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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA CARACTERÍSTICAS ACÚSTICAS E ARTICULATÓRIAS DAS VOGAIS POSTÔNICAS NA VARIEDADE DO PORTUGUÊS BRASILIENSE RENATA OLIVEIRA SILVA Brasília 2012

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  • UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

    INSTITUTO DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

    CARACTERÍSTICAS ACÚSTICAS E ARTICULATÓRIAS DAS VOGAIS

    POSTÔNICAS NA VARIEDADE DO PORTUGUÊS BRASILIENSE

    RENATA OLIVEIRA SILVA

    Brasília

    2012

  • RENATA OLIVEIRA SILVA

    CARACTERÍSTICAS ACÚSTICAS E ARTICULATÓRIAS DAS VOGAIS

    POSTÔNICAS NA VARIEDADE DO PORTUGUÊS BRASILIENSE

    Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Linguística do Departamento de Linguística, Línguas Clássicas e Português da Universidade de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Linguística.

    Orientadora: Daniele Marcelle Grannier

    Co-orientadora: Aveliny Mantovan Lima-Gregio

    Brasília

    2012

  • RENATA OLIVEIRA SILVA

    CARACTERÍSTICAS ACÚSTICAS E ARTICULATÓRIAS DAS VOGAIS

    POSTÔNICAS NA VARIEDADE DO PORTUGUÊS BRASILIENSE

    Comissão examinadora constituída por:

    ____________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Daniele Marcelle Grannier

    Universidade de Brasília – UnB

    Orientadora e Presidente da banca

    ____________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Virgínia Andrea Garrido Meirelles

    Universidade Católica de Brasília – UCB

    Membro titular da banca/ Examinadora externa

    ____________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Helena Guerra Vicente

    Universidade de Brasília – UnB (LIP)

    Membro titular da banca/ Examinadora interna

    ____________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Poliana Maria Alves

    Universidade de Brasília – UnB

    Membro suplente da banca

  • DEDICATÓRIA

    Aos meus pais, José Renato e Maria do Socorro, pelo amor, carinho,

    incentivo e, principalmente, pelas lições de vida. Obrigada por,

    desde o princípio, acreditarem e investirem em mim. Esta vitória, eu

    dedico a vocês.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pela vida e seus ensinamentos, pelas oportunidades e pela proteção

    nessa etapa desafiante e instigante.

    À professora Daniele, minha orientadora, por ter me acolhido e acreditado em

    mim, pelas horas dedicadas, pelos ensinamentos, pela paciência e pelas

    oportunidades oferecidas. Pesquisa não se faz sozinho, agradeço

    imensamente pela oportunidade.

    À minha co-orientadora, Aveliny, um anjo que apareceu em meu caminho.

    Agradeço, com todo o meu coração, por ter me ajudado a enfrentar meu maior

    desafio. Só com muita boa-vontade, paciência e disposição de sua parte é que

    foi possível chegar aqui, muito obrigada.

    Aos meus professores da graduação em PBSL e do mestrado, pelas lições de

    Linguística e de vida. Em especial, à professora Janaína de Aquino Ferraz e

    Orlene Lúcia de Sabóia Carvalho e aos professores Hildo Honório do Couto e

    Dioney Moreira Gomes, por me iniciarem nos caminhos da pesquisa científica e

    por sempre terem me inspirado como grandes linguistas e mestres que são.

    Ao professor Pablo Arantes, da UFMG, pela colaboração nesta pesquisa, pela

    elaboração e concessão dos scripts e pelo auxílio na aplicação das técnicas de

    análise das vogais.

    À minha família, pelo apoio, carinho e incentivo. Aos meus pais, à minha avó e

    à minha tia-avó, por todo o cuidado, amor e lições de luta e vitória. À minha

    irmãzinha, Bruna, que mesmo sem saber, é a luz que ilumina minha vida e

    minha fonte inesgotável de doçura e pureza. À minha prima Oliziany, nossas

    discussões sempre me proporcionaram um grande crescimento intelectual. Sua

    ânsia por leitura e aprendizado e sua ajuda e apoio nos primeiros anos de

    graduação foram essenciais para que eu conseguisse trilhar esse caminho.

    Invista nisso, tenho certeza de que seu futuro acadêmico será brilhante.

  • Aos meus amigos, a família que escolhi aos quais me uni por laços de amor.

    Aos que trago desde a escola e pretendo levar por toda a vida, Karla, Imara,

    Gilberto e Breno, agradeço pelos momentos de descontração, pela

    preocupação e pelo apoio, que foram imprescindíveis para a conclusão dessa

    etapa. À minha amiga de graduação, Kelly, um dos belos encontros que a

    universidade me proporcionou, com quem dividi momentos especiais da vida

    acadêmica e pessoal, agradeço por todo o incentivo e por sempre acreditar. Às

    minhas amigas, companheiras de mestrado e grandes linguistas, Joice, Cléo,

    Thalita, Priscilla, Tânia e Suseile, com as quais tive o prazer de compartilhar

    dificuldades, felicidades, frustrações e vitórias.

    Um destaque especial, à minha amiga e irmã, Lia, por ter me apoiado nos

    momentos mais difíceis, sempre me mostrando uma janela, quando não

    encontrava nenhuma saída. Pelos risos, pela força, pela inspiração, pelas

    lágrimas divididas e também por enxugá-las. Amigos, como você, são anjos da

    guarda, por isso, só posso agradecer à vida e a Deus pelo nosso encontro.

    Ao Programa de Ensino e Pesquisa em Português para Falantes de Outras

    Línguas (PEPPFOL), à professora Christiane Moisés e à professora Percília

    Santos, por terem me recebido e me dado a oportunidade de exercer a

    profissão que tanto amo. E, às companheiras de trabalho, em especial, Camila

    e Fernanda, pela ajuda, cumplicidade e companheirismo.

    À Aliança Francesa de Brasília, pela bolsa concedida e oportunidade de

    aprender a língua francesa tão importante nos estudos linguísticos.

    Aos funcionários do PPGL, em especial à Renata e à Ângela, por todo o apoio

    nesses anos de mestrado.

    Aos colaboradores desta pesquisa, pelo interesse em participar e pelo tempo

    disponibilizado. Em especial à Jane, por todo o esforço em ajudar, sem o qual

    seria muito mais difícil reunir o perfil de colaboradores da pesquisa.

    Ao CNPq, pelo apoio financeiro concedido, que possibilitou a dedicação aos

    estudos.

  • Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é

    só a fazer outras maiores perguntas.

    Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)

  • RESUMO

    Esta dissertação tem como objetivo central descrever, acústica e

    articulatoriamente, o sistema vocálico postônico da variedade do português

    falado em Brasília. Pretende-se, portanto, contribuir, também, para a

    caracterização do sistema átono do português brasileiro, pois, há poucos

    estudos que o descrevem, bem como há discordâncias e dúvidas a respeito da

    constituição desse sistema. A presente pesquisa foi realizada em duas etapas,

    a primeira teve como objetivo identificar as vogais postônicas não finais da

    variedade em estudo. Para esse fim, juízes qualificados (mestrandos e

    doutorandos) na área da Fonética fizeram uma análise perceptiva dessas

    vogais e assim foi possível chegar a uma constituição preliminar do quadro

    postônico não final, composto por cinco vogais, [a, e, i, o, u], havendo variação

    com o quadro composto por três vogais [a, i, u], devido ao processo de

    alteamento das vogais médias. Na segunda etapa, foi feita a análise acústica

    das vogais postônicas não finais e finais. Os dados foram coletados utilizando-

    se não palavras em frases-veículo. Consideraram-se como parâmetros de

    análise acústica os valores de F0, F1, F2 (em Hertz) e a duração (em

    milissegundos). Os resultados mostraram que as átonas não finais são mais

    centralizadas e mais breves do que as finais e, por isso, são mais suscetíveis

    ao apagamento.

    Palavras-chave: vogais postônicas não finais e finais; português de Brasília;

    fonética acústica e articulatória.

  • ABSTRACT

    This dissertation aims to describe, acoustically and articulatorily, the

    post-stressed vocalic system of the variety of Portuguese spoken in Brasilia. It

    is intended, therefore, to contribute also to the characterization of the

    unstressed system of Brazilian Portuguese, because there are few studies that

    describe it, and also there are disagreements and doubts about the constitution

    of this system. This research was conducted in two stages, the first aimed to

    identify non-final post-stressed vowels of the variety under study. For this

    purpose, qualified judges (master and doctoral students) in the phonetics area

    made a perceptive analysis of these vowels and so it was possible to reach a

    preliminary non-final post-stressed framework constitution, a five-vowel system,

    [a, e, i, o, u], varying with a three-vowel system [a, i, u], due to the process of

    raising the middle vowels. In the second step, an acoustic analysis of non-final

    and final post-stressed vowels was made. Data were collected using nonce

    words in carrier sentences. They were considered as parameters of the

    acoustic analysis values of F0, F1, F2 (in Hertz) and the duration (in

    milliseconds). The results showed that the non-final unstressed vowels are

    more centralized and briefer than the final, and so are more susceptible to

    deletion.

    Keywords: non final and final post-stressed vowels; Portuguese spoken in

    Brasilia; articulatory and acoustic phonetics.

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1: Mapa com as Regiões Administrativas do Distrito Federal (Fonte:

    CODEPLAN). 3

    Figura 2: Discurso do presidente Juscelino Kubitscheck na inauguração de

    Brasília, em 21 de Abril de 1960. 9

    Figura 3: Quadro vocálico do IPA (CRISTÓFARO SILVA, 2005, p.41). 26

    Figura 4: Vogais cardeais primárias (CRISTÓFARO SILVA, 1999, p.135). 30

    Figura 5: Vogais cardeais primárias e secundárias. 31

    Figura 6: Momentos de condensação e rarefação das partículas do ar 35

    Figura 7: Elementos da onda sonora 35

    Figura 8: Soma algébrica de três ondas simples (100cps, 200cps, 300cps),

    resultando em uma onda complexa na parte inferior da figura (QUILIS, 1988, p.

    48). 38

    Figura 9: Espectro da onda complexa da figura anterior (QUILIS, 1988, p. 49).

    38

    Figura 10: Formas do trato vocal para as vogais do inglês /i/, como em ‘he’, /u/

    como em ‘who’, /ɑ/ como em pa e /æ/ como em ‘map’. A letra G representa a

    glote (laringe) e a letra L representa os lábios (KENT; READ, 1992, p. 23). 40

    Figura 11: Espectrograma das vogais do inglês britânico 41

    Figura 12: Imagem utilizada na coleta de dados para eliciar a palavra ‘grávida’.

    69

    Figura 13: Página inicial do teste online com as instruções para a resolução do

    teste. 71

    Figura 14: Janela do questionário online com o link para ouvir as palavras

    cérebro e lâmpada. Há as opções para assinalar a realidade fonética da

    posição átona não final em cada palavra: [a], [e], [i], [o], [u], [ɛ], [ɔ], ou vogal

    ausente. 71

    Figura 15: Janela do programa PRAAT, selecionada a frase: “Digo pêkata

    baixinho”, onde se pode visualizar a forma de onda (A), o espectrograma de

    banda larga (B), em seguida as linhas de análise: palavra (C), vogal (D) e

    formante (E). 74

  • Figura 16: Apagamento da vogal não final [u] no trecho ‘um óculos’. 82

    Figura 17: Espaço vocálico das vogais átonas não finais e finais de Brasília. 84

    Figura 18: Gráfico de dispersão das vogais átonas finais das mulheres. 86

    Figura 19: Gráfico de dispersão das vogais átonas finais dos homens. 86

    Figura 20: Gráfico de dispersão das vogais átonas não finais das mulheres. 87

    Figura 21: Gráfico de dispersão das vogais átonas não finais dos homens. 87

    Figura 22: Janela do programa PRAAT ilustrando o ruído da consoante, sem

    marca da vogal não final [i]. 88

    Figura 23: Espaço vocálico das vogais postônicas femininas. 90

    Figura 24: Espaço vocálico das vogais postônicas masculinas. 90

    Figura 25: Gráfico de comparação das médias apresentadas no quadro das

    seis capitais brasileiras. 93

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: População de algumas RAs do DF. 4

    Quadro 2: Origem da população do DF. 6

    Quadro 3: Vogais orais tônicas do PB. 26

    Quadro 4: Vogais orais tônicas do PB (CAMARA JR., 2007, p. 41) 48

    Quadro 5: Vogais orais pretônicas do PB (CAMARA JR., 2007, p. 44) 49

    Quadro 6: Vogais orais postônicas não finais do PB (CAMARA JR., 2007, p. 44)

    49

    Quadro 7: Vogais orais átonas finais do PB (CAMARA JR., 2007, p. 44). 50

    Quadro 8: Graus de abertura das vogais do PB (WETZELS, 1992). 51

    Quadro 9: Neutralização da pretônica (WETZELS, 1992, p. 24). 51

    Quadro 10: Neutralização da postônica não final (WETZELS, 1992, p. 27). 52

    Quadro 11: Neutralização da postônica final (WETZELS, 1992, p. 27). 52

    Quadro 12: Vogais orais tônicas do PB (CRISTÓFARO SILVA, 2005, p. 79). 53

    Quadro 13: Vogais orais pretônicas do PB (CRISTÓFARO SILVA, 2005, p. 81).

    54

    Quadro 14: Vogais postônicas finais do PB (CRISTÓFARO SILVA, 2005, p.

    86). 54

    Quadro 15: Vogais postônicas não finais. 55

    Quadro 16: Registro de altura vocálica para as línguas românicas (CLEMENTS,

    1991, apud BISOL, 2003, p. 3). 60

    Quadro 17: Perfil dos colaboradores da pesquisa. 66

    Quadro 18: Vogais (ou ausência) mais escolhidas pelos juízes em cada palavra

    do estudo. 78

    Quadro 19: Proposta de Camara Jr. para o quadro átono não final do PB. 78

    Quadro 20: Vogais átonas não finais do português de Brasília. 79

    Quadro 21: Resultado do teste perceptivo para as vogais médias com as

    porcentagens das respostas dos juízes para cada opção. Aparecem apenas as

    opções que tiveram alguma seleção pelos juízes. 79

  • Quadro 22: Percentual da percepção de apagamento nas palavras utilizadas no

    estudo. 80

    Quadro 23: Médias dos formantes (F1 e F2) das vogais átonas não finais e

    finais. 83

    Quadro 24: Resumo das características das vogais [a], [i] e [u] em posição

    átona não final e final. 85

    Quadro 25: Distância média, em Hertz, entre as vogais finais e o centroide. 88

    Quadro 26: Distância média, em Hertz, entre as vogais não finais e o centroide.

    89

    Quadro 27: Valores reportados pelo teste t para a diferença entre não finais e

    finais. 89

    Quadro 28: Comparação dos valores de F1 e F2 para as vogais átonas finais,

    obtidos por Moraes, Callou e Leite (2002, p. 42) com os valores obtidos para as

    vogais de Brasília. 92

    Quadro 29: Valores médios de F0 das vogais átonas não finais. 94

    Quadro 30: Valores médios de F0 das vogais átonas finais. 94

    Quadro 31: Valores médios e desvio padrão (DP) da duração (ms) das vogais

    átonas não finais e finais do PBsb. 95

  • LISTA DE SÍMBOLOS E SIGLAS

    [i] vogal alta anterior não arredondada

    [ɛ] vogal média-baixa anterior não arredondada

    [e] vogal média-alta anterior não arredondada

    [a] vogal baixa central não arredondada

    [ɔ] vogal média-baixa posterior arredondada

    [u] vogal alta posterior arredondada

    [ɨ] vogal alta central não arredondada

    [y] vogal alta anterior arredondada

    [ø] vogal média-alta anterior arredondada

    [ɯ] vogal alta posterior não arredondada

    [ ] vogal baixa central não arredondada desvozeada

    [iˤ] vogal alta anterior não arredondada faringalizada

    [e:] vogal média-alta anterior não arredondada alongada

    [ɪ] vogal alta anterior não arredondada frouxa

    [ə] vogal média-baixa central não arredondada

    [ʊ] vogal alta posterior arredondada frouxa

    [t] consoante oclusiva alveolar surda

    [d] consoante oclusiva alveolar sonora

    [s] consoante fricativa alveolar surda

    [ʃ] consoante fricativa alveopalatal surda

    [z] consoante fricativa alveolar sonora

    [ʒ] consoante fricativa alveopalatal sonora

    RA: Região Administrativa

    PB: Português Brasileiro

    PBsb: Português de Brasília

  • ATR: Advanced Tongue Root (raiz da lingual avançada)

    VC: Vogal Cardeal

    IPA: International Phonetic Alphabet (Alfabeto Fonético Internacional)

  • SUMÁRIO

    Introdução ......................................................................................................... 1

    1.1. Brasília: dados gerais ............................................................................... 2

    1.2. Breve resumo da história da capital ......................................................... 6

    1.3. Estudos sobre o português de Brasília .................................................. 10

    1.4. Objetivos do trabalho ............................................................................. 12

    1.4.1. Geral ................................................................................................ 12

    1.4.2. Específicos ..................................................................................... 12

    1.5. Justificativa............................................................................................. 13

    1.6. Organização da dissertação .................................................................. 14

    Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral ................................................. 16

    1.0. Introdução .............................................................................................. 16

    1.1. Conceitos de vogal ................................................................................. 16

    1.1.1. Pike (1943) ...................................................................................... 17

    1.1.2. Camara Júnior (1953) ...................................................................... 19

    1.1.3. Ladefoged e Maddieson (1996) ....................................................... 20

    1.1.4. Callou e Leite (2005) ........................................................................ 21

    1.1.5. Fechamento da seção ..................................................................... 22

    1.2. Métodos de descrição de vogais ............................................................ 22

    1.2.1. Descrição articulatória ..................................................................... 23

    1.2.1.1. Posição da língua e arredondamento dos lábios ...................... 24

    1.2.1.2. Articulações secundárias .......................................................... 27

    1.2.1.3. As vogais cardeais .................................................................... 28

    1.2.2. Análise acústica de vogais ............................................................... 31

    1.2.2.1. A teoria e a análise acústica ..................................................... 33

    1.2.2.2. A teoria fonte-filtro para a análise de vogais ............................. 39

    1.2.3. Fechamento da seção ..................................................................... 42

    1.3. Considerações finais .............................................................................. 43

    Capítulo 2 - O sistema vocálico do português do brasil ............................. 45

    2.0. Introdução .............................................................................................. 45

    2.1. O quadro vocálico do português do Brasil ............................................. 45

    2.1.1. A proposta de Camara Jr. (1953,1970) ............................................ 47

  • 2.1.1.1. Reinterpretação pelas teorias fonológicas não lineares ............ 50

    2.1.2. A proposta de Cristófaro Silva (2005) .............................................. 53

    2.2. As vogais postônicas do PB ................................................................... 55

    2.2.1. Vogais postônicas finais .................................................................. 57

    2.2.2. Vogais postônicas não finais ........................................................... 58

    2.3. Estudos sobre as vogais do português de Brasília ................................ 62

    2.4. Considerações finais .............................................................................. 63

    Capítulo 3 - Metodologia ................................................................................ 65

    3.0. Introdução .............................................................................................. 65

    3.1. Os colaboradores ................................................................................... 65

    3.2. Os procedimentos de coleta .................................................................. 67

    3.3. Experimento I: identificação e análise das vogais postônicas não finais 68

    3.3.1. Coleta de dados ............................................................................... 68

    3.3.2. Análise dos dados............................................................................ 70

    3.4. Experimento II: análise acústica das vogais postônicas não finais e finais

    ...................................................................................................................... 72

    3.4.1. Coleta de dados ............................................................................... 72

    3.4.2. Análise dos dados............................................................................ 73

    Capítulo 4 - Análise e discussão dos dados ................................................ 77

    4.0. Introdução .............................................................................................. 77

    4.1. Experimento I: Identificação e análise das vogais postônicas não finais 77

    4.2. Experimento II: análise acústica das vogais postônicas finais e não finais

    ...................................................................................................................... 82

    4.2.1. Formantes ........................................................................................ 83

    4.2.1.1 Comparação com os trabalhos de Moraes, Callou e Leite (1996,

    2002).......................................................................................................... 90

    4.2.2. Frequência Fundamental (F0) ......................................................... 94

    4.2.3. Duração ........................................................................................... 94

    Conclusão ....................................................................................................... 96

    Referências ..................................................................................................... 99

    Anexo A ......................................................................................................... 104

    Anexo B ......................................................................................................... 105

    Anexo C ......................................................................................................... 106

    Anexo D ......................................................................................................... 113

  • INTRODUÇÃO

    É comum que os brasilienses ou mesmo os brasileiros em geral, se

    questionem se a capital do país já tem ou não marcas dialetais, características

    próprias, ou simplesmente, “Qual é o sotaque dos brasilienses?”. As crenças

    populares variam desde que “Brasília não tem sotaque”, “Brasília quase não

    tem sotaque”, e até mesmo que “Em Brasília estão reunidos todos os sotaques

    brasileiros”.

    Brasília é uma cidade muito nova, tendo completado 52 anos neste

    ano, o que contribui para o campo de incertezas a respeito do falar brasiliense.

    Além disso, há poucas pesquisas que relatam a realidade linguística da cidade,

    ao comparar-se à grande variedade de estudos que retratam a realidade

    linguística de outras cidades do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto

    Alegre, etc. Outro fator que contribui para o desconhecimento dessa variedade

    de português é que não há um banco de dados que armazene amostras de fala

    da cidade, como o projeto NURC e VARSUL, dentre outros. Recentemente, no

    ano de 2010, foi lançado o livro “O Falar Candango”, organizado por Stella

    Maris Bortoni-Ricardo, Ana Maria de Moraes Sarmento Vellasco e Vera

    Aparecida de Lucas Freitas. Esse livro reúne uma coletânea de artigos que

    retratam as características da fala brasiliense, além de pesquisas educacionais

    realizadas na cidade. Os artigos do livro mostram que a capital já tem uma

    identidade linguística, pois já há uma geração nascida aqui e até mesmo uma

    segunda geração, filhos de pessoas nascidas na cidade. Os estudos também

    constatam que grande parte dessas novas gerações não herdou a variedade

    linguística de seus pais, o que demonstra que já há um falar próprio brasiliense.

    Alguns trabalhos mais antigos já identificavam características próprias dessa

    variedade como os trabalhos de Hanna e Côrrea (1986, 1988, apud Andrade,

    2010), que em seus estudos sociolinguísticos sobre a fala de Brasília,

    concluíram que a cidade estava numa fase de focalização dialetal, isto é,

    quando há uma supressão dos traços dialetais das regiões originárias em

    direção a um dialeto suprarregional. Desde então, outros estudos

  • Introdução 2

    sociolinguísticos têm discutido características dessa variedade, como: Bortoni-

    Ricardo et al. (1992), Andrade (2010), Bortoni-Ricardo et al. (2010), dentre

    outros. Entretanto, ainda há, de fato, muito trabalho a ser feito nesse campo,

    muitas descrições são necessárias para se poder falar com mais propriedade

    sobre a variedade do português de Brasília (doravante, PBsb).

    Tendo por base esse campo de estudos ainda em aberto, a presente

    pesquisa tem por objetivo contribuir com a caracterização do português de

    Brasília, por meio de uma descrição fonética – acústica e articulatória - das

    vogais postônicas não finais e finais dessa variedade do português. O presente

    estudo está inserido em um projeto maior intitulado Fonologia do Português do

    Brasil, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Línguística da

    Universidade de Brasília e coordenado pela Profª Drª Daniele Marcelle

    Grannier. O projeto tem como objetivo fazer descrições verticais do português

    brasileiro, por meio de variedades representativas de várias regiões do Brasil.

    As pesquisas dentro desse projeto buscam contribuir com o conhecimento das

    características gerais da língua e também fornecer subsídios para estudos

    comparativos, e assim consequentemente contribuir para o desenvolvimento da

    teoria fonológica e enriquecimento das descrições do português brasileiro.

    Nesta introdução, primeiramente, apresentamos os objetivos da

    pesquisa, assim como sua justificativa. Em seguida, sintetizamos a história de

    Brasília e os dados gerais de sua formação populacional. Finalmente,

    apresentamos um levantamento dos estudos feitos sobre o PBsb, a fim de

    situar o leitor no tema.

    1.1. Brasília: dados gerais

  • Introdução 3

    Segundo o censo de 2010 do IBGE1, o Distrito Federal tem uma

    população de 2.570.160 habitantes distribuídos em uma área de 5.789,16Km²

    (CODEPLAN, 2011)2. O Distrito Federal é composto por Regiões

    Administrativas. Segundo o site do Governo do DF3, são 31 Regiões

    Administrativas (doravante, RAs), a última tendo sido reconhecida em abril

    deste ano. Brasília é a Região Administrativa I e a capital do Distrito Federal.

    Segundo o Anuário Estatístico do DF de 20114, Brasília tem 209.855

    habitantes. O mapa abaixo (figura 1) apresenta uma ideia geral da organização

    do Distrito Federal, com a RA I (Brasília) destacada. Entretanto, como o mapa

    é de 2007, apresenta apenas 30 RAs.

    Figura 1: Mapa com as Regiões Administrativas do Distrito Federal (Fonte: CODEPLAN).

    Ainda no Anuário Estatístico do DF de 2011, dispomos de dados sobre

    a população de algumas das RAs do DF:

    1 Disponível em < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em 23/04/2012.

    2 Disponível em . Acesso em 10/05/2012.

    3 Disponível em . Acesso em 23/04/2012. 4 Disponível em . Acesso em 10/05/2012.

  • Introdução 4

    Região Administrativa População 2010

    RA-I Brasília 209.855

    RA-II Gama 135.723

    RA-III Taguatinga 361.063

    RA-IV Brazlândia 57.542

    RA-V Sobradinho 210.119

    RA-VI Planaltina 171.303

    RA-VII Paranoá 53.618

    RA-VIII Núcleo Bandeirante 43.765

    RA-IX Ceilândia 402.729

    RA-X Guará 142.833

    RA-XI Cruzeiro 81.075

    RA-XII Samambaia 200.874

    RA-XIII Santa Maria 118.782

    RA-XIV São Sebastião 100.659

    RA-XV Recanto das Emas 121.278

    RA-XVI Lago Sul 29.537

    RA-XVII Riacho Fundo 71.854

    RA-XVIII Lago Norte 41.627

    RA-XIX Candangolândia 15.924

    Quadro 1: População de algumas RAs do DF.

    Pelos dados apresentados acima, Brasília é a quarta região

    administrativa em número de habitantes. Ceilândia fica com o posto de RA

    mais populosa, seguida por Taguatinga e Sobradinho.

    Brasília tem uma formação populacional peculiar, como é uma cidade

    planejada, passou por grandes fluxos de migração, recebendo pessoas de

    todas as regiões do Brasil. Os migrantes vieram trabalhar na construção da

  • Introdução 5

    cidade e aqui se estabeleceram. Ainda hoje, o Distrito Federal recebe

    migrantes de outras regiões do país, principalmente, devido à expansão das

    cidades do entorno e por ser sede do poder público. Pelos dados oriundos do

    último PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE, 2009),

    pode-se constatar essa formação populacional diversa:

    Lugar de nascimento População (por grupo de

    1000)

    Região Norte

    Rondônia 3

    Acre 2

    Amazonas 3

    Roraima 2

    Pará 20

    Amapá 1

    Tocantins 21

    Região Nordeste

    Maranhão 136

    Piauí 143

    Ceará 107

    Rio Grande do Norte 29

    Paraíba 63

    Pernambuco 47

    Alagoas 7

    Sergipe 4

    Bahia 142

    Região Sudeste

    Minas Gerais 219

    Espírito Santo 11

    Rio de Janeiro 73

    São Paulo 53

    Região Sul

    Paraná 15

    Santa Catarina 2

    Rio Grande do Sul 18

    Região Centro-oeste

    Mato Grosso do Sul 5

    Mato Grosso 5

    Goiás 179

    Distrito Federal 1252

  • Introdução 6

    País Estrangeiro 9

    Quadro 2: Origem da população do DF5.

    Como se pode notar, grande parte dos migrantes do DF é oriunda do

    Nordeste do Brasil (51,4%), o segundo maior contingente vem da região

    Sudeste (27%), principalmente do estado de Minas Gerais. Ainda segundo os

    dados do PNAD (2009), 48,7% da população é natural do DF, e 51,3% são

    migrantes.

    Por conta dessa grande variedade de pessoas e, consequentemente,

    de dialetos, que caracterizam a capital do país, nesta pesquisa, escolhemos

    delimitar uma área mais central do DF. Essa escolha teve como objetivo

    minimizar as influências regionais latentes nas cidades do entorno e também

    tentar dar uma mostra mais significativa da região central, que é popularmente

    conhecida como Brasília. Isso se justifica, pois ao consultar os dados do último

    PDAD 2010/2011 (Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – CODEPLAN)

    constatou-se que há diferentes proporções de migrantes em diferentes Regiões

    Administrativas, por exemplo, em São Sebastião, 61,6% dos habitantes são

    naturais da Região Nordeste e 42,3% do DF, enquanto no Jardim Botânico

    44,5% da população é natural do DF e em Sobradinho essa porcentagem

    chega a 51,2%. Portanto, considerou-se importante delimitar uma área para a

    caracterização linguística. Levando em conta essa realidade, o perfil dos

    colaboradores e os objetivos desta pesquisa, os participantes da pesquisa são

    provenientes das seguintes RAs do DF: Brasília (Asa Sul e Asa Norte), Lago

    Sul, Lago Norte, Jardim Botânico, Park Way e Sobradinho.

    1.2. Breve resumo da história da capital

    “O Brasil deve ser louvado pelo fato de ser a primeira nação da

    história a basear a seleção do sitio de sua Capital em fatores

    5 Fonte: PNAD (IBGE – 2009). Disponível em: . Acesso em

    10/05/2012.

  • Introdução 7

    econômicos e científicos; bem como nas condições de clima e

    beleza”. (Donald J. Belcher, 1955)

    Mesmo sendo muito jovem, Brasília tem uma história longa. A ideia da

    transferência da capital para o centro do país se iniciou muito antes do governo

    do presidente Juscelino Kubitschek. Os inconfidentes mineiros já falavam na

    interiorização da capital, no século XVIII. De acordo com Silva (1997), vários

    documentos comprovam que os inconfidentes, em 1789, discutiam a mudança

    da capital do Rio de Janeiro para São João Del-Rei. Após os inconfidentes,

    muitos outros políticos e idealistas sugeriram a transferência da capital, mas

    pouco foi feito. Na constituição de 1891, há um artigo que trata da mudança da

    capital para o Planalto Central, por isso, a missão Cruls partiu do Rio de

    Janeiro, em 1892, com o objetivo de demarcar o território do Distrito Federal,

    mas o projeto não foi além disso. Entre as várias idealizações de mudança da

    capital, há uma que se destaca, mesmo tendo um teor místico, contribuiu para

    a história da cidade. Trata-se do relato do sonho do padre italiano Dom Bosco,

    canonizado pela igreja e um dos santos padroeiros da cidade. Segundo Silva

    (1997), Dom Bosco costumava ter sonhos proféticos e em 1883, ele sonhou

    com o surgimento de uma nova civilização no mesmo paralelo onde foi

    construída Brasília, entre 15º e 20º. Esse sonho profético faz parte do

    imaginário popular da cidade, até mesmo Juscelino Kubitschek trata do assunto

    em sua obra “Por que construí Brasília”:

    Quando li essas palavras nas suas Memórias Biográficas, não

    deixei de me emocionar. Meditei sobre a Grande Civilização

    que iria surgir entre os paralelos 15º e 20º – justamente a área

    em que estava construindo, naquele momento, Brasília. O lago,

    da visão do santo, já figurava no Plano Piloto do urbanista

    Lúcio Costa. (KUBITSCHEK, 2000, p. 18)

    Em outro momento, o ex-presidente relata:

  • Introdução 8

    Ali estava Brasília, já construída, justamente entre os paralelos

    15 e 20º, tal como Dom Bosco previra, isto é, próximo às

    lagoas Feia, Formosa e Mestre d’Armas, às cabeceiras do rio

    Preto. A nova capital, além de haver sido o sonho de um sábio

    – José Bonifácio –, foi, também, a visão de um santo.

    (KUBITSCHEK, 2000, p. 363)

    Passados alguns anos, em 1955, na sua campanha de candidatura à

    presidência da república, na cidade de Jataí (MG), Juscelino Kubitschek

    quando indagado sobre a transferência da capital disse que iria cumprir o que

    constava na constituição (SILVA, 1997). E, assim começou a saga da mudança

    da capital do Rio de Janeiro para o centro do país. A ideia de construir a capital

    no interior do Brasil, além de ter como objetivo mudar o centro do poder público

    para um lugar estrategicamente mais seguro e menos suscetível a ataques,

    visava, também, o desenvolvimento dessa região, pouco conhecida até então.

    Brasília era, antes de tudo, uma necessidade. Urgia construí-la

    no menor prazo possível, para recuperar centenas de anos em

    que a civilização brasileira se concentrou somente na orla

    marítima, deixando à própria sorte o resto do seu imenso

    território. (SILVA, 1997, p. 15)

    Em 1956, JK assumiu o cargo de presidente do Brasil. Em seu

    governo, os planos da mudança da capital saíram do papel e se concretizaram.

    Já em outubro do primeiro ano de seu mandato, JK visitou o local onde seria

    construída a nova capital. Em março de 1957, Lúcio Costa foi nomeado o

    vencedor do concurso para o Plano Piloto de Brasília. Dentre a comissão

    julgadora estava Oscar Niemeyer, responsável pela arquitetura inovadora da

    cidade.

    A construção de Brasília se deu em tempo recorde, aproximadamente

    três anos e meio e, assim, no dia 21 de abril de 1960, foi inaugurada a nova

    capital do Brasil com um dia inteiro de solenidades e festividades. Exatamente

  • Introdução 9

    dois anos após a inauguração da cidade, foi inaugurada a Universidade de

    Brasília, tendo o antropólogo Darcy Ribeiro como seu primeiro reitor6.

    Figura 2: Discurso do presidente Juscelino Kubitscheck na inauguração de Brasília, em

    21 de Abril de 19607.

    Após o término da construção, os trabalhadores não retornaram às

    suas cidades de origem e acabaram se estabelecendo na capital, não em sua

    parte central, e sim nos arredores que correspondem, hoje, à região do

    entorno. O que eram apenas acampamentos, hoje são grandes cidades ou as

    Regiões Administrativas do DF, que continuam crescendo e contribuindo para a

    economia e desenvolvimento do DF.

    Sessenta mil candangos – as abelhas do planalto – haviam

    tornado possível aquele milagre. Engenheiros e arquitetos,

    sanitaristas e geólogos, urbanistas e pilotos, desenhistas e

    técnicos em todas as especializações, esquecidos do conforto,

    haviam trabalhado, noite e dia, sob o sol e a chuva, morando

    em barracas de lona ou em galpões de madeira, para que a

    6 Esse e outros fatos históricos sobre a construção de Brasília podem ser conferidos em:

    . Acesso em 07 de Maio de 2012. 7 Fonte: . Acesso em 23/04/2012.

  • Introdução 10

    inauguração se fizesse na data marcada. (KUBITSCHEK,

    2000, p. 366-367)

    Interessante notar que esses primeiros homens que vieram trabalhar

    na cidade são chamados de candangos, entretanto, Silva argumenta que:

    Inicialmente, quando se começava a construir Brasília,

    candango era tido quase como termo desprimoroso, como que

    a indicar o homem sem qualidades, sem cultura. Mas, aos

    poucos, o CANDANGO trabalhador de Brasília passou a ser

    admirado no Brasil e no mundo pela tenacidade, pelo esforço,

    pelo idealismo. E a expressão tornou-se título de honra, pois só

    os que tinham ‘peito e raça’ poderiam ser CANDANGO.

    (SILVA, 1997, p. 304 – grifo do autor)

    Assim como Silva, Bortoni-Ricardo et al. (2010) defende que o termo

    candango é uma marca identitária da cidade e é aceita pelos próprios

    moradores, assim como no Rio de Janeiro seus moradores se identificam como

    cariocas, sem nenhum problema. Sendo assim, ao longo do trabalho,

    poderemos nos referir a essa variedade do português tanto como português

    candango quanto como português brasiliense.

    1.3. Estudos sobre o português de Brasília

    “Por ter-se constituído um importante polo receptor de migração no

    Brasil nas últimas décadas, o DF tornou-se também um laboratório

    muito especial para o estudo de variedades regionais e socioletais em

    contato.” (Bortoni, 2010, p. 23).

    A maioria das pesquisas relacionadas à variedade do português de

    Brasília é contribuição da Sociolinguística. Essas pesquisas têm apresentado

    as principais características dessa variedade, levando em conta fatores

    extralinguísticos como posição social, grau de instrução, idade, etc. Contudo,

  • Introdução 11

    na área da Fonética e Fonologia, e mais especificamente da Fonética acústica,

    os únicos trabalhos encontrados foram: Meirelles (2011), que foca na descrição

    do português gaúcho, mas faz comparações com a variedade de Brasília e o

    de Grannier e Meirelles (2007)8, que também é uma comparação entre as

    variedades gaúcha e brasiliense. Além disso, Bortoni-Ricardo, Gomes e Malvar

    (1992) têm um artigo sobre a variação das vogais médias pretônicas nessa

    variedade, o qual será discutido em seção específica (cf. capítulo 2).

    Segundo Bortoni-Ricardo et al. (2010), após a construção da cidade e

    passado o interesse dos anos iniciais, o falar de Brasília só volta a ser

    pesquisado na década de 80. Em sua tese (1983), Bortoni-Ricardo constatou

    que os migrantes que vinham para Brasília estavam perdendo suas marcas

    dialetais e que as gerações nascidas aqui já apresentavam uma variedade

    distinta das de seus pais. Após esse trabalho, há a publicação da dissertação

    de Elizabeth Hanna, em 1986, que discute os processos de focalização e

    difusão dialetal, no caso de Brasília. Há também a dissertação de Cíntia da

    Costa Corrêa em 1988, que analisa as vogais pretônicas e o /s/ pós-vocálico.

    Andrade (2010), em sua dissertação, estuda a variação entre tu e você na

    variedade de Brasília. Todas essas dissertações foram defendidas na

    Universidade de Brasília. Além dessas pesquisas, há trabalhos sobre atitudes

    linguísticas (MELO, 1988)9 e sobre provérbios e expressões populares

    (VELLASCO, 2000)10.

    Como se pode notar, todos os trabalhos desenvolvidos são de cunho

    sociolinguístico, portanto ainda são necessárias pesquisas em outras áreas da

    Linguística, como na Fonética, para que possamos conhecer de forma mais

    completa o português falado na capital do país.

    8 Trata-se de uma comunicação apresentadas no SIS-Vogais de 2007, em João Pessoa

    (manuscrito). 9 In Bortoni et al (2010).

    10 In Bortoni et al (2010).

  • Introdução 12

    1.4. Objetivos do trabalho

    1.4.1. Geral

    Analisar e descrever a variedade do português falado em Brasília, por

    meio de uma descrição fonética, acústica e articulatória, das vogais postônicas

    não finais e finais.

    1.4.2. Específicos

    1. Revisar a literatura que trata das definições, descrição e análise de

    vogais;

    2. Fazer um levantamento de estudos fonéticos feitos sobre a variedade do

    português falado em Brasília;

    3. Analisar os quadros vocálicos do PB apresentados por Mattoso Camara

    Jr. (2007) e por Cristófaro Silva (2005), para então investigar a

    constituição dos quadros postônicos do PBsb;

    4. Verificar possíveis processos de apagamento e alteamento das vogais

    átonas não finais no PBsb, considerando a proposta de Araújo et al.

    (2008);

    5. Caracterizar acusticamente a realização das vogais postônicas não finais

    e finais do PBsb, com o auxílio do programa PRAAT (BOERSMA, P. A.;

    WEENINK, D., 1992-2012), tendo como parâmetros de análise, os

    valores da frequência fundamental (F0), do primeiro e segundo formantes

    (F1 e F2) e a duração;

    6. Comparar a duração das vogais postônicas finais com as postônicas não

    finais, para verificar as conclusões obtidas por Camara Jr. (1977),

    Moraes (1995), Marusso e Rocha (2006) e Santos (2010);

  • Introdução 13

    7. Comparar as vogais postônicas finais do português de Brasília com as

    vogais de outras capitais brasileiras, com base nos trabalhos de Moraes,

    Callou e Leite (1996, 2002).

    1.5. Justificativa

    Esta pesquisa surge de uma pergunta muito comum para quem mora

    em Brasília: Brasília tem sotaque? Pergunta esta que nos motivou a iniciar um

    estudo sobre o português candango. Entramos, então, em um campo ainda

    nebuloso, e também instigante: o estudo das vogais. As vogais são sons

    complexos e de difícil caracterização, e assim, várias questões mais

    abrangentes surgem: Qual é a real diferença entre consoantes e vogais? Qual

    é a forma mais adequada de descrevê-las, usando a fonética acústica ou a

    articulatória? Afinal, quais são as vogais do português do Brasil? Quais

    fonemas constituem os quadros vocálicos postônicos? Tendo essas perguntas

    como motivadoras, o presente estudo foi estruturado, tendo por objetivo

    caracterizar as vogais em uma variedade do português do Brasil, a saber, a

    variedade de Brasília. Outra motivação para analisar as vogais está no fato de

    ser um campo vasto para a pesquisa fonética e também porque como aponta

    Cristófaro Silva (1999, p. 14): “Na verdade conhecemos ainda pouco do

    sistema vocálico do português brasileiro. Precisamos de descrições

    esclarecedoras que sejam bem delineadas metodologicamente”. Então, pode-

    se dizer que conhecemos ainda menos o sistema vocálico da variedade de

    Brasília.

    Descrições no âmbito da fonética e da fonologia servem de base para

    qualquer outra descrição nos níveis linguísticos seguintes, como morfologia,

    sintaxe, semântica, pragmática, etc. Além disso, esses estudos permitem

    aplicações ao ensino, seja para a alfabetização em língua materna ou,

    sobretudo para o ensino de línguas estrangeiras, assim como para os estudos

    de aquisição da linguagem, patologia da fala, variação e mudança linguística,

    dentre outros.

  • Introdução 14

    A escolha de uma descrição fonética, tanto articulatória quanto

    acústica, está calcada na escassez de pesquisas dessa natureza, assim como

    alerta Meirelles (2011, p. 30): “há poucos estudos que se detêm em uma

    detalhada caracterização acústica ou articulatória”. O português brasileiro

    (doravante, PB) dispõe de várias descrições articulatórias, já as

    caracterizações acústicas são poucas. Os trabalhos de Callou, Moraes e Leite

    (1996, 2002), podem ser citados como uma contribuição para a caracterização

    acústica do PB (cf. capítulo 2). A fonética acústica tem como vantagem permitir

    uma análise objetiva e refinada dos sons de uma dada língua. E, segundo

    Meirelles (2011, p. 34) “com o avanço e desenvolvimento da ciência acústica,

    esta tem cada vez mais vantagens a oferecer em uma descrição linguística”.

    Por outro lado, Cristófaro Silva (1994, p. 14) explica que se deve buscar a

    descrição minuciosa de fatores articulatórios e auditivos e também os

    correlatos acústicos dos segmentos para uma análise mais completa. Sendo

    assim, nesta dissertação optamos por aliar os três métodos de análise,

    auditivo, acústico e articulatório, admitindo a contribuição e importância de

    cada um. Considerando que Meirelles apresenta uma descrição acústica das

    vogais tônicas do português de Brasília comparando-as com as vogais do

    português gaúcho, decidiu-se complementar esse estudo com uma descrição

    acústica e articulatória das vogais postônicas finais e não finais. Optou-se por

    esse recorte, excluindo as pretônicas, pois é um estudo que requer um trabalho

    à parte, que vai além da caracterização fonética, pois implica em questões

    fonológicas, morfológicas e quiçá sintáticas.

    Vale ressaltar que embora este trabalho seja de natureza fonética,

    serão discutidos trabalhos de autores que analisam o fenômeno usando as

    teorias fonológicas modernas, pois esses trabalhos levam em conta a realidade

    fonética das variedades do português e muito têm a contribuir na interpretação

    dos fenômenos aqui estudados.

    1.6. Organização da dissertação

  • Introdução 15

    Nesta dissertação, a revisão bibliográfica parte de assuntos mais amplos

    relacionados ao estudo das vogais, como definição e descrição, seguindo em

    direção a um tema mais específico, as vogais do português do Brasil. Então, no

    primeiro capítulo, é feita uma revisão de literatura que introduz o tema deste

    trabalho, as vogais. Sendo assim, parte-se inicialmente das definições de

    vogal, levando em conta o ponto de vista de alguns autores. Em seguida, trata-

    se de outro tema de suma importância, que é a forma de descrevê-las, logo é

    feita uma revisão dos principais métodos de descrição de vogais, o método

    articulatório e acústico. Em especial, é feita uma introdução à análise acústica,

    tratando-se de seus conceitos mais básicos e principais teorias acústicas para

    que, dessa forma, a análise dos dados possa ser facilmente compreendida e

    interpretada.

    No segundo capítulo, afunila-se um pouco mais o tema, são

    apresentadas as vogais do PB, com base nos quadros vocálicos propostos por

    Camara Jr. (1950, 1970) e Cristófaro Silva (2005). Em seguida, trata-se,

    especificamente, das vogais postônicas e dos processos que envolvem essas

    vogais, como apagamento, alteamento e neutralização. Ao final, é feito um

    levantamento dos estudos sobre as vogais do português de Brasília.

    No terceiro capítulo, apresenta-se a metodologia utilizada para a coleta e

    análise dos dados, dividida em dois experimentos. O primeiro experimento teve

    como objetivo identificar as vogais postônicas não finais, por meio de um teste

    auditivo realizado por juízes especialistas na área. O segundo experimento

    proporcionou a análise acústica das vogais postônicas. O capítulo quatro

    apresenta os dados, a análise dos mesmos e uma discussão dos resultados

    obtidos. Em seguida, no capítulo cinco está a conclusão e fechamento da

    dissertação.

  • CAPÍTULO 1

    VOGAIS: CONTEXTUALIZAÇÃO GERAL

    1.0. Introdução

    Neste capítulo, iniciamos uma discussão geral sobre vogais,

    levantando algumas questões: (a) O que são vogais? (b) Como diferenciá-las

    de consoantes? (c) Qual o melhor método para descrevê-las? Para responder

    à primeira pergunta, apresentamos as definições propostas pelos autores: Pike

    (1972), Camara Júnior (1953), Ladefoged e Maddieson (1996) e Callou e Leite

    (2005). Em seguida, abordamos os principais métodos de descrições de

    vogais: articulatório, auditivo e acústico e também discutimos as vantagens e

    desvantagens de cada um.

    1.1. Conceitos de vogal

    Uma das questões básicas no estudo dos sons da fala é a diferença

    entre duas grandes classes: consoantes e vogais. Mesmo que nos manuais

    mais antigos, esta diferença já tenha sido discutida, ainda hoje há opiniões

    divergentes sobre o tema. Pike (1972) critica o fato de que muitas descrições

    de línguas são feitas com base em uma divisão já estabelecida entre

    consoantes e vogais, mas sem a preocupação em explicitar o que se entende

    por uma e por outra. Outro fator complicador são os segmentos híbridos,

    chamados glides ou semivogais, que ora se encaixam em uma classe e ora em

    outra. Portanto, é importante retomar as ideias dos principais autores que

    discutem essa questão, para depois apresentar a posição que será tomada

    neste trabalho. As definições de vogais são variadas, mas acabam girando em

    torno do ponto de vista do impedimento ou não da passagem do ar e da função

    dentro da sílaba. Cada autor traz alguma contribuição ou inovação ao conceito

    de vogal, como veremos nas subseções abaixo.

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 17

    1.1.1. Pike (1943)11

    Pike aponta que o principal problema na diferenciação entre vogais e

    consoantes está na mistura de diferentes critérios, muitas vezes, incompatíveis.

    Os três critérios básicos de definição, segundo ele, são: articulatório, acústico e

    contextual.

    Com relação aos critérios articulatórios, o autor cita, primeiramente,

    a obstrução na passagem do ar, que caracterizaria as consoantes. Pike

    considera que esse critério, isoladamente, não é suficiente, pois se aplica

    claramente às oclusivas, mas não é valido para as continuantes, já que

    algumas são classificadas como fricativas e outras como vogais, mesmo

    havendo obstrução parcial do ar. Por isso, ele argumenta que é difícil definir

    qual tipo de obstrução pode caracterizar vogais e qual pode caracterizar

    consoantes, além disso, diz que esse critério não é totalmente articulatório. Ele

    explica que se o ponto de partida for o contato da língua ou o pequeno grau de

    abertura, a vogal anterior alta - [i] - poderia ser classificada como uma

    consoante. Portanto, o autor conclui que não há uma forma de medir,

    articulatoriamente, o grau de constrição ou obstrução que separaria consoantes

    de vogais. Da mesma forma, explica que o termo ‘estreitamento’ não reflete um

    critério de definição preciso, pois não há como definir marcas articulatórias para

    mostrar onde uma vogal torna-se uma consoante, ou seja, não há como

    estabelecer, articulatoriamente, os limites da transição. Outro critério

    articulatório que também não é tão eficiente, na visão do autor, é a saída do ar

    pela boca, já que não permite separar vogais orais de consoantes orais.

    Segundo o autor, há dois critérios acústicos usados para diferenciar

    as vogais das consoantes. O primeiro é que as vogais são, naturalmente, mais

    sonoras e ressonantes do que as consoantes. Esse critério é problemático,

    pois permite classificar algumas soantes - por exemplo, as laterais - como

    vogais, devido a sua propriedade ressonântica. O segundo critério acústico é

    11

    Utilizamos a data da primeira edição no título desta seção para estabelecer uma ordem

    cronológica, contudo, consultamos a 13ª edição, de 1972, que está especificada na bibliografia.

    No fluxo do texto, citaremos a edição consultada para facilitar a conferência das citações pelo

    leitor.

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 18

    baseado na fricção. Os sons que têm uma fricção audível são classificados

    como consoantes. O autor comenta que como já foi dito, o método articulatório

    não permite estabelecer os limites entre consoante e vogal, e a fricção

    funcionaria, então, como um teste para delimitar o grau de obstrução que

    separa as consoantes das vogais. Essa é uma técnica acústico-auditiva (cf. a

    seção 1.2.1. deste capítulo). Entretanto, esse critério não é sempre consistente

    na prática, pois alguns sons que são considerados vogais podem apresentar

    fricção em sua produção, como algumas vogais mais fechadas, enquanto

    outros sons sem fricção audível são considerados consoantes, ou seja,

    também seria necessário um recurso técnico suplementar para medir o grau de

    fricção.

    O critério contextual é aplicado quando a identificação da classe do

    som ocorre como resultado de sua relação com os sons circunvizinhos, ou com

    o sistema linguístico, não é, portanto, decorrente de sua natureza acústica ou

    articulatória intrínseca. Os segmentos têm dois tipos de função contextual: em

    uma unidade fonética maior, como a sílaba; ou no sistema linguístico, como um

    fonema. Por esse caminho, a diferenciação entre vogais e consoantes pode ser

    baseada em sua função na sílaba, sendo assim, elementos silábicos seriam

    classificados como vogais e elementos assilábicos seriam consoantes. Pike

    cita outros critérios contextuais, como a força, um segmento pode ser

    classificado como vogal por ser mais forte, ou mais proeminente do que os

    segmentos vizinhos. Todos esses critérios são contextuais, pois dependem das

    relações entre os segmentos.

    Para o autor, termos como ‘semivogal’ mostram que há indecisão por

    parte do pesquisador na classificação entre vogal e consoante, quando os

    critérios acústico e articulatório evidenciam algo diferente da função contextual.

    Então, defende que é preciso estabelecer uma divisão entre o papel da fonética

    e da fonêmica. Para a fonêmica, interessa o som funcionando dentro de um

    sistema e se relacionando com outros sons. Já para a fonética interessam as

    características acústicas ou articulatórias dos sons como unidades,

    independentemente de sua função. O autor reforça que os dois objetivos

    precisam estar bem estabelecidos e delineados. Portanto, o foneticista deve

    descrever os sons como unidades independentes, e problematiza que se as

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 19

    unidades do continuum12 não puderem ser descritas isoladamente, então o

    continuum só pode ser descrito como um todo. Mas como descrever o todo

    sem conhecer as partes? Então, complementa: “Uma ciência fonética deve ser

    capaz de definir e descrever suas próprias unidades por meio de seus próprios

    dados” (PIKE, 1972, p. 77, tradução nossa)13. Tendo em vista uma separação

    rigorosa entre fonética e fonêmica, o autor sugere utilizar termos diferentes.

    Nomeia como vocoides e contoides sons descritos por suas características

    acústicas e articulatórias, sem alusão a sua função contextual. E utiliza os

    termos vogais e consoantes para nomear as categorias classificadas por sua

    função contextual, que vão depender do sistema da língua estudada.

    1.1.2. Camara Júnior (1953)

    Camara Jr. diferencia vogais e consoantes fazendo um apanhado das

    ideias de vários linguistas de sua época. O autor critica os critérios utilizados

    para diferenciá-las, que se baseiam na passagem do ar livre ou obstruída e na

    função dentro da sílaba. Justifica que em algumas línguas as consoantes

    ocupam a posição nuclear da sílaba, citando como exemplo, as líquidas no

    sânscrito: /grtam/ e também no inglês: /botl/. Camara Jr. cita, então, Grammont

    (1933, apud Camara Jr., 1953) que para evitar que as líquidas e fricativas

    silábicas sejam classificadas como vogais, acrescenta ao conceito de sílaba, a

    noção fonética de tensão crescente e tensão decrescente. Por esse conceito,

    as vogais seriam sons silábicos com tensão decrescente. O autor acrescenta

    que:

    12

    Com o termo continuum o autor se refere à cadeia da fala: “Speech, as phoneticians well

    agree, consists of continuous streams of sound within breath groups, neither sounds nor words

    are separated consistently from one another by pauses, but have to be abstracted from the

    continuum.” (PIKE, 1972, p.42)

    13 Original: “A phonetic science should be able to define and describe its own units by its own

    data.”

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 20

    A consoante corresponde a um movimento de cerramento-

    abrimento, com um máximo articulatório, e a vogal a um

    movimento de abrimento-cerramento, com um mínimo

    articulatório; na consoante há a formação de um impedimento e

    um esforço para superá-lo, ao contrário da vogal, que se

    caracteriza pela falta de esforço ou desimpedimento”

    (CAMARA JR., 1953, p. 66).

    Camara Jr. discute também a proposta de Trubetzkoy, que utiliza um

    critério distributivo para diferenciar vogais e consoantes, explicando que as

    vogais sempre podem ser núcleo de sílaba, enquanto as consoantes, em

    muitas línguas, não podem ocupar essa posição. Segundo Camara Jr., esse é

    o caso do português, no qual as vogais sempre ocupam a posição de centro de

    sílaba. Então, o autor conclui que, em português, a vogal pode ser definida por

    sua função silábica, e “podemos manter-nos na interpretação grega de serem

    as vogais os elementos fônicos suscetíveis de funcionar sós.” (CAMARA JR.,

    1953, p. 67).

    1.1.3. Ladefoged e Maddieson (1996)

    Segundo Ladefoged e Maddieson, as vogais geralmente são

    diferenciadas das consoantes por serem sons que podem aparecer sozinhos,

    enquanto as consoantes necessitam de uma vogal para se apoiarem (no

    português, podemos exemplificar com o verbo ‘ser’ conjugado, ‘é’ [ˈɛ], que pode

    aparecer como resposta a uma pergunta como: Ela é estudante? – É). Os

    autores citam Chomsky e Halle (1968, apud LADEFOGED; MADDIESON,

    1996) que definem a vogal como um segmento com os traços [+silábico, -

    consonantal]. O traço [-consonantal] se aplica a sons que não têm uma

    obstrução central do trato vocal. Sendo assim, Ladefoged e Maddieson

    concluem que pode se caracterizar uma vogal como um elemento sem grandes

    obstruções no trato vocal e, além disso, como um segmento silábico.

    Os autores discutem, então, o que seria ‘silábico’ do ponto de vista

    fonético. E explicam que não há um parâmetro articulatório ou fisiológico para

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 21

    definir sílaba. É comum, entre os linguistas, relacionar sílaba a impulso

    respiratório, mas Ladefoged e Maddieson rejeitam essa associação, e

    lamentam que os foneticistas não tenham uma sugestão alternativa para as

    propriedades fisiológicas da sílaba. Sendo assim, sugerem uma definição:

    “sílabas são unidades necessárias na organização e produção de palavras”

    (LADEFOGED; MADDIESON, 1996, p. 282, tradução nossa)14. Contudo,

    admitem que essa seja uma visão neurofisiológica da sílaba e, além disso, é

    uma abordagem de caráter mais fonológico do que fonético. Finalizam dizendo

    que as vogais são definidas pelo critério fisiológico da não obstrução no trato

    vocal e por sua função fonológica dentro da sílaba.

    1.1.4. Callou e Leite (2005)

    Callou e Leite (2005) definem vogais como sons produzidos com o

    estreitamento da cavidade oral devido à aproximação do corpo da língua e do

    palato, sem que haja fricção do ar. Do ponto de vista acústico, são sons

    periódicos complexos, constituem núcleo de sílaba e sobre elas pode incidir o

    acento de tom e/ou intensidade. Comparando com as consoantes, explicam

    que estas são vibrações aperiódicas ou ruídos que ocorrem devido a algum

    impedimento na passagem do ar pela ação dos articuladores, o que gera uma

    redução na energia do espectro acústico.

    As autoras explicam que a definição de vogal é problemática, pois há

    dois pontos de vista, o fonético e o fonológico. Sons como nasais, laterais,

    flepes (flaps) e tepes (taps) são produzidos do ponto de vista articulatório, sem

    impedimento da passagem de ar, que é a característica fonética das vogais.

    Porém, esses sons ocupam a posição de margem de sílaba e, há vogais que

    ocupam essa posição, chamadas de assilábicas ou glides. Portanto, deixam

    ainda a questão em aberto.

    14

    Original: “syllables are necessary units in the organization and production of utterances.”

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 22

    1.1.5. Fechamento da seção

    Com base nas ideias postas acima, percebe-se que todos os autores

    chegam basicamente à mesma conclusão. Todos afirmam a importância da

    diferenciação entre vogais e consoantes, assim como, todos admitem sua

    complexidade. Contudo, por mais que cada um tente acrescentar um critério

    complementar, pode-se notar que os fatores determinantes continuam sendo a

    livre passagem do ar e a função na sílaba. De qualquer forma, é válido

    salientar que, como defendeu Pike (1972), é preciso separar os critérios, se

    são fonológicos ou fonéticos. Sendo assim, se o linguista está fazendo uma

    descrição fonética dos sons de uma língua, deve se basear no critério fonético

    de obstrução ou não da passagem do ar. Por outro lado, se o pesquisador está

    produzindo uma análise fonológica da língua, então deve considerar a função

    que o segmento exerce na sílaba, ou seja, o critério fonológico. Weiss (1988)

    utiliza a nomenclatura proposta por Pike (vogais/vocoides e

    consoantes/contoides). Entretanto, Meirelles (2011) explica que os termos

    ‘vocoide’ e ‘contoide’ não são mais utilizados na terminologia fonética, e para

    fazer essa distinção pode-se utilizar os termos ‘segmento fonético’ e ‘segmento

    fonológico’.

    Atualmente, com o desenvolvimento da fonética acústica, é possível

    ver a diferença entre vogais e consoantes mais concretamente, por meio dos

    espectrogramas. Dessa forma, sua definição e o resultado de sua análise será

    mais consistente e mais coerente.

    1.2. Métodos de descrição de vogais

    Há diferentes maneiras de descrever vogais, pode-se fazê-lo do modo

    articulatório, ou então pela análise acústica, sendo que cada um apresenta

    vantagens e desvantagens. Há autores que defendem um ou outro método por

    considerá-lo o mais eficiente ou o que mais reporta a realidade linguística. Com

    base nisso, introduzimos abaixo os dois métodos de descrição, com ênfase na

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 23

    descrição de vogais, e apresentamos a visão de diferentes autores sobre as

    duas formas de análise.

    1.2.1. Descrição articulatória

    Tradicionalmente, a grande maioria das descrições fonéticas utiliza o

    método articulatório para caracterizar as vogais, em vista disso há poucas

    descrições do português de base acústica. Pike (1972) diz que a técnica

    instrumental acústica permite uma grande minuciosidade, e que isso é

    problemático, pois, para ele, qualquer descrição que vá além da capacidade

    perceptiva do falante não se encaixa em uma classificação fonética. Além

    disso, ele explica que uma descrição fonética não tem o objetivo de descrever

    uma variedade infinita de sons e posições articulatórias, mas deve se deter ao

    que está dentro dos limites de percepção. O autor estipula como papel da

    técnica acústica, a análise da prosódia, já que a articulatória não consegue

    descrevê-la, satisfatoriamente.

    Pike (1972) explica que para uma descrição ser, de fato, articulatória,

    outras pessoas ao seguirem as direções dadas, devem conseguir produzir o

    som sem que seja necessário ouvi-lo. Porém, mesmo que a descrição

    articulatória seja extremamente refinada, é necessário treino articulatório para

    produzir o som descrito, destaca o autor. Ele complementa, dizendo que para

    ter sucesso, a técnica articulatória deve estar aliada à imitação auditiva (PIKE,

    1972, p. 17).

    Sendo assim, a descrição articulatória tradicional dos sons também é

    baseada na audição, pois, esta influencia na interpretação do som pelo

    linguista. Uma descrição puramente articulatória pode ser feita por meio de

    técnicas como a videofluoroscopia (que utiliza raios-x), ultrassonografia,

    articulografia, raio-x, palatografia, etc., mas não são muito comuns nas

    pesquisas linguísticas no Brasil. Há, por outro lado, os estudos, puramente,

    auditivos que são bastante refinados e têm o objetivo de traçar a estrutura do

    espaço perceptual dos usuários de certa língua (JOHNSON, 2003). Não nos

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 24

    referimos a esse tipo mais aprofundado de análise de padrões perceptuais,

    mas entendemos que toda descrição articulatória envolve também a percepção

    auditiva do pesquisador, e é por isso que é considerada mais subjetiva, por

    alguns autores. Pike (1972, p. 14, tradução nossa) também faz essa

    associação quando cita a técnica de descrição auditiva articulatória: “descrição

    em termos dos movimentos e posições dos órgãos vocais e investigação,

    principalmente, pelo ouvido e o senso sinestésico” 15. O método das vogais

    cardeais, sobre o qual discorreremos mais adiante, também une critérios

    articulatórios e auditivos em sua classificação. Como em uma parte da análise

    dos dados, é utilizado um teste auditivo, nesta pesquisa também é feita a

    associação entre uma descrição auditiva e articulatória.

    Nas descrições articulatórias das vogais, os parâmetros mais

    importantes são a posição da língua, nas dimensões vertical e horizontal, e a

    posição dos lábios, arredondamento e protrusão. Nas subseções abaixo,

    abordamos esses parâmetros.

    1.2.1.1. Posição da língua e arredondamento dos lábios

    Com relação à descrição articulatória das vogais, a língua tem sido

    considerada o articulador mais importante para diferenciá-las. Pike (1972)

    aponta que a parte mais alta da língua é a mais importante para a classificação

    das vogais. As vogais podem ser descritas com base na posição horizontal

    (anterioridade/posterioridade) ou vertical (altura) da língua e também quanto à

    posição dos lábios (arredondamento). Esses são os traços mais importantes

    para identificar vogais, mas há ainda as chamadas articulações secundárias

    como: nasalização, palatalização, velarização, faringalização, labialização, ATR

    (advanced tongue root/ avanço da raiz da língua), entre outros (LADEFOGED;

    MADDIESON, 1996; LADEFOGED, 1993).

    15

    Original: “descriptions in terms of movements and positions of the vocal organs and

    investigation primarily by the ear and the kinesthetic sense”.

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 25

    Quanto à altura da língua, as vogais são classificadas em alta, média e

    baixa. As médias são divididas em: média-fechada ou média-alta e média-

    aberta ou média-baixa (CRISTÓFARO SILVA, 2005; LADEFOGED, 1993;

    MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 2001). Pode-se sentir o movimento vertical da

    língua produzindo a sequência de vogais: [i], [e], [ɛ] e [a]. Com relação à

    posição horizontal da língua, as vogais são classificadas em: anterior (com a

    língua mais próxima dos dentes), central (com a língua em uma posição

    intermediária) e posterior (com a língua retraída). Para perceber esse

    movimento de retração, pode-se produzir a sequência de vogais [i], [a] e [u].

    Segundo Ladefoged e Maddieson (1996), a altura é o parâmetro mais

    importante para diferenciar vogais, pois, línguas que têm apenas duas vogais,

    diferenciam-nas pela altura e não pela posterioridade ou arredondamento dos

    lábios. Como exemplo, os autores citam a língua Margi que tem apenas duas

    vogais: a vogal central alta - [ɨ] - e a vogal central baixa - [a].

    Por último, há a posição dos lábios, dividindo as vogais em:

    arredondadas e não arredondadas. Podemos perceber o movimento de

    arredondamento produzindo os pares: [i] e [u], [e] e [o] e [ɛ] e [ɔ]. As línguas

    têm uma tendência a apresentar vogais anteriores não arredondadas e

    posteriores arredondadas (LADEFOGED, 1971; LADEFOGED; MADDIESON,

    1996). No entanto, há línguas que apresentam vogais anteriores arredondadas,

    como o francês: [ty] ‘você’; [dø] ‘dois’; e posteriores não arredondadas, como o

    vietnamita (LADEFOGED; MADDIESON, 1996, p. 293): [tɯ] ‘quarto’ (número

    ordinal), contrastando com [tu] ‘beber’.

    Cristófaro Silva (2005) sugere que a notação técnica da vogal seja feita

    na seguinte ordem: altura+anterioridade+arredondamento. Assim, podemos

    descrever a vogal [ɛ] da seguinte forma: vogal média-aberta anterior não

    arredondada. Esse tipo de convenção permite maior clareza na descrição, para

    que outros pesquisadores possam identificar os sons tanto pelo símbolo como

    por sua caracterização.

    Apresentamos abaixo o quadro vocálico do Alfabeto Fonético

    Internacional, conhecido entre os foneticistas por IPA (The International

    Phonetic Alphabet). Esse quadro é baseado na proposta de Daniel Jones

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 26

    (1960) para as vogais cardeais. No eixo vertical está representada a altura das

    vogais e no eixo horizontal está representada a anterioridade. Em um mesmo

    ponto, a vogal à esquerda é do tipo não arredondada e à direita está a mesma

    vogal, mas arredondada, logo, na extremidade superior esquerda, tem-se a

    vogal alta anterior não arredondada: [i] e, à sua direita está sua contrapartida

    arredondada: [y].

    Figura 3: Quadro vocálico do IPA (CRISTÓFARO SILVA, 2005, p. 41).

    Reproduzimos, então, o quadro das vogais orais tônicas do português

    do Brasil (CRISTÓFARO SILVA, 2005; CAMARA JUNIOR, 2007):

    Anterior Central Posterior

    não arredondada Arredondada

    Alta i U

    Média-alta e O

    Média-baixa ɛ ɔ

    Baixa a

    Quadro 3: Vogais orais tônicas do PB.

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 27

    Por esse quadro, percebe-se que no português do Brasil, existem sete

    vogais orais tônicas. Além disso, o PB segue o padrão mais recorrente entre as

    línguas, pois tem suas vogais anteriores não arredondadas e as posteriores

    arredondadas.

    1.2.1.2. Articulações secundárias

    Ladefoged (1993) explica que uma articulação secundária é produzida

    com um grau menor de fechamento e, assim, ocorre simultaneamente à

    articulação primária. Cristófaro Silva (2005) cita como articulações secundárias

    dos segmentos vocálicos: duração, desvozeamento, nasalização e tensão. A

    duração só pode ser medida ao se comparar com a duração de outro segmento

    (CAGLIARI, 1981; CRISTÓFARO SILVA, 2005). A tonicidade também

    influencia a duração, ou seja, as vogais tônicas são mais longas do que as

    átonas, fato que pode ser observado no português. Entretanto, em casos assim

    a duração não é um fator fonológico da língua. Já no inglês, a duração opõe

    significado, como exemplifica Cristófaro Silva (2005), com os verbos: ‘to leave’

    (sair) [li:v] e ‘to live’ (viver) [liv], nesse caso há um par mínimo, no qual a

    duração da vogal é a responsável pela mudança de significado. Cagliari (1981)

    ressalta que a duração, principalmente das sílabas, tem papel importante no

    ritmo da língua.

    As vogais são naturalmente sonoras ou vozeadas, porém em um

    contexto surdo, em final de palavra e antes de silêncio, a vogal pode ser

    ensurdecida ou desvozeada, sendo representada com um pequeno círculo

    abaixo da vogal: [ ]. Isso ocorre no português nas sílabas finais de palavras,

    antes de pausa. Nesses casos toda a sílaba pode ser desvozeada, como nas

    palavras: la[p ], co[p o ], lin[d ] (CAMARA JR., 2007; CRISTÓFARO SILVA,

    2005).

    A nasalização ocorre quando durante a produção da vogal há o

    abaixamento do véu palatino e assim parte do ar sai pela cavidade nasal

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 28

    (LADEFOGED, 2003; CRISTÓFARO SILVA, 2005; WEISS, 1988). A vogal

    nasalizada é representada com um til sobrescrito: [ã].

    A tensão está relacionada com esforço articulatório e um segmento

    tenso se opõe a um segmento frouxo. Segundo a análise de Cristófaro Silva

    (2005), em português, as vogais átonas finais são frouxas, como em: patu, lata;

    e contrastam com as tônicas finais, que são tensas, como: saci, cajá.

    Ladefoged e Maddieson (1996) incluem como articulação secundária a

    ATR (advanced tongue root/ raiz da língua avançada). A ATR é importante,

    pois existem línguas, principalmente africanas, que distinguem vogais apenas

    pela posição da raiz da língua. Outra articulação secundária citada pelos

    autores são as vogais faringalizadasː [iˤ]. Nesse caso, ocorre uma retração da

    raiz da língua, e assim ocorre um estreitamento da passagem faríngea e a

    laringe se encontra levantada. Os autores citam ainda as vogais estridentes,

    vogais róticas e vogais fricativas, que não detalharemos aqui.

    Complementando a notação técnica das vogais, no caso do português,

    há, por exemplo, a possibilidade de uma vogal alongada, classificada como:

    vogal média-fechada anterior não arredondada longa, que é representada com

    o acréscimo de dois pontos: [e:].

    1.2.1.3. As vogais cardeais

    As vogais cardeais (doravante, VC) são pontos de referência para a

    caracterização de vogais em diferentes línguas, foram propostas,

    originalmente, por Daniel Jones (1960). Elas surgem da necessidade de prover

    parâmetros fixos para a descrição das vogais, pois, muitas vezes, os

    foneticistas tinham que se apoiar em sua interpretação auditiva nos seus

    trabalhos. Contudo, o objetivo de qualquer experimento é que ele possa ser

    repetido por qualquer outro pesquisador que queira testá-lo, e para isso é

    necessário que haja uma metodologia padrão e de conhecimento comum entre

    os estudiosos da área. Daniel Jones foi o linguista que propôs um quadro que

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 29

    contém oito vogais cardeais, pontos de referência arbitrários, portanto a ideia

    original é que essas vogais não pertençam a nenhuma língua. O objetivo é que

    qualquer sistema vocálico possa ser descrito tendo como base esse quadro.

    Essas vogais foram definidas por meio de critérios auditivos e articulatórios,

    mas Ladefoged e Maddieson (1996) explicam que a organização das vogais

    em uma tabela que utiliza critérios auditivos é mais baseada nos parâmetros

    acústicos do que nos articulatórios, entretanto, os parâmetros articulatórios não

    podem ser descartados na descrição fonética das vogais.

    Segundo Cristófaro Silva (1999), articulatoriamente, as VC se localizam

    nos extremos do espaço vocálico, esses extremos são marcados pelo ponto

    máximo de estreitamento sem que se produza fricção, além disso, as VC são

    invariáveis. Do ponto de vista auditivo, são equidistantes (CRISTÓFARO

    SILVA, 1999). Para a autora, o método das vogais cardeais é o mais adequado

    para a descrição de vogais de qualquer língua natural. Explica, também, que

    as línguas podem ter vogais bem próximas das cardeais, ou podem não ter

    nenhuma vogal equivalente a uma vogal cardeal. Esse método é amplamente

    utilizado, isso se reflete no fato de o IPA utilizar as vogais cardeais em seu

    quadro vocálico, que é comumente utilizado por linguistas, estudantes e no

    ensino de línguas.

    O quadro das vogais cardeais é composto por oito vogais primárias,

    sendo elas: VC1 [i]; VC2 [e]; VC3 [ɛ]; VC4 [a]; VC5 [ɑ]; VC6 [ɔ]; VC7 [o]; VC8

    [u]. Abaixo apresentamos o diagrama em forma de trapézio com as oito vogais

    cardeais primárias. Esse é um diagrama em três dimensões: no eixo vertical

    pode-se ver a altura, no eixo horizontal, a anterioridade, e na dimensão da

    profundidade está representado o arredondamento dos lábios:

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 30

    Figura 4: Vogais cardeais primárias (CRISTÓFARO SILVA, 1999, p. 135).

    Além das oito VC primárias, há ainda as vogais cardeais secundárias

    que contabilizam 14 vogais: VC9 [y]; VC10 [ø]; VC11 [œ]; VC12 [Œ]; VC13 [ɒ];

    VC14 [ʌ]; VC15 [ɤ]; VC16 [ɯ]; VC17 [ɨ]; VC18 [ʉ]; VC19 [ɘ]; VC20 [ɵ]; VC21 [ɜ];

    VC22 [ɞ]. Da VC9 até a VC16, a diferença está no arredondamento dos lábios:

    se a VC1 é não arredondada, a VC9 é sua correspondente, pois está na

    mesma posição (alta anterior), mas se diferencia por ser arredondada; a VC8 é

    arredondada, logo a sua correspondente, a VC16, é não arredondada. Quanto

    às VC17 à VC22, estas ficam em uma posição central dentro do trapézio,

    sendo as vogais do lado esquerdo não arredondadas e as que se encontram

    do lado direito, arredondadas. Chega-se, então, ao quadro completo das vogais

    cardeais, tal como apresentado no IPA:

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 31

    Figura 5: Vogais cardeais primárias e secundárias.

    Entretanto, este é um sistema de difícil aplicação já que o próprio

    Daniel Jones afirma que o valor real das vogais cardeais só pode ser aprendido

    por instrução de um professor que as conheça (PIKE, 1972; LADEFOGED,

    1993). Cagliari (1981) também reitera esse ponto, dizendo que é necessário

    um treinamento com um foneticista competente para a utilização desse

    método. Ladefoged (1993) cita outros problemas das vogais cardeais, como a

    dificuldade em saber se as vogais foram descritas com base na altura da língua

    ou em propriedades acústicas. Por outro lado, o autor afirma que as vogais

    cardeais funcionam bem e ajudaram na descrição de muitas línguas e dialetos.

    Podemos citar como trabalhos com o português que utilizaram o método das

    vogais cardeais: Cagliari (1981), Cristófaro Silva (1999) e Meirelles (2011), em

    suas descrições dos dialetos paulista, mineiro e gaúcho, respectivamente.

    1.2.2. Análise acústica de vogais

    O computador e a criação de softwares como o PRAAT16 deram um

    grande impulso aos estudos de fonética acústica, pois, tornaram mais prática

    16 BOERSMA, P. A.; WEENINK, D. Praat: doing phonetics by computer.

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 32

    uma análise que antes era pouco acessível e de extrema complexidade. Com o

    desenvolvimento dessas novas tecnologias, hoje em dia, grande parte da

    análise pode ser automática e não é necessário o uso de fórmulas matemáticas

    dificílimas, que requerem uma formação que não é comum aos cursos de

    Letras. Assim, cada vez mais, a análise acústica tem se tornado comum nas

    pesquisas linguísticas, e tem sido de grande importância para as descrições

    fonéticas de línguas e dialetos. Como afirma Silva (2010, p. 215): “Não se trata

    mais de uma fonética impressionística, mas da análise acústica, que se tornou

    extremamente acessível com o advento de softwares livres para análise

    acústica, como o Praat”.

    Segundo Silva (2010), desde o século XIX já havia trabalhos de análise

    acústica dos sons, porém, os estudos de base articulatória foram

    predominantes até o início do século XX. As descrições articulatórias utilizavam

    a técnica do raio-x para observar os movimentos dos articuladores na produção

    dos sons. Até então, os estudos acústicos não dispunham de muitos recursos

    técnicos, e por isso, eram marginais nas descrições linguísticas. A autora

    explica que o grande impulso na área ocorreu com a criação do espectrógrafo,

    em 1940, por R. K. Potter. O espectrograma possibilitou a visualização dos

    componentes dos sons da fala, o que permitiu uma análise objetiva baseada

    em dados mais concretos. O fato de a análise acústica permitir observar os

    dados em seus aspectos mais concretos facilita o diálogo entre os resultados

    de pesquisas de diferentes pesquisadores, e assim, contribui para o avanço

    dos estudos linguísticos. Após esse período inicial, outras inovações foram

    surgindo, como a automatização das análises com o auxílio dos softwares, o

    desenvolvimento de teorias explicativas, como a teoria fonte-filtro da produção

    da fala (FANT, 1960), dentre outras. A análise acústica também foi importante

    para a reintegração da Fonética aos estudos linguísticos, já que desde

    Saussure ela vinha sendo colocada à parte, ou mesmo, mais próxima das

    ciências naturais, como defendido por Trubetzkoy, (ANDERSON, 1985; SILVA,

    2010). Além disso, a análise acústica também contribui para os estudos de

    Fonologia, pois como afirma Silva (2010), essa análise permitiu a visualização

    de fatos fonéticos que são importantes para a análise fonológica.

  • Capítulo 1 - Vogais: contextualização geral 33

    Segundo Massini-Cagliari e Cagliari (2008, p. 134), a fonética acústica

    pode ser aplicada de três formas pelo linguista: “pesquisa da estrutura física

    dos sons, pesquisa de fala sintética e pesquisa de reconhecimento automático

    da fala”. Os autores ressaltam que a primeira é a mais importan