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  • Caracterizao Preliminar do Micobiota de Enchidos Tradicionais Portugueses Embalados em Atmosferas

    Protectoras

    INS FILIPA MARTINS DE ALMEIDA

    CONSTITUIO DO JRI ORIENTADOR Presidente: Doutora Teresa de Jesus da Silva

    Matos Doutor Jos Antnio Mestre Prates Vogais CO-ORIENTADOR

    Doutor Antnio Salvador Ferreira Henriques Barreto

    Doutor Antnio Salvador Ferreira Henriques Barreto

    Doutora Teresa de Jesus da Silva Matos

    Doutora Marlia Catarina Leal Fazeres Ferreira

    2009 LISBOA

  • Caracterizao Preliminar do Micobiota de Enchidos Tradicionais Portugueses Embalados em Atmosferas Protectoras

    Dissertao em Medicina Veterinria

    INS FILIPA MARTINS DE ALMEIDA

    CONSTITUIO DO JRI ORIENTADOR: Presidente: Doutora Teresa de Jesus da Silva

    Matos Doutor Jos Antnio Mestre Prates Vogais: CO-ORIENTADOR:

    Doutor Antnio Salvador Ferreira Henriques Barreto

    Doutor Antnio Salvador Ferreira Henriques Barreto

    Doutora Teresa de Jesus da Silva Matos

    Doutora Marlia Catarina Leal Fazeres Ferreira

    2009 LISBOA

  • Aos meus Pais, Ana e Filipe pela dedicao, compreenso, inspirao e prestabilidade. Ao Manuel. Ao Tiago.

  • AGRADECIMENTOS

    Gostaria de manifestar a minha mais profunda gratido queles que, de uma forma directa ou indirecta, ajudaram realizao deste trabalho, disponibilizando meios materiais, o saber e encorajamento. Professora Doutora Teresa Matos, orientadora cientfica, quero expressar o meu profundo reconhecimento pela sua inteira disponibilidade em compartilhar os seus conhecimentos e experincia, pelo entusiasmo com que sempre apoiou o trabalho realizado e pela amizade e apoio incondicional que sempre manifestou, a minha sincera estima e gratido.

    Ao Professor Doutor Antnio Barreto, da Faculdade de Medicina Veterinria, manifesto o meu agradecimento por toda a disponibilidade, apoio, interesse e incentivo demonstrados e ainda pelos ensinamentos e sugestes, o meu profundo reconhecimento e gratido. Professora Doutora Marlia Ferreira e ao Professor Doutor Jos Antnio Prates o meu agradecimento e reconhecimento pela vossa inteira disponibilidade em compartilhar comigo a larga experincia e pelo apoio que demonstraram. Dra. Belmira Carrapio expresso igualmente o meu agradecimento pelo apoio e amizade que nunca deixou de me oferecer.

    Parte dos resultados desta tese foram utilizados para a realizao dos seguintes trabalhos:

    Almeida, I.M., Barreto, A.S.H., Matos, T.J.S. - Mycological characterization of Portuguese traditional dry sausages (in modified atmosphere package) MicroBiotec 09 (Vilamoura 28, 29 e 30 de Novembro)

    Almeida, I., Matos, T. J., Barreto, A. S. - Actividade lipoltica de leveduras em enchidos tradicionais portugueses (Lipotytic activity of yeasts in Portuguese tradicional dry sausages) 4 Congresso de Cincias Veterinrias (Santarm, 27 a 29 de Novembro)

  • i

    Caracterizao Preliminar do Micobiota de Enchidos Tradicionais Portugueses Embalados em Atmosferas Protectoras

    RESUMO

    Os produtos crneos tradicionais (enchidos) apresentam uma grande variedade comercial, como resultado da diversidade das matrias-primas, dos ingredientes e dos processos de fabrico utilizados. A qualidade do produto pode estar em causa sempre que se desenvolvem microrganismos que comprometam o sabor, o cheiro, a consistncia e o aspecto destes produtos, ou seja, microrganismos envolvidos em processos glucolticos, proteolticos e lipolticos. A presena de leveduras lipolticas pode afectar a qualidade destes gneros alimentcios. A -oxidao peroxissomal das leveduras resulta na produo de perxido de hidrognio e cidos gordos livres pela degradao incompleta dos triacilgliceris. A micoflora dos enchidos tem, por isso, manifesta influncia na decomposio, afectando assim negativamente a qualidade deste tipo de produtos. Foram efectuados isolamentos e contagens da micoflora de contaminao de morcelas, chourios, farinheiras e linguias, embalados em atmosferas protectoras, em duas fases distintas do circuito comercial, de forma a avaliar o teor destes agentes: no inicio e no fim do prazo de validade do produto. Cada tipo de colnia isolada foi observada para caracterizao das morfologias (macro e microscpica) e para identificao bioqumica at espcie. A identificao das leveduras foi realizada em galerias bioqumicas convencionais e a leitura das provas bioqumicas foi efectuada automaticamente atravs do sistema ATB. Cada levedura identificada foi submetida a testes para deteco de actividade lipoltica. Utilizando Tributirina Agar foram consideradas positivas as colnias que exibiam halos transparentes na sua periferia. Na primeira fase do estudo (incio do prazo de validade), 75,00% das amostras foram positivas e apresentaram contagens entre 5,9 log UFC/g e 1,8 log UFC/g. Na segunda fase do estudo (fim do prazo de validade), apenas 33,33% das amostras foram positivas (contagens entre 5,7 log UFC/g e 3,4 log UFC/g); registando-se assim uma considervel reduo no teor das leveduras. Identificaram-se Saccharomyces cerevisiae (53,57%), Candida pelliculosa (41,00%), C. holmii (1,32%), Zygosaccharomyces spp. (0,86%), Kloeckera japonica (0,04%) e Penicillium spp. A actividade lipoltica foi detectada em 98,60% dos isolados de leveduras estudadas.

    Palavras-Chave: Produtos crneos, Qualidade, Micoflora, Actividade Lipoltica

  • ii

    Preliminary Caracterization of Mycobiota in Portuguese traditional dry sausages packed in modified atmospheres

    ABSTRACT

    Portuguese traditional meat products exhibit a great commercial variety, as a result of its raw materials, ingredients and processing diversity. Several microorganisms (lipolytic, glucolytic and proteolytic microorganism) can develop in dry smoked sausages and undertake changes on their taste, smell, consistency, flavour and aspect. Considering so, the presence and development of lipolytic yeasts can affect these products quality. Peroxissomal -oxidation of yeasts results in the production of hydrogen peroxide and free fatty acids due to their incomplete degradation. In this way, mycobiota of these products has a great influence on their quality. Random samples of Portuguese traditional dry sausages morcelas, chourios, farinheiras and linguias, packed in modified atmospheres, were collected and subjected to mycological evaluation, both in the beginning and at the end of the shelf life of the products. Yeast colonies were enumerated and each isolated colony was observed microscopically for morphological characterization and identification at genus level. Yeast identification was based in biochemical conventional kits. Lipolytic activity was tested using Tributyrin Agar. Positive colonies exhibit rise to clear digested zones surrounding the colonies. In the first study phase (in the beginning of the shelf life), 75.0% of the samples were positive and with 5.9 log UFC/g to 1.8 log UFC/g. In the second study phase (at the end of the shelf life) only 33.3% of the samples were positives (with 5.7log UFC/g to 3.4 log UFC/g). Saccharomyces cerevisiae, Candida pelliculosa (41%), C. holmii (1.32%), Zygosaccharomyces spp. (0.86%), Kloeckera japonica (0.04%) and Penicillium spp were isolated. 98.6% of them revealed lipolytic activity.

    Key words: Meat products, quality, mycobiota, lipolytic activity.

  • iii

    NDICE GERAL Pg. 1. INTRODUO 1 2. REVISO BIBLIOGRFICA 4

    2.1. DESCRIO DOS ENCHIDOS TRADICIONAIS PORTUGUESES 4

    2.1.1. Definio de enchidos 4

    2.1.2 Composio e Estrutura 6

    2.1.3. Ingredientes essenciais dos enchidos 9

    2.1.4. Composio qumica e estrutura da carne de porco e da gordura 11

    2.1.4.1. Protenas 13

    2.1.4.2. Gorduras 13

    2.1.4.3. Hidratos de Carbono 16

    2.1.4.4. Cinzas 16

    2.1.4.5. Factores que influenciam na composio da carne 17

    2.2 PROCESSO DE FABRICO DE ENCHIDOS 17

    2.2.1 Seleco da matria-prima: escolha 18

    2.2.2 Miga 18

    2.2.3 Preparao da massa e condimentao 18

    2.2.3.1. Principais condimentos utilizados 18

    2.2.4 Cura 21

    2.2.4.1. Sais utilizados na cura 21

    2.2.4.1.1. Cloreto de sdio 21

    2.2.4.1.2 Nitratos e Nitritos 22

    2.2.4.2. Principais aditivos utilizados na cura de carnes 24

    2.2.4.2.1. Acar 24

    2.2.4.2.2. Fosfatos e polifosfatos 25

    2.2.4.2.3. cido ascrbico e sais 25

    2.2.5. Maturao 26

    2.2.6 Enchimento 26

    2.2.7 Atadura e picado

    26

  • iv

    NDICE GERAL (continuao) Pg.

    2.2.8 Tratamentos para produtos curados crus e cozidos 27

    2.2.8.1. Escaldo / Cozedura 27

    2.2.8.2.Secagem 27

    2.2.8.3. Fumagem 28

    2.2.9. Evoluo dos parmetros fsico-qumicos 29

    2.2.9.1. Actividade da gua 30

    2.2.9.2. pH 30

    2.2.10. Evoluo do microbiota saprfita dos enchidos 31

    2.2.10.1. Bactrias cido-lcticas 32

    2.2.10.2. Leveduras e bolores 32

    2.3. QUALIDADE SENSORIAL DOS ENCHIDOS 34

    2.3.1 Anlise sensorial dos enchidos 34

    2.3.1.1. Propriedades sensoriais dos enchidos 35

    2.3.2. Defeitos nos enchidos. Alteraes na qualidade 37

    2.3.2.1 Efeitos na textura e aspecto 37

    2.3.2.2. Defeitos no sabor e odor 39

    2.3.4. Influncia dos microrganismos na qualidade sensorial dos enchidos 39

    2.3.4.1 Efeitos do microbiota saprfita 39

    2.4. ACTIVIDADE LIPOLTICA DAS LEVEDURAS 42

    2.4.1. Lipases 42

    2.4.2. Leveduras lipolticas 42

    2.4.2.1. Liplise peroxissomal 44

    2.4.2.2. Produtos da -oxidao peroxissomal 46

    3. OBJECTIVOS 47

    4. MATERIAL E MTODOS 48 4.1. AMOSTRAGEM 48

    4.2. ISOLAMENTO E CONTAGENS DE LEVEDURAS E BOLORES 49

    4.2.1. Preparao da amostra 49

    4.2.2. Exame micolgico 49

  • v

    NDICE GERAL (continuao) Pg. 4.2.3. Pesquisa da actividade lipoltica 50

    4.2.4. Identificao do micobiota 50

    5. RESULTADOS 41

    5.1 AVALIAO QUANTITATIVA DAS ESPCIES DE LEVEDURAS EM FUNO DO PRODUTO

    51

    5.1.1 Morcelas 51

    5.1.2. Chourios 53

    5.1.3. Farinheiras 53

    5.1.4. Linguia 54

    5.2 AVALIAO QUALITATIVA DAS ESPCIES DE LEVEDURAS EM FUNO DO PRODUTO

    54

    5.2.1. Morcelas 57

    5.2.2. Chourios 58

    5.2.3. Farinheiras 58

    5.2.4. Linguia 59

    5.2.5. Actividade lipoltica 59

    6. DISCUSSO 61

    7. CONCLUSES 66 8. BIBLIOGRAFIA 67

  • vi

    NDICE DE FIGURAS Pg. Figura 1. Formao de xido ntrico a partir de nitrato de sdio. 22

    Figura 2. Mudanas qumicas da mioglobina durante as reaces de cura 24

    Figura 3. Formao de xido ntrico a partir da reaco entre cido ascrbico e nitrito.

    25

    Figura 4. Enzimas da -oxidao peroxissomal nas leveduras. 45

    Figura 5. Leveduras e bolores em meio de Agar Dichloran Rose Bengal Chlortetracycline de uma amostra de Farinheira

    49

    Figura 6. Sistema API, ID32C Bio-Merieux, 32200 50

    Figura 7. Contagem micolgica total por amostra de morcelas no incio e no fim do prazo de validade (PV) dos produtos

    52

    Figura 8. Contagem micolgica total por amostra de chourios no incio e no fim do prazo de validade (PV) dos produtos.

    53

    Figura 9. Contagem micolgica total por amostra de farinheiras no incio e no fim do prazo de validade (PV) dos produtos.

    54

    Figura 10. Percentagens da contagem de UFC de leveduras no incio do prazo de validade.

    57

    Figura 11. Percentagens da contagem de UFC de leveduras no fim do prazo de validade

    57

    Figura 12. Teores micolgicos em Morcelas na 1 Fase do Estudo Analtico (incio do prazo de validade)

    57

    Figura 13. Teores micolgicos em Morcelas na 2 Fase do Estudo Analtico (fim do prazo de validade)

    58

    Figura 14. Teores micolgicos em Farinheiras na 1 Fase do Estudo Analtico (incio do prazo de validade)

    55

    Figura 15. Teores micolgicos em Farinheiras na 2 Fase do Estudo Analtico (fim do prazo de validade)

    58

    Figura 16. Aparncia macroscpica de Saccharomyces cerevisiae em Tributirina Agar, com actividade lipoltica.

    59

    Figura 17. Aparncia macroscpica de Kloeckera japonica em Tributirina Agar, sem actividade lipoltica.

    60

  • vii

    NDICE DE QUADROS Pg. Quadro 1. Ingredientes essenciais e facultativos dos enchidos tradicionais

    portugueses. 7

    Quadro 2. Caractersticas fsico-qumicas dos enchidos tradicionais portugueses. 8

    Quadro 3. Formato e dimenses dos enchidos tradicionais portugueses. 8

    Quadro 4. Composio qumica (g/100g) e contedo energtico (Kcal/100g) mdio da carne magra, crua e da gordura de alguns animais de abate.

    10

    Quadro 5. Composio centesimal da carne de porco. 12

    Quadro 6. Composio em cidos gordos e triacilgliceris em depsitos de gordura subcutnea.

    14

    Quadro 7. Teor relativo de cidos gordos saturados e insaturados da carne de porco.

    15

    Quadro 8. Teores mdios de colesterol (mg/100 g). 15 Quadro 9. Contedo de minerais em diferentes tecidos e alimentos. 16

    Quadro 10. Efeitos inibidores de algumas especiarias e ervas aromticas. 19

    Quadro 11. Natureza qumica e aco de alguns condimentos. 21

    Quadro 12. Principais produtos originados durante o processo de fumagem. 28

    Quadro 13. Controlo das condies do fumeiro usado na secagem, fumagem e cozedura.

    29

    Quadro 14. Valores mdios ou intervalos de valores de pH e aW da carne e de produtos crneos portugueses.

    30

    Quadro 15. Caractersticas organolpticas exteriores e interiores dos enchidos tradicionais portugueses.

    35

    Quadro 16. Etapas da anlise sensorial da textura da carne e dos produtos base de carne.

    36

    Quadro 17. Principais defeitos de enchidos e sua relao com o microbiota. 41

    Quadro 18. Espcies de leveduras lipolticas e localizao celular das enzimas lipolticas

    43

    Quadro 19. Identificao das amostras analisadas. 48

    Quadro 20. Teores micolgicos encontrados no inicio e no fim da vida comercial til de produtos de salsicharia tradicional portugueses embaladas em atmosferas protectoras.

    51

    Quadro 21. Distribuio do micobiota total identificado na 1 Fase do estudo por amostra.

    55

    Quadro 22. Distribuio do micobiota total identificado na 2 Fase do estudo por amostra.

    56

  • viii

    Abreviaturas E Smbolos

    aW

    Actividade da gua

    CoA Coenzima A

    COPS - Produtos de oxidao do colesterol

    DOP Denominao de Origem Protegida

    EFSA European Food Safety Agency (Autoridade Europeia para Segurana dos Alimentos) Eh Potencial de oxidao-reduo

    et al. et alii

    ETG - Especialidade Tradicional Garantida

    FSIS - Food Safety Inspection Service

    HACCP - Hazard Analysis and Critical Control Points (Anlise de Perigos e Controlo de Pontos Crticos) IGP - Indicao Geogrfica Protegida

    Kcal Quilocaloria NP Norma Portuguesa

    pH - Potencial hidrogeninico

    PV Prazo de validade

    QPS - Qualified Presumption of Safety (presuntivamente qualificado seguro) SI Sistema Internacional de Unidades

    UFC Unidades Formadoras de Colnias

    As unidades utilizadas seguem as unidades bsicas (grandeza massa) e derivadas (grandeza temperatura) do Sistema Internacional de Unidades (SI) e para a grandeza tempo unidades no SI em uso com o Sistema Internacional.

  • 1

    1. INTRODUO

    As caractersticas orogrficas do territrio nacional e a mirade de povos ou sociedades que se foram entrecruzando no territrio portugus ao longo da Histria, deram origem a uma fuso de culturas muito especial.

    Entre as melhores expresses dessa fuso de influncias que se conjugaram para encontrar solues engenhosas que permitiram maximizar a utilizao dos por vezes fracos recursos disponveis, citam-se os produtos tradicionais portugueses. Os queijos dos Pastores Lusitanos dos montes Hermnios, o azeite, o vinho e as conservas de peixe dos Romanos, as azeitonas e os frutos secos dos Gregos, as carnes salgadas e os enchidos dos Visigodos e dos Judeus, as compotas dos monges de Cister, os cominhos, a canela e a pimenta desembarcados da ndia, o acar do Brasil. Tudo religiosamente guardado nas mais recnditas memrias no fundo dos vales e nas encostas das serras de Portugal; nas aldeias medievais, nos montes esquecidos da planura alentejana; tudo modelado pela alquimia das talhas, das dornas, dos alguidares, dos odres, dos fumeiros, dos roupeiros, nas melarias, das atafonas, das barricas de sal e dos fornos de lenha. Tudo memria, tudo cultura, tudo ancestralidade.

    Os produtos alimentares tradicionais so um testemunho da memria, um valor que emerge do saber emprico, apurado pelo engenho, consagrado pelos laos afectivos que nos ligam s nossas origens; uma referncia s nossas razes mais slidas e uma convocatria aos sentimentos que nutrimos pelos smbolos distintivos da nossa singularidade.

    De facto, os nossos antepassados foram apurando saberes, afirmando sabores, cuidando de manter reserva nos pormenores, dos segredos milenares que ciosamente foram passando de gerao em gerao at chegarem aos nossos dias.

    Carnes de vitela, de anho, de cabrito, de leito, de porco, de caa, ervas aromticas, sal, condimentos, so salgadas, malaxadas, fermentadas, curadas, fumadas, maturadas, escaladas, cozidas, salmouradas, esmiuadas, enchidas, ensacadas, assadas, escaldadas secas, submetidas a manipulaes cheias de pequenas sabedorias empricas ou artesanais; produzidos com os sedimentos da experincia ancestral e da tradio; impregnados, por vezes, de afectividade e de simbolismos.

    Paios, paiolas, painhos, salpices, chourios, linguias, morcelas, farinheiras, alheiras, presuntos, duros, cidos, avinhados, moles, doces, acres, speros, picantes, salgados, frescos. Todo um universo de possibilidades de gostos, de paladares, que povoam a nossa memria colectiva e que so um acervo de saberes nicos, modos de produo ancestrais, perpetuados, genunos, respeitadores do ambiente, das terras e dos Homens..

    Com a globalizao e a adeso natural a novos hbitos de consumo, as sociedades ocidentais tendem a partir em busca de solues mais simples e prticas para resolver o problema das suas rotinas alimentares. Nesta perspectiva adoptam-se

  • 2

    comportamentos alimentares relativamente padronizados, indiferenciados, iguais aos de todos os outros cidados de qualquer parte do mundo. Por vezes alguns dos enchidos tradicionais portugueses no se adaptam exactamente s necessidades restritivas de determinados regimes dietticos, especialmente os que buscam o emagrecimento. Por isso muitos dos nossos produtos tradicionais no devem ser ingeridos na rao diria de modo sistemtico. Os produtos alimentares tradicionais so mais vocacionados para assumir a dimenso de uma iguaria, de um acepipe, de uma quase relquia, que encerra tambm em si toda a carga simblica ligada tradio, cultura e memria das coisas boas que herdmos dos nossos antepassados.

    Os modos de produo alimentares portugueses so parte integrante do Mercado nico da Unio Europeia. Neste contexto estamos naturalmente obrigados a cumprir as regras e respeitar os requisitos que sejam considerados fundamentais para o funcionamento do Mercado interno europeu. Os produtos alimentares tradicionais portugueses no so excepo; so parte integrante desse Mercado, embora a uma escala quase insignificante, em termos econmicos.

    Para se poderem produzir e colocar gneros alimentcios nesse Mercado necessrio cumprir uma srie de regras que tm vindo a ser estabelecidas, com maior rigor, pela Unio Europeia desde 2002. Essas regras esto estabelecidas em legislao nacional e comunitria e fundamentam-se em conhecimentos cientficos e tcnicos. Actualmente os diplomas europeus da Segurana sanitria dos alimentos so baseados na melhor cincia.

    A legislao fundamental que enquadra as actividades de produo de gneros alimentcios corresponde genericamente aos Regulamentos (CE) n. 178/2002 de 28/01; n. 852 e 853/2004 de 29/04. O controlo oficial que necessrio exercer sobre os sistemas e modos de produo organiza-se nos moldes estabelecidos no Regulamento (CE) n. 882/2004 de 29/04. Nestes regulamentos estabelecem-se princpios e regras que tm de ser respeitadas por todos os operadores econmicos europeus do sector alimentar. A citada legislao estabelece que a responsabilidade pela garantia de que os alimentos produzidos no prejudicam a sade dos consumidores, cabe inteiramente aos agentes econmicos desses gneros alimentcios. Para isso tm de aplicar um sistema de controlo interno baseado nos princpios do HACCP. Esse sistema assenta numa metodologia de base cientfica que se reveste de alguma complexidade e exige um elevado nvel de especializao por parte de quem a aplica.

    Ora entre a cincia e a tecnologia em que assentam a legislao europeia e o empirismo das caractersticas artesanais da maior parte dos produtos alimentares tradicionais portugueses, existe um abismo colossal. Entre os graus centgrados que so monitorizados pelos sensores termo-pares electrnicos que registam automaticamente e corrigem as temperaturas de maturao das pastas de carne que so usadas no fabrico industrial de uma salsicha e as mos de uma artes transmontana que acariciam diariamente as carnes do alguidar, migadas e mantidas

  • 3

    durante cinco dias temperadas nas vinhas-de-alho, h um mundo de distncia que no se pode mensurar. Se no possvel medir no existe cincia. E assim de facto: os produtos tradicionais so sobretudo arte, saberes que transcendem a frias regras da Fsica ou da Qumica. Para adequar as disposies legais europeias, faz-las cumprir e at fiscalizar a sua aplicao, colocam-se, a este propsito, mltiplos desafios, quer s entidades reguladoras quer, sobretudo, aos prprios artesos. Recentemente foram adoptadas medidas especiais para proteco dos produtos tradicionais produzidos a uma escala artesanal.

    Tambm os tcnicos que do apoio a este tipo de produes tm de ser capazes de distinguir entre o que artesanal e o que industrial, entre o que tradicional e o que tpico, entre o que verdadeiramente emprico e o que uma tentativa de imitao do empirismo.

    Sempre que um enchido tradicional, como por exemplo a Alheira de Mirandela ou a Morcela de Portalegre deixa de ser produzido a uma escala domstica ou artesanal e passa para uma escala de produo industrial, obviamente que, embora estejamos perante produtos tradicionais, no deixam de ter de obedecer s regras que se aplicam a todos os gneros alimentcios industrializados. Industrializao significa cincia e portanto capacidade para medir fenmenos fsicos, qumicos e biolgicos.

    Os regulamentos anteriormente citados prevem expressamente no seu articulado que as legislaes de cada Estado Membro possam flexibilizar as exigncias em termos de cumprimento dos procedimentos de auto-controlo (ou do HACCP) por parte dos operadores. Essa flexibilizao pode ocorrer sempre que o modo de produo tiver um baixo ndice de desenvolvimento tecnolgico e o volume de produo for reduzido e/ou temporrio ou sazonal. As regras e os critrios que definem o modo como se podem flexibilizar estas exigncias tm de ser devidamente fundamentadas e comunicadas oficialmente Comisso Europeia.

    Uma das formas de o procedimento de registo se tornar mais clere o recurso apresentao de Manuais de Boas Prticas, produzidos pelas associaes respectivas. Nesses manuais esto contidos, de modo resumido, os requisitos a que se refere o pargrafo 3, do art. 2 do Despacho Regulamentar n. 38/2008 de 4 de Julho.

    Existe hoje a conscincia generalizada de que os produtos alimentares tradicionais oriundos de diferentes zonas do territrio nacional, so motores da valorizao econmica dos recursos locais e do acesso ao emprego e ao rendimento, e contribuem para potenciar o ndice demogrfico local, a iniciativa empresarial, a relao com factores de inovao e com o mercado. Estas produes, para alm de terem uma Histria, so um factor importante na ajuda ao rendimento dos pequenos produtores rurais e das respectivas famlias. Esta importncia tem evoludo ao longo do tempo, e conhecido valorizaes que concorrem para ajustamentos econmicos e para gerar oportunidades.

  • 4

    A proteco e a manuteno de uma matriz produtiva com condies de valorizao no mercado e de criao de emprego nas zonas rurais, interiores e j desertificadas, ajudam na convergncia para a sustentabilidade. evidente que a cincia tem de dar alguns contributos para que estes produtos possam ir encontrando progressivamente as fundamentaes tcnicas que so necessrias respectiva sustentabilidade. Uma das questes a que urge dar consistncia cientfica adequada a das evidncias analticas em que assenta a atribuio dos tempos de vida comercial atribudos a estes produtos.

    No caso dos enchidos tradicionais portugueses os fungos constituem um dos grupos microbianos que normalmente responsabilizado pela respectiva decomposio. Para obstar a essa aco decompositora desencadeada pelos fungos utilizam-se, a nvel industrial, acondicionamentos fsicos que limitam a possibilidade de desenvolvimento desses agentes, tornando-se assim possvel prolongar a vida comercial destas produtos. O objecto deste trabalho centra-se em torno do efeito das atmosferas sobre o micobiota que coloniza aqueles enchidos.

    Os enchidos tradicionais portugueses, para alm de constiturem uma marca da cultura e da etnografia nacional, so um patrimnio socioeconmico muito importante para a sustentabilidade do meio rural e das macroeconomias locais, gerando independncia econmica, emprego e modos de subsistncia autnomos. O fabrico e comrcio de enchidos tradicionais esto entre as manifestaes da cultura popular mais perenes em Portugal.

    As principais ameaas preservao deste patrimnio, to especial, pode decorrer quer da diminuio do nmero de pessoas que se dedicam actividade, quer da interveno das autoridades oficiais que, por fora da aplicao da legislao europeia, possam vir a impor regras desproporcionais e desajustadas da realidade socioeconmica em que estas actividades se inscrevem. A maior parte das pequenas produes de enchidos tradicionais portugueses efectuada no meio rural, com baixos ndices de desenvolvimento tecnolgico e tcnico-cientfico o que constitui um srio obstculo adopo de prticas harmonizadas com a cada vez mais exigente legislao europeia.

    A caracterizao do microbiota dos enchidos tradicionais portugueses reveste-se de interesse na medida em que a composio bioqumica das diferentes matrizes e as caractersticas ecolgicas intrnsecas destes produtos so propcios ao desenvolvimento de fungos osmoflicos e lipoflicos. Estes agentes podem ter dois tipos de papis principais:

    - Por um lado beneficiar as caractersticas organolpticas de alguns produtos, especialmente os que so sujeitos a processos de maturao, beneficiando o sabor, o aroma e a consistncia;

    - Por outro, podem ser responsveis pela conservao dos enchidos na medida em que os fungos se conseguem multiplicar nestas matrizes mais cidas, mais salgadas e mais secas.

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    2. REVISO BIBLIOGRFICA

    2.1. DESCRIO DOS ENCHIDOS TRADICIONAIS PORTUGUESES

    2.1.1. Definio de enchidos

    Os enchidos so produtos crneos pertencentes ao grupo dos preparados base de carne, os quais se definem como produtos transformados resultantes da transformao da carne ou da ulterior transformao desses produtos transformados, de tal modo que a superfcie de corte vista permita constatar o desaparecimento das caractersticas da carne fresca (Regulamento (CE) n. 853/2004). A elaborao de enchidos constitui uma forma de conservao da carne.

    O termo carne curada aplicado numa vasta gama de produtos crneos, apesar do seu significado depender com o tipo de produto e o seu pas de origem. Tradicionalmente, um produto crneo curado implica a utilizao de um sal (cloreto de sdio, nitrato ou nitrito) que produz coloraes e sabores caractersticos no produto. Os enchidos tradicionais portugueses so produtos nicos que tm normalmente origem em zonas geogrficas que so, em regra, associadas respectiva designao comercial, e que tm uma forte ligao ao desenvolvimento dessa regio, de tal forma que possvel demonstrar que a qualidade do produto influenciada pelas raas animais, pela natureza dos solos, da vegetao, do clima e pela tecnologia de fabrico.

    A produo de alimentos tradicionais, tanto de forma artesanal como a um nvel mais industrializado, dever ser enquadrada segundo as exigncias actuais de higiene/salubridade, numa dupla perspectiva: de proteco do consumidor e de valorizao econmica dos recursos locais. Os consumidores tm tendncia para valorizar especialmente as caractersticas psico-sensoriais (organolpticas) e nutricionais dos produtos tradicionais, embora tambm tenham vindo a dar cada vez mais importncia segurana dos alimentos.

    Neste contexto surgiram estratgias de valorizao comercial dos produtos tradicionais, atravs da certificao e consequente atribuio das marcas: Denominao de Origem Protegida (DOP), Indicao Geogrfica Protegida (IGP) e Especialidade Tradicional Garantida (ETG). O processo de certificao um recurso importante para a proteco destes produtos, uma vez que, para alm de se procurar assegurar as condies de higiene com que estes so produzidos, tambm se busca o respeito pelos mtodos de fabrico tradicionais, garantindo, assim, a autenticidade e a origem dos produtos.

    Entre a enorme variedade de enchidos produzidos em Portugal, podem destacar-se:

    a) Alheira enchido curado pelo fumo, constitudo por carne de diversas espcies (carne de vitela, de porco e de animais de capoeira, ou de espcies

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    cinegticas) por po e gordura de porco adicionadas de certos condimentos e aditivos legalmente autorizados (NP 598 (1969)). b) Chourio de carne enchido fumando e/ou curado de calibre estreito e de formato varivel constitudo por carne de suno e gordura rija de suno, em fragmentos macroscopicamente visveis, adicionados de condimentos e aditivos (NP 589 (2006)) O chourio de carne pode ser classificado de: Chourio de carne tradicional, Chourio de carne extra (com teor de gordura livre inferior a trs vezes do teor em protena total) e Chourio de carne corrente (com teor de gordura livre inferior ao dobro do teor em protena total) c) Chourio mouro enchido curado pelo fumo e constitudo sobretudo por gorduras e vsceras de porco, frescas ou tratadas pelo frio, finamente fragmentadas, adicionadas de condimentos (sal, pimenta e cravinho) e aditivos. Exteriormente apresenta uma cor negra, brilhante, consistncia semi-mole. Ao corte, a massa deve ser homognea, perfeitamente ligada de aspecto marmoreado e brilhante (NP 595 (1990)). d) Chourio de sangue enchido tratado por escaldo, constitudo basicamente por sangue e gorduras de porco, adicionados de condimentos, nomeadamente, pimenta, vinagre e cravinho e aditivos (NP 594 (1990)). e) Morcela enchido tratado por escaldo e/ou fumo, constitudo basicamente por gorduras de porco, finamente fragmentadas, e sangue, adicionados de condimentos e aditivos (NP 593 (1990)). Os ingredientes essenciais so as gorduras macias, picada e sangue fresco de porco.

    f) Linguia enchido fumado constitudo exclusivamente por carne e gordura de porco picadas, adicionadas de condimentos e, eventualmente, aditivos (NP 590 (1989)), cujo teor de gordura livre seja inferior a duas vezes e meia o teor em protena total

    g) Cacholeira enchido tratado por escaldo e/ou pelo fumo, constitudo por fgado, e outros rgo internos, e gorduras de porco frescas ou tratadas pelo frio, finamente fragmentados e adicionados de condimentos e aditivos. Exteriormente tem cor castanha escura, baa ou brilhante, consoante o tipo, consistncia semi-mole (NP 596 (1990)). h) Salpico enchido volumoso curado pelo fumo, constitudo exclusivamente por carnes e gorduras de porco (gordura rija em quantidade no superior a 20% da massa), frescas ou tratadas pelo frio, pouco fragmentas, adicionadas de certos condimentos e aditivos legalmente autorizados (NP 591 (1989)). i) Farinheira enchido curado pelo fumo, de massa grumosa, em forma de ferradura ou direita, constituda por gorduras de porco (no inferior a 45% da massa total dos ingredientes utilizados), frescas ou tratadas pelo frio, farinha de trigo, adicionadas dos condimentos tradicionais e aditivos (NP 597 (1983))

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    2.1.2 Composio e Estrutura

    Tendo em conta as descries acima mencionadas, os enchidos tradicionais portugueses so, semelhana dos outros enchidos, constitudos essencialmente por carne de porco (com excepo da farinheira e da alheira) e gordura de porco (Quadro 1). Desta forma, interessa caracterizar os enchidos tradicionais portugueses de acordo com as suas caractersticas fsico-qumicas (Quadro 2).

    Quadro 1. Ingredientes essenciais e facultativos dos enchidos tradicionais portugueses.

    Ingredientes Essenciais Ingredientes facultativos

    Alheira

    NP 598 (1969)

    Carne de vitela, de porco e de animais de capoeira, ou espcies cinegticas, po de trigo, gorduras macias de porco, presunto curado

    Sal, pimenta, alho, azeite

    Chourio de Carne

    NP 589 (2006) Carne de suno

    Gordura rija de suno

    Couratos, gua, pimento, alho, vinho, sangue e/ou hemoglobina em quantidade estreitamente necessria para reforar a cor, sal, acar e/ou dextrose, especiarias, aromas e fumo lquido (apenas para chourio de carne corrente e para chourio de carne extra), protenas de origem animal e/ou vegetal (apenas para chourio de carne corrente)

    Chourio mouro

    NP 595 (1990)

    Gorduras macias fragmentadas, bucho e tripa grossa previamente cozidos e, eventualmente, vsceras torcicas, sangue

    Tecido muscular, sal, pimenta, cominhos.

    Morcela

    NP 593 (1990) Gorduras macias, picadas e sangue fresco de porco

    Produtos ricos em amido, sal, pimenta, cominhos

    Linguia

    NP 590 (1989) Carne e gordura rija de proso isentam de courato

    Massa de pimento, colorau, alho, sal

    Farinheira

    NP 597 (1983)

    Gordura de porco, fresca ou tratado pelo frio, farinha de trigo, gua potvel

    Sal refinado, vinho branco

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    Quadro 2. Caractersticas fsico-qumicas dos enchidos tradicionais portugueses.

    Caractersticas fsico-qumicas

    Chourio de Carne

    NP 589 (2006)

    Chourio de carne tradicional

    Relao fosfatos/protenas inferior ou igual a 0,03 %. Sempre que este valor for superior, dever ser demonstrado que o fosfato j existia em excesso na matria-prima ou que no foi adicionado no processo de fabrico, atravs de registos da rastreabilidade.

    Chourio de carne extra:

    - Gordura livre: inferior ao dobro do teor em protenas totais

    - Protenas totais: mn. 19 %

    - Humidade do produto desengordurado: inferior a 65 %

    - Colagnio: inferior a 13 % do teor de protenas totais

    Chourio de carne corrente:

    - Gordura livre: inferior a trs vezes ao teor em protenas totais

    - Protenas totais: mn. 16 %

    - Humidade do produto desengordurado: inferior a 65 %

    - Colagnio: inferior a 30 % do teor de protenas totais

    Linguia

    NP 590 (1989)

    Gordura total inferior a duas vezes e meia ao teor de protena total

    Protena total mnimo 17 %

    Humidade do produto desengordurado: inferior a 65%

    Colagnio inferior a 13 % do teor de protena bruta

    Farinheira

    NP 597 (1983)

    Gordura mnimo 38 %

    Protenas totais mn. 6%

    Humidade inferior a 5,5 vezes o teor de protenas (tolerncia 10 %)

    Quanto estrutura, forma e dimenso este tipo de produto apresenta uma relativa homogeneidade, tendo, no entanto, que cumprir alguns parmetros (Quadro 3).

    Quadro 3. Formato e dimenses dos enchidos tradicionais portugueses.

    Formato e dimenses

    Alheira NP 598 (1969) Formato de ferradura, com comprimento entre 20 e 25 cm.

    Farinheira NP 597 (1983)

    Forma de ferradura (tradicional) e direita (industrial) com comprimento no superior a 35 cm.

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    Quadro 3. Formato e dimenses dos enchidos tradicionais portugueses (continuao)

    Formato e dimenses

    Chourio de Carne

    NP 589 (2006)

    - Chourio de tradicional: forma de ferradura individualizada por atadura com calibre compreendido entre os 25 e 40 mm e at 50 cm em comprimento linear. - Chourio de carne extra: Forma de ferradura, curva, rectilnea, individualizada por toro, atadura ou dupla clipsagem com calibre compreendido entre os 25 e 40 mm e o comprimento at 50 cm. - Chourio de carne corrente: Forma de ferradura, curva, rectilnea, individualizada por toro, atadura ou dupla clipsagem com calibre compreendido entre os 25 e 40 mm e o comprimento at 50 cm.

    Chourio mouro

    NP 595 (1990)

    Forma de ferradura, curva, rectilnea, individualizada por toro, atadura ou dupla clipsagem, de dimetro varivel, com dimetro segundo o tipo de tripa utilizado e o comprimento entre 20 a 25 cm.

    Chourio de sangue

    NP 594 (1990) Forma de fiada ou de cadeia, comprimento unitrio mdio, entre 10 a 15 cm.

    Morcela

    NP 593 (1990)

    Forma de ferradura, curva, rectilnea, individualizada por toro, atadura ou dupla clipsagem, de dimetro varivel, com dimetro segundo o tipo de tripa utilizado e o comprimento at 50 cm.

    Linguia

    NP 590 (1989) Formato linear, comprimento varivel e de dimetro no superior a 22 mm.

    Salpico

    NP 591 (1969)

    Formato cilindride, com 14 a 18 cm de comprimento de 3,5 a 4,5 cm de espessura e para o salpico bucho (de porco) formato globoso com espessura inferior a 6 cm.

    2.1.3. Ingredientes essenciais dos enchidos

    A carne de porco a principal matria-prima da maioria dos produtos crneos transformados. essencialmente de origem suna, salvo as alheiras onde so introduzidas as carnes brancas (aves e caa) classificada de carne magra, uma vez que o teor em gordura se encontra inferior a 5%. A composio qumica do msculo varia segundo a espcie animal, idade e zona muscular em causa (Pearson e Young, 1992). Em termos gerais, a carne fresca contm cerca de 75% de gua, 18% de protenas, 3,5% de substncias no proteicas solveis e 3% de gordura (Quadro 4). O contedo energtico relativamente baixo, 112 Kcal/100g de carne crua. Na gordura pura os valores so maiores, em torno de 830 Kcal/100g. Comparando os valores pode-se concluir que a carne de porco das mais magras e das que possui o valor proteico mais elevado (Tabela de Composio dos Alimentos, 2007).

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    Quadro 4. Composio qumica (g/100g) e contedo energtico (Kcal/100g) mdio da carne magra, crua e da gordura de alguns animais de abate. (Adaptado de Tabela de Composio dos Alimentos, 2007; SEU, 1991; Price e Schweigert, 1994)

    Carnes gua Protena Gordura Minerais Contedo energtico

    Porco 75,1 22,8 1,2 1,0 112 Vaca 75,0 22,3 1,8 1,2 116 Vitela 76,4 21,3 0,8 1,2 98 Carneiro 75,7 21,4 1,3 1,2 103 Frango Peito 75,0 22,8 0,9 1,2 105 Frango Coxa 74,7 20,6 3,1 - 116 Peru Peito 73,7 24,1 1,0 - 112 Peru Coxa 74,7 20,5 3,6 - 120 Pato 73,8 18,3 6,0 - 132 Ganso 68,3 22,8 7,1 - 161 Gordura de porco 7,7 2,9 88,7 0,7 812 Gordura de vaca 4,0 1,5 94,9 0,1 854

    O operador dever assegurar que a matria-prima cumpre todos os requisitos de salubridade, e que so respeitadas as regras de transporte e armazenagem, durante os quais a temperatura no dever exceder os 4 C. O controlo das caractersticas da matria-prima um passo importante para garantir a segurana dos produtos (Incke, 1998). O termo carne muscular (carne em sentido estrito), diz respeito exclusivamente ao tecido muscular esqueltico com os vasos, os nervos e os tendes, que representa cerca de 40-50% do peso corporal total (Pearson e Young, 1992). O msculo-esqueltico composto por fibras musculares associadas a pequenas quantidades de tecido conjuntivo, vasos sanguneos e nervos. As fibras musculares esquelticas so clulas musculares que se dispem longitudinalmente umas sobre as outras formando os msculos (Prandl et al., 1994). Os mltiplos ncleos da cada fibra muscular encontram-se imediatamente sob a membrana citoplasmtica, enquanto que a maior parte do interior da fibra est preenchida por miofibrilas. Entre as miofibrilas esto alojados outros organitos, como numerosas mitocndrias e grnulos de glicognio. Cada miofibrilas uma estrutura filamentosa que se estende de uma extremidade do msculo outra. As miofibrilas compem-se de duas espcies de filamentos proteicos chamadas miofilamentos: os finos e os grossos. Estes miofilamentos organizam-se em unidades altamente especializadas chamadas sarcmeros, que se unem topo a topo para formas as miofibrilas (Prandl et al., 1994). Cada sarcmero estende-se de um disco Z para o disco Z imediato. O arranjo dos miofilamentos finos e grossos d miofibrila uma aparncia em bandas, estriada quando vista longitudinalmente. Cada banda I (banda clara) inclui um disco Z e estende-se de cada lado do disco Z para as extremidades dos miofilamentos grossos.

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    A banda I corresponde a miofilamentos finos. Cada banda A (banda escura) corresponde aos miofilamentos grossos. A zona onde os filamentos no se sobrepem a banda H (que fica dentro da banda A) (Prandl et al., 1994). Ao contrrio do tecido msculo-esqueltico, o tecido muscular cardaco e os msculos lisos so auto-rtmicos. Isto , contraem-se em intervalos aproximadamente regulares, sem que seja sempre necessria a estimulao nervosa ou hormonal para essa contraco. Alm disso, e ao contrrio do msculo-esqueltico, o msculo liso e o msculo cardaco no esto sob o controlo consciente directo. Pelo contrrio so controlados involuntariamente, ou inconscientemente, pelo sistema nervoso autnomo e pelo sistema endcrino (Prandl et al., 1994).

    2.1.4. Composio qumica e estrutura da carne de porco e da gordura

    A composio bioqumica da carne de porco oferece excelentes condies para a multiplicao da maioria dos microrganismos (Quadro 5). Ao nvel da estrutura, o tecido conjuntivo e as bainhas tendinosas constituem barreiras naturais que impedem a penetrao dos microrganismos nas partes profundas da massa muscular. O mesmo se pode dizer do tecido adiposo subcutneo e intermuscular. A multiplicao microbiana inicia-se com particular rapidez nos locais de corte em que as fibras cortadas transversalmente ficam desprotegidas (Prandl et al., 1994). A carne fresca apresenta valores de aW compreendidos entre 0,985 e 0,995, o que constitui um parmetro ideal para desenvolvimento dos microrganismos, mesmo os mais exigentes, nomeadamente bacilos Gram negativos (Prandl et al., 1994). Em relao ao pH, a carne fresca apresenta valores de pH compreendido entre 5,6 e 6,2 aps concluso do processo de maturao. A influncia destes valores sobre o crescimento dos microrganismos responsveis pela decomposio da carne desprezvel. Todavia, a taxa de crescimento das enterobactericeas e microrganismos psicotrficos atenuada quando o valor de pH inferior a 5,8 (Prandl et al., 1994). O potencial oxidao reduo valor Eh da carne e rgos frescos varia sobretudo de acordo com a quantidade dos grupos sulfidrilo presentes nos enchidos e dos grupos Heme da mioglobina. Este parmetro determina se ocorre preferencialmente o desenvolvimento dos microrganismos aerbios ou dos anaerbios. Os processos enzimticos consumidores de oxignio, assim como o metabolismo microbiano, diminuem o valor Eh, favorecendo a flora anaerbia (Prandl et al., 1994). As substncias que se originam nos processos metablicos, tanto dos tecidos corporais, como dos microrganismos, podem influenciar o desenvolvimento do microbiota; o caso do dixido de carbono, cuja formao exerce aco inibidora sobre numerosos microrganismos, e os cidos que se produzem no decorrer da maturao da carne, entre os quais o cido actico, butrico e o cido lctico que, em termos quantitativos, o mais importante (Prandl et al., 1994). Por outro lado, a

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    ausncia de oxignio favorece os microrganismos anaerbios estritos, entre os quais se inclui um dos mais perigosos perigos sanitrios: Clostridium botulinum. Quadro 5. Composio centesimal da carne de porco. (Adaptado de Tabela de Composio dos Alimentos, 2007)

    Alm das caractersticas intrnsecas da carne, as caractersticas do ambiente envolvente nomeadamente temperatura, tenso de gases e o vapor de gua, tambm afectam directa ou indirectamente (uma vez que influenciam parmetro como actividade da gua), a multiplicao dos microrganismos (Prandl et al., 1994).

    Parmetro Unidade Teor mdio Variao Parmetro Unidade Teor mdio Variao

    Energia kJ 1439 Equivalentes da niacina NE 5,47

    Protena, total G 15,0 11,1 21,5 Niacina mg 2,8

    Total-N g 2,40 1,78 3,44 Triptofano mg 2,67

    Gordura, total g 32,0 19,2 45,9 Vitamina B6 mg 0,237 0,164 0,306

    cidos gordos saturados g 11,7

    cido pantotnico mg 0,60

    cidos gordos monoinssaturados g 13,5 Biotina g 2.60 1,4 4,8

    cidos gordos polinssaturados g 3,58 Folatos g 3

    Carbohidratos, total

    g 0 Vitamina B12 g 0,7

    lcool g 0 Vitamina C mg 0 Cinzas g 0,8 Sdio mg 55 48,2 60,8

    Humidade g 52,8 49,7 - 55,5 Potssio mg 204 89 - 339

    Vitamina A RE 0 Clcio mg 6 4 - 8

    Retinol g 0

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    2.1.4.1. Protenas

    O teor em protenas com alto valor biolgico uma caracterstica positiva da carne. Sob o ponto de vista da solubilidade, as protenas podem ser classificadas em: Protenas solveis em gua ou em solues salinas diludas. Compreende numerosas protenas sarcoplasmticas e constituem 30-35% do total de protenas musculares. Muitas so enzimas metablicas (mitocondriais, lisossomais, microssomais, do ncleo e citoplasmticas) e inclui a mioglobina. Pode ainda remanescer alguma hemoglobina apesar da maioria do sangue ser retirado durante o sangramento do animal. A mioglobina a protena responsvel pela cor vermelha da carne e a sua quantidade depende do tipo de fibra muscular e da espcie animal. Geralmente a quantidade de mioglobina aumenta com a idade do animal (Flores et al., 1999). Protenas solveis em solues salinas concentradas ou protenas miofibrilares (actina, miosina, troponina e tropomiosina, entre outras). Estas protenas so importantes na contraco muscular e nas modificaes post-mortem (Flores e Bermell, 1995); Protenas insolveis em solues salinas concentradas. So protenas do tecido conjuntivo (colagnio, elastina e reticulina) consideradas protenas do estroma, e enzimas da respirao e fosforilao oxidativa. O colagnio o principal componente do tecido conjuntivo, que encontrado na pele, tendes e fazendo parte do tecido msculo-esqueltico, fornece suporte estrutura muscular. Torna-se menos macio com a idade pelo aumento do nmero e tipo de ligaes entre as fibras. A elastina encontrada em menores quantidades e nas paredes dos vasos arteriais (Flores e Toldr, 1999). A solubilidade das protenas da carne o principal factor que determina as propriedades de suculncia. A solubilidade influenciada pelo pH, temperatura e incio do rigor-mortis (Flores et al., 1997).

    2.1.4.2. Gorduras

    A carne foi classificada como alimento rico em gordura e apontada de forma crtica, quanto ao aspecto de alimentao saudvel. As tabelas de composio qumica da carne divulgadas normalmente so antigas e ultrapassadas e apresentam um teor de matria gorda elevado, o que no observado actualmente. Os lpidos presentes no msculo esqueltico podem atingir valores entre 1 a 13% do total muscular, dependendo do grau de engorda e a quantidade de tecido adiposo (Flores e Toldr, 1999). A maioria dos lpidos encontram-se distribudos intramuscularmente, intermuscularmente e no tecido adiposo (Flores e Toldr, 1999). Os lpidos intramusculares so constitudos sobretudo por triacilgliceris, armazenados em clulas adiposas e fosfolpidos localizados nas membranas celulares. A quantidade de colesterol em carne magra cerca de 50mg/100g (Flores e Toldr, 1999).

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    Os lpidos intermusculares e do tecido adiposo so compostos maioritariamente por triacilgliceris e pouca quantidade de colesterol (40-50mg/100g). Existem dois grandes grupos de lpidos no msculo: os lpidos apolares, a maioria triacilgliceris e os fosfolpidos (Flores e Toldr, 1999). Os triacilgliceris constituem a maior poro da gordura. A relao dos cidos gordos que os formam depende da idade, da alimentao e do ambiente onde o animal se encontra. A composio da gordura reflecte a dieta do animal, especialmente em porco e aves. Nos ruminantes a disponibilidade dos nutrientes condicionada pela flora ruminal (Flores e Toldr, 1999). A gordura animal sobretudo constituda por cidos gordos saturados e monoinsaturados, no caso dos ruminantes; tende a ser mais macia (com aparncia oleosa) e mais propensa oxidao quanto mais rica for em cidos gordos polinsaturados for, como por exemplo, em cidos linolico e linolnico (Ruiz-Carrascal et al., 2000). As gorduras de bovinos e ovinos possuem maior proporo de cidos gordos saturados e gorduras trans, enquanto que nas de sunos e aves predominam os cidos gordos insaturados (Quadro 6). A maioria dos cidos gordos insaturados da carne de porco apresenta-se na forma cis (Quadro 7), caracterstica que lhe confere vantagens dietticas (SEU, 1993). Os fosfolpidos esto presentes em menores quantidades mas tm uma grande importncia para o desenvolvimento do flavor e da oxidao em carne post mortem. So compostos com uma proporo de cidos gordos polinsaturados relativamente alta comparando com os lpidos neutros. Os fosfolpidos variam com a gentica do animal e com a localizao anatmica do msculo. Desta forma, a quantidade de fosfolpidos tem tendncia a ser maior em msculos vermelhos oxidativos do que nos msculos brancos glicolticos (Ruiz-Carrascal et al., 2000).

    Quadro 6. Composio em cidos gordos e triacilgliceris em depsitos de gordura subcutnea. (em % do total de cidos gordos ou % de triacilgliceris). (Adaptado de Forrest et al., 1979)

    Componente Frango Suno Bovino Ovino cidos Gordos

    Lurico 12:0 - vestgios 0,1 0,1 Mirstico 14:0 0,1 1,3 4,5 3,2 Palmtico 16:0 25,6 28,3 27,4 28,0 Esterico 18:0 0,7 11,9 21,1 24,8

    Saturados Totais 42,7 41,5 53,7 57,7 Palmitoleico 16:1 (C9) 7,0 2,7 2,0 1,3 Oleico 18:1 (C9) 20,4 47,5 41,6 36,4 Linoleico 18:2 (n-6) - 0,2 0,5 0,5 Linolnico 18:3 (n-3) 21,3 6,0 1,8 3,5

    Insaturados Totais 67,3 58,5 46,3 42,3

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    Quadro 6. Composio em cidos gordos e triacilgliceris em depsitos de gordura subcutnea (em % do total de cidos gordos ou % de triacilgliceris). (Adaptado de Forrest et al., 1979) (continuao)

    Componente Frango Suno Bovino Ovino Triacilgliceris

    Totalmente saturados Tripalmitina 1 3 vestgios Dipalmitoestearina 2 8 3 Palmitodiestearina 2 6 2

    Mono-oleo-dissaturados leodipalmitina 5 15 13 leopalmitoestearina 27 32 28 leodiestearina - 2 1

    Di-leo-monossaturados Palmitoldiolena 53 23 46 Estearodiolena 7 11 7 Triolena 3 0 0

    Quadro 7. Teor relativo de cidos gordos saturados e insaturados da carne de porco (Adaptado de Tabela de Composio dos Alimentos, 2007)

    cidos gordos total g / 100 g % Soma saturados 11.7 39.8

    Soma monoinsaturados 13.5 46.0

    Soma polinsaturados 3.58 12.2

    Soma n 3 0.30 1.01

    Soma n 6 3.28 11.2

    Trans 0.15 0.49

    O colesterol uma substncia encontrada na membrana celular de toda clula animal, sendo necessria para sua existncia. A carne magra possui, em mdia 70 mg de colesterol por 100 g de carne crua. Os valores dos enchidos variam de acordo com a quantidade de gordura (Quadro 8).

    Quadro 8. Teores mdios de colesterol (mg/100 g). (*alimentos crus) (Adaptado de Tabela de Composio dos Alimentos, 2007; SEU, 1991)

    Alimento Colesterol Carne de Vaca* 70 Carne de Porco* 70 Carne de Aves* 75 Carne de Animais Silvestres* 110 Enchidos 85-100

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    2.1.4.3. Hidratos de Carbono.

    A carne pobre em hidratos de carbono, sendo os principais os polissacridos (glicognio) e os monossacridos (glicose e frutose). O contedo em glicognio varia com o tipo de msculo e actividade. No animal vivo, aproximadamente 1,5%, e aps as modificaes post-mortem, diminui para 0,1%. As vsceras comestveis so mais ricas em hidratos de carbono do que a carne. O fgado bovino possui entre 2 a 4% e o de suno 1% de hidratos de carbono (Prandl et al., 1994).

    2.1.4.4. Cinzas

    O contedo de cinzas ou resduo mineral fixo, obtido aps incinerao da carne a 500-600 C, est compreendido entre 0,8 a 1,8%. Entre as funes importantes que exercem os ies orgnicos e inorgnicos destacam-se: o clcio e o magnsio desempenham um papel importante na contraco muscular; os compostos orgnicos com fsforo, com diversos steres do cido fosfrico intervm nas modificaes post-mortem, no processo de maturao da carne e hidratao da carne (Price et al., 1994). A carne possui quase todos os minerais de importncia para a nutrio humana. Em termos quantitativos, o fsforo e o potssio so os mais importantes (Quadro 9). A relao entre potssio e sdio favorvel na carne, j o sdio encontra-se em quantidade escassa. Os produtos crneos processados so ricos em sdio devido a adio de sal refinado, na proporo de 2 a 3% durante a elaborao (Prandl et al., 1994). A carne tambm uma boa fonte de oligoelementos como o zinco e o ferro. A importncia da carne como fonte de ferro no se baseia somente no elevado teor mas tambm na alta biodisponibilidade do ferro proveniente da carne (Tabela de Composio dos Alimentos, 2007).

    Quadro 9. Contedo de minerais em diferentes tecidos e alimentos. (Adaptado de Tabela de Composio dos Alimentos, 2007; SEU, 1991; Price et al., 1994)

    Tecidos/ Alimentos Ca (g/100g) Na (g/100g) K (g/100g) Fe (g/100g) Total corporal 2,0 0,15 0,35 4,0 Carne de vaca 0,013 0,084 0,33 3,0 Carne de porco - 0,07 0,4 1,3

    A carne possui vitaminas hidrossolveis do grupo B, como vitaminas B1, B2, B6 e B12. As vitaminas lipossolveis, como vitamina A e D, encontram-se em quantidades importantes nas vsceras, principalmente no fgado (Tabela de Composio dos Alimentos, 2007). A carne de porco uma importante fonte de vitamina B1, enquanto que a carne de outros animais de abate contm esta vitamina em menores quantidades (Price et al., 1994). A carne e seus produtos derivados tambm possuem cido nicotnico, pantotnico e flico.

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    2.1.4.5. Factores que influenciam na composio da carne

    Existem muitos factores que influenciam a composio da carne, repercutindo-se nas propores acima apresentadas entre espcies, raas e mesmo animais da mesma raa (Flores e Toldr, 1999). Para alm destes dois destacam-se ainda: o sexo, geralmente os machos possuem menor quantidade de gordura subcutnea do que as fmeas; a idade, uma vez que medida que o animal cresce, aumenta quase todos parmetros qumicos, com o prejuzo do teor em gua, os animais jovens possuem pouca quantidade de gorduras subcutneas e intramuscular, e no apresentam marmoreado; nutrio pois o nvel de alimentao sobre o crescimento de animais de carne reflecte-se na composio de diversos msculos e no teor de gorduras intramusculares (Schwab, 1998); localizao anatmica, factor intrnseco mais complexa na medida em que existe variaes na composio qumica dos msculos de diferentes localizaes e o exerccio, a modificao mais acentuada ocorre no teor de mioglobina, que relativamente mais elevada nos msculos mais activos do que nos msculos menos activos (Flores e Toldr, 1999).

    2.2 PROCESSO DE FABRICO DE ENCHIDOS

    Nas ltimas dcadas o processo de fabrico de enchidos passou a ser maioritariamente industrial, apesar de se basear nos processos de elaborao tradicionais. As variaes introduzidas no processo de elaborao tradicional relacionam-se principalmente com a mecanizao dos processos e a utilizao de cmaras de secagem e/ou fumagem com controlo de temperatura e humidade relativa, conseguindo-se desta forma uma produo contnua ao longo do ano, sem influncia das condies climatricas, com o qual a maturao dos mesmos se pode realizar em qualquer zona geogrfica.

    O processo de produo de enchidos compreende basicamente as etapas de escolha, miga, preparao da massa e condimentao, maturao, enchimento, atadura e picado e tratamento trmico (Incze, 1998). Apesar da diversidade do tipo de enchidos tradicionais portugueses produzidos de diferentes matrias-primas e modos de elaborao, a produo de enchidos baseia-se em dois pilares fundamentais (Kramlich, 1976):

    i) Estabilizao da Matria-Prima Nesta fase pretende-se que o produto precedente se transforme num produto estvel temperatura ambiente, evitando o desenvolvimento de alteraes microbianas que conduzam putrefaco do mesmo. Isto conseguido nas chamadas etapas frias e que correspondem s primeiras etapas de elaborao dos enchidos: escolha, miga, preparao da massa e condimentao.

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    ii) Desenvolvimento das caractersticas sensoriais Atravs de alteraes dos componentes dos enchidos, protenas e lpidos, alcanam-se as caractersticas sensoriais que caracterizam estes produtos. Produzem-se reaces qumicas e enzimticas que conduzem formao de compostos spidos e aromticos que conferem as qualidades organolpticas caractersticas dos enchidos. Estas reaces ocorrem na segunda fase de produo que corresponde maturao ou cura.

    A tecnologia de produo de enchidos varia segundo o pas produtor. A descrio que se segue relativa ao fabrico de enchidos tradicionais portugueses.

    2.2.1 Seleco da matria-prima: escolha

    A escolha consiste na seleco das carnes e das gorduras mais adequada a cada tipo de enchidos. O critrio de escolha das carnes para o fabrico de enchidos deve permitir a obteno de uma massa de composio equilibrada entre as fraces muscular e lipdica, como descrito anteriormente, e de forma a cumprir os mnimos e mximos estipulados pelas Normas Portuguesas. Um baixo teor em gordura reflecte-se, por exemplo, na qualidade da maior parte dos chourios, que se tornam secos e quebradios, prejudicando a sua aparncia, textura e flavor (Sousa e Ribeiro, 1983).

    2.2.2 Miga

    A miga uma operao que tem por objectivo reduzir os pedaos de carne, de gordura ou vsceras, a fragmentos mais pequenos, e cujas dimenses variam em funo do tipo de enchido (Sousa e Ribeiro, 1983).

    2.2.3 Preparao da massa e condimentao

    Os pedaos de carne e de gorduras migados so colocados em recipientes nos quais so adicionados outros ingredientes essenciais ou facultativos em funo da natureza do enchido: gua, vinho ou vinagre, arroz, po, farinha, sangue, salsa, pimento, alho, cominhos, cravinho, canela, erva-doce. Tem como objectivo principal obter uma ligao homognea de todos os ingredientes (Janeiro, 1948).

    2.2.3.1. Principais condimentos utilizados

    Os condimentos tradicionalmente mais utilizados so o alho, a massa de pimento e o colorau. Estas substncias so de extrema importncia, uma vez que conferem caractersticas organolpticas desejveis e apreciveis, contribuindo para a tipicidade

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    dos produtos. Tem sido demonstrado um papel importante destes condimentos na inibio da actividade dos microrganismos de degradao e patognicos (Quadro 10). Por outro lado, parece que favorecem o crescimento de bactrias lcticas promovendo a fermentao lctica.

    As especiarias so definidas como substncias aromticas de origem vegetal, utilizadas com a funo de fornecer sabores e aromas, no contribuindo para o valor nutricional dos produtos. Muitas ervas e especiarias exercem um efeito antioxidante, sendo bastante teis para prevenir a oxidao das gorduras. Adicionalmente apresentam propriedades anti-microbianas, prevenindo o crescimento de bactrias indesejveis (patognicas e de decomposio). As especiarias desempenham um papel importante na maturao (Incze, 1998). Estudos cientficos evidenciam as propriedades anti-microbianas de muitas especiarias e ervas aromticas (Quadro 10). Foi descrito que a adio de alho, cravinho e canela, na concentrao de 1%, tem uma aco inibitria sobre a bactria patognica E. coli O157:H7 em enchidos fermentados secos. Foi mostrado que um nvel de 7,5% de alho e cravinho destruiu 99% da populao daquela bactria no mesmo produto, no impedindo, no entanto, o arranque da fermentao pela actividade de bactrias lcticas (Snyder, 1997). Outros estudos revelaram que especiarias e ervas como menta, alho, orgos, canela e tomilho tm um poder inibitrio contra Listeria monocytogenes. A menta revelou um poder inibitrio moderado enquanto que as outras mostraram uma maior eficcia. Bactrias do tipo Clostridium botulinum, C. sporogenes e C. perfringens foram inibidas na presena de alho, cebola, canela, tomilho, orgos, alho, pimento e pimenta branca. O alho e a pimenta branca tm um maior efeito de inibio sobre as clulas vegetativas (Snyder, 1997). Nenhuma das especiarias mostrou um efeito significativo sobre a germinao dos esporos, com excepo de uma pequena reduo na taxa da germinao da bactria esporulada Bacillus subtilis (Snyder, 1997).

    Quadro 10. Efeitos inibidores de algumas especiarias e ervas aromticas. (Adaptado de Snyder, 1997) Espcimen Aco inibitria sobre: Potncia

    Alho Salmonella, Escherichia, Staphylococcus, Bacillus, Candida e Aspergillus(micotoxinas) Fraco

    Cebola Aspergillus flavus e A. parasiticus (micotoxinas) Fraco Canela Aspergillus flavus e A. parasiticus (micotoxinas) Forte Cravinho Aspergillus flavus e A. parasiticus (micotoxinas) Forte Gengibre Aspergillus flavus e A. parasiticus (micotoxinas) Mdio Mostarda Aspergillus flavus e A. parasiticus (micotoxinas) Forte Pimenta Aspergillus flavus e A. parasiticus (micotoxinas) Mdio

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    Quadro 9. Efeitos inibidores de algumas especiarias e ervas aromticas. (Adaptado de Snyder, 1997) (continuao) Espcimen Aco inibitria sobre: Potncia

    Orgos Aspergillus spp. Salmonella e Vibrio parahaemolyticus Mdio

    Menta Bacillus cereus, Staphylococcus e Vibrio parahaemolyticus Mdio

    Louro Clostridium botulinum Mdio

    Salva Bacillus cereus, Staphylococcus e Vibrio parahaemolyticus Mdio

    Tomilho Vibrio parahaemolyticus Mdio

    De acordo com Sousa e Ribeiro (1983), o pimento maduro o condimento mais comum no chourio de carne. Utiliza-se o pericarpo do pimento doce (Capsicum annum L.), reduzido a pasta, mais ou menos fermentada por Lactobacillus e salgada, ou desidratada e reduzida a p fino comercialmente denominado Colorau Doce.

    Janeiro (1948) indica outras especiarias, usadas noutros tipos de salsicharia regionais portugueses, nomeadamente canela, amndoa, salsa e pimenta.

    Muitas das substncias presentes nas especiarias funcionam como verdadeiros agentes bacteriostticos (Quadro 11). Porm as concentraes em que so empregues nos produtos crneos com o objectivo de melhorar o flavor, no so suficientes para que funcionem como conservantes. De facto, muitas das especiarias no tratadas podem contribuir significativamente para os nveis bacterianos da massa de enchido em fase de pr-processamento (Kramlich, 1976). Segundo este autor o uso de especiarias tambm pode servir para disfarar os aromas e sabores anormais, resultantes da decomposio microbiana ou de outro tipo de alteraes.

    Quadro 11. Natureza qumica e aco de alguns condimentos. (Adaptado de Janeiro, 1948)

    Origem Substncia activa Actividade

    Cominho Carcum carvi

    Zonas temperadas Carvo, terpenos Micosttico

    Sabor e Aroma Cebola Alhum cepa

    Europa central e sul Ac. Isotiacinico Bacteriostctico Sabor e Aroma

    Cravo Szygium aromaticum

    Molucas, frica Oriental Eugenol, vanilina

    Bacteriostctico Sabor e Aroma

    Alho Allium sativum

    Europa central e sul Alicina Bacteriostctico Sabor e Aroma

    Pimento Capsicum annuum

    Europa, E.U.A. Capsicana Bacteriostctico

    Cor e Aroma

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    2.2.4 Cura

    Consiste na introduo e distribuio das substncias com aco de cura. Existem trs procedimentos diferentes para esta adio: cura seca, cura hmida ou salmoura e injeco de salmoura enchido (Sousa e Ribeiro, 1983).

    2.2.4.1. Sais utilizados na cura

    No grupo tradicional dos agentes qumicos da afinao incluem-se o cloreto de sdio, nitritos e/ou nitratos e aucares. Misturas de especiarias so por vezes adicionadas aos produtos crneos com o propsito de favorecer o flavor. Nas concentraes que so empregues, os sais de cura tm um efeito conservante. A maior parte dos produtos crneos curados so decompostos pelo desenvolvimento de bactrias Gram positivas, leveduras e bolores. A adio de sais de cura cria um meio bacteriologicamente selectivo, no qual apenas um grupo restrito de microrganismos capaz de se multiplicar. Quando aplicados em associao estes agentes tm maior eficcia conservante do que quando usados individualmente (Urbain, 1976).

    2.2.4.1.1. Cloreto de sdio

    O cloreto de sdio (NaCl), sal comum, um componente de grande importncia nas misturas de cura empregues em carnes. A uma concentrao suficiente de sal inibe o crescimento microbiano ao aumentar a presso osmtica do meio do alimento, com a consequente reduo da actividade da gua (Wirth, 1993). O crescimento de algumas bactrias inibido em concentraes baixas como 2% de NaCl, mas outros microrganismos halotolerantes, so capazes de crescer em concentraes salinas elevadas, incluindo o ponto de saturao (Wirth, 1993). O sal em baixas concentraes faz a carne reter gua, mas, em altas concentraes, as protenas so precipitadas e retm menos gua. Teores de 3 a 4% de sal no produto aproximam-se do limite para muitos consumidores (Wirth, 1993). Todas as frmulas de cura de carnes contm sal. As concentraes empregues (2-3%) no exercem aco conservadora, e seu principal papel actuar como agente saborizante (Wirth, 1993).

    2.2.4.1.2 Nitratos e Nitritos

    As finalidades da utilizao de nitrato de sdio ou potssio e nitrito de sdio ou potssio so o desenvolver da cor caracterstica da carne curada e funcionar como

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    bacteriosttico em meio cido (Vsgen, 1993). O nitrato bastante empregue nas misturas de carnes, entretanto, o seu papel, tanto na cura como na conservao, ainda no est totalmente esclarecido (Vsgen, 1993). O nitrato actua como fonte de nitrito, o que permite que a carne mantenha um nvel de nitrito eficaz para a sua conservao. O nitrato reduzido a nitrito mediante um processo bacteriano mas, para que a quantidade reduzida seja significativa, necessrio um nmero de bactrias razoavelmente alto, o que pode ser prejudicial aos produtos crneos (Vsgen, 1993). A tolerncia ao nitrito varia amplamente entre diferentes grupos de bactrias. Nas frmulas de cura, podem ser adicionados nitrito de sdio ou nitrito de potssio.

    Nos sistemas biolgicos, o io nitrito ou o cido nitroso pode intervir em muitas reaces qumicas.

    Como consequncia desta reaco, o nitrito adicionado pode desaparecer durante a cura de carnes.

    As reaces mais importantes so do xido ntrico (NO), que derivado do cido nitroso, com os pigmentos heme da carne.

    O sumrio das reaces qumicas mais importantes desde a converso de nitrato de sdio a nitrito de sdio at a formao de xido ntrico pode ser esquematizado da seguinte forma:

    Figura 1. Formao de xido ntrico a partir de nitrato de sdio.

    A Figura 2 indica as vrias formas qumicas para a reaco de cura. Este esquema no mostra a complexidade existente.

    O principal pigmento da carne no momento de submet-la cura a mioglobina. Na presena de nitritos e outros subprodutos de reaco deste composto, os pigmentos da carne podem sofrer alteraes que dependem de factores intrnsecos (pH, potencial de xido-reduo, actividade enzimtica) e extrnsecos (aditivos, acidificao e aquecimento). Como o nitrito um agente oxidante da mioglobina, a reaco inicial

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    consiste na converso da mioglobina e oximioglobina em metamioglobina (Vsgen, 1993). O xido ntrico pode combinar-se com a metamioglobina originando a nitrosometamioglobina, que pode reduzir-se a nitrosomioglobina (pigmento da carne curada sem aco do calor). Esta reduo pode ser realizada na carne naturalmente ou por redutores adicionados na mistura de cura (Pohlheim et al., 1981). A nitrosometamioglobina o pigmento final das carnes curadas submetidas ao aquecimento. Esta reaco implica a desnaturao da parte proteica da mioglobina, mas a estrutura heme fica intacta e associada ao xido ntrico. A cor do nitrosohemocromognio rosa, em contraste com a nitrosomioglobina que possui uma cor mais avermelhada. A cor do pigmento desnaturado (nitrosohemocromognio) mais estvel do que o pigmento nitrosomioglobina. O nitrosohemocromognio estvel ao calor, porm instvel luz e oxidaes (Pohlheim et al., 1981) (Figura 2).

    2.2.4.2. Principais aditivos utilizados na cura de carnes

    2.2.4.2.1. Acar

    O acar conserva os alimentos quando adicionado em concentraes muito elevadas. As concentraes utilizadas na cura de carnes (0,5 a 1,0%) no chegam a ter alguma aco conservadora.

    Este aditivo adicionado com dois objectivos bsicos (Wirth, 1994): - o primeiro a funo de dar sabor, proporcionando uma combinao de doce-salgado, suavizando o sabor derivado de especiarias e condimentos utilizados no produto e mascara o gosto amargo do nitrito.

    - a segunda funo, de igual importncia, e que tem um significado especial na produo de enchidos secos, a de servir como fonte de energia para as bactrias responsveis pela reduo de nitrato a nitrito, na primeira etapa do processo de formao de cor na cura de carnes e posterior desenvolvimento das bactrias acidolticas responsveis pela diminuio do pH no produto.

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    Figura 2. Mudanas qumicas da mioglobina durante as reaces de cura (Price e Schwergert, 1994).

    2.2.4.2.2. Fosfatos e polifosfatos

    Diversas classes de fosfatos tm sido utilizadas principalmente para diminuir as perdas durante o processamento e para melhorar a estabilidade das emulses crneas (Bard et.al, 1976). Contribuem com a fora inica dos fluidos crneos, mantendo as fibras mais separadas, aumentando por esse motivo, a capacidade de reteno de gua das mesmas. Este efeito tambm atribudo ao aumento do pH pela adio destes sais. Possuem um poder sequestrante dos ies metlicos bivalentes (clcio e magnsio) cuja remoo favorece a hidratao das cadeias peptdicas das protenas. A sua utilizao est restrita num valor mximo de 0,5% no produto final (Marcy et al., 1988; Flores et al., 1996).

    (castanho)

    (castanho)

    (castanho)

    (castanho)

    NITROSOHEMO-CROMOGNIO

    (rosa)

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    2.2.4.2.3. cido ascrbico e sais O cido ascrbico (vitamina C), cido isoascrbico (eritorbato) e os seus sais so teis para melhorar e reter a cor em produtos curados. Quando so adicionados em emulses, o tratamento trmico pode ser realizado imediatamente e o produto adquire cor de cura uniforme em toda a massa (Prandl et al., 1994). O cido ascrbico acelera a reaco de cura ao reduzir a quantidade metamioglobina. Visto que, em determinadas condies, o nitrito e o cido ascrbico reagem quimicamente entre si, possvel que sua aco principal se deva ao aumento de produo de xido ntrico, dando uma quantidade superior a obtida normalmente do cido nitroso (Prandl et al., 1994).

    HNO2 + cido ascrbico NO + cido dehidroascrbico + H2O Figura 3. Formao de xido ntrico a partir da reaco entre cido ascrbico e nitrito.

    No recomendvel, no entanto, o uso directo do cido, mas sim o seu sal, o ascorbato ou isoascorbato, porque pode ocorrer reaces prematuras HNO2 causando liberao de NO e consequente perda desse xido e a diminuio brusca do pH, provocado pela presena do cido podendo promover a quebra da emulso do produto a ser enchido (Prandl et al., 1994). Por medidas econmicas, prefervel o uso de um ismero do ascorbato de sdio, ou seja, o isoascorbato de sdio.

    2.2.5. Maturao

    operao de cura propriamente dita segue uma fase que se designa maturao (Prandl et al., 1994). Nesta fase pretende-se intensificar o aroma da cura e outras caractersticas organolpticas e estabilizar a cor do curado destes produtos. Desta forma pasta dos enchidos, depois de amassada, submetida a um repouso, durante o qual ocorre o fenmeno de maturao espontnea, na qual o sal, a gua, e por vezes, quando adicionados, o vinho e o vinagre, e os microrganismos desempenham importantes funes (Sousa e Ribeiro, 1983). Durante esta fase do processo o produto sofre uma maturao lctica. Esta introduz alteraes nas caractersticas da massa conferindo-lhe um sabor mais cido. A fermentao pode ocorrer naturalmente ou, nalguns casos ser dirigida atravs da adio de uma cultura de arranque de bactrias lcticas, Pediococcus, Micrococcus, Leuconostoc, e Lactobacillus e espcies como P. cerevisiae, P. acidilactici, M. aurantiacus e L. plantarum so as mais utilizadas (Vasilopoulos et al., 2008). A diminuio de pH torna a matriz hostil ao desenvolvimento de microrganismos indesejveis. Poder ainda afectar a actividade da gua ao originar uma maior reteno de gua pelas protenas, resultando numa menor quantidade de gua disponvel e livre para os processos metablicos.

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    No entanto, existem alguns fungos que podem crescer nestas condies. O sal adicionado carne nesta fase aumenta a presso osmtica e pode interferir com o processo de fermentao. A adio de quantidades muito elevadas ou muito baixas poder provocar o crescimento de bactrias lcticas indesejveis, tendo como consequncia a obteno de um produto sem as caractersticas pretendidas (Prandl et al., 1994).

    2.2.6 Enchimento

    Esta operao consiste em introduzir a pasta no invlucro que lhe destinado. A tripa natural utilizada deve estar em boas condies higinicas e ntegra, de modo a suportar as presses necessrias obteno de um enchimento compacto. O enchimento realiza-se de forma que a pasta entre sob presso de modo a preencher a tripa e, ao mesmo tempo conseguir a dilatao mxima compatvel com a sua elasticidade. Caso contrrio ficam espaos cheios de ar que prejudicam a qualidade dos produtos favorecendo a ramificao e a decomposio (Janeiro, 1948).

    2.2.7 Atadura e picado

    Terminado o enchimento a pea comprimida e ajustada mo pelo lado externo obtendo-se uma distribuio uniforme. A forma de atar varia conforme as tradies locais e o produto fabricado. Aps a atadura os enchidos tradicionais so picados em toda a extenso com agulha para facilitar a sada de ar e gua indesejveis (Janeiro, 1948).

    2.2.8 Tratamentos para produtos curados crus e cozidos

    A funo desta etapa provocar a desidratao e a intensificao dos fenmenos bioqumicos de liplise e de protelise. As temperaturas aplicadas nesta etapa so consideravelmente superiores s anteriores. Os fenmenos proteolcos e lipolticos que ocorrem nesta etapa so muito importantes e vo influenciar de forma directa a textura, o aroma e o sabor dos enchidos. Pode efectuar-se por trs processos: escaldo, fumagem e atmosfera ambiente (Prandl et al., 1994).

    2.2.8.1. Escaldo / Cozedura

    O emprego de um tratamento trmico garante, em alguns processos, a eliminao de microrganismos patognicos (Prandl et al., 1994). Este processo ter que combinar adequadamente os parmetros tempo e temperatura para que seja eficiente. Segundo

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    a FSIS (1999) deve cumprir-se a temperatura mnima de 54,5 C durante 121 minutos ou 60,5 C durante 10 minutos, para este tipo de produtos.

    O escaldo produz nos enchidos transformaes fsicas dos ingredientes, que se evidenciam pela mudana de cor, que de vermelho mais ou menos intenso passa a rosado, mais ou menos plido ou a acinzentado, e modificaes qumicas. O escaldo deve ser efectuado lentamente para que o calor penetre uniformemente no interior da massa. Este processo de cura em geral complementado com fumagem (Prandl et al., 1994). Este processo aplica-se a alheiras e morcelas de arroz.

    2.2.8.2.Secagem

    A secagem atmosfrica consiste na colocao dos enchidos em cmaras com controlo e temperatura e humidade (Prandl et al., 1994). A durao varivel (10-120 dias), dependendo do tipo de produto, dimetro e tamanho. Este dever conter no final 30-40% de humidade.

    Segundo a FSIS (1999), para produtos de salsicharia secos e curados, a relao entre humidade e protena dever ser menor ou igual a 1,9. Esta razo poder subir para 3,1 se o pH se mantiver em valores iguais ou inferiores a 5,0. O aumento desta razo, com consequente aumento da humidade do produto final para 50% ou mais, faz com que estes produtos necessitem de ser refrigerados.

    A secagem dever ser controlada de modo a evitar que o produto fique demasiado seco ou com demasiada humidade. Neste caso poder ocorrer o crescimento excessivo de bolores e leveduras e, ainda, o aparecimento de limo superfcie. O processo deve ser executado para que a gua seja eliminada do centro para a periferia do produto.

    2.2.8.3. Fumagem

    A fumagem tem efeitos preservativos, melhora a aparncia e flavor. Os processos tecnolgicos de refrigerao e embalagem a vcuo tm feito com que a defumao tenha menor importncia com a finalidade de preservao (Prandl et al., 1994). A mudana na textura superficial resultado do efeito de secagem da fumagem, os pigmentos dos componentes da fumagem e a formao das resinas contribuem para a formao da colorao. A formao da colorao escura no desejvel, produzida pela reaco dos compostos da fumagem com as protenas da carne e a acumulao excessiva de substncias de alcatro produz colorao mais escura (Hortein, 1976). A fumagem consiste na colocao dos produtos em cmaras, estufas ou fumeiros, ou suspensos numa lareira, de modo a ficarem regulamente expostos ao fumo resultante da combusto lenta de madeiras duras como o Azinho, Faia, Sobro, Amieiro, sob a forma de toros, aparas, conforme se pretende fumo quente ou frio (Sousa e Ribeiro, 1983).

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    O fumo usado na fumagem dos produtos crneos produz-se em duas etapas: pirlise, que consiste na decomposio trmica dos componentes da madeira e na formao de determinados produtos de reaco, e oxidao de uma parte destes produtos de decomposio, com presena de oxignio (Hortein, 1976). Os compostos fenlicos e formaldedo depositados como material resinoso na carne tem propriedades bacteriostticas e os fenis providenciam tambm alguma proteco contra oxidao de gordura (Quadro 12). Quadro 12. Principais produtos originados durante o processo de fumagem. (Sousa e Ribeiro, 1983). Produto Aco lcool metlico Antissptica cido pirolenhoso Diminui o pH e o metanol produz steres cido carbnico No actua Anidrido carbnico No actua

    Aldedos Antissptica

    Cetonas Antissptica

    steres Aromatizante Fenis e Cresis Antissptica e aromatizante; desenvolvem cor caramelo

    3,4 benzopireno e 1,2,5,6 fenantreceno

    Carcinognicos e formam-se a altas temperaturas de combusto

    A temperatura a que os enchidos so submetidos varia muito em funo da actividade do fogo e da distncia a que dele se situam, mas pode afirmar-se que o processo artesanal caracteriza-se por longos perodos de fumagem pouco intensa, a temperaturas que raramente ultrapassam os 70 C (Sousa e Ribeiro, 1983) (Quadro 13).

    Quadro 13. Controlo das condies do fumeiro usado na secagem, fumagem e cozedura (Sousa e Ribeiro, 1983) Funo Tempo T C do fumeiro % Humidade Vlvula

    Secagem 30 min 51,6 25 Aberta

    Fumagem (*) 1 hora 60,0 35 Fechada Cozedura 1 hora 73,9 35 Fechada

    Cozed. c/ vapor 10 min 82,2 100 Fechada

    (*) Fumagem considerada a quente. Existe outro tipo de fumagem na qual so usadas temperaturas abaixo dos 30 C - fumagem a frio. este tipo que praticado na maioria dos enchidos e dos produtos crneos curados

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    A fumagem usada com a finalidade de secar e curar a carne, adicionando sabores e aromas ao produto final. Em termos de segurana alimentar este processo importante porque contribui para a inibio do crescimento/actividade bacteriana no produto final (Bard e Towsend, 1976). O fumo desempenha, ento, um papel importante do ponto de vista tecnolgico, por conferir, caractersticas de sabor e aroma. tambm relevante o seu papel como conservante, visto que os seus componentes tm alguns efeitos microbiostticos. A desidratao que ocorre, tambm contribui para a inibio do crescimento bacteriano na carne fumada. Os componentes fenlicos conferem um certo grau de proteco anti-oxidante das gorduras (Bard e Towsend, 1976). A desidratao da superfcie, a coagulao proteica e a deposio de material resinoso, resultante da condensao de formaldedo e de fenol, produzem uma eficaz barreira fsico-qumica, contra o desenvolvimento e penetrao bacteriana no produto final (Bard e Towsend, 1976).

    2.2.9. Evoluo dos parmetros fsico-qumicos

    As caractersticas sensoriais dos enchidos dependem principalmente da matria-prima utilizada e do processo tecnolgico aplicado. Durante o processamento dos enchidos ocorrem uma srie de alteraes que afectam a sua composio e estrutura e que influenciam decisivamente para as caractersticas sensoriais do produto acabado.

    2.2.9.1. Actividade da gua

    A carne crua contm cerca de 75% de gua (Prandl et al., 1994). A reduo da actividade da gua (aW) nos alimentos torna menos favorveis as condies de multiplicao e actividade dos microrganismos, entre os quais, os envolvidos nas alteraes dos produtos e os patognicos. A aco inibitria da aW potenciada por determinados factores como o pH, o potencial oxidao-reduo, a temperatura e a presena de certas substncias (Prandl et al., 1994). Os produtos de salsicharia tradicional portuguesa apresentam uma humidade intermdia (0,60 < aW < 0,90 e podem ser armazenados sem recurso ao frio. A aW um parmetro importante para a estabilidade destes alimentos. No entanto, necessrio ter em ateno que a heterogeneidade das matrias-primas utilizadas conjuntamente com diferentes processos de fabrico, faz com que sejam obtidos produtos com caractersticas diferentes e, consequentemente, com valores de aW diferentes. No intervalo de aW entre 0,60 e 0,90, existem determinados microrganismos (bactrias, bolores e leveduras) que se podem manter activos (Peres, 2000).

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    2.2.9.2. pH

    Os valores de pH da carne crua de porco variam entre 5,6-6,0. Durante o processo de fabrico dos enchidos este valor pode baixar para 4,5 (Prandl et al., 1994). Este parmetro exerce, tal como a aW, uma importante funo na estabilidade dos produtos alimentares. A inibio dos microrganismos pode ser conseguida aumentando a acidez (reduzindo o pH) pela adio de cidos fracos ou atravs da fermentao lctica (por aco das bactrias lcticas). Em resumo, poder afirmar-se que a estabilidade dos produtos crneos e de salsicharia fortemente influenciada pela combinao dos seguintes 3 factores: aW, pH e temperatura de armazenagem.

    Na Quadro 14 apresenta-se os valores de pH e aW encontrados em produtos crneos portugueses.

    Quadro 14. Valores mdios ou intervalos de valores de pH e aW da carne e de produtos crneos portugueses. (Adaptado de Peres, 2000)

    Produto pH aW

    Carne fresca de vaca 5,4-5,8 0,98

    Carne fresca de porco 5,6-6,0 0,98

    Enchidos Fumados >4,5

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    al., 1990). O nmero destes microrganismos inicialmente presentes na matria-prima pode estar afectado pelas condies de transporte, armazenamento, refrigerao (Carrascosa et al., 1989) assim como pelo tempo de armazenamento (Langlois e Kemp, 1989). O tempo decorrido entre a obteno da carne e a sua transformao pode tambm produzir uma diminuio no valor de aW na superfcie da mesma e dificultar o crescimento de microrganismos na superfcie (Carrascosa et al., 1989). Os enchidos, como muitos outros produtos alimentares, so originariamente contaminados por uma vasta gama de gneros microbianos. Todavia combinaes especficas de parmetros ambientais, quer intrnsecos, quer extrnsecos, seleccionam os que so capazes de sobreviver e competir sob as condies ecolgicas criadas ao longo do processo (Buchanan, 1986, cit in van Holy, 1992). Os principais grupos de microrganismos saprfitas existentes nos enchidos so os microrganismos mesofilos, os microrganismos halotolerantes, os cocos Gram positivos, catalase positivos, as bactrias cido-lcticas, os bolores e as leveduras (Vasilopoulos et al., 2008). Determinados enchidos como o chourio, o salsicho e o paio tm que experimentar uma fermentao lctica para adquirir o seu aroma caracterstico. A obteno destes produtos depende do desenvolvimento de bactrias lcticas que contaminam as massas de carne empregues na produo dos enchidos (Kramlich, 1976). Como exemplifica van Holy (1992), um processo trmico moderado, pode eliminar formas vegetativas de psicotrficos e mesfilos, e limitar assim, a quantidade e variedade de potenciais competidores com bactrias mais resistentes ao calor (termodricas). Um estudo levado a cabo por van Holy (1992), em salsichas de Viena, revelou a presena de um largo espectro de gneros bacterianos Gram + e Gram -. Tendo sido obtidos isolados de Pseudomonas, Serratia, Proteus, Bacillus, Micrococcus e Staphylococcus.

    Alm das bactrias lcticas, so tambm frequentemente isoladas Enterobacteriaceae, leveduras e bolores (Dykes et al., 1991; Andersen, 1995; Zurera-Cesano et al., 1998). As espcies de bolores mais frequentes pertencem aos gneros Penicillium spp., Aspergillus spp. e Scopulariopsis (Andersen, 1995).

    2.2.10.1. Bactrias cido-lcticas

    As bactrias cido-lcticas so as que produzem cido lctico como o principal produto final de fermentao. As mais tpicas classificam-se nas famlias Streptococcaceae (principalmente, Lactococcus, Leuconostoc e Pediococcus) e Lactobacillaceae (Lactobacillus) (Lcke, 1986). Os outros gneros includos so Carnobacterium, Enterococcus, Vagococus, Weisella, Oenococcus e Tetragenococcus. So bactrias Gram-positivas, no esporuladas, em forma de cocos, cocobacilos ou bacilos, e geralmente no mveis. So anaerbias tolerantes catalase

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    negativas que fermentam hidratos de carbono para formar cido lctico. Existem subgrupos com estirpes heterofermentativas que produzem para alm de cido lctico grandes quantidades de dixido de carbono e cido actico ou etanol (Reuter, 1981). Os valores das contagens de bactrias cido-lcticas so bastante variveis. A predominncia das bactrias lcticas em enchidos maturados comprovada em vrios estudos (Dykes et al., 1991; Samelis et al., 1994; Sanz et al., 1998).

    2.2.10.2. Leveduras e bolores

    As leveduras juntamente com os bolores so menos sensveis a abaixamentos de actividade da gua, pelo que no surpreendente que sejam a flora dominante em determinados alimentos que apresentem esta caracterstica xerofilia (Loureiro, 1992). Loureiro (1992) afirma que as leveduras resistentes baixa actividade da gua tanto na presena de sais como de acares; As leveduras contaminantes de alimentos pertencem predominantemente ao gnero Zygossacharomyces, D. hansenii, Candida parapsilosis e Pichia membranaefaciens; so espcies tambm resistentes a elevados teores de sacarose e de NaCl.

    O autor adianta que relativamente ao pH, as leveduras e bolores so, de um modo geral, mais resistentes que a maioria das bactrias a baixos valores de pH, predominando no microbiota tpico de alimentos com pH cido (Praphaillong e Fleet, 1997) A presena de oxignio aumenta a actividade das leveduras, uma vez que permite o metabolismo oxidativo, que energeticamente mais eficiente, ao mesmo tempo que faculta a utilizao de uma larga gama de substratos energticos ricos, como lcoois e cidos orgnicos (Loureiro, 1992). Praticamente todas as leveduras presentes nos alimentos utilizam glucose e frutose como fontes de carbono e energia. Menos frequente a utilizao de cidos orgnicos (como o cido actico e lctico), e lcoois (etanol e glicerol). A utilizao de amido e lpidos bastante rara. O azoto orgnico no indispensvel para o metabolismo das leveduras. Todas elas so capazes de utilizar amnia como fonte de azoto, assim como alguns aminocidos, graas sua faculdade de desaminao e transaminao. Poucas tm actividade proteoltica (Loureiro, 1992). As leveduras variam amplamente nas suas necessidades minerais e factores de crescimento. Muitas sintetizam todas as vitaminas que necessitam, outras requerem determinadas vitaminas (Dak, 1996). Loureiro (1992) explica que as leveduras dos alimentos so capazes de se multiplicar a temperaturas compreendidas entre 0 e 40 C, com uma temperatura ptima de 25 27 C, e que a resistncia a elevadas temperaturas considerara fraca, pois quase todas as leveduras so destrudas a temperaturas de pasteurizao. A maior

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    resistncia trmica demonstrada por determinadas espcies prende-se com a formao de ascosporos, ligeiramente mais resistentes ao calor que as clulas vegetativas.

    As leveduras juntamente com os bolores contribuem favoravelmente para a evoluo do processo, na medida em que possuem um efeito antioxidante por reduo da tenso de oxignio