capítulo 2 - ulisboa

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9 Capítulo 2 Argumentação, ensino e aprendizagem matemática Quando decidimos defender uma conclusão numa argumentação é porque tal conclusão é uma proposição e pretendemos que ela seja verdadeira. Para esta defesa, encadeamos as premissas de modo que elas fundamentem a conclusão, ou seja, construímos um argumento. (Nilson Machado e Marisa Cunha, 2005) No presente capítulo começo por abordar o que, de um modo geral, se entende por argumentação e refiro as diferentes dimensões que a caracterizam. Em seguida, abordo a argumentação em Matemática e discuto a sua relação com a demonstração ou prova matemática. Saliento, também, a importância do discurso argumentativo e o modo como pode ser fomentado na sala de aula. Por último, analiso o trabalho do professor na promoção da argumentação na aula de Matemática. Argumentos e argumentação De um modo geral, a argumentação é a acção ou o resultado de expor um conjunto de razões, fundamentos ou argumentos para provar uma tese, defender uma opinião ou fundamentar uma crítica, de modo a chegar a uma conclusão ou justificação (Academia das Ciências de Lisboa, 2001). A argumentação emerge quando um assunto é polémico e quando são apresentados pontos de vista. É necessário que quem argumenta esteja preparado para defender as suas razões, de modo a torná-las aceites por aqueles a quem a argumentação se dirige. Como referem Machado e Cunha (2005),

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Capítulo 2

Argumentação, ensino e aprendizagem matemática

Quando decidimos defender uma conclusão numa

argumentação é porque tal conclusão é uma

proposição e pretendemos que ela seja

verdadeira. Para esta defesa, encadeamos as

premissas de modo que elas fundamentem a

conclusão, ou seja, construímos um argumento.

(Nilson Machado e Marisa Cunha, 2005)

No presente capítulo começo por abordar o que, de um modo geral, se entende

por argumentação e refiro as diferentes dimensões que a caracterizam. Em seguida,

abordo a argumentação em Matemática e discuto a sua relação com a demonstração ou

prova matemática. Saliento, também, a importância do discurso argumentativo e o modo

como pode ser fomentado na sala de aula. Por último, analiso o trabalho do professor na

promoção da argumentação na aula de Matemática.

Argumentos e argumentação

De um modo geral, a argumentação é a acção ou o resultado de expor um

conjunto de razões, fundamentos ou argumentos para provar uma tese, defender uma

opinião ou fundamentar uma crítica, de modo a chegar a uma conclusão ou justificação

(Academia das Ciências de Lisboa, 2001). A argumentação emerge quando um assunto

é polémico e quando são apresentados pontos de vista. É necessário que quem

argumenta esteja preparado para defender as suas razões, de modo a torná-las aceites

por aqueles a quem a argumentação se dirige. Como referem Machado e Cunha (2005),

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na argumentação, as razões, contra ou a favor de determinada ideia, devem ser de modo

a “parecer[em] convincente[s] e persuadir[em] os outros” (p. 13).

De Chiaro e Leitão (2005) referem-se à argumentação como uma “actividade

social e discursiva que se realiza pela defesa de pontos de vista e consideração de

perspectivas contrárias, com o objectivo último de promover mudanças nas

representações dos participantes, sobre o tema discutido” (p. 350). Segundo as autoras,

é pela discussão crítica que são construídos, negociados e transformados pontos de

vista, de modo a consolidar ou modificar conceitos, implementar e desenvolver

raciocínios característicos de determinada área de conhecimento. Nesta mesma

perspectiva, Wood (1999) refere a argumentação como um processo interactivo que se

desenvolve pelo uso de modos de pensamento e raciocínio, uma troca discursiva de

argumentos entre os participantes, que envolve a capacidade de saber quando e como

participar.

Leitão (2000) interpreta argumento como parte de um discurso racional que se

apresenta na forma de um conjunto de afirmações, em que pelo menos uma delas

justifica as outras. Pelo seu lado, Vincent, Chick e McCrae (2005) referem que um

argumento pode ser definido como um produto, constituído por uma sequência de

afirmações que procuram convencer e a argumentação pode ser entendida como um

processo, em que um discurso lógico se desenvolve. Os argumentos usados são,

normalmente, conceitos ou valores que, por serem parte de um conhecimento

socialmente partilhado, “são tidos como capazes de conferir aceitabilidade ao ponto de

vista em questão” (Leitão, 2003, p. 7).

Toulmin (1958) refere a importância da estrutura de um argumento quando se

pretende “mostrar a fonte da sua validade” (p. 95). Nesta estrutura é possível identificar

e distinguir os principais elementos que o constituem, desde uma afirmação inicial até à

sua conclusão final. Estes elementos são: claim (C), grounds (D), warrant (W), backing

(B), qualifier (Q) e rebuttal (R).

Segundo o autor, dada uma afirmação ou conclusão – claim – cuja validade se

reivindica ou cuja aceitabilidade se questiona ou desafia, há necessidade de apresentar

um conjunto de dados ou factos – grounds – que a suportam. Estes dados, por sua vez,

devem ser fidedignos, pois constituem a “verdade” em que a conclusão assenta. Eles são

a base de um argumento, isto é, são, em primeira análise, o fundamento para a

conclusão. Mas estes podem não ser suficientes para convencer, ou mostrar a validade

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da conclusão, pelo que, podem surgir pedidos de esclarecimento de outra natureza.

Assim, há que apresentar afirmações, de natureza hipotética, que sustentem a conclusão

a partir dos dados. Estas afirmações, que podem ser regras ou princípios, devem mostrar

que o passo que se dá a partir dos dados para a conclusão é apropriado e legítimo.

Proposições desta natureza o autor designa por garantias – warrant. Estas tornam

explícita a relevância dos dados e conferem validade à relação entre estes e a conclusão.

Em conjunto, dados (D), conclusão (C) e garantia (W) constituem o esquema elementar

de um argumento (Toulmin, 1958, pp. 97-99).

Figura 2.1. Esquema elementar de um argumento (Toulmin, 1958)

Para Toulmin (1958), as garantias (W) “são de diferentes tipos e podem conferir

diferentes graus de força nas conclusões que justificam” (p. 100). No entanto, a sua

apresentação pode não ser suficiente para que se aceite a conclusão. Neste caso, refere o

autor, são necessárias razões adicionais, os qualificadores – qualifiers, que conferem

força à garantia. Por vezes, há necessidade de acrescentar condições de excepção ou

refutação – rebuttal – que indicam as circunstâncias em que a autoridade da garantia

pode ser recusada e antecipam eventuais contradições. Segundo o autor, “tal como a

garantia não é um dado nem uma conclusão, pois tem implícito algo sobre ambos (…)

também o qualificador e as condições de refutação se distinguem das garantias” (p. 101).

Deste modo, um argumento assume a seguinte forma:

D Então, Q, C

Desde que W A menos que R

Figura 2.2. Esquema de um argumento com qualificadores e condições de refutação (Toulmin, 1958)

Toulmin (1958) considera ainda relevante pensar na hipótese de uma garantia ser

questionada. Esta situação pode ter origem na questão: Porque razão é que, de um modo

geral, se pode aceitar a autoridade desta garantia? Na procura de justificações de

D Então, C

Desde que W

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validade é necessário recorrer a afirmações de carácter categórico – backing – que

devem constituir um reforço à garantia. O esquema de um argumento, considerando

todos os elementos atrás descritos, toma a seguinte forma:

D Então, Q, C

Desde que W A menos que R

Por conta de B

Figura 2.3. Esquema completo de um argumento (Toulmin, 1958)

Segundo Toulmin (1958), o reforço (B), usado para garantir a validade de uma

garantia (W), depende do campo em que se realiza a argumentação. Na sua perspectiva,

de um modo geral, a estrutura de um argumento permanece igual, quer se trate de

argumentos morais, psicológicos ou matemáticos:

É no momento em que se pede o reforço da garantia que as grandes

diferenças começam a aparecer: o tipo de reforço que devemos

apresentar quando queremos estabelecer a sua autoridade mudará de

modo substancial conforme nos mudamos de um campo de argumentação

para outro. (p. 104)

O potencial de uma argumentação depende dos argumentos escolhidos, da

capacidade de persuasão daquele que argumenta e também do auditório a quem esta se

dirige. Pode afirmar-se que a argumentação se desenvolve em função dos destinatários e

o seu principal objectivo é conseguir a sua adesão a uma ideia. A este propósito

Boavida (2005) observa que:

O valor de um argumento depende da qualidade e competência daqueles

cuja adesão é procurada e importa ter em conta que ele terá um peso

diferente consoante estes conheçam ou ignorem certos factos ou uma

determinada interpretação destes. Por exemplo, um argumento que é

fraco e não eficaz porque não é compreendido e está mal adaptado a um

auditório, pode tornar-se relevante se este for melhor informado e o

entender. De forma semelhante, um argumento que persuade um

auditório pouco esclarecido pode não ter efeito num auditório mais

crítico. (p. 53)

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Dimensões da argumentação

A argumentação comporta seis dimensões – discursiva, social, dialógica,

dialéctica, cognitiva e epistémica – as quais abordo de seguida, de forma resumida.

Dimensão discursiva. A argumentação realiza-se, em grande parte, pelo uso do

discurso oral e serve-se da linguagem natural como utensílio de comunicação, entre

quem argumenta e o seu interlocutor (Pedemonte, 2000). Este tipo particular de

discurso, de carácter justificativo, requer que os protagonistas apresentem as suas ideias

e razões, sob a forma de frases ou argumentos organizados, numa determinada

linguagem. Porém, não significa que a argumentação exclua a mobilização de elementos

não discursivos como sejam dados numéricos, desenhos ou gestos (Douek, 1998).

Dimensão dialógica. A argumentação estrutura-se na forma de diálogo e

constitui-se pela apresentação de argumentos, consideração de opiniões contrárias e

resposta a estas. Leitão (2000) refere que a actividade argumentativa pressupõe duas

acções distintas: a justificação e a negociação. Por um lado, no diálogo argumentativo

as razões devem sempre justificar o ponto de vista defendido, por outro, por ser

necessário convencer os participantes, há que reflectir sobre as posições defendidas à

luz das posições dos outros, o que conduz a um processo de negociação. Esta autora

salienta que, mesmo em situações de auto-argumentação, “o diálogo é realizado pela

presença de um destinatário imaginário a quem a argumentação é, ou pode ser, dirigida

e que proporciona elementos de oposição pela antecipação de reacções” (p. 334), que

poderiam advir de um verdadeiro auditório.

Dimensão social. O discurso é uma prática e uma construção social, não

individual. Argumentar envolve a intenção de convencer alguém pelo que considerar o

“outro” no desenvolvimento da actividade argumentativa é fundamental. Este “outro”

pode ser apenas um, dois ou um conjunto mais vasto de pessoas, no entanto, é um

auditório que, estando ou não de acordo, está sempre disposto a responder. Vincent,

Chick e McCrae (2005) acrescentam que, como processo social, o benefício que cada

pessoa retira da participação numa argumentação resulta do grau de envolvimento de

cada um dos participantes.

Dimensão dialéctica. Numa argumentação as conclusões a que se chega não são

necessariamente válidas, no entanto, quem argumenta considera as suas razões

verdadeiras. Segundo Leitão (2000) a oposição, a divergência, a controvérsia ou o

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desacordo podem levar a discussões que se querem críticas e é pela troca de argumentos

e contra-argumentos que se validam ou refutam ideias. O valor de um contra-argumento

“não é provar a falsidade de uma conclusão mas antes alertar os participantes para

determinada questão” (p. 336). Boavida, Paiva, Cebola, Vale e Pimentel (2008)

acrescentam que esta tentativa de justificar uma ideia faz-se com base naquilo que se

considera verdadeiro, em que “as inferências se apoiam, principalmente, sobre os

conteúdos daquilo que se enuncia” (p. 84).

Dimensão cognitiva. Argumentar implica pensar de forma racional e o raciocínio

depende e influencia o desenvolvimento cognitivo. Leitão (2000) refere que pensar pela

argumentação envolve uma “indissociável combinação de conteúdos e formas de

raciocínio” (p. 10) que se mobilizam, de forma dedutiva ou não, de modo a organizar,

avaliar ou reformular os conteúdos sobre os quais a argumentação incide. Segundo a

autora, o envolvimento em discussões, que levam os participantes a analisar e a rever as

suas posições sobre um assunto polémico, conduzem a um processo de construção de

conhecimento. Refere ainda que a negociação de divergências, como fenómeno social,

“fomenta o pensamento colectivo de um modo que favorece a (re)construção das

perspectivas dos participantes” (p. 336).

Dimensão epistémica. A argumentação desenvolve-se sobre determinados

assuntos que, por sua vez, pertencem a um determinado campo conceptual ou domínio

de conhecimento. Dentro de cada domínio existem formas específicas de pensamento

que aquele que argumenta pode, ou deve, utilizar. A argumentação depende do campo

de conhecimento em que esta se desenvolve (Toulmin, 1958) e “o que conta como

evidência ou contra-evidência em cada caso, depende das formulações conceptuais e

padrões processuais que são estabelecidos nos respectivos campos” (Leitão, 2000, p. 11).

Argumentar promove a relação entre o conhecimento actual, que é mobilizado na

apresentação de razões, e um outro conhecimento, apresentado na forma de contra-

argumento, permitindo aos intervenientes a análise dos fundamentos do seu ponto de

vista à luz do pensamento dos outros, pelo que fomenta a construção ou consolidação de

conhecimento.

As dimensões da argumentação acima referidas não são estanques, pelo

contrário, completam-se e cruzam-se numa caracterização abrangente que confere à

argumentação um valor globalizante e enriquecedor no desenvolvimento do

conhecimento. Neste trabalho dou especial atenção à argumentação como uma

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actividade de carácter discursivo que se realiza pela apresentação de razões, a favor ou

contra uma ideia, cujo objectivo é convencer de modo a chegar a um consenso. Dou

também grande atenção à argumentação como processo dialógico e dialéctico, pela

relevância da participação em discussões em que diferentes pontos de vista são

considerados e defendidos pelos intervenientes e cujo interesse é a validação de uma

afirmação, com base num conhecimento partilhado. Sendo o presente estudo sobre a

argumentação na aula de Matemática, penso ser igualmente importante atender à

mobilização e construção de conhecimento nesta área. Deste modo, o carácter cognitivo

e epistémico da argumentação será considerado neste estudo, quer na explicitação de

raciocínios quer na sua justificação, pela apresentação de razões baseadas nos

conhecimentos dos alunos.

A argumentação em Matemática

Numerosos autores, como Toulmin (1958), Krummheuer (1998), Leitão (2000,

2001, 2003, 2005, 2007), Yackel (2001, 2002), Balacheff (1999), Douek (1998, 1999),

Pedemonte (2000) ou Wood (1999), de áreas tão distintas como a Filosofia, a Psicologia

ou a Educação, têm contribuído com o seu trabalho para a compreensão do papel da

argumentação no desenvolvimento do conhecimento, em particular do conhecimento

matemático. Reconhecem que o desenvolvimento da capacidade de argumentar se

relaciona estreitamente com a competência matemática, desde a aquisição de conceitos

mais simples até à demonstração matemática.

Oliveira (1991) refere que, em Matemática, os argumentos expressam-se numa

linguagem formal, constituem-se numa sequência finita de proposições, em que as n

primeiras proposições são as premissas e a última é a conclusão, respeitam o raciocínio

lógico-dedutivo e possuem uma certa forma ou estrutura. Esta estrutura pode ser criada

a partir da substituição de palavras diferentes (ou sentenças) por letras. Por exemplo, no

seguinte argumento:

Todos os humanos são mentirosos

João é humano

Logo, João é mentiroso

substituindo humanos por H, mentirosos por M e João por J, pode escrever-se a seguinte

estrutura,

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Todo H é M

J é H

Logo, J é M

Diferentes argumentos podem ter a mesma estrutura pelo que, se um argumento

é verdadeiro, ou falso, outro que tenha uma mesma estrutura, também o é. Oliveira

(1991) refere ainda que, numa argumentação lógica, a conclusão é verdadeira desde que

as premissas sejam verdadeiras e o argumento seja válido. A conclusão será falsa se

uma das premissas for falsa, independentemente da validade do argumento. O uso de

argumentos válidos numa argumentação, quando se pretende a aceitação de ideias, é

importante:

Ao fazermos um raciocínio, ao argumentarmos com alguém, interessa-

nos que as conclusões a que chegamos sejam pelo menos tão aceitáveis

quanto as premissas de que partimos, e isto acontece se utilizarmos

somente argumentos válidos, pois só estes preservam a verdade, isto é,

forçam (racionalmente) a aceitação da conclusão como verdadeira sempre

que as premissas forem aceites como verdadeiras. (Oliveira, 1991, p. 11)

Machado e Cunha (2005) acrescentam que, se as premissas são todas

verdadeiras e a conclusão é falsa então o argumento está mal formulado, ou seja, “é um

argumento não válido ou não coerente (…) é uma falácia ou é um sofisma” (p. 21). Para

os autores, a argumentação legítima – argumentação aristotélica – não depende da

aprovação de um auditório pois há nela “uma separação total entre a forma e o conteúdo”

(p. 14), sendo fundamental a forma de articular e de deduzir sentenças, umas das outras,

independentemente do seu conteúdo. Referem ainda, que esta característica da

argumentação lógico-dedutiva (prova ou demonstração matemática) distancia-a da

argumentação dita comum a qual requer a compreensão de razões, a tomada decisão e

de posição perante situações, pelo que a competência de argumentar não será exclusiva

daqueles que dominam a lógica aristotélica. A argumentação como um processo

discursivo realiza-se, de um modo geral, mediante um raciocínio coerente e não separa

o conteúdo das sentenças, ou o seu significado, da sua forma. Pelo contrário, mistura-os

pelo que “pode ser aprendida e desenvolvida pelo estudo da Matemática ou de qualquer

outra disciplina” (p. 26). Neste sentido, Garnica (2002) indica ser necessário, nos

contextos de ensino-aprendizagem de Matemática, considerar de forma interligada a

linguagem natural e a artificial (Matemática) pois esta não pode prescindir da língua

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materna para a comunicação. O autor considera que seria desejável que a “prova

rigorosa passasse a ser considerada como uma – de entre as várias – formas de

argumentação acerca do objecto matemático” (p. 6).

Pedemonte (2000) estabelece a relação entre a argumentação e a prova do ponto

de vista do seu conteúdo e estrutura. Conclui que a argumentação, como actividade

emergente de elaboração de conjecturas – afirmações que necessitam ser provadas –

relaciona-se directamente com o processo de prova, quando se resolvem problemas que

não têm resposta imediata. Como refere a autora,

Durante o processo de resolução, que conduz a um teorema, podemos

supor que é desenvolvida uma actividade argumentativa que visa a

produção de uma conjectura. Quando a afirmação relativa a esta

conjectura é tornada válida numa teoria matemática, podemos afirmar

que é produzida uma prova. Esta prova é uma argumentação particular

baseada numa teoria matemática. (p. 3)

Assim, provar uma conjectura implica estabelecer uma ligação funcional com a

actividade argumentativa necessária para compreender ou produzir afirmações e

reconhecer a sua plausibilidade. A argumentação matemática, considerada como uma

conexão lógica de argumentos (verbais, numéricos ou outros), tem uma forte ligação à

prova matemática pois, “provar necessita de uma intensa actividade de argumentação”

(Douek, 1998, p. 135). Deste modo, a prova, estando sujeita a constrangimentos

próprios, é um caso particular de argumentação (Pedemonte, 2000) e é no momento em

que as argumentações deixam de se apoiar em argumentos empíricos que se está perante

um tipo de raciocínio que se pode considerar uma prova (Boavida et al., 2008).

Discurso argumentativo na sala de aula

Tudo isto deve ter os seus reflexos na escola e na sala de aula. Por exemplo, Pais

(2006) refere que uma das funções da escola é estimular o saber científico sem descurar

a sua dimensão pedagógica. Considera que, como espaço específico de aprendizagem de

argumentações mais próximas das argumentações científicas (do domínio da

demonstração matemática), a escola “contribui para a formação de uma atitude mais

crítica e para o desenvolvimento intelectual do aluno” (p. 40). Refere ainda que a

argumentação na sala de aula – a argumentação didáctica – relaciona-se com o contrato

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pedagógico, envolvendo recursos e estratégias a considerar pelo professor, quando este

pretende conduzir o aluno à validade de um enunciado. Nesta perspectiva, o ensino deve

afastar-se de uma posição dogmática de imposição de enunciados e aproximar-se de

uma educação mais significativa, o que é conseguido pelo trabalho com a

argumentação.

Boavida et al. (2008) assumem a argumentação na aula de Matemática como:

Conversações de carácter explicativo ou justificativo centradas na

Matemática, em que assumem um papel preponderante a fundamentação

de raciocínios, a descoberta do porquê de determinados resultados ou

situações, a formulação, teste e prova de conjecturas e a resolução de

desacordos através de explicações e justificações convincentes e válidas

do ponto de vista matemático. (p. 84)

As autoras referem que, numa aula de Matemática em que se promove o

desenvolvimento do raciocínio, em que os alunos são chamados a formular e a testar

conjecturas e a trabalhar sobre a sua validade, abre-se o caminho à discussão de ideias e

à construção de conhecimento matemático válido. Os meios que os alunos utilizam

neste processo dependem das suas experiências de aprendizagem e dos seus

conhecimentos matemáticos. Para tornar aceitáveis as suas conclusões, aos olhos dos

colegas e do professor, os alunos devem recorrer a argumentos válidos que podem ser

mais ou menos elaborados e possuir maior ou menor formalismo. Na sua perspectiva, a

prática argumentativa na aula de Matemática é um meio de fomentar uma aprendizagem

mais sólida, eficaz e promotora da confiança e autonomia dos alunos na construção de

saberes e processos matemáticos fundamentais, onde se incluem a demonstração

matemática.

A aprendizagem, de um modo geral, é mais eficaz quando realizada em

contextos sociais, como uma sala de aula, nos quais os alunos pela interacção com os

outros e com o professor, constroem e ajudam a construir conhecimento numa

determinada área. Argumentar fomenta a negociação de pontos de vista pelo discurso e

esta negociação é fundamental no desenvolvimento do pensamento reflexivo –

pensamento efectuado ao nível das concepções sobre determinado assunto (Leitão,

2007), pelo que contribui para a aprendizagem:

Para justificar um ponto de vista é inevitável que o individuo se volte

sobre seu próprio discurso e sobre ele elabore – neste sentido se pode

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dizer então que o discurso „fala sobre si mesmo‟. De modo semelhante,

responder à oposição eventualmente levantada em relação a este ponto de

vista implica voltar-se sobre o próprio discurso e considerar limites e

restrições (postos em evidência pela oposição) ao que foi dito. Enquanto

movimentos discursivos - que levam o indivíduo que os produz a

focalizar o seu próprio discurso por conseguinte, o seu próprio

pensamento - a eles se atribui um papel constitutivo na génese do

pensamento reflexivo. (p. 456)

Leitão (2007) acrescenta que o uso de acções discursivas como argumento,

contra-argumento e resposta, são mecanismos de argumentação que reorientam o

pensamento individual sobre um objecto para um pensamento reflexivo sobre o próprio

pensamento. Isto é, a justificação de pontos de vista, a consideração de opiniões

contrárias e a reacção às mesmas “institui o pensamento do próprio indivíduo como

objecto de reflexão” (p. 454) pelo que a argumentação, como actividade discursiva, tem

um papel mediador no desenvolvimento do pensamento reflexivo.

Pelo seu lado, Vincent, Chick e McCrae (2005) referem que o envolvimento dos

alunos em argumentações potencia a construção de conhecimento e que o

conhecimento, por sua vez, proporciona uma maior capacidade argumentativa. Este

envolvimento, como afirmam Ponte, Brocardo e Oliveira (2003) não é a situação mais

familiar na aula de Matemática dado que a dinâmica desta tende a estar orientada

sobretudo para a procura de “respostas para as questões colocadas pelo professor, o que

pode levar os alunos a serem mais afirmativos do que interrogativos” (p. 48). Na

inversão desta tendência será determinante a acção do professor pela adopção de uma

prática interrogativa de teor matemático e de formulação de questões.

As questões que o professor coloca são determinantes quer nas contribuições dos

alunos quer na construção de conhecimento. Estas questões podem ser de: (i)

focalização, (ii) confirmação ou (iii) inquirição. Os dois primeiros tipos de questão

servem, respectivamente, para ajudar os alunos a prosseguir raciocínios, orientando-os

no caminho certo, e para ajudar o professor a recolher informação, nomeadamente,

relativa aos conhecimentos deles. As questões de inquirição têm como principal

objectivo esclarecer o professor, ou aquele que questiona, e são consideradas o „tipo de

pergunta verdadeiramente genuíno‟. Por exemplo ao questionar: Como chegaste a este

resultado? o professor pode ter acesso “ao modo como os alunos estão a pensar, o modo

como resolveram um certo problema, ou qual a sua opinião sobre um dado resultado ou

estratégia” (Ponte & Serrazina, 2000, pp. 11-2).

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De Chiaro e Leitão (2005) referem que, em educação, as acções discursivas dos

participantes – em particular da professora – podem criar condições para a emergência

da argumentação e podem instituí-la como método de negociação de diferenças de

opinião (desacordos), favorecendo a construção de novas perspectivas sobre os

conteúdos curriculares. Para as autoras, há três aspectos a considerar, quando se

pretende promover a argumentação na sala de aula. O primeiro prende-se com a

natureza dos temas abordados que, por fazerem parte de um corpo de conhecimento

institucionalizado e socialmente aceite, normalmente não são vistos como passíveis de

modificação, a partir de discussões realizadas na sala de aula. No entanto, o discurso

torna-se argumentativo quando o tema é passível de ser discutido e gera desacordo, pelo

que, se não existir divergência, não há argumentação. Assim, é importante promover na

sala de aula um discurso direccionado para a construção de conhecimento que envolva

os alunos nos processos e na sua validação. O segundo aspecto refere-se à assimetria

nos papéis dos interlocutores dado que o professor, como representante do

conhecimento científico, normalmente não se coloca numa posição de ser convencido,

sendo a finalidade do seu discurso levar os alunos à aquisição de conceitos, formas de

raciocínio e princípios considerados canónicos, num certo domínio do conhecimento.

Dar lugar à voz e às acções do aluno é, deste modo, imperativo para que ele se sinta

parte integrante e desenvolva a sua autonomia e auto-confiança. O terceiro aspecto a

considerar, relaciona-se com a pré-definição dos resultados que dominam grande parte

das aulas e condicionam as discussões. Normalmente, os objectivos de uma aula estão

pré-estabelecidos pelo currículo ou pelo professor o que, ao ser percepcionado pelos

alunos, determina que a argumentação, a existir, não seja genuína.

De Chiaro e Leitão (2005) consideram que a argumentação pode ocorrer quando

uma ideia é colocada em questão. A discutibilidade de um tema, vista como uma

característica do discurso, emerge da situação em que este é produzido. Assim, apontam

ser necessário tornar o discurso argumentativo na sala de aula e, para isso, há que

atender a três planos de acção: pragmático, argumentativo e epistémico.

No plano pragmático inserem-se as acções verbais que levam à criação de

condições para que o discurso na sala de aula tenha características argumentativas,

nomeadamente as acções que: (i) tornam um assunto polémico, ou seja, passível de ser

discutido, (ii) legitimam a divergência sobre um tema, (iii) instituem a argumentação

como método para resolução de divergências e (iv) estabelecem o consenso como meta

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na discussão. Exemplos de acções discursivas desta natureza são questões como O que é

que achas desta questão?, que o professor pode fazer aos alunos para os levar a

explicitar a sua opinião em relação ao que ouvem. Segundo as autoras, com esta questão

abre-se caminho à manifestação de opinião e permite-se que ela seja divergente, pois

não está predefinida a resposta do aluno, o qual pode concordar ou não com a opinião

em discussão. Incluem-se também neste plano questões como Alguém quer colocar

mais alguma pergunta? ou Quem discorda de…?, ou ainda perguntas em que o

professor inclui parte das opiniões já partilhadas, legitimando, deste modo, a existência

de pontos de vista divergentes.

No plano argumentativo inclui-se a forma como os participantes concretizam, ou

estimulam outros a concretizar, as operações definidoras da argumentação, como a

justificação de pontos de vista e a negociação de divergências. As autoras referem que,

por exemplo, o estímulo à formulação de uma opinião pela colocação de uma pergunta

aberta, que não contenha em si a opinião ou avaliação da professora, contribui

positivamente para a apresentação de justificações, por parte dos alunos. A apreciação

das justificações pelo professor e, principalmente, pelos alunos, podem gerar momentos

de negociação de divergências para os quais contribuem, de forma decisiva, as acções

do professor. Estas acções podem ter como objectivo a sustentação da negociação, a

orientação das ideias dos alunos no sentido de se chegar ao consenso ou a conclusão do

debate. Também o aluno tem um papel preponderante na implementação de um discurso

argumentativo, aderindo à negociação de divergências, pela manifestação da sua

opinião, quer esteja de acordo ou não, pelo que é importante instituir uma prática de

apresentação de argumentos e contra-argumentos na resolução de divergências.

No plano epistémico encontram-se as acções verbais que incluem conceitos ou

definições relevantes no domínio do conhecimento em questão e que implementam

procedimentos e raciocínios típicos desse conhecimento conferindo estatuto epistémico

às conclusões estabelecidas. Este aspecto relaciona-se assim com a validade científica.

O trabalho do professor na promoção da argumentação na aula de Matemática

O professor é um dos protagonistas no processo ensino-aprendizagem. A sua

preparação da actividade lectiva contribui para a aprendizagem dos alunos mas, por

vezes, também a condiciona. A adopção de uma prática pedagógica promotora da

Page 14: Capítulo 2 - ULisboa

22

argumentação na sala de aula requer, por isso, que o professor considere esta capacidade

de um modo abrangente e atenda a duas formas de a percepcionar: como objectivo de

ensino, ou seja, ensinar os alunos a argumentar matematicamente e como estratégia de

aprendizagem, isto é, levar os alunos a argumentar para aprender Matemática.

Natureza da Matemática e gestão curricular

Desde logo é preciso considerar aspectos relacionados com a natureza da

Matemática. Esta é uma ciência que pressupõe o uso de uma linguagem própria e de

princípios que, normalmente, os alunos têm dificuldade em compreender. O formalismo

e o raciocínio inerentes à actividade matemática são, por vezes, um entrave à sua

aprendizagem pelo que deve dar-se oportunidade aos alunos de efectuar descobertas

matemáticas, desenvolver conjecturas, apresentar exemplos e contra-exemplos, elaborar

e validar provas ou refutar ideias, como parte constituinte da actividade matemática.

Preparar uma aula em que estes aspectos são considerados “requer imaginar como

conectar alunos particulares com ideias ou processos matemáticos particulares”

(Boavida, 2005, p. 893).

As orientações curriculares e os resultados de alguns estudos apontam, como

referi anteriormente, para a importância da integração da argumentação na aula de

Matemática, quer como objectivo de ensino quer como estratégia metodológica. Neste

sentido, Forman, Larreamendy-Joerns, Stein e Brown (1998) referem que estes dois

aspectos podem ser atingidos pela concretização de aulas pouco direccionadas para a

aprendizagem cumulativa de conceitos sem conexão, pela descentralização do poder

matemático no professor, pela orquestração de discussões colectivas e pela promoção da

participação activa dos alunos, no debate de ideias e na tomada de decisões. Deste

modo, segundo os autores, os alunos desenvolvem a capacidade de argumentar e

usam-na de modo mais confiante e consciente.

Para Boavida (2005), as aulas direccionadas para o desenvolvimento da

capacidade de argumentação requerem conhecimento, competência e cuidado por parte

do professor e concretizam-se numa planificação em que este:

Valoriza a necessidade de participação dos alunos em actividades de

argumentação;

Propõe tarefas abertas potencialmente favoráveis à emergência de actividades

de argumentação matemática;

Procura incluir materiais de diversas fontes;

Page 15: Capítulo 2 - ULisboa

23

Equaciona modalidades de trabalho que permitam interacções e favoreçam a

participação activa dos alunos;

Cuida as relações;

Pensa na gestão da aula;

Não penaliza o erro mas considera-o parte integrante da construção de

conhecimento matemático;

Cria um ambiente em que todos se sentem confortáveis na expressão das suas

ideias.

A este conjunto de factores acresce outro, de âmbito mais geral, que abrange a

gestão do currículo, as conexões entre temas matemáticos e o investimento nos

processos matemáticos como objectivo de ensino. Na prática, o professor deve fomentar

o envolvimento dos alunos: (i) na formulação, avaliação e validação ou prova

matemática de conjecturas, (ii) na discussão de ideias e (iii) na resolução de desacordos

como meio de desenvolvimento da capacidade de argumentar, cujo objectivo é a

obtenção de consenso em relação a determinada questão polémica. É de facto

importante “devolver aos alunos a responsabilidade matemática daquilo que produzem”

(Balacheff, 1999, p. 1) e o professor, como principal responsável pela dinâmica da sala

de aula, pode agir de modo a proporcionar experiências que os envolvam na actividade

argumentativa. Para Ponte e Serrazina (2000) este envolvimento que, em conjunto com

as interacções que se estabelecem, caracteriza o ambiente da sala de aula, é um aspecto

central na prática docente que se relaciona estreitamente com as tarefas propostas, com

o tipo de comunicação, ou seja, com o discurso veiculado na aula, com a cultura de sala

de aula e com o modo de trabalho dos alunos. Os autores referem ainda que a dinâmica

de uma aula depende também: (i) dos recursos materiais que podem complementar as

tarefas, (ii) das concepções e atitudes dos alunos e do professor face à Matemática, (iii)

do contexto escolar, recursos e expectativas das famílias e (iv) do conhecimento e

competência do próprio professor.

Tarefas

As tarefas que o professor propõe na sala de aula são o ponto de partida para a

actividade que aí se desenvolve e, simultaneamente, proporcionam experiências de

aprendizagem aos alunos as quais concorrem, de forma determinante, para a construção

de conhecimento. Segundo Ponte, Ferreira, Brunheira, Oliveira e Varandas (1999) “uma

aula de Matemática bem sucedida baseia-se, necessariamente, em tarefas válidas e

envolventes” (p. 149), que proporcionem explorações matemáticas ricas.

Page 16: Capítulo 2 - ULisboa

24

De entre as diferentes experiências de aprendizagem, que o professor pode

propor aos alunos, as tarefas de cunho investigativo apresentam-se como as que melhor

contribuem para a emergência da argumentação na aula de Matemática (Boavida, 2005).

Esta ideia fundamenta-se nos processos que lhe são inerentes, nomeadamente, a

formulação, avaliação e prova de conjecturas. De facto, durante a actividade

investigativa podem surgir episódios de argumentação resultantes do envolvimento dos

alunos na explicação e fundamentação de raciocínios e na descoberta de razões que

conduzem à validação de conjecturas. Esta ideia é enfatizada por Ponte, Brocardo e

Oliveira (2003) quando referem o trabalho desenvolvido pelos alunos durante uma

investigação:

O aluno é chamado a agir como um matemático, não só na formulação de

questões e conjecturas e na realização de provas e refutações, mas

também na apresentação de resultados e na discussão e argumentação

com os seus colegas e o professor. (p. 23)

No entanto, estes processos constituem etapas do trabalho de investigação nem

sempre valorizadas, quer pelo aluno quer, por vezes, pelo professor. Na génese deste

problema poderá estar a associação errada do termo conjectura ao termo conclusão,

tomando frequentemente uma pela outra, menosprezando o processo de justificação

(Ponte, Brocardo & Oliveira, 2003).

Apresentar razões que fundamentam uma conjectura – processo de justificação –

é uma característica essencial da actividade matemática, para a qual concorrem as

actividades de investigação dado contribuírem para a criação de um contexto em que os

alunos “compreend[em] a necessidade de justificar as suas afirmações, ao expressar o

seu raciocínio junto do professor e dos colegas” (Ponte et al., 1999, p. 134). estas

actividades são um terreno fértil pois, a par da exploração e da descoberta, “podem levar

os estudantes a discutir e a pôr em questão ideias matemáticas que tenham já trabalhado

anteriormente, para rever, apurar ou aprofundar essas ideias ou para as relacionar com

outras” (Goldenberg, 1999, p. 40).

O trabalho com investigações matemáticas, na sala de aula, pode ser

comprometido pela “reduzida importância que a realização de investigações, a

argumentação e a demonstração têm na actividade matemática do quotidiano escolar” o

que, em consequência, leva os alunos a não sentir “necessidade de procurar uma

justificação, nem [ter] noção dos elementos em que se podem apoiar para apresentar

Page 17: Capítulo 2 - ULisboa

25

justificações de uma conjectura” (Ponte et al., 1999, p. 142). Na opinião de Brocardo

(2001), o trabalho sistemático com investigações leva os alunos a sentirem esta

necessidade e consequentemente contribui para a mudança de atitude face a esta

situação. A autora acrescenta que os alunos valorizam progressivamente a justificação

ao perceberem o seu significado e ao evoluírem na “compreensão de que a procura de

argumentos que valid[em] as conjecturas que tinham resistido a sucessivos testes constituí

uma fase final da actividade de investigação” (p. 545).

O sentimento de inutilidade de uma demonstração, isto é, a desvalorização, e

desresponsabilização pelo processo de apresentação de razões matemáticas que validem

uma conjectura, é vulgarmente experimentado pelos alunos. Pais (2006) refere que a

verificação (diferente de demonstração), como actividade de comprovação da validade

de uma proposição, realizada para alguns casos particulares, não sendo suficiente para

garantir a validade de uma afirmação, é o processo mais usado pelos alunos na

validação das suas ideias. O autor acrescenta que a verificação constitui, no entanto,

uma ferramenta útil na procura de contra-exemplos para a garantia da não-validade de

ideias, ou seja, na apresentação de contra-exemplos e afirma que “é preciso incentivar o

aluno a fazer verificações, pois essa actividade fornece um dispositivo de controlo da

própria aprendizagem” (p. 42). Pelo seu lado, Lopes, Bernardes, Loureiro, Varandas,

Oliveira, Delgado, Bastos e Graça (1990) apontam a proposta de situações de natureza

dedutiva e a generalização de resultados como promotoras quer da actividade

argumentativa quer da necessidade de demonstrar. Alegam que nestas se espera que os

alunos, mediante o seu envolvimento, duvidem das conjecturas, ou das conclusões, por

evidentes que pareçam, e encontrem uma demonstração, não formalizada e dependente

dos seus conhecimentos matemáticos que, não menos rigorosa, garanta a validade da

conjectura. Para os autores, estas actividades podem, também, “provocar situações em

que o confronto e a defesa de opiniões surgem naturalmente, e até por vezes de forma

interessante, pois é possível que todos tenham razão” (p. 53), pelo que, concorrem para

o desenvolvimento da capacidade de duvidar e de demonstrar. A demonstração

matemática deve surgir como um desafio, no seio de um processo, em que o aluno se

envolve e desenvolve a capacidade de raciocinar contribuindo assim para a relação entre

a argumentação e a prova em Matemática (Douek, 1998).

Qualquer que seja a natureza da tarefa que o professor propõe na aula de

Matemática, desde a resolução de exercícios rotineiros à concretização de tarefas de

Page 18: Capítulo 2 - ULisboa

26

investigação, para desenvolver a actividade argumentativa é importante que ele esteja

atento aos acontecimentos da aula, promova a apresentação de explicações e

justificações e delegue nos alunos a responsabilidade de avaliar e validar as suas ideias e

as dos outros (Boavida, 2005). Adequadamente articuladas as diversas tarefas podem

“constituir um currículo interessante e equilibrado, capaz de promover o

desenvolvimento matemático dos alunos com diferentes níveis de desempenho” (Ponte,

Brocardo & Oliveira, 2003, p. 24).

As tarefas, só por si, não garantem a actividade argumentativa pelo que “tão

importante como a tarefa, são os meios que o professor usa para fazer surgir [as]

contribuições dos alunos” (Boavida, 2005, pp. 895-6). Os recursos materiais, mais ou

menos tecnológicos, associados às tarefas, podem constituir também um factor de

promoção da argumentação matemática. Em particular, a calculadora e o computador

“podem potenciar o desenvolvimento do raciocínio e da comunicação por favorecerem a

formulação de conjecturas, por parte dos alunos, estimular a actividade investigativa e

enriquecer raciocínios e argumentos por eles utilizados” (Ponte & Serrazina, 2000, p. 9).

Criar um ambiente de aprendizagem, em que os alunos se envolvem em partilha

intencional sobre o seu pensamento acerca da Matemática e explicam as suas

estratégias, requer que estejam “munidos de materiais manipuláveis para ajudar a sua

compreensão” e simultaneamente “lhe sejam dadas oportunidades de participar” (Wood,

Merkel & Uerkwitz, 1996, p. 39).

O papel do professor não se resume à proposta e avaliação de tarefas mas

contempla, também, o planeamento da dinâmica que pretende promover na sala de aula

para a qual concorre, entre outros factores, o modo como os alunos trabalham. É o que

discuto de seguida.

Modos de trabalho dos alunos

Na sala de aula os alunos podem trabalhar individualmente, em pares ou em

pequeno grupo. Escolher o modo de trabalho dos alunos depende dos objectivos

delineados para uma aula, ou sequência de aulas, e da natureza da tarefa que o professor

pretende propor. Requer igualmente que se equacione a formação de grupos, se

considere os diferentes momentos de trabalho e se pense na duração da actividade

(Oliveira, Segurado & Ponte, 1999). Reciprocamente, a forma de trabalho dos alunos

pode influenciar a resolução da tarefa e em última análise a concretização do plano de

Page 19: Capítulo 2 - ULisboa

27

aula. Isto é, se por um lado os alunos estiverem a trabalhar de modo individual e

tiverem muitas dúvidas pode ser difícil ao professor atender a todas as solicitações. Por

outro lado, se os alunos estão a trabalhar em grupo mas há conflitos entre estes, quer ao

nível pessoal, quer ao nível intelectual, pode ser complicado para o professor, resolver

estas situações e focar a atenção dos alunos na actividade matemática.

O aluno pode argumentar quando trabalha individualmente. Neste sentido,

Leitão (2003) refere a auto-argumentação como um mecanismo que o indivíduo pode

adoptar, pelo diálogo com um “oponente imaginário a quem a argumentação

ultimamente se dirije e cuja voz traz para o contexto da argumentação um elemento de

oposição – contra-argumentos, dúvidas, pontos de vista alternativos – indispensável à

sua realização” (p. 4). Este modo de trabalho pressupõe que o aluno seja independente e

responsável, isto é, que tenha desenvolvido a autonomia necessária à consecução de

uma tarefa, de índole mais individualista, como as que têm um grau de estruturação

muito elevado ou exigem um grande poder de concentração (Ponte & Serrazina, 2000).

A interacção entre os alunos parece ser, no entanto, uma das chaves para o

desenvolvimento da capacidade de argumentar. Boavida (2005) considera-a

fundamental e afirma que “as oportunidades para fazer surgir episódios de

argumentação matemática geram-se no interior das interacções” (p. 897). O trabalho em

pequeno grupo potencia o desenvolvimento da capacidade de argumentar por permitir a

construção conjunta de argumentos e a crítica aos argumentos dos outros,

proporcionando um maior grau de confiança e cumplicidade entre os alunos. Permite, de

igual modo, que os alunos expressem as suas ideias e dúvidas com os seus colegas, num

ambiente mais restrito, sem correr o risco da exposição a toda a turma. Deste modo, os

alunos podem primeiro sujeitar as suas ideias às críticas dos colegas, com quem

directamente trabalham, e só num momento posterior colocar à disposição da crítica dos

restantes alunos. Neste modo de trabalho os alunos podem reformular as suas

conjecturas solicitando se necessário a ajuda do professor. Numa perspectiva

minimalista, o trabalho em pares, também facilita a actividade argumentativa entre os

alunos (Forman et al., 1998; Pedemonte, 2000), promove uma interacção mais

significativa entre eles (Ponte & Serrazina, 2000) e contribui fortemente para o seu

envolvimento na construção de argumentos, quando estes enveredam na formulação e

prova de conjecturas (Vincent, Chick & McCrae, 2005).

Page 20: Capítulo 2 - ULisboa

28

Um outro modo de trabalho fundamental na promoção da argumentação é a

discussão colectiva. É sobre ele que me debruçarei no ponto seguinte.

Discussão na sala de aula

A discussão na sala de aula “é o modo mais importante que pode assumir a

interacção entre os alunos e entre os alunos e o professor” (Ponte & Serrazina, 2000, p. 13).

De facto, mais que interagir entre si, dentro de um grupo, ou só com o professor, na

discussão colectiva os alunos participam e envolvem-se na apresentação dos seus pontos

de vista, das suas conclusões ou resultados, na partilha das suas ideias e, eventualmente,

no debate. Deste modo, promover a discussão na aula de Matemática proporciona a

criação de oportunidades de aprendizagem, ricas e enriquecedoras, em que os alunos

têm, também, um papel fundamental. A discussão colectiva é um dos momentos da aula

de Matemática característicos de uma estratégia de ensino-aprendizagem exploratória.

Neste tipo de estratégia a reflexão dos alunos sobre o seu trabalho e o dos outros e a

discussão de resultados, com toda a turma, são momentos essenciais em que se

sistematizam conceitos, se trabalha a formalização e se estabelecem conexões

matemáticas (Ponte, 2005).

Uma discussão tem sempre um objectivo que, em particular, pode ser a

avaliação de uma dada solução. Durante uma discussão o discurso alterna entre o

afirmativo e o interrogativo e é o professor, mas também os alunos, quem formula as

questões, existindo assim uma proximidade dos seus papéis, quanto à responsabilidade

no desenrolar do debate. Embora exista um protagonismo partilhado, numa discussão

colectiva, o papel do professor distancia-se tendencialmente do papel do aluno, no que

concerne à condução e orientação do rumo da discussão (Ponte & Serrazina, 2000).

Enquanto, da parte dos alunos se espera que expliquem o seu trabalho, relatem as suas

conjecturas e conclusões, apresentem as suas justificações e se questionem mutuamente,

do professor espera-se que incentive a clarificação de conceitos e procedimentos,

fomente a avaliação do valor dos argumentos e ajude a estabelecer conexões dentro e

fora da Matemática (Ponte, 2005).

As discussões na aula de Matemática contribuem para o desenvolvimento da

capacidade de argumentação na medida em que podem proporcionar situações em que

os alunos, não só, apresentam e explicam as suas ideias, aos colegas e ao professor, mas

também justificam os seus pontos de vista, formulam, se necessário, novas conjecturas e

Page 21: Capítulo 2 - ULisboa

29

discutem aspectos que, eventualmente, ainda não foram abordados (Fonseca, 2000). Por

permitir o envolvimento e participação dos alunos na colocação de questões, as

discussões contribuem, também, para uma aprendizagem com compreensão, para o

desenvolvimento de argumentos de acordo com as reacções dos ouvintes e possibilitam

a ligação dos temas ao quotidiano (Ponte & Serrazina, 2000). São momentos que

permitem ao professor “observar como acontece a apropriação e a mobilização do

conhecimento pelos alunos à medida que vão confrontando os seus argumentos com os

dos colegas e os do (…) professor” (Carvalho, 2003, p. 545). Assim, além de

constituírem oportunidades fundamentais para a negociação de significados

matemáticos, são igualmente promotoras de construção de novo conhecimento (Ponte,

2005). Através deste modo de comunicação, em que os alunos podem avaliar os seus

argumentos e os dos outros, há lugar também para o desenvolvimento da sua confiança

e autonomia na actividade matemática (Forman et al., 1998).

Contudo, estabelecer uma discussão entre professor e aluno(s), ou mesmo entre

alunos, pode ser uma tarefa difícil, principalmente se esta prática não for comum na sala

de aula. Como referem Ponte, Brocardo e Oliveira (2003), nas aulas de Matemática as

discussões produtivas não ocorrem com a frequência desejada pois este ”não é um lugar

em que os alunos estejam habituados a comunicar as suas ideias nem a argumentar com os

seus pares” (p. 41). Por outro lado, a participação dos alunos nas discussões, com toda a

turma, pode tornar-se um momento de alguma confusão e agitação, principalmente

quando todos querem contribuir com as suas ideias. Por isso, é importante que os alunos

sejam orientados de modo a não participar todos ao mesmo tempo e a saber ouvir e

questionar os colegas. Esta orientação deve ser realizada de forma sistemática e

continua pois “a aprendizagem da prática de discussão é algo que leva o seu tempo”

(Tudella, Ferreira, Bernardo, Pires, Fonseca, Segurado & Varandas, 1999, p. 95).

Pelo seu lado, Forman et al. (1998) apontam os conflitos ou mal-entendidos

entre alunos, no que concerne aos papéis sociais, ou seja, a forma como estes reagem à

necessidade de participar e o modo como encaram os comentários feitos pelos colegas

às suas ideias, como aspectos determinantes na adesão dos alunos à participação no

colectivo. O conteúdo matemático em debate também tem a sua influência no

desenrolar das discussões pois, relacionando-se directamente com os conhecimentos dos

alunos, pode condicionar o seu maior ou menor envolvimento nesta actividade. Assim,

Page 22: Capítulo 2 - ULisboa

30

os “objectivos matemáticos de uma discussão podem mudar consoante as normas

sociais e as expectativas dos intervenientes” (p. 546).

Na elaboração de um plano de aula é natural que o professor pense na duração

que podem ter os diferentes momentos que a constituem. Igualmente relevante é

considerar o momento em que pretende iniciar a discussão com toda a turma, caso esta

deva ocorrer, e antecipe algumas situações que podem ser, mais ou menos, esperadas.

No entanto, porque uma aula raramente decorre tal como o professor a planificou, a

planificação deve ser flexível ao ponto de permitir desvios, de acordo com os sinais que

vêm dos alunos e da observação da dinâmica da aula. Estas decisões não são fáceis, nem

simples, mas “são facilitadas quando o professor conhece bem os seus alunos e sabe até

onde pode ir” (Ponte, Brocardo & Oliveira, 2003, p. 42).

Como referi anteriormente, para discutir é necessário que exista um assunto

polémico, para esclarecer, clarificar ou debater. Na sala de aula, por vezes torna-se

pertinente discutir uma ideia quando a turma está num impasse, os alunos necessitam de

ultrapassar algum bloqueio ou necessitam de orientação, no sentido de realizar um

trabalho mais rico, do ponto de vista da validade matemática. Porém, se este momento

não ocorre na aula em que se realiza a tarefa o seu objectivo pode perder-se pois, “os

alunos, de uma aula para a outra, já se esqueceram do que realizaram e, por vezes, os

registos escritos não são suficientemente ricos para os ajudar” (Tudella et al., 1999, p.

95). A discussão pode ser promovida pelo incentivo e pelo desafio à participação dos

alunos, de modo a que o seu papel seja gradualmente mais activo e interventivo. Sobre

este assunto Tudella et al. (1999) salientam que:

Durante a fase de discussão o professor, na sua função de moderador e

orientador, cabe-lhe estimular a comunicação entre os alunos (grupos de

trabalho) confrontando-os com a necessidade de explicitarem as suas

ideias, encorajando-os a apresentarem argumentos em defesa das suas

afirmações e incentivando-os a questionarem-se mutuamente. (p. 95)

Também Forman et al. (1998) reforçam a ideia do envolvimento dos alunos e

acrescentam que o incentivo à sua participação pode igualmente realizar-se pela

proposta de exploração de conceitos matemáticos, em detrimento da mera utilização de

algoritmos, pela condução dos alunos a ouvirem-se mutuamente, a avaliar os seus

argumentos e os argumentos dos outros. Carvalho (2003) refere ainda que a participação

do professor na argumentação colectiva, assumindo um papel próximo do dos alunos,

Page 23: Capítulo 2 - ULisboa

31

consiste numa estratégia que ele pode adoptar para regular e motivar a sua adesão à

discussão.

As intervenções do professor, durante a orquestração de uma argumentação

realizada com a turma, têm de ser doseadas e cuidadas, de modo a sustentar a partilha de

ideias e contribuir para a chegada a um consenso. É fundamental que o professor

organize a participação dos alunos e decida quando e como é que os vai encorajar a

participar (Ponte & Serrazina, 2000). Nesta linha de pensamento, Lopes et al. (1990)

salientam que o professor moderador pode tornar o debate mais rico, desde que saiba

“levantar as questões apropriadas e sintetizar, nas alturas próprias, as conclusões que

surgirem. Se assim for, podem até surgir surpresas, novas ideias e novas formas de

abordar as actividades propostas” (p. 36). Esta acção do professor pode ocorrer no

momento em que se confrontam as estratégias, as hipóteses e as justificações dos alunos

e concretiza-se na chamada de atenção para os aspectos mais salientes do trabalho e

pelo estímulo ao questionamento mútuo.

O modo como o professor sustenta a participação e o envolvimento dos alunos

em discussões, em particular em argumentações colectivas, pode recorrer à estratégia

discursiva redizer. Forman et al. (1998) referem que redizer a ideia de alguém, ou uma

ideia colectiva, é uma acção que pode assumir quatro formas diferentes: repetição,

expansão, reformulação (rephrasing) e relato, cada uma com a sua função. Por repetição

entende-se o dizer exactamente o que outro disse e serve para realçar posições. A

expansão consiste numa repetição à qual se acrescenta algo e serve para apontar ou

reforçar aspectos importantes dos argumentos. A reformulação é um rearranjo de uma

ideia de modo a torná-la mais clara. Pelo relato pode relembrar-se os acontecimentos ou

ideias, de uma determinada situação, e alinhar-se os alunos no sentido de assumirem

posições argumentativas. Redizer é assim uma estratégia pedagógica que o professor

pode usar para promover o confronto de ideias entre os alunos pelo uso de argumentos

matemáticos. Pelo seu lado, Franke, Kasemi e Battey (2007) afirmam que esta estratégia

é uma forma de suportar, ou limitar, o discurso produtivo e o seu propósito é clarificar,

amplificar ou redireccionar uma conversação. Pelo redizer o professor pode, também,

“comunicar o modo de pensar sobre como se deve desenvolver a actividade matemática

e o respeito pelas ideias dos alunos e encorajar o desenvolvimento da voz matemática

dos alunos” pelo que é assim “um modo de orquestrar as discussões” (p. 234).

Page 24: Capítulo 2 - ULisboa

32

Vincent, Chick e McCrae (2005) discutem o propósito das discussões e referem

que as intervenções do professor nas argumentações colectivas ocorrem, normalmente,

para clarificar os conteúdos das afirmações dos alunos, responder a questões não

relacionadas directamente com as questões em discussão ou assistir aspectos

relacionados com o material que é usado. Para ajudar o aluno a sair de um impasse o

professor pode redireccionar o raciocínio do aluno pela colocação de questões como: O

que é que sabes mais sobre paralelogramos? O professor pode ainda corrigir as

afirmações falsas ou assegurar que os argumentos apresentados pelos alunos têm por

base a lógica matemática.

Contudo, fomentar a participação dos alunos nas argumentações colectivas traz

algumas dificuldades. Estas podem resultar de conflitos entre o que o professor

considera matematicamente correcto e as anotações no quadro que, enquanto

participações dos alunos, podem estar erradas. Outro aspecto a atender são os conflitos

sociais, que podem influenciar o desenvolvimento da discussão e transformar-se em

momentos de oposição e confronto entre pessoas, e não entre ideias, como pretende ser

o objectivo da argumentação. De igual modo a promoção de discussões pelo redizer

pode ficar comprometida, ou não, consoante as práticas quotidianas dos alunos, ou seja,

“as práticas que trazem de casa ou de outras comunidades que os alunos frequentem

fora da escola” (Franke et al., 2007, p. 234). Assim, afirmam os autores,

É particularmente importante que os professores atendam ao

estabelecimento de um conjunto de normas sociais que sirvam o debate

na sala de aula em conjunto com a norma sociomatemática sobre o que é

aceitável como uma resposta ou justificação matemática adequada. (p. 234)

O estabelecimento de um contexto propício à emergência de argumentação faz

com que os alunos direccionem a sua atenção para a necessidade de realizar actividade

matemática significativa e com sentido, em vez de se focarem nos aspectos sociais e de

relação pessoal. Para esta situação contribui a forma como o professor consegue

transmitir aos alunos que ambas as vertentes, social e intelectual, são importantes numa

aula de Matemática. Como afirma Wood (1999),

Criar um ambiente na sala de aula em que os alunos se debatem com a

sua aprendizagem requer que o professor compreenda a relação complexa

entre os processos sociais estabelecidos e as oportunidades criadas para o

desenvolvimento conceptual. Este conhecimento (…) é fundamental no

Page 25: Capítulo 2 - ULisboa

33

estabelecimento de situações em que o desacordo e a sua resolução

ocorrem. (p. 189)

O desacordo

O desacordo ocorre quando há uma manifestação contrária a uma ideia

apresentada. As situações de desacordo ou situações de divergência, na aula de

Matemática, potenciam a ocorrência de situações de argumentação pois, durante a sua

resolução, os intervenientes podem recorrer a argumentos válidos, ou não, do ponto de

vista matemático, na defesa das suas ideias e na tentativa de convencer os outros. O

desacordo pode surgir espontaneamente no seio de uma discussão e pode ser explorado

se o professor estiver atento à sua ocorrência e enveredar pela sua exploração. Segundo

Boavida (2005) explorar estas situações e resolvê-las pelo recurso à argumentação

matemática permite:

Tornar visível para os alunos que a validação do saber matemático

assenta em argumentos internos ao campo da Matemática;

A construção de significados matemáticos pela mobilização e

relacionamento de diferentes conhecimentos;

Favorecer a compreensão, pelos alunos, da importância de se colocarem

na perspectiva do outro, ou seja, de se descentrarem de si próprios;

Contribuir para aprenderem a dar valor a ideias oriundas dos seus pares e

não apenas do professor. (Idem, p. 907)

O desacordo pode ser revelador de aprendizagem quando, por exemplo, um

aluno tem de defender a sua opinião e a articula com as dos restantes alunos, quando

tem de rever o seu pensamento e considerar a opinião dos outros ou mesmo quando

incorpora uma outra ideia na sua. De igual, modo a transformação de um contra-

exemplo num exemplo pela argumentação é uma forma de desenvolver conhecimento

matemático (Horn, 1999). Esta situação pode ocorrer, na aula de Matemática, quando se

pretende atribuir o estatuto de exemplo ou contra-exemplo a determinada ideia. Esta

discussão é frequente dado “existir alguma tendência [dos alunos] aceitarem as

conjecturas depois de as terem verificado apenas num número reduzido de casos”

(Ponte, Brocardo & Oliveira, 2003, p. 33) e os aceitarem como provas, não

considerando a existência de contra-exemplos. Boavida (2005) refere que nestes casos a

polémica pode ser resolvida pela instituição do assunto como alvo da discussão, ou seja,

como objecto de análise e reflexão, pelo que, é importante basear a discussão na

Page 26: Capítulo 2 - ULisboa

34

observação do registo escrito. Deste modo, a explicação e fundamentação de ideias é

realizada sobre os produtos dos próprios alunos.

Os desacordos matemáticos tendem a ser intelectualmente produtivos se for

realizada uma argumentação responsável - cuja estrutura suporta a actividade de

raciocínio, o envolvimento em ideias profundas e, consequentemente, a aprendizagem e

a criação matemática – e se forem estabelecidas duas normas, que sustentam a

actividade de raciocínio: o uso de termos académicos como provar e conjecturar e o

andamento lento e cadenciado da discussão, que permitem que essa actividade ocorra

(Horn, 1999).

Os alunos tendem a gerir com mais facilidade as tensões que se geram no seio

dos desacordos pelo conhecimento de normas de desacordo nomeadamente as que

respeitam às expectativas, à linguagem e às regras de participação na argumentação. De

igual modo, o professor pode contribuir no alívio das tensões pela utilização de

afirmações elaboradas na primeira pessoa do plural, como Nós vamos fazer… que

estabelecem o desacordo como uma actividade colectiva e da responsabilidade de todos.

É importante que o desacordo se centre em argumentação significativa e

responsável e não em disputas pessoais. Para levar os alunos à compreensão de que o

desacordo deve ser em relação a uma opinião e não contra uma determinada pessoa o

professor deve fazer incidir a atenção dos alunos nas ideias e não naqueles que as

transmitem. Por recorrer a termos académicos o desacordo permite que os alunos se

desafiem com expressões como Prova-nos isso!, elaborem conjecturas ou mudem a sua

opinião. Eventualmente o recurso às expressões Se faz favor ou Obrigado pode ser

facilitador na compreensão de que os argumentos que se apresentam num desacordo não

devem ser pessoais.

O professor deve dar especial atenção às suas acções na orientação, gestão e

resolução de desacordos, procurando explorar estas situações com diplomacia. É

importante que esteja consciente e informado da existência de alguns factores que

podem ser limitativos do normal desenvolvimento do debate e que os contemple na sua

gestão “caso contrário a exploração de desacordos pode colocar os alunos em situações

de vulnerabilidade penosa” (Boavida, 2005, p. 909). Alguns destes factores são,

segundo Boavida (2005) consequência do modo como os alunos e o professor

percepcionam a actividade matemática na sala de aula. Quanto aos alunos tem-se: (i) o

desrespeito por opiniões diferentes das suas, (ii) o tom de voz ou uso de palavras

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constrangedoras, (iii) o agir de modo matematicamente irresponsável, (iv) a auto-

marginalização das discussões, (v) a monopolização da atenção na aula pela forte

intervenção e (vi) o desrespeito pelo direito do outro à palavra, como atitudes que

podem comprometer o saudável desenrolar deste tipo de discussão. Quanto ao

professor, as causas mais frequentes de desacordos não explorados prendem-se com: (a)

a não consciência do fascínio experimentado face a discussões matematicamente

significativas, mas restritas, (b) a tentativa de incluir a participação de outros alunos,

que não aqueles que manifestam esse interesse, (c) a ausência de abertura para serem

fundamentadas todas as posições divergentes, mesmo que a apresentação de argumentos

por parte de alguns alunos tenha sido suficiente para convencer outros e (d) a

interpretação de uma objecção de um modo diferente do seu interlocutor, porque a filtra

pelo seu guião de aula.

O modo como o professor orquestra, dirige ou modera a resolução de desacordos

pressupõe um conjunto vasto de acções e contempla, por vezes, algum grau de

improvisação (Boavida, 2005). Não existe um leque de procedimentos, ou um conjunto

de modos de agir, que ofereçam resposta à forma como se devem resolver estas

situações pelo que é na acção, e de acordo com os acontecimentos da sala de aula, que o

professor gere as participações e adopta um, ou outro, caminho, de acordo com a sua

disponibilidade e preparação. É importante, por isso, que o professor ouça com “atenção

as ideias dos alunos e [lhes peça] que as clarifiquem e justifiquem” (Ponte & Serrazina,

2000, p. 10).

Expectativas do professor e normas na sala de aula

Como referi anteriormente, promover um ambiente propício ao desenvolvimento

da argumentação na aula de Matemática, requer que, na planificação da actividade

lectiva, o professor atenda às orientações curriculares gerais, aos objectivos específicos

para cada tema, às diferentes experiências de aprendizagem, ou seja, às tarefas a propor

e ao modo como os alunos vão trabalhar. Porém, não menos importante é a articulação

que faz desta componente do seu trabalho, de índole mais teórico, com a sua prática

lectiva, dado ser pelo discurso e pelas acções que ele transmite as suas expectativas

quanto ao modo como espera que os alunos pensem e participem, quando discutem as

suas ideias e também introduz aspectos normativos que regulam esta participação. As

expectativas podem referir-se, por exemplo, à necessidade dos alunos se ouvirem mútua

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e atentamente, de modo a poderem seguir os raciocínios em debate, perceber se fazem

sentido e, eventualmente, formular uma opinião sobre o que ouvem, podendo esta

divergente e originar desacordo (Wood, 1999). Podem, também, ser referentes à

necessidade de se avaliar e validar matematicamente os resultados a que se chega na

aula, dada a necessidade de fazer com que os alunos compreendam que não basta dizer

se está bem ou está mal, mas que precisam procurar justificações matemáticas para as

suas conjecturas e reflectir sobre as razões que fundamentam a sua opinião. Neste

sentido, a ajuda que o professor pode dar é crucial e pode concretizar-se pelo incentivo à

reflexão sobre os produtos dos alunos e à síntese da actividade, pela descrição dos

avanços e recuos e pela indicação dos objectivos e das estratégias, usadas na resolução

de determinada tarefa (Ponte, Brocardo & Oliveira, 2003). O professor pode ainda

durante a aula de resolução, ou num momento posterior, recorrer à selecção das

conjecturas a serem aprovadas, procedendo a uma escolha prévia daquelas que “sejam

mais interessantes, que possam ser exemplares e que não sejam repetitivas relativamente

a outras” (Ponte et al., 1999, p. 141).

Criar um contexto favorável à argumentação matemática na sala de aula

pressupõe, também, a instituição de normas sociais e sociomatemáticas. Estas emergem

da interacção social e regulam o desenvolvimento deste tipo de discurso proporcionando

e influenciando as oportunidades de aprendizagem, tanto para os alunos como para o

professor. Contribuem para a predisposição matemática e a autonomia intelectual dos

alunos e consideram-se instituídas quando estes já as praticam sem ter se ser algo

sugerido pelo professor. O estabelecimento de normas sociais e sociomatemáticas

ajudam a estabelecer um ambiente de sala de aula informado sobre o papel da

explicação, da justificação e da argumentação na aprendizagem da Matemática e

regulam o modo como cada um destes aspectos pode ser compreendido, interpretado e

partilhado (taken-as-shared) neste espaço. Estas normas estão presentes nas salas de

aula dos diversos níveis de ensino, desde o mais elementar até ao superior. De um modo

geral, as normas sociais referem-se ao modo de estar e participar na actividade da aula e

as normas sociomatemáticas referem-se ao que conta como matematicamente aceitável.

Por exemplo, o facto de um aluno saber que tem de apresentar uma justificação para a

sua ideia constitui uma norma social. Saber se a sua justificação é matematicamente

válida, e por isso provavelmente aceite, ou procurar que o seja, constitui uma norma

sociomatemática. Os aspectos normativos característicos de uma sala de aula

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associam-se a certos padrões de interacção e podem ser mais ou menos promotores da

prática argumentativa, consoante o seu enraizamento nas práticas dos intervenientes

(Yackel, 2001; Yackel & Cobb, 1996; Yackel, Rasmussen & King, 2000).

No caso específico da explicação e justificação na aula de Matemática, Yackel

(2001) identifica algumas normas sociais que se relacionam com o papel do aluno e que,

quando estabelecidas na aula, clarificam o modo como este pode agir. Assim, numa aula

em que estas normas estão instituídas o aluno sabe que tem de:

Desenvolver individualmente soluções significativas para os problemas;

Explicar e justificar o seu pensamento e as suas soluções;

Ouvir e compreender as interpretações e as soluções dos outros;

Questionar e lançar desafios em situações de incompreensão (misunderstanding)

e desacordo.

Pelo seu lado, Yackel e Cobb (1996) sustentam que as normas sociomatemáticas

se referem à “compreensão normativa do que é considerado matematicamente diferente,

matematicamente sofisticado, matematicamente eficaz e matematicamente elegante” (p. 5),

pelo que estas normas se referem essencialmente ao conteúdo matematicamente relevante

das intervenções dos alunos. Os autores acrescentam que a instituição destas normas

clarifica o modo como os alunos devem participar no processo de explicação e justificação

de ideias, de um modo matematicamente válido, o que contribui para o desenvolvimento de

crenças e valores matemáticos e para a autonomia intelectual em Matemática.

A instituição de normas sociomatemáticas implica que o professor cuide o

discurso e procure conduzir os alunos a uma prática habitual na sala de aula e não um

momento que ocorre espaçado no tempo. No sentido de desafiar os alunos a partilhar os

seus raciocínios o professor pode usar expressões como: Podes explicar como…?, O

que é que a turma acha disto?, Esta conclusão é idêntica à outra?, Querem acrescentar

mais alguma observação? ou Foi isto que ouvi dizer? Por exemplo, no sentido de

instituir a norma diferença matemática, o professor pode perguntar aos alunos se

resolveram determinada questão de modo diferente. O conceito de solução diferente

pode assim ser construído e negociado através deste tipo de interacção em que ambos,

professor e alunos, podem desenvolver competências de participação e compreensão,

características da “relação reflexiva existente entre o estabelecimento de normas

sociomatemáticas e a compreensão crescente da diferença, sofisticação e eficiência

matemática” (Yackel & Cobb, 1996, p. 12).

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A negociação de normas sociais e sociomatemáticas na sala de aula é um

processo contínuo que exige tempo, perseverança e investimento, por parte do

professor, quando este pretende envolver os alunos em argumentações matemáticas.

Boavida (2005) evidencia três atributos neste processo:

A importância da sistematicidade e persistência que remete para a

necessidade de um investimento continuado e não pontual no processo de

negociação;

A pertinência de uma negociação contextualizada que remete para a

necessidade da negociação de normas se enraizar nos acontecimentos da

aula;

A essencialidade da coerência que remete para a necessidade de existir

uma forte e sistemática consistência entre o que explicitamente se diz e

as mensagens que implicitamente se veiculam através do modo como se

age. (p. 910)

O professor é, em contexto de sala de aula, o juiz último dos critérios

necessários para estabelecer a veracidade de uma conclusão, pelo que a instituição de

normas adequadas de participação na argumentação influencia positivamente a

capacidade de persuasão dos alunos.

É importante que o professor considere uma planificação flexível, quando

pretende enveredar pela promoção da argumentação matemática na sala de aula, que

permita uma adaptação aos acontecimentos da aula, a intervenção dos alunos e o seu

envolvimento na actividade. Como refere Boavida (2005),

Preparar uma aula ou um conjunto de aulas envolve delinear uma hipótese

plausível de trabalho para a actividade a desenvolver que, tal como todas

as hipóteses, está sujeita a revisões fruto do diálogo permanente que o

professor vai mantendo entre aquilo em que pensou e os acontecimentos

que vão surgindo no decurso da acção. (p. 894)

Estar disponível para inovar, mudar a prática pedagógica, ouvir os alunos,

fazê-los discutir ideias e orientar as discussões na sala de aula, com o objectivo de

promover a apresentação de argumentos convincentes, o debate e a chegada a consenso,

constitui uma das vertentes do trabalho do professor promotora de uma aprendizagem

de qualidade, em que o aluno se sinte realizado e confiante. É um desafio que o

professor tem de aceitar, quando pretende que os seus alunos aprendam conteúdos

matemáticos com significado.