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Este trabalho analisa as características da personalidade criativa, a partir do texto autobiográfico “A Máquina do Arcanjo”, do escritor português Frederico Lourenço. A partir do seu texto delinearemos a estreita proximidade entre processo criativo e características da personalidade , cruzando-se, associando-se e interactuando. Esta análise incidirá igualmente sobre o percurso vivencial de Frederico Lourenço, desde a adolescência até à idade adulta, e suas implicações no desenvolvimento da sua personalidade e da sua criatividade, que num primeiro passo se exprime através da música para depois se encaminhar para a escrita.Este processo, está descrito pelo próprio autor, que ao escrever as suas memórias, nos retrata, justifica, e ilustra de que forma o processo criativo se vai revelando e assumindo em si e na sua obra.

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Page 1: CARACTERÍSTICAS DA PERSONALIDADE CRIATIVA CONTRIBUTOS PARA A SUA DEMARCAÇÃO EM “A MÁQUINA DO ARCANJO” DE FREDERICO LOURENÇO

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

 

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“The Value of Difference”  in “Identity, Community, Culture, Difference.”  

 

 “An  autobiography  is  a  text  that  seeks  to  draw  us  into  itself without reservations and one which we are  invented to read as being sanctioned by  a  ‘metaphysics  of  presence’,  its  formal  nature  being  belied  by  the intimacy and truthfulness with it seems to address us. In autobiography, if anywhere  in  literature,  we  are  expected  to  sense  that  these  are  texts inhabited by a living person, that an author who was peculiarly present to himself  while  he  was  writing  is  now  present  to  us  as  we  read. Autobiography is the certificate of a unique human passage through time and  the  theorist  who  comes  to  it  full  of  sceptical  questions  about  its rhetorical nature knows that he  is playing an unkind game: he  is not as other, more charitable readers of autobiography.” 

John Sturrock “The Language of Autobiography” 

INTRODUÇÃO

“A  Máquina  do  Arcanjo”  de  Frederico  Lourenço  é  um  pequeno  reconto autobiográfico, de noventa e seis páginas, acerca da passagem da adolescência para a vida adulta, para as emoções e a dor de amar e para um novo caminho criativo. A obsessão do primeiro  amor. Amar no masculino,  o masculino.  É  a  descoberta da vivência duma emoção  e da  sexualidade ansiada,  do  caminho  a  seguir:  enquanto pessoa  que  se  completa  sexual  e  criativamente  na  procura  da  sua  voz,  da  sua expressão. Neste reconto autobiográfico, Frederico Lourenço traça o seu retrato de jovem  que  busca  o  seu  curso:  da  vida,  enquanto  pessoa  e  enquanto  escritor.  O adulto, apresentando‐se na primeira pessoa, compõe a sua memória de momentos cruciais  da  passagem  da  adolescência,  marcantes  e  definidores  de  quem  é,  no desejo de partilha das suas vivências 

O  objectivo  deste  trabalho  é  analisar,  de  forma  sumária,  de  que  forma  a criatividade se exprime na personalidade do jovem Frederico, que faz um percurso de  músico  para  escritor.  Ainda  que  nesta  fase  da  sua  vida  seja  de  músico  para estudante de clássicas, a escrita esteve sempre latente:  

“Escritor, professor universitário: como é que se costuma apresentar? 

Hoje em dia penso mais em mim como escritor do que como outra coisa qualquer. 

Acho que a faceta de escritor se sobrepôs às outras coisas todas. 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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Tornou-se a sua primeira natureza ou já o era?

Penso  que  já  era,  mas  estava  bloqueada.  Acho  que  essa  natureza  de escritor teve uma grande rolha em mim durante muito tempo e, a partir do momento em que a rolha saltou, realizo­me e vejo­me, de facto, muito mais como escritor do que como professor. 

A vocação da escrita é anterior à vocação pedagógica? 

  Sim, muito anterior. Penso que mesmo antes de saber escrever já escrevia. 

(…)  

Estávamos em Oxford e eu não sabia ainda escrever, mas queria escrever cartas às minhas avós. Portanto, imitava a caligrafia dos meus pais, mas sem  saber  escrever. Muito menos  em  português. Mas  sempre  tive  essa vontade de estar agarrado a um papel, a escrever.” (Marques: 2005, 32) 

Tendo um percurso de  treino musical,  desde  a  infância,  para  passar  às  letras, devido  à  “incompatibilidade”  entre  a  música  e  a  assumpção  e  a  prática  da  sua sexualidade, o trabalho tentará reflectir de que forma personalidade e criatividade se apresentam nestas memórias.  

Criatividade  é  a  capacidade  de  trazer  algo  de  novo  e  com  valor  à  luz  do  dia (Helson:  1996,  295),  é  ter  soluções  “novas”  e  adequadas  para  os problemas/situações  que  nos  são  apresentados/das  (Feist:  1998).  Indivíduos criativos,  ainda  segundo Helson,  serão  aqueles  que passarem o  seu  tempo nessa actividade e lhe trouxerem contributos. 

Personalidade,  embora  seja  um  termo  sem  definição  universal  adoptado,  é considerada,  por  muitos  psicólogos,  relacionar‐se  com  aspectos  importantes,  e relativamente estáveis no tempo, do comportamento duma pessoa e lida com uma grande variedade de comportamento humano. Embora alguns teóricos considerem que  a  personalidade  seja  só  objecto  de  estudo  externo  e  em  contexto  social,  a maior  parte  argumenta  que  esta  é  intrínseca  a  cada  indivíduo,  possível  existir mesmo  na  ausência  do  contacto  com  outras  pessoas  e  com  aspectos  não observáveis  tais  como  sonhos,  pensamentos  e  memórias.  Os  factores  sociais, mentais,  físicos  e  emocionais  duma  pessoa  são  importantes  assim  como  todos aqueles de que se tem ou não consciência. (Ewen: 1998, 3) Ou seja: tudo aquilo que nos  rodeia  e  nos  distingue  é  um  aspecto  importante  da  nossa  personalidade, estejamos mais ou menos inseridos num espaço ou comunidade. 

Mas  nem  todos  somos  criativos:  embora  com  menor  ou  maior  grau,  a criatividade não se manifesta nem da mesma forma em todas as pessoas, nem em todas  se manifesta.  A  personalidade  de  qualquer  um  revela‐se  criativa  se  reunir 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

 

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certas características que são essenciais ao processo. Destacamos como principais traços de personalidade que favorecem o processo criativo (Russ: 1993, 12): 

• tolerância à ambiguidade; 

• abertura à experiência; 

• ter valores não convencionais; 

• não fazer juízo de valores; 

• ser curioso; 

• manifestar gosto pelo desafio e pela complexidade; 

• ter auto‐confiança; 

• ter capacidade de correr riscos; 

• ser motivado2  

Frederico  Lourenço,  nesta  obra,  como  na  generalidade  das  suas  criações  de forte  pendor  autobiográfico,  apresenta‐se  como  um  ser  criativo  e  como homossexual, não por  razões de  “militância”, mas simplesmente por assim se  ter sentido toda a vida, naturalmente: 

“A  homossexualidade  –  tenho  que  afirmá­lo  ­  nunca  se  me  afigurou profana.  Nunca  vi  outra  coisa  em  namorados  (ou  em  parceiros ocasionais)  que  não  irmãos  em  Cristo;  ser­me­ia  estruturalmente impossível  não  respeitar,  em  cada  gesto  sexual,  o  divino  da  pessoa humana. Nunca  concebi a homossexualidade  como outra  coisa que não  um  nome  diferente  para  hombridade.”  (sublinhado  meu) (Lourenço: 2006, 13) 

O seu processo de crescimento foi um percurso, não de fuga mas de encontro a si próprio. Um processo que, pela sua sexualidade e pela actividade a desempenhar na vida, lhe trouxe não só a pertença a algo, como também o estabeleceu como um ser  único,  lhe  deu  uma  identidade.  “Identity  is  about  belonging,  about what  you have in common with some people and what differentiates you from others. At its most  basic  it  gives  you  a  sense  of  personal  location,  the  stable  score  to  your individuality.” (Weeks:1998, 88) 

Ao escrever os seus  textos Frederico  traz‐nos à sua vida, partilha connosco os seus momentos,  emoções,  dores,  prazeres  artísticos  e  criativos,  fala‐nos  da  vida,  2 Nas várias obras consultadas, há, por diversas vezes a alusão à jovem idade que os estudos da personalidade e  da  criatividade  têm,  cerca  de  quarenta  e  cinco  anos. Manifesta‐se,  também o  desejo  e  a  vontade  que  nos próximos  anos  esta  área  seja  um  campo  mais  produtivo  uma  vez  que  muito  precisa  ser  estudado,  e  os resultados dos estudos apresentados sejam confirmados de forma muito mais cabal. O problema não terá a ver com algum carácter especulativo que os estudos possam por vezes apresentar, mas sim confirmar, com maior segurança e rigor, aquilo que se tem estudado e que muitas das vezes vinha já confirmar ideias pré‐concebidas, ou, porque não dizê‐lo, preconceitos e estereótipos.  

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com a qual sentiremos, ou não, empatia, mas, certamente teremos uma perspectiva diferente da vivência humana, da  sua vivência. Confere‐nos o poder de estarmos consigo relatando‐nos a sua história, não de  forma  ficcionada, como fez com três dos  seus  romances,  embora  se  possa  considerar  a  personagem  principal  dos mesmos como um alter‐ego do autor, mas sim optando o registo autobiográfico de modo  a  ter,  por  parte  do  leitor,  uma  afinidade  e  uma  filiação,  senão  total,  pelo menos de compreensão e acolhimento. Aquilo que lemos é de alguém que o viveu, não é criação, imaginado, é a memória duma pessoa que toma corpo perante nós: 

  “An autobiography  is a  text  that  seeks  to draw us  into  itself without reservations and one which we are  invented to read as being sanctioned by  a  ‘metaphysics  of  presence’,  its  formal  nature  being  belied  by  the intimacy and truthfulness with it seems to address us.” (Sturrock: 1994, 3) 

É para essa viagem dentro de si que somos convidados. 

SER OU NÃO SER MÚSICO…

“Quando, no  final da adolescência, a necessidade de passar da  teoria  à prática em questões sexuais começou a tornar­se premente, dei­me conta de  que  ser  activo  ao  mesmo  tempo  nas  esferas  da  música  e  do  sexo causava um entrechoque com efeitos de anulação recíproca para ambas as  coisas.  Em  termos  de  vivência  prática,  sexo  e música  eram,  no meu caso, incompatíveis. Apercebi­me disto quando, aos dezanove anos, tive a primeira experiência de um envolvimento simultaneamente romântico e carnal.  Os  efeitos,  para  meu  espanto,  fizeram­se  logo  sentir.  No  dia seguinte à primeira noite de amor, pressenti, quando me sentei ao piano para  estudar,  que  algo  de  estranho  se  passara  dentro  de mim;  que  eu deixara de ser quem fora ­ eu, que estava habituado, desde os seis anos, a ver­me (e a ser visto) como pianista. O que se passava dentro de mim era demasiado complexo para que, na altura, eu tivesse compreendido o que poderia  estar  em  causa.  Hoje,  a  situação  parece­me  clara.  O  que aconteceu foi isto: após uma adolescência de renúncia sexual, passada ao teclado a estudar de manhã à noite, de repente vi a minha identidade de músico  ferida  de  obsolescência.  Afinal,  o  que  eu  sempre  procurara  no piano era, simplesmente, um namorado. ” (Lourenço: 2006, 9/10) 

O que é um músico? Poderá uma prática recorrente e diária de tantos anos ser abandonada uma vez resolvida a questão da prática sexual? 

Ser  músico  de  carreira  é,  em  qualquer  das  suas  vertentes  compositorias, performativas,  e  múltiplas  outras,  uma  tarefa  complexa.  Implica  uma  entrega grande e  laboriosa por  toda a vida. Escolher essa carreira não  implica,  à partida, características  especiais,  faz  parte  dum  processo  normal  como  escolher  outra qualquer  profissão:  é  um  processo  que  implica  toda  uma  série  de  razões, 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

 

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necessidades  pessoais,  constructos  pessoais  e  oportunidades  sócio‐culturais  que estão  para  além  da  vontade  e  da  decisão  de  cada  um.  No  entanto,  para  se  ser músico, há que ter uma mescla de talento genético e biológico, conjuntamente com reforços emocionais e sociais. (Henley Woody II: 1999, 241) Assim se justifica que uma  criança  tenha  talento  inato  e  não  o  desenvolva  devido  a  constrangimentos familiares e sociais (ambiente familiar desfavorável, pouco propício à música ou a questões  culturais,  e  sem  condições  financeiras),  como  podendo  não  ter  esse talento  tenha  todas  as  condições para desenvolver  as  técnicas performativas  e  o gosto, não chegando a ser criativo, mas somente um executante. Ou simplesmente ter todas as condições necessárias para se tornar músico: 

“An  individual's  interest  in music  is cultivated through early experiences within the home (e.g., parents interest in music, opportunity to take music lessons,  etc.),  and  is  later  subject  to  the  powerful  reinforcers  of identification  with  peers  and  idiosyncratic  self­concept.  (…)  Anecdotal accounts suggest that many musicians had one or both parents who were also musicians,  and  this  experience  likely  allowed  for  an  identification process  or  purposeful  directions  that  reinforced  the  child’s  musical interests and abilities.” (Henley Woody II: 1999, 242) 

Henley Woody  II  refere  também estudos  que  indicam que  a  personalidade de um  jovem  músico,  comparada  com  a  de  outros  jovens  não  artistas,  apresenta extroversão,  sensibilidade,  inteligência  e  boa  adaptação  a  circunstâncias diferentes. Outro aspecto  importante é que se verificou que os  jovens estudantes de música  são  bastante mais  criativos  que  os  jovens  não  artistas.  O  talento  e  o interesse musical fazem parte dum processo evolucional: desenvolve‐se durante a infância, depois passa para puro prazer e a manifestação intuitiva, tornando‐se em devoção adolescente no que respeita aos aspectos analíticos e formais da música. Há, assim toda uma série de factores que contribuem para um domínio não só da técnica  como  do  aspecto  performativo,  ou  se  quisermos  do  aspecto  criativo  na execução e realização musical. 

Vindo duma  família, que não sendo aristocrata, mas da classe média alta,  com pais  professores  do  ensino  Secundário  e  Universitário,  pessoas  com  formação científica  e  gosto  pela  cultura,  Frederico  usufrui  na  sua  infância  de  todas  as condições  para  ser  um  bom  músico:  um  bom  ambiente  familiar,  condições financeiras  que  lhe  disponibilizam  as  aulas  na  melhor  escola,  o  Conservatório, gosto e motivação cultural, e algum prazer pessoal. O que na realidade acontece é que o gosto que sente em si é mais o de amante da música, que o de praticante de alto  nível,  como uma  carreira  de música  clássica  exige.  “Afinal,  o  que  eu  sempre procurara no piano era, simplesmente, um namorado.”(Lourenço: 2006, 10) Ao pôr em prática a sua sexualidade, a entrega e o gosto ao piano desaparece. Parte da sua vida  está  resolvida,  preenchida,  e  o  tempo,  horas  e  horas,  dedicado  ao  estudo  e prática do piano deixa de ter significado por se tornar vazio de sentido. Já tem algo que  o  realize  e  apercebe‐se  que  a  música  e  o  piano  ocupavam  um  espaço  que esperava  ser  completo.  A  música  era  a  sublimação  de  um  desejo  imenso  de 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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realização  sexual  e  pessoal.  Embora  possa  parecer  uma  observação  um  tanto rebuscada por parte de Frederico Lourenço, o  facto é que, mais uma vez, Henley Woody II, refere estudos que dizem que: 

“…the  findings supported an  interpretation that "individuals who choose to study with music may be underaroused and seek arousal from music in order  to  be  at  an  optimal  performance  level"  (Henley Woody  II:  1999, 243)  

Ao estudar música, e não exactamente ao estudar com música,  como a citação refere, há uma procura de excitação, não só emocional como sexual. Estando a sua vida destituída duma componente tão central a si próprio, a música no seu papel de despertadora dos sentidos e das emoções, preenche, até à assumpção efectiva da sexualidade e das emoções, esse vazio. “A Máquina do Arcanjo” é o retrato dum jovem que descobre as emoções associadas do sexo, da paixão e da dor. É o relato dum aprendizado doloroso, mas profícuo. Para a vida. 

“Depois  formulou‐se no meu  íntimo a seguinte pergunta: e se  fossem os meus amigos, muito mais  soltos  e  descomplicados do que  eu,  que  tinham  razão?  Seria "pura"  e  desinteressada  a  minha  negação  do  sexo?  Sem  conseguir  formular  o raciocínio  com  contornos  precisos,  eu  intuía  vagamente  que,  com  a  opção  pela castidade, eu pretendia comprar ou pagar qualquer coisa: em troca, eu esperava de Deus o talento musical que me faltava.  

Talento. Era a palavra mágica no círculo dos meus amigos. Tudo, mas tudo, eu seria capaz de ofertar em prol dessa quimera, a ponto de, até aos dezanove anos (durante todo o período da minha vida em que estudava, sempre que possível, seis a  oito horas de piano por dia),  eu  ter  abdicado por  completo quer de  romances, quer  de  engates  –  limitando,  inclusive,  ao mínimo  possível,  a  própria  actividade auto‐erótica.  "Abdicado  ".  Bom...eu  pensava,  de  facto,  na  coisa  como  Abdicação; mas  restaria  saber  se é possível abdicar‐se de  algo que nunca  se experimentou.” (Lourenço: 2006, 11/12) 

Esta  vivência  de  Frederico,  torna‐se mais  importante  ao  leitor  que  se  propõe analisar  as  questões  da  personalidade  e  da  criatividade,  e  também  com  mais sentido,  uma  vez  que  Henley  Woody  II  menciona  estudos  que  relacionam  a criatividade  e  o  talento musical  com  a  androginia.  Esta,  que  pode  ser  reforçada pelas  experiências  da  vida,  reflecte  formas  únicas  de  processar  informação  e assume características de  flexibilidade e versatilidade para se poder  tocar vários tipos  de  obras.  Verificou‐se  também  que  há  uma  relação  muito  maior  entre  a androginia e o talento musical no rapazes que nas raparigas. Refere‐se, ainda, que: 

“Persons attracted  to music may have a higher  level of androgyny  than those  who  lack  interest  in  music.  Because  there  is  a  link  between androgyny and creativity, research is needed on the significance, if any, of 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

 

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androgyny  for  the musician's personality;  that  is, perhaps androgyny  is subsumed by creativity.” (Henley Woody II: 1999, 243)  

Csikszentmihalyi (1996), num artigo sobre a personalidade criativa refere que a pessoa  que  é  psicologicamente  andrógina  duplica  a  sua  capacidade  de  resposta. Assim os indivíduos criativos tendem a ter não só as potencialidades do seu sexo mas  também  a  do  sexo  oposto.  Pessoas  de  sexos  diferentes  poderão  ser simultaneamente  agressivas  e  protectoras,  sensíveis  e  rígidas,  submissas  ou dominantes. 

Outra  característica  associada  à  personalidade  dos músicos  é  que  são  frágeis, vulneráveis e, de forma estereotipada, femininos, não sendo necessariamente uma característica  negativa,  uma  vez  que  a  conotação  com  a  “emotividade”  pode  ser vantajosa na performance musical. Estas ideias feitas, que os estudos por um lado confirmam,  assumem  uma  maior  relevância,  já  que  essa  era  a  questão  que Frederico e os seus amigos pianistas se punham em relação à sua sexualidade e à escolha do instrumento musical que tinham feito. Seria alguma marca particular? 

“Assunto afim que nos ocupava, quando não estávamos explicitamente a falar "daquilo", era o facto, a todos os títulos enigmático, de a profissão de pianista não atrair,  entre a  juventude  lisboeta nossa  coetânea,  rapazes que se interessassem por raparigas. Discutíamos se haveria alguma coisa de  intrinsecamente  homossexual  no  piano  enquanto  instrumento;  se  a profissão  de  pianista  seria  análoga  à  de  bailarino,  que,  naquela  altura (hoje  é  diferente),  estava  como  que  oficialmente  vedada  a  rapazes heterossexuais.” (Lourenço: 2006: 15/16) 

Para além duma questão de possível sensibilidade especial para a música, que no caso de alguns pianistas se verificou, mas, como refere no texto, não aconteceu com  a  maior  parte  dos  mais  famosos,  a  situação  terá  sido  meramente circunstancial,  e  de  conjuntura  social.  É  de  recordar  que  durante  muito  tempo, certas actividades relacionadas com as artes ou o mundo do espectáculo eram mal vistas, devido à vida que os artistas levavam. Considerada dissoluta durante muito tempo,  muitas  famílias  impediam  que  os  seus  descendentes  a  ela  acedessem devido às  conotações que acarretava. Por outro  lado, Csikszentmihalyi,  refere no mesmo artigo referido, que as pessoas criativas escapam ao estereótipo de género. Verificou‐se que se por um lado as raparigas criativas são mais dominantes e duras que  as  não  criativas,  os  rapazes  criativos  são mais  sensíveis  e menos  agressivos que  os  não  criativos. A  questão que  se  põe  aos  “pianeiros”  do Conservatório  é  a soma  de  variáveis  sociais,  biológicas  e  psicológicas.  Csikszentmihalyi,  mais  uma vez  refere  que  a  tendência  andrógina  é  por  vezes  vista  em  termos  puramente sexuais,  sendo  confundida  com homossexualidade. O  facto  de  nessa  altura  todos serem homossexuais terá sido coincidência, ou não. 

Se Frederico procurava no piano o namorado, ou melhor a relação inexistente, tanto  do  ponto  de  vista  afectivo  como  sexual  (uma  prática  diária  de  oito  horas 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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desde  a  mais  tenra  idade,  tornará  o  instrumento  musical,  não  só  parte  de  nós, como,  também,  o  confessor,  aquele  com  quem  nos  envolvemos,  partilhamos emoções  e  pelo  qual  nos  exprimimos),  ao  se  encontrar  sexualmente  a  sua personalidade musical  transforma‐se. Assim se um músico  tem que,  seja  em que área da expressão musical for, deixar fluir a sua personalidade de forma bem clara, mostrar  a  sua  sensibilidade,  força  e  fragilidade,  se  tem  que  se  expor  tanto performativa como tecnicamente e ser objecto de avaliação do ouvinte, tendo que estar preparado para  ser  apupado ou ovacionado  (Henley Woody  II:  1999, 245), essas  características  mantiveram‐se  em  Frederico  ao  mudar  a  sua  capacidade criativa da música para os estudos Helenistas e para a escrita. 

O ESCRITOR SURGE

“Futuro  esse  que  nunca  chegou  a  materializar­se,  porque,  um  dia, "aquilo"  aconteceu. Houve  um  jantar  (que  relatei,  em  traços  gerais,  no texto  inicial  de  A  Formosa  Pintura  do Mundo). Nesse  dia,  tudo mudou para mim e o pianista que eu era morreu.  Isto é: eu ainda  toquei piano mais uns meses, mas os dedos  já só mexiam como patas de uma galinha decapitada. Acho mesmo que, desde esse dia, nunca mais tive uma certeza absoluta  na  vida.  A  transição  gradual  de  músico  para  helenista,  que começou nesse fatídico jantar, levar­me­ia, como o futuro comprovou, da derrocada ao êxito, mas o preço exigido  foi o sabor a  fracasso que tudo, daí  para  a  frente,  me  deixaria  na  boca.  Não  obstante  os  sucessos universitários  e  o  reconhecimento  pelas  traduções  de  poetas  gregos, nunca deixei de me sentir um falhado. Como se, de algum modo, os vinte e tal anos que passaram  em nada  tivessem  contribuído para me  tirar do estado de choque do caso Gonçalo. Como  se o arcanjo nunca me  tivesse perdoado.“ (Lourenço: 19/20) 

A personalidade de Frederico continua a ser a personalidade de um ser artístico e como tal nela exprimem‐se qualidades cognitivas essenciais ao processo criativo: pensamento  divergente,  que  enquadra  os  conceitos  de  associação  de  ideias,  boa capacidade de observação e fluidez de pensamento; capacidade de transformação, que  engloba  flexibilidade  de  pensamento,  capacidade  de  mudança  em  situações diferentes,  reorganização  de  informação  e  utilização  de  diferentes  formas  de resolução  de  problemas.  (Russ:1993;  9/10)  Por  outro  lado  ter  capacidade  de autoavaliação é um factor determinante no acto criativo:  

“The  individual must  stand back and  evaluate  the  ideas, association, or composition  and  refine  it.  Without  critical  thinking  ability,  the  other cognitive  abilities  are  like  unavailable  resources.  They may  be  present, but they cannot work for the individual or for the creative process. (Russ: 1993; 11) 

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Assim se confirma a estabilidade da personalidade durante a vida duma pessoa. Apesar  da mudança  de  “objecto”  criativo,  as  características  da  personalidade  de Frederico mantêm‐se de forma a resolver as situações que se vão deparar. 

“Poderei,  no  entanto,  deixar  aqui  muito  brevemente  a  confirmação  de  que Gonçalo foi o competentíssimo responsável pela minha educação sexual, para me desviar já para outro foro de aprendizagem, que teria profundas consequências na pessoa que vim a ser: a literatura.  

(…) 

Lacunas, porém, era o que não faltava à minha própria cultura. Contei em Amar não acaba como fiz o  liceu em regime de autodidacta, estudando as matérias um pouco  "a  despachar"  para  fazer  os  exames  e  logo  me  esquecer  de  toda  aquela espiga, pois o que me  interessava,  até  à  exclusão absoluta de  tudo o  resto,  era a Música;  e  saber  as  rotas do açúcar no  século XVIII  ou a diferença entre palavras como "cartesianismo " e "dialéctica " eram coisas que me faziam bocejar. Os meus pais  ficavam  eles  próprios  um  pouco  exasperados  com  esta minha  atitude, mais ainda pelo facto de serem ambos professores de Filosofia. A brilhante nota de 10 no exame final a esta disciplina deixou a família perplexa, primeiro indecisa quanto à etiqueta que com maior propriedade se me aplicaria ‐ "burro" ou "calão" ‐, mas depois convencida de que eu merecia ambas por igual.  

Gonçalo, por  seu  lado, parecia achar‐me um rapaz esperto e aplicado; e  tirava constantemente livros da estante na sua sala para me pôr nas mãos, com a frase:  

‐ Lê isto. 

Foi assim que (de novo em situação pós‐coital, lembro‐me perfeitamente) recebi nas mãos um livro chamado La couronne et la lyre de Marguerite Yourcenar, uma antologia de poetas  gregos,  que Gonçalo me pôs  a  ler na página onde  surgem as Purificações de Empédocles. Francês era a "minha" disciplina (tirara 19 no exame final do liceu sem estudar uma linha), mas mesmo assim li duas vezes o poema sem perceber rigorosamente nada. Na altura, pensei que isso seria devido à minha tão apregoada  burrice,  mas  hoje,  com  anos  de  estudo  de  poesia  grega  em  cima, confesso que ainda não percebo o poema de Empédocles, embora as belas  frases francesas da Yourcenar me ecoem na cabeça desde esses tempos da saga Gonçalo. Aliás, outros poemas por ela traduzidos no mesmo livro haveriam de provocar em mim sérias decepções quando os conheci na língua original: tantas são as palavras acrescentadas na tradução francesa que o texto verdadeiro fica obscurecido. Basta dizer  que  o  maravilhoso  verso  Aphrodite  au  char  blanc  tiré  par  des  colombes, atribuído  a  Safo,  tem  exactamente  de  Safo  uma  única  palavra:  a  primeira.  E  o encantador  verso  de  Teógnis  L'aigre  cri  de  l’héron  qui  revient  en  avril  tem  o problema de  três das  suas mais expressivas palavras  (aigre, héron e avril)  terem sido  inventadas  pela  "tradutora  ",  que  melhorou,  neste  caso,  é  preciso  dizer,  o poeta grego.  

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Na  altura  eu  aceitava  com naturalidade  que  um menino  bem  como o Gonçalo tivesse este tipo de literatura em casa, mas hoje não deixo de me pasmar, pensando também nos trinta anos que ele fez no dia em que " começámos ", trintena de anos essa que se, face aos meus dezanove anos, parecia uma idade vetusta e respeitável, hoje parece‐me a idade de alguém que, no meu idiolecto actual, ainda merece sem ironia o estatuto de "rapaz". (Lourenço: 67/68/69/70) 

O seu percurso de desenvolvimento pessoal e escolar evidencia, à partida, uma capacidade de adaptação às circunstâncias. Aprende consoante a sua motivação e não  consoante  aquilo  que  é  esperado  dele  e  das  suas  capacidades  em  termos formais/escolares.  Há  na  sua  aprendizagem  escolar  um  lado  prático  que  tem somente a ver com os seus focos de interesse: é bom estudante nas áreas que lhe são  naturalmente  próximas,  fraco  estudante  em  áreas  onde  podendo  ser  bom aluno não tem motivação pessoal para alcançar os resultados ambicionados pelos pais. No  entanto basta  sentir  um ponto de maior  afinidade pessoal  em  relação  a essas matérias rapidamente alcança excelentes resultados. Frederico  tem que  ter uma motivação intrinsecamente pessoal, não é um executor mecânico de saberes. No  respeitante  às  suas  inter‐relações  pessoais  a  sua  vontade  de  conhecimento  é completamente  assimiladora:  como  um  bom  discípulo  devora  e  apropria‐se  dos conhecimentos que outros lhe transmitem. O seu lado cognitivo anda passo a passo com  o  lado  emocional,  afectivo.  Nessas  circunstâncias  os  processos  afectivos relacionados com a criatividade são também importantes na sua personalidade. Há dois  desses  processos  que  poderemos  encontrar  em  Frederico  ao  longo  do  seu reconto: 

“Access to affect­laden thoughts is the ability to call up cognitive material with affect­laden content. Primary process thinking and affective fantasy in daydreams and  in play are examples of  this kind of ability. Thoughts involving affect  themes such as aggressive and sexual  ideation  illustrate this kind of blending of affect and cognition.  

Openness  to  affect  states  is  the  ability  to  experience  the  affect  itself. Comfort with intense affect, the ability to experience and tolerate anxiety, and passionate involvement in a task or issue are examples of openness to affect states.” (Russ: 1993, 12) 

Na  sua  história  da  descoberta  da  sexualidade  e  do  sentimento  amoroso,  luta desigual por não ser correspondido, Frederico necessita ter uma estrutura afectiva que lhe permita comportar a dor e o desgaste sentido, e deles tirar partido, não só para  os  superar,  mas  para  abrir  novos  caminhos  na  vida.  A  relação  vivida  com Gonçalo,  por  mais  dolorosa  e  conturbada,  foi  um  processo  de  passagem  de adolescente  para  adulto:  a  libertação  de  alguém  que  tinha  uma  imagem  de  si próprio  como  músico,  e  com  uma  sexualidade  sublimada,  dá  lugar  a  uma sexualidade vivida e  assumida e  encontra uma nova  forma de expressão  criativa mais próxima de si. A satisfação afectiva perante o desafio, mesmo doloroso, como 

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foi o seu caso, e o bem‐estar afectivo em resolver problemas com que se depara, são outros processos afectivos importantes para a criatividade: 

“Affective  pleasure  in  challenge  involves  the  excitement  and  tension involved in identifying the problem and working on the task.  

Affective  pleasure  in  problem  solving  is  the  deep  pleasure  and  passion involved  in  solving  the  problem,  achieving  insight,  or  completing  a musical composition that sounds exactly right.  

Finally, the overall cognitive control of the affective process is important.  

Cognitive integration and modulation of affective material is a cognitive­affective  process  crucial  in  adaptive  creative  functioning. Although  this category  is probably more cognitive than affective,  it warrants  inclusion because it reflects both cognition and affect, and it is so important in the creative process.” (Russ: 1993, 13) 

Este processo permite‐lhe uma passagem mais adaptada, não só à vida adulta, como, acima de  tudo, à sua nova actividade criativa: as  letras, na componente do estudo helénico, na escrita e na  tradução. Para além de professor universitário e escritor, Frederico é um celebrado tradutor de epopeias gregas. 

“Fechar, de uma vez por todas, o tampo do piano era solução menos fácil de pôr em prática do que à primeira vista parecia. Abdicar da identidade que me  caracterizara desde a  infância parecia exequível num dia, para logo,  no  seguinte,  se  afigurar  impossível:  eu  continuava  a  sentir  os chamamentos  do  arcanjo  a  obrigar­me  a  tanger  a  sua máquina.  E,  na verdade, nunca me  libertei  inteiramente do  teclado: muitos anos depois do  piano  desta  fase,  viria  nova  fase  pianística  e  depois  uma  fase cravística. O facto de eu hoje não conseguir escrever à mão, com caneta e papel,  leva a que, afinal de  contas, no  teclado do  computador  eu  tenha finalmente encontrado a máquina certa do arcanjo certo ­que poderá não ser Rafael,  protector  de Tobias. Ou  então,  como me  diz muitas  vezes  o terceiro  "Gonçalo",  novamente  em  terras  de  Entre  Douro  e  Minho,  a máquina  do  meu  arcanjo  é  simplesmente  a  língua  portuguesa.” (Lourenço: 92) 

O  processo  pelo  qual  Frederico  passou  assume  ao mesmo  tempo  proporções desestruturadoras, que implicam o distanciamento em relação àquilo que sempre foi;  uma  imagem  identificatória,  o  seu  constructo  pessoal,  que  o  definia;  e proporções  estruturantes,  que  lhe  dão  uma  representação  mais  real  de  si,  mais consentânea com a sua forma de ser. Naturalmente, e como já foi referido, sendo a personalidade,  na maior parte dos  casos uma  constante no  tempo, marcas dessa identidade ficam, como a comparação entre o teclado do computador ao escrever, e a performance musical que continuou, com maior ou menor intensidade, a praticar. 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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A identidade de alguém, tendo como componente a sua personalidade e, no caso, sendo uma personalidade criativa, estará permanentemente em contenda consigo própria, em busca duma paz que dificilmente conseguirá. O processo criativo é em si  mesmo,  conturbado,  e  umas  vezes  mais  que  outras,  relaciona  o  criador  com diferentes  universos,  ou  com  inúmeras  formas  de  ser  dum  universo.  O  que  fica sempre a marcar presença é a personalidade, a marca distintiva que nos permite dizer isto é uma obra de Frederico Lourenço, é um filme de Fellini, é mesmo a voz e o cantar de Schuwarskopff, mesmo quando na sua versatilidade mudam de registo. 

“Each  of  us  live  with  a  variety  of  potentially  contradictory  identities, which battle within us  for allegiance:  (…) The  list  is potentially  infinite, and so therefore are our possible belongings. Which of them we focus on, bring  to  the  fore,  ‘identify’  with,  depends  on  a  host  of  factors.  At  the centre, however, are  the values we  share or wish  to  share with others.” (Sturrock: 1994, 3)  

Ao  resolver  esta  relação, mais  consigo  próprio  do  que  a  dois,  uma  vez  que  à partida parecia condenada, Frederico faz em si uma purga, liberta‐se ainda mais de constrangimentos que  tinha em si,  tendo vivido aquilo que era necessário ao seu crescimento. Do sismo emergiu uma nova ordem que fez despertar em si e na sua personalidade criativa o que sempre tinha estado adormecido. A emoção escolheu o  seu  caminho  e  a  sua  expressão.  Fiquemos  com as  suas palavras da descoberta dum novo mundo, que sempre andou presente à espera que dele tomasse posse: 

“Que a escrita e a tradução se revelariam a tábua de salvação de que eu andava  à  procura  veio  a  perceber­se  depois  da  derrocada  final  com  o Gonçalo,  que,  pelo  tipo  de  coincidência  impossível  (porque  demasiado "forçada") num romance, aconteceu no aniversário seguinte dele, que era também o nosso aniversário e foi, a todos os títulos, um descalabro.  

No  rescaldo  desse  acontecimento  sísmico,  foi­me  parecendo gradualmente que  esgotara a  capacidade de  sofrer  e que, não havendo martirização possível que alterasse a irrevogabilidade daquele desfecho ­ e não tendo eu mais lágrimas para chorar ­, o melhor que eu tinha a fazer era ficar parado, à espera que o pó assentasse. Sentava­me ao piano, mas se não me apetecesse  estudar, não  forçava. Passava dias,  semanas,  sem tocar.  Punha­me  a  ler  livros  variados  (muito me  ajudaram,  nesta  fase difícil,  os  deliciosos  romances  da  Nancy  Mitford),  olhava  para  as gramáticas  de  Grego  compradas  pelo meu  pai  no  tempo  em  que  fora aluno  do  Prof.  Rosado  Fernandes  e  ficava  ali,  qual  basbaque,  fitando aquelas palavras indecifráveis, ainda na dúvida de algum dia ser capaz de dominar um "piano" tão temível como aquele.  

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

 

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Entre  as  leituras  que  me  caíram  nas  mãos  nesta  altura,  houve  uma  que  foi absolutamente decisiva.  

Conhecia  desde  criança  o  nome  Sophia  de  Mello  Breyner  Andresen,  não  só porque a minha irmã e eu tínhamos A Menina do Mar e O Rapaz de Bronze (tema sobre  o  qual  o  Gonçalo  pintou  uma  delicada  aguarela  que mais  tarde  inspirou  o díptico  "Porto,  Campo  Alegre"  na  Formosa  Pintura),  mas  sobretudo  porque  os meus pais  a  conheciam através do  João Bénard da Costa  e  a minha mãe  contava sempre a história maravilhosa de um passeio de barco no Algarve em que a Sophia se  coroava  com  algas  enquanto  declamava  os  seus  próprios  versos.  Tínhamos, desde os anos 60, na nossa sala, um exemplar do livro Geografia,  livro esse que é das minhas mais antigas memórias, porque o abria, de vez em quando, ao longo da infância e da adolescência, para  logo o repor na estante, perplexo, em virtude de não ter percebido nada do que lera.  

Um pouco maquinalmente, como era meu hábito já arreigado e antigo, tirei um dia a Geografia da estante e abri o livro numa página em que se lia:  

Aqui despi meu vestido de exílio  

E sacudi de meus passos a poeira do desencontro  

Como  é  que  esta  poesia me  fora  incompreensível  durante  tantos  anos? Estes versos eram exactamente a  resposta de que eu andava à procura. Chegara o momento de despir o vestido de exílio, em mais de um sentido; chegara o momento de sacudir dos meus passos a poeira do desencontro. Chegara o momento de me reconstruir.  

Perguntei à minha mãe o que significava "Acaia", o título do poema.  

­ O mesmo que Grécia ­ foi a resposta.  

Começou em mim uma autêntica febre grega (que ainda hoje continua a arder, como se sabe). Li e reli os poemas gregos dos vários livros da Sophia; supliquei à minha mãe que perguntasse na escola onde dava aulas se não haveria alguém que me pudesse dar explicações de Grego e Latim. Estava decidido. Ia estudar Clássicas. O tampo do piano ficaria fechado durante dez anos.” (Lourenço: 93/94/95)  

CONCLUSÃO

Criatividade é  conceber  algo de novo e  com valor.  Ser  criativo é  ter  soluções “novas” e adequadas para os problemas/situações que nos são apresentados/das. Personalidade  compõe‐se  de  características  comportamentais  que  cada  pessoa 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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apresenta  em  determinadas  situações  e  que  se  mantêm  constantes  ao  longo  do tempo. A criatividade tem dois enfoques: o pessoal, enquanto trabalho interior não é  observável  directamente  mas  pode‐se  observar  o  modo  exterior  de  criar  – comportamento  criativo;  e  o  produto dessa  laboração  interior,  o  livro,  o  filme,  o quadro, a sinfonia… Criatividade é algo que se pode encontrar em qualquer pessoa que se situe em qualquer área de conhecimento ou actividade. No entanto, esta é geralmente  mais  reconhecida  em  pessoas  ligadas  ao  mundo  das  artes  ou  das ciências,  embora  se  dê  o  caso  de  muitas  pessoas  deste  mundo  pouco  ou  nada serem  criativas.  Gregory  Feist  refere  estudos  que  foram  feitos  e  estabelecem relação  entre  personalidade  e  criatividade.  Estes  estudos  referem  que  há características não sociais e sociais entre artistas e não artistas. Assim verificou‐se que no  respeitante  às  características  não  sociais  os  artistas  têm mais  abertura  à experiência, mais  fantasia  e  imaginação,  são mais  norteados  esteticamente, mais intuitivos,  mais  impulsivos,  mais  inseguros,  ansiosos,  tem  mais  insegurança afectiva  e  com mais  susceptibilidade  emocional.  São  também muito motivados  e ambiciosos.  Destas  características,  Frederico  Lourenço,  se  nos  ativermos  ao  seu reconto,  que  não  se  limita  a  descrever  a  sua  história  passada,  mas  nos  dá indicações  do  seu  posicionamento  enquanto  adulto,  partilha  todas:  é  aberto  à experiência; é imaginativo e fantasioso, embora, por enquanto a sua ficção seja de carácter marcadamente autobiográfico; é bastante norteado esteticamente, dentro do classicismo; é bastante  intuitivo e  impulsivo; é  inseguro, como se pode ver na referência  que  faz  no  texto  à  sua  obra,  e  é  susceptível  emocionalmente.  Das características  sociais  Frederico  partilha,  quase  necessariamente  pela  sua orientação sexual que manifesta abertamente, sem qualquer forma de arrogância, a independência, o ser não conformista e questionador de normas. Por fim é uma pessoa introvertida.  

“A Máquina do Arcanjo” dá‐nos o retrato dum  jovem pueril,  com vontade de viver  e  aprender,  à  sua  custa,  sem medo,  assumindo  as  consequências  dos  seus actos,  numa  entrega  completa,  sofrida:  o  retrato  de  alguém  que  tem  que  se cumprir. Um jovem de personalidade marcada, que observa o mundo à sua volta e a ele está atento. Enquanto obra autobiográfica é o depoimento duma vivência, que tal  como  Frederico  Lourenço  pretende,  é  partilha  para  que  outros  se  possam descobrir como ele próprio o fez. Partilha para mostrar que amar no masculino, o masculino,  ser‐se  homossexual,  não  será  tão  diferente  do  amor  heterossexual: sofre‐se  da  mesma  forma,  recusa‐se  o  amor  dos  outros  da  mesma  forma,  é‐se cúmplice da mesma forma, realiza‐se o afecto da mesma forma. A diferença estará na forma como se vê o amor. 

Embora seja uma autobiografia, “A Máquina do Arcanjo” tem marcas do género “Bildungsroman”3.  Este  género  de  livro,  do  qual  um  dos  expoentes  do  romance moderno  é  “Portrait  of  the  artist  as  a  Young  Man”  de  James  Joyce  (não  se pretendendo aqui comparar Joyce com Lourenço) estava muito em voga no séc. XIX 

3 Como diz Suzanne Hader, em “The Bildungsroman Genre”. [Consulta em 16/01/2006] Disponível na WWW: URL: http://www.victorianweb.org/genre/hader1.hml. 

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NASCIMENTO, F. & Candeias, A. (2007) Características da personalidade criativa – contributos para a sua demarcação em “a máquina do arcanjo” de Frederico Lourenço. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

 

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em Inglaterra e na Alemanha. “Bildungsroman” é o romance que se ocupa do auto‐desenvolvimento da personagem principal (no caso de Joyce e Frederico, dá‐nos o retrato  do  crescimento  também enquanto  artistas,  ou  seja  do processo  criativo): mostra‐nos  o  crescimento pessoal  dum  jovem num determinado  contexto  social. Esse  crescimento pessoal  é  a  aprendizagem para vida e a busca duma existência com  significado  na  sociedade.  No  entanto,  esse  processo  de  maturação  é  longo, gradual, mostrando os conflitos entre os desejos e as necessidades do protagonista para  se  integrar  numa  sociedade  pouco  afeita  a  mudanças.  Finalmente,  estas narrativas, dão‐nos a avaliação que o protagonista faz da sua posição na sociedade. 

A  busca  de  si,  fez‐se  através  da  anulação  do  que  era.  Transformou‐se  para melhor ser quem é. 

“Para poder encontrar­me a mim mesmo, tive primeiro de me perder. Tive de chegar ao pleno vazio de mim. Não foi um vazio imóvel, um compasso de  espera  na  dança  do  ser:  o meu  vazio  foi  um  rodopiar  imparável  de dinâmica  negativa,  de  tal  forma  que  desistir  surgiu,  por  fim,  como premente  solução  lógica  para  acabar  de  vez  com  o  tormento  daquele excesso giratório. Tinha dezanove anos.” (Lourenço: 2006, 95) 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ewen,  Robert  B.,  An  Introduction  to  Theories  of  Personality,  Lawrence  Eribaum Associates, Mahwah, NJ, 1998* 

Feist,  Gregory, The  Influence of Personality on Artistic and  Scientific Creativity,  in The Handbook  of  Creativity,  Cambridge  Press  University,  Cambridge,  1998, edited by Robert J. Sternberg 

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Lourenço, Frederico, A Máquina do Arcanjo, Edições Cotovia, Lisboa, 2006 

Marques, Carlos Vaz, Frederico Lourenço, Ler, Livros & Leitores, Lisboa, Círculo de Leitores, Inverno 2004/2005, 28‐44 

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Sturrock,  John,  The  Language  of  Autobiography,  Cambridge  University  Press, Cambridge, 1994 

Weeks,  Jeffrey, The Value of Difference,  in  Identity, Community­Culture­Difference, Lawrence & Wishart, London, 1998, edited by Jonathan Rutherford 

RECURSOS NA INTERNET

“The Bildungsroman Genre” 

http://www.victorianweb.org/genre/hader1.hml 

*Questia Media America, Inc.  

www.questia.com 

Csikszentmihalyi, Mihaly, The Creative Personality: http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=5000369939 

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Helson, Ravenna, In Search of the Creative Personality: http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=76992911 

Henley Woody II, Robert, The Musician's Personality: http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=76991287 

Russ,  Sandra  Walker,  Affect  and  Creativity:  The  Role  of  Affect  and  Play  in  the Creative Process: http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=23489095