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ORGÃO INFORMATIVO DA COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE – CMFL – 02-2020– Abril - Junho - 2020 CARRANCA

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ORGÃO INFORMATIVO DA COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE – CMFL – 02-2020–

Abril - Junho - 2020

CARRANCA

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CARRANCA PÁGINA 2

Editorial2020 segue célere. Inúmeros acontecimentos se sucedem e

lá vamos nós, brasileiros, folcloristas, enfrentando crises

pelas quais o País está passando, não nos deixando nos

deixando abater pelas diversidades, num exercício tenaz de

crença em nossas convicções e esperança de melhores

dias.

Mais um “Carranca” chega às nossas mãos. Desta vez,

entre outros assuntos, o estudo sobre grutas e cavernas

muito interessante, trazendo-nos os mistérios, as lições que

o tempo gravou nas pedras e na natureza.

Folclorista é gente que cultiva o tempo e os

acontecimentos, tirando deles os ensinamentos e as lições

oportunas e necessárias.

Não posso deixar de lembrar a Páscoa, vivida a 12/04,

mas que também é um estado de espírito que deve

acompanhar-nos durante todo o ano. O texto “Ovos de

Páscoa” traz a nossa mensagem e o nosso abraço a todos

nossos companheiros, amigos e suas famílias.

Míriam Stella BlonskiPresidente

Ovos de PáscoaO ovo simboliza a ideia de começo da vida. Os chineses doséculo XIII a. C. tinham o costume de embrulhar ovos depata ou de galinha em casca de cebola e cosê-los combeterraba. Depois de frios, eles retiravam a casca de cebolae se divertiam com os desenhos formados com aquela espéciede tingimento. Tudo isso para comemorar o início da primaverae presentear parentes e amigos, desejando-lhes boa sorte.Com o passar do tempo, os tradicionais ovos de pata ou degalinha foram substituídos pelos confeitados, e mais tarde, dechocolate. Alguns historiadores acreditam que a explicitaçãodessa troca surgiu com a proibição da Igreja durante aQuaresma, de se consumir alimentos de origem animal. Háquem afirme que, em 1830, as indústrias de chocolate daEuropa, principalmente da Inglaterra, estimularam o consumopara aumentar as vendas.Durante a festa judaica, o ovo, uma tradição antiga surgidaantes de Cristo, era um dos alimentos que não perdia a formadepois de cozido, e era utilizado como símbolo do povo deIsrael.Na Europa, as pessoas trocavam ovos no equinócio de 21de março, para celebrar o fim do inverno e o início daprimavera (no Brasil,fim do verão e início do outono). Naquelaépoca as pessoas trocavam ovos de galinha, decorados. A

tradição dos ovos de chocolate começou na França, apartir do século XIX.Há que se estar atento ao sentido religioso da Páscoa. Deorigem hebraica (pessach) ou grega (pashka), a Páscoaera celebrada em tempos remotos, pelos pastores dohemisfério norte em comemoração à chegada daprimavera e fins do inverno.O primeiro significado religioso da Páscoa surgiu quandoo povo de Israel foi libertado da escravidão no Egito porMoisés e partiu em busca da Terra Prometida. Outrapassagem, outra esperança de uma vida nova, Durante afuga, os cerca de 600 mil judeus foram perseguidos porsoldados egípcios, e reza o texto bíblico, durante o MarVermelho, Moisés ergueu seu cajado e chamou por Deus.As águas domar então se abriram, para os judeuscontinuarem a fugir. Depois, o mar se fechou e engliu osperseguidores. A essa libertação, ocorrida no século XIIIa. C. os judeus chamaram de Pessach, que passou a sercomemorada todos os anos, em memória à vida nova.Para os cristãos, o sentido religioso da Páscoa é acomemoração da passagem, do retorno à vida, darenovação. A Páscoa cristã foi estabelecida pela IgrejaCatólica num decreto do Concílio de Niceia, no ano de325, e é precedida pela Quaresma, numa evocação aoperíodo de penitência e oração vivido por Jesus no desertodurante 40 dias, como preparação espiritual para os diasde perseguição, morte e ressurreição. Quando o Concíliode Niceia decretou a Páscoa Cristã, estabeleceu tambémque seria comemorada no primeiro domingo depois dalua cheia, que segue o equinócio, instante em que o solcorta o Equador e iguala a duração dos dias e das noitesque acontece no dia 21 de março, para nós o início dooutono.A tradição do coelho da Páscoa é mais recente, secomparada à do ovo. O costume surgiu no século XVIna Alemanha. O animal foi associado à Páscoa porque sereproduz rapidamente e simboliza a fertilidade, vida nova.Existe também a lenda de que uma mulher pobre coloriualguns ovos de galinha e os escondeu, para dá-los aosfilhos como presente de Páscoa. Quando as criançasdescobriram os ovos, coincidentemente um coelho passoupor ali, correndo. Espalhou-se, então, a história de que ocoelho é que havia trazido os ovos. Desde então ascrianças sempre acreditaram no coelhinho da Páscoa.Em alguns países os ovos de Páscoa são semelhantes averdadeiras obras de arte. São confeccionados com váriosmateriais como por exemplo, a louça e a madeira erecebem pinturas, bordados e aplicações variadas. NaPolônia, são chamadas de passankas, e assim também naUcrânia, onde são comercializadas como souvenir paraturistas.

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EditorialUma outra lenda muito interessante é a de que, num dia dePáscoa, um menino estava se dirigindo para casa, levandouma sacola com lindos ovos de chocolate. Seguia feliz jáantecipando o prazer que teria, ao saborear aquela guloseima.Numa esquina deparou com uma criança maltrapilha, suja,que lhe estendeu a mão, pedindo uma esmola. O meninonão pensou duas vezes. Tirou da sacola um dos preciososovos e deu ao pedinte, desejando-lhe uma Páscoa feliz.Seguiu seu caminho tranquilamente. Não sabia que ele haviase encontrado como o Menino Jesus, que testou suabondade, ainda mais numa época tão significativa comoaquela. Daí para frente, sua vida foi uma sucessão de donse acontecimentos felizes, como a saúde, a alegria, aformatura e o exercício de uma profissão digna e competente.Páscoa não é apenas um dia, mas toda uma vida.Renascemos a cada momento, quando fazemos da

caminhada um exercício de aprendizagem, de crescimento,de bondade, de justiça e de cooperação.Assim diz a canção popular:“Coelhinho da Páscoa,Que trazes pra mim?Um ovo, dois ovos, três ovos assim...(as mãos fazem o gesto de objeto grande, redondo)Desejo a todos uma Feliz Páscoa. Renascimento, força eânimo sempre renovados para enfrentarmos, comserenidade a tristeza, as angústias, injustiças, ausências efaltas, nessa jornada que conduzimos.Deus nos criou a todos para transcendência.Caminhemos, que Ele por certo estará próximo de nós.

Míriam Stella BlonskiPresidente

AconteceuA Morte sem seus repentes.Deita a foice a qualquer hora!

No Repouso Iluminado!Moacyr Costa Ferreira 11 de agosto de1928 – 18 de setembro 2019O Portal de Cidade de Guaxupé noticiou.

Faleceu nesta quarta-feira, 18 de setembro, aos 91 anos,[nosso companheiro,] físico, matemático, professor eescritor Moacyr Costa Ferreira. Docente do Unifeg eColégio Dom Inácio, ele foi ainda autor de centenas deobras literárias, romances, poemas, referências, infanto-

juvenil, literatura, religiosos,didáticos, científicos,dicionários, entre outros,que o imortalizaram comoum dos mais cultos e sábioshomens que por estas terrasjá passaram.Professor Moacyr, que énatural de Salvador, naBahia, e migrou aindacriancianha para Guaxupé.

Confiram transcrição naseção Artigos dereproduzido na Revistada Comissão Mineira deFolclore edição nº 28:

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AconteceuMaria José Colares Moreira - 24 demarço de 1931 – 02 de março de 2020Morreu na madrugada de segunda-feira (2 de março) emMontes Claros, quase aos 89 anos, a professora de músicaMaria José Colares de Araújo Moreira, mais conhecidacomo Zezé Colares. Segundo a família, ela tinha alzheimere estava internada há uma semana na Santa Casa de MontesClaros e morreu por causas naturais.Ela completaria 89 anos no próximo dia 24. O velórioacontece nesta manhã no Centro Cultural Hermes de Paula,com sepultamento no fim do dia, no cemitério do Bonfim eo horário ainda não foi confirmado.

Atenção para estainformação:Entre os seus feitos, Zezé, em 20 de maio de 1968,

fundou o Grupo Folclórico Banzé, que é uma associação

sem fins lucrativos, cuja atuação fundamenta-se na

pesquisa, preservação e difusão das tradições culturais

e folclóricas de diversas regiões do Brasil e, em

especial, do Norte de Minas Gerais.

Desde a sua criação o grupo visa estimular as pessoas

a conhecerem mais o folclore e a história da música.

Pelas redes sociais o Banzé lamentou a grande perda.

Junto com a Universidade Estadual de Montes Claros

(Unimontes), Zezé Colares teve a iniciativa de criar o

CTM/ Centro Tradições Mineiras – Museu do Folclore,

que foi inaugurado em 12 de agosto de 1993, como uma

extensão da Faculdade de Educação Artística e que

abrigou durante anos todo o acervo histórico do grupo

e a identidade das tradições do Norte de Minas.

Geraldo Augustos Silva – 28/01/1944 -21 de abril de 2020

Geraldo Augusto Silva, conhecido em Gouveia como Dingo

de Vavá se tornou colaborador assíduo da Comissão Mineira

de Folclore. No ano de 2014 participou da edição da Revista

da Comissão Mineira de Folclore – edição 27 - na

oportunidade de celebração do tricentenário de fundação do

Recolhimento / Educandário / Mosteiro de Macaúbas. Sua

última contribuição se deu durante a 53ª Semana

Mineira de Folclore, oportunidade em que nos

brindou com a presença do Coral Crescere e do

músico Lucigênio Gomes Pereira, os quais

abrilhantaram a noite de lançamento da obra

Comunicação e Mudança, a decadência do lazer

tradicional.

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CARRANCA PÁGINA 5

Aconteceu

Dante  Isaías de Siqueira do Matição –Mato do Tição, Jaboticatubas.Faleceu no dia 28 de abril o senhor Dante Isaías deSiqueira.Ele passava para a gente imensa mensagem mística. Matiçãofoi um povoado profundamente estudado por nossocompanheiro Edimilson.O catopê de Matição participou da criação da Guarda deCongo do Espírito Santo de Pinhões e colaborou comfrequência da celebração do Reinado de Nossa Senhora doRosário nessa localidade.

Em louvor a esse mestre do saber manifestou-se nossocompanheiro Edimilson de Almeida Pereira:

Em homenagem ao querido Dante Isaías de Siqueira, daComunidade de Matição, em Jaboticatubas, MinasGerais. Um pensar todo seu, em forma de enigmaquase revelado. Muito desse pensar costurou as páginasdos livros “Os tambores estão frios: herança cultural esincretismo religioso no ritual de Candombe” e “OuroPreto da Palavra: narrativas de preceito do Congado emMinas Gerais” (Mazza Edições, Belo Horizonte). Abiblioteca-viva que são as pessoas como Dante deSiqueira continua na memória, na escrita.

......................

“Rakitundê pé

Pangoma

Vai cumê no kakuru kaié

[...] É Candombe pra pique, canta notra língua praninguém entendê, porque assim as vez o otro num sabe oque que é.” (Dante de Siqueira)

Zélia Rosa Alves – Pinhões. 1 de junhode 1949 – 2 de maio de 2020.Faleceu, hoje, 2 de maio, em Santa Luzia, por volta de 15:00horas, a senhora Zélia, esposa de Waldemar Pereira Alves,mãe de Robinho e Valdete - nesta ordem -.Com esta partida, Pinhões perde parte de sua memória. DonaZélia era depositária de uma memória fabulosa e narravacontos herdados da família. Alguns tinham assombrações,outros acontecimentos memoráveis de frequentação aoConvento de Macaúbas.Infelizmente, não localizei até este instante, entrevista quegravei com a família.Zélia sofreu frequentes acidentes de AVC e se tornouparaplégica nos últimos cinco anos. Contudo, nada distoafetou sua memória.

A fotografia exibida aqui recorda sua presença na missacelebrada no setor Nossa Senhora de Lourdes no mês demaio de 2016, quando tivemos a honra de sua presença.Impossibilitado de comparecer para a despedida, deixo aquimeus sentimentos a todos da família e à comunidade dePinhões

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Por onde andamos

Livraria Pé Vermelho – a mais novaaventura de Marco Llobus e Ricardo

Defesa de Tese: mais uma vez oCongadoKátia Cupertino noticiou:

Defesa de Tese: mais uma vez o CongadoNo dia 24 abril às 14 horas na PUC MinasViviane defenderá tese de doutorado emEducação abordando o tema: Congado eJuventude

Vem aí o Treze de MaioNada além da Liberdade?A Comissão Mineira exibe algumas obras queserão incorporadas ao seu acervo tão logo possacontar com apoio para exibi-las. São centenas de

obras

Vem aí o Treze de MaioNada além da Liberdade?

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Por onde andamos

Recado de Dêniston Diamantino, oHomem do São Francisco.Neste tempo de pandemia, produzimos esse pequenodocumentário, com belas imagens de cidades, afluentes epaisagens no nosso querido Rio São Francisco. Esperamosque gostem! Confiram imagens dos afluentes do SãoFrancisco: Rio das Velhas, Rio Carinhanha, Rio Preto, RioPardo, Rio Peruaçu, Rio Grande, Rio Corrente, Rio Japoré,Rio Pandeiros, Rio Urucuia e Rio Paracatu; além de imagensde cidades ribeirinhas, do Lago de Sobradinho, Lago deItaparica, e o lindo canyon de Xingó. *Deixe o seu Like ese inscreva em nosso canal, clicando em: https://bit.ly/OparaDocumentarios Lembre-se de ativar as notificações!*Siga também: Facebook: https://www.facebook.com/oparadocumen... Vimeo: https://vimeo.com/opara Site: http://www.oparavideos.com.br

Salve Maria meu povo! Estamos passando por uma situaçãomuito triste em nosso Quilombo. Mais, uma vez invadiramnosso Qulombo e roubaram  algumas coisas.  GRAÇAS ADEUS NOSSO SAGRADO NÃO FOI AFETADO,MAS, TEMEMOS POR ISSO.  Por isso, estamos aquiimplorando pra você,  irmão do Rosário,  simpatizante, vocêque nos segue... Nos ajude a levantar nosso Quilombo.Estamos precisando de ajuda. Quem puder doar algo, ouaté mesmo uma oração será de grande ajuda.  Percisamosde dinheiro para comprar coisas novas e para fortalecernossa segurança e até para melhorar nosso Quilombo.  Porfavor nos ajude! Nao é a primeira vez que invadem nossoespaço.  Temos direito a dar segurança aos nossos! Isso éa nossa história! Não Nosso quilombo inteiro chora agora,mas, não vamos calar nosso tambores!#SOSQuilombo #VamosUnirForcas #JuntosSomosMais#NaoVaoCalarNossosTambores

Esta é mais uma contribuição de LaísEme para nossa atenção.

Acessem: http://www.aba.abant.org.br/noticia-24602 paraacompanhar a iniciativa da ABA - Associação Brasileira deAntropologia

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Artigos

Para recordar Moacyr CostaFerreira.

Este artigo foi publicado na Revista 28 da Comissão Mi-neira de Folclore.

Moacyr Costa Ferreira – O olhar daFísica para o Folclore

José Moreira de SouzaNo momento em que me preparo para falar de MoacyrCosta Ferreira, um nume desconhecido me faz retornar àinfância. Em minha terra, Gouveia MG, as festas maioreseram precedidas de novenas, ou até de trezenas como sedava com a de Santo Antônio, padroeiro local. Nessasnovenas e na missa solene havia sempre um coroacompanhado por orquestra. Nessa orquestra, restavaapenas um instrumento que teimosamente fixava o passadode glória da música erudita tão cultivada no século XVIIIem Minas Gerais. Era o violino. Na cidade, havia apenasum violinista. Ele se gabava de sua arte e dizia, “é muitoesforço para dar conta do que faço. Trabalho durante o diaconfeccionando tachos de cobre, tenho os dedos ásperose ainda dou conta de executar músicas de acordo com oque exige a arte do violino”.Um pouco mais crescido, acompanhei o vigário local o, hoje,cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, a uma festa daroça. Haveria levantamento de mastro e, no dia seguinte,missa solene a ser celebrada na sala do fazendeiro. Fui dormircedo, mas acordei ao som de uma folia que entoava“modas” para o levantamento do mastro. Levantei-me e fuiao terreiro. Ao me deparar com a folia, não era de santosreis, mas de São Pedro, abri os olhos. Havia três violinos,executados sem nenhuma cerimônia. Mais tarde soube queos violinos eram “rabecas”.Diferenças. Enquanto os violinistas compram seusinstrumentos e exigem deles qualidades de “marca”, têm àfrente a partitura ou a particela que determina o momentode exibir sua virtuosidade, fazem os dedos tremerem sobreas cordas e sustenta o instrumento entre o ombro direito e orosto, o rabequista constrói ele mesmo seu instrumento,compõe melodias, sustenta a rabeca entre o braço e a mãoe faz sair o som sem reverência.Passados muitos anos, nosso companheiro, Carlos Felipe,quando assumiu pela primeira vez a presidência da ComissãoMineira de Folclore, trouxe para abrilhantar a Semana deFolclore, um senhor conhecido como Zé Coco do Riachão.Zé Coco, intitulado por Felipe, o “Beetovem do Sertão”criava os próprios instrumentos, inventava as músicas dosmais variados gêneros e se tornou personagem símbolo dosaber musical no Brasil.

É com este percurso que homenageio nosso companheiroMoacyr Costa Ferreira. Veja o leitor se faço a comparaçãoadequada.No dia 11 de agosto do ano da graça de 1928, nascia nacidade de Salvador no estado da Bahia uma criança querecebeu o nome de Moacyr Costa Ferreira, filho de Alfredoda Cunha Ferreira e Maria Ubaldina Costa Ferreira. Logomeu leitor há de perguntar: então Moacyr é baiano?Resposta: certamente sua naturalidade é baiana. Contudo,ainda criancinha de colo, o menino já se encontrava com ospais na Fazenda Serra Nova situada no município deGuaxupé MG. Da Bahia restaram alguns relatos dos pais eda vivência na fazenda a memória atenta do saber viver.O menino cresce e é matriculado no grupo escolar e noginásio da cidade. Como meu leitor não tem obrigação desaber o que é Grupo Escolar, nem Ginásio, esclareço quegrupo escolar ministrava o ensino equivalente hoje aos cincoprimeiros anos do Fundamental e ginásio ao correspondenteaos anos de sexto ao nono ano. Nos tempos do meninoMoacyr, o aluno recebia diploma de grupo ao ser aprovadono quarto ano. Para se matricular no ginásio obrigava-se aprestar “exame de admissão” ou a cursar mais um ano extrachamado de Admissão. Era o pré vestibular ao ginásio. Valeacrescentar que pouquíssimas cidades ofereciam escolasalém do Grupo Escolar, e havia até mesmo escolas que nãoeram nem mesmo “Grupo Escolar”. Pois bem, Moacyrnão apenas cursou o ginásio em Guaxupé, quanto prosseguiuos estudos e se matriculou no “Científico” na cidade deSão José do Rio Pardo, no estado de São Paulo.Com diploma do Científico – equivalente ao segundo grau,hoje chamado de Nível Médio - Moacyr Costa Ferreira seelevava acima dos seus conterrâneos – construía seusinstrumentos de trabalho – suas rabecas – e compunha eexecutava as próprias músicas. Traduza-se tudo isto comodomínio da ergologia folclórica – uma das obras pelas quaisserá premiado.Habilitado para a vida, Moacyr se encanta e se casa no diado natal de 1951 com a encantadora Dirce Mattos; daípara frente Dirce Mattos Ferreira. A ela Moacyr dedicouo melhor de sua vida e embalou com alegria as duas filhasque coroaram a festa de natal.Diplomado, além disso, pela vida Moacyr torna-seprofessor de Física no Colégio Estadual de Guaxupé a partirdo ano de 1963. Qualificado como professor, é a vez de seocupar das “Ciências”, mas sem chegar a vez do autor.Tão logo se inaugura uma faculdade de Filosofia Ciências eLetras na cidade de Guaxupé, eis Moacyr de volta aosbancos escolares como aluno de Matemática, Física eDesenho. Em 1969, recebe o merecido canudo, torna-seimediatamente professor de Física e de Física aplicada namesma Faculdade em que se diplomou e cuida de se habilitar

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CARRANCA PÁGINA 9

Artigos

imediatamente para a docência superior. Em 1974, concluio curso de Especialização.Já em 1975, torna-se coordenador do Departamento deCiências Exatas e Experimentais, elegendo-se,posteriormente, - 1982 e 1986 – vice-diretor da Faculdade.Já adiantei, mas faço uma nova pergunta para o leitor. Oque tem a ver Física com Folclore?Ah! Peguei você. Moacyr é ser humano, e presta atençãona vida. Pode ter descoberto com Galileu que “o mundoestá escrito em linguagem matemática”, ou com Espinosa,para que a Ética pode ser escrita ao modo dos geômetras,mas antes disso se convenceu de que o mundo está tambémescrito em linguagem poética, celebrado em mitos e narradoem lendas.Moacyr, por isso, escreve em todas essas línguas. Tão logoinicia a docência no colégio publica para seus alunos. O editoré sempre ele mesmo, com raras exceções.Vale a pena enumerar algumas de suas obras.Resumos de Física; Problemas de Física; Testes de Física;Introdução à Física; História da Física; Meteorologia, aciência do Tempo; Astronomia, noções básicas; formariamo primeiro conjunto de preocupações do autor e seucompromisso com a sala de aula.No segundo conjunto, o professor rompe com as barreirasda especialização e quer se comunicar com todos queentendem ou pensam entender o que é Ciência.Dicionário de inventos e inventores; O estudo das ciênciasno Brasil; Ciência e medição; Ciência curiosa; O clubede ciências; Encontro com a ciência.Desse conjunto sobressai-se a obra O estudo das Ciênciasno Brasil, cuja primeira edição data de 1989. O subtítuloencaminha o leitor para as aventuras do autor:Resumo histórico do desenvolvimento científico no Brasile sua ligação com a tecnologia e a arte.Nesta obra o autor dá a dimensão de suas interrogações.Além do percurso em 15 capítulos, o leitor é brindado comquatro anexos em que obtém informações sobre “Invençõese descobertas no Brasil Colônia; “Ciência e medição –moedas, pesos e medidas antigos” -; Primeiras expediçõescientíficas no Brasil; e Historiadores da Ciência no Brasil”.Além dos anexos, a obra é ilustrada com reprodução dasobras raras sobre os estudos científicos de acordo com aconcepção de ciência de cada momento histórico, juntamentecom manuais de estudos das ciências em diferentes ramos.O leitor pode, desde já, imaginar o que vem a ser conversarcom Moacyr e como ele se propõe a dialogar com seusalunos.O terceiro conjunto da obra marca a formação universalistado autor. Dicionário poliglótico de sobrenomes;Dicionário poliglótico de nomes; Dicionários

morfológico Tupi-guarani; Dicionário de afixos Greco-latinos; Dicionário de símbolos; eis alguns exemplares.Por último, enumero a obra literária e folclórica do autorcujas publicações se multiplicam a partir de 1985:A natureza divertida; Fatos e lendas; Guaxupéfolclórico; O circo; O brinquedo através da história;Histórias de Tio João; Os Reis Magos; Adivinhação esuas formas; Antropologia brasileira, primeiros estudos;Curiosidades folclóricas brasileiras; Ergologiafolclórica; Ciência folclórica; Superstições; Folcloreregional brasileiro; Artesanato no Brasil; Fatosfolclóricos brasileiros; Dicionário de símbolos; Beldadesda Mitologia Greco-latina.Esta variedade de obras permite imaginar de que modo, oautor irriga as áreas de saber especializado com a atençãopermanente ao saber popular. Essa marca do folcloristatornou o autor premiado tanto em suas criações poéticas,quando no empenho em sistematizar o saber popular. Dessemodo, obtém premiação pelas obras de poesias e contose também pelo empenho em disseminar a trajetória de fazerciência no Brasil e pela atenção à Física Popularincorporada no dia a dia das comunidades.Ergologia Folclórica publicada em primeira edição em1999 mereceu o Prêmio Clio conferido pela AcademiaPaulistana de História. É, com efeito, uma obra de elevadailustração. Moacyr divide sua exposição em duas partes.Na primeira, apresenta o que chama de “Cultura BrasileiraPrimitiva” e a segunda, “Artesanato no Brasil”.Vale a pena apresentar ao leitor a variedade dos temasabordados. Na primeira parte, o autor inicia enumerandoe caracterizando “os ciclos da evolução econômica noBrasil” – Pau Brasil, açúcar, mineração do ouro e pedraspreciosas, café e gado, e os subciclos decorrentes; emseguida dedica-se à indústria com destaque para técnicase artefatos – implementos agrícolas, monjolo, máquinasrudimentares, cisterna, olaria e cerâmica, arte de fabricarqueijo, engenhos, moinho de água, engenhoca, máquinasde fiar e tecer, fiação, roca e fuso, tear. Transporte é alvode mais uma atenção do autor. Discorre sobre o transporteterrestre chamando a atenção para tropeiros, mascates ecometas, carreiro e carros de bois. Remete o leitor, emseguida para o transporte aquático –canoas, botes ejangadas e os ofícios adequados ao seu uso. Findo essepercurso, Moacyr brinda o leitor com as condições dereprodução da vida material. Apresenta e detalha as culturaistradicionais do Brasil; em seguida enumera e caracterizaos instrumentos e medidas empregados para as váriasculturas de que emergem algumas figuras emblemáticascomo o vaqueiro e o retireiro. Garantida a reprodução davida material, o autor passa em revista as “distrações epassatempos” – jogos e brinquedos, instrumentos musicais,

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ARTIGOS

CARRANCA PÁGINA 10

atrações circenses, festas e uso de máscaras, comércio,pirotecnia, vestuário e habitação, objetos domésticos,objetos supersticiosos, devoções, instrumentos para castigo,alimentação e seus preceitos.A segunda parte - Artesanato no Brasil – comenta a origemdo artesanato, a valorização do artesanato, para discorrer,em seguida sobre os “principais ramos do artesanato.Mas, é na obra Ciência Folclórica, São Paulo: Edicon,2001 que Moacyr exibe plenamente que Folclore vai muitoalém das “Ciências Antropológicas e Culturais”. Esse autorafirma, logo na Introdução:

Percebemos mais a ligação folclórica no estudoinicial das ciências em geral, como no caso daspráticas médicas que, no princípio da históriada Medicina, eram acompanhadas de magia eencantamento.A Antropologia Cultural possui afinidadealtamente palpável com a ciência folclórica,considerando-se, principalmente, conceitos eteorias de interpretação cultural.O mesmo acontece com a Física, a Astronomia,a Biologia, a Matemática (através dos números),a Química (pela Alquimia), a História, aGeografia.

Será este o plano da obra. A contribuição de Moacyr é defundamental importância ao mostrar que esta divisão doFolclore mostra o “espelho quebrado”. As ciências ao sedividirem terão que pagar pedágio ao Folclore que semantém escondido talvez até em seus pressupostos.O percurso pelo plano da obra já evidencia que os estudosdo folclore vão muito além da submissão a um dosfragmentos do espelho. Para o estudo do folclore é precisoprestar atenção na relação entre a “Ciência Antiga” e a“Sabedoria Popular” como processos históricos. A partirdaí cada fragmento do espelho exibe a relação das partescom algo que pode ser captado como totalidade da figura.A seguir, alguns destaques:“Folclore na Física”: Meteorologia folclórica, a chuva, aseca, as nuvens, nevoeiro, vento, raio e trovão, redemoinhos,clima, eletricidade atmosférica, previsão do tempo, arco-íris, fogo fátuo, fogo de santelmo, fogo grego, fogo morto,luz viva, estrelas cadentes, meteoromancia, auroras, folcloree o tempo, a noite, as horas.“Astronomia Folclórica”: Astros, estrelas, o sol, a lua esuas fases, asteroides e cometas, eclipses, cometomancia,arqueoastronomia, relógio solar.“Astrologia”: Signos, astromancia, geomancia, , astrolatria,actinomancia, heliomancia, selenomancia.“Cosmologia”: Cosmogonia.“Alquimia”: A Química e o folclore, pirotecnia, armas earmeiros.“Agronomia popular”.

“Geofísica”:Geologia folclórica, as pedras, cor, efeitosfísicos e efeitos espirituais; cristalomancia, mineração,litomancia.“Economia e Folclore”: caça e pesca. [a questão daagricultura foi abordada na parte introdutória; Sociologia eFolclore].“Economia Folclórica”: Vendedores e profissionaisambulantes,“Ecologia e Folclore”: Geomancia, hidromancia,aeromancia, piromancia.“O Folclore e a Biologia”: zoologia folclórica, os animais,fábulas, migrações; aves: as gaivotas, eletricidade animal,luminescência dos seres vivos, zoomancia, espécies deanimais; apicultura, inteligência dos animais; superstiçõesrelativas aos animais. Zootenia: raças; Botânica supersticiosa,hierobotânica, garrafada, as plantas e o folclore. O poderflorestal.“Matemática folclórica”:Origem dos números,logaritmomancia, a numeração dos tempos, topografia,aritmomancia, horoscopomancia, onomomancia, número esentimento.Odontologia e folclore.Farmácia e folclore – medicamentos.Medicina folclórica: Medicina popular.Arqueologia e folclore.Ciência Mitológica e Folclore.A trajetória de Moacyr atualiza a querela que animoudiscussões no I Congresso Brasileiro de Folclore – 1951 -, na oportunidade de elaboração da Carta Brasileira deFolclore. Em diferentes publicações, Saul Martins narra quea delegação mineira se opôs à proposta do grupo paulista eà tese do “Folclore Nascente” defendida por Rossini Tavaresde Lima. Outros relatos mostram que a querela era maisextensa. Rossini defendia que o estudo do Folclore secaracterizava por sua novidade, dispensando a submissãoàs especialidades acadêmicas em constituição. Conta-se queum dos argumentos vencedores era também homenagemao falecido Arthur Ramos – médico, psicólogo social,etnólogo, folclorista e antropólogo – de que resultou aseguinte redação:

O I Congresso Brasileiro de Folclore reconheceo estudo do folclore como integrante das ciências

antropológicas e culturais, condena opreconceito de só considerar folclórico o fatoespiritual e aconselha o estudo da vida popularem toda sua plenitude, quer no aspecto material,quer no aspecto espiritual.

Esta querela se estendeu ao longo da década e alimentou apolêmica travada entre Edison Carneiro e FlorestanFernandes sobre a “cientificidade” do Folclore. Valesublinhar que, a essa época, as assim chamadas “ciênciasantropológicas e culturais” ainda engatinhavam para se

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ARTIGOS

consolidarem na divisão do trabalho intelectual acadêmicono Brasil. À parte Gilberto Freire – Porque sou e não sousociólogo - o loteamento científico das especialidades aindase havia demarcado. O movimento do Folclore consolidadona criação da Comissão Nacional de Folclore em 1947 foium grande passo nessa direção.Loureiro Fernandes da Universidade Federal do Paranáreconstitui esse momento: “Creio que a Carta do FolcloreBrasileiro, enfrentou com realismo, a exata solução capazde tirar as pesquisas folclóricas no Brasil, exclusivamentedo seu caráter eventual e fortuito, tornando-o realmente umadisciplina científica. É verdade que para um tal resultado,teremos que abandonar posições extremas”. (p.151)A voz de Rossini se levanta para dizer que a Carta “deu aofolclorista uma posição de inferioridade em relação aoetnólogo” e justifica essa posição declarando que osfolcloristas imploram atitudes paternalistas de áreas deciências em consolidação no Brasil “as quais na realidadenão mostram o menor interesse pelo estudo de FolcloreBrasileiro.” Esta posição de Rossini não se compreendesem menção a São Paulo, à Universidade de São Paulo e àEscola Livre de Sociologia. Rossini acrescenta e situa: “Nósfolcloristas do Museu e da Escola de Folclore, nãoprecisamos de conselhos, porque dentro de nossa orientaçãoe interesse continuado, vamos conhecendo melhor a nósmesmos e nosso semelhante, e o grupo em que vivemosnessa região, o Brasil e o mundo, sabendo que o Folclorecomo expressão da cultura popular espontânea do homemde sociedade letrada não tem idade, não tem fronteiras.”E onde entra Moacyr em meio a essa querela?Respondo. Como reforço à indignação do Rossini. Osestudos de Folclore dialogam com toda e qualquer áreaespecializada e com limites demarcados de loteamentointelectual. Para ser “folclorista” não se exige especialidadeacadêmica. Apenas a disposição conhecer melhor a nósmesmos e nosso saber viver.Moacyr, nascido na Bahia e imediatamente criado emGuaxupé, mineiro de olho em São Paulo, atento ao “GuaxupéFolclórico”, finalmente, tornou-se Cidadão Guaxupeano nodia 30 de março de 1992.Quanto à Comissão Mineira de Folclore devemos aoMoacyr a entrega do Diploma de “O Mais Ilustre Pé deBoi” por nos ajudar a subir no pau de sebo.

QUANDO A SANIDADE VOLTAR _Para quarentena de 55 dias.

Carlos Felipe Melo Marques Horta

(ou “Divagações insanas em tempos de insanidade”)Muitos estão cantando, outros escrevendo livros, alguns

descobrindo que há flores para plantas, mais outros eoutras fabricando máscaras ou distribuindo alimentos eajudas, tantos trabalhando na saúde e na seguranças, e

tantos mais esperando o fim deste momento. A todos umpouco da nossa insanidade mental. Dentro em pouco, se

Deus quiser, tudo vai passar)Carlos Felipe

1.QUANDO A SANIDADE VOLTAR-Quando asanidade voltar. Mas voltar toda. A sanitária, asocial e, principalmente a política…

2.Quando a sanidade voltar, vou abrir o portão edescobrir se o mundo ainda existe e se minhacasa não virou uma arca de Noé.

3.Quando a sanidade voltar, vou desligar a televisão,a não ser quando tiver jogo de futebol, mostrarque ainda há flores no mundo e que os passari-nhos continuam frequentando os fios da energiaelétrica.

4.Quando a sanidade voltar, vou tentar descobrir seinventaram remédio para a solidão, dor de barrigae coração apaixonado,

5.Quando a sanidade voltar, eterno jornalista quesou, vou tentar descobrir se os milagreiros quecuram tudo, desde que se pague alguma coisa, seeles continuam soltos

6.Quando a sanidade voltar, vou querer saber ondeestão os eleitos nas últimas eleições que sumiram,misteriosamente, mas que já estão se preparandopar uma nova ofensiva.

7.Quando a sanidade voltar, quero ver se os direitosdas pessoas, garantidos pela Constituição , aindaexistem porque, neste momento, qualquerpretensa autoridade faz o que quer, só pensandonas próximas eleições.

8.Quando a sanidade voltar, quero ir ao buteco deesquina, logo eu que quase não vou a buteco,pedir uma cachaça, um bife acebolado e, se nãotiver, batata frita mesmo, e contar lorotas, menti-ras e divagações sem sentido por um tempoafora.

9.Quando a sanidade voltar, quero caminhar contra ovento, sem lenço e sem documento. Como oCaetano cantou. E até parar na contramão,atrapalhando o tráfego…

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ARTIGOS10. Quando a sanidade voltar, quero ir ao centro

da cidade, sem tampar a cara, do jeito que sou equero que todos me vejam. Afinal, devo tersobrevivido,.

11. Quando a sanidade voltar, quero ler osjornais todos nas bancas e também os que euassino, eles contando que a lua é azul, as crian-ças estão ouvindo cantigas de ninar e que todospodem cantar na rua, sem medo de ninguém.

12. Quando a sanidade voltar, vou subir nova-mente pelos montes, tomar banho de cachoeira,nadar pelado nos poços dos rios da infância ebrincar com os macaquinhos pendurados noscipós das lembranças.

13. Quando a sanidade voltar, pretendo exigir,mesmo sem autorização de ninguém, que ospoderes constituídos pensem mais no país e seupovo e menos nos tamanhos de seus narizes.

14. Quando a sanidade voltar, que estes mes-mos poderes se lembrem que mais do que teresmola, as pessoas querem o justo direito ao seutrabalho e ao ganho dele decorrente.

15. Quando a sanidade voltar, Beethoven,ouvindo tudo, vai mostrar a sua Décima Sinfoniae todos os mineiros ouvirão de novo a Missa emSi Bemol Maior, de Lobo de Mesquita.

16. Quando a sanidade voltar, quero andar pelasruas novamente, só tendo medo de bandidosque, aliás, não saíram delas.

17. Quando a sanidade voltar, quero visitar osamigos e também recebê-los, sem preconceitos etemores. Pois, afinal, nenhum de nós, apesar detoda a propaganda, é um dos quatro cavaleirosdo Apocalipse.

18. Quando a sanidade voltar, espero ver umtrem de ferro passando perto e, com a graça deDeus, vou conseguir comprar uma passagem echegar até onde começa o arco-iris.

19. Quando a sanidade voltar, quero de novo asserestas. as violas nas praças, os congadeiroscantando, os saxofones chorando choros, assanfonas arregaçando os sons, a música dasflautas dançando no ar acompanhando umcavaquinho tocando rock.

20. Quando a sanidade voltar, quero gastarmenos água, depois de lavar as mãos duzentasvezes por dia. E economizar também na energiaelétrica depois de tanto tempo em casa.

21. Quando a sanidade voltar, espero ter tempopara ler todos os poemas, músicas, crônicas,textos e divagações que estão sendo feitas portodos os “isolados socialmente” ao longo destesquase dois meses dentro de casa.

22. Quando a sanidade voltar, não quero ouvir,de jeito nenhum, por um bom tempo, comentáriossobre poderes públicos, de qualquer natureza ede qualquer dimensão. Quero ouvir, isto sim,sobre a grandeza de nosso povo brasileiro, queaguenta tudo e ainda sorri.

23. Quando a sanidade voltar, vou andar mais deônibus, pois carro parado economiza gasolina efica muito mais barato.

24. Quando a sanidade voltar, nos encontraremosnovamente, faremos reuniões festivas, marcare-mos viagens e até sonharemos em brincar derodas, deixando de lado os aparelhinhos eletrôni-cos.

25. Quando a sanidade voltar, espero ter alma decriança, para brincar de pique, de bolinha degude, amarelinha, corrida de saco e pular corda.E com mais amigos ensinar para a criançada dehoje.

26. Quando a sanidade voltar, vou contar para osamigos todas as loucuras que pensei e até mostraras poesias doidas que escrevi, isolado do mundo..Infelizmente, não compus música nenhuma. Sóimaginei.

27. Quando a sanidade voltar, vou dispensar devez o álcool gel e , em vez dele, tomar umacachacinha que não pega fogo. Melhor se forjunto com companheiros pois cachaça na solidãofaz mal.

28. Quando a sanidade voltar, vou exigir dosamigos que resistiram à quarentena que não memandem mensagens no what’s zap e nem pelainternet, Quero ouvir suas vozes de novo.

29. Quando a sanidade voltar, vou querer quetodos se lembrem de um papa rezando sozinhouma missa numa praça vazia mas repleta de todosos seres do mundo.

30. Quando a sanidade voltar, espero ver umaestrela cadente e, como sempre fiz, fazer trêspedidos a ela. Um deles que o Covid vire logo sótriste nome na lembrança do Brasil e do mundo.

31. Quando a sanidade voltar, quero tomar umcaldo de mocotó na rua Guarani, comprar elepêscom o Antonio Soares no Mercado Central,visitar de novo a Senhora do Rosário em suacapela no centro, encontrar a Lambreta na PraçaSete e ver Carlos Drummond de Andrade passan-do por cima do Viaduto de Santa Teresa. Numainsanidade total.

32. Quando a sanidade voltar, será que é sonhardemais que, em vez de vírus no ar, estejam caindoflores em cima da terra e perfumando as pessoas?

33. Quando a sanidade voltar, não haverá mas-carados nas ruas e, se houver, que sejam presos e

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ARTIGOScolocados na hora na cadeia.

34. Quando a sanidade voltar, quero todas aslojas de portas escancaradas, com muita gente ládentro, pessoas se encostando, como filhas deDeus que são.

35. Quando a sanidade voltar, quero ver de novopessoas frente a frente, dar abraço nelas e atébeijar se isto não ofender a ninguém,

36. Quando a sanidade voltar, se eu morrer,quero meus amigos cantando uma seresta, comosempre pedi. É bom que todos vão mesmoporque a promessa de reserva de cachaça espe-cial para a festa continua de pé.

37. Quando a sanidade voltar, rezarei, mais forteainda, para que que o povo descubra que deleemana o poder e cobre mais daqueles que andampor aí, pensando que são deuses e que tudopodem.

38. Quando a sanidade voltar, chamar todomundo para uma reunião no Porão, com direito acantar, declamar e até chorar. Com lágrimas deverdade.

39. Quando a sanidade voltar, que os bandidos,de todas as categorias, deem uma trégua edeixem, pelo menos, todo mundo respirar umpouco e retornar à vida.

40. Quando a sanidade voltar, que os teatrosreabram, os espetáculos retornem, os violõessejam ouvidos de novo e o canto do povo estejanas praças e ruas, mostrando que a vida é linda evale a pena ser vivida por inteira.

41. Quando sanidade voltar, entrarei de novonuma capela e , depois, vou comer um pastel fritona hora, acompanhado de uma cachaça bemmineira, ouvindo, no rádio do bar, Tonico eTinoco e Elomar.

42. Quando a sanidade voltar, que os filhos enetos possam se encontrar de novo com seuspais e avós, vindos de todos os lugares. Sem leis,barreiras e, principalmente, terror e medo.

Quando a sanidade voltar, ouvir de novo o barulhode aviões passando, subir aos ares em cima deum papagaio e descer das nuvens em um skateprateado.

43. Quando a sanidade voltar, mesmo que istoseja insano, quero ler de novo Escaramouche,Grande Sertão Veredas, os poemas deDrummond e Fernando Pessoa e assistir e parti-cipar de novo ao Poesia na Praça, nos temposáureos de Beagá.

44. Quando a sanidade voltar, quero ir para aPraça de Santa Tereza, ver o tróleibus passar eterminar a noite com a Confraria de São Gonça-lo, cantando até a polícia chegar.

45. Quando a sanidade voltar, deixar os filmesda Internet e entrar num cinema de verdade, parabeijar a namorada e comer pipoca.

46. Quando a sanidade voltar, não deixar cair noesquecimento quem está trabalhando para nós,desde o padeiro que entrega os pães a todamanhã aos médicos e enfermeiros que estão sematando de trabalhar, mas lembrando também aturma do caminhão de lixo, o pessoal da seguran-ça e tantos outros que a gente nem sabe.

47. Quando a sanidade voltar, espero que asautoridades, verdadeiras ou não, descubram queo direito de ir e vir é sagrado e que as praças sãodo povo como o céu é do condor.

48. Quando a sanidade voltar, vamos falar denovo na mula sem cabeça, nos sacis, sereias ecaboclos dágua, jogando os vírus para a Tongada Mironga do Kabuletê, como disse o poetaVinicius.

49. Quando a sanidade voltar, se houver maisministros falando ao vivo, juntos, na televisão, sóassistir se o encontro for para dizer que tudo vaibem e que há paz entre eles e todo mundo quevive da política…

50. Quando a sanidade voltar, que tenhamosmuita coisa para contar, achada nos escaninhosdas memórias, nos armários esquecidos e dentrode velhos livros . E que tenhamos também recei-tas e rezas descobertas em algum lugar dascasas.

51. Quando a sanidade voltar e eu tiver certezade que estou vivo, pular que nem criança, dançarcomo se fosse um eterno carnaval, voar do cimode uma montanha e ser carregado por umaandorinha, como dizia Mário de Andrade.

52. Quando a sanidade voltar, que os quatrocavaleiros do Apocalipse sejam substituídos poranjos de todas as cores cantando e entoando amúsica celeste da paz para todos os seres de boavontade.

53. Quando a sanidade voltar, o mundo novoque está sendo vislumbrado venha rapidamente,porque, se a humanidade não tiver aprendidomuito com o momento atual, ela não merece otítulo de humana.

54. Quando a sanidade voltar, que todos nós nosamemos de novo, abrindo as portas e janelas e,principalmente, os corações, dizendo, comsinceridade “eu te amo”, “eu amo você.”

55. Quando a sanidade passar, voltar a crer em

Deus, não por medo da morte mas por amor à

vida

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ARTIGOS

Sombras nas cavernas

Antônio de Paiva MouraPresidente de Honra da ComissãoMineira de Folclore

Pelos relatos históricos é possível imaginar comoforam tenebrosas as viagens de bandeirantes e outrosaventureiros pelas terras mineiras, nas primeiras décadasdo século XVIII. Matas fechadas sem cainhos definidos;rios correntes e caudalosos, animais ferozes e índiosassustados. Com as descobertas das minas e formação dosarraiais e vilas aumentou mais ainda o perigo de trafegarpelas estradas, pelos inúmeros assaltantes que aí atuavam.Os salteadores de caminhos, como eram chamados,escondiam-se em matas fechadas ou em cavernas nasproximidades das estradas.

Nessas circunstâncias corria uma lenda, transcrita porAfonso Arinos, de que era recomendado não passarpróximo às cavernas porque elas eram habitadas por índiosbrancos antropófagos, que matavam viajantes ebanqueteavam no interior das cavernas. Eram eles os “tatusbrancos”. Há nessa lenda relatos de grupo de tropeiros eviajantes que desaparecem e nunca mais foram vistos. Sabe-se que não havia índios brancos e que os Cataguases quehabitavam as matas nos caminhos para São Paulo e Rio deJaneiro, não eram antropófagos.

A primeira intenção da lenda era preservar a imagemdos brancos originários da Europa e daí os salteadores,que matavam os viajantes para não deixar pista, deviam seríndios.

Tinha, também a função de prevenir, alertar osviajantes para os perigos dos caminhos. A lenda “Tatusbrancos” conta o caso de um bandeirante e seus ajudantesque resolveram desvendar aquele segredo e eliminar osíndios. Ao entrar na mata os tatus brancos fizeram umaemboscada e prenderam o grupo todo, levando-o parainterior da caverna. Como uma índia gostou do bandeirante,ele foi preservado e presenciou os índios assando e comendoseus ajudantes. Alguns dias depois o bandeirante conseguiufugir da gruta e encontrar o caminho de casa.

Tudo que é escuro, como o interior das cavernas;desconhecido como os fundos de rios e lagoas gera lendasno sentido de buscar esclarecimento e alerta de perigos.Daí as lendas de Caboclo e Mãe D’Água, animais e almaspenadas no interior das cavernas.

Na “Alegoria da caverna”, ou mito da caverna, em“A República”, de Platão (428-434 aC) há uma analogiacom as lendas relacionadas com o medo da escuridão.Diversas pessoas são obrigadas a ficar confinadas no interior

de uma caverna. Lá só vêm sombras projetadas na parede,por causa de uma fogueira sempre cadente, passando acrer que elas são a realidade. A falta de luz solar no interiorda caverna é a ilusão que impede a percepção do real.Acontece que um prisioneiro consegue sair para fora dacaverna e, graças à luz do sol, vê como as coisas são narealidade. Nesse instante o prisioneiro se transforma nofilósofo, aquele iluminado que vê a realidade. Daíobscurantismo ser antônimo de esclarecimento.

Há um estereótipo de que tudo que existe no interiordas cavernas é mau e por isso, perigoso. Os morcegos queficam pendurados de cabeças para baixo; os íconesdesenhados nas paredes evocam figuras maléficas. Algunssinônimos de cavernas ficaram conhecidos por designargrupos de pessoas malfeitoras e indesejáveis. Antro deperdição, covil de ladrões. Sujeito cavernoso, vozcavernosa. Costumam classificar pessoas muito atrasadascomo os trogloditas que viviam em cavernas na África.

Uma história que chegou até nós, mais por tradiçãooral que escrita, é a de Ali Babá e os quarenta ladrões.Quarenta ladrões escondiam em uma caverna, fechada comenorme pedra, muitos tesouros frutos de roubos. Ali Babádescobriu a palavra mágica “Abra-te sésamo” e conseguiuremover a pedra, entrar na caverna e apossar-se de umvalioso tesouro, o que lhe valeu a preferência para se casarcom a princesa.

O dinamarquês Peter Wilheim Lund (1801-1880),em mais de quarenta anos de prospecções nas grutas doVale do Rio das Velhas, encontrou fosseis de animais ehumanos, que podem testemunhar a razão das fantasias quetanto atormentaram nossos antepassados. Como o filósofona “Alegoria da caverna”, Dr. Lund nos mostra a realidadee nos tira das sombras e assombrações do interior dascavernas; das sombras dos tigres com dentes de sabrespara o significado de tais fósseis.

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ARTIGOSBANQUETE DE VELÓRIO

Wallace Gomes – membro efetivo da Comissão Mineirade Folclore

É costume em Abreus os banquetes de velório. Elerepresenta a última refeição na presença do falecido. Ospratos são os mais variados: macarronada, tutu de feijãocom arroz, pão com mortadela, farofas, broas, bolos, todosseguidos de bebidas que iam desde refrigerantes e café atéa afamada cachaça, elemento indispensável das festas debatismo até o velório.A respeito do pão com mortadela no velório, o costume setornou frase-feita na boca do povo, como relata o texto deJosé Geraldo Pereira Baião publicado no extinto sítioeletrônico da Fazenda Bom Destino – Abreus.

“Costume muito comum no povoado de Abreusé servir verdadeiras refeições durante o velório.Os itens que mais sucesso fazem no menu são, asuculenta macarronada e o indefectível pão commortadela. Já na carta de bebidas, a boa e velhacachacinha da região é a preferência unânime.Numa bela e ensolarada tarde de julho, o RezendeGeraldo Pereira (Piriá), num gesto de altruísmo,disse a um motoqueiro que estava tentando ligara moto completamente alcoolizado: - Se vocêcontinuar andando de moto bêbado desse jeitonão vai demorar muito e nós vamos comer pãocom mortadela lá na sua casa! A expressão comerpão com mortadela é sinal de que morreu alguémna cidade”.

Comer no velório não é simplesmente um ato de manter-senutrido para aguentar a madrugada na guarda do defunto,tem toda uma questão histórica, cultural, religiosa epsicológica para responder porque se come, como se comee o que se come. Em Anúbis e outros ensaios (1983)Câmara Cascudo disse que foi o Egito que deu início edivulgou o banquete fúnebre. O costume perdurou atéPortugal e então chegou até nós através dos colonos. Lopesem Os alimentos nos rituais portugueses (1850 – 1950)anotou diversos ritos envolvendo alimentação com enterrose velórios. Em algumas cidades portuguesas as mulheresseguiam o cortejo fúnebre com garrafões de vinho e cestasde pães na cabeça para servir os presentes; em outras vilasservia-se azeitonas, pão e chouriço depois do enterro. Emterras brasileiras, o costume português mesclou-se com osritos Africanos. O bispo D. Antônio de Guadalupe, no anode 1726, indignado com os cortejos festivos dos Africanosfrente ao morto registrou que os Africanos faziam“ajuntamento de noite com vozes e instrumentos emsufrágio de seus falecidos ajuntando-se em algumasvendas, onde compram várias bebidas e comidas, edepois de comerem lançam os restos nas sepulturas”.Havia uma festa dos mortos em Alagoas que José de MelloMorais Filho que era composta de várias etapas, incluindojejum, rezas, sacrifícios, banquetes e danças. O costumede comer na presença do morto é antiquíssimo e ainda vividoem comunidades do interior. Não é de se espantarver uma gourmetização dos velórios por parte dasempresas funerárias dos grandes centros urbanos, onde éservido chá, café e quitutes para os vivos que acompanhamo morto noite a dentro

Tô aqui pensando... O MOÇO RICO QUE

QUERIA TRANSAR COM A LINDA MOÇA

Vinícius Cabral

Jornalista e Produtor Cultural

Ela era a moça mais bela daquela cidadezinha humilde.

Embora tivesse poucas posses, a família, de costumes

rígidos, era respeitada e admirada por todos.

Atraído pela beleza da jovem, chega à cidade um moço

rico. Com sua fala fácil e aparência fina, vai

conquistando a todos, despertando invejas pelas suas

posses.

Até mesmo os pais da bela moça foram envolvidos pela

nova promessa de futuro, permitindo a sua aproximação

e o namoro, enfim.

Os parentes mais maduros, experientes, desaprovaram

a relação. Não acreditavam nas intenções daquele

visitante inesperado.

O moço da cidade grande, acostumado aos “avanços”

dos relacionamentos entre jovens casais, fazia tudo

para estar sozinho com a bela namorada, para ter com

ela mais intimidades.

Mas, não! Sua beleza não estava disponível, naquelas

condições, para tais liberdades.

Como fazer então, para conhecer todos os segredos

daquele corpo encantador e desfrutar, com mais liber-

dade, daquela deusa da beleza?

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O Movimento dos Folcloristas em Minas GeraisEra necessário astúcia.

Decidido a possuir aquela que era a menina dos olhos

de todos os rapazes da região, propõe então, o casa-

mento. Era a única forma de obter a tão almejada li-

berdades.

Iludidos pela promessa de futuro para a filha, que se

casaria com o jovem moço da cidade grande, de mui-

tas posses e tratos finos, elevam a jovem namorada à

categoria de noiva.

O falante rapaz agora, desfrutava de mais confiança e

já podia sair sozinho com a noiva e ir com ela aonde

quisesse, sem hora pra voltar.

Os parentes percebiam... alertavam. Porém, os pais,

inebriados pela oportunidade, entregavam a preciosa

joia nas mãos do astuto comprador.

Foi então, que num daqueles passeios mais demora-

dos, o galante conquistador, usando de todo o seu

charme e dos argumentos masculinos possíveis, con-

segue o objetivo há tanto perseguido.

Estava realizado. Transara com a mais bela moça da

região. Sim! “Transaram”, porque na transa não há sen-

timento... é uma transação.

Conhecera os mais íntimos segredos daquele lindo cor-

po; vencera enfim, todos os possíveis concorrentes e

obstáculos àquele nefasto desejo.

Vitória... realização!

A intenção do jovem aventureiro não era digna, desde

o começo. Aliás, dinheiro nunca foi sinônimo de digni-

dade. E em pouco tempo, o rapaz encontrou um jeito

de romper com o compromisso e partir.

Alegando motivos pouco convincentes, despediu-se da

moça, deixou toda a família decepcionada. Partiu, le-

vando todos os sonhos daquela gente.

E aqui termina a nossa história.

Para não deixar o leitor apenas com um sentimento de

indignação e vontade de punir aquele canalha, cabe

ainda dizer: que você fez parte dessa história.

Você leitor, é parente dessa moça e também foi enga-

nado.

Esses personagens são reais e tem nomes: o moço de

berço dourado chama-se Boeing e a jovem moça, cheia

de beleza e segredos se chamava Embraer. A família,

traída e aviltada na honra? Ah! ela se chama povo bra-

sileiro.

IMAGEM EMMOVIMENTO NOSERTÃOSANFRANCISCANO:o advento do Cine

Barranco

Ramiro Esdras Carneiro Batista

Membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore

Dia desses, ou, melhor dizendo, n’uma dessas noites serta-nejas, enluarada, quente e mormaçenta como o diabo, pudetestemunhar o advento dos trabalhos do Cine Barranco,experiência que cumpre compartilhar com os membros daComissão. Ocorre que do ideal de um economistajanuarense [Trata-se do jovem Gleydson Vicente Mota, quedentre outras coisas é ativista cultural, mesmo estando osativismos proibidos (?) no Brasil.] – atenção: nem todos oseconomistas do mundo são paulo-guedeanos – surge apossibilidade de democratizar a sétima arte nos sertões doalto-médio São Francisco. Experiência e responsabilidadepartilhada com meia dúzia de jovens intelectuais sertanejose mais alguns velhinhos culturalistas meio gagás, categoriaúltima na qual me incluo. A primeira sessão de cinema doprojeto ocorreu nas dependências do Centro de Artesana-to da Região de Januária (18, jan, 2020), recebendo porvolta de sessenta pessoas de diferentes faixas etárias que,ambientadas em um legítimo quintal januarense, puderamassistir e discutir o polêmico e premiadíssimo “Bacurau”,película dos pernambucanos Kleber Mendonça e JulianoDornelles, cineastas que nos brindam 1 Antropólogo &Educador, membro-errante da Comissão Mineira de Fol-clore.

IMAGEM EM MOVIMENTO NO SERTÃOSANFRANCISCANO: o advento do Cine Barranco comum vigoroso western-cangaceiro, aliás, muito pertinente, nosentido de apontar a atualíssima subserviência de determi-nados agentes brasileiros ao neo-colonialismo e anecropolítica norte-americana. Nessa oportunidade em es-pecial, o ponto alto do filme pareceu estar centrado nasesdrúxulas aparições do suposto prefeito de uma Bacurauimaginária. Mas seria ela mesma imaginária? E sendo ima-ginária, porque provocou tamanha comoção? Explicamos:esse “prefeito” trata de uma figura que parece se reproduzirem escala industrial em todo o semiárido brasileiro, um tipode urubú-caricato que vive entre manjadas negociatas, ma-

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nipulação dos problemas hídricos regionais, além devexatório deslumbramento ante a possibilidade de vendero suposto “exotismo cultural” de sua gente, a qualquer gringodisposto a pagar. Entre vaias e apupos, o político vendilhãodo nordeste sobrepõe-se em catarse junto ao público, tal-vez por sua realidade cruenta, relegando a segundo ou ter-ceiro plano os protagonistas da película. Enfim: Brasil Inte-rior; Brasis Profundos.

De acordo com o coordenador/idealizador do Cine Bar-ranco, Gleydson Mota:

“[a] ideia é democratizar a linguagem cinemato-gráfica para o público norte mineiro (...) veja bem,tem-se Januária, um município com uma populaçãode 68.000 habitantes [ Dados do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE). Disponível para consultaem: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/januaria/historico.Acesso: Dezembro de 2018], onde há décadas não con-tamos com nenhum cinema ativo. Pensamos naque-les januarenses, aspirantes da sétima arte, que não aencontram (...) A lógica deste processo é simples: comdesigualdade econômica e social aparente, os privile-giados socialmente podem fruir da arte ainda que deforma momentânea, em contrapartida a maior parce-la é excluída pois o valor do ingresso e demais gastoscomo transporte e alimentação para outros centrosurbanos, por exemplo, não cabem no orçamento. (...)

É missão nossa e de nosso Centro de Artesanato, nos-so Ponto de Cultura, fomentar, articular e apoiar ati-vidades das mais variadas manifestações culturais,artísticas e de saberes e fazeres” sempre relacionan-do-as às nossas tradições”[.] (Comunicação pessoal– jan,2020.

Enfim, fica em mim a forte impressão de que iniciativas comoa do Cine Barranco demonstram que ainda estamos no jogo.Que perdemos algumas batalhas, mas a história está longede se encerrar... Dessa maneira é que insisto e prevaleçocom mon ami Ferreira-Gullar: a arte vai nos salvar dos fas-cismos, nazismos & outros ismos. Seguimos de pé, nuncade joelhos, às vezes sentados, vislumbrando a imagem emmovimento.

Para a sexta feira da PaixãoAo longo de nossopercurso humano, oudesumano, vivemos longasperipécias de controle dapopulação. Certamente, afome foi um dos primeirosrecursos de promoção dasegunda, a Guerra. Naesteira da Guerra brotou aimaginação criativa daescravidão. O vencido

serve para alguma coisa, entre essas, a promoção deexcedentes para a classe ociosa dos guerreiros.Esta simplificação de processos sociais que se assemelhaàs doutrinas evolucionistas é mais do que necessária paracelebrar o dia da Crucificação de Nosso Senhor JesusCristo, a Sexta Feira da Paixão. Dia do Grande Silêncio.É curioso que para nossa civilização chamada de Cristã,afinal estamos no ano de 2020 da era cristã, vivamos naquaresma a quarentena imposta pelo deus mercado, longosdias de silêncio.Há que recuperar este estranho e inusitado encontro dosaber técnico científico com o saber teológico popular. Osaber técnico que tem a Ciência como valor maior preceitua:para salvar o Mercado é preciso decretar um momento derecessão, recolhimento, isolamento. Mercado precisa detrabalhadores e consumidores. Decreta uma Economia deGuerra cujo cerne é o endividamento. Fica a pergunta: se

Foto: sessão do Cine Barranco no Centro de Artesanatoda Região de Januária.

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O Movimento dos Folcloristas em Minas Geraisem toda guerra ovencido paga aconta, a quemcaberá a dívida? Adívida seráimpagável?Vivemos ummomento impar nahistória de nossasdesumanidades.Porém, hoje é Sexta Feira da Paixão: anuncia-se o final daquaresma, mas a quarentena ainda perdura.Vale meditar com base neste dia o percurso da celebraçãodo mito da Morte de Deus. [Lembro-lhes que entendo Mitocomo fundação do tempo sagrado. Mito não se confundecom lenda. Mito é centro de celebração.]A Morte de Deus é celebrada às 15:00 horas, quando seprocede a Adoração da Cruz. A Morte impossível de Deus!Mistério para a desumanidade.Pois bem, no cerne da Adoração da Cruz, há um profundosaber popular.O ritual litúrgico prescreve que a Cruz se exponha paraadoração com o seguinte ritual:O sacerdote expõe o crucifixo oculto sob um véu de tecidoroxo. E canta: “Ecce lignum...” “Está aqui a madeira dacruz, na qual se encontra suspenso”. A cada mensagem,uma parte da imagem de Nosso Senhor é descoberta, atéaparecer toda a imagem. Segundo esse ritual, o povo deveriacantar em grego e em latim, “Adoremus!” e finalizar com“Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal!”Finda a exposição para Adoração, forma-se a comunidadeem fila com distância de algo como três passos,oportunidade em que cada fiel, antes de beijar a santa relíquia– atenção senhores arqueólogos – deve fazer trêsgenuflexões.Na cabeceira do Senhor Morto é colocada uma caixinhacom diversos compartimentos que indicam valores demoedas. Curiosamente, nenhuma moeda é colocada paralouvar valores do Mercado. São colocadas para seremresgatadas. Contrariamente, são a pura negação do valorde troca como equivalente. Quando alguém coloca, em algumcompartimento certa moeda, oferece apenas um bemmaterial, de outra parte, quem retira outra moeda leva paraa vida o valor do sagrado! A matéria é trocada por umDom. Esse Dom jamais terá valor de troca. Jamais

comparecerá ao mercado, nem mesmo será consideradopela sua utilidade.

Transcrevo o registro de Marc Bloch eencerro minha meditação.

Uma vez terminadas suas prosternações, omonarca inglês aproximava-se do altar edepositava ali, em oferenda, certa quantidadede ouro e de prata, na forma de valiosasmoedas. (...) Em seguida, retomava-as (dizia-se que ele as “resgatava”), colocando em seulugar uma soma equivalente em moedasquaisquer. Dos metais preciosos assim dados equase imediatamente recuperados, o reimandava então fazer anéis. Entenda-se bemque esses anéis, última etapa de operações tãocomplicadas, não eram aros comuns. Eramcapazes de curar certas moléstias quem osusava.[Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos. São Paulo:Companhia da Letras, 1993. P. 132-133]

Este autor destaca:É à história comparada das práticassupersticiosas que se deve buscar o segredo.[p. 135]

E cita os casos da inquisição quanto ao uso de anel deJoana D’Arc; o uso na tradição alemã, na Itália e naInglaterra:

Tradição alemã:Peça esmolas, invocando o martírio de NossoSenhor e seu Santo Sangue, até que tenhaobtido 32 denários; então, pegue dezesseis emande fazer um anel; com, os restantesdezesseis, pague ao ferreiro; jamais tire dodedo o anel e reze cinco pais-nossos e cincoave-marias por dia, em memória do martírio edo Santo Sangue de Nosso Senhor. [p. 136]Tradição inglesa.Um tratado médico incluía o seguinteconselho: “ Para a cãibra: na Sexta-feiraSanta, vá a cinco igrejas paroquiais e em cadauma delas pegue o primeiro penny que fordepositado em oferenda na hora da adoraçãoda cruz; reúna as cinco moedas; vá paradiante da cruz, dizendo ali cinco pais-nossos,em louvor das cinco chagas; carregue asmoedas consigo durante cinco dias, dizendo acada dia a mesma prece, da mesma maneira;em seguida, mande fazer das moedas um anel,sem liga de outro metal; no interior do anel,escreva Jasper, Baltasar e Attrapa; noexterior, escreva Jhs. Nazarenus; numa sexta

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feira, vá à ourivesaria buscar o anel e rezeentão cinco pais-nossos, tal qual fez antes;depois disso, use-o sempre.” [p. 136]

Tradição francesa.

Na Sexta-feira Santa, um desses médicos levao doente à adoração da cruz, beija-a antesdos padres e dos outros eclesiásticos e lança àbandeja um sou; então, o doente beija a cruz,apanha o sou que o médico colocou nabandeja e põe em seu lugar outros dois sous;depois o doente vai embora, fura aquele sou eusa=o pendurado no pescoço. [p. 137-138]

De Griselda a Amélia, de Amélia à Mulher da Mala!Diversidade, tradições e credenciamento: o saber viver

José Moreira de Souza“Eis que colocarei entre vós a bênção e a

maldição”

Diversidade está em pauta. Assiste-se, de um lado, aoreconhecimento da diversidade das formas de viver e, deoutro lado, à luta pelo reconhecimento dessas formas.Em meio a isso comparecem lutas por valores que se nãoreconhecem e que se tornam irredutíveis.A cada forma de expressão diversa corresponde um conjuntode valores defendidos por pessoas em situação de grupo,ou seja, pessoas que se reúnem porque reconhecem essesvalores ou porque querem defendê-los como válidos paraas ações do cotidiano. Explicitam-se focos das tradições emluta.

O foco da apresentação obedece ao esquema a seguir:

Isto posto, vamos conversar sobre a trajetória do sexo ea diversidade de gêneros e seu credenciamento.

A Defunta Nonó

Este conto herdei de meu avô. Não o conheci, mas foirepetido em meio familiar. Não repassei para meus filhose netos, porque a realidade mudou.Contudo, o sentido fundante não se perdeu.Eis o caso:Um pobre garimpeiro casou-se com uma mulher poucoprendada. Não sabia costurar, nem mesmo remendar.Desconhecia a prenda mais importante de uma boamulher, a mulher de verdade. Todas as vezes que asroupas puídas e rasgadas necessitavam de reparos, oúnico expediente da mulher incapaz consistia em juntaras pontas e amarrá-las. O necessitado trabalhador,guardião da subsistência familiar, se conformavadesgastado e apelidou a mulher de Nonó, para fixar suahabilidade.Pois bem! Nonó morreu, foi enterrada sem dobre dossinos à porta da capela do Rosário pela irmandade daMisericórdia.O garimpeiro, cheio de esperanças, procurou umaesposa mais prendada, daquelas que aprendem a fusar,

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O Movimento dos Folcloristas em Minas Geraiscoser e remendar. Para sua ilusão, encontrou umamulata atraente. Casou-se e foram viver a vida deesperanças.Enquanto nenhuma pedra brilhante não lhe sorriano fundo da bateia, seguiu a vida com roupasrasgadas, quase maltrapilho, ou mais maltrapilhodo que antes.Suspirando todos os dias, ao sair para lida diáriade sonhos, o já suado garimpeiro dizia em repeti-dos ais:

- Deus te salve, Defunta NonóQue essa d’agora, nem ponto e nem nó!

Tire o leitor a conclusão que quiser, abra umalonga roda de conversa e cante comigo a cançãode Ataulfo Alves criada em parceria com MárioLago, no ano de 1942.

Ai que Saudades da AméliaMário Lago/ Ataulfo Alves

Nunca vi fazer tanta exigênciaNem fazer o que você me fazVocê não sabe o que é consciênciaNão vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riquezaTudo o que você vê, você querAi meu Deus que saudade da AméliaAquilo sim que era mulher

As vezes passava fome ao meu ladoE achava bonito não ter o que comerE quando me via contrariado diziaMeu filho o que se há de fazer

Amélia não tinha a menor vaidadeAmélia que era a mulher de verdade

Se eu não ouvi nenhum comentário à DefuntaNonó, deparei-me com centenas deles à divulga-ção pelo Youtube [ https://www.youtube.com/watch?v=KnHbjv7TRQY acessado em 05 demaio de 2020].Apresento, em seguida, alguns selecionados – deum total de 160 - com a seguinte identificação: sefor mulher será designada como Amélia, sehomem será Valter. Por que Valter? Continuem aleitura:

Amélia 1. Não desejem ter nascidonesse tempo principalmente vcs mulhe-res. Se hj em dia ainda não somosrespeitadas imagina nesse tempo.

Gosto muito das musicas antigas mas agradeço porser viva nesse tempo. Sofriria demais sendo mulhernesse tempo ai.

Amélia 2: A verdade é que ele não saber o que é sermulher de verdade.. Estar muito além de qualquerexplicação pós quando uma mulher é mulher deverdade ninguém consegue explicar ela!!!!

Valter 1. Toda MULHER é Amélia

Valter 2. Comparados a tais musicas de hj que expõe afigura feminina de modo de pura vulgaridade Amusica Amélia nos conta a história de um cafagesteingrato que não deu valor a sua “Amélia” que naonda da época era a esposa ou companheira pra tdsos momentos...a trocou pra cair na vadiagem...por fimesquecendo de Amélia. Quem tem massa cefálica nacabeça vai entender a mensagem de um dos melhorescompositores sambistas nessa música

Amélia 3. Calma galera, a musica é de 42. O mundomudou e vamos continuar mudando para melhor.Vamos ter calma. Essa música só nos mostra o quantojá evoluímos !

Valter 3. Vejo Homens e mulheres aqui dizendo queessa música é machista. Gente!!! Na boa, vcs tãoZERO em interpretação de texto!!!

Amélia 4. GENTEEE QUEM ACHA BONITO PASSARFOME???????? NÃO TER OQ COMER??? só podeser demência

Amélia 5. Graças Adeus as maioria das mulheres nãoquerem ser Amélia mais !!!kkk

Valter 4. Seu Jorge tomou na tarraqueta por causadessa música, a esquerda é um lixo

Amélia 6. Acho linda essa música do grande AtaulfoAlves. Simplesmente uma linda música. Nada demachismo. Escutem a música e a bela letra. Umsamba bom e nada mais

Um grupo: 1942, pode passar quantos anos for, essamúsica vai continuar sendo maravilhosa

Valter 5. “Esse música é errada nos dias de hoje” Oengraçado que a mesma pessoa que condena essamúsica, vai dançar funk que degrine a mulher. Outrofator é que essa música só reflete a realidade daépoca.

Amélia 7. Sou Amélia com orgulho

Respostas: 9

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O Movimento dos Folcloristas em Minas GeraisAmélia 8. Beatriz [nome fictício, poderia serLaura também. Aguardem.] Q horror. Então vctá dizendo que é submissa aos homens?

Penso que esta amostra é suficiente para render muitaconversa.Síntese de apreciações

Prossigamos com nossa internet. Vejem e comentem.

Fonte: Família virtual engraçada.

Fui quase tentado a colocar uma fase anterior:

Ainda nos anos setenta, os maridos quedescobrissem traição da mulher, podiam matá-la alegando “legítima defesa da honra!”

Nossa Eva se chama Luzia!No dia 13 de dezembro do ano de 2014, nossa

Comissão Mineira de Folclore foiconvidada pela Prefeitura Municipal deBelo Horizonte para inaugurar a primeiraexposição de abertura do Centro deReferência da Cultura Popular Lagoa doNado.Tomamos como síntese do percurso oconceito que pode ser fixado na expressão:Peregrinação do mundo aberto à Gruta

da Luz.Peregrinação era convite à busca demistérios. Pergunta de sonâmbulos. Omundo aberto é múltiplo e misterioso. Nossadiversidade impede a decifração dasmultiplicidade de linguagens. Vivemos aplena Babel.A Luz é encontrada no fundo da caverna.Aí manifesta-se a Luzia.

Luiz, Luz, Lúcia, Luzia, Lúcio, Luciano,

Luciana, Luziana, Luiziano.

Luzíforo, Luzíadas

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Luzia Artefato ArteArtefatoArteLuziaArte LuziaArtefato

Conceito: Luzia somos nós. Insinua-se a pergunta:

Que coisa é o Homem!Mulhomem ou Honlher?Esse neologismo não existe, mas deve ser inventado, domesmo modo que antes do dia 22 de agosto de 1846 nãoexistia a palavra Folk Lore. Recentemente, inventou-se tam-bém Elitelore e Popularlore.Algumas vezes as palavras precedem a existência das coi-sas; outras, surgem muito depois. Mulhomem anuncia no-vidades que talvez marcassem o Matriarcado. Venceu oHomem caçador e a mulher tornou-se subalterna.A mulher tornou-se um enigma para o homem namodernidade.O que quer uma mulher? Perguntou Freud. No contexto desurgimento d@ Mulhomem, ou do Honlher, a pergunta perdeo sentido.Aqui, nossa pergunta vai mais longe. Queremos conversara respeito de por que se todos somos mulheres ou homens,mulhomens ou honlheres, desqualificamos uns aos outrosaté o ponto de nenhuma conversa se tornar possível? Que-remos conversar sobre por que apenas a morte do outro –nós somos imortais – basta para afirmar nossa mulhomidade,humanidade, honlheridade.Ao percorrer este recinto sagrado, pedimos para cada pes-soa guardar este pensamento de Hanna Arendt:“Um alemão e um judeu e amigos”.É em situações de absoluto conflito que a humanidade dooutro se coloca em cheque mate. Admitir a possibilidadede amizade em situações nas quais a morte do outro é ocaminho é oportunidade de alcançar-se “um pouco de hu-manidade num mundo que se torna inumano”.

Como seria uma humanidade à mineira?Esta caminhada pelo mundo incógnito da caverna, pede queretrocedamos á pergunta constante de origens e valores úl-timos que brotam da luz no fundo da gruta.É momento de recuar e ouvir as querelas que nos surgem.

Momento do Caráter Feminino.No ano de 1965, eu cursava o segundo ano de CiênciasSociais. Eis que chega à sala a professora Maria Lúcia deAndrade Garcia, esposa do também professor Ely BoniniGarcia. Ely estivera preso em Juiz de Fora desde abril atédezembro de 1964, acusado por um aluno oportunista de“subversão”. Vez por outra, retornava ao quartel para pres-tar depoimentos, até que, no mês de setembro de 1965 foiabsolvido das acusações. Enfim, Ely era apenas professorde Antropologia, ramo do saber que poderia incomodar aalgum aluno que via comunismo em qualquer ideia que con-trariasse a doutrina de seu catecismo.Porém, não é isto que importa. Maria Lúcia nos iniciou naleitura de obras para serem fichadas e resenhadas. Lecio-nava Métodos e Técnicas de Pesquisa em Ciências Soci-ais.Entre as obras recomendadas, constavam duas de autoriada socióloga Viola Klein: Woomans Two Roles: Home andwork editada pela Kegan Paul de Londres e El caracterfeminino: Historia de uma Ideologia. Buenos Aires, Edi-torial Paidos, 1951.Não tive acesso à primeira, mas guardei a segunda e desta-co os comentários a seguir.Lembro que, o que passou a ser conhecido como movi-mento feminista ainda estava longe de empolgar os meiosacadêmicos no Brasil. É verdade que, alguns autores quecolocavam a questão dos padrões de relações sexuais noBrasil já eram conhecidos desde do século XIX. É verdadeque já no início da República mulheres se mobilizaram pelodireito à cidadania ativa. É verdade ainda que surgiram obras

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de mulheres brasileiras ainda no século XIX. É verdade,porém, que com o advento da fotografia as mulheres cha-maram mais a atenção para se apresentar nas Revistas deModa e nos incipientes Concursos de Beleza. Maria Lúcianos abriu o mundo para o estudo do que se tornou questãode gênero com essas obras e as de Margaret Mead Sexo eTemperamento e possibilitando também atenção para Sexoe Repressão, A Vida Sexual dos Selvagens e tudo maisque viesse à frente.O tema era colocado no lugar certo e em momento profé-tico.A Faculdade de Filosofia era praticamente a única institui-ção universitária, além da de Enfermagem, onde a divisãosexual do trabalho se exibia triunfal. Ela se mostrava abso-luta entre os que cursavam Pedagogia, mas registrava ele-vada percentagem de mulheres nos demais cursos das áre-as de “Humanas” – História, Geografia, Letras, Jornalis-mo, Psicologia e, é claro, Ciências Sociais... Essa divisãose manifestava mais do que evidente, quando, por iniciativade Ely, nos dirigíamos à Escola de Medicina. Nossa apro-ximação ouriçava os aprendizes de médico. Os estudantesde jaleco branco abandonavam imediatamente os bisturisna sala de dissecação para contemplarem a espécime rarade mulheres inéditas.Os homens, - seriam os machos? -, reinavam nos postosde chefia. Excetuado o curso de Pedagogia, todos os de-mais eram dirigidos por homens machos... Curiosamente,pouco tempo após criada a Faculdade de Educação, o postode diretor foi ocupado por um professor. Era especial. Alémde membro do colegiado tinha a diploma de Coronel dasGloriosas Forças Armadas – coronel do exército.A razão profética se exibia no ingresso progressivo da for-ça de trabalho feminino no mercado a partir do que ficouconhecido como “Milagre Brasileiro”. Estabelecia-se umponto de não retorno.Isto posto, vale fixar, tivemos a honra de nos iniciar no es-tudo das transformações da sociedade com atenção para adivisão do trabalho tomando como variável dependente osexo como determinante. Tive sorte e minha filha – NíciaRaies Moreira de Souza - tornou-se atenta e fez desseassunto sua tese de doutorado: Lugares de mulheres ehomens no mercado de trabalho: segregaçãoocupacional por gênero no Brasil urbano. Note-se quesexo não é mais problema, mas gênero. Não é necessáriomais subir a saia nem baixar as calças para determinar rela-ções de gênero, do mesmo modo que nação não se con-funde mais com império de religiões na formação dos Esta-dosTalvez, mais importante que o conteúdo da obra tenha sidoo roteiro bibliográfico exibido pela autora sob orientaçãodo sociólogo Karl Manheim, aquele de Ideologia e Uto-pia. Viola enumera obras em que a mulher se torna objeto

de estudo desde o ano de 1792: Ueber die bürgerlicheVerbesserung der Weiber; Advice to Young Men – 1829-. Woomen in América – 1838; Primitive Mariage, 1865;The Patriarchal Theory – 1885. Para não me alongar citoduas obras de importância para as elites do Brasil ainda noséculo XIX: The subjection of Woomen de Jonh StuartMill, publicada em 1869 e comentada por jornais brasilei-ros, e Les femmes de La Revolution, de Michelet, publicadaem 1885. Para este leitor, fica a dúvida quanto à mençãoda obra de Michelet. Esse autor publicou outra bastantevolumosa com o título de Le Femme, no ano de 1859.Merece menção ainda a obra vinda a público entre 1788 e1800 em quatro volumes na Alemanha e traduzida para oinglês em 1908 com o título de History of Female Sex.Atente-se às recomendações bibliográficas da ideologia docaráter feminino de Viola Klein o destaque dado ao estudona Alemanha. O sexo feminino já merece naquela futuranação uma obra em quatro volumes, História do SexoFeminino.Enfim, saímos pelo mundo para fixar nossa atenção aosmovimentos sociais a partir do momento em que a Mulhervista pelo seu Sexo torna-se objeto de preocupação paraas relações sociais seja nas atividades econômicas, seja naparticipação política.Chama-me a atenção a obra Luxo e capitalismos de WernerSombart, cuja primeira edição data de 1912. Entendo serde leitura para provocar muita conversa o capítulo 3 com otítulo de “A secularização do Amor” com destaque para “aemancipação da carne”. [ SOMBART, Werner. Lujo ycapitalismo. Madrid: Alianza Editorial, 1979]

As Mulheres Santas dos Padres.Hoje, vivemos em mundo de marketing. Dar títulos a obrase a capítulos têm em vista sedução dos infelizes leitores.Este titulo é maroto.Aqui, quero chamar a atenção do leitor para obra de umsacerdote mineiro que se tornou ex-sacerdote e respirouos ares das cidades históricas de Mariana, Ouro Preto eSão João Del Rei. Iluminou-se do simbolismo de AfonsoGuimarães e manifestou suas preferências por santidadesbem escolhidas.É claro que A Virgem Maria paira acima de todas as santi-dades.Apresento-lhes o Padre José Severiano de Rezende.Ficha da obra: REZENDE, José Severiano. O Meu FlosSanctorum. Belo Horizonte: Imprensa Oficial / PrefeituraMunicipal de São João Del Rei, 1970. 258 pp. . . [Acervode José Moreira de Souza, disponível no Centro de Cele-bração de Minas da Comissão Mineira de Folclore]

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Informações relevantes sobre o autor:José Severiano de Rezende nasceu em Mariana no dia 23de janeiro de 1871 e faleceu em Paris em 14 de novembrode 1931.Cursou direito e interrompeu, cursou finalmente o seminá-rio e se ordenou sacerdote. Porém, em dado momento,abandonou as obrigações sacerdotais sem, contudo, colo-car à parte a formação religiosa.José Severiano de Rezende é um dos exemplos de pessoaque viveu intensamente os conflitos ensejados pelos pri-meiros anos da República. O Direito o desencanta, a Igre-ja, carregada de símbolos metafóricos, é posta à parte esomente lhe serve para interpretar um mundo solitário esubjetivo. Vive intensamente os interditos. “Bem me quer,mal me quer!”.Seria um tipo popular de sua época se a não interpretassecomo exigência de refúgio à subjetividade. É na poesia queele diz para si mesmo os conflitos vividos não como cida-dão da República, mas como fiel entre a rebeldia e a sub-missão intimista. Parnasiano, simbolista, modernista,Severiano é rebelde nos recursos expressivos.O gênero “flos sanctorum” tem longo percurso na Penínsu-la Ibérica a partir do século XVI e emula as “Legenda Aurea”inauguradas na Idade Média cuja maior expressão é ofere-cida pelo frade dominicano Jacopo de Varazze. Ele tomacorpo com o empenho da Igreja de narrar a vida dos san-tos em atenção à religiosidade popular. Almeida Garret, porexemplo, compara a lenda de Santa Iria, segundo a religio-sidade popular e a elaboração erudita dos clérigos. e mos-tra como essa elaboração narrada em obediência aos códi-gos canônicos guarda núcleos estéticos convenientes à reli-giosidade popular. Os inúmeros sermões do padre AntônioVieira, pregados no século XVII compõem belíssimas flossanctorum, com os de Santo Antônio, de Nossa Senhorado Rosário, de Santa Iria, de Santa Catarina, de São Ro-que, de São José, de São Francisco Xavier.Note-se que o livro do, então, padre José Severiano, obe-dece ao gênero, mas com a marca: “O Meu”. Não é prega-ção de santos universais, mas de santos da devoção parti-cular do autor. Mesmo assim ele irá distinguir na obra ossantos “seus” e aqueles que ultrapassam a devoção pesso-al: os que são populares.Após esta rápida apresentação do autor, quero destacar,em primeiro lugar a Virgem Maria cuja síntese se manifes-ta na Imaculada Conceição.Severiano lembra:

A história da crença na Imaculada Conceiçãode Maria é agitada. Os séculos viram lutas deteólogos, uns sustentando, outros rejeitando estacrença que desde o princípio do cristianismo veiocrescendo pelos tempos fora. O coração da cris-tandade, na sua lógica instintiva de amor, não

se coadunava com a hipótese de poder Mariater algum dia sido mesclada à massa comum dosimpuros descendentes de Adão. As liturgias ori-entais e ocidentais começaram a estabelecer ri-tos para celebrar a Conceição Imaculada. NoSéculo XI, entre os Doutores, a discussão infla-mou-se sobre o assunto, e nesse certame, em quea glória de Maria triunfou, avulta, aureolada, afigura de João Duns Scot, o Doutor sutil, quedefendeu contra Tomaz de Aquino, o Doutorangélico, a Imaculada. [p.225]

[Entendo que essas afirmações do autor deve remeter nos-sos leitores para questões substantivas do culto à Mulher.Maria é a negação de Eva, do mesmo modo que JesusCristo é a negação de Adão. Há dois mitos em confronta-ção. Tudo isto tem a ver com a possibilidade de o Cristia-nismo se tornar religião popular universal – católica -. Háuma grande coincidência. O século XI é o momento emque a Igreja se expande atenta à religiosidade popular. AAnunciação e a Imaculada Conceição são irmãs gêmeas depropagação do mito a ser celebrado. Vale lembrar que JoanaD’Arc se torna a fundadora da nação na França. Ela resisteà acusação de ser uma bruxa: É Imaculada. Ver.MICHELET: Joana D’Arc.]Severiano destaca principalmente A Senhora de Lourdes eo dogma da Imaculada Conceição. Se olhasse para Minas,diria do Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição deMacaúbas, da presença das irmãs Concepcionistas no Brasile de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – futura pa-droeira do Brasil em substituição ao São Pedro de Alcântara.Do reino da Imaculada Conceição há que admirar as mu-lheres santas da devoção do sacerdote simbolista Severiano.A primeira santa que lhe convoca à devoção aparece nomês de abril e é a obscura Zita.Santa Zita – p. 100 – 102Santa Zita é uma empregada doméstica apaziguadora das“cóleras frequentes do senhor de Faninelli”. Isto fazSeveriano ponderar nossa Escravidão;

Neste tempos demagógicos, o tipo de criada deservir estacionou nas cópias da Gran-Via. Oimigração estrangeira mercantilizou no Brasil ummister em que a dedicação tinha grande parte, ea Lei de 13 de maio, com que a princesa Isabel,sem o saber, fez a desgraça de um trono de umanação, soprou nas carapinas das crioulas e dosmulatos, com o vento da liberdade; ufanos óci-os e independências langues.Santa Zita fica, no entanto, com o modelo dascriadas é o exemplo da Criada. Ela é, aliás, naItália, a padroeira da criadagem que se preza.[p.101]

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No mês de maio, todo dedicado à Virgem Maria, sobres-sai-se a Santa Rita. Rita em contraste com a Zita de abril.Santa Rita de Cascia – p. 114 – 116Severiano que é um homem de fé tem pelos seus santospreferidos a certeza dessa fé e há de estranhar a imiscuiçãode doutores eruditos ansiosos de diagnosticar patologiasnas vivências supra-humanas dos que vivem confiantes nosplanos divinos.Severiano destaca de Santa Rita ela ter se tornado popular:

O povo costuma ser o rápido canonizador dossantos da sua maior devoção. Rita de Cáscia,quando nos protocolos romanos ainda não erasenão beatificada, tinha já no Brasil, em Portu-gal e Algarves o título irrevogável de santa. (...)O que não averiguamos foi como essa admirá-vel italiana transpôs os mares para se implantarnos calendários brasílicos, nos quais tem o seuofício litúrgico. Muita paróquia brasileira fun-dara-se sob a sua égide, erigindo padroeira abeata, não obstante a lei da Igreja que veda se-rem arvorados beatos em oragos. [p.115]

Santa Rosa de Lima é louvada em agosto:Santa Rosa de Lima (A Padroeira da América do Sul –p. 146 – 148Além de narrar a vida da menina batizada como Isabel eque se celebrizou como Rosa, Severiano se vale da opor-tunidade para criticar os estudiosos que se dizem eruditos equiseram diagnosticar patologias em suas condutas.

A Salpetrière, com os seus sábios, classificouestas espécies de santas, sem profundamenteestudá-las, de histéricas. Não foram, aliás, oscientistas só que se inebriaram na fatuidade sim-plória de frivolamente discutir o além: houveum jesuíta belga que uma fumaças de sabençaincharam e que escreveu um livro sustentando ohisterismo de Santa Teresa. Mas hoje a medici-na já está melhor estudando, com imparcialida-des justiceiras, estes complicados casos, em queo sobre natural atua.Rosa de Santa Maria fabricou a sua brilhanteauréola de eleita com pavorosos e arrepiadoresexacerbos. [p. 146-147

Não há que estranhar, todos os santos viveram a vida da féradicalmente e as categorias “normal e patológico” desen-volvidas pela ciência haverão de se incomodar com isto.Veja-se o caso da Irmã Germana da Serra da Piedade eque se recolheu ao Convento de Macaúbas e chamou aatenção de Saint’Hilaire. Severiano há de se deparar sem-pre com esses desafios à compreensão.As santas do mês de outubro são pródigas na imaginaçãodo sacerdote. Santa Tereza – a Terezona para contrastar

com a Terezinha – a ainda beata Margarida Maria e SantaÚrsula que comparece acompanhada de Onze Mil Virgens!Santa Teresa de Jesus – p. 180 – 182No ano de 2001 a Editora Record publicou um livro queveio à luz em 1997 com o título de Teresa de Ávila, ou odivino prazer. O título é tradução literal do original francêse sua autora se chama Elizabeth Reynaud. Na “Introdução”a autora, em meio aos desafios de nossa modernidade afir-ma: O Santo é uma forma avançada da humanidade.(...)Ele vibra com conhecimentos inexprimíveis, pois nãoé o cientista nem o técnico daquilo que vivencia. [p.13]Estamos há mais de cem anos da publicação do Meu FlosSantorum de José Severiano de Resende. E esse autor sedepara com a questão que não se coloca como problemapara Elizabeth Reynaud. Enquadrar Teresa, Catarina deSenna, Rosa de Lima, as mulheres sublimes no reino dosestudos da psicopatologia.Severiano inicia suas palavras com indignação:

Esta ocupa, na epopeia dos santos, um vertigi-noso fastígio. A história antes dela, não tinhaainda conhecido exemplo igual, no sexo, degenialidade e santimônia em tão íntimahomogeneidade. E a psicologia desta santa de-sorienta os que campam de mais argutos. A suavida cheia de prodigiosas coisas só se explica,entretanto, pela intelectualidade nativa que umasantidade ultracomum aguçou e aclarou. A hi-pótese da histeria é, examinada pelo simples bomsenso, inepta. Quem leu a sua obra maravilhosae bela, quem se deteve a considerar os encargose as ocupações da sua ativíssima existência, nãopode admitir que Santa Teresa tenha sido umahistérica, dessas que Salpetrière manuseia. Hou-ve mesmo um jesuíta, o padre Han, que estam-pou um livro para provar a tese da histeria.[p.180]

A conclusão é também imponente:O padre Graciano, seu contemporâneo, dela es-crevendo, diz: “Era graciosa e insinuante, bemdiferente dessas santidades ásperas e desagra-dáveis, cristãos cheios de rudeza que se tornaminsuportáveis a todos e a si próprios, e tornamantipática como eles a própria religião.”

[Caberia aqui um dito atribuído a São Francisco de Sales,inspirador de São Vicente de Paulo: “Um santo triste é umtriste santo!”]A Beata Margarida Maria – p. 183 – 185Aqui o autor como que justifica o ter dedicado uma seçãode sua obra à devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Fei-to de Margarida Maria Alacoque. [Vale lembrar que aentronização do Sagrado Coração de Jesus se tornou um

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hábito em todo o Brasil]. À época Margarida ainda nãohavia sido canonizada.Santa Úrsula e as 11.000 virgens – p. 192 – 194O autor tece considerações sobre o martírio de Santa Úrsulae as virgens sem fazer alusões à sua devoção no Brasil,embora se saiba da existência de colégio com esse nomeno Rio de Janeiro.Em dezembro ao lado de Nossa Senhora da ImaculadaConceição, há que louvar Santa Luzia – eu diria, a Santados Mineiros, especialmente dos lapidários de pedras pre-ciosas.Santa Luzia – p. 230 – 233Santa Luzia oferece ao autor oportunidade para narrar len-das. É claro que Severiano segue a ortodoxia e é severo naavaliação dessas “crendices”.Assim começa a narrativa:

De onde vem a Santa Luzia o patronato que lheatribuem os séculos, sobre os que padecem dosórgãos visuais?Os seus cronistas são, a esse respeito, mudos. Aiconografia representa a santa expondo numasalva, um par de olhos, à guisa d’oeufs sur Leplat. No seu martírio não consta, porém, que lhehouvessem furado ou arrancado os olhos. Por-que então se arrogou a santa essa especialidademédica e estabeleceu, no seu habitáculo celeste,um gabinete de oftalmologia? (...)Talvez Luzia houvesse usurpado a Lúcia o direi-to a essa terapêutica advocatícia, pois é de Lú-cia que se conta o curioso caso seguinte:Sempre que saía, notava com enfado que umjovem a seguia de perto com insistência, de sor-te que um dia se resolveu a perguntar-lhe a cau-sa daquela importunação. “Sigo-te, disse o jo-vem, por causa dos teus lindos olhos”. “Essanão seja a dúvida”, retrucou a virgem, e, me-tendo tragicamente os dedos nas órbitas, entre-gou ao cinchisbéu boquiaberto um par de glo-bos sangrentos, dois astros apagados em san-gue.Mas o fato é que Santa Luzia e não Santa Lúcia,é que esconjura, como Santa Apolônia as doresde dentes, os males dos olhos. [p. 230-231]

Como se vê, Severiano tinha amplos conhecimentos dossantos advogados dos males.Porém, ao me referir a José Severiano de Rezende, eu nãome canso de colocar em relevo um de seus poemas maisprofundos. Ele revela a contradição vivida por todo o Oci-dente em nossa formação hebraica e cristã. O poema sechama “Anátema”.

O poema “Anátema” exibe o núcleo do conflito entre amultidão de Evas e a solitária Virgem Maria. Haja re-

cursos simbólicos para o contraste da sedução! O es-tribilho é genial:

Bem-me-quer...mal-me-quer...Fora, fora a Mulher!

Esse estribilho alterna após cada verso invertido:Mal-me-quer...bem-me-quer...Fora, fora a Mulher!

Até alcançar o impossível da Mulher que paira acimade todas as contradições:

Vós, porém, panacrante e pantocrataConculcadora de tartáreas serpes,Refulgurante de estelares nimbos,Esbanjadora perenal de auroras,Lirial alviçareira de aleluias.

Eleita e pura Santa e bendita,

Olhai lá da altura A raça precita:Ao femíneo rebanhoJorrai graças de antanho:Os passos desviai da trevaÀs míseras Filhas de Eva:

(...)E que enfim A Mulher,Esparso mal-me-quer,

Seja simples, serena e compassiva e bela,Sob a cerúlea umbela! [p.105]

Seria a Amélia também Bela?

Fonte: REZENDE, José Severiano. Mistérios. Belo Hori-zonte: Centro de Estudos Mineiros: 1971. 219 pp. Intro-dução de Henriqueta Lisboa; glossário de J. Lourenço deOliveira. Primeira edição 1920.

Pequena atenção para nossa formação:Cândida e LucindaSomos herdeiros da Escravidão. Isto nos traz imensas con-tradições. A inclusão da mulher, enquanto ser sexuada, si-tua-se no centro de todas as contradições.Tenho preferência para conversar sobre duas obras queme parecem merecer alongada roda.A primeira, As vítimas-algozes: quadros da escravidão,é de autoria de Joaquim Manuel de Macedo, - São Paulo:Martim Claret, 2010 -, um dos inauguradores dos estudosetnográficos no Brasil no século XIX.O terceiro ensaio da obra referida “Lucinda, a mucama”ocupa a maior parte. A escolha do nome dos personagenscentrais evidencia o núcleo da interpretação de Macedo.

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Cândida é uma adolescente pura e inocente. Na celebra-ção dos 12 anos – hora de as mocinhas se vestirem de“virgem” – banir os vestidos curtos e substituí-los pela saiacomprida -, o rico padrinho presenteia a doce e inocenteCândida com uma escrava prendada e educada em escolaespecializada em boas maneiras com idade de quatorze anospara ser sua mucama. Nome da mucama? Lucinda.Cândida ao ter Lucinda como companheira descobre oCorpo.Não vou me alongar, mas peço ao leitor para meditarsobre esta afirmação dos males da lúcida Lucinda naconvivência com a pureza de Cândida:

Em muitas casas a escrava mucama dormeperto do leito da menina, senhora-moça, ou àporta de seu quarto. Em algumas famílias estaprática imprudentíssima é banida; mas emtodo caso a mucama escrava toma conta daroupa da senhora-moça, ajuda-a a despir-se ea vestir-se, é a conselheira de seu toucador, ena costura é executora das modas dos vesti-dos, confidente obrigada dos segredos dasimperfeições do seu corpo que se disfarçam, edas belezas de suas formas a sobressair.A mucama escrava se recomenda pois à meni-na, e ganha toda sua confiança pela importân-cia delicada, e até certo ponto confidencial, domister que desempenha no toucador; amucama, embora, escrava, é mais do que opadre confessor e do que o médico da donzela:porque o padre confessor conhece-lhe apenas aalma, o médico ainda nos casos mais gravesde alteração da saúde conhece-lhe imperfeita-mente o corpo enfermo, e a mucama conhece-lhe a alma tanto como o padre, e o corpomuito mais do que o médico. [p.161-162]

Se juntarmos no diálogo este ensaio de Macedo ao Amorem Portugal no século XVII, teremos uma conversaquase perfeita. O autor Júlio Dantas é membro da Acade-mia de Ciências de Lisboa. Publicou esta obra em 1915 aque se seguiu nova edição em 1917. Obra apreciada pelopúblico.Destaco apenas alguns capítulos do sumário, sem comen-tários:O Faceiro e a Bandarra. Um capítulo para cada compo-nente da dupla.Em seguida, as regras que configuram tipos: Namoro debufarinheiro, Escudeirar em seco; Namoro de estafermo ede estaca; O Beliscão – esta prática “indecente” gerouestranhamento no Arraial do Tijuco comentado em beloensaio de nosso presidente de honra, Antônio de PaivaMoura -; O amor na corte; o Freirático; a Freira;Lausperene de amor – a relação senhor e o negro lacaio-;

As Mulheres-Damas, O casamento. A roda dos enjeita-dos encerra a obra. Eis a amostra.

Chegou a vez de GriseldaObedir a Natura in tutto è il meglio,ch’a contender con lei il tempo ne sforza. -Súbito allor, com’acqua ‘l foco amorza,d’un lungo et grave sonno mi risveglio:Petrarca. soneto 361 – Canzoniere

O Ba, bé, bi, bó, bu

Vamos todos aprender.

Griselda, você não sabe quanto gosto de

você.

O A é uma letra que se escreve no ABC.

O A é uma letra que se escreve no ABC.

Amélia você não sabe quanto eu gosto

de você...

Referindo-se à Estética Medieval em contraste com a mo-derna, Umberto Eco apresenta-nos esta avaliação desafia-dora:

A cultura medieval tem o sentido da inovação,mas procura escondê-lo sob as vestes da repeti-ção (ao contrário da cultura moderna que fingeinovar mesmo quanto repete).(...) A Idade Média foi uma época de autores quese copiavam sem citar-se. (...) Ninguém consi-derava isso um delito; de cópia em cópia, erafrequente que não se soubesse mais qual a ver-dadeira paternidade de uma fórmula; no fim dascontas, pensava-se que, se uma ideia era verda-deira, pertencia a todos.(...)Os medievais (...) pensavam que a originalidadefosse um pecado de orgulho. [Umberto Eco. Artee beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Glo-bo, 1989. P. 12 - 13]

Eis o desafio à originalidade.No Pós-escrito a O Nome da Rosa [Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1985], Eco encerra com esta afirmação:

Existem ideias obsessivas, nunca pessoais, os li-vros falam entre si, e uma verdadeira investiga-ção policial deve provar que os culpados somosnós.

Penso que o Direito à Propriedade posiciona-se no cerneda busca de originalidade.Nossas modernidades ao preceituar o “Seja você mesmo”impedem-nos de vislumbrar o que é comum e que nenhuma

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linguagem pode se enclausurar em idiossincrasias – puromaneirismo na linguagem de Ludwig Binswanger.Cantemos com Duby..Georges Duby. Eva e os padres. São Paulo: Cia das Le-tras, 2001.

Pecadora, a mulher o é, quando sai de seu pa-pel, conseguindo ela própria o seu prazer. Quan-do se faz de homem. Ou então quando ousa, elaque Deus quis terna, Inermis, desarmada, postasob a proteção masculina , forjar suas própriasarmas, as porções os encantamentos, os sortilé-gios. [p. 30]É pelo casamento, com efeito, que a mulher dessetempo tem acesso à existência social. Antes elanão é nada: “mesquinha”, esse termo que nosficou designava a moça no século XII.[p.38]O casamento, garantia da ordem social, subor-dina a mulher ao robusto poder masculino. Com-pletamente submissa, prosternada, dócil, a es-posa torna-se o “ornamento” de seu amo. [p.39]

Andei tanto para chegar onde queria.Andei andei, andei andei andeiAndei andei, andei andei andei para curimáAndei andei, andeiAndei andeiIh minha nossa senhoraMe dá meu rosário que eu quero rezarImplorando proteção pra todo santo me ajudar (andei andei)

Nessa andança encontrei-me com o Decamerão de GiovaniBoccacio e reuni nesta roda, De insigni obedientia et fideuxória de Francesco Petrarca, após deparar-me com Oscontos de Cantuária de Geofrey Chaucer.Bela roda de conversa à qual, de esguia, ouço vozesde Dante e sua Beatriz, contemplo a arte de Giotto,devaneio sobre as aventuras de Marco Polo, imaginoas Mil e uma Noites, ouço e me delicio com a óperaGriselda de Vivaldi e a de Scarlatti e, em silêncio, sa-boreio com prazer as árias: “Agitata da due venti”;“Ho il cor già lacero”; “Dopo un’orrida procella”. Ima-gino ainda o “Boosco deleitoso” e o “Inferno dos

namorados”, criações ibéricas.

Griselda é a chave da conversa. Está presente nos Contosde Cantuária, narrada pelo Estudante de Oxford. Nessaobra, Chaucer remete o leitor a Petrarca, o “Estudante”divide o conto em seis partes e conclui:

Segundo Petrarca, ela [ a história] não foi com-posta para demonstrar que as mulheres devemseguir a humildade de Griselda, pois, ainda queo quisessem, isso seria intolerável. O que ela

busca ensinar é que todos nós, cada qual em suacategoria, deve ser constante na adversidadeassim como Griselda.

É tradução quase literal do Letere Seniles de ‘Petrarca:Hanc historiam stilo nunc alio retexere visumfuit, non tam ideo, ut matronas nostri temporisad imitandam huius uxoris patientiam, que michivix imitabilis videtur, quam ut legentes adimitandam saltem femine constantiam excitarem,ut quod hec viro suo prestitit, hoc prestare Deonostro audeant, qui licet (ut Iacobus aitApostolus) intentator sit malorum, et ipseneminem temptet.

Chaucer prossegue:Uma palavrinha mais, senhores, só para termi-nar: hoje em dia não se encontram maisGriseldas facilmente; talvez ainda haja duas outrês numa cidade. Mas, se forem tratadas comdureza, verão que seu ouro não passa de umaliga com latão: a moeda pode ser reluzente, mas,em vez de dobrar-se ela se quebra.

Chaucer encerra o Conto do Estudante com um poemacuja primeira estrofe merece atenção.

Morreu Griselda e toda a sua paciência,E têm ambas na Itália sepultura;Portanto, a todos faço esta advertência:Ninguém ponha a mulher a prova duraPensando assim outra Griselda achar,Pois não encontrará o que procura.

[CHAUCER, Geoffrey. Contos de Cantuária. São Pau-lo: T. A. Queiroz. 1988. Tradução e notas de Paulo Vizioli.P. 191-192]Vista a Griselda de Chaucer quase copiada da Griselda dePetrarca caminhemos para Griselda de Boccaccio.Decamerão é obra modelo para ser lida por todos oscientistas sociais. Nela o sentido estrutura o significado –modelo para os estruturalistas.Vou dedicar outra oportunidade para comentá-la maislongamente. Chamo atenção em primeiro lugar para o sen-tido do título: Deca quer dizer Dez em grego, Emera lembraos dias. Significado: Dez dias dedicados a contar histórias.Ora, o que determina dez dias? A reclusão de um grupo de7 mulheres e 3 homens acompanhadas e acompanhados deseus serviçais para cobrir uma quarentena de 15 dias deafastamento da cidade de Florença nos anos da peste.Isto é pouco. Há dez personagens encarregados de contarhistórias obedientes aos preceitos de uma coordenadora –um coordenador - a que é escolhida – escolhido - comorainha – rei - do dia ao qual determinará a sequência doscontadores. A competência do que coordena as ações diá-

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rias no que se refere aos contos se explicita nos temas quedeverão povoar a imaginação de cada narrador.Há mais. Cada narrador – narradora – tem um nome quelhe revela o caráter cuja consequência se explicita na estru-tura narrativa quando se reúne cada conto do ponto de vis-ta de seu narrador.Apresento sucintamente os nomes dos componentes dogrupo.Pampinéia: A que quer tudo; Filomena: A que será ama-da; Neífile: A que ama de novo/ a sempre amada;Filóstrato: O que ama até o fim; Fiammetta: A fogosinha;Elisa: A Fiel a Deus; Dionéio: O engraçado – para lem-brar Dionísio; Laurinha: a coroada para lembrar Petrarca;Emília: A que será invejada e Pânfilo: O amado de todosou o que ama a todos.Os temas determinados para cada dia são exemplares. Noprimeiro dia, sob o reinado de Pampineia os temas são li-vres, oportunidade para revelação do caráter de cada par-ticipante. A isto as pesquisas experimentais chamam deconstrução da linha de base. N segundo dia, reina Filomenaa qual determina como tema: narrar sobre situações quepodem ser interpretadas como Sorte. Acaso e sorte. Noterceiro dia ocupa o reinado Neífile. Essa rainha escolhecomo tema a Fortuna entendida como situações em quedesejos são alcançados, perdidos e recuperados. O quartodia cabe a Filóstrato. Tema: Amor com fim infeliz – os fra-cassos do amor. Fiammetta rainha do quinto dia contrastacom as novelas de Amor: ventura que sucede à desventu-ra. Elisa, por sua vez, no sexto dia quer ouvir contos com amarca de Presença de espírito em situações adversas.... Osétimo dia é reinado de Dinéio. Tema: Como as mulheresenganam os maridos por amor ou por salvação própria.Laurinha determina que as narrativas do oitavo dia giremsobre as Burlas diárias: Mulher X Homem; Homem X Mu-lher; Homem X Homem. Emília, por sua vez pede narrati-vas sobre “O que é mais agradável para ser contado”. Odécimo dia encerra a quarentena sob o reinado de Pânfilo.Esse rei quer que todos ouçam novelas que narrem: “ Atosde Heroísmo: Ação realizada com liberalidade e até commagnificência”Agora um pormenor importante: Após as narrativas doprimeiro dia, Dionéio solicita o privilégio de ser o últimonovelista dos dias subsequentes. Desse modo, as rainhas ereis perdem o privilégio de encerrar os contos de cada diae tudo se transforma em lacerações dionisíacas. A vida écarnaval.O privilégio de Dionéio trouxe como consequência narrarsua novela a que dou o título de “A Eva perfeita. Griselda”A Griselda narrada por Dionéio explicita muito mais do quea submissão da Mulher. Revela o terrível conflito reinanteda sociedade hierarquizada. Griselda uma pobre campesina

é escolhida por um príncipe que rejeitava o casamento, masé impelido a isso para não dispersar a herança da nobreza.Griselda como tal é o tipo ideal da vontade de obediêncianuma possível interpretação de Max Weber. Griselda é apura obediência. O esposo é seu Senhor. Senhor absoluto.Há quem interprete o étimo como oriundo de línguas dotronco germânico com o significado de “combatente expe-riente”. Isto abre senda interpretativa importante1. Eu fixoo “gris” como sombra2. O lado cômico do trágico.A submissão de Griselda é de arrepiar. Arrepiou mais aPetrarca e Chaucer do que ao Dionéio de Boccaccio.Encerrada a narrativa no Decamerão, o autor destaca oscomentários do grupo como registra após cada novela. Nocaso da cega obediência de Griselda, sintetiza: Elogios elamentações. Não diz indignação nem aplausos.Será essa Griselda de Boccacio que inspirará Vivaldi a com-por uma ópera em três atos com este nome nos anos de1730 com a liberdade de manter o tema e imaginar a trama.Eis os atores:

Gualtieri, Rei da Tessália -, Baixo; Griselda, Espo-

sa do Rei da Tessália -, Mezzo-soprano; Constân-

cia, Filha de Griselda e Gualtieri, Soprano; Roberto,

Príncipe de Atenas - Mezzo-soprano; Conrado, ir-

mão de Roberto, Baritono; Otão , Nobre da

Tessália -, Tenor; e Everardo, filho de Gualtieri e

Griselda - papel silencioso.

Esse arranjo mantém os dois personagens princi-

pais Gualtieri e Griselda constantes da narrativa

de Boccacio. Gualtieri porém, não é Rei mas, Mar-

quês e não comparece o nome do pai de Griselda

Giannúcule, nem os lugares são Tessália e Atenas,

mas Salluzo e Bolonha. Vale o destino de todas as

lendas. Mantém-se o núcleo narrativo. Tudo mais

torna livre a imaginação.

Griselda também foi objeto de outra ópera de auto-

ria de Alessandro Scarlatti com livreto de Pietro

Metastásio, quase à mesma época de Vivaldi,

livreto de Carlo Goldoni. Ambos enredos se con-

centram na tragédia de Griselda.

Para finalizar, cumpre enfocar o conto De insigni

obeditientia et fide uxória de Petrarca.

Este conto é parte da obra conhecida como EpistoleSeniles da correspondência Ad Iohannem de Certaldo,

de non interrumpendo per etatem Studio de Petrarca eforma o capítulo XVII dessa obra.O autor divide sua novela em seis sessões do mesmo modoque o Estudante de Oxford em Chaucer. Os personagensdo De Insigni obedientia são por ordem: Valterius que

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corresponde ao Gualtieri de Boccaccio, Ianicole, paupérri-mo pai de Griseldis. Do casamento de Griseldis e Valteriusnasce uma filha cujo nome não é informado na novela.Valterius tem uma irmã querida em Bolonha [Bononiam]que é condessa de Panico [sororem suam, que illic comitide Panico nupta erat]. Para essa irmã é enviada a primeirafilha. Nasce após quatro anos o segundo filho – macho - docasal [filium elegantissimum]. Esse filho é também retiradoda mãe e enviado à irmã de Valterius residente em Bolonha.Há ainda um personagem inventado por Valterius; “O Ro-mano Pontífice” de quem ele teria obtido licença para aban-donar Griseldis e se casar novamente com uma jovem danobreza.São estes os personagens de Petrarca urdidos na tramade Valterius para provar a “inominável obediência e a fécega da esposa”. No final, posta à prova Griselda setorna esposa exemplar3.

Para terminar e continuar

E a palavra é...Eva.Ave Eva!

A conversa pode render o resto dos séculos dos séculos.Amém!O mistério dos sexos em mitos originais.

Este universo era nada senão o Si-Próprio naforma de um homem. Ele olhou em volta e viuque não havia nada além de si mesmo demaneira que o primeiro grito foi: “Sou Eu”!, edaí surgiu o conceito “eu”. (...)Então ele teve medo. Mas considerou: “Comonão tem ninguém aqui além de mim mesmo, oque há para temer?”Em consequência disso omedo desapareceu.Entretanto, ele carecia de prazer e desejououtro. Ele era exatamente tão grande quantoum homem e uma mulher abraçados. Esse Si-Próprio dividiu-se então em duas partes, ecom isso passou a haver um senhor e umasenhora.O macho abraçou a fêmea e desse abraçosurgiu a raça humana. Ela, entretanto, refletiu:“Como ele pode unir-se a mim, que sou produ-to dele próprio? Bem, então vou esconder-me!” Ela tornou-se uma vaca, ele um touro e

uniu-se a ela, e dessa união surgiu o gado. Elatornou-se uma égua, ele um garanhão.

Upanishad in. As máscaras de Deus.Joseph Campbell.São Paulo: Palas Athena, 1994.

Os leitores atentos da Bíblia dificilmentepodem deixar de perceber a surpreendentediferença que hpa entre os dois relatos dacriação do homem registrados no primeiro eno segundo capítulo do Gênesis. No primeirocapítulo lemos que (...) no sexto dia criou osanimais da terra e depois deles o homem, aque fez a sua imagem e semelhança, tanto aele como à mulher. (...) Porém, quando exami-namos o capítulo segundo, (...) encontramosali com surpresa que Deus criou primeiro ohomem, os animais inferiores em continuaçãoe, por último a mulher que não foi mais do queuma ideia tardia da divindade e surgiu de umacostela extraída do homem enquanto dormia.

Sir James George Frazer. El folclore em el AntiguoTestamento. México: Fondo de Cultura Económica,1992.

E a rolinha fez seu ninhoPara seus ovos chocar.Vem a cobra e come os ovosE a rolinha pôs-se a chorar.

Notas

2 Griselda Significa ”combatente experiente”. Tem  origem  no germânico Grshilda,Griselde, formado pela união dos elementos grisja, que quer dizer“experiente, maduro” e hilde, que  significa ”combatente”. É um nome muito comum na Escócia, através davariante Grizel.

3 Griselda como tipo popular heroico apresentada por Petrarca, deum lado, e por Boccaccio, de outra, chama minha atenção para onome dos personagens centrais: Griselda é nome de origemgermânica e este nome é mantido em ambas novelas. Porém, nãoacontece o mesmo com o nobre que a escolhe como esposa. EmPetrarca, o nobre se chama Valter, ao passo que, em Boccaccioesse nobre é “Marquez”– característico da nobreza italiana e se chama Gualtieri. Isto nosleva à suposição de, para Petrarca a lenda ter origem em tradiçãopopular em meio à roda do Sacro Império Romano Germânico e quealcança áreas de “marca” da península italiana. Para aguçar a que-rela vale a pena ler e comentar o artigo de Eric Haywood cujotítulo quase à moda de Dionéio é: “De insigni obedientia et fideamiculi? Griselda tra Petrarca e Boccaccio”. In I libri del CavaliereErrante. Collana di culture, filologie e letterature romanzemedievali.Alessandria: Edizioni dell ’Orso, 2016, http://www.ediorso.it

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O Movimento dos Folcloristas em Minas Gerais

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CARRANCA

Órgão Informativo da Comissão Mineira de Folclore – CMFL

Número 02 - 20 – Abril- Junho2020.

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