de- zenho desenho 1

86. dece desse 1

87. defiçel difícil 1

88. deichar deixar 1

89. descomfiarem desconfiarem 1

90. deseijo desejo 3

91. deu de eu 2

92. devi deve 1

93. dezeijo desejo 2

94. dice disse 9

95. diçe disse 7

96. diçerão disseram 1

97. dis diz 4

98. dise disse 8

99. diseçe dissesse 1

100. diser dizer 1

101. diso disso 1

102. doçes doces 2

103. duer doer 1

104. egreja igreja 1

105. ei quato enquanto 2

106. em com tra encontrar 1

107. em comtros encontros 1

108. em tão então 1

109. em trega entrega 1

110. em velope envelope 3

111. emchado inchado 1

112. emcontro encontro 1

113. en em 1

114. encontar encontrar 2

115. encontra encontrar 1

116. enportava importava 1

117. enteiro inteiro 1

118. entereça interessa 2

119. entregate entregar-te 1

120. enxeste encheste 1

121. eros erros 10

122. es- queçeres esqueceres 1

123. es- queso esqueço 1

124. es tãom estão 1

125. escesas esqueças 1

126. escreve escrever 1

127. espera esperar 1

Page 129: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

129

128. esperãdo esperando 2

129. esquesa esqueça 14

130. esquesas esqueças 1

131. esqueseres esqueceres 1

132. esqueso esqueço 1

133. estaç- ao estação 1

134. estacão estação 1

135. estais estar 5

136. estam estão 2

137. estante instante 1

138. esteije estejam 1

139. estejão estejam 1

140. estejes estejas 2

141. estiverão estiveram 1

142. estreviou extraviou 1

143. Eua Eu 1

144. facrificio sacrifício 2

145. fais faz 8

146. falarão falaram 2

147. faltão faltam 1

148. fasas faças 2

149. fasem fazem 2

150. fasia fazia 1

151. fei foi 1

152. feis fez 5

153. fexa fecha 1

154. ficei fiquei 1

155. fiqui fiquei 1

156. foce fosse 1

157. fofer sofrer 2

158. foiste foste 1

159. foite foi-te 1

160. forão foram 1

161. fro frio 1

162. fubuscar fui buscar 1

163. gracas graças 1

164. grando grande 1

165. grasas graças 3

166. homen homem 1

167. ião iam 1

168. infelis infeliz 2

169. inpocivel impossível 1

170. interesada interessada 1

171. intrega entrega 1

172. irma irmã 2

Page 130: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

130

173. irman irmã 13

174. iscondido escondido 1

175. jente gente 2

176. juiso juizo 1

177. lei leio 1

178. lembransas lembranças 1

179. lenbran- do-me lembrando-me 1

180. lidarei lhe darei 1

181. loge longe 2

182. mado-te mandou te 1

183. mais mas 8

184. maisinha mãezinha 1

185. manha manhã 6

186. manlha manhã 1

187. mara mora 2

188. marava morava 1

189. meaborecer me aborrecer 1

190. meaborecido Me aborrecido 1

191. medar me dá 1

192. meis mês 2

193. melho melhor 3

194. memandace Me mandasse 2

195. mepidiu me pediu 1

196. min mim 6

197. mis mil 2

198. mosa moça 1

199. moso moço 1

200. nece nesse 1

201. nei nem 8

202. neta nesta 1

203. nois nós 11

204. noso nosso 1

205. notiçias notícias 3

206. nus nos 1

207. onte ontem 2

208. orivel horrível 1

209. otel hotel 2

210. ou- brigado obrigado 1

211. paça-se passa-se 1

212. paciarmos passearmos 1

213. paçouma passo uma 1

214. par para 1

215. pareçia parecia 1

216. pasada passada 1

217. pasando passando 3

Page 131: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

131

218. pasão passam 1

219. pasei passei 1

220. paseio passeio 2

221. pasiar passear 1

222. pasiares passeares 1

223. pasou passou 2

224. passiares passeares 1

225. pe- sso-te peço-te 1

226. peco-te peço-te 2

227. peçote peço-te 1

228. peissei pensei 2

229. pen- ção pensão 1

230. Penho Penha 1

231. pensase pensasse 2

232. penssado pensando 2

233. penssando pensando 2

234. penssar pensar 1

235. peor pior 3

236. perguntome perguntou-me 1

237. persigindo perseguindo 1

238. pesa peça 1

239. peso-te peço-te 1

240. pesso-te peço-te 17

241. pidirão pediram 1

242. pidiu pediu 3

243. poçivel possível 1

244. podece pudesse 1

245. podeçe pudesse 1

246. podir pedir 1

247. pois pôs 1

248. por- tam portão 1

249. portunidade oportunidade 2

250. posivel impossível 4

251. poso posso 2

252. posso-te peço-te 2

253. preçisa precisa 1

254. preciza precisa 1

255. prefeita perfeita 1

256. pregunta pergunta 1

257. presizavas precisavas 1

258. prizão prisão 1

259. proçedas procedas 1

260. proçeder proceder 1

261. que quer 1

262. que quem 1

Page 132: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

132

263. quei quem 2

264. quen quem 2

265. queras queiras 2

266. quirido querido 1

267. quizer quiser 11

268. rasga rasgar 1

269. rasge rasgue 1

270. reçebi recebi 1

271. recibí recibi 2

272. registar registrar 1

273. resar rezar 1

274. romançe romance 1

275. sabe saber 1

276. sacrifiçio sacrifício 1

277. sacrifisio sacrifício 1

278. saldades saudades 2

279. sam são 2

280. sangada zangada 1

281. sangado zangado 5

282. saudads saudades 1

283. sedo cedo 3

284. sego cego 1

285. seija seja 1

286. sepoder se puder 1

287. sepudece se pudesse 1

288. si se 12

289. sivou se vou 1

290. sobrinha sobrinhos 4

291. soubece soubesse 1

292. suportavel insuportável 1

293. talves talvez 1

294. tam tanto 1

295. tam tão 5

296. tam bei também 1

297. tamto tanto 5

298. tan tão 1

299. tarmo estarmos 1

300. tecomto te conto 1

301. teis tens 3

302. telefona telefonar 1

303. tenpo tempo 6

304. tepesso te peço 2

305. tern trem 1

306. tersa-feira terça-feira 1

307. ti te 2

Page 133: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

133

308. ti vece estivesse 1

309. tiver te ver 1

310. tivese tivesse 3

311. traes traz 1

312. traveis través 2

313. traves través 1

314. tren trem 1

315. trite triste 5

316. troçe trouxe 1

317. us uns 1

318. us os 1

319. uzar usar 1

320. vais vas 1

321. vãmos vamos 1

322. ve vê 3

323. veijo vejo 1

324. veis vez 6

325. venser vencer 1

326. ves vez 1

327. vese vezes 1

328. veses vezes 1

329. viaje viagem 1

330. vieçe viesse 1

331. vin vim 1

332. virão viram 1

333. voçe você 22

334. vou menbora Vou-me embora 2

Cartas do Jayme

Dado Palavra Frequência

1. a há 1

2. abracos abraços 1

3. adocar adoçar 1

4. agonisante agonizante 1

5. almentar aumentar 1

6. almentar-mas aumentarmos 1

7. altomovel automóvel 1

8. amo amor 3

9. amostraste mostraste 1

10. anciedade ansiedade 1

11. ancioso ansioso 3

12. apoderarce apoderar-se 1

Page 134: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

134

13. arrangei¹ arranjei 1

14. assucar açúcar 1

15. atraz atrás 2

16. atrazou atrasou 1

17. au ao 1

18. camo calmo 1

19. cança cansa 2

20. cereno sereno 1

21. comnosco conosco 1

22. Constitue Constitui 1

23. convalescensa convalescência 1

24. crêa creia 1

25. cres crees 1

26. crianssice criancice 1

27. dansei dancei 2

28. dar dá 1

29. darao darão 1

30. degua d'água 1

31. desaçosegado desassossegado 1

32. descança descansa 1

33. durmente dormente 2

34. durmi dormi 2

35. durmia dormia 1

36. durmir dormir 1

37. emora embora 1

38. enesquecível inesquecível 3

39. enfinda infinita 1

40. escretorio escritório 1

41. esplicar explicar 1

42. extasiarte extasiar-te 1

43. facam façam 1

44. fantazia fantasia 1

45. fasso faço 1

46. furtuna fortuna 1

47. geito jeito 2

48. grandicissimo grandíssimo 1

49. groria glória 1

50. hotem ontem 1

51. idal ideal 1

52. incanssaveis incansáveis 1

53. irrevugavel irrevogável 1

54. istante² instante 1

55. jamar chamar 1

56. mais mas 4

57. manha manhã 1

Page 135: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

135

58. maos mãos 1

59. martirisar martirizar 1

60. mendingo mendigo 1

61. nalfrago náufrago 1

62. naufrago náufrago 1

63. netar néctar 1

64. nim- guem ninguém 1

65. novidadesinhas novidadezinhas 1

66. pareçes pareces 1

67. passeiando passeando 1

68. peco-te peço-te 5

69. podemois podemos 1

70. qual- que qualquer 1

71. quasi quase 2

72. quiz quis 1

73. quizer quiser 1

74. Quizera Quisera 4

75. quizeres quiseres 2

76. resta-se restasse 1

77. satisfasera satisfazer a 1

78. seçar cessar 1

79. sepasão separação 1

80. siquer sequer 1

81. socego sossego 1

82. socegou sossegou 1

83. sosi- nho sozinho 4

84. sosinha sozinha 1

85. surpreza surpresa 2

86. talves talvez 1

87. tezouro tesouro 1

88. tijela tigela 1

89. viagei viajei 1

3.1.3. Etimologizações

Cartas da Maria

Dado Palavra Frequência

1. ella Ela 18

2. ellas Elas 1

3. elle Ele 13

4. elles Eles 4

5. cousa Coisa 3

Page 136: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

136

6. pello Pelo 1

7. delle Dele 1

8. hia34

Ia 1

Cartas do Jayme

Dado Palavra Frequência

1. ahi Aí 12

2. Aquelle Aquele 1

3. arranhacéo Arranhacéu 1

4. Assumpto Assunto 1

5. Attendo Atendo 1

6. attento Atento 1

7. bella Bela 1

8. cahirem Caírem 2

9. céo Céu 3

10. comprehedes Compreendes 1

11. comprehendes Compreendes 3

12. comprehendo Compreendo 2

13. contacto Contato 1

14. cousa Coisa 8

15. cousas Coisas 1

16. creado Criado 1

17. creamos Criamos 1

18. creatura Criatura 1

19. dahi Daí 1

20. egreja Igreja 1

21. ella Ela 1

22. estrella Estrela 1

23. estrellas Estrelas 2

24. esxepto Exceto 1

25. hontem35

Ontem 24

26. iha36

Ia 1

27. logares Lugares 1

28. nelles Neles 1

29. pae Pai 4

30. paes Pais 4

31. papae Papai 1

3456 Falsa etimologização.

Page 137: Cartas amorosas de 1930: o tratamento e o perfil sociolinguístico de

137

32. peior Pior 2

33. peiorado Piorado 1

34. pella Pela 1

35. prohibas Proíbas 1

36. sahe Sai 1

37. sahes Sais 2

38. sahi Saí 8

39. sahir Sair 4

40. victoria Vitória 3

41. vae Vai 5

42. vaes Vais 5

43. trophéo Troféu 1

44. taboa Tábua 1

45. táboa Tábua 1

46. signal Sinal 1

3.1.4. Abreviaturas

Cartas da Maria

Dado Palavra Frequência

1. D. Dona 5

2. N. Nossa 3

3. S. Senhora 2

4. S. São 3

5. Snr Senhor 1

6. S Santa 1

Cartas do Jayme

Dado Palavra Frequência

1. D. Dona 18

2. S São 1

3. Sr Senhor 1

4. Snr Senhor 1