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Paulo Victorino CAPÍTULO DOIS OS TRÊS PEDIDOS DE DONA SANTINHA O GOVERNO DO GENERAL DUTRA Ainda que progressista, a nova Constituição continha alguns dispositivos maliciosos. Ao defender o sagrado direito da propriedade, conservava a estrutura da propriedade da terra, ou seja, ficava descartado qualquer programa de reforma agrária para resgatar o homem do campo, prevalecendo o princípio de suserania e vassalagem vigente nas fazendas, o que permitia a exploração de mão-de-obra barata, para não dizer escrava. Por outro lado, a Carta Magna assegurava o direito de greve e da livre associação sindical, mas mantinha os sindicatos como órgãos de colaboração do Estado, podendo este intervir nas entidades sindicais. Outro dispositivo remanescente do período autoritário que, com pequenas modificações, se mantêm até os dias de hoje, é o direito de o presidente da República indicar os membros do Supremo Tribunal Federal. Alguma coisa da Constituição do Estado Novo acabou sendo transplantada para a nova Carta. “O lobo perde o pelo, mas não perde o vício.” Conta-se que, tal qual o gênio da lâmpada, Eurico Gaspar Dutra concede à sua esposa, Carmela Leite Dutra (Dona Santinha) o direito a três desejos, que lhe serão atendidos. Católica, devota, ligada à ala mais conservadora da Igreja, Dona Santinha pede: primeiro, o fechamento de todos os cassinos e a proibição dos jogos de azar; segundo, a extinção do Partido Comunista Brasileiro; terceiro, a construção de uma capela no Palácio Guanabara, residência oficial do Presidente e sua família.

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Paulo Victorino

CAPÍTULO DOIS

OS TRÊS PEDIDOS DE DONA SANTINHA

O GOVERNO DO GENERAL DUTRA

Ainda que progressista, a nova Constituição continha alguns

dispositivos maliciosos. Ao defender o sagrado direito da

propriedade, conservava a estrutura da propriedade da terra, ou

seja, ficava descartado qualquer programa de reforma agrária para

resgatar o homem do campo, prevalecendo o princípio de

suserania e vassalagem vigente nas fazendas, o que permitia a

exploração de mão-de-obra barata, para não dizer escrava. Por

outro lado, a Carta Magna assegurava o direito de greve e da livre

associação sindical, mas mantinha os sindicatos como órgãos de

colaboração do Estado, podendo este intervir nas entidades

sindicais. Outro dispositivo remanescente do período autoritário

que, com pequenas modificações, se mantêm até os dias de hoje,

é o direito de o presidente da República indicar os membros do

Supremo Tribunal Federal. Alguma coisa da Constituição do

Estado Novo acabou sendo transplantada para a nova Carta. “O

lobo perde o pelo, mas não perde o vício.”

Conta-se que, tal qual o gênio da lâmpada, Eurico Gaspar Dutra concede à

sua esposa, Carmela Leite Dutra (Dona Santinha) o direito a três desejos, que

lhe serão atendidos.

Católica, devota, ligada à ala mais conservadora da Igreja, Dona Santinha

pede: primeiro, o fechamento de todos os cassinos e a proibição dos jogos de

azar; segundo, a extinção do Partido Comunista Brasileiro; terceiro, a construção

de uma capela no Palácio Guanabara, residência oficial do Presidente e sua

família.

- 038 -

O primeiro desejo é o mais fácil de se realizar. A 30 de abril de 1946, três

meses após a posse, um decreto proíbe os jogos de azar em todo o território

nacional.

O segundo demora um pouco mais, mas, em 7 de maio de 1947, por decisão

do Supremo Tribunal Federal, o PCB é posto fora da lei e, em 7 de janeiro de

1948, são cassados os mandatos de todos os seus representantes.

Por último, a capela, o terceiro voto de Dona Santinha, lá se encontra, até

hoje, nos jardins do Palácio Guanabara.

“Dona Santinha” e o Presidente

Se nem tudo foi obra pessoal e exclusiva do Presidente, o episódio ilustra

bem o dilema do general. Disposto a governar democraticamente, com respeito

severo à Constituição, sua formação militar, entretanto, o prevenia de que nem

todos os problemas devem ser resolvidos politicamente, havendo que preservar

a autoridade, se preciso, com o exercício eventual do autoritarismo. De resto,

essa é uma característica de todos os regimes presidencialistas, em qualquer

parte do mundo.

- 039 -

A construção da capela contrariava o princípio da separação entre a Igreja e

o Estado, uma das pedras basilares da República, mas este, todavia, foi o mal

menor. Serviu, ao menos, para estabelecer um elo entre duas instituições muito

caras à vida brasileira.

Já o fechamento do Partido Comunista Brasileiro trouxe malefícios ao país,

na medida em que formou um caldo de cultura próprio para o desenvolvimento

do comunismo, que se sente sempre melhor na clandestinidade, onde encontra

motivação para desenvolver sua retórica em favor das liberdades democráticas,

quando, na prática, seu objetivo maior é acabar com elas.

Encoberto pelas nuvens da clandestinidade, nos anos que se seguiram, o

PCB sempre apresentou candidatos próprios, infiltrados em outros partidos, e,

se os resultados efetivos foram, em todas ocasiões, desprezíveis, valeram como

fonte propaganda anti-capitalista. Além do mais, como seus jornais não foram

banidos, sempre havia um público certo para assimilar a doutrina da pseudo-

democracia vermelha.

Por último, a proibição dos jogos de azar, fez originar uma rede clandestina,

corrupta e corruptora, sobretudo no jogo do bicho, que, quase sempre, transitou

livremente à margem da lei, dominando políticos e/ou governantes, com seu

poder de aliciamento, à custa de um dinheiro que entra sem controle e sai

segundo a conveniência dos banqueiros dessa atividade, ilegal, mas visível por

toda parte.

Após cinco anos de governo (nenhum dia a mais, nenhum dia a menos), Dutra

afastou-se da política, mas não dos quartéis, permanecendo inflexível, embora

incorruptível, um dogmático disposto a quebrar lanças na defesa de suas

convicções. Era um raro espécime de governante que jamais se deixou seduzir

pelo poder e pelas facilidades que este oferece, preferindo a simplicidade rude

da caserna ao conforto ilusório dos palácios.

Início de governo

Em 31 de janeiro de 1946, o general Eurico Gaspar Dutra tomava posse no

governo e, dias após, no Palácio Tiradentes, era instalada a Assembleia

Nacional Constituinte, sob a direção do presidente do Supremo Tribunal Federal,

Ministro Valdemar Falcão.

- 040 -

Efetivada a posse dos constituintes, passou-se à indicação do Presidente da

Assembleia, recaindo a escolha sobre o senador mineiro Fernando de Melo

Viana.

O próximo passo foi a escolha de uma comissão, composta de três membros

para organizar um regimento interno, com base no qual se desenvolveriam os

trabalhos posteriores. Assim, enquanto a comissão desenvolve seus trabalhos

em sala àparte, o plenário fica livre para discursos e debates em torno de

assuntos diversos, não necessariamente ligados ao trabalho constituinte.

Paralelamente, até que a nova Constituição fosse elaborada e promulgada (e

isso levou vários meses), o presidente da República guiava-se pela Constituição

do Estado Novo, alterada pela emenda nº 9. Com ela dispunha ainda dos

poderes de exceção, inclusive o de governar por decretos, que tinham força de

lei, ad-referendum do Congresso.

Embora seus poderes fossem enormes, permitindo até a decretação da pena

de morte para crimes políticos, o uso da lei foi limitado ao necessário para

garantir a governabilidade. Com relação à pena de morte, diga-se de passagem,

nem o ditador Getúlio Vargas fez uso dessa prerrogativa, que tinha mais um

efeito de intimidação para conter movimentos políticos armados.

A composição da

Assembleia

A Assembleia Nacional Constituinte era composta de 320 parlamentares,

entre senadores e deputados, cuja representação, por partidos, estava assim

distribuída:

PSD – Partido Social Democrático (governo) ..................... 173

UDN – União Democrática Nacional (oposição) ................. 85

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro (governo) .................... 23

PCB – Partido Comunista Brasileiro ................................... 15

PR – Partido Republicano .................................................... 12

PSP – Partido Social Progressista (facção de integralistas). 7

Outros ................................................................................. 5

- 041 -

O Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)

elegeram Dutra e eram, pois, bancada governista. Na oposição feroz se achava

a União Democrática Nacional (UDN), disposta a varrer da nova Constituição

qualquer resíduo do Estado Novo.

O Partido Social Progressista, fundado por Ademar Pereira de Barros, nasceu

em São Paulo e arregimentou uma boa parte dos integralistas moderados,

dissidentes.

Plínio Salgado, o Chefe do integralismo mais radical, tinha sua própria

legenda, o Partido de Representação Popular (PRP) mas não conseguiu eleger

nenhum constituinte.

O eleitorado ainda se lembrava bem do ataque ao Palácio Guanabara, em

1938, feito pela ala radical da Ação Integralista Brasileira, causando uma cisão

no próprio integralismo que, agora, já era coisa do passado.

Quem era Dutra

Eurico Gaspar Dutra, ora empossado na presidência da República, nasceu

em Cuiabá, Estado do Mato Grosso, em 18 de maio de 1883, tendo iniciado seu

preparo militar em 1902, na Escola Militar de Porto Alegre, de onde foi expulso

em 1908, juntamente com outros companheiros, por ter-se manifestado contra a

vacinação obrigatória imposta pelo presidente Rodrigues Alves. Anistiado, mais

tarde, foi para o Rio de Janeiro, onde matriculou-se na Escola Militar do

Realengo.

Dutra não tem um passado revolucionário, dado que, em toda sua vida, se

manifestou contrário a qualquer movimento de contestação ao poder. Não

participou, pois, dos movimentos tenentistas de 1922 e 1924, nem da Coluna

Prestes (1924-1927).

Permaneceu legalista durante a revolução de 1930 e combateu a Revolução

Constitucionalista em 1932, o que lhe valeu a promoção a general de brigada

(duas estrelas). Mais tarde, já general de Divisão e comandante da 1ª Região

Militar, sufocou a Intentona Comunista.

- 042 -

Da mesma forma, já ministro da Guerra, combateu o putsch integralista de

1938, arriscando a própria vida para defender o Palácio Guanabara, onde se

achavam o presidente Vargas e sua família.

Em 1944, já como ministro da Guerra, teve a incumbência de organizar a

Força Expedicionária Brasileira (FEB), cujo comando foi entregue ao general

Mascarenhas de Morais.

Destoando em sua biografia, foi um dos participantes do golpe de 1937, que

implantou o Estado Novo e, em 1945, participou também da derrubada do ditador

Getúlio Vargas. Ninguém é perfeito...

Como presidente da República, defendeu ardorosamente a Constituição, o

livrinho vermelho do qual nunca se separava. Na vida particular, era uma pessoa

dócil, gostando de caminhar pela zona Sul do Rio de Janeiro, afagando crianças

e nunca recusando uma conversa com quem dele se aproximasse.

Assim o descreve o historiador José Maria Belo:

"Simples, despretensioso, calado, polido, bravo sem alarde, de

hábitos modestos, um fundo de timidez que dá por vezes a

impressão de hesitação, tenaz todavia em certos objetivos, como

no de colocar o Partido Comunista fora da legalidade, sem

irradiação pessoal, de imperturbável sangue frio, mais sagaz no

trato dos homens do que aparenta, sem treino político e

administrativo, salvo nos negócios da sua antiga pasta."

- 043 –

O Ministério

No início de seu governo, Dutra formou o Ministério só com nomes de

correligionários seus. Tempos depois, pretendendo um governo de coalizão,

acabou por fazer uma reforma ministerial, atraindo para o Gabinete alguns

nomes da oposição, sobretudo da UDN.

Seu primeiro Ministério estava assim formado:

Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, que se achava

chefiando a delegação brasileira na Conferência de Paz de

Versalhes; Justiça, Carlos Coimbra da Luz; Fazenda, Gastão

Vidigal; Agricultura, Manuel Neto Campelo Junior; Viação e Obras

Públicas, Edmundo de Macedo Soares e Silva; Trabalho, Indústria

e Comércio, Otacílio Negrão de Lima; Educação e Saúde, Ernesto

de Sousa Campos; Guerra, general Pedro Aurélio de Góis

Monteiro; Marinha, almirante Jorge Dosdwort Martins; Aeronáutica,

Armando Figueiredo Trompowsky de Almeida. Este último viera do

Gabinete de José Linhares e permanecerá no cargo até o final do

governo.

O jogo na ilegalidade

Foi a 30 de abril de 1946 que o presidente da República assinou o decreto-

lei nº 9.215, colocando na ilegalidade os jogos de azar, representados

principalmente pelos cassinos, frequentados pela alta roda, e pelos chalés onde

eram apontados os volantes do jogo do bicho.

O jogo do bicho logo se recompôs na clandestinidade, voltando a funcionar,

senão com força total, pelo menos com desembaraço e com uma suspeita

tolerância das autoridades estaduais, às quais cabia cuidar da execução da lei.

Já a alta jogatina jamais se recuperou, pois os frequentadores dos cassinos

encontraram um caminho paralelo, em excursões que os levavam aos paraísos

da jogatina do exterior, numa rota que ia, desde Buenos Aires até Las Vegas.

Sobre os cassinos, escreve o jornalista Sérgio Augusto, na Folha de São

Paulo de 8 de maio de 1991:

- 044 -

"Pressionado pela carolice de sua mulher, dona Santinha, e pela

matreirice de seu ministro da Justiça, Carlos Luz – de olho no

eleitorado conservador de Minas Gerais –, o marechal Dutra pôs a

jogatina na ilegalidade, a 30 de abril de 1946. No dia seguinte, havia

pelo menos 40 mil novos desempregados na praça.

"Também aqui, o jogo era um negócio fabuloso. Havia cassinos

por toda a parte. Nas principais capitais (o Pampulha, em Belo

Horizonte; o Central, em Salvador; o Grande Hotel, em Recife), nas

estâncias hidrominerais, na costa paulistana (Guarujá, São

Vicente, Santos), mas só os que ficavam no Rio e seus arredores

alcançaram, por motivos óbvios, status internacional.

"(...) Quando da abertura do Quitandinha, havia mais astros de

Hollywood no eixo Rio-Petrópolis que estrelas no céu carioca.

Inaugurado em 1944, o Quitandinha só teve dois anos de glória.

Depois, resignou-se a ser, como o Copacabana-Palace, um

simples hotel de luxo."

Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ)

- 045 -

A partir dos anos sessenta, a cultura popular, voltada para o jogo, foi

aproveitada pelo governo federal para a arrecadação de impostos, primeiro,

muito timidamente, com a loteria esportiva, depois com uma infinidade de jogos,

os mais variados, que transformaram o Brasil de hoje num grande cassino oficial,

patrocinado pelo poder público. Tudo isso ao lado do jogo clandestino, que teima

em subsistir. O jogo é proibido no Brasil desde 1946. Você acredita nisso?

Constituição Promulgada

Eleita em 2 de dezembro de 1945, a Assembleia Nacional Constituinte foi

instalada em princípios de fevereiro, nomeando de imediato uma comissão para

redigir o regimento interno. Em 14 de março de 1946, já aprovado esse

Regimento, nomeou-se outra comissão para elaborar um anteprojeto da Carta.

Em 3 de junho, iniciou-se a fase de análise e votação das emendas ao

anteprojeto e, em 13 de agosto, passou-se à votação dos artigos, com as

emendas que foram aprovadas.

Finalmente, em 18 de setembro de 1946, quase oito meses depois de

instalada a Assembleia, foi promulgada e posta em vigor a nova Constituição dos

Estados Unidos do Brasil.

Em seu texto, a nova Carta mantinha o princípio federativo (20 Estados e um

Distrito Federal), com regime presidencialista, adotado desde a Proclamação da

República.

A nova Carta garantia, também, a ampla autonomia política e administrativa,

não só dos Estados, como dos municípios. Estes, a menos que fossem

considerados áreas de segurança nacional, tinham a prerrogativa de eleger seu

prefeito.

Conservava, igualmente a independência e harmonia entre os três poderes

da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.

O voto era secreto e universal (um eleitor é igual a um voto,

independentemente de sua importância econômica, política ou cultural). Podiam

votar e ser votados os maiores de 18 anos, no gozo de seus direitos políticos,

exceto os analfabetos, os soldados e cabos.

- 046 -

A nova Constituição assegurava a plena liberdade de opinião e pensamento

que, salvo raras exceções, sempre foi garantida. Não se livrou, porém, de alguns

vícios do Estado Novo, pois a plena liberdade encontrava em seu caminho a

censura obrigatória a espetáculos públicos e teatrais, estendida mais tarde às

radionovelas, que nessa época foram introduzidas no Brasil pelo dramaturgo

Oduvaldo Viana (pai).

Havia alguns dispositivos maliciosos. Ao defender o sagrado direito da

propriedade, conservava a estrutura da propriedade da terra, ou seja, ficava

descartado qualquer programa de reforma agrária para resgatar o homem do

campo, prevalecendo o princípio de suserania e vassalagem vigente nas

fazendas, o que permitia a exploração de mão-de-obra barata, para não dizer

escrava.

Por outro lado, assegurava o direito de greve e da livre associação sindical,

mas mantinha os sindicatos como órgãos de colaboração do Estado, podendo o

governo intervir nas entidades sindicais.

Outro dispositivo remanescente do período autoritário que, com pequenas

modificações, se mantêm até os dias de hoje, é o direito de o presidente da

República nomear os membros do Supremo Tribunal Federal. O lobo perde o

pelo, mas não perde o vício.

Mas o dispositivo mais polêmico é o que reduz o mandato do presidente da

República de seis para cinco anos, com efeito retroativo, ou seja, valendo

também para o atual presidente, cuja duração de governo foi reduzida em um

ano. Embora Dutra não objetasse quanto à redução de seu mandato, isto veio

trazer problemas de ordem legal que, suscitados após a eleição de 1950,

poderiam ter originado um impasse constitucional.

Por fim, criado o cargo de Vice-Presidente da República, extinto há 15 anos,

a própria Assembleia elegeu, por via indireta, o senador catarinense Nereu

Ramos, da UDN, que concorreu com Pedro Américo, do PSD. Foi, como se vê,

uma política de boa vizinhança, procurando atrair as simpatias da oposicionista

UDN para o governo federal.

- 047 -

Encerrados os trabalhos constituintes, os parlamentos se desdobraram

naturalmente em suas funções naturais: a Câmara Federal, com 278 membros,

permaneceu no Palácio Tiradentes, e o Senado, com 42 membros, se deslocou

para o Palácio Monroe.

Eram, até este momento, dois senadores por Estado, mas a nova

Constituição acrescentou mais um por Estado, que foi eleito igualmente em

eleições diretas.

O Presidente e o

trabalhador

Apesar de eleito com a participação do Partido Trabalhista Brasileiro, o

relacionamento entre o presidente Dutra e os trabalhadores sempre foi

tumultuado. Logo após sua posse, o presidente foi surpreendido com uma onda

de greves, que procurou reprimir com o uso legal, mas discutível, do decreto-lei.

Não conseguindo conter os movimentos reivindicatórios, passou a reprimir com

violência as manifestações operárias.

- 048 -

A nova Constituição, longe de inovar, manteve a atividade sindical atrelada

ao Estado, permitindo aos trabalhadores eleger seus líderes, mas garantindo o

direito de intervenção estatal nos sindicatos; permitia a livre negociação sindical,

mas o governo contava com instrumentos para conter as reivindicações

salariais; era assegurado o direito de greve, mas ela só poderia ser deflagrada

após parecer (autorização) da Justiça do Trabalho.

Persistindo no sofisma de que o salário é o responsável pela inflação, o

governo procurou conter o surto inflacionário que vinha desde o Estado Novo,

congelando os salários dos trabalhadores. E ante as manifestações de protesto,

agora organizadas em torno dos sindicatos, o governo respondeu com

autoritarismo e repressão.

Isso permitiu que, nas eleições municipais de 1947, a que iremos nos referir

mais adiante, o Partido Comunista Brasileiro, nesse momento ainda na

legalidade, conseguisse fazer a maior bancada nas Câmaras Municipais de São

Paulo, Santos e Rio de Janeiro, os três maiores redutos de trabalhadores na

época. Embora tais resultados fossem desprezíveis no conjunto da votação

daquela legenda, foi um dos pretextos utilizados para, mais tarde, colocar o PCB

na ilegalidade, cassando o mandato de todos os seus representantes.

Trazendo o inimigo

para casa

Ao final de julho de 1946, antes mesmo de a nova Carta ter sido promulgada,

mas sentindo-se já firme no governo, Dutra iniciou a reforma ministerial, trazendo

nomes de sua arqui-inimiga, União Democrática Nacional, para compor seu

ministério.

Não lhe saiu de graça. A principal exigência da UDN era que os elementos

mais chegados ao Estado Novo fossem afastados do Governo. A primeira vítima

foi seu ministro da Guerra, general Góis Monteiro, que teve de renunciar, sendo

substituído pelo general Canrobert Pereira da Costa. A volta de Góis Monteiro

à vida política ocorreria nas eleições do ano seguinte.

- 049 -

Todavia, a principal alteração se deu no Ministério de Relações Exteriores,

que foi entregue ao udenista Raul Soares, substituindo João Neves da

Fontoura, que se achava chefiando a delegação brasileira na Conferência de

Paz de Versalhes. Ato contínuo, em 24 de julho, o novo ministro afastou João

Neves da delegação, assumindo ele mesmo a chefia.

Afastamento de Luzardo esfria

relações com a Argentina

Não tardou que outros personagens ligados a Getúlio Vargas fossem

removidos de seus lugares. O embaixador brasileiro na Argentina, João Batista

Luzardo, tinha vários crimes em suas costas: o de ter sido amigo de Getúlio, o

de ter atacado com tenacidade a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e,

de quebra, o de ter um bom relacionamento com o ditador argentino Juan

Domingo Perón, de resto compreensível pois ele cuidava da diplomacia

brasileira na Argentina.

Em 6 de fevereiro de 1947 Luzardo foi afastado do cargo, voltando ao Brasil,

onde assumiu sua vaga de deputado federal pelo PSD. É ele mesmo quem

conta:

"Eu ainda não sabia de nada, quando recebi uma ordem: teria

de ir ao Rio para uma conversa com o presidente da República. Ele

queria me ver. Recebeu-me no Catete com uma expressão... Pedia

que eu o compreendesse: havia feito um acordo vital para o

governo e a UDN exigia... O Brigadeiro... Os ataques que eu fizera

a ele... Minhas ligações com Perón... Minha saída era uma das

poucas exigências que eles faziam. Que eu o perdoasse: não

poderia continuar..."

A presença do novo ministro nas Relações Exteriores esfriou o

relacionamento entre Brasil e Argentina. Os dois presidentes (Dutra e Perón) se

encontraram oficialmente na inauguração da Ponte Internacional Uruguaiana-

Paso de los Libres e o contato foi meramente protocolar.

Terminada a cerimônia, cada um voltou à sua origem, sem trocar uma palavra

sobre assuntos de interesse dos dois países.

- 050 -

Juan Domingos Perón, Eurico Gaspar Dutra e Evita Perón, na cerimônia

de inauguração da “Ponte da Amizade”

As eleições de 1947

Como se recorda, em 1946 as eleições ficaram restritas ao presidente da

República e à Assembleia Nacional Constituinte, aguardando-se o novo texto

constitucional para proceder o preenchimento dos demais cargos. Agora, são

marcadas novas eleições para 10 de janeiro de 1947, envolvendo governos

estaduais, assembleias legislativas, prefeituras (menos nas cidades

consideradas de segurança nacional) e câmaras municipais.

Por outro lado, como a nova Constituição aumentou a representação no

Senado Federal, de dois para três senadores por Estado, foi incluída também

a eleição de mais um senador, para completar o número exigido.

Tal como no pleito anterior, as eleições de janeiro também ocorreram em

ambiente festivo, tendo como característica as coligações mais disparatadas

possíveis, onde partidos de ideologias conflitantes se juntavam para garantir

resultados em seus municípios ou em seus Estados. No Amazonas, a UDN anti-

getulista conseguiu a vitória unindo-se ao PTB de Getúlio Vargas; no Espírito

Santo, a mesma UDN juntou-se ao PSD, também fundado pelo antigo ditador; e

assim por diante.

Todavia, nenhuma coligação se mostra tão absurda como a que elege

Ademar Pereira de Barros governador do Estado de São Paulo: A composição

reúne o Partido Social Progressista, formado com os remanescentes do

- 051 -

integralismo, e o Partido Comunista Brasileiro. É a ultra direita que se junta à

extrema esquerda, para defender um mesmo propósito. Pior para o PCB que,

meses depois, teve a polícia de Ademar em seu encalço para prender os ativistas

comunistas, assim que o partido teve sua existência cassada.

No frigir dos ovos, o PSD fez seis governadores, a UDN cinco e o PTB apenas

um, o do Estado do Maranhão. Os restantes governadores resultaram de

coligações, não permitindo determinar a influência de cada partido no conjunto

dos votos.

O general Góis Monteiro volta ao senado pelo PSD de seu Estado natal,

Alagoas. O Partido Comunista, como dissemos, conseguiu representação

majoritária nas câmaras municipais de São Paulo, Santos e Rio de Janeiro,

assinando com isso sua pena de morte.

O PCB na ilegalidade

Em realidade, a rapidez com que ocorreu o golpe pondo fim ao Estado Novo

pegou de surpresa os inimigos de Getúlio, que não tiveram tempo de criar uma

democracia pré-condicionada a uma série de salvaguardas, entre elas o

banimento de Getúlio e seus auxiliares mais próximos, bem como a proibição de

partidos radicais, como o Partido Comunista Brasileiro.

Sem essas restrições, deu no que deu. Vargas e seus amigos continuaram

no cume do poder e, de quebra o PCB participou até da elaboração da Carta

Magna, com 14 deputados e um senador (Luís Carlos Prestes). E entre os

deputados havia nomes de peso, como Carlos Mariguela e Gregório Bezerra.

Embora este contingente representasse menos de cinco por cento da

Assembleia Nacional Constituinte, era uma bancada barulhenta, que deu muito

trabalho, tentando impugnar emendas como a que punha fora da lei partidos que

atentassem contra as liberdades democráticas.

O início da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética levou o Brasil

a se posicionar ao lado dos americanos, rompendo relações com os soviéticos,

o que colocou os comunistas brasileiros em situação bastante delicada.

- 052 -

O PCB teve ainda a seu desfavor a descoberta da existência de dois

estatutos paralelos, um usado para efeito de registro, e outro que,

supostamente, regia as atividades do partido. E entre as normas de conduta

deste último, era proibido a seus afiliados manterem relações de amizade com

inimigos da causa comunista.

Tudo isso foi brandido nos processos que correram pelo Tribunal Superior

Eleitoral pedindo a extinção da legenda.

A 7 de maio de 1947, o TSE decide pela extinção do partido, sem entrar em

considerações quanto a seus representantes na Câmara Federal, Senado,

Assembleias Legislativa e Câmaras Municipais, os quais, pela legislação

vigente, poderiam filiar-se a outras legendas e completar seus mandatos.

O Congresso Nacional reage e, a 7 de janeiro de 1948, aprova um projeto

de lei cassando todos os mandatos políticos dos eleitos pelo PCB. Sancionada,

em seguida, pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, a nova lei ordena aos

governos estaduais que cuidem de executá-la em seus Estados, enquanto o

governo federal toma idênticas providências no Distrito Federal (Rio de Janeiro).

Inicia-se, a partir daí, um novo período, em que o PCB continua agindo

infiltrado em partidos de esquerda, como o PSB - Partido Socialista Brasileiro,

sempre apoiando nomes sem envolvimento anterior com o comunismo.

- 053 -

Os jornais comunistas continuam com sua circulação liberada e usam de

maior ou menor agressividade, dependendo da situação política em cada

momento. Em São Paulo, por exemplo, o jornal Notícias de Hoje tinha circulação

diária, com uma linguagem desabrida, sendo vendido livremente nas bancas.

Essa situação dúbia perdurou até os anos oitenta, quando o partido voltou à

legalidade, sem que nenhuma liberdade fosse ameaçada, e sem causar os

problemas que foram uma constante durante o período em que esteve à margem

da lei. Em se tratando de inimigos políticos, melhor mantê-los à vista, do que

escondidos atrás de um biombo.

O alinhamento com os

Estados Unidos

Uma das marcas indeléveis do governo do general Eurico Gaspar Dutra foi o

alinhamento do Brasil com Estados Unidos em todos os setores da vida nacional.

Politicamente, essa posição resultou no rompimento das relações diplomáticas

com a União Soviética, representando uma decisão natural dentro do contexto,

já que o Brasil é um país americano e vinha dando seus primeiros passos na

redemocratização, tendo os Estados Unidos como parceiros.

Economicamente, o Brasil sofreu pressões dos Estados Unidos para utilizar

os créditos acumulados com exportações feitas durante a Segunda Guerra, o

que mantinha nossa balança comercial com um saldo altamente favorável.

Liberado o câmbio, o país passou a importar tudo, principalmente aquilo que

não precisava, prejudicando a economia interna. Era possível, por exemplo,

comprar caixinhas de uva-passa americana em qualquer vendedor ambulante.

No país, entravam, sem dificuldade, carros, barcos, motocicletas, bicicletas,

peças talhadas em marfim e até palha para enrolar cigarros, coisa que o nosso

caboclo sempre soube fazer muito bem sem ajuda externa.

A maior invasão foi a da matéria plástica, a novidade de após guerra, que o

brasileiro nunca tinha visto antes, e que parecia substituir todo tipo de material.

Rígida, substituía a baquelita; flexível imitava o celuloide; em filmes, encapava

livros e cadernos com a mesma eficiência do celofane.

- 054 -

E venha plástico! Brinquedos, pratos, xícaras, tudo material de péssima

qualidade, que se encardia rapidamente, mas que, nas lojas, aparecia todo

colorido e lustroso.

Esses desvios trouxeram uma perda irrecuperável de divisas em prejuízo à

indústria nacional, incapaz de concorrer com importados que chegavam como

novidades, com preços aviltados, tal como acontece hoje com os produtos vindos

da China.

Quando o governo, finalmente, despertou e reassumiu o controle do câmbio,

a grande parte de nossas divisas, acumuladas durante anos, já tinha virado pó.

Outra consequência do alinhamento foi a criação de uma Comissão Mista

Brasil-Estados Unidos (Missão Abbink), que planejou a adaptação da

economia brasileira às necessidades dos Estados Unidos, sob supervisão de

instituições internacionais, como o Eximbank e o Banco Mundial.

Foi um filão para as esquerdas brasileiras, que denunciavam o entreguismo

do governo Dutra, gerando nas massas um clima de anti-americanismo. A

expressão: calma, que o Brasil é nosso... recebeu uma réplica: calma, que o

Brasil é dos americanos...

Desenvolvimento interno

No mais, o governo Dutra foi marcado por uma série de realizações, que

representaram uma plataforma importante para o desenvolvimento ocorrido na

década seguinte. Com a criação Plano Salte (Saúde, Alimentação, Transporte

e Energia), criou-se um grande trabalho pelo desenvolvimento do país.

Com efeito, foi neste governo que se completou a construção da Companhia

Siderúrgica Nacional, financiada pelos Estados Unidos dentro do acordo que

levou o Brasil a assinar seu apoio aos aliados na Segunda Guerra Mundial.

A rede rodoviária foi ampliada, destacando-se a inauguração da Rodovia

Rio-São Paulo (Via Dutra). Outros Estados fizeram sua parte, construindo vias

estaduais, como a Anhanguera e a Anchieta em São Paulo; a Rodovia Rio-

Bahia, iniciada no governo anterior, foi concluída.

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Lembrando os tempos de Rodrigues Alves, as obras públicas se espalharam

por todo o país: a criação da CHESF (Centrais Hidroelétricas do São Francisco),

com a subsequente inauguração da Usina de Paulo Afonso; a eletrificação da

Estrada de Ferro Central do Brasil; ampliação do porto do Rio de Janeiro;

construção de 50 mil casas populares; construção do oleoduto Santos-São

Paulo; construção de duas refinarias, na Bahia e em São Paulo.

Criou-se uma bem-sucedida campanha de alfabetização de adultos,

campanhas pela erradicação da malária e da tuberculose, reformulação do

ensino primário, etc.

Renovaram-se as Forças Armadas, com a reformulação de seu Estado Maior,

a criação do Conselho de Segurança Nacional e da Escola Superior de Guerra.

Nossas fronteiras foram reforçadas com aumento de efetivos e compra de

novos equipamentos. A Aeronáutica recebeu 300 novas aeronaves e ganhou a

Escola de Formação de Cadetes de Barbacena.

A Marinha foi reestruturada, com a ampliação de sua frota. E, dentro da

política de realinhamento, militares das três armas fizeram estágios nos

Estados Unidos.

O desenvolvimento integrado do país afastou os ressentimentos mesmo dos

adversários mais ortodoxos. Otávio Mangabeira, por exemplo, foi perseguido nos

15 anos da ditadura Vargas. Esteve exilado duas vezes nesse período, a última

das quais, em função do golpe do Estado Novo, perpetrado por Eurico Dutra e

Góis Monteiro.

Obstinado pela vida pública, elegeu-se governador da Bahia e, ainda que

adversário, reconheceu a atuação do Presidente. Vale à pena registrar, pois, um

trecho do discurso de despedida feito pelo governador Otávio Mangabeira, na

Assembleia Legislativa da Bahia, em 27 de janeiro de 1951, fazendo referência

a Dutra:

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"Governador do Estado – quero dizer aqui mais uma vez –

nunca lhe pedi qualquer favor de ordem pessoal ou partidária.

Nunca, entretanto, lhe bati à porta, em nome dos interesses da

Bahia, que não a encontrasse aberta, e ele infatigável em servir-

nos.

"A Refinaria de Mataripe; a conclusão, custasse o que custasse,

das obras ferroviárias e rodoviárias, para a ligação entre a Bahia e

o Rio de Janeiro; a usina termo-elétrica de 20 mil kilowatts; as obras

de Paulo Afonso e do vale do São Francisco; as da Universidade

da Bahia; o início da construção da Base Naval de Aratu; o combate

à malária e os diferentes convênios entre a União e o Estado,

graças aos quais tanto se executou em Educação e Saúde e, se

bem que em menor escala, na agricultura; as variadas realizações

dos diversos Institutos de Previdência; a estação de passageiros

do Aeroporto de Ipitanga: a ajuda, direta ou indireta, de caráter

financeiro – mais não fora preciso indicar para que, ao apagar das

luzes, ponhamos bem ao vivo e bem ao claro o que lhe devemos,

e ao governo da República, e nunca deveremos esquecer."

Conclusão

Presidente da República, com o livrinho vermelho às mãos, Dutra não

participou do processo sucessório. Não escolheu nem apoiou oficialmente

qualquer um dos candidatos e, abertas as urnas, garantiu até o último momento

a posse do presidente eleito, afastando com decisão os golpistas que

procuravam formulas jurídicas miraculosas para mantê-lo no poder por mais um

ano. Nem um minuto mais, nem um minuto menos, foi a resposta do general que,

em 31 de janeiro de 1951, passou a faixa presidencial a Getúlio Dorneles

Vargas, de volta ao poder.

Dutra afastou-se definitivamente da vida política, mas não da atividade das

casernas. Em 1964 participou do golpe que derrubou o presidente João Goulart

e, desde então até sua morte, em 1974, permaneceu alinhado ao Sistema

Militar que dominou o poder por 21 anos.

Era firme em suas convicções e, se não pôde ser coerente em todos os

momentos – e de resto ninguém o é – foi porque sua vida teve sempre que dividir-

se em dois campos extremos, representados o primeiro pela rigidez da vida

militar e outro pela tolerância exigida na vida política, especialmente em um

regime de amplas liberdades democráticas.