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75 Capítulo 4 Reflexões sobre consumo consciente O sistema de produção capitalista é baseado na produção e no consumo crescente. A ideia é que, quanto mais a sociedade consome, maior é a produção de mercadorias e, consequentemente, maior a geração de empregos, maior a circulação de dinheiro, maior a arrecadação de impostos, enfim, economia aquecida é um termo alardeado pelos capitalistas. Os recursos naturais são finitos, a exploração do trabalhador deve ter limite, a acumulação de riqueza, apesar de legitimada pela sociedade capitalista, só faz aumentar as desigualdades sociais. Para manter a classe dominante no modo de produção capitalista é imprescindível produzir. Para produzir é preciso abarcar os recursos naturais disponíveis. Mas a utilização impulsiva e descontrolada dos recursos naturais causa sérios impactos ambientais. Desde meados do século passado, a comunidade científica percebeu que o mundo estava mudando, as estações do ano já não tinham a diferenciação temporal de antes, as marés se comportavam de maneira desigual a cada ano, as florestas da Europa e da América do Norte haviam desaparecido. Assim, em 1970 iniciaram-se as primeiras conversações entre os países no sentido de buscar entender o que estava se passando com o mundo, as consequências dessas mudanças e o que deveria ser feito para “salvar o planeta”. Contudo, muito se evoluiu após quatro décadas da Carta de Roma e da Conferência de Estocolmo, após o Relatório Brundtland (Nosso Futuro Comum), e após vinte anos da ECO-92. A Agenda 21, contendo planos e diretrizes acerca das melhores práticas ambientais, também foi um marco para os novos rumos do desenvolvimento. Em 2012, o Rio de Janeiro sediou a Rio+20, evento de envergadura mundial, que trouxe aproximadamente 200 líderes mundiais, e tratou de temas como Desenvolvimento Sustentável e ALVES, Fábio Carlos Rodrigues; "REFLEXÕES SOBRE CONSUMO CONSCIENTE", p. 75-96 . In: ALVES, Fábio Carlos Rodrigues. A contextualização do binômio produção e consumo à luz dos conceitos da cultura e da ideologia, São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015.. São Paulo: Blucher, 2015. ISBN: 978-85-8039-105-3, DOI 10.5151/BlucherOA-consumoproducao-09

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Capítulo4

Reflexõessobreconsumoconsciente

O sistema de produção capitalista é baseado na produção e no consumocrescente. A ideia é que, quanto mais a sociedade consome, maior é aprodução de mercadorias e, consequentemente, maior a geração deempregos,maioracirculaçãodedinheiro,maioraarrecadaçãodeimpostos,enfim, economia aquecida é um termo alardeado pelos capitalistas. Osrecursosnaturaissãofinitos,aexploraçãodotrabalhadordeveter limite,aacumulaçãode riqueza,apesarde legitimadapelasociedadecapitalista, sófazaumentarasdesigualdadessociais.

Paramanter a classe dominante nomodo de produção capitalista éimprescindívelproduzir.Paraproduziréprecisoabarcarosrecursosnaturaisdisponíveis. Mas a utilização impulsiva e descontrolada dos recursosnaturaiscausasériosimpactosambientais.Desdemeadosdoséculopassado,acomunidadecientíficapercebeuqueomundoestavamudando,asestaçõesdo ano já não tinham a diferenciação temporal de antes, as marés secomportavamdemaneiradesigualacadaano,as florestasdaEuropaedaAmérica do Norte haviam desaparecido. Assim, em 1970 iniciaram-se asprimeirasconversaçõesentreospaísesnosentidodebuscarentenderoqueestava se passando com omundo, as consequências dessasmudanças e oquedeveriaserfeitopara“salvaroplaneta”.

Contudo,muitoseevoluiuapósquatrodécadasdaCartadeRomaedaConferência de Estocolmo, após o Relatório Brundtland (Nosso FuturoComum), e após vinte anos da ECO-92. A Agenda 21, contendo planos ediretrizesacercadasmelhorespráticasambientais, tambémfoiummarcoparaosnovosrumosdodesenvolvimento.Em2012,oRiodeJaneirosediouaRio+20, evento de envergaduramundial, que trouxe aproximadamente 200líderes mundiais, e tratou de temas como Desenvolvimento Sustentável e

ALVES, Fábio Carlos Rodrigues; "REFLEXÕES SOBRE CONSUMO CONSCIENTE", p. 75-96 . In: ALVES, Fábio Carlos Rodrigues. A contextualização do binômio produção e consumo à luz dos conceitos da cultura e da ideologia, São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2015.. São Paulo: Blucher, 2015.ISBN: 978-85-8039-105-3, DOI 10.5151/BlucherOA-consumoproducao-09

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Ecodesenvolvimento. Trataremos deste evento em outra oportunidade,vamosfocaragoratermosefirmarconceitos.

OsconceitosediretrizeselaboradosnaCartadeRoma,naConferênciadeEstocolmoeno relatórioBrundtland foramassimiladospelaAssembleiaNacional Constituinte de 1988. Isso fica evidente pelo texto do artigo 225 daConstituiçãoFederalquecorrobora,inverbis:

Art.225.Todostêmdireitoaomeioambienteecologicamenteequilibrado,bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo epreservá-loparaaspresentesefuturasgerações(ConstituiçãoFederaldaRepúblicaFederativadoBrasil,1998).

Nesse ínterim é oportuno trazer a lume o inciso VI do artigo 170 daCarta Magna, encontrado no Título que trata da Ordem Econômica eFinanceira,inverbis:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalhohumano ena livre iniciativa, tempor fimassegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintesprincípios:

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamentodiferenciadoconformeoimpactoambientaldosprodutoseserviçosedeseus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela EmendaConstitucional nº 42, de 19.12.2003), (Constituição Federal da RepúblicaFederativadoBrasil,1998).

Miotto (2005) observa que, segundo o Conselho Empresarial para oDesenvolvimentoSustentável,odesenvolvimentosustentávelseráalcançadopelo mercado, mormente porque esse modelo de desenvolvimento criavantagens competitivas e gera novas oportunidades de negócios. Dessaforma, para uma empresa ser considerada ecoeficiente, ela precisa seadequaràsnormasda ISO (InternationalStandardizationOrganization).Talorganização internacional estabelece os parâmetros, padroniza as normasparaaproduçãocomqualidadetotal,respeitandoosvaloresambientaisedesegurançaalimentaredostrabalhadores.

Normas Internacionais ISO: garantir que os produtos e serviços sãoseguros, confiáveis e de boa qualidade. For business, they are strategictools that reduce costs byminimizingwaste and errors and increasingproductivity. Para as empresas, eles são ferramentas estratégicas que

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reduzam os custos através da minimização de resíduos e erros eaumentando a produtividade. They help companies to access newmarkets, level the playing field for developing countries and facilitatefree and fair global trade. Eles ajudam as empresas a aceder a novosmercados, nivelar o campo para os países em desenvolvimento efacilitaralivreejustocomércioglobal.(2012)

Dessaforma,osetorempresarialapontoucomoumaoportunidadedenegóciosainteraçãoentredesenvolvimentoemeioambiente.Osexecutivosdas grandes Corporações conhecem a legislação ambiental, e sabem quedevem cumpri-la, é o mínimo que se espera de uma empresa séria. Asnormas elaboradas pela ISO são aceitas e adotadas no mundo todo.Primeiramente as grandes Corporações Europeias e Estadunidensesadotarama ISO, e depois naturalmente estabeleceu-se umnovomarco. Osexecutivoschamamissodeagregarvaloresaoproduto,produzi-lodentrodospadrões de qualidade, respeitando as normas ambientais e de segurançaalimentaredostrabalhadores.

Nesseponto,cabeumapassagemqueilustraoassunto.Emmeadosdadécadapassada,umagrandeempresamultinacionaldosetordealimentosadotou um processo de melhoria contínua nas suas instalações fabris. Alogística para implementação desse processo consistia em treinar líderes,facilitadoresquedepois iriamguiarasequipesdemelhoriacontínua,alémdeumcopiosomaterial paraauxílionas reuniões.Dessa formaas equipescomeçaramasereunir,levantarproblemasnasinstalações(problemasquedepois viriam a serem oportunidades demelhoria), sugerir as soluções. Oresultado foimuito positivo, pois as equipes que eram compostas em suamaioriaportrabalhadoresdaslinhasdeprodução,conheciamosproblemasesabiamcomoresolvê-los,masfaltava-lhesavoz.

Assim os trabalhadores tiveram a oportunidade de fazer parte desseprocesso, como líderes, facilitadores e integrantes de várias equipes. Aempresaadotouameritocraciacomofontedeincentivoparaasequipes,eacada projeto implementado os integrantes da equipe recebiam umarecompensa em dinheiro, a variar conforme cada projeto e a economiaalcançada,quepoderiasernoscustosdaprodução,nosrecursosambientaisedemais melhorias. Uma ferramenta utilizada durante o processo demelhoriacontínuaeraoBrainstorming,quepossibilitavaacada integranteda equipe levantar os problemas e propor as soluções sem ser tolhido emsuasideias.Umaferramentacomconotaçãosubjetiva,masquepoderialevaraproblemase/ousoluçõesobjetivos,adependerdofiltroutilizado.

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Dessa forma, a referida empresa também premiava as equipes queimplementavamalgumaeconomiados recursosnaturais.Porexemplo,emuma equipe foi proposto a diminuição do tempo de enxágües (com água)inicial e final, em determinadas limpezas de equipamentos. Após oacompanhamentomicrobiológico, já que para implementar era necessárioum período de aprovação, foi destacado que a limpeza realizada com ummenortempodeenxágüegarantiriaospadrõesdelimpezaestabelecidospelaempresacomasupervisãodasnormasdoISO.Assimaempresadiminuiuoscustosdaprodução, já quepassoua economizar água e energia, e agregouvalorambientalaoseuproduto.

Mas qual o verdadeiro objetivo das Corporações em tornarem-seecoeficientes?Aempresapossuicomológicaaobtençãodelucros,mesmoacustadaexploraçãodetrabalhadoresedegradaçãodosrecursosnaturais.Asempresas tornam-se ecoeficientes porque isso é uma oportunidade denegócios para ela, significamaiores lucros para seus acionistas. Empresascentenárias comoGE,Nestlé, Ford, ainda estão presentesnomercado, poispossuemainovaçãoeoplanejamentocomopilares.EasnovasCorporaçõesaprenderam isso rapidamente: adaptar-se rapidamente às condições eoscilações do mercado, manter uma imagem imaculável perante osorganismosinternacionaisderegulamentaçãodomercado,peranteasoutrasempresaseperanteapopulação.Eéclaroqueumaempresasustentávelouecologicamentecorretafazpropagandadisso.

A questão não é se as empresas ao adotarem medidas parapreservar/restaurar o meio ambiente, e ao mesmo tempo garantir aprodutividade e qualidade de seus produtos, estão se beneficiando daspróprias lições do velho capitalismo. A questão é se essa forma dedesenvolvimento(osustentável),aeconomiaverde,écapazdeequilibrarosprocessos ambientais, após décadas e décadas de exploração licenciosa, eevitaradesfiguraçãodoquerestoudabiodiversidademundial.

Osconceitosdesustentabilidadeedesenvolvimentosãocongruentes?Omodelodeproduçãocapitalistaécapazde,sozinho,adequar-seasdemandasambientais? Ou será apenas a introdução do Capitalismo Verde (MIOTTO,2005)? Nesse ponto a discussão da viabilidade do modo de produçãocapitalistaemseuviésambiental,mormentecomaproblematizaçãoà luzdobinômioprodução–consumo,eauxiliadaporconceitoscomoideologiaecultura,équestãodeincontesteimportância.

As ciências ambientais ainda buscam seu espaço epistemológico. Ainterdisciplinaridadeéoprincípiocoroláriodestanovavisãosobreanatureza

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e as relações humanas, um sistema complexo. Rohde (1994) cita quatrofatores principais acerca da insustentabilidade que permeia a sociedadeindustrial: elevadas taxas de crescimento demográfico; diminuição dosrecursosnaturais;utilizaçãodetecnologiaspoluentesedespidasdeeficáciaenergética; uma sociedade calcada em valores que levam a um consumomaterialsemprecedentes.

Oscientistasdedicadosaoestudomaisaprofundadodomeioambientereforçamessesfatorescombasenaeconomiacapitalistavigente:aaquisiçãode riqueza a qualquer custo, gerando uma degradação contínua epermanente dos recursos naturais, a deterioração das relações natureza-sociedade, e a confiança, ingênua, de que o próprio sistema capitalistaalcançariaaharmoniaentredesenvolvimentoeconômicoesustentabilidade.

Rohde(1994)acreditaqueantigosparadigmasquesustentamacriaçãodaciênciaprecisamserdeixadosparatrás.Dessaforma,citacomoexemplosos paradigmas cartesiano-newtoniano causalista; mecanicista-euclidianoreducionistaeoantropocentrista.Taisvisõesengessaramavisãodocientistasobre o todo complexo que sãoas relações sociedade-natureza, reduzindoodiscurso a questões técnicas do homem sobre a natureza, afastando acomplexidade existente entre estas relações, que inserindo o homem nocentrodetodasasrelaçõesacabouporesvaziarodiscursocientíficosobrearealsituaçãodosrecursosnaturaisedasrelaçõessociedade-natureza.

Assim,asciênciasambientaissedebruçamsobreoestudodasrelaçõessociedade-natureza, do meio ambiente, da sustentabilidade, dabiodiversidade, da geodiversidade, da bioeconomia, do ecodesenvolvimento,quesãoalgunsdosconceitos/termos/disciplinas/elaboradosapartirdeumavisãomaisinterdisciplinar.

Mesmo em 2012, passados quarenta anos da publicação da Carta deRoma e da Conferência de Estocolmo, que tiveram como alicerce estudosrealizadosdecêniosantes,depoisde20anosdaEco-92queelaborouaAgenda21,aindaestamosimplementadoessavisãointerdisciplinarcomplexasobreasciênciasambientais.

Segundo o site WikiPedia (2013) stalkeholder (parte interessada ouinterveniente em português), é um termo usado em diversas áreas comoadministração e arquitetura de software, referente às partes interessadasque devem estar de acordo com as práticas de governança corporativaexecutadapelas empresas. Seriam todosos envolvidos emumprocesso, ospontos-chave.Zonin,PedrosoeZonin(2011)desenvolvemumartigoapartirdeuma visão de novos padrões de produção e consumo, visando o

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desenvolvimento sustentável, e os stakeholders seriam a nova forma deorganizaçãoemrededasCorporações.

Para os autores o Desenvolvimento Sustentável deve buscarcontrabalançar os aspectos: econômico, social, cultural, político e ético,envolvidos no processo de desenvolvimento consciente. O conceito deDesenvolvimento Sustentável está bem delineado no artigo 225 daConstituiçãoFederalquedeterminaquetodostêmdireitoaomeioambienteecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, que deve serpreservado pelo Poder Público e pela coletividade, para a presente e asfuturasgerações.

Assim, a importância da transdisciplinaridade para o levantamentodos problemas e a proposição de soluções, em matérias relacionadas aoDesenvolvimentoSustentável,édecarátertridimensional.Ainteraçãoentreasdiferentesciências,buscandoosenfoquespossíveisacercadeestabelecer-sepolíticasdedesenvolvimentoecologicamenteequilibradas,éumcaminhopenoso,masnecessário.Écomoumprismadesoluções,sendoquecadacorrepresentaoenfoquedadoporumaciência.

A dimensão econômica pauta-se pelo binômio produção-consumo,proporcionandouma “provisória” qualidadede vida. A dimensãoambientalbusca implementar políticas, ideias, visando um desenvolvimentosustentável. A dimensão social da sustentabilidade preocupa-se comdesenvolvimento de valores, crenças, culturas, proporcionando saúde,educação, e uma sociedade consciente de seu papel. Dessa forma, “odesenvolvimento socialmente justo e ambientalmente sustentável passapelacapacidadehumanaeminovarnabuscadesoluçõesesergenerosanadistribuiçãodosresultados”(ZONIN,PEDROSOEZONIN,2011).

As corporações, a classe política e a sociedade são os atores nestecenário de desenvolvimento sustentável. Os meios de comunicação(mormente a televisão) e os sindicatos, estes menos do que aqueles, nãomediam esse círculo virtuoso, mas, sim, manipulam as informações sobseus próprios interesses. Assim em uma sociedade especificamentecapitalista, onde a busca do lucro é, prima facie, seu único objetivo, asociedade se deleita e se encanta, mesmo que provisoriamente, por umconsumosemprecedentes,e,comoumrebanhodeovelhas,éconduzidopelo“cajado”doMarketing.

René Descartes (1637) perpetuou a célebre frase: Penso, logo existo.Atualmenteumafrasequepodecaracterizarnossasociedadeé:Existo, logoConsumo. E devemos lembrar que há os que se deleitam sobre o conforto

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oferecidopeloconsumo,vivendoemgrandeseespaçosascasas,consumindomuita gasolina em seus grandes e volumosos carros,mas, por outro lado,existemosmiseráveis que sequer dignidade possuem. É este o preço a serpago?Norterico–sulpobre;nortedesenvolvido–sulsubdesenvolvido.

Umasociedadequevisaalcançarodesenvolvimentosustentáveldevebuscar o equilíbrio entre produção e consumo, entre a busca do lucro e orespeito aos limites dos recursos naturais, entre trabalho e lazer. Fala-semuitoemqualidadedevida,aindaquealgunsbusquemesse ideal,muitosestãovoltadosparaaacumulaçãoderiqueza.

Mas existe relação entre a Cultura e o Ecossistema?Até que ponto autilizaçãopredatóriados recursosnaturais, que levaadegradaçãodomeioambiente, pode interferir ou até exterminar manifestações culturais? Épossível o extermínio de uma cultura quando há a degradação dedeterminadoespaçoutilizadopelohomemparaviver?

LaraBezzon(2006),organizouemumlivro,umdiálogorealizadoentreasociólogaDulceWhitakereoecólogoJoséTundisi.Whitakerhaviaacabadodedefender seudoutoradonaUSPeaspesquisasparasua tese, realizadasnos canaviais da região de Araraquara, a despertaram para as questõesambientais.PoroutroladooprofessorTundisipassaraatrabalharnaUSPdeSãoCarlos,epormeiodesuaorientanda,ValériaWhitaker,foiapresentadoàsociólogaWhitaker.AssimDulceWhitaker,cientedaeliminaçãodediversasformasdemanifestaçãodaCulturadiantedoavançodaindústriacanavieira,encontrou-se como renomado ecólogo, que registrava processos complexosde transformação na Bacia Hidrográfica do Rio Tietê, e assim deu-se essaconversatransdisciplinar.

Tundisi ensina (apudBEZZON, 2006) que o Rio Tietê pode ser tomadocomo um objeto e a partir dele podemos observar o cruzamento dasinformaçõesdecorrentesdodesenvolvimentodoEstado.Oecólogoexplicaquea construção de um reservatório no Rio Tietê iniciou um processo dedesenvolvimentoeconômico,seguidoporumprocessodealteraçãoecológicae logo depois um processo de alterações sociais (e não necessariamentedesenvolvimentosocial), e todasessas interaçõesestão refletidasdentrodosistema.Oobjetivodopesquisadoré,nessemomentodesuavida,criarumacorrelação entre essa alteração no meio ambiente com as modificaçõescausadas pela desarticulação cultural. Seriam informação ecológica,alteraçõesnomeioambienteàluzdodesenvolvimentocriadoàcustadoRioTietê, cruzada com informações de erosão cultural e desarticulação decomunidades,diantedodesenvolvimentoeconômico.

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Whitaker (2006) confirma que as transformações econômicas vãodesarticulandoascomunidades,nomeioruralenourbano,umaverdadeiraerosão cultural. A socióloga, emsuaspesquisasparaodoutorado, observouque “corresponde mesmo a uma desintegração equivalente a essadesintegração ou degradação do solo e da natureza – seria umacorrespondente desintegração da cultura e da sociedade”. Tundisi resumeesse primeiro ciclo da conversa apontando que “toda a implantação dessanova estrutura socioeconômica se reflete na situação ecológica, isto é, nosistema ecológico”, sendo que para ele essa erosão cultural, levantado porWhitaker,implicatambémnamodificaçãodacoberturavegetal,ocasionadapelodesenvolvimentoenergético.

Dessa forma, para Whitaker (2006), os fenômenos da cultura e oecossistema possuem semelhanças evidentes. Segundo a autora a culturainterage com as ações e relações da sociedade, e o ecossistema é umaglomerado de processos metabolizados pela natureza. Se preservarmos oecossistemaaculturapermeadaporestetambémsepreserva.

Whitaker (2006) e Tundisi (2006), acreditam que o ecossistema, abiodiversidadedeveserobservadaàluzdadiversidadecultural.Dessaforma,emrespeitoàsteoriasdacomplexidadeépossívelchegaràconclusãodequeas manifestações e fenômenos da cultura e da natureza devem serobservadosemsuasíntimasrelações.Ohomem,seduzidopeloestilodevidaengendradopelomododeproduçãocapitalista,extremamenteprodutivista,precisa entender que o planeta é um só, não existe, pelomenos até hoje,outro planeta que possa ser habitado pela espécie humana,não existe umsegundoplano.Deveohomemconviveremharmoniacomomeioambiente,desligando-sedosentimentodepossequepossuisobreomesmo.

Mas a ideologia utilizada com perspicácia pela classe dominante,detentoradosmeiosdeprodução,grandesempresáriosproprietáriosdetodotipodeindústria,quecontrolamtambémosmeiosdecomunicação,poisasredes de televisão não passam de grandes indústrias do “entretenimento”,que escravizam, alienam a classe dominada, essa ideologia domestica aclasse dominada. Como o homem vai conviver em harmonia com omeioambienteseacadadiaaumenta-seaprodução,aprodutividadeeoconsumovãoareboquedesseaumento?

Comoconviveremharmoniacomomeioambiente, senossos jovensestão cada vez mais preocupados com a beleza de seus corpos, com amalhaçãonasacademias,comocultoàbeleza,eesquecem-sedorespeitoàsdiferenças e da tolerância? A mídia tem sua responsabilidade sobre essa

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valorizaçãoextremada,sejanaapresentaçãodetelejornais,sejaatuandonastelenovelas ou nas propagandas televisivas. Os atores são pessoasmagras,comocorpobemdefinido.Issosemfalarnaspassarelasdamoda,localondesó desfilammodelosmagérrimas, esqueléticas. Esse processo de alienaçãodosjovenspossuidoisestágios,oconsumismorealizadoparamanterocorpoideal, o consumismo de produtos que o destaquem do restante dos jovens(celulares, tênis, óculos, roupas, mercadorias quase sempre produzidas àcustadaexploraçãodeoutraspessoas),eaimagempassadaporessesjovensna mídia, que ajudam a criar uma massa de jovens que buscam aindividualidade nos produtos consumidos, mas que formam uma massapassivadeconsumidores.

Muitos defendem o consumo sustentável. Nos Estados Unidos daAmérica é comum as famílias serem proprietárias de grandes carros, deteremgrandescasas.Grandescarrosparacarregarassuasfamílias,grandescasas para o conforto de suas famílias. Os americanos não devem estarpreocupados com a fome na África ou com a exploração de crianças,mulheresehomens,nomomentoemqueseguemparaostemplosmodernosdo consumo (Shopping Center) realizar seus desejos de compras, idealizaraquelesentimentoemtrocadeumfetichenumamercadoria.Osbrasileirosestão caminhando, a passos amplos, para esse estilo de consumismoamericano. Existe consumo sustentável? Os americanos são os maioresexemplos de alienação no mundo capitalista, é a sociedade modelo docapitalismo.Consumirparaeleséumdireito,éumaxioma,éumestilodevida,éumprincípiobásico,éapráticadaliberdade.

Mas voltamos ao consumo sustentável no Brasil. André Trigueiro,jornalista,entrevistouHélioMattar,diretor-presidentedoInstitutoAkatuemdezembro de 2004, sendo que tal entrevista foi publicada em 2011. HélioMattardiscorre:

Nósvivemosumasituaçãodeenormegravidadeseconsiderarmosque,nomodeloatualdeconsumoedeprodução,jáconsumimosmaisdoquea capacidade de renovação dos recursos naturais. Segundo o relatórioPlanetaVivo2010,daorganizaçãoWWF,ahumanidadeestáconsumindo50%amaisdoqueaTerraconseguerenovar.Emaisdoqueisso:setodaa população domundo consumisse em um padrãomédio entre o dosnorte-americanos e o dos europeus, seriam necessários os recursosnaturaisdemaisquatroplanetasTerrapara suprir todoesse consumo.(MATTAR,2004)

O diretor-presidente do Instituto Akatu, utiliza, em suas ponderações

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transcritas acima, 5 (cinco) vezes a expressão consumo (ou consumismo) eapenas 1 (uma) vez a palavra produção. Em que pese o conhecimento queumapessoaocupantedeumcargodessaenvergadurapossui,seudiscursoécontraditório, à luz dos conceitos aplicados neste trabalho. Se toda apopulaçãodomundoproduzissemercadoriascomoosamericanosproduzem,seriamnecessáriososrecursosnaturaisdemaisquatroplanetasparasuprirtodaessaprodução.Opontonevrálgicodaquestãodadegradaçãoambientaléaprodução,poisnestaéqueocorreefetivamenteoconsumoeageraçãoderesíduos.

Hélio Mattar (2004) aponta que o relatório Estado do Mundo 2010,publicado em português pelo Worldwatch Institute em parceria com oInstitutoAkatu,apresentaumaconcentraçãonomomentodoconsumo:500milhões de pessoas mais ricas do mundo (aproximadamente 7% dapopulação mundial) são responsáveis por 50% das emissões globais dedióxido de carbono, e do outro lado, os 3 milhões mais pobres sãoresponsáveisporapenas6%dessasemissões.Omesmorelatórioafirmaque16% da populaçãomundial são responsáveis por 78% do consumo total nomundo.Narealidadetodaessaemissãodedióxidodecarbonoérealizadanomomentodaprodução,nomomentodoconsumoessegásjáestádispersonaatmosfera.

O presidente do Instituto Akatu (Instituto criado em 15 demarço de2001, que possui como objetivos a mobilização das pessoas em torno doconsumo consciente), continua a entrevista dizendo que a questãofundamentaléqueoconsumidorraramenterefleteantesdoatodoconsumo.“Compraporimpulso”.EmoutrotrechodaentrevistaHélioMattar(2004)dizqueéprecisoconsumir,queoconsumoévida.Paraeleofundamentaléqueexista uma reflexão nesse ato de consumo, levando em consideração suasconsequênciasemrelaçãoaomeioambiente,aeconomia,asociedadeeaosprópriosindivíduos.

OInstitutoAkatufocanaeducaçãoambientalcomosucedâneoparaaresolução das questões ambientais. A educação ambiental é sempremuitobem vinda, nesse caso para pessoas de todas as classes sociais, pois todosconsomem.Aeducaçãoambientaldespertaráosensocríticonoconsumidorno momento do consumo, assim ele pensará se é melhor consumir umpacote de bolachas commúltiplas embalagens ou consumir um pacote debolachasdeumaembalagemapenas;observaráseéomomentodetrocarocelularporummaisnovoouseocelularquepossuiaindapodelheserútilpormaisumtempo;argumentarácomseufilhoqueémelhorelecontinuar

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comovídeogameantigo,poiseleaindaestáemcondiçõesdeuso,apesardejáexistiremmodelosmaismodernosnomercado;analisarájuntamentecomsuafilhaqueaquelabonecahátantotempodesejadaporelaéproduzidaemummercadoqueexploraamãodeobrainfantileassimémelhoradquirirabonecacomoselodaABRINQ.(MATTAR,2004)

No entanto, de qualquer forma, o produto, a mercadoria já estáproduzida. A degradação ambiental ocorrena produção, pois énela quehárealmenteoconsumodasmatériasprimas,dosinsumos,eaefetivageraçãode toda a forma de poluição possível, seja a poluição das águas, do ar, daterra,ouapoluiçãosonora,enfim,aefetivadegradaçãoambientalocorrenaprodução,oconsumoéumatofinaldacadeiaprodutiva.

Mas o consumo consciente pregado em nossa sociedade é capaz degarantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as futurasgerações? Ou os empresários continuarão a investir em aumento daprodutividade, investimentos cada vez maiores em marketing epropagandas, estimulando a continuidade do consumo? Não podemosesquecer que uma das bandeiras atuais das corporações industriais-capitalistas é a sustentabilidade, é passar para o consumidor que elas sãoempresas engajadas nos assuntos ambientais, são empresas verdes, sãoecoeficientes,sãoecologicamenteviáveis,sãoportadoraseseguidorasdoISO14.000(quetratadasregrasparaaproduçãosustentável),masemnenhummomentoascorporaçõesfalamemdiminuirprodutividadeouprodução.Aocontrário, para as empresas omote é desenvolvimento sustentável. Se háprodução, se há geração de necessidades, há consumo, mesmo que for“consciente”.

Emprimeirodemaiode2002,oentãoPresidentedaRepúblicadeCuba,noatoemcomemoraçãopeloDiaInternacionaldoTrabalhador,emdiscursorealizado na Praça da Revolução, fez referência ao poder da publicidadecomercial,vejamos:

Pessoasanalfabetas,oucujosconhecimentoschegamapenasà terceiraou quarta série, ou que vivem em estado de pobreza, ou de pobrezaextrema, ou que não têm emprego, ou vivem em bairros marginais,onde estão presentes as mais inconcebíveis condições de vida, ouperambulam pelas ruas e recebem o veneno constante da publicidadecomercial,semeandosonhos,ilusõesedesejosdeconsumoimpossíveis,asquaissomamenormesmassasdecidadãosemlutadesesperadapelavida, e cujas organizações são reprimidas ou não existem, podem servítimas de todo tipo de abusos, chantagens, pressões e enganos, e

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dificilmente podem ter condições de compreender os complexosproblemas do mundo e da sociedade em que vivem. Não estão emcondições reaisde exercerademocracia,nemdedecidir qual é omaishonesto ou omais demagógico e hipócrita dos candidatos, emmeio aum dilúvio de propagandas e mentiras, onde os que possuem maisrecursossãoosqueespalhammaisenganosementiras.(CASTRO,2002)

Fidel Castro (2002) lança uma frase com efeito ao afirmar, em seudiscurso, que as pessoas recebem o veneno constante da publicidadecomercial e que referida propaganda espalha sonhos, ilusões e ânsias deconsumo impossíveis. Emuma sociedade capitalista, como por exemplo, adosEstadosUnidos,ossonhosedesejosdeconsumonãosãotãoimpossíveisassim.Aindaqueotrabalhador-consumidornãotenhasaláriosuficienteparaatender nem mesmo suas necessidades básicas, o sistema capitalistaempresta-lhe o crédito para que este realize todos os seus sonhos deconsumo.

Como crítico e observador do sistema capitalista, Castro (2002)continuacomseudiscursoaguçado:

Não pode haver nenhuma liberdade de expressão onde os principais emais eficazes meios de comunicação constituem um monopólioexclusivo em mãos dos setores mais privilegiados e ricos, inimigosjurados de qualquer tipo de mudança econômica, política e social. Ousufrutodasriquezas,daeducação,dosconhecimentosedaculturaficaemmãosdosque,constituindoapenasumaínfimapartedapopulação,recebemamaiorpartedosbensproduzidospelopaís.NãoécasualqueaAmérica Latina seja a região domundo onde existe amaior diferençaentre os mais ricos e os mais pobres. Que democracia e que direitoshumanospodemexistir,nessascondições?SeriacomocultivarfloresemplenodesertodoSaara.(CASTRO,2002)

A concentração de renda e riqueza que ocorre nomodo de produçãocapitalista é outro ponto quemerece destaque. Como podemos conceber eaceitarumsistemadeproduçãoeconsumoque,aguisadeexplorarmuitosseres humanos, torna outros poucos milionários? Mesmo que Karl Marx(1978), e outros cientistas que vieram depois dele, já apontassem a forteexploraçãodostrabalhadoresnocapitalismo,pormeiodaextraçãodamaisvaliaaindaquetenhamosconsciênciadessaexploraçãoemarginalizaçãodeoutrapartedamassaqueo sistemamantém“sememprego”,aindaassimaceitamoscordialmenteomododeproduçãocapitalista.

LisaGunn(2002)entendequeaindahádificuldadesparaoconsumidor

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relacionar os problemas socioambientais aos nossos atuais modos deconsumo.Paraela“consumimosdeformaimpulsivae“seralguém”passaaestarassociadoàposseouusodedeterminadosprodutose serviços”.Gunnponderoubemessasafirmações, contudona finalizaçãode seuartigopecapeloromantismoemrelaçãoasoluçõespráticas,vejamos:

ACORDA,CONSUMIDOR!Apergunta fundamental quedevemos fazer emcadaatode compra é:precisamosrealmentedesseprodutoe/ouserviço?Énecessárioreagiraoconsumismodesenfreadoaqueasmensagenspublicitáriasqueremnosinduzir. Além de nos habituar a ler rótulos, etiquetas e embalagens,temos de prestar atenção não apenas no preço e na qualidade, mastambémquestionarquemproduziu,ondeproduziu,comofoiaprodução,ou seja, quais são os impactos sociais e ambientais associados àprodução e ao consumo. Precisamos desenvolver nossa capacidade deavaliarcriticamenteaspeçaspublicitáriasparaevitaramanipulaçãodenossa liberdade de escolha. É necessário expandir nosso olhar e ver oqueestáportrásdosprodutoseserviçosqueconsumimos.Apartirdaí,éprecisodeixardeconsumir.(GUNN,2002)

A produção cria os objetos que correspondem às necessidades. Aprodução é também imediatamente consumo, como Marx chama deconsumo produtivo (1978). O consumo é também imediatamente produção,chamadaporMarx (1978)deproduçãoconsumidora.Estaproduçãoanálogaaoconsumoéumasegundaproduçãooriundadoaniquilamentodoprodutodaprimeira,conformeosensinamentosdeMarx.Oprodutosomentesetornaprodutonaacepçãoprecisadotermonomomentodoconsumoetalconsumocriaanecessidadedeumanovaprodução.

O consumidor possui o direito de consumir. Tal direito somado aosvalorescapitalistasarraigadosnanossasociedadenitidamentecapitalista,eencobertos sob o véu do fetiche que amercadoria cria em uma sociedadeideologicamente estimulada, o ato do consumo torna-se algo inexorável,quasequeumdireitonaturaldequemnascenestasociedade.

“Aproduçãocriaoconsumidor”(MARX,1978).Otrabalhadorvaicomotempo se coisificando e as mercadorias são personificadas. A sociedadecontemporânea concede um valor supremo à mercadoria. Através dapropagandacria-sea falsapercepçãoqueoconsumotraza felicidadee fazcomqueoindivíduosinta-seintegradoàsociedade.Nãoéprecisoter,apenasaparentar ter. O ser, os valores que outrora foram celebrados foramsubstituídospelasensaçãodoter.

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Dessaformacomooconsumidorpodedeixardeconsumirseesteéoato inexorável que lhe resta nomodo de produção capitalista? Ler rótulos,observaratentamenteaembalagem,escolherumamercadoria commenorquantidade de embalagens, são atitudes constantes em um consumoconsciente, mas ainda assim é um consumo, pois mesmo que sejaconsciente,oconsumojáocorreunomomentodaprodução.Aproduçãogeraas necessidades, o consumo da mercadoria é o ato derradeiro do ciclo deproduçãocapitalista,éoquerestaaoconsumidorfazer.

O filme “A Corporação” (2003) traz um relato histórico da evoluçãodessas grandes empresas transnacionais, de seu tímido surgimento até asmegacorporações existentes atualmente. O filme desvela a verdadeira facedas corporações: exploração de mão de obra, desrespeito à vida humana,desrespeito ao meio ambiente, manipulação de informações, estratégiaspara alienar e domesticar o consumidor, busca incessante por maioreslucros,etc.(ACorporação,2003).

Ofilmeapresentaumperfilpsicológicodascorporações.Segundoseusidealizadoresas corporações causam,diretaou indiretamente, prejuízosaotrabalhador, ao meio ambiente, à própria sociedade. As corporações nãorespeitamosdireitosbásicosdos trabalhadores, explorammãodeobra empaísessubdesenvolvidosouempaísescomexcessodemãodeobra(exemplopaíses da América Central e a China); as corporações apropriam-se dosrecursosnaturaisparaobter lucro e lançamnaatmosfera enos rioso quesobradoprocessodeprodução(entropia=poluição);ascorporações,pormeiodepropagandastelevisivas,merchandising,alienameiludemoconsumidor,tornando-o um ser passivo, “mais um tijolo no muro”, transformando oconsumidor em uma fera consumista, aquele que busca a felicidade nacompradeumamercadoria.

Masque tipodepessoaéumacorporação?Nãoéumapessoa física,apesardecontarcommuitosdireitosdapessoahumana,nãoéumconjuntodepessoas,apesardeseradministradaporumgrupodeexecutivos,entãoéuma pessoa jurídica. Chomsky, no filme “As Corporações” pondera que ascorporações possuem o direito de pessoas imortais, são pessoas especiais,não possuem consciência moral. Preocupam-se apenas com os acionistas,com a obtenção de lucros, não sentem remorso pelas atitudes que tomampara alcançar os maiores ganhos. Chomsky traça um paralelo entre aatuaçãodacorporaçãonosentidoestritodeseuobjetivo(lucros)enarelaçãocomaspessoas:

Aoolharumacorporação,comoaoolharumdonodeescravosvocêquer

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diferenciar a instituição do indivíduo. Escravidão e outras formas detiraniassãomonstruosas,masosparticipantesdelaspodemserpessoasmuitoboas.Benevolentes,cordiais,carinhosascomosfilhos,atécomosescravos, importando-se com as pessoas. Como indivíduos, podem serqualquer coisa. Em seu papel institucional são monstros, porque ainstituiçãoémonstruosa.(CHOMSKY,“ACorporação”,2003)

Chomsky (2003) se debruça sobre essa questão, qual sejam, mesmotendo a frente de sua gestão pessoas de índole inatacável, respeitadas erespeitosas, as corporações na sua essência causam o mal. Não porquequerem,mas porque o sistema de produção capitalista possui uma classedominantequeapropria-sedamaisvaliaparaseudeleiteedooutroladoosque produzem a mais valia apenas sobrevivem na sociedade. Não seráexagero de Chomsky dizer que as corporações são monstros, são como“Godizilas”?

Nãoéexagero.Paraissocitamosumexemplodofilmeemcomento:nofatídicodia11desetembrode2001osEstadosUnidossofreramumasériedeataques suicidas de terroristas que destruíram as torres do edifícioWorldTrade Center emNova Iorque, o que resultou emmilhares de americanosmortos,trouxemedoeterroraopovoamericano.Qualfoiaprimeirareaçãoda bolsa de valores de Nova Iorque (um dos baluartes do capitalismoamericano)? A primeira reação foi: “Meu Deus, o preço do ouro deve terexplodido!” Quem investiu em ouro conseguiu dobrar seus investimentos emuitosficaramfelizescomisso.Lucro.Mortes.Pavor.Devastação.Desespero.Terror.Mas lucro. “Na devastaçãohá oportunidade”, disse o investidor queparticipoudofilme.(ACorporação,2003)

O ideal para as corporações seria o consumidor e sua TV. A classedominanteédetentoradosmeiosdeproduçãoedosmeiosdecomunicação,assim ela pode domesticar e alienar a classe dominada sem maioresesforços.Pormeiodaspropagandasoconsumidorélevadoacompraraquiloquenãodeseja,éumtipodeestelionatonamentedoconsumidor,queolevaa pensar de uma forma que não pensaria se fosse livre dessas formas dealienaçãoproporcionadaspelatelevisão.AcercadasvicissitudesatribuídasaoassuntoChomskydiscorre:

Ametadacorporaçãoémaximizarolucro,eaparticipaçãonomercado.Ela tem um objetivo para sua meta: A população. Ela precisa sertransformada em consumidores inconscientes, de produtos que nãodesejam. É preciso desenvolver desejos. Então é preciso criar desejos.Impor uma filosofia da futilidade. Volta a atenção das pessoas para

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aspectos fúteis da vida, como o consumo de modismos. Estou citandoliteratura de negócios. E faz sentido. O ideal é ter indivíduosdesassociadosentresi.Cujaconcepçãodesimesmos,osensodevalor,éa quantidade de desejos que conseguem satisfazer. Temos grandessetoresdaeconomia, relaçõespúblicas,propaganda,quesedestinamaencaixar as pessoas no padrão desejado. (CHOMSKY, “A Corporação”,2003)

Assim, nessa doutrinação dos consumidores, a televisão é a grandealiadadaclassedominante.Énotíciaoqueasgrandescorporaçõesdamídiadizemqueénotícia.Asnotíciasadquiremumcaráterdeinformar,depassaradianteoqueinteressaaosgruposqueestãonocontrole.Amídia,controladaporgrandescorporaçõescapitalistas,eacobertadapelodireitoàliberdadedeexpressão, manipula, controla, aliena, e cria consumidores despidos deformação crítica. As propagandas de mercadorias e serviços também seprestam nesse processo de doutrinação, e por meio da superexposição devalores(carinho,afeto,cuidado,amor)engendrasuaideologiaconsumista.

Nodia20deoutubrode2012amaiorrededeTVabertadoBrasil,emseu programa chamado Globo Cidadania, exibiu uma reportagem sobre“economiaverde”.Frise-sequeareportageméapresentadaporumatordareferidaemissora(issodemonstrapartedamanipulaçãodareportagem).Noinicio da reportagem o ator faz uma pergunta para os tele-expectadores,indagando-os se é possível sermos sustentáveis sem afetar a economia. Apreocupaçãodareportagem,doprograma,queapenasrefleteapreocupaçãodosanunciantesedosexecutivosdaemissora,émantermosaeconomiaemcrescimentoesepossívelirdosandoasferramentasemétodossustentáveis.

Nareportagemoator-apresentadorvisitaumlocalondepessoasestãorealizando a separação do lixo, buscando preparar materiais para areciclagem. A reportagem, por meio de um professor, define “economiaverde” como capital natural + energia e eficiência de recursos. Oapresentador pergunta: “como investir na economia verde sem afetar aeconomia?”Aindanodecorrerdoprogramaoutro“especialistanoassunto”éouvido e frisa que a adoção de práticas de produção sustentáveis significaoportunidade de novos negócios. A reportagem, que deveria falar sobreformas concretas de desenvolvimento sustentável, por meio de conceitosmanipuladosporumaóticaideológico-capitalista,doutrinaotele-expectadoràluzdosinteressesdaclassedominante.

Outra situação que demonstra o sucesso da alienação decorrente dobinômiopessoa-televisãoocorreunodia19deoutubrode2012,diadaexibição

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doúltimo capítulo da telenovela exibidanohorário das 20h00, a chamada“novela das oito”, de nome Avenida Brasil. Alguns institutos deacompanhamento de audiência apontaram que em certos horários deexibição da referida telenovela, 80% das televisões estavam ligadas nesteúltimocapítulo.Abaixotranscrevemosuma,dasmuitas,reportagemsobreo“sucesso”datelenovela:

“AvenidaBrasil”:80%dasTVsficamligadasnoúltimocapítulo.Atramaque teve grande repercussão durante toda a sua exibição também foibemno Ibope. O último capítulo danovelamarcou 51 pontos demédiacompicode54.(...).Anovelacomeçouas21h10ejátinham40pontosdeaudiência. Anteriormente o "Jornal Nacional" marcava 37 pontos. (...)Apesardograndesucesso,o folhetimdeJoãoEmanuelCarneironãofoirecorde de audiência se comparado com o capítulo final das últimasnovelas."Avenida"foisuperiora“FinaEstampa”(2011),com46pontosdemédia e pico de 50, “Insensato Coração” (2011) - teve 47 pontos e 50 depico -, e “Viver a Vida” (2009) - 46 pontos de média e 52 de pico. Noentanto,foiinferiora"Passione"(2010),com52pontosdemédiaepicode58e“CaminhodasÍndias”(2009),queobteveimpressionantes54pontosdemédia e pico de 59. A autora de "Caminho das Índias", Glória Perez,queestaráàfrentedapróximatramadas21h,“SalveJorge”,éacampeãde audiência dos últimos tempos, (...) sua novela “América”, de 2005,marcou 66 pontos de média e pico de 70 e atingiu um dos maioresnúmerosdeaudiênciadatelevisãobrasileiranosúltimosanos.(extraídodo site http://gente.ig.com.br/tvenovela/2012-10-20/avenida-brasil-80-das-tvs-estavam-ligadas-no-ultimo-capitulo.html,nodia20/10/2012)

Todaessaconcentraçãodepessoas(consumidores)emumúnicocanaleemumlapsotemporaldefinidoémuitointeressanteparaomarketingdasgrandes empresas. Uma propaganda articulada, combinando cultura eideologia, no bojo dos intervalos dessas telenovelas é capaz de captar umainfinidade de consumidores para determinada mercadoria ou serviço. Aalienação provocada por essas telenovelas já é grande, pois seus autoresconfundemostele-expectadores,combinandofatosqueocorremnocotidianodas pessoas com fatos deslumbrantes. Por exemplo, o menino pobre quemora no lixão e fica milionário jogando bola; a menina pobre que foiabandonadapelamãeequesetornamodelodesucessointernacional.

Dessa forma, as empresas aproveitam-se desse público pré-selecionadopelastelenovelas(públicoextremamentefiel,igualaoshomenscomos jogos de futebol), frise-se já alienadopelas cenas reais-imaginárias

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tramadas na novela, e as envolve em propagandas de mercadorias,comerciais elaborados com grande talento dos publicitários. O resultado sópode ser um: incremento na venda de seus produtos ou sucesso nolançamentodealgumnovoprodutodamarca.

Enquanto isso, a tendência dos atores da sociedade contemporânea(empresários da indústria, empresários das telecomunicações, pormeio demanipulações de informações) em enfatizar o consumo consciente écrescente.Dessa forma,a culpaparaadegradaçãoambiental recaiapenasnoconsumidor.Éoconsumidorquemadquireamercadoria,elesacramenteo atofinaldociclodeprodução-oconsumo-eassimfazociclorecomeçar.Essaéavisãoenfatizadapeloscapitalistas,quenãoassumemseraProduçãoo verdadeiroimpulsionadordetodoosistemacapitalistaeresponsávelpeladegradaçãoambiental.

Comoilustraçãodesseprocessodemanipulaçãorealizadapelosmeiosde comunicação, processo este que ocorre paulatinamente, de forma sutil,emmatériasjornalísticasdespretensiosas,masquesãocarregadasdeumaforte carga ideológica, trazemos à tonaumamatéria jornalística veiculadapeloJornalHoje(queajornalistaâncorainsisteemchamardeJH)dodia20demaio de 2013. Críticasnos podem ser desferidas,masnão podemosnosesquecerdequeahistóriaéescritanasociedade,edessaformaocotidianoemqueaspessoasestãoinseridasdeveserobjetodeanálise.

Referida matéria jornalística é intitulada: “Comprar apenas pornecessidadeésegredoparafazereconomia”.Osapresentadoresdotelejornaliniciam com a pergunta: “Você compra por desejo ou por necessidade?”. Econtinuam dizendo que, segundo os especialistas, o segredo para “sair dovermelho” é resistir ao supérfluo. Em seguida a matéria exibe diversaspessoas emambientesde consumo (ShoppingCenter, Lojas), queassumemque compram por vontade (desejo), mas justificando essa vontade comonecessidade.Arepórterdecampoconfundeaindamaisostelespectadoresaochamaraatençãoparaaspromoçõesdoslojistaseasemoçõeshumanasnomomentodoconsumo.

Amatéria passa a sensação de ser uma lição para os consumidoresaprenderemaconsumireassimadministraremmelhorseuorçamento.Porfimapresentaumaconsumidoraexemplar,navisãodeles,quegastaapenas90%deseusalárioemcomprasedespesas,orestanteelaeconomiza.Masaconsumaçãodareportagemapresentatodoovéuideológicoqueapermeia.Areferida consumidora exemplar ensinou à sua filha a importância deeconomizar,degastarsomentecomonecessário.Eoquea filhafezcomo

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dinheiroeconomizado?Comprouumabonecamaissofisticada,umobjetodedesejodacriança,conformeaprópriareportagemenfatizou.

Nesse sentido, criam-se institutos especializados em consumoconsciente. A produção consciente e adaptada às reais necessidades daspessoas, respeitando os recursos naturais e prescindindo da degradaçãoambiental no processo produtivo, não é tema ventilado nas indústrias etampouconamídia.Narealidade,apalavradeordeméoutra:produtividade,quebraderecordesdeprodução,produzirmaisemelhoremmenostempoecolocandoamercadoriaàdisposiçãodoconsumidornomomentoemqueele“necessita”.Esseéomotedasindústrias.

Para dar um aspecto de respeito ao meio ambiente, essas mesmasempresas investemna sua imagemde empresa sustentável, revestindo-sede uma película “verde” que as insere no seleto rol de empresasambientalmenteprodutivas.Masoqueocorreefetivamentenaproduçãoéacontinuidade na utilização indiscriminada dos recursos naturais,culminandoemdegradaçõesambientaiseprejuízossocioambientaisparaaspróximasefuturasgerações.

Nosso trabalho não poderia deixar de citar as estratégias depropaganda e marketing de uma empresa centenária e talvez uma dascorporações mais poderosas do mundo, a Coca-Cola. Como uma empresapodesemanterativaeconquistandoconsumidoresao longodedécadasdeexistência?Asgeraçõesmudam,aspessoasdecadageraçãopossuemdesejosecaracterísticaspróprias,inclusiveaalimentaçãoeabebidapodemmudarconformeageração.MasaCoca-Colamantém-senotopo.

Durante décadas a Coca-Colamanteve vivo o jingle “Coca-Cola É IssoAí”.Emsuaspropagandas,pessoasdetodasasetnias,belosrapazesemoças,crianças felizes,pessoasdemais idadebemresolvidas, eramapresentadas“matando”suasedecomoreferidorefrigerante.

Em uma demonstração de inovação, corroborando o talento de seuspublicitários, em 2012 a Coca-Cola lançou em algumas partes domundo omote comercial: “Sharing Can” ou “partilhar pode”, em propagandas queidealizaram o slogan: “Share Happiness” ou simplesmente compartilhe afelicidade! Ao mesmo tempo em que as propagandas começam a serdivulgadasnaInternet,osestabelecimentoscomerciais(bares,restaurantes,máquinas, vendas, supermercados, hipermercados) começam acomercializaranovalatinhadaCoca-Cola:umalataquesedivideaomeioeassim forma duas latinhas que podem ser consumidas por duas pessoas.Mas não é simplesmente dividir sua Coca-Cola com outra pessoa, émuito

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maisque isso,édividira felicidadecomoutrapessoa.Pelomenosessaéamensagem que podemos extrair com base em suas próprias propagandas,que apelam para o consumidor no sentido de ser a Coca-Cola não umrefrigerante, e muito mais que uma bebida, ou seja, a própria felicidade(Estadão,2013).

Nesseponto,vamosconcluirocapítulofazendoreferênciaaumnovoconceito para as Ciências Sociais, articulado por Slavoj Zizek: o conceito deparalaxe. O dicionário on line Michaelis define paralaxe como o“deslocamento aparente de um objeto, quando se muda o ponto deobservação”.O filósofoeslovenoSlavojZizek,emsuaobramáxima“AVisãoemParalaxe” (2008), empreende, entre outras discussões, uma reabilitaçãodo materialismo dialético. Em nosso trabalho utilizaremos, ainda que demaneiranãotãoprofunda,oconceitodeparalaxepropostoporZizek,comoumaformadeobservarpor“ângulosdiversos”umadiscussãopropostanessemomento.

A poderosa empresa Johnson & Johnson lançou uma campanhapublicitária,aproveitandooclima“festivo”daCopadasConfederações2013eda Copa do Mundo 2014, que permeia a mídia nacional e repercute naspessoas, na qual é enfatizado e consagrado como um tesouro nacional o“jeitinhobrasileiro”.Vamosaalgunsdetalhesdeumadessaspropagandas:ocomercial tem início com o locutor narrando “Johnson & Johnsoncomemoram o jeitinho brasileiro”. Na sequencia são apresentadas rápidascenasdonossocotidiano,taiscomolindascriançassorridentescorrendopelaalegre casa dos pais; casaismuito felizes e emabraços apertadosno sofá;criançasnabanheiratomandobanhoebrincandonaáguamuitocontentes,seu pai com um sorriso no rosto contemplando a beleza da infância erecebendo um gostoso carinhona barba, feito por uma de suas filhas; umbebêmuitosorridenteengatinhandofelizpelacasaesendoseguidopelasuamãe,quetambémengatinhasobovistosotapetedacasadafamília;médicoepacienteconversando,asensaçãoéqueomédicotransmiteboasnotícias,pelossorrisosdefelicidadeestampadosnorostodopaciente,logoapósháumclosenoapertodemãosdemédicoepaciente,comoqueselandoarelaçãodeconfiança;mãeajustandoas fitaspresasaocabelodesua linda filha, fitasdascoresdabandeiranacional,mãeefilhasãonegras,oquereforçaostatusdaJohnsoncomoumaempresasocialmenteengajadanasquestõesraciais.

Essapropagandapossuiumamúsicadepanode fundo, “vai, vai pormim,balançodeamoréassim,mãozinhascommãozinhaspralá,beijinhoscombeijinhospracá... sóvainessebalançoquemtemcarinhoparadar...”.

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Nascenasfinaisumamulherdizafrase“Ojeitinhobrasileiroéocarinho”eonarradorterminadizendo:“Carinho,esseéonossojeitinho”.Dessaforma,areferida empresa transnacional elege o jeitinho brasileiro como uma denossas bandeiras, como se o povo brasileiro fosse o mais acolhedor domundo,querecebeseusturistasestrangeirosdebraçosabertosedistribuindoabraços, comoseumturistavindodosEstadosUnidos,daAlemanhaoudeGuiné-Bissau fosse recebido da mesma forma, como se, em nosso país aaparentecapacidadeeconômicanãofossemotivoparadiscriminações.

NessareflexãopertinentetrazeràtonaaspalavrasdeMarilenaChauí(2013) quando discorre sobre o autoritarismo social presente em nossasociedade. Marilena discorre sobre o poderoso mito da “não violênciabrasileira”,a imagemde “umpovogeneroso,alegre, sensual, solidário,quedesconhece o racismo, omachismo, o sexismo, que respeita as diferençasétnicas, religiosas e políticas, um povo que não discrimina as pessoas porsuasescolhassexuais,equenãodiscriminaaspessoaspelasuaposiçãodeclasse”. Esse mito, guardadas as devidas proporções, autentica o “jeitinhobrasileiro”, como quer a Johnson & Johnson, em uma sociedade quetransbordacarinhoemsuasrelaçõesíntimas,pessoaisesociais,masqueemum olhar paraláctico, à luz das análises de Chauí, nos remete a umasociedade nem tão generosa assim, uma sociedade extremamenteindividualista,queseparaecondenaaspessoasporsua“classesocial”(seéque é possível dividir as pessoas por sua condição econômica), que aindasegregapessoaspelacordapele,umasociedadeemqueo“ter”,opossuir,émais importante do que o “ser”, uma sociedademoldada de acordo com ointeresse da classe dominante, dos “poderosos”, que utilizam os meios decomunicação,amídia,atelevisãoparamanteraspessoas“domesticadas”.

Uma sociedade que atende aos interesses do capital, voltada aoconsumismo,sejadosprodutosdaJohnson,sejadosmegaeventosesportivosque estão chegando ao nosso país, ou consumindo nossas tendenciosasreportagensmostradaspornossosnadaisentostelejornais.

Dessa forma, o aumento da produção é questão de ordem nasempresas,sejapeloaumentodaprodutividadedeprodutosjáconsagradosoupelaproduçãoconstantedenovosprodutos.Oconsumidorécontornadoporuma quantidade cada vez maior de produtos, que as propagandas dizemserem essenciais, necessários. O consumo das mercadorias, realizado demodoconsciente,écapazdefrearadevastaçãoambientalquesealastrouaoredordomundo?

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