carta a nicolau ii - tolstoi

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  • 7/30/2019 Carta a Nicolau II - Tolstoi

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    Carta a Nicolau IIQuerido irmo:

    Este qualificativo me parece o mais conveniente porque, nesta carta,me dirijo menos ao imperador e ao homem, que ao irmo. E, ademais,a escrevo quase desde o outro mundo, encontrando-me espera deuma morte bem prxima.

    No queria morrer sem dizer o que penso de vossa atividadepresente, o que poderia ser, e o grande bem que poderia reportar amilhes de homens e a mesmo a vs, e o grande mal que podeis fazerse persistires em continuar pelo caminho que agora segues.

    Um tero da Rssia est submetida a uma contnua vigilncia policial;o exrcito de policiais conhecidos e secretos aumenta sem cessar; asprises, os centros de deportao e os calabouos esto repletos; foraos duzentos mil criminosos comuns, h um nmero considervel decondenados polticos entre os quais consta agora uma multido deoperrios. A censura com suas medidas repressivas chegou a tal grauque superou os piores momentos dos anos que se seguiram a 1840.As perseguies religiosas no foram nunca to frequentes nem tocruis como o so agora, e tornam-se cada vez mais frequentes e

    mais cruis.Nas cidades e nos centros industriais concentram-se tropas, quearmadas de fuzis se lanam contra o povo. Em alguns pontos j seproduziram choques e matanas e em outros pontos se preparammais choques e mais matanas, e a crueldade delas promete serainda maior.

    O resultado de toda esta atividade cruel do governo que o povoagricultor, os cem milhes de homens sobre os quais est fundado o

    poder da Rssia, apesar dos gastos do Estado cresceremconsideravelmente, ou melhor, graas ao crescimento desses gastos,esse povo agricultor empobrece cada vez mais, de maneira que afome chega a ser o estado normal, da mesma forma que odescontentamento de todas as classes trabalhadoras e a hostilidadedelas para com o governo.

    E a causa de tudo isso to clara que chega a ser evidente. Ei-la:vossos auxiliares lhe asseguram que controlar todo movimento da vidado povo, garantir a felicidade deste povo e, ao mesmo tempo, vossatranquilidade e segurana. Mas mais fcil deter o curso de um rio doque o eterno movimento da humanidade que avana para a frente,

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    estabelecido por Deus. bem fcil saber quais os homens a quem talestado de coisas vantajoso e que no fundo da alma dizem para simesmos: Depois de ns vem o dilvio! Mas surpreendente que vs,homem bom e de inteligncia possais crer neles, e que seguindo seusabominveis conselhos, faais e deixai-os fazer tanto mal por umaideia to quimrica quanto deter o eterno movimento da humanidade.

    Vs no podeis ignorar que desde que estudamos a vida dos povos,as formas econmicas e sociais, da mesma forma que as formaspolticas e religiosas desta vida, tm avanado continuamente adiante,de grosseiras e cruis que eram, tm se adocicado, convertendo-seem mais humanas, em mais razoveis. Vossos conselheiros dizemque isso no verdade, dizem que a ortodoxia e a autocracia sonecessrias ao povo russo, tanto agora como antes, e que devem s-

    lo at a consumao dos sculos, de maneira que para o bem dopovo, custe o que custar, preciso defender essas duas formasligadas entre si; a crena religiosa e o estado poltico. Mas umadupla mentira: Primeiro, ningum pode sustentar que a ortodoxiatenha sido em outra poca prpria do povo russo ou que poderia seragora; dois informes dados pelo procurador geral do Santo Snodorevelam que os membros do corpo espiritual, de inteligncia maisdesenvolvida, apesar de todas as desvantagens, dos perigos quecorrem, se afastam da ortodoxia para ingressar cada vez em maiornmero em outras seitas. Segundo, se fosse verdade que a ortodoxia

    a religio prpria do povo russo, no haveria necessidade dedefender com tanta energia esta forma de crena, e de perseguir comtanta crueldade aos que a negam.

    No que diz respeito a autocracia, sim, ela veio a calhar em cima dopovo russo, quando esse povo olhava ao Tzar como um Deus terrenale infalvel dirigindo por si s o destino do povo; agora no maisassim, pois todos sabem ou chegaram a saber: Primeiro, que um bomRei no mais do que uma casualidade feliz, que os reis podem ser e

    foram tiranos ou loucos, como Joo IV e Paulo. Segundo, que pormais bom e sbio que seja o Tzar, no pode dirigir por si mesmo umapopulao de cem milhes de homens, e quanto aos que esto aolado do Tzar e que dirigem o povo, cuidam mais de prpria situaodeles do que do bem do povo.

    Se dir ento: o Tzar pode escolher por auxiliares homensdesinteressados e bons. Desgraadamente o Tzar no pode faz-lo,porque no conhece mais que algumas dezenas de homens que, porcasualidade ou por diferentes intrigas, tem se acercado dele e

    apartado cuidadosamente aqueles que poderiam substitu-los. Demaneira que o Tzar escolhe, no entre aqueles milhares de homens

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    verdadeiramente instrudos e honrados que aspiram a ocupar-se dosnegcios pblicos, e sim entre aqueles de quem disse Beaumarchais:O homem medocre e rasteiro chega a s-lo integralmente. E mesmoque os russos estejam prontos a obedecer ao Tzar, no podem faz-losem sentir ganas de rebelar-se, de desobedecer as pessoas quedesprezam. Vossa errnea crena no amor do povo pela autocracia epelo seu representante, o Tzar, vos impede de ver o fato de quequando chega a Moscou e a outras cidades vos segue uma multidocorrendo e gritando: Hurra! No creiais que isto seja expresso deafeto a vossa pessoa. No, uma multido de curiosos que correm deigual maneira detrs de cada espetculo, pouco frequente. Em suma,essas pessoas que toma por representantes dos sentimentos do povono so mais que uma multido arrastada e instruda pela polcia.

    Se vs pudsseis passear durante a passagem de um trem imperial,entre os camponeses colocados detrs do cordo de tropas, queesto ao largo da estrada e ouvir o que dizem estes camponeses, ossndicos e outros funcionrios das aldeias levados ali pela fora, dasaldeias mais prximas, e que com frio ou chuva, sem nenhumarecompensa, e levando as provises deles, esperam algumas vezesdurante vrios dias a passagem do trem, ento ouvirias os verdadeirosrepresentantes do povo, os simples camponeses, e palavras delesno expressam nenhum amor pela autocracia nem por seurepresentante.

    Sim, faz cinquenta anos, no tempo de Nicolau I o prestgio do poderimperial era ainda bem grande, mas desde os ltimos trinta anos nopra de baixar, e, nestes ltimos anos tem cado to baixo em todasas classes trabalhadoras que ningum mais se oculta em censurarabertamente, no apenas as ordens do governo, como tambm as doprprio Tzar, zombando e insultando-o.

    A autocracia uma forma de governo que morreu. Talvez respondaainda s necessidade de alguns povos da frica Central, afastados doresto do mundo, mas no responde s necessidades do povo russocada dia mais culto, graas instruo que vai sendo cada vez maisgeral. Tanto que, para sustentar essa forma de governo e a ortodoxialigada a ele, preciso, como agora se faz, empregar todos os meiosde violncia, incluindo uma vigilncia policial mais ativa e severa doque antes, a tortura, as perseguies religiosas, a proibio de livros eperidicos, a deformao da educao, e em geral de toda classe deatos de perverso e de crueldade. Tais tem sido at aqui os atos devosso reinado, empreendidos com vossa concordncia, que chegaram

    a provocar a indignao geral de toda a sociedade, como vossoqualificativo de sonhos insensatosaos desejos mais legtimos daquele

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    homem que os fez conhecer por ocasio da disputa dos zemstvospelo governo de Tver. Todas vossas ordens sobre a Finlndia, sobre oaambarcamento na China, sobre o projeto da conferncia de Haya,sobre o aumento de tropas, sobre a restrio da autonomia local,sobre o acrscimo dos abusos administrativos, sobre vossoconsentimento s perseguies religiosas, sobre vosso consentimentoao monoplio do lcool, ou seja, a venda pelo governo de um venenoque mata o povo, e por ltimo sobre vossa obstinao por manter apena de morte, apesar de todas as peties que vos tem sido feitaspara demonstrar a necessidade de derrogar to insensata medida,absolutamente intil e que constitui a vergonha do povo russo; todosestes atos, vs no o tereis cometido sem seres inspirado por umconselho de auxiliares pouco srios, com o fim de deter a vida do povoe at mesmo com a inteno de voltar ao antigo estado de coisas, j

    passado.

    Pela violncia pode-se oprimir o povo, mas no dirig-lo. Em nossotempo o nico meio de dirigir o povo de uma maneira efetiva consisteem colocar-se ao lado do movimento do povo que busca o bemcombatendo o mal, dos que saem das trevas buscando a luz, e dar-lhes os melhores meios para conseguir aquilo que tem condies defaz-lo, e acima de tudo, h que se dar ao povo facilidade para queexpresse o que deseja e o que necessita, e, uma vez ouvido, atenderao que corresponda, no s necessidades de uma classe rica, mas s

    necessidades da maioria do povo, s necessidades das massasproletrias.

    E o desejo que agora expressaria o povo russo, se lhe dessepossibilidade de faz-lo, seria o seguinte:

    Antes de mais nada, o povo trabalhador diria que deseja ver-se livredessas leis exclusivistas que o colocam na situao de pria, aqueleque no goza dos direitos dos demais cidados. O povo trabalhadordiria que quer a liberdade de viajar, a liberdade de ensino, da crenaque responda a suas necessidades espirituais. E, principalmente, essepovo de cem milhes de habitantes, diria em uma s voz, que desejausufruir livremente da terra, ou seja, a abolio do direito depropriedade sobre a terra.

    E a abolio deste direito de propriedade, segundo meu parecer, oproblema principal e o mais determinante que o governo deveresolver.

    Em cada perodo da vida humana, existe certo grau de reforma quedeve ocorrer antes que outras, posto que tende melhora da vida.

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    Cinquenta anos antes, o problema mais interessante e determinante aresolver foi a abolio da escravido, em nossos dias aemancipao das classes trabalhadoras, a libertao dessa tutoriaque pesa sobre elas, o que se chama de a questo operria.

    Na Europa ocidental, o alcance deste fim parece possvel pelasocializao das fbricas. Esta soluo do problema justa ou no? possvel para os povos ocidentais? Mas, para a Rssia atual estasoluo no aplicvel?

    Na Rssia, onde uma enorme parcela da populao vive da terra, e seencontra sob a absoluta dependncia dos grandes proprietrios deterra, a emancipao dos trabalhadores evidentemente no podesolucionar-se pela socializao das fbricas. Para o povo russo, a

    libertao no pode executar-se mais que por meio da abolio dapropriedade da terra e do reconhecimento da livre posse da terra.Desde muito tempo este o desejo mais ardente do povo russo, queespera continuamente que seus governos o realizem.

    Sei que vossos conselheiros vero nestas ideias o cmulo daleviandade e da falta de sentido prtico de um homem que nocompreende toda a dificuldade do que governar, e sobretudosemelhante ideia de reconhecer a propriedade da terra como umapropriedade comum, parecer como o maior dos absurdos, mas sei

    tambm que para no mais cometer violncia sobre o povo, que cadavez h de ser mais cruel, no h mais que um nico meio: tomar porobjetivo o que desejo do povo e, sem esperar que a avalanchedesa montanha abaixo e esmague o que encontre, urge gui-la por simesmo, ou seja, caminhar adiante para a realizao das melhoresformas de vida. Para os russos, este fim, no pode ser outro seno aabolio da propriedade territorial. Somente assim poder o governo,sem fazer concesses indignas, exercer um lao de unio entre osoperrios das fbricas e a juventude das escolas, e sem temer por suaexistncia, servir de guia a seu povo e dirigir-lhe de uma maneira real.

    Teus conselheiros lhe diro que declarar livre a terra do direito depropriedade, uma fantasia irrealizvel. Segundo eles, forar um povovivente de cem milhes de almas a deixar de viver, a voltar a meter-sena concha que desde h muito tempo necessrio romper, no umafantasia, e sim a realidade e a obra mais sbia e mais prtica. Masbasta refletir seriamente sobre o que irrealizvel e aborrecido paraconcluir que declarar livre a terra do direito de propriedade noapenas realizvel, como tambm necessrio e oportuno, algo que

    deve ser feito imediatamente.

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    Eu, pessoalmente, penso que em nossa poca a propriedade territorial uma injustia, uma injustia to clara como o foi a escravido hquarenta anos atrs. Penso que a abolio da propriedade da terracolocaria o povo russo num grau maior de independncia, defelicidade e de tranquilidade. Penso tambm que esta medidadestruiria por completo essa irritao socialista e revolucionria queagora paira sobre os trabalhadores e ameaa com maiores males ogoverno e o povo.

    Mas posso estar errado e esta no ser a soluo do problema porenquanto. Ento que o prprio povo, se tem possibilidade, expresse oque deseja. Em todo caso, a primeira misso que cabe ao governo abolir o jugo que impede o povo de manifestar seus desejos enecessidades. No se pode fazer bem a um homem que foi

    amordaado com o fim de no ouvir o que ele deseja para seu bem.Somente conhecendo os desejos e as necessidades do povo, ou damaioria, que se pode orient-lo e fazer aquilo que bom para ele.

    Querido irmo, neste mundo vs no tendes mais que uma vida, e apodeis gastar em vs tentativas para deter o movimento dahumanidade desde o mal at o bem, desde as trevas at a luz,movimento este estabelecido por Deus. Mas vs podeis, conhecendoos desejos e as necessidades do povo e consagrando tua vida asatisfaz-los, remediar esse mal, viver tranquilo e satisfeito, servindo a

    Deus e aos homens.

    E, por grande que seja vossa responsabilidade, pelos ltimos anos devosso reinado durante os quais podeis fazer muito bem ou muito mal,ainda maior vossa responsabilidade diante de Deus em vossa vidana Terra, da qual depende vossa vida eterna, e que Deus a tem dadono para fazer ou tolerar obras perversas contra todas as classestrabalhadoras, mas para cumprir Sua vontade e Sua vontade fazer obem aos homens e no o mal.

    Reflita sobre isso, no diante dos homens, e sim diante de Deus, efazei o que Deus disser, ou seja, vossa conscincia. E no tenhaismedo dos obstculos que possais encontrar. Se entrardes nesta novavia da vida estes obstculos se destruiro por si mesmos, epercebereis isso se procederes no pela glria humana, e sim porvossa alma, ou seja, por Deus.

    Perdoa-me se, por casualidade vos tenha ofendido ou desgostadocom este escrito. Meu guia no tem sido outro seno o desejo pelo

    bem estar do povo russo e do vosso.

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    Logrei meu intento? O porvir o dir; porvir que segundo todas asprobabilidades, eu no verei. Fiz aquilo que acreditei ser meu dever.

    Vosso irmo que, sinceramente, vos deseja o verdadeiro bem.

    Leon Tolstoi

    Gaspra, 16 de janeiro de 1902.

    Verso em espanhol,Chantal Lpeze Omar Corts (verso em lnguaportuguesa por Railton S. Guedes).

    http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/politica/cristianismo_anarquismo/cristianismo_y_anarquismo.htmlhttp://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/politica/cristianismo_anarquismo/cristianismo_y_anarquismo.html