capoeira trabalho e educacao

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

NEUBER LEITE COSTA

CAPOEIIRA,, TRABALHO E EDUCAO CAPOE RA TRABALHO E EDUCAO

Salvador 2007

NEUBER LEITE COSTA

CAPOEIRA, TRABALHO E EDUCAO

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial obteno do grau de MESTRE EM EDUCAO.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib. Co-orientadora: Prof Dr. Celi Nelza Zlke Taffarel.

Salvador 2007

Biblioteca Ansio Teixeira / Faculdade de Educao - UFBA C837 Costa, Neuber Leite. Capoeira, trabalho e educao / Neuber Leite Costa. 2007. 226 f. Orientador : Prof. Dr. Pedro Rodolpho Junger Abib. Co-Orientadora : Profa. Dra. Celi Nelza Zulke Taffarel. Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao, 2007. 1. Capoeira. 2. Formao profissional 3. Educao fsica. I. Abib, Pedro Rodolpho Junger. II. Taffarel, Celi Nelza Zulke. III. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educao. IV. Ttulo.

CDD 796.81 - 22. ed.

NEUBER LEITE COSTA

CAPOEIRA, TRABALHO E EDUCAO

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Educao, Universidade Federal da Bahia.

Aprovado em 21 de junho de 2007.

Banca Avaliadora1

Pedro Rodolpho Jungers Abib (orientador) ______________________________ Doutor em Educao. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Universidade Federal da Bahia.

Luiz Renato Vieira ___________________________________________________ Doutor em Sociologia. Universidade de Braslia (UNB). Senado Federal.

Augusto Csar Rios Leiro ____________________________________________ Doutor em Educao. Universidade Federal da Bahia (UFBA). Universidade Federal da Bahia.

Comungamos com a reflexo do professor Augusto Csar Rios Leiro, quando na sua folha de aprovao de sua tese, nos chama a ateno sobre o ato de examinar e o ato de avaliar. Acreditamos que os professores que integraram a banca do nosso trabalho, estabeleceram muito mais que um exame.

1

Dedico esse trabalho:

A coisa mais maravilhosa que j fiz: Ana Clara O nascimento de uma alma coisa demorada, no partido ou jazz, em que se improvise [...].2

Aos capoeiras3 de todo o globo, na esperana de contribuir de alguma forma para o desenvolvimento destes e da nossa cultura.

Aos professores de Educao Fsica que lutam por: um mundo; um pas; uma educao e uma Educao Fsica melhor.

2 3

Msica Papo de Surdo e Mudo O Rapa. Especialmente ao companheiro Demerval Machado: o Mestre Formiga in memoriam.

AGRADECIMENTOS

Famlia

Aos meus pais Carmen Leite Costa e Nilton Menezes Costa que sempre estiveram ao meu lado, na minha frente... A mineira Dayana Cristina Garcia, que ininterruptamente se preocupou com minhas lucubraes e ansiedades e entendeu as minhas ausncias. Meu amor! Ao mestre Ministro (Raimundo Mrio de Freitas) a quem me ensinou dentre tantas outras coisas a valorizar a nossa cultura. Meu segundo pai! Aos cunhados Ana Flvia e Wellington Elias pelo apoio.

s companheiras e companheiros

Brbara Santos Ornellas que caminhou comigo quando no existia estrada. Ctia Cabral que por algum tempo me incentivou e entendeu os meus momentos de inquietaes e estudos. Paulo Lima pelo apoio e presteza. Amandinha: so nas pequenas coisas que surge as grandes. Fran: olho de tigre! Ao colega de mestrado, de trabalho, de grupo e de comemoraes, Fbio Nunes pelo apoio, ateno e dicas. A Frederico Abreu: A palavra Mestre lhe cabe bem! Ao prestativo Mestre Falco (Floripa) Anansa Barbosa: valeu!.

Aos camaradas e colegas de trabalho

Ao Grupo de Estudos MEL (sem dvida o grupo mais doce da FACED) pelo apoio e fora. Aos combativos camaradas do MNCR. Fora na luta. A luta pra vencer!

professora Ktia Oliver S, sempre atenciosa e disposta a ajudar. Uma amiga do corao! Editora Boi Tempo, pela reedio de obras revolucionrias. Editora Expresso Popular que produz livros de qualidade e preos accessveis, possibilitando assim aquisies para aprofundar meus pensamentos, mostrando que possvel produzir para as massas! ex-diretora da Escola Estadual Heitor Villa Lobos Thas pelo apoio, compreenso e fora! professora Ana Luz pela luz! deputada federal Alice Portugal. Mulher guerreira! Aos entrevistados pela colaborao e presteza na construo do trabalho. Em especial ao Mestre Daltro. Ao camarada Vitor Castro Jnior (Vitor de Joo Pequeno). A Secretaria de Educao do Estado por aprovar o meu afastamento pra estudos. s ex-superintendentes: Eliana Guimares, Ctia Paim e Ana. Aos camaradas da CFE, na figura da ponderada Kelly Cristina. A todos os amigos, conhecidos, companheiros e camaradas que contriburam diretamente ou indiretamente para a realizao desse trabalho. A minha querida, guerreira e trabalhadora prof. Celi Nelza Zlke Taffarel. Quando crescer quero ser igual a voc!

A banca

A meu amigo Lus Renato pela sensatez, compromisso e a seriedade que me passa. Ao professor e companheiro Csar Leiro que no se cansa de me cutucar e com isso me inquieta e me faz crescer. Ao meu (des) orientador Pedro Abib, que no Red Bull 4, mas me deu assas!

4

Bebida energtica.

Uma vez, perguntaram a seu Pastinha. O que era a capoeira. E ele, mestre velho e respeitado, Ficou um tempo calado, revirando a sua alma, Depois respondeu com calma, em forma de ladainha A capoeira um jogo, um brinquedo, se respeitar o medo, dosar bem a coragem. uma luta, manha de mandingueiro, o vento no veleiro, lamento na senzala. o corpo arrepiado. Um berimbau bem tocado. O riso de menininho. A capoeira vo de um passarinho. bote de cobra coral. Sentir na boca Todo o gosto do perigo E sorrir para o inimigo Apertar a sua mo o grito de Zumbi Ecoando no Quilombo se levantar de um tombo Antes de tocar o cho o dio a esperana que nasce O tapa que explodiu na face Foi arder no corao, enfim, Aceitar o desafio Com vontade de lutar Capoeira um pequeno navio Solto nas ondas do mar.

Mestre Toni Vargas

RESUMO

Esta dissertao que analisa a capoeira, o trabalho e a educao, tratou de investigar atravs de pesquisa documental e entrevistas, utilizando o mtodo dialtico e a anlise do discurso, informao referente s mediaes entre a educao e o mundo do trabalho, suas conseqncias para a Educao Fsica e, por conseguinte para a capoeira, a partir da reestruturao produtiva societal atual. Teve como objetivo detectar as conseqncias sociais detrimentais para a cultura capoeirana resultantes da regulamentao da profisso de Educao Fsica, principalmente no que diz respeito formao educacional do trabalhador da capoeira e suas influncias. A pesquisa indicou o avano neocolonizador do Conselho Federal de Educao Fsica (CONFEF) e do Conselho Regional de Educao Fsica (CREF), frente cultura capoeirana e as implicaes desastrosas para essa manifestao tanto no que diz respeito formao quanto sua prxis. Evidenciou tambm os argumentos do conselho, o objetivo da profissionalizao, as tticas de ampliao dos quadros de filiados do sistema CONFEF/CREF e de insero na comunidade. Em contrapartida destacou as estratgias de enfrentamento e os movimentos de resistncia, juntamente com as aes contra as ingerncias do conselho na comunidade capoeirana. Tratou de levantar questionamentos sobre a pior conseqncia social dessa regulamentao para essa cultura que a regulamentao do profissional de capoeira. Ficaram constatadas as armadilhas da profissionalizao na sociedade capitalista, principalmente nessa lgica de regulamentao do trabalhador. Foram indicadas alternativas de organizao, demonstrando que existem outras possibilidades e que essa problemtica ainda precisa ser muito discutida com toda a comunidade.

Palavras-chaves: Capoeira - Formao Profissional - Educao Fsica.

ABSTRACT

This dissertation on capoeira, work and education draws on recent information concerning the interface between education and the world of work, its consequences for the Physical Education and, hence, for capoeira, in light of societys current production restructuring processes. By using documental research and interviews, the dialectical method and discourse analysis, it was aimed at detecting the detrimental social consequences for the capoeira culture resulting from the regulations in the Physical Education profession, especially regarding the capoeira workers educational training and its influences. This research pointed to the neocolonialist approach adopted by both the Federal Physical Education Council (CONFEF) and the Regional Physical Education Council (CREF) towards the capoeira culture and the ruinous implications for such culture in both its educational training and praxis. It also founded out the arguments advanced by the council, the goal of professionalization, the tactics employed for an increase in the number of CONFEF/CREF affiliates and for community insertion. On the other hand, it revealed the capoeira communitys coping strategies and resistance movements together with actions against the councils interfering approaches. It also raised questions on the worst social consequence of the abovementioned regulation for the capoeira culture, namely the regulation of the capoeira professional. The traps set by the professionalization process in the capitalist society were then disclosed, especially as far as the workers regulation is concerned. Alternatives for organization were offered, thus pointing to other possibilities and showing that such an issue requires further discussion encompassing the whole community.

Key Words: Capoeira Professional Training Physical Education

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7

-

Cartaz do sculo XIX, da cidade do Rio de Janeiro Pink e Crebro Logomarca do CONFEF Augustus Earle Negroes fighting, 1822

82 104 105 124 149 150 150

-

Livro do MNCR Logomarcas do MNCR III Seminrio de Articulao Contra a Regulamentao das Tradies Culturais e da Educao Fsica. Educao Fsica: campo de trabalho e formao profissional VII Jornada Pedaggica do CBCE (2005) Logomarca do Movimento Estadual Entre a Arte e o Ofcio Aula pblica no Jardim dos Namorados Lideranas do Movimento Entre a Arte e o Ofcio Lideranas Polticas e da Capoeira Roda de capoeira e panfletagem na festa do Bomfim Capoeira Luta de Resistncia de Todos, para Todos, sem Dono! Fora Confef-Cref Comitiva da Bahia a caminho de So Paulo para o I CNC Roda de Capoeira organizada pela LIBAC I SENECA Mestre Benivaldo Mestre Ded Mestre Rafael I ENCE Logomarca do TRIPLO - C

Figura 8 Figura 9

-

152 152 154 155 155 156 156 157

Figura 10 Figura 11 Figura 12 Figura 13 Figura 14 Figura 15 -

Figura 16 Figura 17 Figura 18 Figura 19 Figura 20 Figura 21 Figura 22 Figura 23 -

158 161 162 165 165 169 177 207

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Abracap ABPC ACP ADI APEFB APLB BB BIRD CBC CBCE CBP Central CFE CNC CND COB Combrace CONFEF CREF Cremeb DA DEM DIREC DP

Associao Brasileira de Capoeira Associao Brasileira dos Professores de Capoeira Ao Civil Pblica Ao Direta de Inconstitucionalidade Associao dos Professores de Educao Fsica da Bahia Associao de Professores Licenciados da Bahia Banco do Brasil Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento Confederao Brasileira de Capoeira Colgio Brasileiro de Cincias do Esporte Confederao Brasileira de Pugilismo Colgio Estadual da Bahia Coordenao de Educao Fsica e Esporte Escolar Congresso Nacional de Capoeira Conselho Nacional de Desportos Comit Olmpico Brasileiro Congresso Brasileiro de Cincias do Esporte Conselho Federal de Educao Fsica Conselho Regional de Educao Fsica Conselho Regional de Medicina da Bahia Diretrio Acadmico Democratas Diretoria Regional de Educao Domnio Pblico

ENCE ENEEF EXNEEF Fica FIEP FMI FSBA ICEIA Ideb Inep

Encontro Nacional de Capoeiristas Evanglicos Encontro Nacional dos Estudantes de Educao Fsica Executiva Nacional dos Estudantes de Educao Fsica Federao Internacional de Capoeira Fdration Internationale d Education Physique Fundo Monetrio Internacional Faculdade Social da Bahia Instituto de Educao Isaas Alves ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Instituto do Patrimnio Artstico e Cultural da Bahia Lei de Diretrizes e Bases Linha de Estudos e Pesquisas em Educao Fsica & Esporte e Lazer Liga Baiana de Capoeira Ministrio do Esporte Ministrio da Educao Mdia/Memria, Educao e Lazer Movimento Nacional Contra a Regulamentao do Profissional de Educao Fsica Ministrio Pblico Ordem dos Advogados do Brasil Organizao No Governamental Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico Partido Comunista do Brasil Parmetros Curriculares Nacionais

Ipac LDB Lepel

Libac ME MEC Mel MNCR

MP OAB ONG Oscip PC do B PCN

PFL PL PP ProUni PT PTB SEC Senac Senai Seneca Sesc Sesi Sinpro STF UCSal UFBA UFRJ UNIRB

Partido da Frente Liberal Projeto de Lei Partido Progressista Programa Universidade para Todos Partido dos Trabalhadores Partido Trabalhista Brasileiro Secretaria da Educao Servio Nacional de Aprendizagem Comercial Servio Nacional de Aprendizagem Industrial Seminrio Nacional de Capoeira Servio Social do Comrcio Servio Social da Indstria Sindicato dos Professores Supremo Tribunal Federal Universidade Catlica do Salvador Universidade Federal da Bahia Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade Regional da Bahia

SUMRIO

1

INTRODUO

16

1.1 1.2 1.3

Foi agora que eu cheguei Me diga de onde veio, me diga pra onde vai A palma de Bimba um, dois, trs

16 18 20

2

CAPITALISMO: A SOCIEDADE EM QUE VIVEMOS

24

2.1

Modo de Produo e a Relao: trabalho e educao

33

2.2

Reestruturao do Mundo do Trabalho e a Educao Fsica

44

3

VAMOS COMEAR A BRINCADEIRA: EDUCAO FSICA COM A CAPOEIRA

O

JOGO

DA

61

3.1

A Escravido Negro-africana no Brasil e a Capoeira: trabalha negro, negro trabalha

74

3.2

O Capoeira: do mundo do trabalho escravo ao trabalho assalariado

84

4

A EDUCAO FSICA CUIDA DO CORPO E... MENTE: ARGUMENTOS PARA A REGULAMENTAO DA PROFISSO E DO MOVIMENTO

104

4.1

Profissionalizao da Educao Fsica

117

4.2

Se Eles So Exu Eu Sou Iemanj: a peleja da capoeira contra o conselho regional de Educao Fsica no Estado da Bahia

124

5

ARGUMENTOS CONTRA AS INVESTIDAS NEOCOLONIZADORAS DO CONSELHO PROFISSIONAL DE EDUCAO FSICA E AS ESTRATGIAS DE ENFRENTAMENTO DA CAPOEIRA

134

5.1

Sou Forte como uma Rasteira: confrarias resistivas na dcima terceira regio

148

5.2

Regulamentaes na Capoeira: ressignificaes da cultura capoeirana

166

6

REGULAMENTAO DA PROFISSO DE EDUCAO FSICA E SUAS CONSEQNCIAS SOCIAIS PARA A CULTURA CAPOEIRANA

179

6.1

Trocando seis por Meia Dzia: efeitos colaterais

198

CONSIDERAES FINAIS

209

REFERNCIAS

215

1 INTRODUO

1.1 Foi agora que eu cheguei1

O presente trabalho surge da necessidade de estudar alguns acontecimentos da atualidade que dizem respeito a uma das maiores manifestaes da cultura baiana e brasileira a capoeira, a qual, desde 1988, influencia nosso comportamento, nossas atitudes e decises, enfim, na forma como sobrevivemos e nos relacionamos com o mundo. At mesmo na escolha do nosso atual ofcio.

Em 1994, quando cursvamos o terceiro ano do Colgio Estadual da Bahia (Central), ainda sem saber, ao certo, a escolha do curso para o qual fazer o concurso vestibular, a capoeira nos deu uma resposta. Ao ler sobre as ofertas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), verificamos que Licenciatura em Educao Fsica seria a melhor opo, pois, j naquele ano, ministrvamos aulas de capoeira na Sede da Associao de Moradores do bairro do Cabula VI, em Salvador.

Por incrvel que parea, obtivemos xito no concurso vestibular, embora tenhamos fracassado no referido colgio, pois fomos reprovados, curiosamente numa das disciplinas que mais aprecivamos. Finalmente, depois de muito dilogo entre o professor de Histria e o diretor do turno da noite do Colgio Central, adentramos a universidade no curso escolhido, imaginando ingenuamente que passaramos manhs e tardes praticando apenas esportes e outros exerccios fsicos.

Com o passar do tempo e em contato com alguns professores da instituio, fomos percebendo que a Educao Fsica fazia parte de um todo muito mais abstruso do que pensvamos e desenvolvendo uma empatia pelo processo de ensinoaprendizagem enveredamos nos caminhos e descaminhos da educao, embora sempre fazendo relaes e conexes dos nossos estudos com a capoeira.

1

Msica de capoeira de Domnio Pblico (DP).

17

Percebemos,

nesse

percurso,

que

poderamos

fazer

intervenes

e

questionamentos, por exemplo, quanto ao ensino da capoeira, que, j nessa poca, apontava para uma intensa dialeticidade com a Educao Fsica, por fora da supremacia, nesse campo, de mtodos aliengenas2 e de um tratamento desse conhecimento sob forte influncia dos mtodos de ginstica e, posteriormente, sob uma viso esportivista. Com o passar do tempo, esse processo de envolvimento da Educao Fsica com a capoeira vai tomando maiores dimenses e, nessa correlao de foras, o popular vai perdendo cada vez mais para o acadmico.

No ano de 1998, aprovada a lei que institui os Conselhos Federal e Estaduais dos profissionais de Educao Fsica. Desde ento, um grupo de professores que atuam nessa rea do conhecimento vem propondo regulamentar e fiscalizar vrias manifestaes da cultura corporal, entre as quais a capoeira.

exatamente um dos fatos vinculados a esse contexto a razo de ser desta pesquisa. Em 1999, no XXI Encontro Nacional dos Estudantes de Educao Fsica (ENEEF), em Recife (Pernambuco), na plenria final do evento, um grupo de discentes e docentes decidiram fundar um movimento contra a recente regulamentao dos profissionais de Educao Fsica, por discordar da forma como ela se constituiu e por divergir radicalmente das concepes ideolgicas que permeiam a lgica de criao de conselhos profissionais.

Retornamos a Salvador com o objetivo de estudar mais sobre o assunto e difundir, entre os colegas, inclusive os praticantes de capoeira, essa nova empreitada desse coletivo ligado Educao Fsica, mas que compreendia a contemporaneidade a partir de outra lgica.

Uma das aes do supracitado Conselho, como j foi mencionado, atingiria em cheio as estruturas da capoeira, pois os trabalhadores que exercem o ofcio de ensinar

2

Tese defendida por ns em pesquisa realizada em curso de especializao, intitulada O Trato com o Conhecimento da Capoeira: uma experincia pedaggica na Cidade Me. Atravs dele, percebemos que muitas atividades realizadas nas aulas de capoeira tinham influncia dos mtodos de ginstica. Dessa forma, denominamos de aliengenas esses exerccios fsicos (polichinelos, abdominais, mtodos de flexibilidade, marcha de ganso...), que no faziam parte inicialmente do processo de ensino-aprendizagem da capoeira, constituindo uma influncia ntida da Educao Fsica.

18

passariam a ser fiscalizados e regulamentados por ele, sendo obrigados a se filiar a partir da comprovao de experincias anteriores nessa rea.

Alm disso, os novos trabalhadores de capoeira, que no possussem graduao em docncia (treinel, formado, professor, contramestre, mestre) somente poderiam ministrar aulas dessa cultura corporal acessando um curso superior de Educao Fsica. Resumindo, todo capoeira3, a partir de determinada data instituda pelo Conselho, deveria ser formado em curso de Licenciatura ou Bacharelado em Educao Fsica.

Incomodados com as conseqncias que todas essas intervenes poderiam causar para a cultura, principalmente no que diz respeito ao trato com o conhecimento e a formao docente do capoeira, nos propusemos a debater essa questo tanto com a comunidade capoeirana, como tambm com a comunidade de professores de Educao Fsica, principalmente com o grupo que apoiava as aes do Conselho Federal de Educao Fsica (CONFEF).

1.2 Me diga de onde veio, me diga pra onde vai4

Da fundao do Movimento Nacional contra a Regulamentao do Profissional de Educao Fsica (MNCR) at a finalizao deste trabalho, foram muitos debates, encontros, palestras, reunies, conversas informais, discusses, enfim muito acumulo coletivo.

essa experincia, analisada sob parmetros histricos e dialticos, que apresentamos neste trabalho, considerando o cenrio do pas quando se deu a regulamentao e chegando atualidade, ainda envolta pelas polticas neoliberais e suas conseqncias para os trabalhadores e para o trabalho.

3

Trataremos a palavra capoeira nesse trabalho de duas formas. Para a coisa em si e para o seu interlocutor, seu produtor. O que indicar um ou outro o contexto que estar inserido e (ou) o verbo que antecede. 4 Msica de capoeira de DP.

19

A proposta principal parte da considerao das condies objetivas que garantem a vida humana, ou seja, do trabalho humano, para que se possa compreender a construo do que denominaremos, aqui, de cultura capoeirana5 e avaliar os fatos vinculados a essa temtica que inferem, direta e indiretamente, na sua prxis6.

Investigamos as conseqncias sociais da regulamentao da profisso de Educao Fsica lei 9696/98 para a capoeira, a partir da relao entre trabalho e educao, resultantes das medidas de ajuste no mundo do trabalho, mediadas pela regulamentao, bem como as formas de resistncia desenvolvidas para a preservao da cultura capoeirana.

Conseqentemente, estruturamos nosso estudo propriamente dito a partir de observaes, vivncias e intervenes, tentando seguir fidedignamente o que a cincia nos solicita para a construo do conhecimento, no ambiente que escolhemos analisar, atravs da recuperao histrica de vrias facetas do processo e de apreciaes sobre a realidade contempornea.

Buscando estabelecer coerncia cientfica, mergulhamos no estudo da educao, do trabalho e da capoeira, tendo como objetivo principal desvendar a relao estabelecida entre esses entes a partir da reordenao do mundo do trabalho na Educao Fsica e dos resultados diretos e indiretos que atingem a capoeira e o capoeira na sua formao e, por conseguinte, no trato com o seu conhecimento.

Elegemos, para discutir as conseqncias sociais da regulamentao da profisso da Educao Fsica sobre a formao e a regulamentao do trabalhador em capoeira, categorias tericas, dentre as quais enfatizamos a totalidade, a particularidade e a singularidade.

5

Considerar a existncia de uma cultura capoeirana no implica admitir que existam subdivises de cultura. Apenas queremos destacar, com essa expresso, que h diferenas histricas na formao do capoeirista, que vo se distanciar, em determinados momentos, da formao acadmica e especificamente da formao do professor de Educao Fsica. Deve ficar claro que a cultura de formao que permeia o ambiente da capoeira e a cultura que constitui o universo da Educao Fsica, apesar de se envolverem dialeticamente, so dspares, e isso deve ser respeitado. 6 Entendemos que a prxis, assim como expe Falco (2004), uma atividade livre e criativa, onde os sujeitos produzem e transformam seu mundo e nesse movimento dinmico modificam a si mesmos.

20

Para estabelecer um entendimento sobre como se processa a reestruturao produtiva hoje, optamos por analisar o trabalho no seu sentido ontolgico e sua mediao com a educao. Esse esforo foi pensado para contextualizar as conseqncias da reestruturao produtiva, implementada em nosso pas a partir da crise estrutural do capital que est posta ainda hoje, na nossa sociedade.

Disso decorre nossa inquietao e opo de buscar compreender esse processo de regulamentao da profisso da Educao Fsica, com suas ingerncias na cultura capoeirana, de forma coerente, lgica e racional. Seguindo essa linha de raciocnio, elegemos a prtica social como verdade absoluta das nossas investigaes.

Analisamos tambm como os trabalhadores da capoeira se organizam em funo dessa nova ordem, suas estratgias de enfrentamento, atravs de movimentos e grupos, suas concepes sobre a existncia e a atuao do Conselho Regional de Educao Fsica (CREF) da dcima terceira regio7 e as conseqncias dessa nova ordem social para a cultura capoeirana.

1.3 A palma de Bimba um, dois, trs 8

De incio, entendemos que havia a necessidade de uma explicao sobre a constituio do pensamento e a origem das opes e dos caminhos a serem seguidos na pesquisa. Dessa forma, no primeiro captulo da dissertao, estabelecemos uma anlise da sociedade atual, a fim de situar de onde estaramos buscando fundamentar as crticas e preparando o discurso para estruturar o debate principal, a partir do modo de produo societal e das mediaes entre trabalho e educao.

Sentimos a necessidade de discutir um pouco mais sobre o modo de produo, bem como sobre sua insero e influncia tanto na educao como no trabalho. Iniciamos a discusso sobre a formao de professores recuperando um pouco o7 8

Regional que engloba, na atualidade, os estados da Bahia e Sergipe. Msica de capoeira de DP.

21

processo histrico da promulgao da lei 9696/98 e o embate que a envolveu, em meio constituio do Conselho Federal e os Conselhos Estaduais. Esse estudo se pautou, fundamentalmente, numa anlise que parte da reordenao do mundo do trabalho.

Na terceira parte, analisamos a Educao Fsica e sua relao com a capoeira, em um processo dialtico iniciado quando nem mesmo existia o nome Educao Fsica, e ela se constitua ainda em estado de latncia, sob a forma da ginstica. Iniciamos, nessa parte, uma anlise do processo de formao da mo de obra escravizada em nosso pas e, a partir dessa conjuntura, do desenvolvimento do capoeira, um trabalhador que exercia as mais variadas atividades e ofcios.

Em seguida, verificamos como esse trabalhador se ocupa tambm com o ensino dessa manifestao nos mais variados campos de atuao, mais fortemente no mbito educacional (dentro e fora da escola), ou seja, do mundo do trabalho escravo ao do trabalho assalariado.

No quarto captulo, levantaremos dados sobre o processo institudo no atual contexto histrico, a partir da regulamentao da profisso, principalmente no que diz respeito especificidade da Educao Fsica, a relao estabelecida entre o CONFEF/CREF e, mais especificamente, a capoeira baiana, principalmente suas ingerncias frente a essa manifestao cultural.

Empreendemos, a, uma anlise dos argumentos utilizados pelo CONFEF/CREF para a regulamentao da profisso e pelos movimentos de oposio, ou seja, as ingerncias do Conselho na capoeira baiana e a peleja dessa comunidade frente s idias propagadas em documentos sobre a incluso da capoeira no rol das atividades a serem regulamentadas e fiscalizadas pelo sistema.

Levantamos e avaliamos os discursos que supostamente fundamentam essa pseudo-autoridade e competncia, tendo como fundo de leitura a constituio da sociedade neoliberal e o avano do capital no nosso pas.

22

Posteriormente, no quinto captulo, analisamos os argumentos elencados pela comunidade capoeirana face s investidas neocolonizadoras9 do sistema e as estratgias construdas no bojo desse enfrentamento, enfatizando a materializao do conflito de classes atravs da resistncia dessa comunidade, em vrios mbitos, e tambm as alternativas emergidas dessa lgica.

Destacamos as confrarias resistivas ora constitudas por vrios integrantes das manifestaes da cultura corporal e da prpria Educao Fsica, ora somente formadas por capoeiras que se envolveram com a discusso da temtica, suas aes e mobilizaes.

Realizamos uma reflexo sobre as ressignificaes que mais se destacaram no processo histrico de constituio da capoeira e criticamos os caminhos tortuosos de sua esportivizao, midiatizao e mercadorizao, como fatores principais que estimularam uma parte da comunidade da Educao Fsica a entend-la apenas como atividade fsica e esporte. Tudo isso no contexto de uma breve anlise sobre como se processa hoje esse fenmeno, na nossa sociedade.

Em seguida, no captulo seis, assinalamos as conseqncias, para a cultura capoeirana, da profissionalizao da Educao Fsica, tendo em vista a sistematizao realizada e a prtica social concreta. Aprofundamos o debate a respeito da profissionalizao da capoeira, o que, na nossa compreenso, se configura a implicao mais danosa cultura capoeirana.

Tendo em vista essa problemtica, levantamos a hiptese de que o enfrentamento do processo de regulamentao interfere, incisivamente, na ressignificao da formao e de sua prxis. Apontamos alternativas e a possibilidade de a comunidade da capoeira se organizar a partir de outra lgica.

9

Tratamos dessa forma por entender que a postura que o sistema tem frente comunidade capoeirana lembra a postura da relao: colonizador colonizado. Como se os capoeiras necessitassem vitalmente dos conhecimentos acadmicos para as suas prticas culturais. Utilizamos esse termo de forma metafrica para representar a poltica de expanso e domnio cultural instituda pelo CONFEF/CREF frente s manifestaes da cultura corporal. Nozaki (2004) em sua tese sobre o assunto utiliza o termo - colonizadoras - achamos pertinente atualizar o mesmo nesse trabalho.

23

Finalmente, cabe registrar que, com esta investigao, pretendemos contribuir para a construo da teoria revolucionria cujo marco referencial a critica realidade atual e a busca de elementos superadores de suas contradies, na perspectiva da formao humana emancipatria.

Especificamente, nossas pretenses direcionam-se para uma discusso terica sobre a cultura capoeirana e sobre os marcos de resistncia ao seu reordenamento e sua organizao interna, frente a uma possvel destruio da formao cultural, do capoeira e da sua prxis.

Temos o dever de apontar que os limites de uma pesquisa de mestrado, assim como nossas prprias limitaes acadmicas e cientficas, nos impedem de maiores aprofundamentos. Por isso, destacamos a importncia da realizao de outros estudos, alguns dos quais apontamos neste trabalho, os quais podero contribuir para o aprofundamento da matria e para a construo de outras respostas, na condio de que sejam construdas pelo conjunto de pesquisadores e pela comunidade capoeirana.

Nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que reconhecemos a capacidade resistiva, de adaptao e de sobrevivncia da comunidade capoeirana, ratificamos a necessidade de ruptura com a organizao atual da sociedade, para que os trabalhadores da capoeira possam construir (junto ao coletivo mais ampliado destes) alternativas para a crise estrutural do capital e, finalmente, uma prxis revolucionria.

2 CAPITALISMO: A SOCIEDADE EM QUE VIVEMOS

Pois , No h mais girassis. A tarde inteira o sol bronzeia os urubus Pagando os pecados debaixo do equador Atrs da mais valia s no vai quem j morreu Se hoje eu posso consumir Eu sou cidado Se amanh no Eu sou marginal Mas a mesma indiferena que cultiva O jardim capital a mesma que o envenena E espalha o terror1

Para iniciar nossas anlises sobre o que aqui chamamos de cultura capoeirana, fazse necessrio situar a sociedade em que essa cultura est inserida, a fim de fundamentar de onde e com que bases dialogaremos.

Conseqentemente, torna-se incoerente estudar a capoeira sem entend-la como um fenmeno que se materializa na condio de produo cultural do ser humano, ou seja, como uma cultura corporal que estabelece uma dialeticidade instantnea no seu surgimento ou na sua ressignificao com o ambiente e com a circunstncia em que se materializa2.

No entenderemos a capoeira somente pela capoeira, pois ela no produto nem meio de si prpria. Ela se constitui a partir de elementos sociais que, junto com os indivduos produtores (direta e indiretamente) desse conhecimento, vo, em movimentos constantes e pluridirecionais, significando e ressignificando sua concreticidade, em detrimento de determinadas realidades.

Assim sendo, estabeleceremos nossa compreenso do fenmeno primeiramente frente sociedade em que se encontra, permitindo-nos uma avaliao da histria sobre o modo de produo em que se processa a vida. Nossas primeirasMancha Roxa (marcha rancho), msica de Max de Castro. Entendemos que essa manifestao pode ter se originado a partir de costumes, danas, ritmos, enfim tradies africanas que, modificadas em detrimento das necessidades concretas reais da escravido, vieram a constituir o que conhecemos hoje como capoeira.2 1

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consideraes dizem respeito ao mundo que produzimos, no qual estamos inseridos e sobrevivemos.

Percebendo isto, estabeleceremos as bases problemticas da regulamentao da Educao Fsica frente cultura capoeirana, relacionando as categorias imbricadas no todo educao e trabalho e correlacionando os nexos entre o movimento societal atual e as mesmas.

Aproximaremos-nos, em linhas gerais, do processo de desenvolvimento polticoeconmico-social (denominado de capitalismo tardio3 por alguns e capitalismo hipertardio4 por outros), que foi adotado no Brasil a partir da dcada de 60. Antes, porm, de iniciar nossa alocuo mais particular, analisaremos, de uma forma geral, como se constitui o modo de produo capitalista, primeiramente nos pases industrializados, com suas crises, e o sociometabolismo do capital5 na

contemporaneidade.

Comungamos do mesmo pensamento de Mszros (2002), no que diz respeito distino entre capital e capitalismo. O capital antecede o capitalismo e tambm posterior a ele, constituindo uma das formas possveis de sua realizao. No trata de valor de uso separado de valor de troca, encontrando uma forma de subordinar o primeiro ao ltimo, e se configura em uma de suas variantes histricas como, por exemplo, ocorre na fase caracterizada pela subsuno real do trabalho ao capital.

Antes, porm Marx (2004) j destacava e confirmava essa proposio. Dizia ele que a movimentao (circulao) das mercadorias inegavelmente o ponto nascedouro do capital:A produo de mercadorias e o comrcio, forma desenvolvida da circulao de mercadorias, constituem as condies histricas que do origem ao capital. O comrcio e o mercado mundiais inauguram no sculo XVI a moderna histria do capital (MARX, 2004, p. 177).

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Expresso utilizada pela primeira vez por Mandel (1892). Expresso utilizada por Antunes (2004). 5 Ver Mszros (2002).

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Autores como Wood (2001) e Mszros (2002), j aprofundaram bastante os estudos sobre o capitalismo. Com o intuito de evitar a repetio, abrindo portas abertas, faremos breves consideraes sobre a temtica no mbito geral, analisando seu movimento no mundo. Isso servir para fundamentar nossos pensamentos e posicionamentos mais especficos, durante todo o trabalho, a fim de tentar abordar coerentemente aspectos que nos permitam estabelecer crticas problemtica levantada nessa produo, a partir do nosso objeto de estudo.

O capitalismo tem o poder de transformar tudo em mercadoria, bens e servios, incluindo a fora de trabalho. No livro A Origem do Capitalismo, Wood (2001) trata de suas possveis origens. Final do sculo XV, sculos XVI, XVII, ou at mesmo final do sculo XVIII e sculo XIX so momentos histricos citados para situar essas origens. A prpria autora, todavia, posiciona-se afirmando que no h origem, pois seus pressupostos estavam presentes nos simples atos de troca, nos primrdios do comrcio e das primeiras atividades de mercado.De um modo ou de outro o capitalismo aparece, mais ou menos naturalmente, onde e quando os mercados em expanso e o desenvolvimento tecnolgico atingem o nvel certo. Muitas explicaes marxistas so fundamentalmente iguais - acrescidas das revolues burguesas para ajudar a romper os grilhes [...] Assim, a linhagem do capitalismo evolui, naturalmente, do mais antigo mercador babilnio ou romano para o habitante dos burgos medievais, para o primeiro burgus moderno e, finalmente, para o capitalismo industrial (WOOD, 2001, p. 14).

Para Marx e Engels (1998), o princpio do capitalismo encontra-se na diviso do trabalho, na diviso entre cidade e campo e na separao entre as classes. Ali j se encontrava a semente do capitalismo, que veio a se desenvolver mais fortemente com o fim do feudalismo e o desenvolvimento tecnolgico industrial.

Tanto Wood (2001) quanto Marx (2004) destacam que o sistema capitalista sofre constantemente vrias crises, contudo nunca sem se lanar em novas e mais avassaladoras crises. Ou seja, sucessivamente, enquanto a sociedade se estabelecer desse modo, haver crises.

Mas o capitalismo at o momento vem encontrando uma forma de sair das crises, custa do sofrimento principalmente das classes mais populares. Assim, muitos milhes de pessoas sofrem tanto da cura como da doena:

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O capitalismo um sistema em que os bens e servios, inclusive as necessidades mais bsicas da vida, so produzidas para fins de troca lucrativa; em que at a capacidade humana de trabalho uma mercadoria venda no mercado; e em que, como todos os agentes econmicos dependem do mercado, os requisitos da competio e da maximizao do lucro so as regras fundamentais da vida [...] um sistema em que o grosso do trabalho da sociedade feito por trabalhadores sem posses, obrigados a defender sua mo-de-obra por um salrio, a fim de obter acesso aos meios de subsistncia (WOOD, 2001, p. 12).

Durante todo o seu percurso histrico, podemos perceber as diversas derrocadas do sistema e sua luta insistente em superar suas crises, reconfigurando-se. Sua forma neoliberal surge em mais uma tentativa de sair de uma dessas crises, que teve na dcada de 70 seu apogeu.

O neoliberalismo refora sua lgica, dentre outras coisas, privatizando servios essenciais (sistemas bsicos sociais como energia, gua, sade e educao), desmantelando e desregulamentando conquistas sociais e democrticas desde a dcada de 806, retirando do Estado sua responsabilidade intervencionista, que foi oriunda de uma das crises do prprio sistema.

As polticas neoliberais so frutos das conseqncias geradas pelo esgotamento do Estado de Bem-Estar Social, que nada mais foi do que uma das respostas do capitalismo a uma de suas crises no incio do sculo XX. O Estado de Bem-Estar Social, que tinha no processo de acumulao fordista sua base geradora, a prpria expresso de uma tentativa de superao de outra crise, iniciada nos anos 30.

Sendo assim, em mais uma dessas diversas crises, em funo do desenvolvimento acelerado das novas tecnologias e da reestruturao produtiva, o capitalismo se redesenhou agora em uma nova forma, por meio de polticas neoliberais, cujos braos se materializam na globalizao.Aliados a esse processo, surgiram elementos de manifestao prprios da gerncia da crise do capital, tais como a hipertrofia da esfera financeira, a qual comeava a ganhar relativa autonomia frente esfera produtiva, tendo como vrtice a especulao do capital financeiro, as fuses de empresas monopolistas e oligopolistas denotando o processo de monoplio e concentrao de capitais, bem como o aumento das privatizaes, desregulamentaes e flexibilizao do processo produtivo, dos mercados e6

Originalmente nos governos de Margareth Thatcher e Ronald Reagan.

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da fora de trabalho. Configurava-se por outro lado, junto com tais manifestaes gerncias da crise do capital, uma nova fase do processo de internacionalizao da economia (NOZAKI, 2004, p. 84).

Esses colapsos se manifestam atravs de processos de mudanas constantes, influncias territoriais, fragmentao cultural, regulao econmica, poltica e social de pases desenvolvidos sobre pases subdesenvolvidos, tudo isso sendo posto e imposto de forma natural e efmera.

Gentili (1998) atesta que o neoliberalismo foi constitudo formalmente pelo Consenso de Washington7 e fortalecido pela globalizao do mercado livre, por discursos capciosos e oportunistas norte-americanos e europeus a respeito de democracia. Em nosso territrio, ele foi se consolidando sorrateiramente, inicialmente nas entrelinhas dos posicionamentos e aes dos presidentes eleitos, por grande parte da mdia e conseqentemente nas polticas governistas.

O Brasil no consegue acompanhar o desenrolar econmico dos ditos pases de primeiro mundo e dos Estados Unidos. Aqui no chega a acontecer nem a implantao do Estado de Bem-Estar Social. Todavia, a partir da libertao dos escravos em 1888, nosso pas inicia um lento desenvolvimento do capitalismo industrial, com o fortalecimento da dicotomia entre campo e cidade, e o desenvolvimento da explorao do trabalho assalariado.

Somente na dcada de 30 o capitalismo industrial brasileiro alcanar relevncia poltica e econmica, devido ao declnio do capital cafeeiro. No entanto, iniciar mesmo o seu desenvolvimento na dcada de 50 do sculo XX, mas a partir de 1964 que passa a desenvolver uma estrutura produtiva de base para futuras reestruturaes.

Mandel (1892) caracteriza o nosso desenvolvimento econmico-poltico como capitalismo tardio, afirmando que essa uma fase, ou melhor, a terceira etapa ou evoluo do capital.Expresso forjada pelo economista John Williamson pesquisador do Institute for International Economics, usada inicialmente para referenciar as polticas de ajuste econmico; contudo, de acordo com Gentili (1998), pode-se observar uma retrica e um ncleo comum de propostas para orientao de polticas de ajustes no campo educacional.7

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Antunes (2004) defende que nosso pas desenvolveu um capitalismo hipertardio e ainda enfatiza que o pas chegou a se aliar entre as oito grandes potncias industriais, com uma enorme expanso nas dcadas seguintes, custa de baixos salrios, jornada de trabalho ampliada e em ritmo alucinante.

Marx (1998) j havia pressagiado o que denominamos hoje de globalizao e, atravs das idias sobre o fetiche, prenunciou a converso das coisas (tudo) em mercadoria (vendvel).

Sobre a globalizao, o professor Ianni (2002) pondera que o territrio terrestre bem mais que um espao no qual, todos se relacionam e se encontram interligados. Trata-se de um evento heurstico de propores imensas e muitas vezes imperceptveis, se no acompanhadas de forma crtica e atenta, algo que interfere no entendimento de mundo.

O mundo est interligado e se constitui individual e coletivamente, construindo sua significao histrica. Esse fenmeno age como algo semelhante ao filme Efeito Borboleta8. Uma ao ou deciso, enfim, um evento definido por um determinado pas, ou bloco de pases, pode ter grandes conseqncias junto s demais localidades do globo terrestre, influenciando sua cultura.

A arma principal utilizada para fortalecer essa influncia so os meios de comunicao. O imperialismo seria a fase superior do capitalismo e se configuraria na lgica da globalizao:Assim, para Carlos Csar Almendra (op. cit.), se tomarmos como eixo as seis categorias do Imperialismo como fase superior do capitalismo prevista por Lnin, no injusto afirmar que a globalizao o imperialismo do final de sculo: a) concentrao da produo e do capital que cria os monoplios, cujo papel decisivo na vida econmica; b) fuso do capital bancrio e do capital industrial, formando o capital financeiro; c) surgimento de uma oligarquia financeira a partir do capital financeiro; d) diferentemente de exportao de mercadorias, a exportao de capitais assumindo importncia particular; e) formao de unies internacionais de capitalistas que partilham o mundo entre si; f) partilha territorial do globo entre as maiores potncias capitalistas (NOZAKI, 2004, p. 60).

Filme The Butterfly Effect, dirigido por John Leonetti. Trata sobre uma pessoa com o dom de viajar no tempo e alterar o curso dos eventos, tendo de enfrentar as mudanas provocadas por sua interferncia. Trata de causa e conseqncia das aes.

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Por isso, concordamos com Mszros (2003) quando destaca que impossvel existir universalidade no mundo social sem igualdade substantiva, referindo-se s alegaes e especulaes sobre teorias da globalizao e refletindo sobre as falcias tericas que apontam para uma tese com falsas expectativas frente ao envolvimento entre o sistema do capital e essa universalidade.

O autor ainda nos chama a ateno sobre as contradies do sistema do capital, que tendem a conduzir a sociedade para o agravamento da crise e a reificao e alienao desumanizante da raa humana, ou seja, a barbrie. Globalizao e capital combinam-se para fortalecer a lgica perversa e cnica desse ltimo, incompatibilizando-se, assim, com o conceito e a etimologia da palavra universalidade.

Forrester (1997) analisa esse processo observando que o anacronismo e o engodo pr-estabelecido pela sociedade global do consumo se fundir na prpria destruio, na excluso do gnero humano. O horror econmico ser o caos para o ser humano.

O trabalho, que fornece os alicerces de toda a distribuio de renda e de toda sobrevivncia, atravs de sua forma deturpada do emprego, no modo de produo capitalista, acabar por aniquilar a condio de ser humano. Conseqentemente, seremos transformados em coisas sem conscincia de ns mesmos.

Consideramos que a riqueza das sociedades onde rege a produo capitalista configura-se em imensa acumulao de mercadorias, e a mercadoria, isoladamente considerada, a forma elementar dessa riqueza (MARX, 2004, p. 57). Sendo assim, ela satisfaz algumas necessidades humanas, direta ou indiretamente. No entanto, para se criar e (ou) transformar essa mercadoria, faz-se necessrio trabalhar.

O trabalho a forma com que o Homem se torna Homem. A partir do momento que ele, atravs do trabalho, modifica e se relaciona com a natureza nessa perspectiva, de forma consciente, ele se torna humano.

Por isso no so os pensamentos e os desejos dos homens que fazem a vida e as circunstncias materiais, so as condies econmicas que formam a base de todas

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as manifestaes intelectuais da sociedade humana. (MARX e ENGELS, 1978, p. 23). O que os autores querem dizer com essa afirmativa que so as relaes de produo que vo incidir e determinar as demais (social, intelectual, poltica, religiosa...), sendo as primeiras, por outro lado, determinadas pelo estado das foras produtivas.

Na sociedade capitalista, essa contradio no modo de produo e de consumo existente entre os seres humanos (que, em pases como o nosso, faz crescerem indiscriminadamente as massas de miserveis, enquanto poucos enriquecem assustadoramente) que determinar sua sobrevivncia e luta societal.

Essa contradio, que tem em seu cerne a hipercompetitividade e a concorrncia, se desenvolve na perspectiva da alienao, atravs, tambm, do trabalho. O indivduo que vende sua fora de trabalho9 para poder ganhar um salrio e suprir suas necessidades (alimentao, lazer, moradia, vestimenta etc) se v explorado, desvalorizado e imbecilizado pelas relaes trabalhistas atuais.

Por meio de medidas intervencionistas do capitalismo, o trabalho, na nossa sociedade, vem tomando propores desumanizadoras em face do trabalhador que, cada vez mais, vem perdendo historicamente seus direitos construdos ao longo dos anos. Marx (2004) desenha bem esse acontecimento quando afirma que o trabalhador vende sua fora de trabalho, contudo aliena essa fora de trabalho sem renunciar dela, como mercadoria.

Essa mundializao, conseqncia do modelo econmico expansionista das dcadas de 50 a 70, ganha flego em 80, com adventos tecnolgicos e organizacionais, de forma lenta (se comparada com outros pases) e gradual. At ento, estvamos longe do processo de reestruturao produtiva do capital e das idias neoliberais, diferentemente dos pases capitalistas centrais.

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Fora de trabalho utilizada aqui na perspectiva marxista, que a compreende como o conjunto de faculdades fsicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele pe em ao toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espcie. (Marx, 2004, p. 197).

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Na realidade, nossa nao adotou caractersticas das polticas neoliberais j na poca do presidente Fernando Collor de Melo, dando incio a uma srie de privatizaes de servios pblicos, desregulamentao de direitos trabalhistas e de setores estatais, vindo a se estabelecer concretamente, conforme Gentili (1998), com Fernando Henrique Cardoso.

No Brasil, o capitalismo, desde a dcada de 90, atua fortemente, dentre outros campos, na perspectiva de desregulamentar o trabalho. Sobre isso, Antunes (2005a) destaca as metamorfoses do mundo do trabalho, fenmeno que se caracteriza por: diminuio da classe operria industrial tradicional; expressiva expanso do trabalho assalariado; heterogeneizao do trabalho contingente feminino no mundo operrio; subproletarizao intensificada trabalho parcial, temporrio, precrio, subcontratado e terceirizado; e, por fim, desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global.

Observa-se, portanto, um procedimento de maior heterogeneizao, fragmentao e complexificao da classe trabalhadora. A crise do capital gera, entre outras conseqncias: crescimento individualizado das relaes de trabalho, deslocando o eixo das relaes entre capital e trabalho; desregulamentao e flexibilizao ao limite; esgotamento dos modelos sindicais vigentes; burocratizao e

institucionalizao dos sindicatos; e ampliao, por mtodos mais ideolgicos e manipuladores, de aes isoladoras e inibidoras dos movimentos de esquerda.

Com a Educao Fsica no diferente. A crise do trabalho tambm atinge em cheio essa classe de trabalhadores. H algum tempo, a desregulamentao do trabalhador dessa rea vem se consolidando, principalmente no que diz respeito aos espaos denominados de no-formais (clubes, academias, condomnios), atravs da precarizao e utilizao de mo de obra barata.

At podemos dizer, em certo ponto, que a reserva de mercado, nesses espaos, se fortaleceu e se intensificou nos ltimos tempos. Contemporaneamente, os espaos formais (instituies educacionais) de atuao dos professores dessa rea tambm demonstram as seqelas da crise presente. Exemplo disso a terceirizao da

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Educao Fsica que, na atualidade, atinge vrias unidades escolares de cunho privado em Salvador10.

Todo esse processo conseqncia do modo de produo pautada na lgica do capitalismo, que tem, na sua nova face, o alicerce das polticas neoliberais. Por sua vez, a educao utilizada como produtora ideolgica desses pensamentos, ou seja, na educao que se formaro as bases dos trabalhadores que perpetuaro a atual organizao societal.

2.1 Modo de Produo e a Relao Trabalho e Educao

Eu despedi o meu patro desde o meu primeiro emprego trabalho eu no quero no eu pago pelo meu sossego ele roubava o que eu mais valia e eu no gosto de ladro ningum pode pagar nem pela vida mais vadia eu despedi o meu patro no acredite no primeiro mundo s acredite no seu prprio mundo seu prprio mundo o verdadeiro no o primeiro mundo no seu prprio mundo o verdadeiro primeiro mundo ento11

Procurando ser coerente com nossa linha de raciocnio e nosso olhar sobre o mundo, analisaremos, a seguir, como o modo de produo, que est posto na sociedade, influncia na relao trabalho e educao. No momento oportuno da pesquisa, iremos estabelecer esses nexos de forma mais aprofundada, tomando como objeto a Educao Fsica e a capoeira.10

Esse fato se constitui frente dois modelos. O primeiro ocorre quando a escola retira do currculo a disciplina e oferece uma prtica esportiva terceirizada para os estudantes. O segundo se manifesta quando a unidade estabelece um convnio com uma academia ou qualquer outro espao de atividade fsica e (ou) esporte, onde os educandos iro realizar aulas diversas de exerccios fsicos e sero dispensados da Educao Fsica, quando essas atividades no so denominadas, equivocadamente, como a prpria Educao Fsica. 11 Eu despedi o meu patro, msica de Zeca Baleiro.

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Primeiramente gostaramos de desenvolver aqui o nosso entendimento do conceito de trabalho. Para ns, trabalho significa condio bsica da existncia do ser humano no planeta, ou seja, ele o trabalho a categoria fundante e fundamental que transforma o ser humano em ser pensante e racional.

atravs dessa capacidade de interferir e modificar a natureza conscientemente e, segundo Engels (2004) de forma intencional e planejada, em funo da sua sobrevivncia, que o animal Homem, e somente Ele, se transforma em humano. Mas, na sociedade capitalista, o trabalho torna-se fragmentado, heterogeneizado, desqualificado, assalariado e alienado. Somente com a superao do modo de produo capitalista o ato humano laborativo poder se emancipar.

A classe trabalhadora responsvel por essa transformao. Pieb (2005) destaca a centralidade do trabalho e sua importncia para a histria da humanidade, para a formao e desenvolvimento societal.Se o trabalho no tem mais, na atualidade, a importncia que teve na criao de riqueza capitalista no passado, no caberia mais a classe trabalhadora reivindicar aquilo que lhe seria de direito: a propriedade dos meios de produo e a superao positiva do capitalismo por um novo modo de produo calcado na propriedade social dos meios de produo, e do monoplio do poder poltico nas mos da classe trabalhadora (PRIEB, 2005, p. 36).

Por isso tambm, assentamos por discutir as mediaes, entre trabalho e educao, em mbito mais geral, numa perspectiva que considera o trabalho no sentido ontolgico. Em nossa sociedade a educao est posta em uma acepo que referenda os interesses dominantes e fatalmente est ligada ao trabalho. Entendemos tambm a categoria modo de produo social como base para compreender, nas palavras de Frigotto (2001), como, at os dias atuais, o gnero humano vive, e a humanidade se dilacera e se perde.

Forma-se, ento, a sentena: a educao, na perspectiva do capital humano, constitui fator determinante do desenvolvimento econmico, sendo expressamente determinada pelo fator econmico. Ela, por sua vez, atravs do modo como a sociedade produz suas riquezas, estar a servio do mercado de trabalho.

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O conceito de capital humano, que constitui o construtor bsico da economia da educao, vai encontrar campo prprio para seu desenvolvimento no bojo das discusses sobre os fatores explicativos do crescimento econmico [...] A educao, ento, o principal capital humano enquanto concebida como produtora de capacidade de trabalho, potenciadora do fator trabalho. Nesse sentido um investimento como qualquer outro (FRIGOTTO, 1999, p. 39 - 40).

No incio dos anos 70, percebemos o pice do modelo taylorista-fordista, mas contraditoriamente, ele j demonstrava sinais de exausto. Moraes Neto, apud Prieb (2005) afirma que o taylorismo12 uma sntese, caracterizado pela busca do controle do trabalho pelo capital em sua forma mais plena, por meio do controle das decises tomadas em todo o curso das tarefas executadas pelos operrios durante o processo produtivo. O fordismo13 (normas organizativas), desenvolvido por Henry Ford no incio do sculo XX, tinha como principal objetivo aprofundar mais as idias de Taylor.

Prieb (2005) relata que, como estratgia de superao das demandas atuais, o taylorismo-fordismo substitudo pelo toyotismo, e, de forma mais localizada, pela chamada acumulao flexvel. As transformaes inseridas no mundo do trabalho por esse novo modo de produo influenciaro no tanto no plano tecnolgico, mas, sobretudo, na esfera organizacional das empresas e no mbito geral, na contemporaneidade.Observa-se, a cada momento, o desenvolvimento das foras produtivas com a introduo da robtica, da microeletrnica, da automao, da ciberntica, entre outras, alm de novas formas de organizao produtiva e empresarial, que implicam em sensveis alteraes na produo, nos transportes, na comunicao, na cultura, etc. (PRIEB, 2005, p. 26).

Essa transformao no se d isoladamente, mas dialeticamente, dentro de um contexto. Prieb (2005) ressalta que ela ser acompanhada pelo novo iderio neoliberal que, conseqentemente, modifica o mundo do trabalho; pela crise da esquerda em mbito mundial; pelo refluxo do movimento operrio e sindical; pela12

A idia parte do seu idealizador, Taylor, que queria implantar, no setor industrial, um sistema de anlise aprimorada do trabalhador. Consiste em estudar e cronometrar os movimentos desenvolvidos pelos operrios em todo o processo produtivo, com a finalidade de extrair o mximo possvel de mais-valia. 13 Forma de organizao do trabalho fundamentalmente atravs de produes em massa, de linhas de montagem e de produtos mais homogneos, sobre a forma de controle de tempo e movimentos, estacando determinaes como: trabalho parcelar; fragmentao das funes; separao entre elaborao e execuo no processo de trabalho; existncia de unidades fabris concentradas e verticalizadas e constituio ou consolidao do operrio-massa, do trabalhador coletivo fabril.

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decadncia do modelo taylorista-fordista; pela insero de novas formas de acumulao de capital; pelo desenvolvimento das foras produtivas que surgem tanto no meio acadmico como no poltico e pelas teorias que anunciam o fim do trabalho e da classe trabalhadora.

Rodrigues (2002) lembra que, desde a dcada de 30, a participao organizada do empresariado no debate educacional se faz atuante. Fatos como a constituio de instituies como o Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Servio Social da Indstria (Sesi), Servio Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) e Servio Social do Comrcio (Sesc), e de Leis Orgnicas do Ensino (Reforma Gustavo Capanema) apontam a subordinao da poltica educacional para as necessidades do mercado. As mudanas, tanto no mbito das tecnologias como nas relaes culturais, econmicas e polticas, interferem no cotidiano escolar.A educao foi chamada para resolver as demandas da industrializao fordista; a educao est sendo agora conclamada a atender s novas demandas o padro de acumulao flexvel. Em suma: at ento, a educao vem sendo usada como libi para os rejeitos de toda ordem do modo de produo capitalista (RODRIGUES, 2002, p. 115).

No Brasil, essa perspectiva ganha fora na dcada de 50, quando se inicia um movimento de requisio de planificao da economia. A educao, em funo desse artifcio, passa a se constituir sob novos elementos. Codifica-se com um valor econmico prprio, transformando-se, assim, em bem de produo (capital) e no de consumo.

Conseqentemente, a educao passa a ser concebida como produtora de capacidade de trabalho, tornando-se, nessa lgica, um investimento como qualquer outro. Desse jeito, a teoria do capital humano representa a forma pela qual a viso burguesa reduz a prtica educacional a um fator de produo, a uma questo tcnica (FRIGOTTO, 1999, p. 18).

Essa afirmativa pode ser constatada segundo a lei n 5.692 de agosto de 1971, que fixa as leis de diretrizes e bases para o ensino de 1 e 2 graus:Art. 1 - O ensino de 1 e 2 graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formao necessria ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realizao, qualificao para o

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trabalho e preparo para o exerccio consciente da cidadania (BRASIL, 1971, p. 1).

Enfatizamos, aqui, o artigo 7, que destaca a obrigatoriedade da incluso, dentre outras disciplinas, da Educao Fsica. Nesse momento histrico, buscou-se transportar, para o mbito escolar, os mecanismos de desenvolvimento dos trabalhos das fbricas, atravs da pedagogia tecnicista. Vale ressaltar que a Educao Fsica desempenhou um papel importante nesse cenrio. Dessa maneira, toda a educao passa a cumprir determinaes em funo do fator econmico.

nessa poca que essa rea do conhecimento e o fenmeno esporte vo influenciar mais incisivamente no trato como o conhecimento e na organizao da capoeira, transfigurada em sua regulamentao na Confederao Brasileira de Pugilismo (CBP), e o reconhecimento legal como esporte, fato que discutiremos melhor mais adiante.

Percebemos, ento, que o modo de produo da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, poltica e intelectual (MARX, 2003, p. 233). Por isso, defendemos que os processos educacionais esto diretamente ligados ao processo de formao para o mercado de trabalho (de trabalhadores), que, por sua vez, determinado pelo modo de produo societal.

No Brasil, a dcada de 80, como afirma Antunes (2005a), foi a que mais causou impactos no que diz respeito s transformaes no mundo do trabalho, afetando sua materialidade e sua subjetividade, atingindo sua forma de ser.

Em nosso pas, o processo de globalizao foi influenciado pelo fordismo, que trazia uma necessidade de reestruturao no mundo do trabalho, cujo pano de fundo era o cumprimento das demandas da classe empresarial, ou seja, das necessidades do capital.

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A inspirao da acumulao flexvel toyotista14, fortalecida pelas reformas ditas neoliberais, no final dos anos 80, transforma de forma incisiva o papel do Estado, que passa a atuar secundariamente, ampliando e fortalecendo a busca pela produtividade, direcionada pela lgica da racionalidade, na perspectiva de maximizar os resultados e minimizar as despesas.

Antunes (2005a) anuncia que a substituio do fordismo pelo toyotismo no deve ser entendida como um novo modo de organizao societria, livre das mazelas do sistema produtor de mercadorias e no deve nem mesmo ser concebido como um avano em relao ao capitalismo da era fordista e taylorista.

Chama a ateno que o envolvimento cooptado do toyotismo possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalho. O trabalho, na lgica do pensamento toyotista, deve pensar e agir para o capital (para a produtividade), sob a aparncia da eliminao do fosso existente entre elaborao e execuo, enfatizando que, nessa perspectiva, o sindicalismo se distancia cada vez mais do sindicalismo dos movimentos sociais classistas dos anos 60/70, que lutavam em defesa do controle social da produo.

Lembremos que a implantao das polticas neoliberais no Brasil chega ao seu pice com a presidncia de Fernando Henrique Cardoso, quando se d, historicamente, o maior nmero de privatizaes do pas.15

Nas polticas educacionais, o processo no se constitui de forma diferente. Nessa poca, o Ministrio da Educao (MEC) ficou sobre a responsabilidade, em dois mandatos, de Paulo Renato de Souza, totalizando oito anos de trabalho. Feito concretizado anteriormente apenas por Gustavo Capanema. Junto a esse, o ex-

Forma de organizao do trabalho concebida pela empresa Toyota Motor Co, a partir da dcada de 50, que se caracterizava por modificaes no processo de trabalho, com sindicatos-de-empresas e mecanismos institucionais. 15 A Revista Frum divulga, em sua capa de maro de 2006, a histria de Ricardo Srgio, caixa de campanha de Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998) e Jos Serra (em 1990 a 1996), que recentemente foi condenado pela justia por nove atos que caracterizam crimes de gesto temerria e desvio de crdito. Srgio foi responsvel e envolvido direto nas privatizaes no governo de Cardoso, em especial nos processos da Companhia Vale do Rio Doce (s para lembrar a segunda maior empresa nacional) e do sistema Telebrs, caracterizados, na reportagem citada, como dois dos maiores negcios do globo terrestre.

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ministro da educao do presidente Cardoso, se sobressai entre as personalidades polticas que exerceram essa funo por mais tempo.

Seguindo fielmente a cartilha de instituies de financiamento internacionais como o Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD) e acordos com Fundo Monetrio Internacional (FMI), o Brasil estabelece metas polticas para reestruturar a educao no pas.

Segundo Gentili (1998), existe homogeneidade nos programas de estabilizao e reforma econmica, aplicados nos pases latino-americanos, que podem tambm ser observados nas propostas de reforma educacional. Dessa forma, o sistema educacional deve se converter, ele prprio, num mercado, a fim de atingir uma autoregulao. E, para ajudar os pases nessa adequao, o Banco Mundial e o FMI indicam os experts em reforma. No caso do Brasil, foi o professor Csar Coll Salvador16 que acompanhou atentamente os trabalhos reformistas educacionais. Enfim, essas alteraes so receitas de carter supostamente universal, mas muito longe de serem histricas, de encararem os conflitos e de suprirem as necessidades e demandas locais.

Freire (1993) nos chama a reflexo para o fato de que no possvel pensar em educao sem antes refletir sobre o ser humano, inacabado e, conseqentemente, em constante processo educativo. A proposta de educao do neoliberalismo caracteriza a educao como algo que instrui, prepara para a vida, produz algo, extrai do outro vrias possibilidades, forma, modifica, constri e divulga o saber (conhecimento).

De fato, no h educao (produo de conhecimento) sem que haja mudana, e no h educao sem poltica, mas essa no deve ser instrutiva ou simplesmente preparar para a sociedade, pois, nas atuais circunstncias, seguindo a lgica do

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Professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Barcelona. Coll foi um dos principais coordenadores da reforma educacional espanhola e consultor do MEC na elaborao dos Parmetros Curriculares Nacionais - PCN no Brasil.

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mercado, preparar para a vida sociedade nada mais que produzir a alienao para a manuteno de uma determinada ordem vigente.

A manobra de aperfeioamento de mecanismos de controle se materializa nesses e em outros contornos, a fim de gerenciar a crise do capitalismo, ao que parece institucionalmente, e manter a ordem vigente.

Como j vimos, essa nova formao conseqncia do modelo industrial denominado acumulao flexvel que articula, de um lado, um significativo desenvolvimento tecnolgico e, de outro, uma desconcentrao produtiva baseada em empresas mdias e pequenas (artesanais). Afinal, um modelo produtivo que recusa a produo em massa e recupera uma concepo de trabalho mais flexvel, diferenciado do padro fordista.

A idia de uma educao bsica no mbito escolar para a formao humana (capital humano) dissolve-se a favor da formao para o trabalho alienado, ou para o trabalho em uma concepo limitada, como forma de emprego assalariado ou subemprego. O que fica claro que o valor de troca deixa de ser a medida do valor de uso, pois o trabalho, em sua forma imediata, deixou de ser a grande fonte de riqueza.

Para Marx, apud Antunes (2005a), enquanto perdurar o modo de produo capitalista, no pode se concretizar a eliminao do trabalho como fonte criadora de valor, mas, isso sim, uma mudana no interior do processo deste, que decorre do avano cientfico e tecnolgico e que se configura pelo peso crescente de uma dimenso mais qualificada, pela intelectualizao do trabalho social.

Esse processo de desumanizao e desregulamentao do trabalhador, como j mencionamos, vinha sendo estabelecido h algum tempo no Brasil e ganha fora com a poltica neoliberal de regulamentar as profisses, na lgica corporativista de regulamentar o trabalhador, ao invs de incidir essa ao no trabalho, deslocando o foco que beneficiaria a toda a classe.

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Partimos, assim, do geral para o particular, procurando estabelecer relaes desses acontecimentos com a Educao Fsica, que, no distante desse emaranhado de mudanas, atingida por uma dicotomia (professores e profissionais), ratificando a fragmentao da classe. Esse processo foi iniciado pela regulamentao da profisso e pela criao do conselho federal e dos conselhos regionais, no final da dcada de 90.

Por isso, instituies, como o sistema CONFEF/CREF, se materializam em estruturas avanadas do capital17, pois, se preocupam em regulamentar e fiscalizar quem, por no possuir os meios de produo, vender sua mercadoria que, nesse caso, a fora de trabalho, no levando em considerao essas relaes de forma mais geral e ampla.

Para fortalecer mais essa tese, destacamos exatamente a reestruturao legislativa que trata da formao dos conselhos profissionais, reorganizada s vsperas (quatro meses antes) da promulgao da lei 9696/98 e em plena implantao das polticas neoliberais no Brasil pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Trata-se do artigo 58 da lei 9649/98, que alterou de forma profunda a natureza dessas entidades. Destacaremos, a seguir, o artigo e seus incisos 1 e 2:Art 58 - Os servios de fiscalizao de profisses regulamentadas sero exercidos em carter privado, por delegao do poder pblico, mediante autorizao legislativa. 1o A organizao, a estrutura e o funcionamento dos conselhos de fiscalizao de profisses regulamentadas sero disciplinados mediante deciso do plenrio do Conselho Federal da respectiva profisso, garantindo-se que na composio deste estejam representados todos seus conselhos regionais. 2o Os conselhos de fiscalizao de profisses regulamentadas, dotados de personalidade jurdica de direito privado, no mantero com os rgos da Administrao Pblica qualquer vnculo funcional ou hierrquico (BRASIL, 1998, p. 1).

Entretanto, o que mais vem ratificar essa tese que compartilhamos com Nozaki (2004), a informao de que, antes mesmo de 98, o Projeto de Lei (PL) da regulamentao, como um pressgio, antecipava em dois anos, a idia do artigo citado acima:

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Idia defendida por Nozaki (2004)

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O prprio PL 330/95, que propunha a regulamentao da profisso de educao fsica, continha, em seu corpo, formulaes que delegavam ao Conselho Federal dos Profissionais de Educao Fsica a definio de sua prpria estrutura, organizao e atribuies. Definia, ainda, os Conselhos Federal e Regionais dotados de personalidade jurdica de direito privado, com autonomia administrativa e financeira, apesar de, em sua justificao, serem contraditoriamente tratados como de personalidade jurdica de direito pblico (Brasil, 1995a). Observamos, com tais consideraes, que o PL 330, de 18 de abril de 1995, apesar de no ter sido formulado antes da reforma administrativa brasileira, j continha elementos que tentavam se adequar aos futuros ordenamentos superestruturais do Estado neoliberal (NOZAKI, 2004, p. 210).

O sistema CONFEF/CREF se beneficiou da lei18 e, atravs de normativas internas, iniciou um processo de avano colonizatrio contra os trabalhadores das reas do esporte, da Educao Fsica escolar, da dana, das artes marciais, das lutas, da yoga, do pilates e da capoeira.

Essa ltima j vinha, h muito tempo, sofrendo investidas por parte de prprios integrantes de sua comunidade, que, atravs dos mais variados discursos, empurraram-na para a mercadorizao, levando a sociedade a consumi-la de diversas formas.Onde corre muito dinheiro no tem sinceridade, porque o dinheiro fala mais alto e a cultura deixa de ser conservada, justamente por isso! o comrcio, eles esto comercializando, eles no esto preocupando em dar continuidade quilo que nosso. Aquilo que os nossos antecipados deixou [sic] (CURI apud PASTINHA, 1999).

A fala do mestre pode ser interpretada como um desabafo sobre o que vem acontecendo com a capoeira, mais especificamente as influncias sofridas pela sua folclorizao, esportivizao, pedagogizao e midiatizao, que costumeiramente a transformam em um produto a ser consumido indiscriminadamente, na lgica da sociedade capitalista.

Na atualidade, a Educao Fsica, entendendo a capoeira como uma cultura corporal, muitas vezes completamente inserida na lgica societal, esportivizada nesses cdigos, servindo-lhe (mesmo que de forma inconsciente) de divulgao dePois, de acordo com a lei, cabe ao prprio conselho estabelecer quem sero esses profissionais fiscalizados e regulamentados. Adiante, aprofundaremos as conseqncias dessa liberdade excessiva. Todavia vale destacar que, em 2002, essa lei foi revogada, passando, ento, os conselhos a se constiturem novamente como autarquias federais.18

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seus ideais liberais, designar como sendo de sua competncia tanto a formao desse trabalhador, como o trato com esse conhecimento.

O trabalho, na sociedade em que vivemos, subsumido na estrutura do capital, porm, ao mesmo tempo (dialeticamente), trava com ele uma intensa e incansvel luta. Nesse contexto, caracterizamos a Educao Fsica como uma forma de interveno social que se desdobra num campo conflitivo e constante, nessa relao entre trabalho e capital, contudo, com uma mediao dominante desse ltimo, que segue em seu movimento geral.

Segundo os estudos de Nozaki (2004), a luta contra a destruio do trabalho, do trabalhador e de sua cultura no se restringe delimitao de um mercado de trabalho somente para os professores de Educao Fsica. Ela deve compreender as contradies que o mundo do trabalho impe para os trabalhadores do mundo inteiro, de forma indistinta, com relao a seu ofcio ou ocupao.

Essa premissa tem fundamento na tese de que os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (MARX e ENGELS, 1978, p.17).

Sendo assim, no podemos tratar o trabalho, como algo secundrio ou local, de reproduo, por essncia, dos valores dominantes. Muito pelo contrrio, admite-se que, na sociedade capitalista, o trabalho , de alguma forma, alienado e subsumido pelo capital, o que nos faz compreender que, independentemente do campo laborativo, existe uma propagao do domnio de uma classe sobre a outra.

Trata-se, enfim, de resgatar, tanto na escola quanto fora dela, a importncia de socializar de forma crtica os contedos que foram historicamente construdos, porm apropriados pela burguesia, pois tais contedos tambm no so imunes s mediaes ideolgicas.

Por isso, a educao (seja ela formal ou no), se consubstancia em uma prtica social que media e forma a sociedade, mas no qualquer sociedade. Falamos da

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sociedade capitalista, globalizada e mundializada pelo capital. a escola que preparar, no estudante de hoje, o trabalhador do amanh.

A educao subordina o trabalho, dentre outras coisas, propriedade privada e ao valor de troca. Nesse caso, a mediao entre educao e trabalho tem, como intercessoras, as condies da produo da vida atual, as quais, por sua vez, iro constituir as relaes sociais. Essa a base problemtica sob a qual se pode apreender a relao da capoeira com o Conselho de Educao Fsica.

No nosso caso, entendemos ser o sistema CONFEF/CREF uma estrutura representativa dessa nova fase do capitalismo, que passa a mediar as relaes do mundo (mercado) do (de) trabalho sob a gide da relao entre trabalho e educao.

No por acaso que o sistema, que se caracteriza especificamente por ser uma instituio corporativista de regulamentao e fiscalizao profissional, dedica boa parte de suas investidas, no que diz respeito a constantes ingerncias, nas discusses a respeito das diretrizes curriculares nacionais da educao e no trato do conhecimento da Educao Fsica escolar, dentre outros. A seguir, estudaremos mais especificamente a reestruturao do mundo do trabalho e suas implicaes frente regulamentao da Educao Fsica.

2.2 Reestruturao do Mundo do Trabalho e Educao Fsica

Quando a ditadura militar caiu na Argentina em 1983, nos disseram para nunca mais olhar para trs. Sim, aconteceram injustias, sim, erros foram cometidos. Mas se olhssemos para trs a dor nunca cessaria, as feridas nunca se fechariam. Os generais j haviam mudado o sentido da palavra desaparecer. Para eles, as coisas desapareciam, pessoas desapareciam. Falavam em desaparecer as pessoas, desaparecer os inimigos. Eles mudaram a lngua e agora, queriam desaparecer o passado. Nos disseram para nunca mais olharmos para trs, mas temos que olhar para trs.

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o nosso sagrado dever. Olhar para trs.19

Nosso objetivo agora situar o discurso sob o prisma do reordenamento do mundo do trabalho e a regulamentao da profisso de Educao Fsica, atravs de elementos histricos, para que possamos analisar adiante com propriedade, a relao existente entre a regulamentao da profisso de Educao Fsica e as competncias do conselho em regulamentar e fiscalizar a capoeira.

Antes disso, porm, convm explicitar nosso percurso investigativo e as bases escolhidas para a estruturao da lgica cientfica neste trabalho. Optamos pela utilizao do mtodo dialtico, o qual, segundo Gil (2006), proporciona alicerces para uma interpretao dinmica e totalizante do mundo real, j que estabelece que os fatos sociais no podem ser compreendidos quando considerados isoladamente.

A dialtica, como estratgia, possibilita uma ao de captao intelectual da idia de um determinado objeto e o entendimento da prtica social emprica dos indivduos em sociedade, de realizao da crtica das ideologias e das tentativas de articulao entre sujeito e o objeto, ambos histricos (MINAYO, 2006, p. 108). Da decorre o nosso esforo de contextualizar a realidade alm dos fenmenos.

Entendemos ser a prtica social o fator principal e originrio dos nossos estudos e ponderaes. Por isso a tomamos como o verdadeiro e nico critrio de verdade. Nossa verdade significa um determinado grau de conhecimento que se consubstancia a partir dos limites que nos so impostos pela histria.

Sendo assim, o nosso critrio cientfico foi a prtica social, compreendendo serenamente que as verdades cientficas, em geral, significam graus do conhecimento, limitados pela histria. (TRIVIOS, 1987, p. 51) e considerando as leis sociais que caracterizam a construo societal, partindo da histria e de seus processos constituidores. Essa histria, para se constituir como um fundamento concreto, vale esclarecer, materializa-se a partir da formao socioeconmica e das relaes de produo.19

Texto extrado do filme Vises (Imagining), Argentina.

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Estabelecemos, todo o tempo, um dilogo com os sujeitos envolvidos, a partir da realidade posta, alm de participar ativamente dos processos (dos encontros, debates, mesas redondas, seminrios, audincia pblica, mobilizaes de rua e conversas informais) que ambientalizaram e ambientalizam a construo histrica da problemtica, tudo isso para consolidar um trabalho coletivo que prope a ruptura com a pseudoconcreticidade.

J expomos anteriormente o nosso entendimento da realidade concreta, destacando que o fator econmico de extrema importncia para produzir as condies materiais de existncia da humanidade, o que no implica consider-lo nico, embora determinante, em ltima instncia, da forma como a vida se organiza.

Porm nosso propsito no se materializa na lgica de emparelhar os fenmenos culturais aos econmicos, muito menos reduzir a cultura a um fator econmico. um esforo nosso utilizar o mtodo para explicar os fenmenos que incidem no que denominamos aqui de cultura capoeirana, partindo da atividade prtica objetiva do homem histrico (KOSIK, 1976, p. 39).

A opo pela categoria da totalidade se embasa no apenas na concepo de que tudo est no tudo e que este mais que as partes. Pretendemos, em primeira instncia, analisar a realidade da problemtica estabelecida na pesquisa, compreendendo que a totalidade concreta uma teoria da realidade e do conhecimento gerado por esse fato.

O trabalho um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade (KOSIK, 1976, p. 199). Por isso, partimos dessa categoria entendendo-a no sentido ontolgico e estabelecendo mediaes entre trabalho e educao, principalmente no que diz respeito formao educacional do trabalhador e constituio da prxis capoeirana a partir dessa lgica (CONFEF regulamentao e capoeira), imposta na atual circunstncia.

Para fins de caracterizao da pesquisa, nos propomos a instituir uma anlise desse fenmeno, tentando estabelecer os aspectos essenciais da sua realidade concreta

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e, por isso, dialogamos com tericos nos aproximamos de suas teses, com o intento de formular um pensamento que nos permitisse a compreenso de como se do os fatos.

O nosso percurso de construo deste documento cientfico se consolidou a partir da seleo dos materiais pertinentes ao assunto, impressos, na internet e em forma de gravaes. Em seguida, realizamos reviso bibliogrfica e anlise desses documentos (livros, revistas, jornais, vdeos, relatrios, leis, projeto de lei, ao de inconstitucionalidade e normativas internas) pertinentes, buscando respaldo terico para as nossas idias de base, o que proporcionou o alicerce da pesquisa.

Recolhemos dois depoimentos de pesquisadores da rea da capoeira e da cultura em geral, que, apesar de no estarem diretamente ligados ao embate, contriburam com seus pensamentos e orientaes acerca de idias que fundamentaram o percurso do trabalho, no mbito geral. Estamos nos referindo aos pesquisadores Fred Abreu e Emlia Biancardi.

Para isso, inspiramo-nos na tcnica da entrevista informal, destacada por Gil (2006). Trata-se de uma interveno que objetiva o recolhimento de elementos, no sentido da obteno de uma viso mais ampla e aproximada da temtica.

Para o levantamento das informaes, valemo-nos da tcnica da entrevista semiestruturada, que, de acordo com Minayo (2006), um procedimento que se caracteriza por sua estrutura flexvel. No possui uma estrutura inteiramente rgida, fixa, e no completamente aberta, embora obedea a um roteiro. Essa tcnica nos permitiu reunir o material a partir das falas dos entrevistados, o que nos possibilitou estabelecer relaes entre a singularidade, a particularidade e o mais geral.

A escolha dos entrevistados se materializou a partir da sua importncia no processo de discusso sobre o embate entre o CONFEF/CREF e a capoeira (regulamentao e formao). Esses sujeitos, que perfazem um total de sete, participaram ativamente dos eventos que envolveram essa pauta.

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Dentre eles, cinco capoeiras20: Raimundo Mrio Ribeiro de Freitas (Mestre Ministro); Renato Daltro (Mestre Daltro), Cludio dos Santos Guimares (Contramestre Caroo); Srgio Fachinetti Dorea (Mestre Cafun), Raimundo Silva Oliveira (Mestre Raimundo Kilombolas). Alm desses, uma parlamentar, Deputada Federal Alice Mazzuco Portugal, e o presidente do CREF 13, professor Carlos de Souza Pimentel.

O roteiro das entrevistas dos capoeiras constituiu-se em encaminhamentos que pretendiam orientar a discusso no sentido de recolher: a) dados pessoais; b) dados laborais; c) envolvimento com a temtica; d) envolvimento com os movimentos de resistncias; e e) posicionamento referente profissionalizao.

A parlamentar e o professor foram submetidos mesma tcnica dos depoimentos j ilustrados primeiramente. Fizemos a opo por esses dois sujeitos por estarem diretamente ligados a problemtica do trabalho.

Destacamos, aqui, que todos os capoeiras que entrevistamos participaram ativamente das discusses sobre as ingerncias do sistema CONFEF/CREF em querer regulamentar e fiscalizar o trabalhador de capoeira, destacando-se dentre os da comunidade em diversos momentos. Esse foi nosso critrio de escolha.

Para apreciao do material apreendido, utilizamos como tcnica a anlise do discurso, uma prtica relativamente nova nesse campo, todavia muito eficaz, na nossa compreenso, alm de nos possibilitar um exame mais que descritivo e explicativo.O objetivo bsico da anlise do discurso, segundo Pcheux: (1) o sentido de uma palavra, de uma expresso ou de uma posio no existe em si mesmo. Ao contrrio, expressa posies ideolgicas em jogo no processo scio-histrico no qual as formas de relao so produzidas; (2) toda formao discursiva dissimula, pela pretenso de transparncia, sua dependncia das formaes ideolgicas (MINAYO, 2006, p. 319).

Entendemos que, dessa forma, temos maior possibilidade de enxergar alm dos nossos olhos e ler alm dos escritos. Nossa pesquisa no se iniciou a partir da20

Optamos nesse trabalho por citar e referenciar os entrevistados que participam do mundo capoeirano pela sua titulao seguida do seu apelido de capoeira. Dessa forma, tanto as citaes no percuso do texto, quanto as notas referencias ao final do trabalho se configuraro a partir dessa premissa.

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aprovao

no

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de

ps-graduao, envolvidos no

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h

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tempo isso,

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acompanhvamos

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nossa

sistematizao extrapola o percurso investigativo e no se conclui com o seu trmino.

Sendo assim, se faz necessrio, nesse momento do trabalho, fazer um recorte histrico sobre o processo de implantao e desenvolvimento da Educao Fsica no Brasil, ou, como destacamos acima, a partir do trecho do filme Vises: olhar para trs. nosso dever se basear na histria, at para entend-la.

Para Marx e Engels (1998), a importncia de se remeter histria se faz de extrema relevncia, a fim de no cometermos os mesmos erros. Olhar para trs e entender a histria nos fundamentar para falar com propriedade sobre os pretextos que culminaram na regulamentao da Educao Fsica e sua influncia na cultura corporal, principalmente a capoeira, que o que nos interessa nesta pesquisa.

Recorrendo a Soares (2001), identificamos que a origem dos mtodos (ou escolas) de ginstica esto diretamente ligados ao projeto de constituio da nova sociedade que surgia no final do sculo XVIII. Esses mtodos ou escolas sero os responsveis por sistematizar, com base na cincia positivista, os conhecimentos da cultural corporal da poca, criando alicerces que ajudaram a constituir a Educao Fsica.

Esses marcos, construtores e constituidores dessa nova sociedade, apresentam-se em dois momentos histricos, aproveitando o enfraquecimento do at ento modo de produo denominado Feudalismo e a implantao do novo sistema denominado Capitalismo. A Revoluo Industrial na Inglaterra (1760)21 e a Revoluo Francesa (1789) constituem essa transio histrica. Esses dois acontecimentos iro fortalecer esse21

Na realidade, foi em 1820, quando os efeitos da revoluo foram mais visveis, que a mesma denominada de Revoluo Industrial. Sua primeira fase data de 1760 at 1860; j a segunda fase instaura-se de 1860 a 1900. Estamos considerando como inicio da Revoluo Industrial a data inicial da primeira fase, apesar de vrios autores citarem outras datas anteriores como indcios da revoluo.

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novo modo de produo de bens, uma nova reorganizao do trabalho, uma nova reestruturao social que implicar a mudana de paradigmas sociais.

Para isso, seria necessrio tambm forjar um novo corpo, para dar sustentabilidade implantao e implementao desse novo modo de produo o capitalismo formando o novo Homem o novo trabalhador, que at ento se constitua de uma classe puramente rural. Era preciso um corpo disciplinado, obediente, limpo, acomodado e dcil, porm trabalhador. Tudo isso deveria ser respaldado com bases nas cincias.

Assim, surgem os mtodos de ginstica europeus (alemo, sueco, francs). Esses mtodos faziam parte de um projeto maior, um projeto de Educao Physica, que tinha como objetivo educar o fsico22 para compor um corpo com as qualidades j destacadas acima.

Um local apropriado para desenvolver esse trabalho e que se adaptou muito bem a essa funo foi a escola, que, com o seu advento tambm nessa poca, estimulou o desenvolvimento desses pensamentos a respeito da forma de conceber o corpo e cuidar dele. Soares (2001) salienta que a burguesia observa, na escolarizao, um dos mecanismos teis para controlar os pensamentos e as aes do corpo social23.

O exerccio fsico, atravs da ginstica, era o contedo ideal e bastante enaltecido pelo pensamento mdico e pedaggico por todo o sculo XVIII, como elemento de educao, tanto que pensadores que influenciaram geraes, como Rousseau, Basedow e Pestallozzi vo apoiar a incluso da ginstica no mbito escolar. Essa ginstica na escola, ou a escolarizao da ginstica, aliada ao projeto de educar o fsico, torna-se, com o decorrer do tempo, a disciplina pedaggica que denominamos como Educao Fsica.A Educao Fsica ser a prpria expresso fsica da sociedade do capital. Ela encarna e expressa os gestos automatizados, disciplinados, e se faz protagonista de um corpo saudvel; torna-se receita e remdio para curar os homens de sua letargia, indolncia, preguia, imoralidade, e, desse No pensamento cartesiano da poca, que separava o corpo da mente, acreditava-se que educando, controlando o corpo, poderia se controlar a mente. Esse pensamento vai ser amplamente qualificado em seguida pelo pensamento fascista. 23 Grifo da autora22

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modo, passa a integrar o discurso mdico, pedaggico... familiar (SOARES, 2001, p. 6).

No Brasil, ela chega ainda como Ginstica, trazida pelos militares e ensinada, de incio, somente por eles. Nas escolas brasileiras, a Ginstica, aos poucos, vai se transformando em Educao Fsica e tomando corpo de disciplina, adequando-se perfeitamente sociedade que se formava.A Educao Fsica filha do liberalismo e do positivismo, deles absorveu o gosto pelas leis, pelas normas, pela hierarquia, pela disciplina, pela organizao da forma. Do liberalismo, forjou suas regras para os esportes modernos (que no por acaso surgiram na Inglaterra), dando-lhes a aparncia de serem universais e, deste modo, permitindo a todos ganhar no jogo e vencer na vida pelo seu prprio esforo. Do positivismo, absorveu, com muita propriedade sua concepo de homem como ser puramente biolgico e orgnico, ser que determinado por caracteres genticos e hereditrios, que precisa ser adestrado, disciplinado (SOARES, 2001, p. 49).