carnot e a segunda lei da termodinÂmica

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CARNOT E A SEGUNDA LEI DA TERMODINÂMICA Júlio César Passos 1 RESUMO O presente artigo apresenta dados históricos sobre as primeiras máquinas térmicas e os avanços da termodinâmica que, em geral, estão ausentes dos livros-textos utilizados em nossas universidades. Especial atenção é dada ao ensaio de Carnot, publicado em 1824, no qual foram apresentados os conceitos de um ciclo térmico ideal que se tornaram as bases da segunda lei e permitiram o desenvolvimento da termodinâmica como ciência. A introdução de elementos de história e filosofia da ciência, no estudo da termodinâmica, pode contribuir para um melhor entendimento dos conceitos sobre a segunda lei. Palavras-chave: termodinâmica, 2 a lei, entropia, Carnot, ensino de engenharia ABSTRACT This paper presents historical data concerning thermal machines and thermodynamics that, in general, are not presented in the textbooks used in our universities. Special attention is given to Carnot’s work, published in 1824, in which the concepts of an ideal thermal cycle were presented which became the bases of the second law and allowed the development of thermodynamics as a science. The introduction of elements of the history and philosophy of science can contribute to a better understanding of the concepts relating to the second law of thermodynamics. Keywords: thermodynamics, 2 nd law, entropy, Carnot, engineering education 1 Professor, Doutor. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Engenharia Mecânica, LABSOLAR- NCTS, Centro Tecnológico - 88.040-970 Florianópolis-SC, Tel.: 0—48 234 21 61-R 217 [email protected] INTRODUÇÃO Devido à importância da termodinâmica como disciplina básica nos cursos de engenharia e em particular nos de engenharia mecânica a sua existência representa uma etapa importante na formação dos estudantes, com repercussão no restante da formação do engenheiro mecânico. A experiência mostra que o conteúdo e a forma de ensinar termodinâmica podem influenciar na escolha da ênfase profissional do futuro engenheiro podendo levá-lo para a área de fluidos e ciências térmicas em geral. A termodinâmica clássica, devido à simplicidade de suas premissas e ao grande número de assuntos a que se aplica, foi considerada por Albert Einstein como a única teoria física de conteúdo geral sobre a qual ele estava convencido que dentro dos limites de aplicação de seus conceitos fundamentais nunca seria refutada, ver Kirillin et al. (1976). O ensino da termodinâmica apresenta dificuldades, principalmente, no que se refere à segunda lei, não apenas para os alunos mas também para os professores. Diferentemente da primeira lei, onde o aspecto quantitativo da conservação da energia é facilmente

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Page 1: CARNOT E A SEGUNDA LEI DA TERMODINÂMICA

Publicado na Revista de Ensino de Engenharia – ABENGE – v.22, n.1, p. 25-31, 2003

CARNOT E A SEGUNDA LEI DA TERMODINÂMICA

Júlio César Passos1

RESUMO

O presente artigo apresenta dados históricos sobre as primeiras máquinas térmicas eos avanços da termodinâmica que, em geral, estão ausentes dos livros-textos util izadosem nossas universidades. Especial atenção é dada ao ensaio de Carnot, publicado em1824, no qual foram apresentados os conceitos de um ciclo térmico ideal que setornaram as bases da segunda lei e permitiram o desenvolvimento da termodinâmicacomo ciência. A introdução de elementos de história e filosofia da ciência, no estudo datermodinâmica, pode contribuir para um melhor entendimento dos conceitos sobre asegunda lei.

Palavras-chave: termodinâmica, 2a lei, entropia, Carnot, ensino de engenharia

ABSTRACT

This paper presents historical data concerning thermal machines andthermodynamics that, in general, are not presented in the textbooks used in ouruniversities. Special attention is given to Carnot’s work, published in 1824, in which theconcepts of an ideal thermal cycle were presented which became the bases of the secondlaw and allowed the development of thermodynamics as a science. The introduction ofelements of the history and philosophy of science can contribute to a betterunderstanding of the concepts relating to the second law of thermodynamics.

Keywords: thermodynamics, 2nd law, entropy, Carnot, engineering education

1 Professor, Doutor. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Engenharia Mecânica, LABSOLAR-NCTS, Centro Tecnológico - 88.040-970 Florianópolis-SC, Tel.: 0—48 234 21 61-R 217 [email protected]

INTRODUÇÃO

Devido à importância da termodinâmicacomo disciplina básica nos cursos deengenharia e em particular nos de engenhariamecânica a sua existência representa uma etapaimportante na formação dos estudantes, comrepercussão no restante da formação doengenheiro mecânico. A experiência mostraque o conteúdo e a forma de ensinartermodinâmica podem influenciar na escolha daênfase profissional do futuro engenheiropodendo levá-lo para a área de fluidos eciências térmicas em geral. A termodinâmica

clássica, devido à simplicidade de suaspremissas e ao grande número de assuntos aque se aplica, foi considerada por AlbertEinstein como a única teoria física de conteúdogeral sobre a qual ele estava convencido quedentro dos limites de aplicação de seusconceitos fundamentais nunca seria refutada,ver Kirilli n et al. (1976).

O ensino da termodinâmica apresentadificuldades, principalmente, no que se refere àsegunda lei, não apenas para os alunos mastambém para os professores. Diferentemente daprimeira lei, onde o aspecto quantitativo daconservação da energia é facilmente

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compreendido, a segunda lei refere-se aaspectos qualitativos sobre a transformação docalor em trabalho, cujos conceitos maisabstratos destoam daqueles normalmentepresentes nas demais disciplinas da formaçãodo engenheiro mecânico. O autor estáconvencido de que o ensino da termodinâmicapermeado de passagens e acontecimentoshistóricos, sobre o desenvolvimento dasmáquinas térmicas ou da própria história daciência termodinâmica, pode contribuir para ummelhor entendimento da disciplina. Muitosexemplos podem, inclusive, ser introduzidos naforma de exercícios, envolvendo o cálculo dorendimento das primeiras máquinas térmicas.Estes aspectos são os elementos que motivamesta pesquisa.

Após esta introdução será feita uma síntesedos acontecimentos históricos que mostraalgumas das descobertas importantes tanto nocampo tecnológico, marcado por inovações einvenções envolvendo as máquinas térmicas,como no campo científico da história datermodinâmica, além de dados sobre a vida deCarnot. Em seguida, serão apresentados dadossobre a obra de Carnot e, finalmente, serãomostradas as principais conseqüências dosconceitos propostos por Carnot (1824).

O objetivo do artigo é fornecer aos que seinteressam pelo estudo da termodinâmicainformações que, segundo a experiência do

autor, poderão auxili ar no ensino da segundalei.

Ao longo do artigo serão apresentadostrechos colhidos em Carnot (1824) e que serãoindicados por “ ” e cuja tradução feita pelopresente autor pretendeu ser fiel ao espírito daobra original.

CONTEXTO HISTÓRICO

Na Tab. (1), são listados alguns dosacontecimentos importantes que marcaram aépoca e o pensamento de Carnot e queconstituem o prelúdio da história datermodinâmica. Uma completa revisão dosfatos marcantes sobre a histórica das máquinastérmicas é uma tentação que deve ser evitadapois está além dos objetivos deste trabalho.

A famosa e única obra científica de Carnot,de 1824, publicada em seiscentos exemplaresàs expensas do autor quando o mesmo tinha 28anos de idade, tendo por título Reflexões sobrea potência motriz do fogo e sobre as máquinasadequadas ao desenvolvimento dessa potência(no original: Réflexions sur la puissancemotrice du feu et sur les machines propres àdevelopper cette puissssance), apresenta umareflexão crítica sobre o calor como causa domovimento e sobre a potência motriz manifestanas máquinas a vapor já bastante conhecidas eespalhadas pela Europa e, particularmente, pelaInglaterra, ver Carnot (1824).

Tabela 01. Datas e acontecimentos importantesAno Autor Fato e comentário Fonte1698 Thomas Savery (1650-1715)

Oficial do exército inglês, naturalda Cornuália, região onde haviaexploração de minas de cobre.

Savery apresenta o seu invento aGuilherme III. A máquina de Savery era

constituída de uma caldeira e de umreservatório e fora utili zada para retirar aágua que invadia as galerias das minas de

cobre.

Mantoux (1905)p. 313-315

1705ou

1706

Thomas Newcomen(1663-1729)

Ferreiro e serralheiro, emDartmouth, no Devonshire.

A máquina de Newcomen sofreu váriasmelhorias até alcançar a forma prática de

1720 que conservou, com poucasmodificações, durante mais de um século.

Na máquina de Newcomen, o vaporproduzido na caldeira preenchia um

reservatório que uma vez em contato coma água fria permitia a criação de vácuo,

no reservatório, provocando a descida deum êmbolo, que movimentava um

balancim capaz de acionar uma bomba.

Mantoux (1905)p. 315-318.

1783 Lazare Carnot (1753-1823) Publicação do li vro “Ensaio sobre as Fox (1978)

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Pai de Sadi Carnotmáquinas em geral” , onde discute aforma de se ter uma máquina com

funcionamento ideal.1769

1774

1800

James Watt (1736-1819)

Fabricante de instrumentos delaboratório que teve dificuldadespara trabalhar livremente pois não

pertencia à confraria dosinstrumentistas. Pôde desenvolver

os seus trabalhos por ter sidocontratado pela Universidade deGlasgow-Escócia que o nomeou,em 1757, como seu “Fabricante

Oficial de InstrumentosMatemáticos” .

Sobre ele, escreveu Robinson, apóster conhecido Watt, então com 22anos: “Eu esperava encontrar umoperário, encontrei um filósofo” .

Primeira patente requerida por Watt paraa máquina a vapor.

James Watt teve um papel importante noaperfeiçoamento do condensador, alémde ter sido o autor de várias patentesimportantes, envolvendo inovaçõestecnológicas, na máquina a vapor.No inverno de 1763 a 1764 teve deconsertar um pequeno modelo da

máquina de Newcomen, pertencente àUniversidade de Glasgow e que era

utili zado para demonstração no curso deFísica.

A grande idéia de Watt foi aperfeiçoar ocondensador, fazendo que o mesmo

ficasse separado do cilindro.Para poder ler as obras científicas

estrangeiras, estudou francês, italiano ealemão.

James Watt deixa a Escócia e muda-separa Birmingham-Inglaterra, onde se

associa a Matthew Boulton e passam afabricar a máquina a vapor.

Expira a patente da máquina de Watt.Chega ao fim a sociedade Boulton&Watt

Mantoux (1905)p. 319-341.

Sproule (1993)

Sproule (1993)

Sproule (1993)

1822 Jean-Baptiste-Joseph Fourier(1768-1830)

Publicação daTeoria Analítica do Calor

1824 Nicolas Léonard Sadi Carnot(1796-1832)

Publica 600 exemplares do livro“Reflexões sobre a potência motriz dofogo e sobre as máquinas adequadas ao

desenvolvimento dessa potência”

Fox (1978)

1833

1834

Benoît Paul Emile Clapeyron(1799-1864)

Descobre o trabalho de Carnot.

Publica um artigo, no Jornal da EscolaPolitécnica – França, onde representa o

ciclo descrito por Carnot para um gás, emum diagrama pressão-volume (p x V).

Fox (1978),Prigogine e

Kondepudi (1999),Bejan (1988)

1845

1848

1854

William Thomson (Lorde Kelvin)(1824-1907)

Não consegue encontrar a obra de Carnote nenhum livreiro conhece a obra.

Propõe uma escala absoluta detemperatura, derivada dos conceitos de

CarnotPropõe nova escala absoluta (hoje escala

KELVIN)

Fox (1978)

Dugdale (1996)

Dugdale (1996)

1860

1865

Rudolf Clausius (1822-1888) Introduz o conceito de entropia

Introduz a grandeza entropia

Prigogine eKondepudi (1999)

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É interessante observar que embora asegunda lei seja apresentada, nos livros e cursosde termodinâmica, após o estudo da primeiralei, tanto uma como a outra surgiram ao mesmotempo, por volta de 1850, ver Bejan (1988). Oprincípio de conservação da energia, conhecidoem mecânica, é bem mais antigo e a primeiralei da termodinâmica, embora sendo umaaplicação deste princípio para os problemastérmicos, só foi formulada por volta de 1850,conforme citado por Bejan (1988).Considerando-se o caráter fundamental dotrabalho de Carnot (1824), pode-se concluir quea segunda lei surgiu antes da primeira.

Os acontecimentos listados, na Tab. (1),mostram dois caminhos relativamente

independentes, o da tecnologia e da inovaçãorelacionado com as máquinas térmicas, e o dateoria e do avanço científico. Enquanto oformalismo científico atinge um marco com otrabalho de Carnot e quase quatro décadasdepois, já na segunda metade do séculodezenove, com o de Clausius, os avançostecnológicos nas máquinas a vapor, incluindo,aí, as primeiras máquinas de “fogo” , ou bombasde “fogo” , permitiram que essas já operassempor mais de um século e meio, no Reino Unido.

Na Tab. (2), são resumidos alguns dadosbiográficos de Sadi Carnot, extraídos de Fox(1978).

Tabela 02. Dados sobre a vida de Sadi Carnot, Fox (1978)Ano Acontecimento

1796, 1o de Junho Nascimento, em Paris, de Nicolas Léonard Sadi Carnot1812, Outubro Ingressa na Escola Politécnica – França.

Traduz um artigo, escrito por John Farey, sobre a Máquina a Vapor deJames Watt.

1814, Outubro Sub-tenente, na Escola de Metz1821, Junho Viagem à Alemanha1827, Outubro Capitão da engenharia1828, Maio Demissão do exército como capitão do estado maior da engenharia1832, 24 de Agosto Morre aos 36 anos, em Paris, vítima do cólera.

A OBRA DE CARNOT

“Ninguém ignora que o calor possa ser acausa do movimento e que possua mesmo umagrande potência motriz: as máquinas a vapor,hoje tão difundidas, são uma demonstraçãovisível disto.” No original: Personne n’ ignoreque la chaleur peut être la cause du nouvement,qu’elle possède même une grande puissancemotrice: les machines à vapeur, aujourd’hui sirépandues, en sont une preuve parlante à tousles yeux. Desta forma Carnot (1824) inicia aapresentação de suas reflexões sobre a potênciamotriz do fogo.

A obra de Carnot (1824) foi escrita na formade ensaio, sem divisões, em cento e dezenovepáginas, contendo em média dezoito linhascada. Na página 6 do ensaio, Carnot presta umahomenagem a Savery, Newcomen, Smeathon,ao célebre Watt e a outros engenheiros ingleses,considerados os criadores da máquina de fogo,

como era chamada a máquina a vapor. Nooriginal: Si l ’honneur d’une découverteappartient à la nation où elle a acquis tout sonaccroissement , tous les developpements, cethonneur ne peut être ici refusé à l’Angleterre:Savery, Newcomen, Smeathon, le célèbre Watt,Woolf, Trevetick et quelques autres ingénieursanglais, sont les véritables créateurs de lamachine à feu; elle a acquis entre leurs manstous ses degrés successifs deperfectionnements.

A razão desse ensaio decorria do fato “de sequestionar, com freqüência, se a potênciamotriz do calor é limitada ou sem limites: se osaperfeiçoamentos possíveis das máquinas afogo possuem um limite, que a natureza dascoisas impede de ser ultrapassado, qualquerque sejam os meios, ou se, ao contrário, taisaperfeiçoamentos são susceptíveis de umaumento indefinido.” Carnot considera, àpágina 8, que “ao contrário das máquinas cujosmovimentos não dependem do calor e que

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podem ser estudadas pela teoria mecânica, asmáquinas a fogo necessitam de uma teoriasemelhante.”

De acordo com Fox (1978) e Prigogine eStengers (1984), Sadi Carnot teria sidoinfluenciado pelo próprio pai cujo interessepelo estudo da hidráulica é confirmado pela suapublicação, em 1783 de um ensaio sobremáquinas hidráulicas onde embora nenhumaconsideração fosse feita sobre as máquinastérmicas estabelecia as condições para umamáquina atingir o rendimento ótimo (Fox,1978).

A Descoberta de um Ciclo IdealCarnot (1824) descreve um ciclo ideal para

um sistema constituído de um gás, contido emum cili ndro equipado com um êmbolo livre,sem atrito. Na Fig. (1) está representado oesquema semelhante ao apresentado porCarnot, ver também Dugdale (1996). Os corposA e B representam reservatórios térmicos cujastemperaturas TA e TB são constantes e TA émaior do que TB. São indicadas quatro posiçõespara o êmbolo. Com o êmbolo, inicialmente naposição c-d, o sistema é colocado emcontato com o reservatório A. Na Tab. (3),são apresentadas as diferentes etapas do ciclotérmico idealizado por Carnot (1824).

TA > TB

b

f

d

h

k

a

e

c

g

i

A B

Figura 1. Experimento teórico de um cicloideal (Carnot,1824).

Carnot enfatiza diversas vezes que omáximo aproveitamento do calor (ou calórico

como chamava Carnot) para a produção domovimento ocorreria quando todas asmudanças de temperatura, no fluido,acontecessem devido a mudanças de volume.

Carnot viu com clareza que os fluidoselásticos (gás ou vapor) são os verdadeirosinstrumentos apropriados ao desenvolvimentoda potência motriz do calor. Isto ficouregistrado, à página 41 do ensaio. “Quando umgás mantido a uma temperatura constante passade um volume (V1) e pressão (p1) para umoutro volume (V2) e outra pressão (p2) aquantidade de “calórico” absorvido ouabandonado é sempre a mesma,independentemente do tipo de gás.” Carnotchama de teorema esta propriedade, apesar dereconhecer, à página 42, que a quantidade decalor absorvida ou liberada nunca havia sidomedida por nenhuma experiência direta. Carnotescreve que durante os processos de expansãoou compressão isotérmica as quantidades decalor absorvida ou liberada pelo gás seguemuma progressão aritmética quando o volumeaumentado ou diminuído é submetido a umavariação seguindo uma progressão geométrica.

É importante observar que Carnot nãoapresentou o gráfico do ciclo termodinâmicopor ele descrito. A representação do cicloidealizado por Carnot foi apresentada porClapeyron na forma de um gráfico p-V, dezanos depois, em 1834, ver Prigogine eKondepudi (1999).

Carnot (1824) apresenta de forma clara queo modelo de ciclo por ele idealizado nãopermite grandes diferenças de temperaturaentre o corpo A e o sistema ar, durante asetapas 1,2 e 6, assim como entre o corpo B e oar, durante a etapa 4. Matematicamente, tem-se:

dTTT Aar1−= (1)

dTTT Bar4+= (2)

As Eqs. (1) e (2) tornam o ciclo quase-reversível e permitem obter as mesmasquantidades de potência motriz, em cadatemperatura, quando se opera no sentidoinverso, comprimindo o ar, da posição e-f parai-k, ou expandindo o ar da posição c-d para g-h.

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Desta forma, desprezando-se qualquer atritoentre o pistão e as paredes do cili ndro, a quasereversibili dade é alcançada ao se aboli rqualquer transferência de calor através dediferenças finitas de temperatura e qualquer

aumento ou diminuição de temperatura do arque exija contato térmico ou transferência decalor entre o fluido de trabalho e o meio, ouvice-versa.

Tabela 03. Etapas do ciclo ideal apresentado por Carnot (1824), às págs. 32-34Etapa Posição do pistão

(ver Fig. 1)Descrição Característica

1 c-d O sistema (gás) ocupando o volume abcd écolocado em contato com o reservatório A, à

temperatura TA, e mantido à temperatura TA- dT.

Estado inicial do ciclo

2 e-f A temperatura do ar é mantida àTA- dT, enquanto o pistão se desloca,

gradualmente, entre c-d e e-f.

Expansão isotérmicado ar

3 g-h É desfeito o contato térmico entre o sistema e oreservatório A, ou qualquer outro corpo capaz defornecer calor. A expansão do ar, entre e-f e g-h,acarreta uma diminuição da sua temperatura, até

TB+ dT.

Expansão adiabáticado ar

4 c-d O sistema ar é colocado em contato com o corpoB, sendo comprimido entre as posições g-h e c-d,

enquanto a temperatura do ar é mantida àTB+dT.

Compressãoisotérmica do ar

5 i-k É desfeito o contato térmico entre o sistema e oreservatório B. A compressão adiabática do gás,

entre c-d e i-k, acarreta um aumento da suatemperatura de TB+dT para TA- dT.

Compressãoadiabática do ar

6 e-f O sistema é colocado, novamente, em contatocom o corpo A e o pistão vai da posição i-k paraa posição e-f., sem modificar a sua temperatura

Tar=TA-dT.

Expansão isotérmicado ar

7 Continuação do novo ciclo, seguindo as etapas 3,4, 5, 6 e 7

Antes de descrever o ciclo conformeindicado, na Tab. 3, Carnot (1824) descreveuum ciclo semelhante com vapor. Neste caso, aspressões correspondentes às temperaturas desaturação do vapor, TA, e do condensado, TB,são constantes e iguais a p1 e p4,respectivamente, com p1=p2=p6.

DESDOBRAMENTOS

A Representação Gráfica do Ciclo deCarnot

A importância dos conceitos apresentadospor Carnot foi compreendida por váriosestudiosos da termodinâmica e tiveram

como conseqüência a formulação da segundalei da termodinâmica, na forma como aconhecemos, hoje, ver Prigogine e Kondepudi(1999). Derivam do trabalho de Carnot oconceito de escala absoluta ou escalatermodinâmica, que independe do fluido detrabalho, proposto por Thomson, em 1848, e oconceito de entropia, proposto por Clausius,em 1860 e 1865, conforme indicados na Tab.(1).

O ciclo descrito na seção anterior e querepresenta a principal contribuição para ahistória da termodinâmica ficou esquecidodurante dez anos. Em 1834, Clapeyron oapresentou em um gráfico p-V,

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representado na Fig. 2, sob o nome de ciclo deCarnot.

Como está resumido, na Tab. 3, o ciclo éconstituído por duas transformaçõesisotérmicas, uma de expansão, onde calor érecebido da fonte quente, à temperatura TA, e aoutra de compressão, onde o calor é entregue àfonte fria, à TB, e duas adiabáticas, umaexpansão, na qual o sistema tem a suatemperatura reduzida de TA para TB, e umacompressão, em que a temperatura éaumentada de TB para TA. Esta simples egrande idéia é que possibilit ou a Carnotconstruir um modelo de ciclo, no qualnenhuma irreversiblidade térmica com o meioexterior, do ponto de vista da transmissão do

4 (c-d)

3 (g-h)

2 (e-f)

1 (c-d)

TB

TA

Volume

Pre

ssão

5 (i-k)

Figura 2. Representação gráfica do ciclo deCarnot, apresentada por Clapeyron.

calor, fosse necessária.

O Rendimento MáximoCarnot (1824) concluiu que a forma acima

era a maneira de se obter o máximo derendimento, com um gás realizando um cicloem que as modificações de temperatura do gásou vapor não dependessem de nenhum contatotérmico com o meio.

Concluiu que o melhor aproveitamentodependia apenas das temperaturas das fontesquente e fria, TA e TB, respectivamente,conforme esquema da Figura 1. Considerando-se a definição de rendimento de um ciclotérmico:

A

B

Q

Q1−=η (3) (3)

onde QA e QB representam as quantidades decalor recebida da fonte quente, a TA, e cedida àfonte fria, TB, respectivamente. Aplicando-se aprimeira lei da termodinâmica em cada umadas transformações do ciclo de Carnot e aequação de gás perfeito:

mRTpV = (4)

onde p, V, m, R e T representam a pressão, ovolume, a massa de gás, a constante do gás e atemperatura absoluta, respectivamente.Sabendo-se que as transformações adiabáticasreversíveis 2-3 e 4-5, conforme indicado naFigura 2, estão relacionadas pela equação

CtepV k = , ver Sonntag et al. (1998), Moran eShapiro (1995), Çengel e Boles (1994): onde krepresenta o coeficiente polit rópico de umatransformação adiabática. Assumindo o arcomo um gás perfeito, chega-se à:

5

2

4

3

VV

VV = (5)

Permitindo que se demonstre que:

A

B

A

B

TT

QQ = , (6)

o rendimento máximo de um ciclo térmico, ochamado rendimento de Carnot, é funçãoapenas da razão das temperaturas absolutas TA

e TB, conforme equação, abaixo.

A

B

T

T1−=η (7)

A equação, acima, deriva dos trabalhos deCarnot e a igualdade entre a razão dastemperaturas absolutas (em Kelvin) dosreservatórios de baixa temperatura TB e de altatemperatura TA com a razão das quantidadesde calor, conforme Eq. 6, foi demonstrada porThomson, o lorde Kelvin, ver Tab. 1 eDugdale (1996). Embora Carnot não forneçaesta equação em seu ensaio ele apresentaargumentos ou teoremas, conforme suaspalavras, que foram fundamentais para odesenvolvimento da segunda lei.

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O primeiro desses teoremas diz que orendimento máximo de um ciclo reversível sódepende das temperaturas TA e TB.

O segundo teorema diz que a potênciamotriz e, consequentemente, o rendimento deuma máquina de fogo é independente dasubstância de trabalho.

Na página 28 do ensaio, Carnot faz aanalogia da potência motriz de um ciclo ideal àde uma queda d’água. No caso de uma quedad’água, a potência depende da altura da quedae da vazão. No caso da máquina térmica, oumáquina de fogo, a potência motriz dependeda quantidade de calórico e da diferença entreas temperaturas TA e TB, dos reservatóriostérmicos de alta e de baixa, respectivamente.Além disso, como escreveu às páginas 130 e131, a maior potência motriz é verificada parauma queda de calórico nos níveis detemperatura mais baixos do que naqueles maiselevados.

É importante observar que o rendimentomáximo do ciclo ideal proposto por Carnotconduz a um valor limite do rendimento,inferior à unidade, e que este valor limite nãoestá associado a nenhuma forma deirreversibili dades ou perdas.

O Grande Legado de CarnotAs idéias contidas no trabalho de Carnot

(1824) representam, segundo Serres (1997) ePrigogine e Stengers (1984) um corteepistemológico em relação ao pensamentocientífico do século 19. Vários autores defilosofia da ciência chamam esses avanços derevolução de Carnot, ou revolução carnotiana,uma vez que a sua aceitação significava umrompimento com a epistemologia entãodominante.

Serres (1997) considera que o legado deCarnot representou a interseção da revoluçãoindustrial com a revolução científica.

Stengers (1997) considera o ciclo de Carnotcomo uma arena onde se decidiu a relaçãoentre a energia mecânica e o que se poderiachamar de energia termodinâmica regida pelasduas leis.

CONCLUSÕES

Tomando por base a obra original de

Carnot, foram revistos alguns aspectosimportantes da concepção do ciclo ideal deCarnot. Ressaltou-se a importância dastransformações adiabáticas reversíveis em quea mudança de temperatura resulta de umavariação de volume e não do contato de corposa temperaturas bem diferentes.

Os aspectos históricos apresentadosmostram duas trajetórias independentes, umasobre o desenvolvimento das máquinas defogo, hoje conhecidas como máquinastérmicas, baseado em inovação tecnológica, ea outra da ciência termodinâmica, estasurgindo posteriormente aos avançostecnológicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DUGDALE, J. S. Entropy and its PhysicalMeaning. Taylor & Francis, 1996.

FOX, R. Sadi Carnot: Réflexions sur la PuissanceMotrice du Feu. Edição crítica com introduçãoe comentários, ampliada com documentos dearquivos e diversos manuscritos de Carnot,Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1978.

KIRILLIN, V. A.; SICHEV, V. V.; SHEINDLIN,A. E. Termodinâmica Técnica. Editorial Mir,Moscú, 1976, pág. 590.

MANTOUX, P. A Revolução Industrial no SéculoXVIII . Editora UNESP/HUCITEC, 1905, Cap.IV, 2a Parte, O ano da edição brasileira não éindicado.

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Publicado na Revista de Ensino de Engenharia – ABENGE – v.22, n.1, p. 25-31, 2003

SONNTAG, R. E.; BORGNAKKE, C.; VANWYLEN, G. J. Fundamentals ofThermodynamics. 5th ed., 1998, Ch. 7.

SPROULE, A. James Watt. Editora Globo, SãoPaulo, 1993.

STENGERS, I. Thermodynamique: La RéalitéPhysique em Crise. La Découverte, Paris, 1997,Pag. 42.

DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR

Júlio César Passos.Engenheiro mecânicopela Escola deEngenharia daUniversidade Federaldo Rio de Janeiro(EE/UFRJ); mestrepela COPPE/UFRJe doutor emengenharia térmica

pela Universidade Pierre et Marie Curie (Univ.Paris VI)/França, em 1989. Professor Adjunto IVdo Departamento de Engenharia Mecânica daUniversidade Federal de Santa Catarina(EMC/UFSC). Foi coordenador do Programa dePós-Graduação em Engenharia Mecânica daUFSC, de maio de 1998 a maio de 2002.Professor visitante, no INSA de Lyon, em janeiroe fevereiro de 2001 e 2002. Leciona as disciplinasde Termodinâmica, Fenômenos de Transporte eTransmissão do Calor, para cursos de engenharia,e Ebulição e Condensação, na pós-graduação(mestrado e doutorado). Linhas de pesquisa:intensificação de processos evaporativos, regimede ebulição nucleada, ebulição confinada,ebulição de misturas de refrigerantes e mudançade fase aplicada à indústria espacial, além deensino de termodinâmica em engenharia.

ANEXOS

Figura A1: Cópia da página do livro de Carnot,de 1824 (extraída de Fox (1978), p. 55)

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Figura A2: Reprodução da primeira página domanuscrito do livro de Carnot, de 1824(extraída de Fox (1978), p. 58).

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Publicado na Revista de Ensino de Engenharia – ABENGE – v.22, n.1, p. 25-31, 2003

Figura A3: Reprodução da primeira página do livro de

Carnot, de 1824 (extraída de Fox (1978), p. 59).