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capítulo 20 A falácia intencional W. K. WIMSATT E M. C. BEARDSLEY Do original “The Intentional fallacy”, in The Verbal icon, studies in the meaning of poetry (1954), de W. K. Wimsatt Jr. The Noonday Press, Nova York, 1966, 6 3 9

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c a p ít u l o 20 A falácia intencional

W. K. W IM SATT E M. C. BEARDSLEY

Do original “The Intentional fallacy”, in The Verbal icon, studies in the meaning of poetry (1954), de W. K. Wimsatt Jr. The Noonday Press, Nova York, 1966,

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O direito da “intenção” do autor sobre o julgamento do crítico tem sido con­siderado em uma série de discussões recentes, em especial no debate intitulado The Personal heresy, entre os professores Lewis e Tillyard. É, entretanto, duvi­doso que este direito e a maior parte de seus corolários românticos estejam por ora sujeitos a qualquer questionamento mais difundido. Os presentes es­critores, em curto artigo intitulado “Intention” para um Dicionário^ de crítica literária, levantaram a questão, mas foram incapazes de desenvolver suas im­plicações na devida extensão. Argumentamos que o desígnio ou a intenção do autor não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária e nos parece que este princípio penetra em certas desavenças na história das atitudes críticas. E um princípio que, aceitado ou rejeitado, aponta para os pares opostos da “imitação” clássica e da expressão romântica. Ela acarreta algumas afirmações específicas sobre a inspiração, a autenticidade, a biografia, a história literária e a erudição, bem como certas tendências da poesia moderna, especialmente sobre seu caráter alusivo. E difí­cil haver um problema de crítica literária em que a abordagem do crítico não seja qualificada por suas idéias acerca da “intenção”.

Como entenderemos o termo, “intenção” corresponde a aquilo que se pretendeu, a empregar uma fórmula que, de modo mais ou menos explícito, tem tido ampla aceitação. “Para julgarmos a realização do poeta, devemos conhecer o que ele tencionava”. A intenção é o desígnio ou o plano na mente do autor. A intenção tem afinidades óbvias com a atitude do autor quanto à sua obra, o modo como sentia, o que o fez escrever.

Começamos nossa discussão com uma série de proposições esque- matizadas e abstratizadas a um tal grau que nos parecem axiomáticas.

1. Um poema não passa a existir por acaso. As palavras de um poema, como observou o prof. Stoll, não surgem de uma cartola mas de uma cabeça. Insistir, contudo, no intelecto designante como causa de um poema não sig­nifica conceder ao desígnio ou intenção o papel de um padrão pelo qual o crítico pode julgar o valor da realização do poeta.

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LUIZ COSTA LIMA

2. Devemo-nos indagar como o crítico espera alcançar uma resposta à pergunta sobre a intenção. Como deve descobrir o que o poeta procurou fazer? Se o poeta teve exito em realizá-lo, então o próprio poema mostrará o que ele tentava realizar. E, se o poeta não foi bem-sucedido, então o poe­ma não é uma prova adequada e o crítico deve extrapolar o poema, na busca de evidenciar uma intenção que não se efetivou no poema. “Devemos ape­nas manter uma cautela”, diz um eminente intencionalista2 no momento em que sua teoria repudia a si próprio; “o objetivo do poeta deve ser julgado no momento do ato criador, ou seja, pela arte do próprio poema”.

3. Julgar um poema é como julgar um pudim ou uma máquina. Exige-se que ele funcione. Só inferimos a intenção do artesão porque seu produto funciona. “Um poema não deve significar, mas ser.” Um poema pode ser apenas através de seu significado — já que seu meio são as palavras — e, contudo, ele é, simplesmente é, no sentido de que não temos desculpa algu­ma para nos indagarmos que parte é intencional ou pretendida. A poesia é uma operação do estilo pela qual um complexo de significado é apreendido de um só golpe. A poesia triunfa porque tudo ou quase tudo que nela se diz ou se encontra implícito é relevante; o que não importa foi excluído, como os caroços de um pudim ou os enguiços de uma máquina. A este respeito, a poesia difere das mensagens práticas, que são bem-sucedidas se e apenas se inferimos corretamente sua intenção. Por isso elas são mais abstratas que a poesia.

4. O significado de um poema por certo pode ser pessoal, no sentido de que um poema expressa uma personalidade ou estado de alma e não um objeto físico, como uma maçã. Mas, até mesmo um poema lírico curto é dramático, sendo a resposta de um falante (por mais abstrata que se lhe conceba) a uma situação (por mais universal que seja). Devemos atribuir os pensamentos e atitudes do poema de imediato ao falante dramático e, se de algum modo ao autor, apenas por um ato de inferência biográfica.

5. Tem sentido a afirmação de que o autor, por meio da revisão de sua obra, pode melhor captar sua intenção original. Mas é um sentido muito abstrato. Ele pretendia escrever uma obra melhor, ou melhor de certo tipo, e agora o alcançou. Mas ocorre que sua concreta intenção inicial não era sua intenção. “E o homem que procurávamos, é verdade”, diz o rústico delegado de polícia de Thomas Hardy, “contudo não é o homem que procurávamos. Pois o homem que procurávamos não era o homem que queríam os.”

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“O crítico”, pergunta o professor Stoll, “não é um juiz que não explora sua própria consciência, mas determina o significado ou intenção do autor, como se o poema fosse um testamento, um contrato ou a constituição? O poema não pertence ao crítico.” O autor diagnosticou com agudeza duas formas de irresponsabilidade, uma das quais é de sua preferência. Nossa opinião é, contudo, diferente. O poema não pertence nem ao crítico, nem ao autor (desliga-se do autor ao nascer e percorre o mundo subtraindo-se ao poder ou ao controle do criador sobre ele). O poema pertence ao público. Corporifica-se na linguagem, posse peculiar do público, e trata do ser huma­no, objeto de conhecimento público. O que se diz sobre o poema é sujeito à mesma indagação que qualquer afirmativa em lingüística ou na ciência geral da psicologia.

Um crítico de nosso artigo no Dictionary, Ananda K. Coomaraswamy, argumentou3 haver dois tipos de questionamento da obra de arte: (1) se o artista realizou suas intenções; (2) se a obra de arte “deveria ter sido de todo empreendida” e, portanto, “se vale a pena preservá-la”. Coomaraswamy sustenta que o questionamento (2) não é “a crítica de uma obra de arte como obra de arte”, mas uma crítica de ordem ética; é o questionamento (1) que constitui a crítica artística. Mas sustentamos que (2) não precisa ser crítica moral: há um outro modo de decidir se as obras de arte merecem ser preser­vadas e se, em um certo sentido, “devem” ser empreendidas, e é esta forma da crítica objetiva das obras de arte como tais a que nos permite distinguir entre um assassínio engenhoso e um engenhoso poema. Um assassínio enge­nhoso é um exemplo que Coomaraswamy emprega e, em seu sistema, a dife­rença entre o assassínio e o poema é simplesmente “moral”, não “artística”, pois cada um, executado de acordo com o plano, é “artisticamente” bem- sucedido. Sustentamos que (2) é um questionamento de mais valia que (1) e, uma vez que (2) e não (1) é capaz de distinguir a poesia do assassínio, o nome “crítica artística” é adequadamente concedido a (2).

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Não é tanto uma afirmativa histórica quanto uma definição dizer que a falácia intencional é romântica. Quando um retórico do século I escreve: “O subli­me é o eco de uma grande alma” ou quando nos diz que “Homero entra nas ações sublimes de seus heróis” e “compartilha a plena inspiração do combate”,

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não nos surpreenderemos em encontrar este retórico considerado um pre­cursor distante do romantismo e aclamado nos termos mais calorosos por Saintsbury. Pode-se discutir se Longino deveria ser chamado romântico, mas dificilmente se poderia duvidar que em certo sentido o é.

As três questões levantadas por Goethe para a “crítica construtiva” são: “O que o autor se propôs fazer? Seu plano foi razoável e sensato e até que ponto conseguiu realizá-lo?” Se abandonamos a pergunta intermediária, tem- se com efeito o sistema de Croce — o auge e coroamento da expressão filo­sófica do romantismo. O belo é a intuição-expressão bem-sucedida e o feio é o malsucedido; a intuição ou parte privada da arte é o fato estético, en­quanto o meio ou parte pública não é objeto da estética.

A Madonna de Cimabue ainda se encontra na Igreja de Santa Maria Novella; mas continuará falando ao visitante de hoje como aos florentinos do século XIII?

“A interpretação histórica luta (...) por reintegrar em nós as condições psicológicas que mudaram no decurso da história. Ela (...) nos possibilita ver uma obra de arte (um objeto físico) como seu autora viu no momento de sua produção.”4

O primeiro grifo é de Croce, o segundo é nosso. O sistema de Croce leva a uma ênfase ambígua na história. Tomando tais passagens como ponto de partida, um crítico pode escrever uma bela análise do significado ou “espíri­to” de uma peça de Shakespeare ou Corneille — processo que envolve um rigoroso exame histórico mas permanece crítica estética — ou pode, com a mesma plausibilidade, escrever um ensaio sociológico, biográfico ou doutro tipo de história não-estética.

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“Fui aos poetas; trágicos, ditirâmbicos e de todos os tipos. (...) Tomei algu­mas das passagens mais elaboradas de suas obras e perguntei-me sobre seu significado. (...) Vocês me acreditariam? (...) E difícil que um dos presentes não falasse melhor sobre a poesia deles do que eles próprios o fizeram. En­tão percebi que não é por sua sabedoria que os poetas compõem suas obras, mas por uma espécie de gênio e inspiração.”

Esta reiterada desconfiança quanto aos poetas, que recebemos de Sócrates, pode ter sido parte de uma visão rigorosamente ascética da qual é muito difícil

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que queiramos participar, muito embora o Sócrates de Platão tenha captado uma verdade sobre a mente poética que o mundo já não percebe comumente, depois de tanta crítica e da espécie mais inspirada e mais passionalmente lem­brada, procedente dos próprios poetas.

Por certo os poetas tinham algo a dizer que o crítico e o professor não podiam; sua mensagem era mais empolgante: que a poesia deveria vir tão naturalmente quanto as folhas a uma árvore, que a poesia é a lava da imaginação ou que é emoção relembrada na tranqüilidade. Mas é necessá­rio que percebamos o caráter e a autoridade de um tal testemunho. Há apenas uma fina sombra de diferença entre estas expressões e uma espécie de conselho zeloso que os autores oferecem com freqüência. E o que se verifica com Edward Young, Carlyle, Walter Pater: “Conheço duas regras de ouro da ética, não menos preciosas na Com position do que na vida. 1. Conhece-te a ti mesm o; 2. Reverencia a ti p r ó p r io “Este é o grande segre­do para encontrar leitores e retê-los: faça com que aquele que emocionaria e convenceria a outros seja o primeiro a ser emocionado e convencido. A regra de Horácio, Si vis me flere, é aplicável em um sentido mais amplo que o literal. Para cada poeta, para cada escritor, poderíamos dizer: se queres ser acreditado, sejas verdadeiro.” “Verdade! Nenhum mérito pode haver nem arte alguma sem ela. Além disso, toda beleza é, a longo prazo, apenas o refinamento da verdade ou, o que chamamos de expressão, a mais aguda adequação da fala à visão interior.”

O pequeno manual de Housman sobre a mente poética fornece esta ilus­tração: “Depois de beber uma caneca de cerveja no almoço — cerveja é um sedativo para o cérebro e minhas tardes são a parte menos intelectual de minha vida —, saía para um passeio de duas ou três horas. Enquanto caminhava, sem pensar em nada em particular, apenas olhando para as coisas a meu re­dor e acompanhando a mudança das estações, fluíam em minha mente, com repentina e indescritível emoção, às vezes uma ou duas linhas de verso, às vezes toda uma estrofe de uma só vez.”

Este é o término lógico da série já citada. Deparamo-nos aqui com uma confissão de como os poemas eram escritos, que define exatamente a poesia como uma “emoção relembrada na tranqüilidade” — podendo o jovem poe­ta de igual decorá-la como uma regra prática. Beber uma caneca de cerveja, relaxar, ir andando, pensar em nada em particular, olhar as coisas, entregar- se a si mesmo, procurar a verdade em sua própria alma, ouvir o som de sua voz interior, descobrir e expressar a vraie vérité.

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L ü I 7 C O SI / ' K ! M A

Provavelmente é verdade que tudo isso representa um excelente conse­lho para os poetas. A imaginação jovem, inflamada por Wordsworth e Carlyle, provavelmente está mais próxima do ato de produzir um poema do que a mente do estudante que se fez sóbria pela leitura de Aristóteles ou Richards. A arte de inspirar poetas, pelo menos de incitar algo parecido à poesia nos jovens, sem dúvida avançou mais em nossos dias do que nunca. Livros sobre escrita criadora, como os produzidos pela Lincoln School, são uma prova interessante do que uma criança pode fazer*5 Tudo isso, entretanto, parece pertencer a uma arte separada da crítica — a ema disciplina psicológica, a um sistema de auto-aperfeiçoamento, a uma Ioga, que talvez faça bem ao poeta jovem observar, mas que é um tanto diferente da capacidade pública de ava­liar poemas»

Coleridge e Arnold foram melhores críticos que a maioria dos poetas e, se a tendência crítica ressecou a poesia em Arnold e talvez em Coleridge, isso não é Incongruente com nosso argumento de que o julgamento dos poe­mas é distinto da arte de escrevê-los. Coleridge nos deu a clássica história ^âfiódina” e conta o que pode acerca da gênese de um poema, coisa a que chama de “curiosidade psicológica55. Mas suas definições da poesia e da qua­lidade poética da “imaginação" devem ser encontradas noutra parte e em termos bem diversos.

Seria conveniente que as senhas da escola Intencional, “sinceridade”, “fidelidade”, “espontaneidade55, “autenticidade”, “genuinidade”, “originali­dade”, pudessem ser equiparadas a termos como “integridade”, “relevância”, “unidade”, “função”, “maturidade”, “sutileza”, “adequação” e outros mais precisos, se é que “expressão” sempre tem o significado de realização estéti­ca, Mas isso não é verdade,

A arte “estética” — 07 c professor Curt Ducasse, um engenhoso teórico da expressão — é a objetivação consciente dos sentimentos, tendo o momento crítico como uma de suas partes intrínsecas. O artista corrige a objetivação quando esta não é adequada, Mas isto pode significar que a tentativa anterior não fora bem-sucedida em objetivar o eu ou “também significar que era uma objetivação bem-sucedida de um eu que, ao nos confrontarmos claramente com ele, repudiávamos e renegávamos em favor de outro”.6 Qual o padrão pelo qual renegamos ou aceitamos o eu? O professor Ducasse não o diz. Qualquer que seja este padrão, entretanto, é ele um elemento na definição da arte que não se reduzirá a termos de objetivação. A avaliação da obra de arte permanece pública; a obra é medida em relação a algo externo ao autor.

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IV

Há critica de poesia e psicologia do autor. Esta, aplicada ao presente ou ao futuro, toma a forma de uma promoção inspiracional; mas a psicologia do autor também pode ser histórica e então temos a biografia literária, um estu­do legítimo e atraente em si mesmo, constituindo uma abordagem, como diria o professor Tillyard, da personalidade e que subordina o poema a uma abor­dagem apenas paralela. Não precisamos, por certo, ter uma intenção depre­ciativa ao afirmarmos serem os estudos biográficos distintos dos poéticos, dentro da especialização literária. Há, entretanto, o risco de se confundirem os estudos biográficos e os poéticos, havendo ainda o perigo de tomar-se o biográfico pelo poético.

Considerando o significado de um poema, há uma distinção entre a prova interna e a externa. E afirmar que o que é (1) interno é também público, cons­titui um paradoxo apenas verbal e de superfície, porquanto a prova interna é descoberta através da semântica e da sintaxe de um poema, através de nosso conhecimento habitual da linguagem, através das gramáticas, dos dicionários, de toda a literatura que é a fonte dos dicionários, através, em geral, de tudo que forma a linguagem e a cultura; enquanto o que é (2) externo é particular ou idiossincrático, não uma parte da obra enquanto fato lingüístico, consiste em revelações (por exemplo, em diários, cartas ou conversa) sobre como ou por que o poeta escreveu o poema, a que dama, enquanto sentado em que gramado ou na ocasião da morte de qual amigo ou irmão. Há (3) uma espécie intermédia de prova sobre o caráter do autor ou sobre os significados privados ou semiprivados, que se ligam a palavras ou temas de um autor do círculo a que pertencia. O significado de uma palavra é a história desta palavra e a bio­grafia de um autor, a maneira como usava a palavra. As associações que a pa­lavra assumia para ele participam da história e do significado da palavra.7 Mas os três tipos de prova, especialmente (2) e (3), se ocultam um no outro tão sutilmente que nem sempre é fácil traçar uma linha entre os exemplos. Daí surge a dificuldade da crítica. O emprego da prova biográfica não precisa en­volver a intencionalidade, porque, enquanto pode evidenciar aquilo que o autor pretendia, também pode evidenciar o significado de suas palavras e o caráter dramático de uma elocução. Por outro lado, pode não ser tudo isso. E um crí­tico que se preocupa com a prova do tipo (1) e, moderadamente, com a do tipo (3) fará a longo prazo uma espécie diferente de comentário do que o crí­tico que se preocupa com (2) e com (3), quando esta se oculta sob (2).

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Toda a brilhante exibição de Road to Xanadu do professor R. Lowes, por exemplo, fica na fronteira entre os tipos (2) e (3) ou atravessa valentemente a região romântica de (2). “Kubla Khan”, diz o professor Lowes, “é entrela­çar-se de uma visão, mas cada imagem que surgia em sua tessitura já passara antes por aquele caminho. E pareceria que não há nada de fortuito ou casual neste retorno.” Isso não é bastante claro, nem mesmo quando o professor Lowes explica que havia aglomerados de associações, como átomos enlaça­dos, que foram levados a uma complexa relação com outros aglomerados no poço profundo da memória de Coleridge e que se amalgamaram então e irromperam como poemas. Se não existia nada “casual ou fortuito” na ma­neira como as imagens retornaram à superfície, isso pode significar (1) que Coleridge não podia criar aquilo que não possuía, que era limitado em sua criação por aquilo que lera ou de algum modo experimentara ou (2) que, tendo recebido certos feixes de associações, se inclinava a fazê-las retornar exatamente pelo mesmo caminho que empreendera e que o valor do poema pode ser descrito em termos das experiências em que ele teria de se haurir. Este último par de proposições (uma espécie de associacionismo hartleyano que o próprio Coleridge repudiou na Biographia) pode ser refutado. Have­ria, por certo, outras combinações, outros poemas, piores ou melhores, que poderiam ter sido escritos por homens que leram Bartram, Purchas, Burce e Milton. E isso será verdadeiro, não importa quantas vezes possamos repetir o brilhante complexo das leituras de Coleridge. Em certos torneios, como o da sentença que citamos, e nos títulos de capítulos como “The Shaping spirit”, “The Magical synthesis”, “Imagination creatríx”, pode ocorrer que o pro­fessor Lowes pretenda dizer mais sobre os presentes poemas do que o faça. H á uma certa variedade enganosa nestes caprichosos títulos de capítulos; espera-se passar a um novo estágio na discussão e nos deparamos com mais fontes, com mais dados sobre “a contínua natureza da associação”.8

Wohin der Weg? (Para onde leva o caminho?) — cita o professor Lowes, como epígrafe de seu livro. Kein Weg! Ins Unbetretene (Não há caminho! Para o intrilhável). Precisamente, porque o caminho é unbetreten (intrilhável) de­veríamos dizer: leva para longe do poema. O Traveis de Bartram contém mui­to da história de certas palavras e de certos conceitos românticos rebuscados que aparecem no “Kubla Khan”. E muito desta história passara e estava pas­sando para o interior de nossa linguagem. Talvez uma pessoa que tenha lido Bartram aprecie o poema mais do que quem não o tenha feito. Ou, ao olhar o vocabulário de “Kubla Khan”, no Oxford english dictionary , ou ao ler algo

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doutros livros ali citados, possa melhor conhecer o poema. Mas teria pouca relação com o poema saber que Coleridge lera Bartram. Há um amplo corpus de vida, de experiência mental e sensorial subjacentes a cada poema e que, em certo sentido, o provoca. Mas ele nunca pode e não precisa ser conhecido na composição verbal e portanto intelectual que constitui o poema. Para todos os objetos de nossa múltipla experiência, para cada unidade, há uma ação da mente que arranca as raízes e dissolve o contexto. Do contrário, nunca teríamos ob­jetos ou idéias ou qualquer outra coisa sobre o que falar.

E provável que não haja nada no vasto livro do professor Lowes que pudesse desacreditar a apreciação de qualquer pessoa quer de The Ancient mariner, quer do “Kubla Khan”. Apresentaremos, em seguida, um caso em que a preocupação com a prova de tipo (3) foi ao ponto de distorcer a visão do crítico sobre certo poema (embora não seja um caso tão óbvio quanto os que proliferam em nossas revistas críticas).

Em um conhecido poema de John Donne, aparece este quarteto:

Moving o f t h ’eartk harmes and feares,Men reckon what it did and meant,

But trepidation o f the spheares,Though greater farre, is innocent*

Um crítico, que oferece recentemente um tratamento elaborado à erudi­ção de Donne, escreveu o seguinte sobre os citados versos: “Ele toca a pulsa­ção emocional da situação por uma habilidosa alusão à astronomia nova e antiga. (...) Da nova astronomia, o ‘movimento da terra5 é o princípio mais radical; da antiga, a ‘trepidação das esferas5 é a moção de maior complexida­de. (...) O poeta deve exortar seu amor pela calma e imobilidade no momen­to de sua partida; e com este propósito a figura baseada no último movimento (trepidação), há muito incorporada na astronomia tradicional, adequada­mente sugere a tensão do momento, sem despertar os £males e terrores5 im­plícitos na figura da terra movente.”9

O argumento é plausível e se apoia numa tese bem sedimentada de que Donne era profundamente interessado na nova astronomia e em suas reper­cussões no campo teológico. Em várias obras, Donne revela sua familiaridade

*0 movimento da terra causa males e terrores / Os homens estimam o que fez e indicou, / Mas a trepidação das esferas, / Embora em grau muito maior, é inocente. (N. da T.)

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com De stella nova, de Kepler, com Siderius nuncius, de Galileu, com De magnete, de William Gilbert e com o comentário de Clavius sobre De Sphaera, de Sacrobosco. Refere-se à nova ciência no seu Sermão em “PauPs cross” e em uma carta dirigida a Sir Henry Goodyer. Em The First anniversary, decla* ra que “a nova filosofia põe tudo em dúvida”. Em “Elegy on prince Henry”, afirma que o “mínimo movimento do centro” faz “o mundo tremer”.

E difícil contestar um argumento como este e impossível respondê-lo com uma prova de natureza semelhante. Não há motivo por que Donne não hou­vesse escrito uma estrofe onde os dois tipos de movimento celestial repre- sentassem duas espécies de emoção na despedida. E, se nos enchemos de idéias astronômicas e vemos Donne apenas em relação ao conhecimento da nova ciência, podemos acreditar que ele o possuía. Mas o próprio texto permane­ce ali para ser tratado, o veículo analisável de uma complicada metáfora. E pode-se notar: (1) que o movimento da terra, de acordo com a teoria copernicana, é um movimento celestial, suave e regular e, embora pudesse causar temores religiosos ou filosóficos, não podia se associar à crueza e à terrenalidade do tipo de emoção que o falante deseja desencorajar no poe­ma; (2) que há um outro movimento da terra, um terremoto, que tem exata­mente estas qualidades e deve ser associado às torren tes de lágrimas e tempestades de suspiros da segunda estrofe do poema; (3) que a “trepida­ção” é um contrário adequado para terremoto, porque ambas são um movi­mento de tremor ou de vibração; e a “trepidação das esferas” é de “grau maior” que um terremoto, mas não muito maior (se estes dois movimentos puderem ser comparados quanto à grandeza) que o movimento anual da Terra; (4) que a avaliação do que “fez e indicou” mostra que o acontecimento pas­sara, como um terremoto, não como o incessante movimento celestial da Ter­ra. Talvez o conhecimento do interesse de Donne pela nova ciência possa acrescentar mais uma nuança de significado, um sobretom à estrofe em ques­tão, conquanto esta afirmação contradiga as palavras. Tornar a antítese geocêntrica e heliocêntrica o âmago da metáfora é desconsiderar a língua inglesa, é preferir a prova particular à pública, a externa à interna.

V

Se a distinção entre os tipos de prova tem implicações para a crítica históri­ca, não as tem em menor grau para o poeta contemporâneo e seu crítico.

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Ou, uma vez que cada regra para o poeta não passa do reverso de um julga­mento por um critico, e uma vez que o passado é o reino do estudioso e do crítico, enquanto o futuro e o presente é o do poeta e dos críticos que lide­ram o gosto, poderíamos então dizer que os problemas que surgem na erudi­ção literária, a partir da falácia Intencional, se assemelham a outros que surgem eo campo da experimentação progressiva.

A questão da alusividade, por exemplo, como perspicazmente posta pela poesia de Eliot, é do tipo que leva a um julgamento falso a envolver ema falácia Intencional. A freqüência e a profundidade das alusões literárias na poesia de Eliot e de outros têm conduzido muitos a perseguirem significa­dos absolutos no Golden bough, de Frazer, e no drama elisabetano. Isso chegou a tal ponto que já se tornou uma espécie de lugar-comum supor que não sabemos o que um poeta quer dizer a menos que o reconstituamos em sua leitura — suposição por certo Impregnada de Implicações Intencio­nais. A posição assumida por F. O. Mathlessen é eloglável e elimina parci­almente o problema: — “Se lemos estes versos escutando-os com atenção e mostrando-nos sensíveis a suas repentinas mudanças de ritmo, o contraste entre o Tâmisa real e sua visão Idealizada em uma época em que ainda não atravessava uma megalópole, nos é fortemente transmitido por seu pró* prlo ritmo, quer reconheçamos ou não ser o estribilho da autoria de Spencer”.

As alusões de Eliot funcionam quando as conhecemos e, em grande par­te, até mesmo quando não as conhecemos, através do poder de sugestão que contêm.

Mas por vezes encontramos alusões apoiadas por notas. É uma questão pertinente indagar se estas são como guias que nos conduzem para onde possamos ser educados ou se operam como indicações auto-suficientes so­bre o caráter das alusões. “Quase tudo que tem importância (...) para uma apreciação de The W aste land”, escreve Mathiessen sobre o livro de Jessie Weston, “foi incorporado à estrutura do próprio poema ou às notas de Eliot.” E, admitindo-se isso, pode-se começar a ver que não importa muito se Eliot inventou suas fontes (do mesmo modo como Sir Walter Scott in­ventou epígrafes de capítulos a partir de “antigas peças teatrais” e autores “anônimos” e do mesmo modo como Coleridge escreveu glosas à margem de The Ancient mariner). Alusões a Dante, Webster, Marvell ou Baudelaire sem dúvida tiram proveito do fato de que estes escritores existiram, mas é

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duvidoso que se possa dizer o mesmo a respeito de uma alusão a um obscu­ro elisabetano:

The sound ofhorns and motors, which shall bring Sweeney to Mrs. Porter in the spring*

“Cf. Day, Parliament of bees”: diz Eliot

When of a sudden, listening, you shall hears A noise ofhorns and hunting which shall bring Actaeon to Diana in the spring,Where ali shall see her naked sk in **

A ironia é completada pela própria citação; se Eliot, como é concebível, compõe esses versos para mostrar sua própria erudição, não haveria qualquer perda de validade. A convicção pode aumentar ao lermos a próxima nota de Eliot: “Desconheço a origem da balada de que esses versos derivam; sua informação vem-me de Sydney, Austrália.” A palavra importante nesta nota — sobre a senhora Porter e sua filha que lavavam os pés com água de soda é cbalada\ E, se percebermos sua qualidade de ‘balada’ pelos próprios versos, a nota será ociosa. Em última análise, a investigação deve-se concentrar na integridade destas notas como partes do poema, pois, quando constituem uma informação especial sobre o significado de frases do poema, devem ser objeto da mesma indagação a que se sujeitam quaisquer outras palavras queo compõem. Mathiessen crê que as notas foram o preço que Eliot “teve de pagar a fim de evitar que se dissesse que abafara a energia de seu poema pelas extensas ligações dentro do mesmo”. Pode-se contudo contestar que as notas e a necessidade delas são igualmente sufocantes. De maneira plausível, F. W. Bateson argumentou que “The Sailor boy” (O menino marinheiro) de Tennyson, seria melhor se metade da estrofe fosse omitida e as melhores versões de baladas, como “Sir Patrick Spens”, devem sua força exatamente à audácia com que o menestrel supunha conhecida a história que comentava. Que ocorre então se um poeta achar que não pode supor como evidente muita coisa em um contexto menos conhecido e, em vez de escrever de

*0 som das buzinas e motores, que trarão / Sweeney para a senhora Porter na primavera. (N. daT.)** Quando, de repente, ouvindo, ouvirão / Um som de trompas e caçadas que trarão / Acteon a Diana na primavera, / Onde todos verão sua pele nua. (N. da T)

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modo informativo, fornecer notas? Deve-se dizer em favor deste que pelo menos as notas não fingem ser dramáticas, como seriam se escritas em verso. Por outro lado, as notas podem parecer um material não assimilado, que permanece supérfluo ao lado do poema, necessário para o significado do símbolo verbal, mas não integrado, de modo que o símbolo fica incompleto.

Sugerimos por esta análise que, embora notas tendam a justificar a si mes­mas como índices externos à intenção do autor, devem, não obstante, ser julgadas como qualquer outra parte da composição (o arranjo verbal específi­co a um contexto particularizado) e que, quando são assim julgadas, a sua rea­lidade como partes do poema ou sua integração imaginativa com o resto do poema pode ser questionada. Mathiessen, por exemplo, encara os títulos de poemas de Eliot e suas epígrafes como um aparato informativo à semelhança de notas. Mas, enquanto se preocupa com algumas das notas e pensa que Eliot “parece estar zombando de si mesmo ao escrever a nota, ao mesmo tempo que deseja transmitir algo com ela”, Mathiessen crê que o “estratagema” das epígrafes “de modo algum dá lugar à objeção de não ser suficientemente es­trutural”. Acrescenta ele, “a intenção é possibilitar ao poeta garantir uma ex­pressão condensada dentro do próprio poema”. Em cada caso, a epígrafe temo propósito de constituir-se em parte integrante do efeito do poema. E o pró­prio Eliot, em suas notas, justificou sua prática em termos de intenção: “O enforcado, membro do baralho tradicional, serve a meu propósito de duas maneiras: porque em minha mente se associa ao Deus enforcado de Frazer, e porque o associo à figura disfarçada na passagem dos discípulos de Emaús na parte V (...) O homem com três pentagramas (um membro autêntico do bara­lho Tarot) associo-o, com bastante arbitrariedade, ao próprio Rei pastor.”

Talvez o poeta deva ser aqui tomado mais a sério, mostrando-se assim desarmado numa nota, do que deveria ser em suas Norton lectures (Confe­rências de Norton), ao comentar sobre a dificuldade de dizer o que significa um poema, jocosamente acrescentando que pensa pôr como introdução à segunda edição de Ahs W ednesday alguns versos de Don Juan:

I dorít pretend that I quite understand My own meaning when I would be very fine;But the fact is that I have nothing planned Unless it were to be a moment merry *

TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 2

*Não finjo que entendo bem / Meu próprio significado quando estou muito bem, / Mas o fato é que não tenho nada planejado / A menos que fosse uma alegria passageira. (N. da T.)

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LUIZ COSTA LIMA

Se Eliot e outros poetas contemporâneos têm alguma falha característica esta bem pode ser a de planejar demais.

A alusividade na poesia é um dos grandes problemas críticos que usei para ilustrar o tema mais abstrato da intencionalidade, mas pode servir, nos dias que correm, como sua ilustração primordial. Como prática poética, a alusividade chega a me parecer, em certos poemas recentes, um corolário extremo da pressuposição intencionalista romântica e, como problema críti­co, ela desafia e faz ressurgir de modo especial a premissa básica da inten- cionalidade. O seguinte exemplo da poesia de Eliot pode servir para resumir as implicações práticas do que afirmamos. Em “The Love song of J. Alfred Prufrock”, próximo ao final, surge o verso.

I have heard the mermaids singing, each to each*

Isso apresenta uma certa semelhança com um verso de ema canção de John Donne:

Teach me to heare Mermaids singing

Deste modo, para o leitor até certo ponto familiarizado com a poesia de Donne, surge uma questão crítica: o verso de Eliot é uma alusão ao de Donne? Estará Prufrock pensando em Donne? Estará Eliot pensando em Donne? Suge­rimos que há duas maneiras radicalmente diversas de buscar uma resposta a esta pergunta. Há (1) o modo da análise poética e da exegese, que se indaga se faz algum sentido o fato de Eliot-Prufrock estar pensando em Donne. Numa parte anterior do poema, quando Prufrock pergunta:

W ould it have been worth while,(...)To have squeezed the universe into a bali**

suas palavras extraem parte de sua tristeza e ironia de certos versos enérgi­cos e apaixonados de Marvell, em “To his coy mistress” (A sua pudica aman­te). Mas o exegeta pode-se indagar se o fato de as sereias consideradas como

*Ouvi as sereias cantando, uma para outra. (N. da T.)**Teria valido a pena (...) amassar o universo em uma bola. (N. da T.)

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TEORIA DA LITERATURA EM SUAS FONTES — VOL. 2

“estranhas visões” (ouvi-las é, no poema de Donne, análogo ao fato de a mu­lher ficar grávida com o poder da semente da mandrágora) tem muita rela­ção com as sereias de Prufrock, que parecem ser os símbolos do romance do dinamismo e que, incidentalmente, recebem uma autenticação literária, se esta for necessária, em um verso de um soneto de Gérard de Nerval. Este método de indagação pode levar à conclusão de que a suposta semelhança de Eliot com Donne não tem importância e que melhor seria nela não cogi­tar ou de que o método pode apresentar a desvantagem de não fornecer ao certo nenhuma conclusão. Sugerimos contudo que esta é a forma de crítica verdadeira e objetiva, considerando a grande incerteza que a exegese pode­ria levar a um segundo tipo de crítica: (2) trata-se da indagação de tipo gené­tico ou biográfico. Dentro desta, aproveitando do fato de Eliot ainda estar vivo, o crítico, com o espírito de um homem que faz uma aposta, escreveria para Eliot e lhe perguntaria o que pretendia dizer ou se estava pensando em Donne. Não poderemos aqui afirmar quais seriam as probabilidades — se Eliot responderia que não quis revelar nada, que não tinha nada em mente, resposta que seria bem apropriada, ou se, em um momento desprevenido, forneceria uma resposta clara e, dentro de seus limites, irrefutável. Nossa opinião é que a resposta para uma tal pergunta nada tem a ver com o poema “Prufrock”; pois esta não seria uma pergunta crítica. As perguntas críticas, contrariamente às apostas, não são respondidas desta maneira. Não são re­solvidas pela consulta a um oráculo.

Tradução e revisãoL u i z a L o b o

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Notas

1. Dictionary of world literature, Joseph T. Shipley (org.), Nova York, 1942, pp. 326-9.2. J. E. Spingarn, “The New criticism”, in Criticism in America, Nova York, 1924,

pp. 24-5.3. Ananda K. Coomaraswamy, “Intention”, in American bookman, 1 (1944), pp. 41-484. E verdade que o próprio Croce, em seu Ariosto, Shakespeare and Corneille, Lon ­

dres, 1920, cap. VII, “The Practical personality and the poetical personality”, e em seu Defence of poetry, Oxford, 1933, p. 24 e noutros lugares, cedo e tarde atacou com eficácia o geneticismo emocional. Mas a principal inclinação da Aesthetic, é, sem dúvida, em favor da intencionalidade cognitiva.

5. Ver Hughes Mearns, Creative youtb, Garden City 1925, esp. 10, pp. 27-29. A técni­ca de poemas por inspiração foi, aparentemente, há pouco superada pelo estudo da inspiração em poetas e outros artistas bem-sucedidos. Ver, por exemplo, Rosamond E. M. Harding, An Anatomy of inspiration, Cambridge, 1940; Julius Portnoy, A psycbology ofart creation, Filadélfia, 1942; Rudolf Arnheim e outros, Poets at work, Nova York, 1974; Pryllis Bartlett, Poems in process, Nova York, 1951; Brewster Chiselin (org.), The Creative process: a symposium, Berkeley e Los Angeles, 1952.

6. Curt Ducasse, The Philosopby of art, Nova York, 1929, p. 116.7. E a história da palavra, depois de um poema ser escrito, pode contribuir com sig­

nificados que, embora importantes à matriz original, não deveriam ser eliminados por um escrúpulo quanto à intenção.

8. Os caps. VII, “The Pattern” e XVI, “The Known and familiar landscape”, serão considerados de máxima ajuda para o estudioso do poema.

9. Charles M. Coffin, John Donne and the new philosophy, Nova York, 1927, pp. 97-98.

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