carneiro, ana -- retrato da repressão política no campo

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Retrato da Repressão Política no Campo Brasil 1962-1985 Camponeses torturados, mortos e desaparecidos Direito à Memória e à Verdade 2 ª edição

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  • Retrato da Represso Poltica

    no CampoBrasil 1962-1985

    Camponeses torturados, mortos e desaparecidos

    Direito Memria e Verdade

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    E a gente quer terra, quer direitos,

    quer sade, quer trabalho, quer liberdade.

    E se isso negado, a gente tem que ser contra.

    (Manoel da Conceio, lder campons no Maranho)

    2 edio

  • Camponeses torturados, mortos e desaparecidos

    Direito Memria e Verdade

    Retrato da Represso Poltica no CampoBrasil 1962-1985

    2 edio

  • AFONSO FLORENCEMinistro de Estado do Desenvolvimento Agrrio

    MRCIA DA SILVA QUADRADOSecretria-Executiva do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

    CELSO LACERDAPresidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    LAUDEMIR ANDR MULLERSecretrio de Agricultura Familiar

    JERNIMO RODRIGUES SOUZASecretrio de Desenvolvimento Territorial

    ADHEMAR LOPES DE ALMEIDASecretrio de Reordenamento Agrrio

    JOAQUIM CALHEIROS SORIANODiretor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

    JOO GUILHERME VOGADO ABRAHOAssessor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

    Ana CarneiroMarta Cioccari

    MARIA DO ROSRIO NUNESMinistra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica SALETE VALESAN CAMBAChefe de Gabinete RAMAS DE CASTRO SILVEIRASecretrio-Executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica

    GILNEY AMORIM VIANACoordenador do Projeto Direito Memria e Verdade COMISSO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLTICOS MARCO ANTNIO RODRIGUES BARBOSAPresidente

    EMILIANO JOS DA SILVA FILHORepresentante da Cmara dos Deputados

    DIVA SOARES SANTANARepresentante dos familiares

    BELISRIO DOS SANTOS JNIOR E MARIA DO AMPARO ALMEIDA ARAJORepresentantes da sociedade civil

    MARIA ELIANA MENEZES DE FARIASRepresentante do Ministrio Pblico Federal

    TEN. CORONEL JOO BATISTA FAGUNDESRepresentante das Foras Armadas GILLES SEBASTIO GOMESCoordenador-Geral da CEMDP

    DILMA ROUSSEFFPresidenta da Repblica

  • RetRato da RepResso poltica no campo

    Ministrio do Desenvolvimento AgrrioBraslia, dezembro de 2011

    2 edio

    Ana CarneiroMarta Cioccari

    BRasil 1962-1985

    camponeses toRtuRados, moRtos e desapaRecidos

  • Coordenao do Projeto e da PublicaoCaio Galvo de FranaMaurice PolitiVinicius Macrio

    Superviso da pesquisaMoacir Palmeira(Museu Nacional/UFRJ)

    Pesquisadoras e autoras dos textosAna CarneiroMarta Cioccari

    Estagiria da pesquisaJuliana Lantini

    Capa, projeto grfico e diagramaoCaco Bisol Produo Grfica [email protected]

    Produo grfica e editorialAna Carolina Fleury

    Reviso tcnica ( 2 edio)Marta Cioccari

    Reviso ortogrfica e gramatical ( 2 edio)Fernanda GomesViviane Marques

    Diagramao (2 edio)Caco Bisol Produo Grfica

    Copyright 2011 - Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) / Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (SDH/PR)

    ISBN 978-85-60548-85-9Impresso no Brasil1 edio: 20102 edio: 2011 Distribuio gratuita

    Contedo disponvel tambm nos sitesSDH: www.direitoshumanos.gov.brMDA: www.nead.gov.br/portal/nead/publicacoes/

    Ministrio do Desenvolvimento AgrrioEsplanada dos Ministrios - Bloco A - 8o andarCEP 70050-902 - Braslia-DFwww.mda.gov.br

    Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da RepblicaSCS B - Quadra 09 - Lote C - Ed. Parque Cidade Corporate - Torre A - 10 andarBraslia/DF - [email protected] www.direitoshumanos.gov.br

    As opinies expressas nos textos so de responsabilidade exclusiva dos autores e no representam necessariamente a posio oficial do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ouda Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica ou do Governo Federal.

    C289r Carneiro, Ana.

    Retrato da Represso Poltica no Campo Brasil 1962-1985 Camponeses torturados, mortos e desaparecidos / Ana Carneiro ; Marta Cioccari ; Braslia : MDA, 2011. 360p. ; 21 x 27,8 cm

    ISBN 978-85-60548-85-9

    1. Direitos Humanos. 2. Represso e perseguio poltica. 3. Trabalhador rural. 4. Tortura. 5. Campo. I. Carneiro, Ana. II. Cioccari, Marta. III. Ttulo.

    CDD 323.044

  • sumRio

    9 COMENTRIOS 2 EDIO

    11 APRESENTAO 2 EDIO

    13 APRESENTAO

    17 INTRODUO GERAL

    CAPTULO 1NORDESTE, UMA REGIO PERIGOSA

    37 INTRODUO

    43 PERNAMBUCO Marcos Martins da Silva 43 Manoel Gonalo Ferreira 49 Jos Inocncio Barreto, Luiz Inocncio Barreto e Joo Inocncio Barreto 50 Amaro Luiz de Carvalho, o Capivara 57 Manoel Aleixo da Silva, o Ventania 58 Mariano Joaquim da Silva 60 Amaro Flix Pereira 61 Adauto Freire da Cruz 62 Lista de Vtimas da Represso no Campo em Pernambuco 74

    83 PARABA Joo Pedro Teixeira 83 Elizabeth Teixeira 87 Joo Alfredo Dias, o Nego Fuba 89 Pedro Incio de Arajo, o Pedro Fazendeiro 91 Francisco de Assis Lemos Souza 94 Margarida Maria Alves 100 Lista de Vtimas da Represso no Campo na Paraba 103

    107 CEAR Vicente Pompeu da Silva 107 Francisco Nogueira Pio Barros, o Pio Nogueira 112 Antnio Rodrigues de Amorim 118 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Cear 123

  • 127 MARANHO Manoel da Conceio Santos 127 Elias Zi Costa Lima e Raimundo Alves da Silva 136 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Maranho 138

    147 BAHIA Otoniel Campos Barreto, Olderico Campos Barreto e Jos de Arajo Barreto 147 Lista de Vtimas da Represso no Campo na Bahia 153

    161 RIO GRANDE DO NORTE Jos Rodrigues Sobrinho 161 Luiz Oliveira 166 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Rio Grande do Norte 169

    CAPTULO 2SUDESTE, O CAMPONS FORJADO NAS MASSAS

    181 INTRODUO 183 RIO DE JANEIRO Jos Pureza da Silva, o Z Pureza 183 Josefa Paulino da Silva Pureza 187 Rosa Geralda da Silva 189 Brulio Rodrigues da Silva 193 Manuel Ferreira Lima 197 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Rio de Janeiro 199

    201 SO PAULO Lyndolpho Silva 201 Jfre Corra Neto 204 Aparecido Galdino Jacinto 208 Lista de Vtimas da Represso no Campo em So Paulo 210

    211 MINAS GERAIS Randolfo Ferreira de Lima 211 Francisco Raimundo de Paula 213 Eloy Ferreira da Silva 218 Lista de Vtimas da Represso no Campo em Minas Gerais 222

    CAPTULO 3CENTRO-OESTE E NORTE, AS TERRAS PIONEIRAS E O SANGUE DAS FRONTEIRAS

    231 INTRODUO

  • 235 GOIS Jos Porfrio de Souza 235 Dirce Machado 239 Jos Ribeiro, Joo Soares, Sebastio Gabriel Bailo, Geraldo Tibrcio, Geraldo Marques 242 Lista de Vtimas da Represso no Campo em Gois 247

    251 MATO GROSSO Antonio Tavares Sobrinho 239 Dom Pedro Casaldliga 254 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Mato Grosso 262

    265 PAR Raimundo Ferreira Lima, o Gringo 265 Expedito Ribeiro 269 Padre Josimo Morais Tavares 273 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Par 278

    287 ACRE Wilson Pinheiro 287 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Acre 294

    CAPTULO 4REVOLTAS E OCUPAES: A ORDEM DESAFIADA NO SUL

    301 INTRODUO

    303 RIO GRANDE DO SUL Joo Machado dos Santos, o Joo Sem Terra 303 Leopoldo Chiapetti 311 Silvano Soares dos Santos 316 Zelmo Bosa 318 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Rio Grande do Sul 320

    321 PARAN Manoel Jacinto Correia 321 Lista de Vtimas da Represso no Campo no Paran 332

    337 ADVOGADOS VTIMAS DA REPRESSO

    345 DOCUMENTRIOS

    351 BIBLIOGRAFIA

    365 GLOSSRIO DE SIGLAS

    369 AGRADECIMENTOS

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    Nesta nova edio, pequenas alteraes foram introduzidas no texto da pu-blicao, corrigindo problemas tcnicos, imprecises ou informaes equivocadas que escaparam edio anterior - como no caso da descrio que se segue a alguns nomes da lista de vtimas da represso no Rio Grande do Norte. Em alguns pontos do texto, em diferentes captulos, foram introduzidas novas referncias que auxilia-ro o leitor a aprofundar determinadas questes tratadas nesta obra, por meio de notas de rodap e acrscimo de ttulos de obras de importncia na bibliografia final. Um exemplo, na Introduo, o da nota que remete a leituras complementares sobre a prtica de explorao dos trabalhadores rurais conhecida em certas regies como cambo.

    Duas principais atualizaes foram feitas no texto. A primeira pesarosa est relacionada ao falecimento do lder sindical Vicente Pompeu da Silva, de 86 anos, ex-presidente da Federao dos Trabalhadores Rurais do Estado do Cear (Fetraece), em 25 de maro de 2011. Um dos principais narradores desta publicao, Pompeu manteve sua luta pela reforma agrria mesmo sofrendo brbaras torturas durante o regime militar. Cerca de um ms antes de sua partida, Pompeu recebeu em mos a primeira edio desta publicao e se alegrou com a singela homenagem que repre-sentava a visita inesperada da equipe deste projeto sua casa, em Itarema (CE), em fevereiro de 2011, quando ainda gozava de boa sade.

    Outra informao atualizada diz respeito ao deferimento, pela Comisso Es-pecial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos (CEMDP), do pedido encaminhado pela famlia do lder sindical Nativo da Natividade de Oliveira, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carmo do Rio Verde (GO) e dirigente da Central nica dos Trabalhadores (CUT) naquele estado, assassinado por pistoleiros em outubro de 1985. Em 13 de dezembro de 2010, a CEMDP aprovou por una-nimidade o pedido de reconhecimento do Estado como responsvel por sua morte. Com isso, Nativo Natividade obteve o status de morto poltico e sua famlia passou a ter direito indenizao, como prev a Lei 9.140/95.

    No captulo referente ao Nordeste, na seo sobre o Cear, foram amplia-das as informaes sobre as perseguies e ameaas de morte enfrentadas pelo sindicalista Antnio Rodrigues de Amorim, primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tau (CE) e um dos fundadores da Central nica dos Trabalhadores (CUT), hoje secretrio-adjunto do Desenvolvimento Agrrio da-quele estado.

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    Outras sees foram expandidas, como a que rene casos de advogados que atuavam em defesa dos trabalhadores rurais e foram vtimas da represso. Quatro novos casos foram agregados lista: Paulo Fonteles de Lima (PA), Agenor Martins de Carvalho (RO), Joaquim das Neves Norte (MS) e Vanderley Caixe (PB).

    Esta publicao , assumidamente, uma obra inacabada tal como mencio-nado na Introduo de forma que novas correes e sugestes podem ser enviadas a qualquer tempo equipe deste projeto.

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    Um dos mais cruis exerccios da opresso a espoliao das lembranas

    Ecla Bosi

    O livro Retrato da Represso Poltica no Campo Brasil 1962-1985 Campone-

    ses torturados, mortos e desaparecidos busca desvelar um cenrio de violncia, censura e arbitrariedades ocorridas no meio rural durante a ditadura militar.

    Por meio de relatos de trabalhadores e lderes que sofreram as agresses na prpria pele, ou de familiares e pessoas que testemunharam o perodo, alm de in-formaes de variadas fontes documentais, impressas e audiovisuais, a obra conta a saga de homens e mulheres que ergueram a bandeira da reforma agrria e lutaram pelos direitos dos trabalhadores da terra.

    Para a construo dessa narrativa, as autoras Ana Carneiro e Marta Cioccari contaram com contribuio e o esforo engajado de pesquisadores de diferentes ins-tituies no pas e com a colaborao de lideranas e de organizaes sindicais, que de longa data se mobilizam para o resgate dessas trajetrias.

    Este livro, que representa mais um passo no sentido de consolidao do respeito aos Direitos Humanos, est inserido num conjunto de iniciativas do governo federal como as investigaes conduzidas na ltima dcada pela Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos e a publicao do livro-relatrio Direito Memria e Verdade. A obra tambm dialoga com a criao da Comisso da Verdade.

    Recuperar a memria das lutas camponesas no Brasil entre os anos 1960 e 1980 contar uma histria que, pelas caractersticas prprias s reas rurais, como assinalam as autoras da publicao, foi construda em grande medida no anonima-to, em geral ignorada pelos documentos oficiais. Resgatar essa memria significa, assim, contribuir para a construo de uma identidade coletiva. Implica assumir uma postura diante da histria que, de certo modo, nos permita voltar a decidi-la.

    A reside o grande mrito deste livro, que consegue reunir importantes depoi-mentos e revelar fatos que dificilmente chegariam ao grande pblico. Desse modo, Retrato da Represso Poltica no Campo colabora para denunciar a opresso e humi-

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    lhao dos representantes dos latifndios e do Estado contra os trabalhadores rurais. Mas permite, principalmente, que se evidenciem as estratgias de resistncia dos personagens que viveram essa pgina sombria da histria brasileira e que sua luta e coragem, que cunharam a base das conquistas no campo atualmente, sejam reco-nhecidas e valorizadas.

    Afonso FlorenceMinistro de Estado do Desenvolvimento Agrrio

    Maria do RosrioMinistra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica

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    H muito est superada a ideia de que a histria algo absoluto, plano, fixo e que comporta uma nica viso sobre os acontecimentos do passado. A histria se redesenha a partir de diferentes lugares de reconstruo e da valorizao de uma variada gama de fontes de informaes e de linguagens.

    Um pas pode, por exemplo, reconstruir a viso sobre sua prpria histria con-tando com o acesso a documentos anteriormente restritos, que passam a ser disponi-bilizados, e com um universo maior de depoentes, que apresentam seus relatos memo-rialistas e do visibilidade a dimenses pouco percebidas e pouco conhecidas.

    Reconstruir uma viso sobre o passado do Brasil ainda mais importante quando nos referimos ao ltimo ciclo ditatorial. Jogar luzes sobre esse perodo de sombras e de arbtrio e abrir todas as informaes sobre violaes de Direitos Huma-nos ocorridas durante a ditadura militar um imperativo da reconstruo histrica e, ao mesmo tempo, um imperativo da prpria democracia brasileira.

    Isso vem sendo feito com coragem e generosidade h mais de dez anos pela Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos, que, a partir de uma iniciativa do Executivo federal, assumiu a responsabilidade para reconhecer formal-mente, caso a caso, a responsabilidade do Estado pela morte de opositores ao regime militar em decorrncia da ao de seu aparelho repressivo, aprovar a reparao inde-nizatria e buscar a localizao dos restos mortais.

    A Comisso mantm uma coerente linha de continuidade que j percorreu, at o momento, quatro mandatos presidenciais. Um marco nessa trajetria foi a publicao, em 2007, do livro-relatrio Direito Memria e Verdade, que registra e divulga o trabalho realizado pela Comisso ao longo de 11 anos. Um resultado da combinao do esforo perseverante e tenaz dos familiares dos mortos e desapa-recidos e do reconhecimento da legitimidade e da importncia desse trabalho pelo governo federal.

    Com a publicao do livro Retrato da Represso Poltica no Campo Brasil 1962-1985, Camponeses torturados, mortos e desaparecidos damos mais um passo importante nessa caminhada. Sua realizao contou com o dedicado, intenso e competente trabalho de duas pesquisadoras, Ana Carneiro e Marta Cioccari, que em um curto espao de tempo foram capazes de apresentar, como elas prprias assinalam, um mapeamento, certamente inacabado, mas nem por isso menos impactante, pois o que pode lhe faltar em amplitude revelado pela intensidade das narrativas.

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    O livro contou com a colaborao generosa de pesquisadores e pesquisadoras que contriburam para a definio do escopo do projeto, do delineamento inicial da estratgia de sua execuo e, tambm, no decorrer da pesquisa, com a indicao de novas fontes e o acesso a pesquisas e entrevistas, inclusive de materiais inditos. No podemos deixar de registrar, em especial, a colaborao militante de Moacir Palmeira, Leonilde Medeiros, Heloisa Starling, Christine Dabat, Maria do Socorro Abreu e Lima, Antnio Montenegro, Wagner Cabral, Cesar Barreira e Francisco Amaro de Alencar. Registramos, ainda, nosso agradecimento a Caio Galvo de Fran-a, Maurice Politi e Vinicius Macrio, que coordenaram toda a execuo do projeto com cuidado, rigor e ateno. E no se pode deixar de assinalar que o projeto se en-riqueceu muito com a disposio e a disponibilidade de lideranas camponesas em dar seu depoimento. Algo que, em alguns casos, significou romper com um silncio de dcadas, na dura batalha cotidiana de conviver com a memria da dor provocada pela ditadura. A eles, nosso especial agradecimento e o reconhecimento da rebeldia subversiva de suas trajetrias.

    As informaes reunidas e a experincia registrada nas narrativas das prprias lideranas camponesas nos ajudam a compreender a singularidade da represso no campo durante a ditadura militar. Uma represso em geral ocultada sob o cotidiano de uma histrica relao de opresso e humilhao dos representantes do latifndio contra os lavradores, uma violncia que se desenvolveu longe dos instrumentos institucionais legais.

    Uma represso poltica que revela uma violncia de dupla face, uma coman-dada diretamente pelo Estado, pela ao das foras policiais e do Exrcito, e outra, privada, expressa pela ao de milcias e jagunos a mando de latifundirios. Um imbricamento que acentua a singularidade da represso poltica no campo, e que no deixa dvida de que a resistncia dos camponeses, na sua luta por terra e por direitos, trazia em si toda a energia da luta pelas transformaes democrticas do campo e do pas.

    O livro revela uma riqueza de mobilizaes camponesas como movimentos de massa, como formaes coletivas autnomas e criativas, como fora poltica prpria. Aparecem com fora a vinculao de diversas lideranas com organizaes polticas de esquerda e com a Igreja Catlica, e, ao mesmo tempo, tenses, divergncias e descompassos entre a orientao das organizaes e as decises das lideranas e dos movimentos camponeses na conduo das lutas. Aparecem, tambm, diversas situa-es que indicam a criao de sindicatos de trabalhadores rurais e tambm das Ligas Camponesas, de baixo para cima, no prprio processo de organizao das lutas. Um sindicalismo forjado a quente em diversas localidades que se contrape a leituras que percebem a construo do sindicalismo rural como mera implementao burocrti-ca da estrutura sindical oficial em espaos de conflitos silenciados.

    O livro traz, ainda, algo muito especial. So personagens com uma vida mi-litante, com um engajamento na luta dos trabalhadores que antecede ao golpe de 1964 e que prossegue na redemocratizao. E, por isso, foram vtimas da represso poltica tambm em outros momentos histricos. Nas narrativas dessas lideranas camponesas no s aparecem dimenses pouco conhecidas da represso durante a

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    ditadura militar, que nos ajudam a reconstruir uma viso sobre a histria recente, como tambm nos lembram, de forma recorrente, que a democracia brasileira e o desenvolvimento nacional tm muito a ganhar com a reforma agrria.

    Chacinas como as de Corumbiara, em 1995, Eldorado dos Carajs, em 1996, Felizburo, em 2004, poderiam ter sido evitadas ou pelo menos no ficariam mar-cadas pela impunidade se livros como este j tivessem resgatado, h mais tempo, as razes histricas e profundas da violncia no campo, particularmente durante a ditadura de 1964, apontando mecanismos para a superao democrtica dos confli-tos na rea rural.

    A democracia brasileira rompe o silncio, busca a verdade e supera a omisso, afiana o desenvolvimento com distribuio de renda e superao das desigualdades, afirma sua disposio de seguir ampliando e alargando as liberdades como condio para o Brasil tornar-se uma nao cidad. Essa foi a luta destes grandes personagens de nossa histria e esse o compromisso a animar a militncia de muitos homens e mulheres que no abrem mo de seguir lutando.

    Guilherme CasselMinistro de Estado do Desenvolvimento Agrrio de 2006 a 2010

    Paulo VannuchiMinistro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica de 2005 a fevereiro de 2011

    apResentao

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    intRoduo

    o peRcuRsoDiante de uma incumbncia deste porte um retrato nacional da represso

    da qual foram vtimas os camponeses e seus lderes no regime militar parece que todo investimento de pesquisa torna-se apenas um esboo provisrio de uma rea-lidade muito mais complexa, extensiva e multiforme. O que apresentamos aqui um mapeamento, certamente inacabado, da violncia poltica ocorrida no campo no perodo entre 1962 e 1985. Nem por isso ele menos impactante. O que pode lhe faltar em amplitude revelado pela intensidade das narrativas. Muitos dos per-sonagens, mulheres e homens trabalhadores rurais e lderes sindicais, tiveram, eles mesmos, de suportar o profundo mal-estar que gera o tema das torturas sofridas durante a ditadura para contar a sua saga (a ns, pesquisadoras, ou a outros de seus entrevistadores). Considerados comunistas ou subversivos, seus crimes foram uma luta incansvel pela reforma agrria e pelos direitos dos trabalhadores rurais. Outros dos nossos entrevistados viram no projeto representado por esta publicao uma motivao para romper com o silncio de um exlio autoimposto, depois de dcadas vivendo uma vida semiclandestina nos confins do pas sacrifcios esses acrescidos cota de sofrimentos derivada da perseguio de latifundirios e de pis-toleiros. Outros nomes e outras histrias dezenas, centenas talvez no menos reveladoras e importantes, mereceriam estar aqui. Tivemos de fazer uma escolha, que carrega sempre certa arbitrariedade.

    Este levantamento se beneficiou enormemente de um acumulado de pesqui-sas acadmicas e jornalsticas, bem como as realizadas no mbito de outras orga-nizaes e entidades (e fora delas), em todas as regies do pas. preciso assinalar a importncia para o desenvolvimento deste trabalho da orientao rigorosa, ao mesmo tempo generosa e paciente, do antroplogo Moacir Palmeira, professor do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ). Um dos principais estudiosos sobre a questo do campesinato no pas, ex-assessor da Contag e ex-diretor do Incra, Moacir dividiu conosco no s sua experincia e suas prprias preocupaes acerca do tema como franqueou-nos o acesso aos arquivos do Projeto Memria Camponesa e a obras preciosas e raras, reunidas por ele ao longo das ltimas dcadas, abrigadas hoje no Ncleo de Antropologia da Poltica (NuAP), na mesma instituio. Nosso esforo de pesquisa consistiu, assim, num mergulho nesse universo por meio de entrevistas realizadas por ns mesmas e com

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    o uso de outras j publicadas, registros impressos e audiovisuais contendo depoi-mentos de quem viveu a luta, material de imprensa da poca, filmes biogrficos e publicaes acadmicas baseadas em tais registros. Ao nos debruarmos na cons-truo de um roteiro que nos permitisse abarcar, ao menos, os casos mais repre-sentativos de violncias sofridas por trabalhadores rurais em cada regio do pas, mantivemos longas e produtivas conversas com Moacir Palmeira. Cada um desses encontros constituiu-se, por si s, numa aula densa e comovente sobre um Brasil praticamente desconhecido.

    A definio inicial do escopo do projeto, as primeiras indicaes do percurso a ser adotado e dos estados a serem priorizados foram fruto do dilogo com pesqui-sadores com largo acmulo na rea, que, generosamente, atenderam ao convite do projeto, entre eles, Moacir Palmeira, Leonilde Srvolo de Medeiros, Heloisa Starling, Christine Rufino Dabat, Maria do Socorro de Abreu e Lima, Antnio Torres Mon-tenegro e Wagner Cabral. A base da pesquisa seria o livro-relatrio Direito Mem-ria e Verdade elaborado pela Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos (CEMDP) e publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (SEDH), em 2007 com a incorporao de informaes de outras fontes e de pesquisas realizadas anteriormente. O projeto foi coordenado por Caio Galvo de Frana e Vinicius Macrio, respectivamente, chefe de gabinete e coordenador executivo do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (NEAD), ambos do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, e por Maurice Politi, coordenador-geral do Projeto Direito Memria e Verdade da SEDH.

    Muitos dos personagens que elegemos para contar suas trajetrias j haviam fornecido um ou mais depoimentos no mbito do Projeto Memria Camponesa, alguns deles transcritos, outros com registro audiovisual. O Memria Camponesa surgiu no mbito do Ncleo de Antropologia da Poltica (NuAP), do Museu Nacio-nal-UFRJ, coordenado por Moacir Palmeira, em parceria com vrias outras univer-sidades no pas, e que contou com o apoio do NEAD em vrias de suas iniciativas. Para conhecer essas histrias, assistimos a dezenas de horas das gravaes em vdeo dos seminrios estaduais do Memria Camponesa, nos quais lideranas camponesas de importncia nos anos de 1960 a 19801 concederam seus depoimentos. Desses re-latos, e a partir das definies preliminares do projeto, extramos nossa pauta inicial de investigao, partindo ento para a pesquisa em acervos de memria e ncleos de pesquisa. No Museu Nacional, contamos ainda com o engajamento do professor Jos Sergio Leite Lopes, cujas investigaes realizadas nos arquivos do DOPS no Arquivo Pblico de Recife (PE) trouxeram luz aspectos menos conhecidos da re-presso contra as Ligas e os militantes comunistas daquele estado.

    No Rio de Janeiro, foi fundamental a colaborao da professora Leonilde Sr-volo de Medeiros (CPDA-UFRRJ), que nos ajudou a traar um panorama acerca dos conflitos em cada estado e dos possveis personagens em cada regio. Alm disso, pudemos nos beneficiar de materiais preciosos reunidos nos acervos do Ncleo de Documentao, Pesquisa e Referncia sobre Movimentos Sociais e Polticas Pblicas no Campo, no CPDA-UFRRJ, coordenado por ela, tais como a longa entrevista feita pela prpria Leonilde com a lder camponesa Elizabeth Teixeira, da Paraba.

    1. O projeto compreendeu os estados do Rio de Janeiro (2005), Pernambuco (2005), Rio Grande do Norte (2005),

    Paraba (2006), Cear (2006), Paran (2007), Rio Grande do Sul (2007), So

    Paulo (2008) e Gois (2008).

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    Em Minas Gerais, tivemos o precioso auxlio do Projeto Repblica: Ncleo de Pesquisa, Documentao e Memria do Departamento de Histria da Universi-dade Federal de Minas Gerais, sob coordenao da professora Heloisa Starling, que desenvolveu em parceria com o NEAD o Projeto Sentimento de Reforma Agrria, Sentimento de Repblica.

    Alm do acervo e da bibliografia disponibilizados por esses ncleos, recolhemos dados e documentos histricos em outros arquivos e centros de memria, visitando a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; o Programa de Histria Oral do CPDOC-Fundao Getlio Vargas; o Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp (AEL) e o Centro de Documentao e Memria da Unesp (Cedem). Privilegiando a procura por relatos fornecidos pelos prprios trabalhadores e seus lderes, garimpamos entrevistas notveis, como a concedida por Francisco Julio sociloga Aspsia Camargo, em 1977, no M-xico, disponvel no CPDOC-FGV. Na Biblioteca Nacional, tivemos acesso a edies da revista O Cruzeiro e dos peridicos Movimento e Terra Livre.

    Logo no primeiro mapeamento, notamos que esse universo era bem mais vasto do que imaginvamos. A cada novo contato com os pesquisadores, as pistas se multiplicavam, informando-nos sobre episdios de represso e indicando pes-soas que nos ajudariam a relembr-los. Esses encontros, assim como a escuta de relatos j registrados, nos forneceriam o fio condutor. Neste sentido, a disposio dos pesquisadores que nos ajudaram digna de nota. Encontramos ali, para alm do envolvimento intelectual, um interesse engajado na reconstruo desta mem-ria, coerente, alis, com o comprometimento poltico traduzido em seus prprios objetos de pesquisa. Nosso objetivo no foi fazer um levantamento exaustivo dos acervos, mas entrever ali apenas a ponta do iceberg da brutal represso a que foram submetidos homens e mulheres trabalhadores do campo e seus lderes, durante o perodo militar. Como foi dito, apresentamos nesta publicao uma determinada seleo de vtimas da represso, a ttulo de ilustrao. O leitor ver que nas listas que se seguem aos captulos h outros casos que, embora menos explorados, teriam uma importncia equiparvel. Colocadas sob uma lupa imaginria, essas listas revelariam pistas de outros percursos, outras configuraes de fora, medo e coragem, alm das que foram esmiuadas aqui. Desenhar este retrato da represso no campo consistiu, enfim, em percorrer trajetrias individuais e tambm coletivas que representa-ram caminhadas de sonho e sofrimento compartilhados.

    Tnhamos em mente realizar uma srie de viagens a vrios estados para con-tatos e entrevistas com pesquisadores, lderes camponeses e outras pessoas de re-ferncia em cada regio. Nem tudo o que estava previsto inicialmente pde ser realizado. A prpria organizao do material obtido consumia esforo e tempo considervel. Mesmo assim, algumas viagens de pesquisa foram realizadas. Na via-gem feita a So Paulo, em agosto de 2010, foram especialmente importantes as entrevistas concedidas por Clifford Welch, do Departamento de Histria da Uni-fesp; Juvenal Boller, ex-procurador do Instituto de Terras de So Paulo; e Roberto Novaes, do Instituto de Economia da UFRJ, todos envolvidos por vias diversas na histria da questo agrria daquele estado. Em comunicaes a distncia ou em conversas informais, devem-se registrar ainda as contribuies feitas por Dai-

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    nis Karepovs (Fundao Perseu Abramo); Elaine Zanatta (AEL); Eliane Cantarino (UFF); Flamarion Silva (Instituto de Estudos sobre a Violncia do Estado); Jos de Souza Martins (USP); Juarez Ferraz de Maia (Projeto de Extenso sobre Trombas e Formoso); Marcelo Ernandez (UERJ); Paulo Ribeiro da Cunha (Unesp); Regina Beatriz Guimares Neto (UFPE); Regina Novaes (UFRJ); Sonia Bergamasco (Uni-camp) e Vera Botta (Uniara).

    Durante uma viagem a Pernambuco, em setembro de 2010, recebemos as con-tribuies das professoras Maria do Socorro de Abreu e Lima e Christine Rufino Dabat, do Ncleo de Documentao sobre os Movimentos Sociais, e dos professores Vera Lcia Acioli e Antnio Torres Montenegro, do Centro de Memria e Hist-ria, todos pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Nesses encontros, ficava ntido que os temas de pesquisa, de parte a parte, e as convices sobre a importncia do resgate destas memrias em torno das violncias sofridas por camponeses estavam intimamente entrelaados. Mais de uma visita foi realizada ao Centro de Memria e Histria da UFPE, coordenado por Antnio Montenegro, e que abriga, num convnio do Programa de Ps-Graduao em Histria com o TRT 6 Regio, cerca de 120 mil processos trabalhistas das dcadas de 1960, 1970 e 1980. Nesse cenrio, frente a prateleiras repletas de velhos documentos, deu-se uma memorvel entrevista com Jurandir Bezerra, de 83 anos, filho do lder comunista Gregrio Bezerra. Um dia antes, tnhamos assistido a imagens, guardadas no acervo, de uma entrevista com o prprio Gregrio, gravada em 1983, quando ele contava 83 anos. Em uma passagem, o lder comunista contava sobre as inmeras prises e torturas que sofreu. A voz mansa e pausada de Gregrio parte de sua ternura revo-lucionria, como definiu Antnio Callado (1979), num texto sobre greves na zona canavieira faziam vivo contraste com as atrocidades narradas. Os semblantes dos pesquisadores no escondiam a sensibilizao pelo relato. H coisas que se pode ouvir uma centena de vezes, mas que continuam a nos chocar. Entre os materiais forneci-dos pelo Centro de Memria e Histria da UFPE a este projeto, contendo imagens e dados da represso, preciso mencionar, particularmente, uma longa entrevista (em sua maior parte indita) realizada por Montenegro, em 1998, com o ex-lder cam-pons Luiz Inocncio Barreto, na qual o trabalhador narra o conflito ocorrido em Escada (PE), em 1972, conhecido como a Chacina de Matapiruma. No Ncleo de Documentao sobre os Movimentos Sociais, tivemos acesso a jornais de entidades de trabalhadores rurais, tal como o peridico O Vagalume, publicado nos anos 1970 pela Federao dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape).

    Em Recife e em Carpina, depois de uma visita Fetape, uma srie de entre-vistas com ex-lderes e ex-assessores da entidade foi descortinando, em cores vivas, aquilo que conhecamos de textos lidos, de produes audiovisuais e das conversas com pesquisadores. As histrias das violncias sofridas pelos trabalhadores, tanto em sua dimenso pblica, comandada diretamente pelo Estado, por intermdio do aparato militar e dos rgos de represso, quanto em sua face privada, patrocinada por latifundirios, grandes proprietrios de terra, senhores de engenho e grileiros, com suas complexas e mtuas imbricaes, ganhavam corpo e alma nessas narrati-vas, uma mais chocante do que a outra.

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    Esta regio foi durante longo tempo e continua a ser um frtil campo de pesquisa de equipes de antroplogos do Museu Nacional, em projetos coordenados por Moacir Palmeira desde 1969. Deve-se creditar, assim, a essa longa e consagrada relao parte da calorosa acolhida que recebemos. Faltava cerca de um ms para as eleies de outubro de 2010 e quase todos os nossos interlocutores, ativos em suas lutas, estavam s voltas com seus compromissos de campanha. Nem por isso deixaram de arranjar tempo para nos conceder depoimentos ricos e reveladores, ora pontuando as conformaes da represso vivida pelos trabalhadores rurais em mbito nacional e os casos mais emblemticos em cada regio como na conversa com o ex-presidente da Contag Jos Francisco da Silva e sua mulher, Josefa Reis, funcionria do Incra , ora explicitando meandros por vezes insuspeitos de situaes extremas vividas pelos camponeses em Pernambuco, como nos encontros com o ex-presidente da Fetape Euclides Nascimento e com os ex-assessores da federao Luiz Romeu Cavalcanti da Fonte e Severino Biu da Luz. Euclides Nascimento relatava, por exemplo, o caso de um trabalhador que, sob as ordens e as ameaas do patro, foi enterrado vivo pelos prprios companheiros de trabalho. Sob a mira de espingar-das, os jagunos obrigaram os colegas a cavarem um buraco, onde o trabalhador foi metido, de p, ficando com ombros e a cabea para fora. Outro trabalhador deveria passar com o caminho sobre a vtima. Ele foi salvo quando o pneu do caminho estava a poucos centmetros de sua cabea. Euclides, ento presidente da Fetape, procurou as autoridades e denunciou publicamente o caso.

    Nossa viagem de pesquisa continuou no Cear. Os contatos vinham sendo costurados nas semanas anteriores com os professores Francisco Amaro de Alen-car e Cesar Barreira, da Universidade Federal do Cear (UFC) organizadores do seminrio Memria Camponesa, realizado naquele estado, em 2007. Amaro era o intermedirio para um encontro com o lder sindical Vicente Pompeu da Silva, de 85 anos, ex-presidente da Federao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Cear (Fetraece). Tnhamos planejado ir cidade de Itarema, onde morava Pom-peu, mas a entrevista acabou sendo realizada em Fortaleza, na casa de um dos filhos do lder campons, porque este, acostumado a enfrentar dificuldades maiores em dcadas de militncia no PCB e nas entidades de trabalhadores, quis nos poupar o trabalho de irmos ao seu encontro. Impossvel no ser afetado pela agudeza do relato e pela dignidade do narrador.

    Nessa fase do trabalho, tivemos o apoio da Delegacia Federal do Desenvolvi-mento Agrrio (MDA) no Cear, por meio de seu titular, Francisco Sombra, e da agrnoma Ana Andrade. Uma ajuda importante partiu ainda da Secretaria de De-senvolvimento Agrrio daquele estado, que nos cedeu carro e motorista (convertido em participante ativo na pesquisa) para os deslocamentos mais distantes. O prprio secretrio Antnio Amorim cavou uma brecha em sua apertada rotina de trabalho para nos contar em detalhes suas prprias vivncias frente de sindicatos de traba-lhadores rurais e as numerosas ameaas de morte que sofreu, a mando de latifundi-rios da regio. Depois disso, na companhia do socilogo Cesar Barreira fizemos uma visita fazenda Japuara, em Canind (CE), regio palco de um intenso conflito, em janeiro de 1971, envolvendo camponeses, jagunos contratados pelo proprietrio da

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    rea, um delegado do DOPS e soldados da Polcia Militar. Barreira nos conduzia, generosamente, ao interior de seu prprio campo de pesquisa. Ali ele havia feito, at meados dos anos 1990, uma srie de entrevistas com o lder campons Pio Noguei-ra, hoje falecido. Tnhamos ento o privilgio de assistir a esse reencontro histrico entre o pesquisador e os filhos de Pio, cerca de 15 anos depois. Nossos investimentos de pesquisa no Cear seriam completados com uma entrevista com o advogado Tar-csio Leito, ento candidato a senador pelo PCB, que enfrentou a priso e a tortura no regime militar por defender os camponeses. Mantivemos contato, ainda, com o Delegado Regional do Trabalho, Papito de Oliveira, organizador do livro Vozes silen-ciadas, publicado em 2009, que rene histrias de represso colhidas pela Comisso de Anistia no estado.

    Em outubro de 2010, uma nova etapa da pesquisa de campo nos levou ao Distrito Federal e a Gois. Em Riacho Fundo (DF), o ex-lder sindical Sebastio Santiago, presidente do STR de Palmares (PE) entre 1970 e 1972, narrou em de-talhes o assassinato de um trabalhador em frente casa-grande de um engenho em Pernambuco, em 1970. Sebastio seria o mediador de um encontro nosso com Mar-cos Martins da Silva, ex-presidente do STR de Escada (PE), que, desde o incio dos anos 1980, vive de forma semiclandestina no interior de Gois. Tendo sobrevivido s prises e torturas inflingidas por militares em aliana com senhores de engenho, antes e depois de 1964, o sindicalista passou a ser perseguido por pistoleiros con-tratados para execut-lo. Seu caso ilustra bem a conjugao e a possvel alternncia das matrizes e formas de violncia perpetradas contra os trabalhadores rurais: ora sofrendo a ao conjunta de latifundirios e militares, ora sendo perseguido por pistoleiros. Nessa relao de confiana mediada, ali, por Sebastio e, a distncia, por Moacir Palmeira, Marcos concordou em nos receber. Uma certa fragilidade de sua figura, hoje, aos 85 anos, estabelece um contraste apenas aparente com a fora e a coragem de um homem que enfrentou o dio de senhores de engenho em Escada. Em Braslia, um encontro com o ex-presidente da Contag Francisco Urbano forne-ceria novos elementos sobre a represso ocorrida em diferentes regies do pas. Nessa conversa, Urbano partilhava reflexes lcidas e incmodas acerca dos limites das homenagens prestadas pelo Estado e pelas entidades sindicais aos heris e mr-tires das classes populares, como no caso dos ex-lderes camponeses. Mencionava o risco de que, findas as cerimnias que os enaltecem, na sua vida ordinria esses trabalhadores continuem sujeitos misria, ao abandono, solido e doena.

    Ao longo do percurso, fizemos uma srie de reunies com a coordenao deste projeto, por vezes em Braslia, outras no Rio de Janeiro. Um desses encontros ocor-reu no incio de outubro, na sede do MDA, em Braslia, quando apresentamos o roteiro dos captulos que constariam da publicao e um mapa descritivo dos avan-os obtidos pela pesquisa. Outros encontros foram realizados no Museu Nacional, UFRJ, contando ainda com a participao de Leonilde Medeiros e Jos Sergio Leite Lopes. Deve-se registrar que a amplitude e a complexidade da tarefa que assumimos foi em muito facilitada pelas ricas discussses mantidas com a coordenao deste projeto em torno do delineamento da obra, pelo incentivo e suporte durante todo o investimento na pesquisa de campo e bibliogrfica e, de forma mais vasta, por

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    um permanente encorajamento. Para alm dos textos e das imagens aqui impressos, mais visveis ao leitor, trata-se de relaes que foram sendo tecidas e/ou aprofunda-das ao longo dos ltimos meses, cuja intensidade atravessada pela alma, a memria e a histria de nossos protagonistas os camponeses.

    as questes centRais

    Da espessura do silncioA exposio corajosa dos narradores desta publicao deve servir menos a

    construes idealizadas em torno de um herosmo individual diante da opresso de patres e de proprietrios rurais, assim como frente represso militar, e mais para evidenciar as estratgias de resistncia em alguns casos, seria mais apropriado dizer de sobrevivncia nesse perodo sombrio da histria brasileira. Essas trajet-rias revelam momentos de ousadia, de coragem, at mesmo de bravura, mas no se deve ignorar o fato de que so constitudas tambm, e no s em seus interstcios, pelo medo, pela dor, pela frustrao, pela revolta e a tristeza diante de numerosas perdas desde o afastamento de parentes e amigos e a morte de companheiros at os exlios prolongados, e mesmo definitivos, fora e dentro do prprio pas. Se h herosmos, trata-se antes desse herosmo forjado na luta obstinada de todos os dias, que deixa no corpo as suas marcas, no como medalhas, mas como cicatrizes, que remetem sempre a uma memria dolorosa, inseparvel do prprio sujeito. No raro, os detalhes de violncias sofridas ou testemunhadas ocultam-se sob uma ca-mada espessa tecida pelo medo, o silncio e a vergonha surgida da experincia do absurdo. Mesmo quando muita coisa revelada, outras tantas coisas continuam a ser caladas. Como observou o lder campons Manoel da Conceio Santos, do Maranho, referindo-se s torturas que ele prprio sofreu, em suas nove detenes, durante o regime militar: So coisas que me chocam muito at hoje. Se fao al-guma coisa porque considero que tenho um dever, j que, devido censura, a sociedade no tomou conhecimento de muitos desses fatos.

    Por outro lado, resgatar a memria do que ocorreu no campo durante o regi-me militar contar uma histria que, pelas caractersticas prprias rea rural, foi construda em grande medida no anonimato, em geral ignorada pelos documentos oficiais. No apenas devido s experincias de clandestinidade poltica, como ocor-reu na rea urbana, mas, sobretudo, porque foi ocultada sob o cotidiano de uma histrica relao de opresso e humilhao dos representantes do latifndio contra os lavradores, os posseiros, os trabalhadores da terra. A violncia poltica no campo desenvolvera-se, muitas vezes, longe dos instrumentos institucionais legais e da conscincia de classe que faria valer os direitos dos trabalhadores. Assim, os traos de sua memria durante a ditadura encontram-se, em boa parte, na voz daqueles que formaram tal conscincia poltica, envolvendo-se nas mobilizaes coletivas de luta pelo direito terra. Como indica o documento Violncia no campo, organizado pela Campanha Nacional pela Reforma Agrria, em 1985, a violncia atravessa o cotidiano dos trabalhadores no campo, mas somente em alguns momentos rom-pido o silncio em seu entorno. Isso ocorre porque justamente um dos aspectos da

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    opresso que sofre o campons tambm o esforo para silenciar a sua voz, para que ela no chegue aos jornais, televiso, ao rdio, para que em torno dela no se criem redes de solidariedade.

    Num depoimento, lio Neves, presidente da Federao dos Empregados Ru-rais Assalariados do Estado de So Paulo (Feraesp), sugeria que, to terrvel quanto a violncia fsica praticada pelos rgos de represso foi a que subjugou os trabalha-dores pelo silncio: As pessoas at hoje tm medo de contar a sua histria porque h uma mordaa colocada em suas bocas, observava. Neste sentido, o advogado trabalhista Tarcsio Leito de Carvalho, dirigente comunista no Cear, que esteve preso em celas contguas com o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e o lder das Ligas Camponesas, Francisco Julio, em Recife, logo aps o golpe de 1964, sinalizava durante entrevista em Fortaleza que, ao ser solicitado por jornalis-tas a referir nomes de companheiros que viveram, como ele, os horrores do crcere, esquece-se subitamente desses nomes tal foi o mecanismo de defesa introjetado durante as torturas, como forma de evitar qualquer revelao que pudesse compro-meter outras pessoas.

    A alguns, o preo da luta pelo direito ao trabalho e moradia foi a perda de suas identidades, levados clandestinidade longe de seus familiares, forados a rom-perem seus vnculos mais essenciais. A outros, o terror do passado deixou derradeiras marcas emocionais, que no esmaecem nem se apagam. Ainda hoje, os relatos de muitos dos que sofreram com a represso ps-64 so atravessados por essa espcie de mal-estar fsico, misto de horror e nusea, pontuados por numerosos silncios e reticncias. Como sugere o depoimento de Tarcsio Leito, nesse perodo qualquer informao sobre nomes de companheiros e locais de encontros de trabalhadores, registrada pelos agentes da represso, podia ter efeitos nefastos sobre as vidas de lideranas, mas tambm no destino de camponeses comuns. Tais indcios de partici-pao poltica podiam ser suficientes para o enquadramento na perigosa categoria de comunistas e subversivos, sinnimos de inimigos da nao de forma que, da em diante no precisava muito para que se tornassem perseguidos e presos polticos, aos quais se aplicavam penas to cruis quanto inimaginveis.

    De camponeses e trabalhadores ruraisEm algumas circunstncias, o silncio instrumento de resistncia. Em outras,

    a fora das palavras o que as torna proibidas pelo sistema opressor. Durante a ditadura militar no Brasil, o uso do termo campons poderia ser suficiente para desencadear prises, torturas e assassinatos. Mas o que o regime fazia calar no eram as palavras. Deve-se lembrar que a designao campesinato tem uma histria poltica que a re-veste, construda por meio de eventos e experincias coletivas vivenciadas nos enfren-tamentos em defesa do uso do solo e de uma distribuio justa da terra. Sem ignorar a importncia das lutas anteriores, foi a partir dos anos 1950 que os movimentos passa-ram a generalizar o uso do termo campons no pas, revestindo demandas locais em propostas polticas vinculadas a um projeto nacional. A palavra reunia ampla gama de categorias lavradores, trabalhadores rurais, meeiros, foreiros, agricultores familiares, pequenos proprietrios, posseiros , articulando reivindicaes diversas: direitos traba-

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    lhistas, acesso previdncia social, direito posse, reforma agrria etc. Assim, carregava um significado simblico e um sentido poltico.

    Foi justamente esse sentido poltico do termo campons que passou a ser combatido, no apenas pelos agentes da represso militar, como tambm por lati-fundirios, seus amigos e capangas. Durante a entrevista realizada em Braslia, o ex-lder sindical Sebastio Santiago contava que, em Palmares (PE), um banqueiro de jogos de azar que tinha grande influncia na localidade, pois seu estabelecimento era frequentado por senhores de engenho, com vistas a humilhar os trabalhadores do campo, costumava chamar os ces pelo termo campons to caro aos sindicalis-tas daquela regio do pas. Quando passava por ns, ele se dirigia aos ces e dizia: Vem c, Campons! Os trabalhadores ouviam a provocao de cabea baixa. Nes-sa poca, o golpe militar j havia sido desfechado e o delegado de polcia mantinha uma aliana com os latifundirios. Mais do que explicitar um episdio pitoresco, esse relato revela com clareza as tentativas de desmoralizao e de menosprezo de uma histria de lutas dos trabalhadores no campo.

    importante se considerar que o termo campons passou a ser adotado no Brasil em meio s aes do Partido Comunista Brasileiro, quando este se lanou na conquista das massas rurais, a partir de meados dos anos 1940, difundindo ali o lin-guajar adotado pela III Internacional Comunista. Mas que o termo campons tenha se originado de uma espcie de importao poltica, fora da realidade rural brasileira, no se pode deduzir disso que as mobilizaes sociais no campo no tenham sido ini-ciativas genunas. Ao contrrio, nas trajetrias de trabalhadores reunidas neste livro, sobressai o engajamento poltico seja ele partidrio ou no decorrente de distintas iniciativas de camponeses na conduo dos movimentos em cada regio do pas.

    Um dos estudiosos do tema, Silva (2006) nota que foram o advento e a ex-panso das Ligas Camponesas, sobretudo no Nordeste, sob a liderana de Francisco Julio, que contriburam para a popularizao do termo campons, que passou a significar aquele que luta pela reforma agrria, com uma conotao poltica. No sul do pas, o uso do termo manteve-se restrito aos iniciados no sindicalismo de es-querda, especialmente os militantes comunistas.2 Depois de incorporar um sentido poltico, a palavra campons tornou-se tambm um conceito acadmico. Com o tempo, o termo foi perdendo terreno para a expresso trabalhador rural, conside-rada mais abrangente. Se nas dcadas de 1940 e 1950 essa expresso ainda era tida como sinnimo de assalariado ou de empregado rural, no incio dos anos 1960, com a organizao dos sindicatos, legitimou-se, mediante a sua adoo pelo sindica-lismo de matiz comunista, tornando-se eficaz na contraposio a fazendeiro, por exemplo, e sendo consagrada no Estatuto do Trabalhador Rural, criado em 1963. Esse estatuto serviria defesa dos direitos dos trabalhadores no regime militar, quan-do outras reivindicaes estavam amordaadas pelo clima de arbtrio.

    Das lutas pelos direitos e da violncia no campo aps 1964Muito antes do golpe militar de 1964, o campo brasileiro j era um trgico

    palco de abusos e assassinatos de trabalhadores rurais. A violncia, como se sabe, atravessou todo o processo de colonizao do pas. Estava presente na destruio 2. Ver Silva, 2006, p.28-32.

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    do territrio indgena, passou pela degradao dos quilombos e pelas lutas entre camponeses e o Exrcito, em Canudos, nos sertes da Bahia, em 1896 e 1897, assim como na guerra do Contestado, no Paran e em Santa Catarina, entre 1912 e 1916. Registre-se a, ainda, a represso imposta aos colonos migrantes durante as greves de 1911 nas fazendas paulistas, para limitarmo-nos a alguns exemplos.

    Nos limites deste trabalho, porm, o objetivo caracterizar a singularidade da violncia no campo no perodo compreendido entre 1962 e 1985, quando a violncia privada era exercida sob a cobertura e o estmulo oficial, baseada em compromissos de classe que aliavam grandes proprietrios e empresrios rurais ao governo militar. A lei da violncia que caracterizava as prticas privadas vinha ao encontro dos interesses defendidos pelo regime a fim de barrar a organizao crescente dos trabalhadores do campo.

    As dcadas de 1940 e 1950 j haviam sido marcadas por numerosos conflitos, mas com uma caracterstica predominantemente local, como ilustra o caso da guerri-lha de Porecatu, no Paran, e de Trombas e Formoso, em Gois. Entretanto, foi com o surgimento e a expanso das Ligas Camponesas e com a organizao dos sindicatos dos trabalhadores do campo que essas lutas passaram a ganhar uma dimenso nacio-nal e a preocupar mais intensamente o poder pblico. Foi o perodo tambm de sur-gimento dos sindicatos dos trabalhadores rurais, organizados sob a influncia do PCB ou da Igreja Catlica. Nessa poca, as Ligas Camponesas, o PCB e a Igreja Catlica eram as trs principais foras que disputavam entre si a organizao dos camponeses.

    Associaes de trabalhadores rurais, as Ligas Camponesas expandiram-se nas dcadas de 1950 e 1960, depois de uma iniciativa pioneira do PCB nos anos 1040. Ainda que as experincias mais significativas tenham se desenvolvido no Nordeste, essas organizaes tiveram ncleos tambm no Paran, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e em Gois. Entre 1960 e 1961, havia federaes das Ligas em dez estados brasileiros. O principal lder da organizao, o advogado Francisco Julio, deputado estadual e federal pelo Partido Socialista, contribuiu de forma decisiva para a expanso das Ligas por todo o pas. Em 1962, o assassinato de Joo Pedro Teixeira, um dos lderes da Liga de Sap (PB) retratado no filme Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho , demarcava de forma contundente a reao do latifndio ante o avano da organizao.

    Desde o incio dos anos 1960, a Igreja Catlica, por sua vez, buscava ampliar sua influncia no campo, atuando no Nordeste por meio do Servio de Orientao Rural de Pernambuco (Sorpe), desde 1961, e do Servio de Assistncia Rural (SAR), em funcionamento no Rio Grande do Norte desde 1949. Muitos trabalhadores em diferentes regies do pas aprenderam suas primeiras lies sobre organizao no interior do Movimento de Educao de Base (MEB), criado em 1961 pela Igreja Catlica, com o apoio do governo federal. Em Pernambuco, o Sorpe fundou 45 sindicatos rurais em 1963 e outros dois, em 1964, mantendo naquele perodo o controle sobre 68 sindicatos rurais do estado.3

    Com uma origem ancorada no movimento operrio, o PCB voltou-se a pen-sar mais profundamente sobre a questo agrria e camponesa a partir de 1928, com seu III Congresso. Em meados da dcada de 1940, durante seus 18 meses de existn-3. Koury, 2010, p. 121.

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    cia legal, quando registrava 200 mil militantes, o partido dedicou-se organizao das primeiras Ligas Camponesas, formadas principalmente nos estados de Pernambuco, Gois, So Paulo e Paran. Nesse perodo, a principal reivindicao dos camponeses era a posse da terra.4 A experincia de Porecatu, no norte do Paran, no incio dos anos 1950, constituiu-se na nica experincia de guerrilha rural orientada pelo PCB. Apesar de ter sido derrotada pelas foras policiais, ela multiplicaria as Ligas Campone-sas e as unies gerais de trabalhadores, at o surgimento dos sindicatos agrcolas na regio. No incio dos anos 1960, no Nordeste do pas, o partido investiu fortemente na organizao de sindicatos de trabalhadores rurais, em cujo trabalho se destacava o lder comunista Gregrio Bezerra. O STR de Palmares (PE), por exemplo, de orienta-o comunista, tornou-se um dos mais combativos da regio e, tambm, um dos mais perseguidos pelo novo regime. A hegemonia do PCB na organizao dos camponeses, j afetada pela crise surgida no congresso de Belo Horizonte de 1961, se dissolveria de vez em 1964, quando a organizao foi irreversivelmente atingida pela represso.

    Se at meados dos anos 1960 havia em curso uma aliana unindo as oligar-quias rurais e as foras do Estado, no regime militar tal relao exacerbou-se. Logo nos primeiros dias de abril de 1964, com a garantia da impunidade, proprietrios de terras e grileiros aproveitaram para pr fim s suas desavenas, animados com as aes praticadas pelos militares contra trabalhadores e lderes camponeses. Em entrevista ao Pasquim em 1979, Julio salientava que a Liga foi a primeira organizao atingida:

    Imediatamente aps o golpe, foi posta na ilegalidade e comearam a perseguir e prender camponeses e assassinaram vrios, enforcaram, queimaram... (...) Pedro Fa-zendeiro, da Liga de Sap, na Paraba, foi pendurado numa rvore e queimado com gasolina pelos grandes latifundirios da regio.5

    Quase todos os dirigentes das Ligas foram presos ou mortos. No dia 21 de abril de 1964, o Dirio de Pernambuco noticiava que a polcia havia encontrado o corpo do presidente das Ligas Camponesas de Vitria de Santo Anto, Albertino Jos da Silva, em adiantado estado de decomposio. Nessas execues sumrias, fi-cavam evidentes os compromissos entre o latifndio e o poder militar que comanda-va o pas. A maior parte dos trabalhadores e lideranas mortas no campo no perodo foi sacrificada pelas milcias privadas dos proprietrios rurais ou com a ajuda direta dos mesmos, segundo pesquisa conduzida por Koury (2010).6

    De forma geral, no pas, a organizao dos trabalhadores rurais foi duramente golpeada pela ditadura. Durante e aps o golpe militar, vrios dirigentes sindicais fo-ram mortos, torturados, presos e perseguidos, como atesta o caso de Lyndolpho Silva, ex-presidente da Contag, entre muitos outros. No Nordeste, uma das regies mais atingidas, os efeitos foram imediatos e brutais, com a priso e o assassinato de dezenas de lderes. O Exrcito ocupou e interveio na maioria dos sindicatos de trabalhadores rurais da regio. Dos 40 sindicatos rurais existentes na poca, na Zona da Mata de Per-nambuco, 38 sofreram processos de interveno imediatamente aps o golpe. Destes, 26 tiveram mais de um processo de interveno pela DRT at 1967.

    Nos primeiros anos da ditadura, apesar da violncia registrada, ainda havia certo espao para as manifestaes populares, mas a situao se tornaria ainda mais crtica nos anos 1970, quando ocorre o maior nmero de casos de prises e assas-

    4. Silva, 2006, p.32-37.

    5. Entrevista de Julio ao jornal Pasquim, em 1979, citada por Koury, 2010, p. 206

    6. Koury, 2010, p. 206.

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    sinatos de lderes camponeses. Um estudo da Comisso Pastoral da Terra (CPT) indicou que, entre 1964 e 1989, o Brasil contabilizou 1.566 assassinatos de traba-lhadores rurais, dos quais h registro apenas de 17 julgamentos e de oito condena-es, numa clara caracterizao da impunidade. Parte desse estudo foi publicado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Assassinatos no campo: crime e impunidade, 1964-1986, constituindo-se numa das principais fontes que subsidiaram nosso prprio levantamento de dados sobre a violncia no campo.7

    Diante dos limites impostos pela represso, o sistema de organizao adotado pelos sindicatos, prevendo um delegado sindical em cada engenho, como no Nor-deste, por exemplo, possibilitava enfrentar a violncia dos patres. Como observou Jos Francisco da Silva, ex-presidente da Contag, em Vicncia (PE), os prprios sindicalistas tinham de andar armados e montar esquemas que envolviam a presen-a de grande nmero de trabalhadores para proteg-los. O que ouviam era: No entra que morre! No entra que morre! No perodo posterior ao golpe, o esforo era para restabelecer o funcionamento dos sindicatos interditos, mesmo que fosse para atuarem nas limitaes do estatuto dos sindicatos e da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT). Nessa poca, as lutas sindicais se ancorariam no cumprimento da legislao em vigor o Estatuto da Terra e o Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado somente em maro de 1963. No entanto, mesmo a defesa de direitos j consagrados em lei era encarada como um desafio ordem imposta pela ditadura, nas suas alianas com os grandes proprietrios de terra e com senhores de engenho. Isso ficaria evidente, por exemplo, nos depoimentos, no apenas de Jos Francisco, como de Marcos Martins da Silva e de Luiz Inocncio Barreto, com atuao em Per-nambuco, e de Vicente Pompeu da Silva, do Cear, alm de figurar nos documentos dos rgos de represso.

    Como registra o estudo Violncia no Campo, a violncia privada sobre os tra-balhadores rurais, antes e depois de 1964, complexa e diversificada em suas for-mas: vai desde aes de impacto e ostensivas como assassinatos, espancamentos e prises at outras mais sutis, cotidianas, que procuram minar a sua capacidade de resistncia. Incluem-se neste segundo caso as invases da roa por gado, a morte de animais domsticos, o fechamento de caminhos etc. Em algumas situaes, os agentes so conhecidos, em outras, aparecem de forma ambgua, acobertados pela impunidade. Em determinadas regies, como na zona canavieira, isso facilitado pela concepo vigente propalada pelos senhores de engenho de que, sendo trabalhadores que usam como instrumentos de trabalho a faca e a foice para cortar cana, a nica forma possvel de fiscalizao do seu trabalho a coao constante, a possibilidade, sempre presente, de agresso fsica sobre o trabalhador.8

    Uma parte significativa das violncias contra camponeses e seus lderes, como demonstram os casos narrados ao longo desta publicao, praticada por pistoleiros, jagunos e capangas, que so contratados por latifundirios e empresas para matar e, muitas vezes, para compor milcias privadas. H casos em que a funo exercida por policiais em frias ou em servio extra. Essas milcias privadas, comandadas em sua maior parte por policiais, atuam com a prpria fora pblica na represso aos trabalhadores rurais. No caso dos conflitos de terra, os jagunos e pistoleiros so

    7. A verso publicada em 1987 contou com pesquisa de Maria Cristina Vanucchi

    Leme e Wnia Maria de Arajo Pietrafesa.

    8. CNRA, 1985, p. 8-9.

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    encarregados pelos grileiros supostos proprietrios , pelos latifundirios e pelos grupos econmicos interessados em reas ocupadas pelos lavradores para proceder chamada limpeza da rea. Por meio de violncias fsicas e coeres como se ver em vrios casos narrados neste livro espalham o pnico entre as famlias para for-las a abandonar suas benfeitorias e a se deslocar a outras regies. Deve-se notar que a mesma violncia tradicional que havia no campo, envolvendo latifundirios, grileiros, senhores de engenho, nas ltimas dcadas se manifesta ainda com a face moderna de grupos industriais e de conglomerados financeiros.9

    Em algumas regies, os conflitos de terra envolvem, como foi dito, possei-ros, que so vtimas de violncias cometidas por grileiros. A origem do termo grilagem surgiu com a prtica de se colocar algum papel de comprovao de propriedade dentro de uma gaveta com grilos os dejetos do inseto dariam uma aparncia envelhecida ao papel. Tornou-se uma denominao que se refere pessoa que pretende comprovar a antiguidade da ocupao de uma determinada proprieda-de. considerado grileiro quem se apossa de terras pblicas ou pertencentes a outras pessoas por meio da falsificao de escrituras de propriedade ou mesmo sustentando a sua existncia sem apresent-las. J o posseiro aquele que ocupa um pedao de terra sem ser seu dono ou possuir ttulo legal de propriedade. Nesse caso, a posse da terra pode vir a ser legalmente definida.10

    Inmeras formas de violncia so descritas nesta publicao. H a punio em que o trabalhador mergulhado em um tanque com mel e, amarrado pelo pescoo, conduzido para ser lambido por vacas, ficando com o corpo em carne viva. Outro espancado e trancafiado numa cadeia privada, fechada como caixo de defunto, com apenas um buraco para respirar, apelidada de Benedita. H os que so obri-gados a trabalhar sob a vigilncia de armas, algumas privativas das Foras Armadas como no caso do piv da Chacina de Mari, ocorrida na Paraba. Muitos dos epi-sdios registrados nesta publicao evidenciam que, mesmo quando os trabalhado-res decidem ingressar na Justia para enfrentar o grileiro ou o fazendeiro, na maior parte das vezes, a lentido dos julgamentos e a parcialidade do Poder Judicirio faz em com que no consigam esperar uma soluo: so expulsos antes de suas posses ou so obrigados a lanar mo de formas mais violentas de resistncia. Quando os trabalhadores reagem e uma morte acontece, o julgamento rpido e exemplar. Um exemplo foi a priso, no Par, de 13 posseiros e dos padres Aristides Camio e Fran-cisco Gouriou, acusados do assassinato de um funcionrio do Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat). Em contrapartida, os assassinos dos lderes camponeses Raimundo Ferreira Lima (PA), Wilson Pinheiro (AC), Margarida Alves (PB) e Jos Ccero (AL), entre muitos outros, nunca foram punidos.

    a descRio dos captulos No Captulo 1, Nordeste, uma regio perigosa, vemos que o tal perigo

    de uma revoluo iminente que comearia naquela regio do pas, noticiado pela imprensa nacional e internacional no incio dos anos 1960, serve de pretexto para aes de articulao do golpe militar e para a perseguio dos lderes camponeses,

    9. CNRA, 1985, p.9.

    10. Motta, 2005, p. 238; p. 373-376.

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    justamente no momento em que os trabalhadores obtinham avanos importan-tes em sua organizao. Em boa parte do Nordeste, nessa poca, os camponeses eram obrigados ao pagamento do cambo (dias de trabalho semanal de graa ao engenho ou fazenda, como contrapartida ao direito de morar, de trabalhar ou de plantar) e do foro (renda paga anualmente).11 Os direitos dos trabalhadores eram ignorados ou golpeados pelas violncias de latifundirios e de suas milcias privadas, quase sempre com a conivncia policial. As principais vtimas do golpe militar no estado foram os membros de Ligas Camponesas e de sindicatos rurais e os dirigentes dessas organizaes. A verdade que a represso atingiu amplamen-te as classes assalariadas da regio, no campo e na cidade. Mas o maior peso da represso, direta e brutal, foi descarregado sobre os trabalhadores rurais, afirmou Ianni.12 O que ocorreu ali que, a partir da aliana entre as foras policiais e as oligarquias rurais, a ditadura jogou muito da sua brutalidade sobre as foras demo-crticas daquela regio.

    Um conjunto expressivo de trajetrias, das quais j se veio falando ao longo desta introduo, fornece um panorama das formas de violncia perpetradas contra os trabalhadores na regio, sejam as comandadas diretamente pelo Estado, sejam as acionadas pela mo do latifndio. Um registro feito por Paulo Cavalcanti (1980) fornece-nos a exata medida da violncia e da humilhao a que foram submetidos os camponeses nos dias que se seguiram ao golpe. Em abril, os detidos se amon-toavam na Secretaria de Segurana Pblica de Recife (PE), onde eram redistribu-dos pelos comissariados dos subrbios. Homens, mulheres e crianas eram tocados como animais, aos tropeos, pontaps e empurres. Nesses tristes destinos, Ma-riano, campons do engenho Piaaluu, foi obrigado a desfilar em trajes menores pelas ruas da cidadezinha, puxado por um jipe do Exrcito o mesmo tratamento cruel e ultrajante que foi dispensado ao lder comunista Gregrio Bezerra, no dia 2 de abril de 1964, com o desfile medieval pelas ruas de Recife, depois de ter sido barbaramente torturado. Outro campons mencionado por Cavalcanti, Joo Severi-no, passeou pelo engenho Serra, do latifundirio Alarico Bezerra, amarrado pelos testculos. Outros tantos como Mendes, campons de Paudalho; Sinh Maria, do engenho Tiriri; Raimundinho, do municpio de Abreu e Lima; Biu, de Goiana; Jernimo, da cidade de Amaraji; Severino Biu, da cidade de Gaibu; Pedro Fazendei-ro e Joo Alfredo, de Sap, na Paraba no tiveram direito ao macabro ritual do desfile, pois foram brutalmente assassinados.

    O Captulo 2, O campons forjado nas massas, remete-nos fora de as-sociaes, sindicatos e federaes que foram se formando nos anos anteriores a 1964 em toda a regio Sudeste. Em um dos seminrios do Projeto Memria Camponesa, realizado no Rio de Janeiro, o professor Afrnio Garcia (EHESS) lembrava s lideran-as camponesas presentes que, nas lutas conduzidas pelos trabalhadores rurais antes de 1964, 23 fazendas haviam sido desapropriadas no estado do Rio de Janeiro. J no perodo compreendido entre 1964 e 1980, apenas uma. No mesmo encontro, o ex-lder sindical Eraldo Lrio de Azevedo contava, por sua vez, sobre o susto que teve ao ouvir pelo rdio a deflagrao do golpe militar de 1964. Naquela caminhada, ns j estvamos ali discutindo o salrio mnimo. Era outro modelo que dava para a gente,

    11. Acerca das definies de cambo e de foro neste contexto, ver Julio

    (1962, p. 32; p. 72) e Palmeira (1977, p. 106).

    12. Ver Octvio Ianni e a questo Nordeste, In:

    Bernardes, 2005, p. 40-41.

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    trabalhador rural l no campo. Lderes como Eraldo, Brulio Rodrigues e Manuel Ferreira Lima, que participavam do evento Memria Camponesa, eram os heris, na definio adotada pelo advogado Paulo Amaral, que poca assessorou as organi-zaes camponesas.

    A conscincia de seus direitos, especialmente do direito posse, pontuou o percurso de formao poltica de boa parte dos lavradores desta regio. Entre eles, muitos foram forjados como lideranas nos dispositivos da aliana operrio-camponesa. Jos Pureza, lder sindical da Baixada Fluminense, chamava a aten-o para a valiosa transformao dos trabalhadores rurais em quadros de liderana, conduzindo-nos a ver a amplitude da represso aplicada no perodo militar. Mais do que indivduos isolados, o que se atingia duramente era o movimento campons. Assim, os episdios de priso, tortura e assassinato que se seguiram ao 1 de abril de 1964 chegam a ser, s vezes, deliberadamente silenciados por suas testemunhas. O que se constri , antes, a memria das conquistas interrompidas. Como se, na saudade irrevogvel da esperana vivida nos anos pr-64, se desvelasse a mais brutal das prticas de violncia.

    Se, como sugeria Z Pureza, a massa faz o lder, o caso de Aparecido Galdi-no, que de benzedor se torna lder messinico em Rubinia (SP) recria, nas palavras de Jos de Souza Martins, o percurso biogrfico dos nossos profetas do serto, acrescentando que neste pas de msticos, oprimidos e marginalizados, o profeta sertanejo a voz dos que no tm voz.13 O que causara a fria dos militares contra o profeta foram suas palavras: era preciso salvar o povo, o campons, garantindo-lhe a terra como fonte da vida. A violncia cometida contra os camponeses aps o golpe, fossem eles lideranas polticas ou no, ressalta-se ento como forma de calar as reivindicaes de classe. Com isSo, ganharam fora os que poca se opunham a tais demandas; o Estado endossaria assim a violncia cometida por pessoas que, ligadas grilagem de terras, aproveitaram-se para cometer atrocidades em nome do interesse nacional.

    Por outro lado, a represso nem sempre se faz de atos criminosos; sua fora reside tambm em disputas sutis. EsSe aspecto destacado na trajetria de Jfre Soares, que sofreu um atentado envolto em contradies em Santa F do Sul (SP). Verses foram espalhadas de que o disparo contra o campons havia sido moti-vado por questes de ordem pessoal. Estaria nisSo uma forma de deslegitimar a importncia poltica de tal ato e enfraquecer a liderana de Jfre? Na memria das trajetrias camponesas da regio Sudeste, disputas simblicas como essa constituem um pano de fundo constante, concretizando-se s vezes em formas de hostilidade usadas especificamente contra militantes lavradores. Embora tenha sido enquadra-do, juntamente a seus companheiros, na Lei de Segurana Nacional (LSN), o lder sindical Manuel Ferreira Lima no foi encarcerado como preso poltico: No gozei o privilgio poltico, fui atirado no meio dos marginais.

    Como fica evidenciado no Captulo 3, As terras pioneiras e o sangue das fronteiras, abordando casos das regies Centro-Oeste e Norte, os relatos de humi-lhao parecem crescer medida que nos encaminhamos rumo ao norte do pas. Criadas no rastro dos grandes empreendimentos do capital nas terras sem homens 13. Cf. Martins, 1985.

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    da Amaznia, as trajetrias descritas guardam a memria de extermnios atrozes: retirar a pele do rosto para que o corpo no fosse reconhecido, obrigar a vtima a comer fezes e sapo vivo, montar em suas presas humanas como se fossem cavalos e obrigar os lavradores a ter relaes sexuais entre si so apenas alguns exemplos do que foi realizado por soldados e jagunos. O processo civilizador das terras selva-gens conforme o discurso de campanhas oficiais do governo Mdici devastaria os trabalhadores da terra maneira com que tratores devastavam as matas, engolin-do-as em nome do progresso da Nao. Potencializou-se assim, sobretudo durante os anos 1970 e 1980, uma sequncia repetida de variaes na poltica agrria do Estado: estimular a migrao para, em seguida, temer a ocupao das terras como foco de subverso. A histria comea ainda na Era Vargas, quando a campanha da Marcha para o Oeste atrai ao estado de Gois trabalhadores como Jos Porfrio e seus companheiros de Trombas e Formoso, cuja vitoriosa organizao de resistncia seria dizimada logo aps o golpe militar. O percurso da violncia estende-se no tem-po e no espao, acompanhando os movimentos migratrios rumo ao norte. Assim, se a construo da Transamaznica ativou um processo de colonizao que chegou a promover desapropriaes em favor de posseiros, a chegada de empresrios do sul motivados por subsdios governamentais reverteria tal configurao poltica. Sobretudo a partir de 1973, em meio s operaes militares armadas contra a Guer-rilha do Araguaia, o governo assume a poltica repressiva, em geral alimentada pela paranoia militar em relao a agentes externos, os comunistas, os subversivos (fossem sindicalistas, guerrilheiros, religiosos ou agentes pastorais).

    Ainda no Captulo 3, vemos a expropriao das populaes rurais para implan-tao da grande empresa capitalista se intensificarem com a ajuda de rgos estatais como a Sudam e o Getat, e a opresso patronal contra os lavradores mistura-se represso oficial contra as mobilizaes pelo direito terra. Ligando o norte do Mato Grosso e o sul do Par, abrangendo parte do Maranho, a rea alvo do Getat aparece como uma espcie de sntese. O conjunto de biografias ali descritas no correspon-de s fronteiras regionais da Unio, mas antes, quelas abertas custa de sangue. significativo que tenha ocorrido nesta rea a criao da Comisso Pastoral da Terra (CPT), nascida da regio do Araguaia, nascida do cho, do sangue, da represso, como conta Dom Pedro Casaldliga. Os religiosos tm um papel de peso nessas lu-tas, mas no estiveram sozinhos. Casaldliga destaca, por exemplo, a importncia do Conselho Indigenista Missionrio (Cimi) na formao da CPT. Mas as populaes indgenas, de modo geral, no foram encaradas pelos militares como atores sociais, com peso poltico. Talvez fossem considerados demasiado selvagens, e nessa ideia se pode vislumbrar mais uma forma de violncia. Neste sentido, se a noo de cam-pesinato que surge nos anos 60 e 70 como questo central no debate sobre o desen-volvimento nacional, cabe-nos ressaltar a trajetria de Wilson Pinheiro e a semente poltica plantada por ele em favor dos povos da floresta, expandindo, na luta pelo direito terra, o prprio conceito do que seria o campons em questo.

    No Captulo 4, Revoltas e ocupaes, a ordem desafiada no Sul, evidencia-se que entre os lderes camponeses que se constituram em alvo privilegiado da re-presso militar no Rio Grande do Sul encontram-se os militantes dos Grupos dos

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    Onze e do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), surgido nos anos 1950. Um exemplo o do agricultor Leopoldo Chiapetti, militante do Grupo dos Onze em Mariano Moro (RS), preso em 30 de abril de 1964, quando foi brutalmente torturado, para que entregasse informaes sobre as aes do grupo e as armas. Da mesma forma, um dos lderes do Master, Joo Machado dos Santos, mais conhecido como Joo Sem Terra foi perseguido e encarcerado. Durante uma sesso de tor-turas, Joo chegou a pedir ao agente da represso que o matasse de uma vez, pois havia ultrapassado o limite do suportvel. A histria de Joo nos remete ao drama dos brasileiros que foram exilados em seu prprio pas: sem identidade e sem passa-do. Ele permaneceu 25 anos vivendo de forma clandestina no interior de Gois. O Master, ao qual Joo dedicou boa parte de sua vida, foi uma espcie de precursor do MST. Anos depois, no final da dcada de 1970, a luta pela terra no estado ressurgiria com a ocupao das fazendas Macali e Brilhante, no complexo da Fazenda Sarandi desembocando na criao do MST, em 1984.

    Cenrios de lutas memorveis, travadas por posseiros, o norte e o sudoeste do Paran forneceram experincias de organizao dos trabalhadores rurais que, poste-riormente, fariam germinar as suas sementes. Essas mobilizaes ficaram conhecidas como A Guerrilha de Porecatu, no norte do estado, e a Revolta dos Posseiros, no su-doeste. Ainda que houvesse um esforo das lideranas para romper com o isolamento em cada um desses conflitos, especialmente dos lderes do PCB, a deflagrao do golpe de 1964 acabou de lanar por terra essa possibilidade. Um dos personagens referidos neste captulo, Manoel Jacinto Correia, militante do PCB e, depois, do PCBR, foi um dos lderes na Guerrilha de Porecatu. Em funo de suas atividades polticas, ele enfrentou 17 prises e cinco processos, tendo vivido dez anos na clandestinidade. A Guerrilha de Porecatu, especialmente, aportaria um aprendizado significativo orga-nizao dos trabalhadores rurais nas geraes seguintes. Nos anos 1980, outras formas de organizao surgiriam, por intermdio do MST e do Movimento dos Atingidos por Barragens inspiradas nas velhas e valentes lutas de posseiros.

    Cabe dizer, por fim, que nosso intuito que esta publicao, ao romper com o silncio e jogar luzes sobre a represso poltica no campo entre 1962 e 1985, con-tribua para uma melhor compreenso sobre a importncia da democratizao no meio rural como sendo um imperativo para a democracia e o desenvolvimento do pas como um todo. Desejamos que este livro possa estimular novas investigaes e estudos acerca do tema, assim como a publicao e a ampla divulgao de pesquisas j concludas ou em andamento.

    Ana Carneiro e Marta Cioccari1

    1. Jornalistas e antroplogas, pesquisadoras do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.

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    Foices ao alto: manifestao das Ligas

    Camponesas na Paraba, incio dos anos 1960.

    (Acervo Iconographia)

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    peRnamBucopaRaBaceaRmaRanhoBahiaRio gRande do noRte

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    A ditadura instalada no Pas elegeu o nordeste como uma regio particularmente importante, perigosa, na qual desencadeou uma represso poltica selvagem.1 A afirmao do socilogo Octvio Ianni descreve com not-vel agudeza a perseguio desencadeada s lideranas cam-ponesas da regio, aps o golpe militar de 1964. Tal pe-rigo se desenharia no momento em que os trabalhadores obtinham avanos importantes em seus direitos e em sua organizao. At ento, os direitos de homens e mulhe-res do campo ou inexistiam ou eram vilipendiados pelas violncias de latifundirios e de milcias privadas, quase sempre com a conivncia policial. Aps o golpe, a prpria defesa dos direitos dos camponeses passou a figurar como subverso e a represso mais direta e brutal encampada simultaneamente pelas foras de represso do Estado e pe-las oligarquias rurais foi desfechada justamente sobre os trabalhadores do campo e seus lderes. Um dos efeitos des-sa ruptura que o Nordeste, embora no tivesse gestado diretamente o golpe, foi a regio mais prejudicada, a que verdadeiramente pagou o pato, pois toda a poltica de mudana social foi destruda, como j observaram o economista Celso Furtado e o socilogo Francisco de Oliveira.2

    A eleio do governador Miguel Arraes, em Pernambuco, em 1962, tinha sido emblemtica: pela primeira vez a Polcia Militar pernambucana comparecia aos centros de conflitos de terra sem espancar ou prender trabalhadores. Isso era suficiente para que as oligarquias rurais considerassem tratar-se de um governo comunizante.3 J em 1958, durante as eleies estaduais em Pernambuco, havia se formado a Frente de Recife, reunindo as oposies. Desde a posse do novo gover-nador, as Ligas Camponesas ampliaram a sua mobilizao. Em trs meses realizaram 80 atos pblicos.

    1. Ver Octvio Ianni e a questo Nordeste, In: Bernardes, 2005, p. 40-41.

    2. Entrevista de Celso Furtado ao Estado de S. Paulo, 4 mar. 2004; entrevista de Francisco de Oliveira ao Dirio de Pernambuco, publicada em 17 jul. 2009.

    3. Bezerra, 1979, Segunda parte, p. 175

    A ferro e fogo: Gregrio Bezerra foi torturado em praa pblica, em abril de 1964.(Acervo Iconographia)

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    Folha do Povo denuncia a farsa da polcia.

    (Folha do Povo, Acervo DOPS, Arquivo Pblico Recife/PE)

    Tiroteio na criao de Liga em Massaranduba (PB) deixou um morto e seis feridos. (Dirio de Pernambuco, Acervo DOPS, Arquivo Pblico Recife/PE)

    Manchetes alertam para perigo vermelho na regio.

    (Dirio de Pernambuco, Acervo DOPS, Arquivo Pblico Recife/PE)

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    noRdeste, uma Regio peRigosa

    Nas dcadas de 1950 e 1960, as principais foras que atuavam na organizao dos trabalhadores rurais na regio eram as Ligas Camponesas, o PCB e a Igreja Catlica. As Ligas eram associaes de trabalhadores rurais surgidas nas dcadas de 50 e 60, que se seguiram a uma experincia em-brionria conduzida pelo Partido Comunista nos anos 40. Inspirado como um poeta, orador inflamado nos campos e nas tribunas, o advogado Francisco Julio, deputado do Par-tido Socialista, tornou-se o principal lder das Ligas. Desde criana, Julio, filho e neto de senhores de engenho, crescido no engenho Boa Esperana, em Bom Jardim (PE), conheceu de perto os dramas vividos pelos camponeses. Costumava dizer que seu aprendizado com o povo havia se iniciado na experincia de ter sido nutrido por uma ama de leite. Ao se engajar nas lutas dos trabalhadores, foi preso e amargou as agruras do exlio. Antes mesmo do golpe militar de 1964, porm, o assassinato de Joo Pedro Teixeira, da Liga de Sap (PB), fornecia a tnica do dio que as Ligas despertavam entre grandes proprietrios de terra.

    A organizao dos camponeses pelo PCB foi, em boa parte, fruto do trabalho de Gregrio Bezerra, ex-sargento do Exrcito e deputado federal em 1946. Ele mesmo um campons nascido no Agreste pernambucano rfo de pai e de me aos 7 anos, alfabetizado j adulto que viveu na pele tanto a misria dos lavradores quanto as vio-lncias dos latifundirios. A mesma coragem e disciplina de que lanou mo para orga-nizar trabalhadores rurais em Pernambuco, Gois, So Paulo e no Paran parecem ter sustentado sua dignidade inquebrantvel diante das torturas em 23 anos de crcere. No dia 2 de abril de 1964, uma cena para o pas no esquecer: Gregrio, aos 64 anos, foi obrigado a desfilar pelas ruas de Recife com trs cordas amarradas no pescoo, puxado por um jipe, enquanto era espancado por militares, sob o comando do coronel Darci Villocq. Diante do povo estarrecido, ele foi conduzido como um moderno condena-do medieval, como escreveu o jornalista Flvio Tavares, um de seus companheiros de desterro.4 Essas cenas ainda assombram a memria do filho, Jurandir Bezerra, de 83 anos, que concedeu entrevista a este projeto em setembro de 2010. Ele contou que, na poca, sua me ficou em estado de choque ao ver as cenas de Gregrio sendo ul-trajado e golpeado com um cano de ferro, depois que j carregava no corpo as marcas de brbaras torturas. Parte dessas memrias est para ser resgatada com a produo do filme Histria de um valente, de Cludio Barroso, em referncia ao poema que Ferreira Gullar dedicou ao lder comunista em 1964, em uma campanha por sua libertao. Certos versos bem serviriam saga de muitos lderes camponeses da regio.

    Mas existe nesta terra muito homem de valor/ que bravo sem matar gente mas no teme matador,/ que gosta de sua gente e que luta a seu favor /como Gregrio Bezerra, feito de ferro e de flor.

    Alm das Ligas e do PCB, a Igreja Catlica tambm buscava ampliar sua influ-ncia no campo. Em 1961, surgiu o Servio de Orientao Rural de Pernambuco (Sor-

    4. Eles integravam o grupo de presos polticos exilados em 1969, em troca da libertao do embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado por organizaes de esquerda. Ver Tavares, 1999, p. 125-126. E, ainda, Bezerra, 1979, Segunda Parte.

    Em Havana: Francisco Julio e sua mulher, Alexina Crespo, aplaudem exibio do Circo de Moscou, ao lado de Fidel Castro, em 1961.(lbum da famlia Julio, reproduzido em Santiago, 2001)

  • RetRato da RepResso poltica no campo BRasil 1962-1985

    camponeses toRtuRados, moRtos e desapaRecidos

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    pe), criado pelo padre Crespo, nomeado vigrio do Cabo por Dom Helder Cmara. O Sorpe organizou seus prprios sindicatos rurais. No Rio Grande do Norte, desde 1949 funcionava o Servio de Assistncia Rural (SAR). Tambm no Cear e no Maranho, as lideranas religiosas tiveram um papel fundamental na organizao dos camponeses. Nomes como Dom Antnio Fragoso, Dom Helder Cmara e dos padres Paulo Crespo e Servat so referidos constantemente nos relatos dos trabalhadores.

    Depois de 1964, a aliana entre foras policiais e oligarquias rurais se acentuou. Com a garantia da impunidade, proprietrios de terras e grileiros puseram fim s suas contendas, animados com as violncias praticadas pelos militares. Nesse contexto foi assassinado Manoel Tenrio da Silva, delegado sindical do engenho Belmonte (PE) que reclamava direitos trabalhistas. As Ligas foram tambm um alvo privilegiado. Em 21 de abril de 1964, a imprensa noticiava a morte do presidente da Liga de Vitria de Santo Anto, Albertino Jos da Silva, ao que tudo indica morto por milcias privadas. Em entrevista ao Pasquim, em 1979, Julio salientava que as Ligas foram a primeira organizao posta na ilegalidade. Na sequncia, comearam a perseguir e prender camponeses e assassinaram vrios, enforcaram, queimaram....5 O Exrcito ocupou e interveio na maioria dos sindicatos rurais do Nordeste. Em Pernambuco, dos 40 sindi-catos existentes na zona canavieira, 38 sofreram interveno. Entre 1964 e 1970, 40% dos mortos em conflitos de terra no pas eram da zona da mata nordestina.6

    As atrocidades cometidas contra os trabalhadores rurais e seus lderes no Nor-deste aparecem de forma pungente nos relatos de Marcos Martins da Silva e Luiz Inocncio Barreto, de Pernambuco; Manoel da Conceio, do Maranho; Vicente Pompeu da Silva, do Cear; Jos Rodrigues Sobrinho, do Rio Grande do Norte, entre os que resistiram com vida, apesar de tudo.

    Pernambuco nem se parece com Cuba nem com a URSS. Por outro lado, j no parece muito com o resto do Brasil. Assim o jornalista Antnio Callado descrevia as mudanas que vinham ocorrendo no Nordeste no perodo pr-64, em matrias publicadas entre 10 e 23 de setembro de 1959, no Correio da Manh, do Rio de Janeiro. Ele notava que a pobreza da regio continuava enorme, mas que sua atividade revolucionria em busca de solues imprimia-lhe vitalidade. Nesse perodo, Callado fez uma srie de reportagens sobre as condies de vida e lutas dos camponeses em meio seca e explorao dos latifundirios.7 Essas reportagens faziam parte de um plano do governo Ku-bitschek para mobilizar a opinio pblica para a aprovao no Congresso do projeto Operao Nordeste, implementado por Celso Furtado, e que resultaria na criao da Sudene.8 Em viagem por Cear, Paraba e Pernambuco, Callado descreveu a mobilizao dos trabalhadores do Engenho Galilia e a criao da primeira Liga Camponesa. Em julho de 1964, no prefcio obra Tempo de Ar-raes: a revoluo sem violncia, que reuniu parte desses textos, ele enunciava:

    Uma revoluo brasileira comearia em

    Pernambuco

    5. Entrevista de Julio ao jornal Pasquim, em 1979, citada por Koury, 2010, p.

    206.

    6. Dados da revista da Fetape, 40 anos, 2006.

    7. As reportagens resultaram nas obras: Os Galileus de

    Pernambuco e os industriais da seca (1960), e Tempo

    de Arraes: a revoluo sem violncia (1980).

    8. Montenegro, 2004, p. 6.

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    noRdeste, uma Regio peRigosa

    A revoluo de Pernambuco era piloto, no sentido de que provavelmente inspiraria a revoluo maior, brasileira, e ambas tinham um jeito de triunfar brasileira, com bons modos e pouc