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1203 Da Ordem Econômica e da Ordem Social CAPÍTULO 21 DA ORDEM ECONÔMICA E DA ORDEM SOCIAL Sumário: 1. O Conceito de “Ordem” – 2. A Ordem Econômica: 2.1. A Ordem Econô- mica e a Constituição Econômica; 2.2. A Ordem Econômica na Constituição brasileira de 1988; 2.3. Princípios da Ordem Econômica: 2.3.1. Função Social da Propriedade Urbana/Rural; 2.3.2. Livre Concorrência; 2.3.3. Defesa do Consumidor; 2.4. A Políti- ca Urbana: 2.4.1. Desapropriação por descumprimento da função social da proprie- dade urbana; 2.5. A Política Agrícola e Fundiária: 2.5.1. Desapropriação para fins de Reforma Agrária – 3. A Ordem Social: 3.1. A Seguridade Social: 3.1.1. Saúde; 3.1.2. Previdência Social; 3.1.3. Assistência Social; 3.2. A Educação, a Cultura e o Desporto; 3.3. A Ciência e Tecnologia; 3.4. A Comunicação Social; 3.5. O Meio Ambiente; 3.6. A Família, a Criança, o Adolescente, o Jovem e o Idoso; 3.7. Os Índios. 1. O CONCEITO DE “ORDEM” A escolha da terminologia “ordem” por parte do Constituinte de 1988 visa designar uma estrutura organizada, uma seleção de elementos integrantes de um conjunto que se destina a uma finalidade específica. 1 Por isso mesmo, se por um lado é possível vislumbrar num primeiro momento uma preocupação com a com- patibilidade dos elementos formadores (de caráter estático), em outro, posterior- mente, destaca-se um caráter dinâmico, voltado para a persecução dos objetivos (metas) fixados. Por isso mesmo, mais que coerência, a noção de ordem trazida pela Constituição se mostra como um projeto – um lançar-se ao futuro – na busca por uma sempre constante melhoria e progressão. 2. A ORDEM ECONÔMICA A partir das reflexões acima trazidas, fica fácil compreender a Ordem Eco- nômica como sendo, portanto, um “conjunto de elementos compatíveis entre si, ordenadores da vida econômica de um Estado, direcionados a um fim”. 2 Mas qual seria tal fim? Segundo a própria Constituição de 1988, a garantia da vida digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170). Mas aqui cabe um alerta, pois tal finalidade não é uma tarefa fácil se levarmos em conta todo o processo de avanço do capitalismo e do individualismo nas sociedades contempo- râneas. Por isso mesmo, tal fim é, antes de mais nada, dependente de um plano de distribuição de riquezas. Para tanto, a Constituição vem munida de normas que 1. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.057. 2. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de Direito Constitucional, p. 1.057.

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Da Ordem Econômica e da Ordem Social

Capítulo 21

Da OrDem ecOnômica e Da OrDem SOcial

Sumário: 1. O Conceito de “Ordem” – 2. A Ordem Econômica: 2.1. A Ordem Econô-mica e a Constituição Econômica; 2.2. A Ordem Econômica na Constituição brasileira de 1988; 2.3. Princípios da Ordem Econômica: 2.3.1. Função Social da Propriedade Urbana/Rural; 2.3.2. Livre Concorrência; 2.3.3. Defesa do Consumidor; 2.4. A Políti-ca Urbana: 2.4.1. Desapropriação por descumprimento da função social da proprie-dade urbana; 2.5. A Política Agrícola e Fundiária: 2.5.1. Desapropriação para fins de Reforma Agrária – 3. A Ordem Social: 3.1. A Seguridade Social: 3.1.1. Saúde; 3.1.2. Previdência Social; 3.1.3. Assistência Social; 3.2. A Educação, a Cultura e o Desporto; 3.3. A Ciência e Tecnologia; 3.4. A Comunicação Social; 3.5. O Meio Ambiente; 3.6. A Família, a Criança, o Adolescente, o Jovem e o Idoso; 3.7. Os Índios.

1. o ConCeito de “ordem”A escolha da terminologia “ordem” por parte do Constituinte de 1988 visa

designar uma estrutura organizada, uma seleção de elementos integrantes de um conjunto que se destina a uma finalidade específica.1 Por isso mesmo, se por um lado é possível vislumbrar num primeiro momento uma preocupação com a com-patibilidade dos elementos formadores (de caráter estático), em outro, posterior-mente, destaca-se um caráter dinâmico, voltado para a persecução dos objetivos (metas) fixados. Por isso mesmo, mais que coerência, a noção de ordem trazida pela Constituição se mostra como um projeto – um lançar-se ao futuro – na busca por uma sempre constante melhoria e progressão.

2. a ordem eConômiCaA partir das reflexões acima trazidas, fica fácil compreender a Ordem Eco-

nômica como sendo, portanto, um “conjunto de elementos compatíveis entre si, ordenadores da vida econômica de um Estado, direcionados a um fim”.2

Mas qual seria tal fim? Segundo a própria Constituição de 1988, a garantia da vida digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170). Mas aqui cabe um alerta, pois tal finalidade não é uma tarefa fácil se levarmos em conta todo o processo de avanço do capitalismo e do individualismo nas sociedades contempo-râneas. Por isso mesmo, tal fim é, antes de mais nada, dependente de um plano de distribuição de riquezas. Para tanto, a Constituição vem munida de normas que

1. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.057.2. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de Direito Constitucional, p. 1.057.

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podem viabilizar tal objetivo, com destaque para os direitos sociais, já estudos por nós anteriormente.

Importante a observação de Vital Moreira,3 para quem a noção de Ordem Eco-nômica traz um duplo sentido: se por um lado designa o conjunto de normas que estruturam e determinam as relações econômicas, estabelecem diretivos que atuam no plano do dever-ser (no alemão, solen); por outro, a mesma expressão é utilizada para designar um conjunto de práticas econômicas concretas, e, portanto, ligadas ao plano do ser (no alemão, sein).

Dentro da história do constitucionalismo, José Afonso da Silva4 destaca que a matéria adquiriu relevância jurídico-constitucional a partir de 1917, quando as Constituições dos Estados passaram a disciplinar o tema. No Brasil, o primeiro tex-to constitucional a dispor sobre a Ordem Econômica foi a Constituição de 1934, sob fortes influências da Constituição alemã de Weimar. Importante, ainda, aclarar que isso não pode ser confundido como um início de “socialização”, já que em momento algum se perdeu de vista o fato de que a ordem jurídica brasileira era emi-nentemente capitalista (apoiada na propriedade privada dos meios de produção).

2.1. a ordem econômica e a Constituição econômica

Uma vez que as Constituições, a partir da década de 1917, passaram a trazer em seus textos normas sobre direitos sociais e econômicos, gradativamente, tal dis-ciplina, passou a fixar contornos mais amplos, demonstrando uma normatividade da questão (econômica) que não se encontrava restrita ao âmbito do direito públi-co, mas que caminhava para a ordenação de relações de natureza privada.5 Após a crise econômica de 1929, com mais afinco se buscou normas constitucionais para regulação das relações econômicas.

Assim, passou-se a falar em uma Constituição Econômica e de um direito pú-blico de natureza econômica, a fim de sistematizar tal ordem e dar-lhe estabilidade.6

Os estudiosos passaram, então, a referir-se à Constituição Econômica como sendo um “conjunto de normas constitucionais que têm por objeto a disciplina jurídica do fato econômico e das relações principais dele decorrentes”;7 e, assim, não a confundir com a Constituição Política, mas sendo aquela uma parte desta e a esta

3. MOREIRA, Vital, A ordem jurídica do capitalismo, p. 67-71.4. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 786.5. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição

de 1988, p. 13-14; MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 1.288.6. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.058.7. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.058; MARINHO, Josaphat, Constituição

econômica, p. 4.

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submetida.8 Por isso mesmo, a Constituição Econômica não pode ser lida a parte dos princípios democráticos e nem dos princípios do Estado de Direito.

Importante, ainda, o lembrete de que as normas constitucionais sobre o tema não esgotam a disciplina, o que leva os autores a distinguirem a Constituição Econômica material – entendido aqui o núcleo essencial de normas que regem e disciplinam o sistema, fixando os princípios básicos das instituições de natureza econômica, estando, tais normas presentes ou não no texto constitucional – da Constituição Econômica formal – aqui como sendo exclusivamente as normas que integram o texto constitucional sobre o tema.9

Gilberto Bercovici10 lembra que as determinações da Constituição Econômica se enquadram no rol definido pelas normas programáticas (ou, como quer Cano-tilho, dirigentes), já que traça para o Estado um conjunto de tarefas e de políticas a serem realizadas a fim de que certos objetivos sejam alcançados.

2.2. a ordem econômica na Constituição brasileira de 1988

Mesmo que a Ordem Econômica brasileira seja fundada na liberdade de inicia-tiva econômica, garantindo o direito de propriedade privada dos meios de produção – típico dos modelos capitalistas –, a Constituição de 1988 institui diversos prin-cípios sob os quais se subordinam e limitam o processo econômico, a fim de que com isso, se possa direcioná-lo para a persecução do bem-estar de toda a sociedade, notadamente na melhoria da qualidade de vida.11

É por isso que podemos afirmar que a legitimidade de qualquer atividade econômica se condiciona à realização, principalmente, da dignidade humana (art. 170). Para tanto, conjuga um modelo capitalista a um perfil intervencionista de Estado, em três formas:• Direta:por meio do art. 173, como medida excepcional, o Estado poderá ex-

plorar determinada atividade econômica quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou quando referente a elevado interesse coletivo, a ser de-finido em lei. Assim, o Estado fará uso das empresas públicas e das sociedades de economia mista, como pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da

8. Para Vital Moreira (A ordem jurídica do capitalismo, p. 41), a Constituição Econômica é um “conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica; ou, de outro modo, aquelas nor-mas ou instituições jurídicas que, dentro de um determinado sistema e forma econômicos, que garan-tem e (ou) instauram, realizando uma determinada ordem econômica concreta”; no mesmo sentido CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.059.

9. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.060; SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 791.

10. BERCOVICI, Gilberto, Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 33-34.

11. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.063.

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Administração Pública indireta.12 Por força do art. 37, XIX, da CR/88, apenas lei específica poderá autorizar a instituição de uma empresa pública ou de uma sociedade de economia mista, ficando também subordinadas à autoriza-ção legislativa a criação de subsidiárias (art. 37, XX, da CR/88).

• Indireta: tomando por base o art. 174 da CR/88 e estabelecendo a regra geral. Aqui, o Estado não se assume como um agente econômico, mas sim como um agente normativo regulador da atividade.13 Logo, não poderá ser considerado um partícipe no jogo de mercado, mas sim um sujeito acima, que fixa as nor-mas para que o jogo seja jogado e fiscaliza sua observância.

• Monopólios:aqui, o texto constitucional impede o livre desenvolvimento de determinada atividade econômica fixando para o Estado sua exclusiva explora-ção. Diz o art. 177 da CR/88 que constituem monopólio da União: a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industria-lização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão

12. Conforme o Informativo nº 576 do STF na decisão da ADI nº 238/RJ em 24.02.2010: “O Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro para declarar a inconstitucionalidade do art. 42 e das expressões ‘empre-sas públicas, das sociedades de economia mista e’ contidas no art. 218, ambos dispositivos da Consti-tuição do referido Estado-membro [‘Art. 42 – Os empregados serão representados na proporção de 1/3 (um terço), nos conselhos de administração e fiscal das empresas públicas e sociedades de economia mista. [...] Art. 218 – Na direção executiva das empresas públicas, das sociedades de economia mista e fundações instituídas pelo poder público participarão, com 1/3 (um terço) de sua composição, repre-sentantes de seus servidores, eleitos por estes mediante voto direto e secreto, atendidas as exigências legais para o preenchimento dos referidos cargos.’]. Salientou-se, inicialmente, que, nos termos do art. 173, § 1º, IV, da CR, compete à lei estabelecer o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comerciali-zação de bens ou de prestação de serviços, compreendida a forma de constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários. Tendo isso em conta, entendeu-se haver parcial conflito entre os dispositivos impugnados e a norma federal de direi-to comercial destinada a estabelecer a estrutura das sociedades por ações (Lei 6.404/76). Explicou-se que, ao passo que a lei federal permite a participação dos empregados na administração da empresa, a Constituição estadual obrigaria as empresas públicas e as sociedades de economia mista à reserva de 1/3 das vagas dos Conselhos de Administração e Fiscal e da Diretoria para a mesma finalidade. Consi-derou-se, também, que o mencionado art. 218 implicaria, ainda, invasão à reserva de lei federal para dispor sobre a matéria, na medida em que estabeleceria forma de escolha de membros da diretoria inconciliável com aquela prevista na Lei 6.404/74. Relativamente às fundações, observou-se que elas, por serem instituídas pelo poder público, reger-se-iam por normas de direito administrativo e não comercial, razão pela qual, tratando-se de constituinte estadual, não haveria, quanto a sua previsão, inconstitucionalidade formal nem material.” (Rel. Min. Joaquim Barbosa).

13. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 806.

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ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas “b” e “c” do in-ciso XXIII, do caput, do art. 21, dessa Constituição Federal. Mesmo assim, há a possibilidade de contratação de empresas (estatais ou mesmo privadas) a realização de tais atividades (art. 177, § 1º).

2.3.PrincípiosdaOrdemEconômica

2.3.1. Função Social da Propriedade Urbana/Rural

O condicionamento do direito de propriedade ao atendimento social não é uma novidade da Carta de 1988, já sendo previsto desde a Constituição de 1934.

Importante lembrar o antigo conceito de “propriedade” de matriz liberal, como um direito incondicionado e absoluto, como elemento e expressão natural da vontade do indivíduo.14

Hoje, a leitura perdeu a carga individualista – e até mesmo egoística – graças à inclusão da ideia de função social, como parte integrante – para não dizer condição fundamental – do direito de propriedade.

Na tradição brasileira, desde o processo de colonização até o advento do Códi-go Civil de 1916, a propriedade recebeu uma leitura clássica liberal. A propriedade fundiária representou a base econômica e, por isso, era sinônimo de riqueza e poder político. Por isso mesmo, sendo a propriedade uma emanação das potencialidades subjetivas do indivíduo, não cogitava sua utilização submissa aos ditames sociais.

Com o advento do paradigma do Estado Social, a partir de 1918, constata-se uma relativização dos direitos privados, que passam a se subordinar à noção de função social. Por isso mesmo, é a partir daí que cresce e vai ganhando forças as ideias de que o bem-estar coletivo não pode mais ser compreendido como uma res-ponsabilidade exclusiva do Estado, cabendo a cada indivíduo sua parcela de com-prometimento e responsabilidade.15 Quebra-se, então, com a noção romanística de dominium (o direito a uma propriedade absoluta e ilimitada).

Os civilistas vão, portanto, afirmar a existência de uma “constitucionalização” (ou “publicização”) do Direito Civil, marcado principalmente pela “despatrimo-nialização” – isto é, a “repersonalização” através do resgate da dignidade da pessoa humana como elemento primordial de proteção em detrimento do patrimônio.16

14. BERCOVICI, Gilberto, Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 117.

15. BERCOVICI, Gilberto, Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 142.

16. Todavia, aqui se deve fazer menção ao alerta de Virgílio Afonso da Silva (A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares): a afirmação de uma “constitucio-nalização” do Direito Civil é na verdade equívoca, pois gera principalmente a absurda ideia de que só agora – e não outrora – o Direito Civil se submete à Constituição, contrariando a supremacia das normas constitucionais.

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Falar em função social, portanto, não pode ser confundido, nem mesmo redu-zido às diversas limitações negativas a que o direito de propriedade deve se subme-ter. Isso porque a função social está ligada à substância do direito de propriedade. Antes de tudo, registra-se que é uma alteração na mentalidade: o direito de pro-priedade perde o caráter absoluto e, com isso, sua razão de ser passa a estar ligada à utilização da propriedade em ditames de inspiração socialista.

É, portanto, elemento legitimador do próprio direito, sendo objeto intrínseco a este, e não algo externo. Por isso, é possível afirmar que propriedade é hoje um poder-dever que se volta tanto para o atendimento do interesse privado de seu titu-lar (privado) quanto ao interesse coletivo (público), devendo o uso da propriedade buscar o correto equilíbrio entre ambos.

2.3.2. Livre Concorrência

Como segundo princípio fundamental da Ordem Econômica, a proteção à li-vre concorrência se mostra fundamental, principalmente, devido à sua ligação com o princípio da livre iniciativa: enquanto este se liga a uma noção de liberdade polí-tica, o primeiro atua na possibilidade dos agentes econômicos poderem exercer sem embaraços jurídicos criados pelo Estado, dentro de determinado mercado, com fins à produção, à circulação e ao consumo de bens e serviços.17

Logo, mesmo que possam ser apontadas semelhanças entre ambos os prin-cípios, como faz Miguel Reale, há que se destacar que não se confundem, sendo complementares. Aqui, a livre iniciativa é posta como elemento de proteção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas, ao passo que a livre concorrência adquire um caráter instrumental, como princípio econômico propriamente dito, deixando a fixação dos preços das mercadorias e dos serviços fora – em regra – do controle e de atos cogentes das Autoridades Adminis-trativas, obedecendo-se assim à lógica da economia de mercado.18

Mas tal liberdade de mercado não pode ser nunca interpretada como mera-mente negativa, significando apenas a não intervenção do Estado na esfera eco-nômica. Ao contrário, esse mesmo princípio revela uma faceta positiva, exigindo sim do Estado a intervenção quando o abuso do poder econômico por parte de um agente ameace pôr em risco essa igualdade de liberdade, que é ofertada pela Cons-tituição de 1988 a todos os partícipes da economia.19

Há que se destacar que o Capitalismo contemporâneo tende para a utilização de práticas abusivas, notadamente monopolistas, por isso mesmo a ação estatal deve se dar como medida protetiva e, às vezes, até mesmo, cautelar. Mas certo é que essa

17. MENDES, Gilmar Ferreira et al, Curso de direito constitucional, p. 1.292.18. MENDES, Gilmar Ferreira et al, Curso de direito constitucional, p. 1.292.19. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 795.

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análise de ofensa à livre concorrência, bem como a livre iniciativa, deve ser realizada a partir dos casos concretos que são objeto de aferição jurídica. Nesses termos, em decisão prolatada na ADPF nº 46, o STF decidiu que o serviço postal desenvolvido pela Empresa Pública de Correios e Telégrafos, que detém o privilégio de entrega de correspondências, não viola a livre concorrência e a livre iniciativa.20

2.3.3. Defesa do Consumidor

O Direito do Consumidor, como mecanismo de defesa da parte hipossuficien-te na relação contratual de consumo, tem seu surgimento normativo na passagem do Estado Liberal para o Estado Social, quando a ordem jurídica passou a reconhe-cer a necessidade de uma normatização e um tratamento específico aos dois sujeitos da chamada relação de consumo – o consumidor e o fornecedor.21

20. Nesses termos, a Ementa da decisão da ADPF nº 46: Argüição de Descumprimento de Preceito Funda-mental. Empresa Pública de Correios e Telegráfos. Privilégio de entrega de correspondências. Serviço postal. Controvérsia referente à Lei Federal 6.538, de 22 de junho de 1978. Ato normativo que regula direitos e obrigações concernentes ao serviço postal. Previsão de sanções nas hipóteses de violação do privilégio postal. Compatibilidade com o sistema constitucional vigente. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 1º, inciso IV; 5º, inciso XIII, 170, caput, inciso IV e parágrafo único, e 173 da Constituição do Brasil. Violação dos princípios da livre concorrência e livre iniciativa. Não-caracterização. Arguição julgada improcedente. Interpretação conforme à constituição conferida ao artigo 42 da Lei nº6.538, que estabelece sanção, se configurada a violação do privilégio postal da União. Aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º, da lei. 1. O serviço postal – conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado – não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. 2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual o corrente vocabulário vulgar. 3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X]. 4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-Lei nº509, de 10 de março de 1.969.5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado. 6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade. 8. Argüição de des-cumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei nº6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo. (Rel. Min. Eros Grau. Julg. em 05.08.2009. DJ 26.02.2010).

21. Por isso mesmo, já nos EUA, em 1914, criou-se a Federal Trade Commission, que tinha o objetivo de aplicar a lei antitruste e proteger os interesses do consumidor. Mas foi a partir das iniciativas do presidente americano John Fitzgerald Kennedy, na década de 60, que houve a consolidação do Direito do Consumidor nos Estados Unidos. Dirigindo-se por meio de uma mensagem especial ao Congresso Americano, em 1962, Kennedy identificou os pontos mais importantes em torno da questão: os bens e serviços colocados no mercado devem ser sadios e seguros para os usos, promovidos e apresenta-dos de uma maneira que permita ao consumidor fazer uma escolha satisfatória; a voz do consumidor deve ser ouvida no processo de tomada de decisão governamental que detenha o tipo, a qualidade e o preço de bens e serviços colocados no mercado; o consumidor deve ter o direito de ser informado

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Destaca-se que, em 1985, as Nações Unidas, por meio da Resolução nº 39/248, estabelecem objetivos e normas para que os governos membros desenvolvam ou re-forcem políticas firmes de proteção ao consumidor. Esta foi, claramente, a primeira vez que, em âmbito mundial, houve o reconhecimento e aceitação dos direitos básicos do consumidor. O Anexo 3 da Resolução mostra quais são os princípios gerais que serão tomados como padrões mínimos pelos governos: (a) proteger o consumidor quanto a prejuízos à sua saúde e segurança; (b) fomentar e proteger os interesses econômicos dos consumidores; (c) fornecer aos consumidores infor-mações adequadas para capacitá-los a fazer escolhas acertadas, de acordo com as necessidades e desejos individuais; (d) educar o consumidor; (e) criar possibilidade de real ressarcimento ao consumidor; (f ) garantir a liberdade para formar grupos de consumidores e outros grupos e organizações de relevância e oportunidade para que essas organizações possam apresentar seus enfoques nos processos decisórios a elas referentes.22

No Brasil, a Constituição de 1988, fez expressa previsão quanto à criação de um Código de Defesa do Consumidor (CDC) – art. 5º, XXXII –, além de fixar em mais três preceitos normativos a importância de tal proteção (artigos 24, VIII; 150, § 5º; 170, V; e no artigo 48 do ADCT). Essa legislação especial foi elaborada, sistematizada e publicada na forma da Lei nº 8.078/90.

2.4. a política urbana

A política de desenvolvimento urbano, segundo o art. 182 da Constituição de 1988, deve ficar a cargo do Município, a partir de diretrizes comuns fixadas, por sua vez, pelo Legislativo Federal.

Aqui, o plano diretor se revela como o instrumento para a execução da política de desenvolvimento urbano, que deverá ser aprovado pela Câmara Municipal nas cidades com mais de 20 mil habitantes. Nele estão previstas normas sobre zonea-mento, edificações, sistema viário, áreas verdes etc. (art. 182, § 1º).

Importante, então, lembrar que toda a política urbana se vincula à observância da função social da propriedade urbana. Por isso mesmo, a Constituição autoriza que o Poder Público, mediante lei específica, exija do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova o seu uso adequado e correto aproveitamento, sob pena de, sucessivamente: parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; ou desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez

sobre as condições dos produtos e dos serviços; o consumidor deve ter direito a preços justos. Para mais detalhes, ver: QUINAUD PEDRON, Flávio; CAFFARATE, Viviane Machado, Da evolução históricos do direito do consumidor.

22. SOUZA, Miriam de Almeida, A política legislativa do consumidor no direito comparado, p. 57.

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anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

Por fim, a Constituição de 1988 estabelece a figura de usucapião pró-moradia (usucapião especial urbano), nos termos do art. 183. Tal norma se volta para aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, podendo adquirir-lhe o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. O § 1º do art. 183 dispõe que o título de do-mínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Todavia, a advertência de José Afonso da Silva é pertinente: “Na verdade, não é o título de domínio e a concessão de uso, mas um ou outra, porque são institutos excludentes. Aliás, a bem da verdade, a concessão de uso não tem cabimento no caso, pois o usucapião é modo de aquisição da proprie-dade e não meio de obter mera concessão de uso.”23

2.4.1. Desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana

Com previsão no art. 182, § 4º, da Constituição de 1988, pode ser conside-rada como uma modalidade de desapropriação-sanção, uma vez que seu objeti-vo é compelir o proprietário que não está observando e atendendo os ditames da função social, a partir das exigências postas no plano diretor do município. Aqui, a preocupação constitucional é viabilizar a desapropriação do imóvel urbano como mecanismo para implementação de uma política urbana.

O pagamento em razão do processo desapropriatório dar-se-á por meio de títulos da dívida pública, emitidos após aprovação do Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, ficando assegurado o valor real da indenização acrescido de juros legais.

Por tratar-se de medida extrema de interferência do Poder Público na esfe-ra privada do indivíduo, somente autorizada depois de cumpridas as providências preliminares, que representam medidas mais brandas para coagir o proprietário a observar a função social, quais sejam: parcelamento ou edificação compulsórios ou, em seguida, exigência de IPTU com alíquota progressiva urbana.

Em 10 de julho de 2001, foi publicada a Lei nº 10.257, ficando conhecida como Estatuto da Cidade, visando regular os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988. Seu art. 5º determina que a lei municipal específica delimite as áreas incluídas no plano diretor, estabelecendo o seu parcelamento, edificação e utiliza-ção compulsória do solo não edificado, subutilizado ou não utilizado, para tanto, fixando prazos não inferiores a um ano, a partir da notificação para protocolo do

23. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 818.

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projeto junto ao órgão municipal competente, e a dois anos, a partir da aprovação do projeto, para início das obras. Se houver descumprimento, conforme o art. 7º, o Município poderá proceder à aplicação do IPTU progressivo no tempo, majorando a alíquota pelo prazo de 5 anos consecutivos. Se dentro desses 5 anos, o proprietário ainda se mostrar desobediente, o Município procederá a desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública.24

Gilberto Bercovici25 lembra que tal figura jurídica mostra-se problemática, pois o Estatuto da Cidade foi publicado com demasiado atraso, somente em 2001, re-gulando o procedimento da desapropriação-sanção. Em segundo lugar, a lei abre espaço para que na esfera municipal sejam estabelecidos prazos e condições (nunca inferiores a um ano) do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios do solo urbano subutilizado, para que em seguida se possa proceder a desapropriação. Outro problema ainda é a necessidade de um plano diretor para os Municípios com mais de 20 mil habitantes, como condição para o processo de desapropriação.

2.5. a política agrícola e Fundiária

A Constituição de 1988 estabelece em seu texto que a política agrícola será disciplinada por lei e contará com a participação do setor de produção – produ-tores, trabalhadores rurais – e setores de comercialização, de armazenamento e de transporte.

Ela conterá disposições, conforme o art. 187, sobre: (1) instrumentos de crédi-to e fiscais; (2) preços compatíveis com os custos de produção e garantia de comer-cialização; (3) incentivo à pesquisa e à tecnologia; (4) assistência técnica e extensão rural; (5) seguro agrícola; (6) cooperativismo; (7) eletrificação rural e irrigação; e (7) habitação para o trabalhador rural.

Outro importante instituto é o usucapião pró-moradia (usucapião especial rural) previsto no art. 191 da Constituição de 1988, para quem, não sendo pro-prietário de imóvel rural ou urbano, possua como sendo seu, por mais de 5 anos ininterruptos, sem qualquer oposição, área de terra, em zona rural, não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia.

2.5.1. Desapropriação para fins de Reforma Agrária

Aqui, a desapropriação está prevista no art. 184 da Constituição da República, como espécie do gênero desapropriação-sanção para todos os imóveis rurais que estejam descumprindo a função social.

24. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.071.25. BERCOVICI, Gilberto, Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição

de 1988, p. 165-166.

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A competência é privativa da União para, conforme o interesse social, desapro-priar o imóvel rural mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrá-ria, com cláusula de preservação do valor real, que serão resgatáveis no prazo de até 20 anos, contados a partir do segundo ano de sua emissão. Todavia, é importante alertar que as benfeitorias de tipo úteis e as de tipo necessárias serão indenizadas em dinheiro (art. 184, § 1º, da CR/88).

A União publicará um decreto, que declarará o imóvel como objeto de interes-se social, autorizando a ação de desapropriação, que será executada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) – que é uma autarquia fede-ral vinculada ao Ministério da Agricultura (Decreto-Lei nº 1.110/70).

A Constituição de 1988 afirma no § 5º do art. 184 que as operações de trans-ferência de imóveis desapropriados são isentas de impostos (federais, estaduais ou municipais); todavia, temos aqui uma impropriedade, como bem reconheceu em seus julgados o STF.26 Na verdade, o que se tem é uma verdadeira imunidade tri-butária, pois o fim é não onerar o procedimento expropriatório ou criar obstáculos para a realização da reforma agrária. Mas acrescenta-se um alerta: o terceiro adqui-rente dos títulos da dívida agrária não goza de tal imunidade. Ora, os títulos da dí-vida agrária representam moeda de pagamento da justa indenização, apresentando, portanto, natureza indenizatória (e não podendo ser confundido com renda para fins tributários). Todavia, tal benefício tributário é limitado à pessoa do expropria-do; o negócio jurídico envolvendo os títulos da dívida agrária espaça do escopo da norma constitucional e deverá ser tributado.27

O art. 186, da Constituição de 1988, fixa as condições para o aproveitamento e a observância da função social da propriedade rural: (a) aproveitamento racional e adequado; (b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (c) observância das disposições que regulam as relações de traba-lho; e (d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Por força do art. 185 da CR/88, a pequena e a média propriedade rural não podem ser objetos da desapropriação para fins de reforma agrária; trata-se da cha-mada cláusula de inexpropriabilidade.28

3. a ordem SoCialO presente objeto de nosso estudo encontra correlação com o estudo anterior-

mente realizado dos direitos sociais. Naquele capítulo foi possível compreender o conteúdo material. Agora, iniciaremos um estudo acerca dos mecanismos de organização e efetivação. Por isso mesmo, aqui encontraremos instrumentos para

26. RE nº 168.110, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19/05/2000.27. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.077.28. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.077. Nesse sentido, posiciona-se o STF

no MS nº 23.0006/PB, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29/08/2003.

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concretização do bem-estar coletivo e da justiça social, que deverão ser harmoni-zados com a Ordem Econômica, anteriormente estudada.29

Parece, portanto, lógico que a primeira Constituição brasileira a dispor sobre a Ordem Social tenha sido a Constituição de 1934 – que inaugura a perspectiva do Estado Social para nós, revelando nítidas influências do constitucionalismo de Weimar (1919).

No atual modelo, a Constituição de 1988 consagra sobre o mesmo título nor-mas sobre: seguridade social (saúde, previdência social e assistência social); educa-ção, cultura e desporto; ciência e tecnologia; comunicação social; meio ambiente; família, criança, adolescente, jovem e idoso; e o indígena.

3.1. a Seguridade Social

A seguridade social rege-se, principalmente, a partir do princípio da solida-riedade, que se configura em medida abrangente de um conjunto de ações de or-dem pública e da sociedade, a fim de que sejam assegurados os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.30 Por isso mesmo, destina-se a explicitar que o financiamento de tais atividades e projetos ficará a cargo de toda a sociedade, seja por meio de recursos orçamentários e/ou por contribuições sociais, de modo que se possa ofertar condições de acesso não apenas para aqueles que se inscrevem no rol de segurados, como ainda aqueles necessitados – principalmente no caso da assistência social –, independentemente de contribuição.

Dessa forma, os seguintes princípios norteiam a organização da seguridade social, na forma do art. 194 da CR/88: (1) universalidade da cobertura e do atendi-mento; (2) uniformidade e equivalência dos benéficos e dos serviços às populações urbanas e rurais; (3) seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; (4) irredutibilidade do valor dos benefícios; (5) equidade na forma de participação no custeio; (6) diversidade da base de financiamento; e (7) caráter democrático e descentralizado da administração.

Por sua vez, o art. 195 da CR/88 trata do financiamento da seguridade social, que poderá ser de forma direta ou indireta, nos ternos da lei, através de recursos vin-dos dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além das seguintes contribuições: (a) do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendi-mentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Consti-tucional nº 20, de 1998), a receita ou o faturamento, o lucro; (b) do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre

29. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, p. 828-829.30. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 1.299.

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aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (c) sobre a receita de concursos de prognósticos; (d) do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.

Além destas, a lei poderá definir novas fontes de custeio, obedecendo ao fixado no inciso I do art. 154 da Constituição de 1988; isto é, por iniciativa da União, mediante lei complementar, desde que sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos tributos já discriminados na Constituição. Ainda, deve ser lembrado que tais contribuições só poderão ser exigidas depois de decorridos 90 dias da sua publicação (princípio da anterioridade nonagesimal).

3.1.1. Saúde

O direito à saúde – como já visto ao tempo do estudo dos direitos sociais – constitui direito de todos e dever do Estado, a partir de um acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Portanto, é um direito público subjetivo capaz de ser exigido do Estado.31

As ações e serviços ligados à saúde apresentam relevância pública, de modo que o Poder Público deverá regulamentar, fiscalizar e controlá-los, para sua execução, que poderá se dar de maneira direta ou indireta – através de terceiros, inclusive pessoa física ou jurídica de direito privado (art. 197, da CR/88).

É importante, ainda, esclarecer que as ações e os serviços de saúde foram orga-nizados para formar uma rede integrada, regionalizada e hierarquizada, conhecida como SUS (Serviço Único de Saúde, criado pela Lei nº 8.689/93),32 a partir das seguintes diretrizes: (1) descentralização, com direção única em cada esfera de go-verno; (2) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e (3) participação da comunidade.

Para financiamento do SUS, a previsão constitucional se dá nos artigos 195 e 198, § 1º, a partir de recursos do orçamento da seguridade social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Os entes da federação deverão aplicar um percentual mínimo calculado sobre: no caso da União, conforme o fixado em lei complementar; no caso dos Estados e do Distrito Federal, levando em conta o produto da arrecadação de impostos previsto no art. 155 e dos recursos previstos no art. 157 e 159, I, “a”, e 159, II, da Constituição de 1988, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; e, no caso dos Municípios e do Distrito Federal, levar-se-á em conta o produto da arrecadação de impostos previstos no art. 156 e dos recursos fixados nos artigos 158 e 159, I, “b”, e 159, § 3º, da Constituição de 1988.

31. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 1.302.32. REISSINGER, Simone, Aspectos controvertidos do direito à saúde na constituição brasileira de 1988,

p. 20.

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Ao SUS compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (1) controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e partici-par da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderiva-dos e outros insumos; (2) executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; (3) ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; (4) participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; (5) incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; (6) fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o con-trole de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; (7) participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; e (8) colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Temos, ainda, que ressaltar a figura prevista no art. 198, § 4º, da CR/8833 dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias. Nesse sentido, os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.34

Conforme a emenda Constitucional nº 63/09, Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial.

E no que tange à iniciativa privada? A iniciativa privada é livre para partici-par (art. 199 da CR/88), de forma a complementar o SUS, seguindo as diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as enti-dades filantrópicas e as sem fins lucrativos. Mas é importante aclarar que é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos; assim como é proibido a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.

Outra questão importante sobre o tema (do direito social à saúde), envolve a discussão (já aventada no capítulo que envolveu os direitos sociais), sobre o inti-tulado atendimentodeurgêncianaredehospitalar. Certo é que, a recente Lei nº

33. Conforme a Emenda Constitucional nº 51/06.34. Conforme o art. 198 § 6º da CR/88: Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art.

169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006).

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12.653 de 28.05.2012, tipificou o crime de condicionar atendimento médico-hospi-talar emergencial a qualquer tipo garantia.

Nesses termos, reforçamos aqui, que, conforme o recém criado art. 135-A do Código Penal é crime exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial. A pena será de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.”

Temos ainda que, o estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial, a partir da nova Lei, ora em comento, fica obrigado a afi-xar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a seguinte informação: “Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários administrativos, como condi-ção para o atendimento médico-hospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

3.1.2. Previdência Social

No que diz respeito à previdência social, logo de início, deve-se destacar a importância do princípio da responsabilidade, como norma fundamental, já que ela é financiada por toda a sociedade, seja por meio de recursos de ordem pública, seja por recursos de ordem privada. Para Gilmar Mendes e outros, o princípio da responsabilidade consubstancia em uma imposição de obrigação de ordem moral no sentido de um dever de cuidado, bem aos moldes do pregado por Hans Jonas.

Umbilicalmente ligado ao princípio da responsabilidade está o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial. Aqui, busca-se estabelecer um sistema de seguro, apontando para a necessidade de correlacionar benefícios e serviços da previdência social com fontes de custeio, visando à garantia da continuidade e certeza de longo prazo. Assim, “[...] à luz desse princípio – ou equilibramos a relação receitas/despe-sas do sistema previdenciário, para tanto exigindo mais rigor nos cálculos atuariais e corrigindo as gritantes distorções em matéria de benefícios, como a concessão de aposentadorias que, além de precoces à vista da crescente expectativa de vida dos segurados, ainda são pagas, sobretudo, no setor público, em quantias superiores ao valor das contribuições recolhidas para custá-las –, ou inviabilizaremos a nossa mais extensa rede de proteção social, com efeitos que não podem ser antevistos nem pelos mais clarividentes cientistas sociais.”35

A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de cará-ter contributivo e de filiação obrigatória, observados os critérios que preservem o

35. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 1.300.

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equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (1) cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (2) proteção à maternidade, especialmente à gestante; (3) proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; (4) salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segu-rados de baixa renda; e (5) pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes.

A previdência será organizada a partir do regime geral (RGPS) de caráter contributivo e filiação obrigatória, aplicável a todos os trabalhadores da iniciativa privada.36 Sua administração ficará a cargo do Instituto Nacional do Seguro So-cial (INSS) e do Ministério da Previdência Social através da Secretaria da Receita Previdenciária (SRP). O Ministério da Previdência Social possui, por força da Lei nº 11.098/05, competências referentes à arrecadação, fiscalização, lançamentos e normatização de receitas previdenciárias.

O RGPS tem regulamentação na Lei nº 8.212/91 – dispõe sobre a organização da Seguridade Social e institui o plano de custeio – e Lei nº 8.213/91, que dispõe sobre o plano de benefícios: • quantoaosegurado: a) aposentadoria por invalidez; b) aposentadoria por ida-

de; c) aposentadoria por tempo de contribuição; d) aposentadoria especial; e) auxílio-doença; f ) salário-família; g) salário-maternidade; e h) auxílio-acidente;

• quantoaodependente:a) pensão por morte; e b) auxílio-reclusão; • quantoaoseguradoedependente:a) pecúlios; b) serviço social; e c) reabili-

tação profissional.Os segurados somente podem gozar dos benefícios acima, se observado um

período mínimo de carência, referente ao mínimo de contribuições mensais in-dispensáveis para que se possa requerer o benefício, variando de benefício para be-nefício.

O cálculo do valor dos benefícios, por sua vez, segundo o art. 28 da Lei nº 8.213/91, salvo para o salário-família e o salário-maternidade, terá por base o salá-rio-benefício. Dessa feita, nenhum benefício pode ter valor inferior a um salário-mínimo, havendo também um valor máximo (teto) para seu recebimento (Emenda Constitucional nº 20/98).

3.1.3. Assistência Social

A assistência social se apresenta como um conjunto de ações e serviços so-ciais destinados a quem delas necessitar, independentemente de contribuição, cujos objetivos são: (1) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência,

36. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 1.087.

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à juventude37 e à velhice; (2) o amparo às crianças e adolescentes carentes; (3) a promoção da integração ao mercado de trabalho; (4) a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitá-ria; e (5) a garantia de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com re-cursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: descentralização político-ad-ministrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coorde-nação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; e participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular-se a programa de apoio à inclusão e promoção social até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: despesas com pessoal e encargos sociais; serviço da dívida; e qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados.

3.2.AEducação,aCulturaeoDesporto

A educação – como fixado no art. 205 da Constituição de 1988 – é condição fundamental para o pleno desenvolvimento da pessoa humana, para seu preparo profissional e para o exercício de sua cidadania. Por isso mesmo, os princípios aqui enumerados encerram o que Gilmar Mendes e outros chamam de Constituição Cultural:38 normas que incorporam e protegem a individualidade histórica.

É, portanto, claro consectário do princípio do pluralismo, que abarca no seio da sociedade brasileira toda uma constelação de manifestações e identidades cultu-rais, atribuindo a estas igual respeito e condições de expressão, existência e desen-volvimento.

Segundo a Constituição (art. 206), o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (a) igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; (b) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; (c) pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistên-cia de instituições públicas e privadas de ensino; (d) gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;39 (e) valorização dos profissionais da educação escolar,

37. Conforme a Emenda Constitucional nº65 de 13 de Julho de 2010.38. MENDES, Gilmar Ferreira et al., Curso de direito constitucional, p. 1.302.39. Conforme a Súmula Vinculante nº 12 de 2008: A cobrança de taxa de matrícula nas universidades

públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal.

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garantidos, na forma da lei40, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (f ) gestão democrática do ensino público, na forma da lei; (g) garantia de padrão de qualidade; e (h) piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.

As universidades brasileiras gozam de autonomia didático-científica, adminis-trativa e gestão financeira e patrimonial, obedecendo estas ao princípio da indissio-ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (art. 207).

O Estado então deverá garantir: (1) educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;41 (2) a progressiva uni-versalização do ensino médio gratuito; (3) o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; (4) a educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;42

40. Aqui ressaltamos que o plenário do STF por maioria, julgou em 27.04.2011, improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelos Governadores dos Estados do Mato Grosso do Sul, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e do Ceará contra os artigos 2º, §§ 1º e 4º; 3º, caput, II e III; e 8º, todos da Lei 11.738/2008, que dispõe sobre o piso salarial nacional para os profissionais do magistério público da educação básica. Conforme a ementa: “(...) 2. É constitucional a norma geral federal que fixou o piso salarial dos professores do ensino médio com base no venci-mento, e não na remuneração global. Competência da União para dispor sobre normas gerais relativas ao piso de vencimento dos professores da educação básica, de modo a utilizá-lo como mecanismo de fomento ao sistema educacional e de valorização profissional, e não apenas como instrumento de pro-teção mínima ao trabalhador. 3. É constitucional a norma geral federal que reserva o percentual míni-mo de 1/3 da carga horária dos docentes da educação básica para dedicação às atividades extraclasse. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. Perda de objeto declarada em relação aos arts. 3º e 8º da Lei 11.738/2008. (...)”(ADI 4167/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 27.04.2011).

41. Norma do art. 208, I, da CR/88 com redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009. Além disso, reza na mesma EC nº 59/09 que o disposto no inciso I do art. 208 da Constituição Federal deverá ser implementado progressivamente, até 2016, nos termos do Plano Nacional de Educação, com apoio técnico e financeiro da União.

42. Temos que a EC nº 53/06 modificou a idade de 6 para 5 anos. Decisão interessante sobre essa norma (embora anterior à EC nº 53/06), que bem explicita a obrigatoriedade da mesma. Conforme o RE nº 436.996: Recurso Extraordinário – criança de até seis anos de idade – atendimento em creche e em pré-escola – educação infantil – direito assegurado pelo próprio texto constitucional (CR, art. 208, iv) – compreensão global do direito constitucional à educação – dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao município (CR, art. 211, § 2º) – recurso improvido. – A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CR, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objeti-vas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CR, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os

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(5) o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; (6) a oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; e (7) atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático, esco-lar, transporte, alimentação e assistência à saúde.43

Uma vez que o direito ao ensino se mostra um direito público subjetivo, poderá ser invocado perante o Poder Judiciário, importando a responsabilização do Poder Público competente.

A iniciativa privada também poderá fornecer serviços de ensino, desde que em cumprimento das normas gerais da educação nacional e mediante autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacio-nais e regionais. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. O ensino funda-mental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

A União organizará o sistema federal de ensino, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Esta-dos, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental (6 a 14 anos) e na educação infantil (0 a 5 anos). Os Estados e o Distrito Federal atuarão prio-ritariamente no ensino fundamental e médio. Nos termos da eC nº 59/09, na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CR, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de li-mitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratan-do-se do atendimento das crianças em creche (CR, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficá-cia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A ques-tão pertinente à “reserva do possível”. Doutrina. (REl Min. Celso de Mello, Julg. em 22.11.2005. DJ 03.02.2006”.

43. Norma do art. 208, VII, da CR/88 com redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009.

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Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.

O Poder Público federal aplicará, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e de-senvolvimento do ensino.44

Nos termos da eC nº 59/09, a lei estabelecerá oplanonacionaldeeducação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de im-plementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos Poderes Públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: erradicação do analfabe-tismo45; universalização do atendimento escolar; melhoria da qualidade do ensino; formação para o trabalho; promoção humanística, científica e tecnológica do país; e, conforme a eC nº 59/09, o estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

Por último, sobre o ensino superior, é importante citarmos (novamente), a re-cente lei nº 12.711 de 29.08.2012,que determinou que as instituições federais deeducaçãosuperior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada

44. Nos termos da EC nº 59/09: A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimen-to das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação.

45. Nos termos da decisão da ADI por Omissão nº 1.698, julgada em 25.10.2009 e presente no Infor-mativo nº 576 do STF, temos que: [...] não haveria como se afirmar ter havido inércia do Presidente da República de modo a se lhe imputar providência administrativa que ainda não tivesse sido por ele adotada e que poderia ser suprida pela procedência desta ação. Salientou-se que o Brasil tem ainda, de fato, muito a fazer em termos de compromisso constitucionalmente imposto de erradicar o analfabetismo, até mesmo para que os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana, a sua liberdade, a igualdade de oportunidades possam ser efetivados. Por outro lado, com base na análise dos dados referentes ao número de analfabetos formais no Brasil em 1995, apresentados pelo IBGE, e do que se tem hoje, principalmente a partir da Lei 9.394/96, que estabeleceu as diretrizes e bases da Educação Nacional, e, ainda, da Lei 10.172/2001, que aprovou o plano nacional de educação, ob-servou-se a adoção de várias políticas sociais voltadas para a implementação do que legalmente de-terminado. Asseverou-se a existência de uma gama de ações e programas do Ministério da Educação priorizando a erradicação do analfabetismo e o acesso de todos à educação, que teriam contribuído, significativamente, com o decréscimo do número desses analfabetos formais no Brasil. Dentre os quais, citou-se o “Programa Brasil Alfabetizado”, que previu a ampliação do período de alfabetização de seis para até oito meses; o aumento de 50% nos recursos para a formação dos alfabetizadores; o estabelecimento de um piso para o valor da bolsa paga ao alfabetizador; o aumento da quantidade de turmas em regiões com baixa densidade populacional e em comunidades populares de periferias urbanas; a implantação de um sistema integrado de monitoramento e avaliação do programa; e maior oportunidade de continuidade da escolarização de jovens e adultos, a partir do aumento de 42% para 68% do percentual dos recursos alocados para Estados e Municípios. Lembrou-se, também, do “Bolsa Família”, um dos principais programas de cidadania e inclusão do Governo Federal, cujo objetivo é a inclusão social das famílias em situação de pobreza por meio da transferência de renda e da promoção do acesso aos direitos sociais básicos de saúde e educação. (Rel. Min Cármen Lúcia).

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concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mí-nimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. No preenchimento dessas vagas 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famí-lias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Segundo a Lei n° 12.711/2012, em cada instituição federal de ensino superior, as vagas acima citadas serão preenchidas, por curso e turno, por autodecla-rados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No caso de não preenchimento das vagas segundo esses critérios, aquelas remanes-centes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas46.

No que diz respeito à cultura, a Constituição de 1988, estabelece a proteção ao pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura, apoiando e in-centivando a valorização e a difusão das manifestações. Para tanto, o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropria-ção, e de outras formas de acautelamento e preservação. Nesses termos, os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei47.

Segundo a Constituição, constituem patrimônio cultural brasileiro bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portado-res de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. O § 5º do art. 216, ainda,

46. Nesses termos: O Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação da Lei nº 12.711/2012, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indíge-nas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior. No que tange ao acompanhamento do programa, reza no diploma normativo, que o Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do progra-ma de que trata a Lei nª 12.711/2012, ouvida a Fundação Nacional do Índio (Funai).

47. Conforme o art. 216 § 3º da CR/88: A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. Nos termos do art. 216 § 6º da CR/88: É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) I – despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela EC nº 42, de 19.12.2003) II – serviço da dívida; (Incluído pela EC nº 42, de 19.12.2003) III – qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela EC nº 42, de 19.12.2003)

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tomba, automaticamente, todos os documentos e os sítios detentores de reminis-cências históricas dos antigos quilombos.

No plano do desenvolvimento da cultura brasileira, a eC nº 48/05, criou o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimen-to cultural do Brasil e conduzindo à: defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; produção, promoção e difusão de bens culturais; formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; democratização do acesso aos bens de cultura; e valorização da diversidade étnica e regional.

Por último, recentemente, conforme a emenda Constitucional nº 71 de 29.11.2012, nos termos do art. 216-A, foi criado o Sistema nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa.

Esse sistema, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Fe-deração e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.

Nos termos do positivado art. 216-A da CR/88, o Sistema nacional de Cul-tura, fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabele-cidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: I – diver-sidade das expressões culturais; II – universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III – fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; IV – cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; V – integração e interação na execução das políticas, pro-gramas, projetos e ações desenvolvidas; VI – complementaridade nos papéis dos agentes culturais; VII – transversalidade das políticas culturais; VIII – autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; IX – transparência e com-partilhamento das informações; X – democratização dos processos decisórios com participação e controle social; XI – descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; XII – ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.

Ainda de acordo com a eC n°71/2012, constitui a estrutura do Sistema na-cional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação: I – órgãos gestores da cul-tura; II – conselhos de política cultural; III – conferências de cultura; IV – comis-sões intergestores; V – planos de cultura; VI – sistemas de financiamento à cultura; VII – sistemas de informações e indicadores culturais; VIII – programas de forma-ção na área da cultura; e IX – sistemas setoriais de cultura.

Sobre a regulamentação infraconstitucional, afirmou a eC nº71/2012, que Lei federal disporá sobre a regulamentação do Sistema nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo. Já os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seusrespec-tivos sistemas de cultura em leis próprias.

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Já a proteção ao desporto, não pode ser tomada de modo reducionista como proteção ao esporte, pois abrange ainda as atividades de recreação, lazer e di-vertimento (art. 217, § 3º, da CR/88). O desporto, conforme o art. 3º da Lei nº 9.615/98 (conhecida como Lei Pelé), apresenta as seguintes manifestações: • desportoeducacional:praticado nos sistemas de ensino e em formas assis-

temáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer;

• desportodeparticipação:de modo voluntário, compreendendo as modalida-des desportivas praticadas com a finalidade de contribuir para a integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e educação e na preservação do meio ambiente;

• desportoderendimento: praticado segundo normas gerais dessa Lei e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações. O desporto de rendimento pode ser organizado e praticado: de modo profissional, caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva; e de modo não pro-fissional, identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patro-cínio.É dever do Estado o fomento de práticas desportivas formais e não formais,

como direito de cada um, observados: a autonomia das entidades desportivas di-rigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento; a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional; e a proteção e o incentivo às manifes-tações desportivas de criação nacional. Para tanto, o Estado deverá fomentar prio-ritariamente o desporto educacional (art. 217, II, da CR/88), e apenas em casos específicos o desporto de rendimento – sendo que neste há prioridade também para a modalidade não profissional.48

Por fim, lembramos que a Justiça Desportiva (art. 217, §§ 1º e 2º, da CR/88) não integra o Poder Judiciário, sendo órgão de natureza administrava, com atri-buições para julgar questões exclusivamente ligadas à disciplina e às competições esportivas (art. 50 da Lei nº 9.615/98). Seu custeio é oriundo das federações e confederações esportivas. Aqui, temos ainda uma vedação de apreciação pelo Poder Judiciário de tais questões, salvo se esgotadas todas as vias administrativas, que terão prazo máximo de 60 dias para produzir uma decisão final. Todavia, essa cláusula de

48. Nesse sentido a decisão do STF no julgamento da ADI nº 1.750, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 13/10/2006.

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exclusão, versa unicamente sobre questões de disciplina e de competições desporti-vas, o que permite pleno exame de questões concernentes à legalidade e à constitu-cionalidade das decisões da Justiça Desportiva.

Já as questões concernentes ao contrato entre atletas e a entidade desportiva, notadamente o que se refere à remuneração, fica a cargo da Justiça do Trabalho.

3.3. a Ciência e tecnologia

O texto constitucional vigente compreende que a pesquisa científica deverá receber tratamento prioritário por parte do Estado brasileiro, tendo em visto o aten-dimento ao interesse público. Tais ações se voltam para promoção e incentivo do desenvolvimento científico, da pesquisa tecnológica e da capacitação tecnológica.

Isso reflete uma preocupação mundial, mas que não vira as costas para as par-ticularidades da realidade brasileira, pois a pesquisa tecnológica deve voltar-se para as soluções de problemas nacionais e para o desenvolvimento da produção nacional e regional.

3.4. a Comunicação Social

Uma vez que a Constituição de 1988 protege amplamente a manifestação de pensamento, assim como a criação, a expressão e informação, desde que compati-bilizada com os demais direitos fundamentais, torna-se vedado o monopólio ou o oligopólio dos meios de comunicação social.

Também é objeto de vedação constitucional qualquer prática de censura, seja ela de ordem política, ideológica ou artística. Isso, é claro, não se confunde com a fixação de faixas etárias para as diversões e espetáculos públicos, que fica a cargo do Poder Público.

A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: (a) preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; (b) promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; (c) regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e (d) respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

3.5. o meio ambiente

É muito comum encontrar críticas à expressão meio ambiente, afirmando que ambos os termos seriam sinônimos e, portanto, haveria uma redundância. Toda-via, há quem atribua à expressão sentido mais amplo, mais rico devido à conexão de valores.49 Engloba, portanto, o meio ambiente natural (ou físico), formado

49. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, 2009. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado, p. 736.

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pelo solo, água, ar atmosférico, energia, flora, fauna (art. 225, da CR/88); o meio ambiente cultural (art. 215 e 216, da CR/88), que se liga à história e cultura de um povo, revelando suas raízes e identidades (na forma do patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico); o meio ambiente artificial (ou humano), que é o espaço urbano construído pelo homem (edificações, ruas, par-ques, áreas verdes, praças etc.); e o meio ambiente do trabalho, como espécie de meio ambiente artificial, mas que se destaca pela autonomia, sendo o local no qual o trabalhador exerce sua atividade (art. 196 e ss., da CR/88).

Dessa forma, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e as futuras gerações.

Para tanto, incumbe ao Poder Público: (a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (b) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (c) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente atra-vés de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (d) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (e) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (f ) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; e (g) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Sobre essa proteção, o STF, em 26.05.2011, decidiu a adi 1856 que envolveu o tema da “rinha de galos” e crueldade de animais, no sentido de não conceber a “briga de galos” como mera atividade desportiva, prática cultural ou expressão folclórica. Entendeu o STF que tal perspectiva seria uma tentativa de fraude à aplicação da regra constitucional de proteção à fauna.50

50. Nos termos da Ementa: BRIGA DE GALOS (LEI FLUMINENSE Nº 2.895/98) – LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSIÇÕES E A COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVO-RECE ESSA PRÁTICA CRIMINOSA – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O COMETIMENTO DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE BRIGA – CRIME AMBIENTAL (LEI Nº 9.605/98, Art. 32) – MEIO AM-BIENTE – DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, Art. 225) – PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE – DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF, Art. 225, § 1º, VII) – DESCARACTERIZAÇÃO DA BRIGA DE GALO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RECONHECIMENTO DA INCONSTITUIONALIDADE DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA – AÇÃO

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Temos também, que a Constituição de 1988 determina de forma adequada, que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os in-fratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independen-temente da obrigação de reparar os danos causados. 51 Além disso, é mister salientar que o art. 225 § 4º traça proteção especial para alguns ecossistemas brasileiros, de modo que a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pan-tanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

É interessante ainda, conforme a doutrina,52 citarmos os princípios constitu-cionais ambientais:• PrincípiodaResponsabilidade:Decorrente do enunciado do § 3º, do art.

225 da CR/88. Esse impõe a responsabilização administrativa, civil e penal pelos danos causados ao meio ambiente;

• PrincípiodaPrecaução: Postulado que se extrai do art. 225, § 1º, IV, da CR/88, que torna obrigatório, na forma da lei, o estudo prévio de impacto am-biental, a fim de prevenir-se a ocorrência de dano ambiental, invariavelmente irreversível;

• PrincípiodoPoluidor-Pagador:é aquele que indica que o processo de fa-bricação do produto induz a externalidades negativas, que significam o efeito nocivo, não previsto e decorrente da atividade que implica a transgressão ao

DIRETA PROCEDENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE AUTORIZA A REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES E COM-PETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES – NORMA QUE INSTITUCIONALIZA A PRÁTICA DE CRUELDADE CONTRA A FAUNA – INCONSTITUCIONALIDADE. – A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Cons-tituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. (...) ADI 1856 julg. em 26.05.2011, Rel. Min. Celso de Mello. O mesmo, conforme citado na ementa, foi decidio pelo STF no famoso RE 153.531/SC envolvendo a prática da “Farra do Boi”.

51. Conforme o Informativo 639 do STF: “É possível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que haja absolvição da pessoa física relativamente ao mesmo delito. Com base nesse entendimento, a 1ª Turma manteve decisão de turma recursal criminal que absolvera gerente adminis-trativo financeiro, diante de sua falta de ingerência, da imputação da prática do crime de licenciamen-to de instalação de antena por pessoa jurídica sem autorização dos órgãos ambientais. Salientou-se que a conduta atribuída estaria contida no tipo penal previsto no art. 60 da Lei 9.605/98 (“Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimen-tos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”). Reputou-se que a Constituição respaldaria a cisão da responsabilidade das pessoas física e jurídica para efeito penal (...)” (RE 628.582 AgR/RS rel. Min. Dias Toffoli, 06.09.2011)

52. SILVA NETO, Manoel Jorge, Curso de Direito Constitucional, p. 718, 2007.

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patrimônio ambiental. Por meio desse princípio, impõe-se ao agente poluidor os custos referentes à diminuição ou afastamento do dano;

• PrincípiodaProteçãoAmbiental:Princípio que se dirige à proteção da fauna e da flora, vedando-se práticas que: a) coloquem em risco sua função ecológica; b) provoquem a extinção de espécies; e, c) submetam os animais à crueldade;

• PrincípiodaEquidadeIntergeracional:É o princípio que busca proteger os direitos não apenas das presentes, mas também das futuras gerações. Encontra-se no art. 225, caput, da CR/88;

• PrincípiodaCooperação:Determina a necessidade de cooperação entre os Estados soberanos para a solução dos problemas ambientais, visto que, dada sua própria natureza, o dano ambiental pode ultrapassar os limites territoriais de um Estado. Pode ser extraído do art. 4º, IX, da CR/88.Por último, é importante salientar, que a doutrina já se desenvolve, no sentido

de reconhecer aos direitos ambientais uma fundamentalidade (e centralidade), que visa a trabalhar a concepção da dimensão ecológica como “direito ao mínimo exis-tencial ambiental”. Nesses termos, da compreensão de necessidades humanas bá-sicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, coloca-se a reflexão acerca da exigência de um patamar mínimo de qualidade ambiental, sem o qual a dignidade da pessoas humana (e, para além dessa, a qualidade da vida em termos gerais) estaria violada no seu núcleo essencial. O âmbito de proteção do direito à vida, diante do quadro de riscos ambientais contemporâneos, para atender ao padrão de dignidade (e também de salubridade) assegurado constitucionalmente, deve ser ampliado no sentido de abarcar a dimensão ambiental no seu quadro normativo. De tal sorte, impõe-se a conjugação dos direitos sociais e dos direitos ambientais para efeitos de identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, no sentido do reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial socioambiental, precisamente pelo fato de tal direito abarcar o desenvolvimento de todo o potencial da vida humana até a sua própria sobrevivência como espécie, no sentido de uma proteção do homem contra sua própria ação predatória53.

3.6. a Família, a Criança, o adolescente, o Jovem e o idoso

Para a ordem constitucional, a família é de vital importância, pois é considera-da como a base da vida social. Assim, a noção de família trazida pela Constituição vai além da redução ao casamento,54 uma vez que considera também família o núcleo familiar formado a partir da união estável (art. 226, § 3º) e da família

53. SARLET, Ingo e FENTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algu-mas aproximações. p, 27, 2010.

54. Sobre o casamento é importante salientar que o mesmo é civil e é gratuita sua celebração. Além disso, o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. E por último, certo é que, a Emenda Consti-tucional nº 66 de 13 de Julho de 2010, expressa que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio,

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monoparental (art. 226, § 4º). Como expressão do princípio da igualdade (art. 226, § 5º), no núcleo familiar se estabelece os mesmos direitos e deveres para ho-mens e mulheres, cabendo a estes, conjuntamente, definir o projeto familiar que levarão adiante, sendo vedado ao Estado ou a instituições privadas qualquer forma de coerção.55

É, todavia, nos termos constitucionais, dever do Estado criar mecanismos que coíbam a violência doméstica56. Nesses termos, podemos observar a lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. Nesse sentido, O Plenário do STF em 09.02.2012, julgou procedente ação declaratória de constitucionalidade (adC n°19), ajuizada pelo Presidente da República, para assentar a constituciona-lidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Conforme o Pretório Excelso: “(...) No mérito, rememorou-se posicionamento da Corte que, ao julgar o HC 106.212/MS (DJe de 13.6.2011), declarara a constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha (“Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, nãoseaplicaalei nº 9.09957, de 26 de setembro de 1995”). Reiterou-se a ideia de que a aludida lei viera à balha para conferir efetividade ao art. 226, § 8º, da CF. Consignou-se que o dispositivo legal em comento coadunar-se-ia com o princípio da igualdade e atenderia à ordem jurídico-constitucional, no que concerne ao necessário combate ao desprezo às famílias, considerada a mulher como sua célula básica. (...) Asse-verou-se que, ao criar mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher e estabelecer medidas especiais de proteção, assistência e punição, tomando como base o gênero da vítima, o legislador teria utilizado meio adequado e necessário para fomentar o fim traçado pelo referido preceito constitucional. Aduziu-se não ser desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação, visto que a mulher seria eminentemente vulne-rávelnotocanteaconstrangimentosfísicos,moraisepsicológicos sofridos em âmbitoprivado”.

Já na adi 4424/dF, também decidida em 09.02.2012, temos que, o Plenário do STF, por maioria, julgou procedente ação direta, proposta pelo Procurador Ge-ral da República, para atribuir interpretação conforme a Constituição aos artigos

porém, sem a necessidade de prévia separação judicial por mais de 1 ano ou de separação de fato por mais de 2 anos. Assim sendo, essas antigas exigências, previstas na Constituição no art. 226 § 6º, foram afastadas pela EC nº 66/2010.

55. Nos termos do art. 226 § 7º da CR/88: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

56. Nos termos do art. 226 § 8º da CR/88: O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

57. Ou seja, referendou o STF, que não compete aos Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.

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12, I; 16 e 41, todos da lei 11.340/2006, e assentar a natureza incondicionada daaçãopenal em caso de crime de lesão corporal, praticado mediante violência do-méstica e familiar contra a mulher. Com isso, decidiu que o Ministério Público (no âmbito dos dispositivos normativos em comento) pode dar início a “ação penal” sem a necessidade de “representação da vítima”. Entendeu o STF, que, outra in-terpretação, acabaria por esvaziar a proteção constitucional concedida as mulheres.

Nesse ponto, é importante, ainda, deixar assente, que o Supremo Tribunal Federal, em hard case enfrentado em 2011, decidiu pelo reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar apta a merecer a proteção estatal.

Com isso, entendeu o Pretório Excelso, que norma constante do art. 1.723 do Código Civil (“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e es-tabelecida com o objetivo de constituição de família”) não obsta (não impede) que a união de pessoas do mesmo sexo possa ser reconhecida como entidade familiar apta a merecer a já citada proteção estatal.

Nesses termos, o STF deu interpretaçãoconformeaConstituição para o art. 1723 do Código Civil para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimentodauniãocontínua,públicaeduradoura entre pessoasdo mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mes-mas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

Apresentamos os principais pontos da decisão do STF na adi 4277 (que en-campou a ADPF 132) sobre o tema em comento, nos termos da ementa:

a) Proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles. A proibição do preconceito como capítulo do constitucionalismo fraternal. Homenagem ao pluralismo como valor sócio-político-cultural. Liberdade paradispordaprópriasexualidade, inserida na categoria dos direitos fundamentais do indivíduo, expressão que é da autonomia de vontade. Direito à intimidade e à vida privada. Cláusula pétrea.

Nesse sentido, temos no julgado, o reconhecimento do direitoàpreferênciasexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: di-reito a auto-estima no mais elevado pontodaconsciênciadoindivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibiçãodopreconceitoparaapro-clamação do direito à liberdade sexual. E o entendimento de que o concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoasnaturais. Com isso, temos empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Garantia da autonomia da vontade. 58

58. ADI 4277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, julg. em 04 e 05.05.2011.

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b) Tratamento constitucional da instituição da família. Reconhecimento de que a Constituição Federal não empresta ao substantivo “família” nenhum signifi-cado ortodoxooudaprópriatécnicajurídica. A família é entendida como cate-goria sócio-cultural e princípio espiritual. Reconhecimento do direito subjetivo de constituir família a partir de uma interpretação não-reducionista.

Conforme o STF, o caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. Entendeu o STF que a Constituição de 1988, ao utili-zar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como institui-ção privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomiaentrecasaisheteroafetivosepareshomoafetivosque somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do SupremoTribunalFederal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceitoquantoàorientaçãosexualdaspessoas.59

c) Sobre o termo constitucional “união estável” e a normação constitucional referida a homem e mulher. Segundo o STF o propósito constitucional é o de es-tabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano. Dai a defesa da Identidade constitucional dos conceitos de “entidade familiar” e “família”.

Segundo o STF, a referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226 da CR/88, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierar-quia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. (..) Afirmou-se ainda na ementa que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, a Constituição não pretendeu diferenciá-la da “família”. inexistência, portanto, dehierarquiaoudiferençadequalidadejurídicaentre as duas formas de constituição de um novo e

59. ADI 4277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, julg. em 04 e 05.05.2011.

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autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família porpessoasdomesmosexo. Consagração do juízo de que nãoseproíbenadaaninguémsenãoemfacedeumdireitooudeproteçãodeumlegítimointeressede outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexis-tência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparaçãojurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidadedo§2ºdoart.5º da Constitui-ção Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamentelis-tados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados interna-cionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 60

Na sequência, temos também, segundo ditame constitucional, que é dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educa-ção, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.61

O Estado, nesses termos, promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem admitida a participação de entidades não go-vernamentais e obedecendo os seguintes preceitos: (a) aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; e (b) criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portado-ras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do

60. ADI 4277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, julg. em 04 e 05.05.2011. Sobre o tema, defendendo a posição do STF, com base em Dworkin e em sua interpretação construtiva do direito (já estudada no capítulo 3 da presente obra): “O reconhecimento do status de família às uniões homoafetivas, bem como a proteção constitucional às mesmas – não é resultado de uma mutação constitucional, nem de uma postura ativista do STF. Ao invés disso, os próprios Ministros do STF reconhecem unanimemente que a leitura lançada pelo julgado apenas busca colocar à sua melhor luz uma interpretação que já se encontrava originariamente na própria Constituição de 1988, de modo que tal direito é apenas uma derivação de uma leitura conjugada dos princípios da igualdade e da liberdade. O Estado reconhece, assim, o dever de igual tratamento e respeito, bem como a inconstitucionalidade de qualquer interpretação do direito que se apoie em preconceito. Tal decisão somente se mostrou possível pela superação da com-preensão que reduz o direito a um conjunto de regras. Ao invés disso, o entendimento do que significa a dimensão principiológica do direito permitiu ao STF escrever evolutivamente um importante capítulo de nossa história institucional”. PEDRON, Flávio, p.211, 2012.

61. “A Lei 8.560/92 expressamente assegurou ao Parquet, desde que provocado pelo interessado e diante de evidências positivas, a possibilidade de intentar a ação de investigação de paternidade, legitimação essa decorrente da proteção constitucional conferida à família e à criança, bem como da indisponibi-lidade legalmente atribuída ao reconhecimento do estado de filiação. Dele decorrem direitos da per-sonalidade e de caráter patrimonial que determinam e justificam a necessária atuação do Ministério Público para assegurar a sua efetividade, sempre em defesa da criança, na hipótese de não reconhe-cimento voluntário da paternidade ou recusa do suposto pai.” (STF, RE nº 248.869, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 12/03/2004).

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adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.62

O texto constitucional traz, ainda, o princípio da proteção especial à criança, ao adolescente e ao jovem63, podendo haver a participação de entidades não gover-namentais, que seguirá os seguintes preceitos: (1) idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII; (2) garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; (3) garantia de acesso do trabalhador adoles-cente e jovem à escola64; (4) garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; (5) obediência aos prin-cípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; (6) estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; e (7) programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem65 dependente de entorpecentes e drogas afins.

No universo da família, a Constituição à luz do art. 227, veda qualquer forma de discriminação entre filhos, havidos ou não na constância do casamento ou por adoção, garantindo a todos os mesmos direitos e qualificações.

No art. 229, encontramos consagrado o princípio da reciprocidade, de modo que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maio-res têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Proteção especial receberá, também, os idosos, a partir do art. 230 da Cons-tituição, determinando à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dig-nidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.66 Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares e aos maiores de 65 anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. 67

62. Conforme a Emenda Constitucional nº65 de 13 de Julho de 2010.63. No que tange aos Jovens a Emenda Constitucional nº 65/2010 afirma que: A lei estabelecerá: I – o es-

tatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens; II – o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas.”

64. Conforme a Emenda Constitucional nº65 de 13 de Julho de 2010.65. Conforme a Emenda Constitucional nº65 de 13 de Julho de 201066. DINIZ, Fernanda Paula, A interpretação constitucional dos direitos dos idosos no Código Civil.67. Conforme a Lei n° 10.741/2003: “Art. 39. Aos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos fica assegurada a

gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares. § 1º Para ter acesso à gratuidade, bas-ta que o idoso apresente qualquer documento pessoal que faça prova de sua idade. § 2º Nos veículos de

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3.7. os índios

No campo da proteção constitucional aos indígenas, a Ordem Social destaca o princípio da proteção da identidade, como preocupação do Constituinte. Para tanto, faz-se extremamente necessária a proteção das terras por eles tradicional-mente ocupadas, bem como da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Tais terras são aquelas pelos índios habitadas em caráter de permanência, sendo utilizadas para suas atividades produtivas e imprescindíveis para a manuten-ção do seu bem-estar e reprodução física e cultural.

Nesses termos, o art. 231 da CR/88 preocupa-se com a proteção da sua orga-nização social, dos costumes, das línguas, das crenças e das tradições, e dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União de-marcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

A Constituição, ainda, veda a remoção dos grupos indígenas de suas terras, sal-vo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após delibera-ção do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

Afirma a atual Constituição, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Nesses termos, o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

Essas intituladas terras indígenas, de que trata o art. 231 da CR/88 são inalie-náveis, e os direitos sobre elas é imprescritível. Nesse sentido, são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere o citado art. 231 da CR/88, ou a explo-ração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar

transporte coletivo de que trata este artigo, serão reservados 10% (dez por cento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados com a placa de reservado preferencialmente para idosos.§ 3º No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a cri-tério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo. Art. 40. No sistema de transporte coletivo interestadual observar-se-á, nos termos da legislação específica: I – a reserva de 2 (duas) vagas gratuitas por veículo para idosos com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos; II – desconto de 50% (cinqüenta por cento), no míni-mo, no valor das passagens, para os idosos que excederem as vagas gratuitas, com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos. Parágrafo único. Caberá aos órgãos competentes definir os mecanismos e os critérios para o exercício dos direitos previstos nos incisos I e II.”

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(referente ao tema), não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

É interessante que, recentemente, ocorreu um intenso debate tanto na socie-dade brasileira quanto no STF sobre o tema demarcação de terras indígenas. A questão envolveu diretamente a Reserva Raposa Serra do Sol demarcada por decreto do Presidente da República no ano de 2005. Nesses termos, foi a decisão de mérito do STF sobre a questão em 18 e 19 de março de 2009: “prevaleceu o voto do Min. Carlos Britto, relator, que assentou a condição indígena da área demarcada como Raposa/Serra do Sol, em sua totalidade, tendo o Tribunal aprovado, ainda, a partir das explicitações feitas pelo Min. Menezes Direito, as seguintes condições: 1) o usu-fruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (CR, art. 231, § 2º) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da CR, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar; 2) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e po-tenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional; 3) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; 4) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a per-missão da lavra garimpeira; 5) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comu-nidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; 6) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; 7) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, es-pecialmente os de saúde e educação; 8) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 9) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, as tradições e os costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI; 10) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 11) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito

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Da Ordem Econômica e da Ordem Social

e a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; 12) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não podem ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; 13) a cobrança de ta-rifas, ou quantias de qualquer natureza, também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não; 14) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios; 15) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrati-va; 16) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocu-padas, observado o disposto nos artigos 49, XVI, e 231, § 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; 17) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; 18) os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis; 19) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento. Determinou-se, por fim, a execução imediata do acórdão, independentemente da sua publicação, ficando cassada a medida cautelar concedida na ação cautelar 2009/RR, por meio da qual se suspendera a desintrusão dos não-índios das áreas demarcadas. Deliberou-se, ainda, que a supervisão da execução caberá ao Ministro Carlos Britto, relator, que fará essa execução em entendimento com o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, especialmente o seu Presidente.”68

68. Pet nº 3.388/RR, Rel. Min. Carlos Britto, 18 e 19.3.2009. Temos ainda que: “Quanto à condição 17, fi-zeram ressalva os Ministros Carlos Britto, relator, Eros Grau e Cármen Lúcia. O relator, no ponto, tendo em conta o marco temporal adotado pela maioria da Corte, admitia a ampliação de terras indígenas demarcadas antes da Constituição de 1988. Ficaram vencidos os Ministros Joaquim Barbosa, que jul-gava o pedido improcedente, e Marco Aurélio, que o julgava procedente. O Min. Marco Aurélio, preli-minarmente, declarava a nulidade do processo, apontando a ausência de: 1) citação das autoridades que editaram a Portaria 534/2005 e o Decreto homologatório; 2) citação do Estado de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia; 3) intervenção oportuna do Ministério Público na instrução da ação popular; 4) citação de todas as etnias indígenas; 5) produção de provas; 6) intimação dos detentores de título de propriedade. Relativamente ao mérito, fixava os seguintes parâmetros para uma nova ação administrativa demarcatória, ao fundamento de ser nula a anterior: 1) audição de todas as comunidades indígenas existentes na área a ser demarcada; 2) audição de posseiros e titulares de domínio consideradas as terras envolvidas; 3) levantamento antropológico e topográfico para definir a posse indígena, tendo-se como termo inicial a data da promulgação da Constituição Federal, dele participando todos os integrantes do grupo interdisciplinar, que deveriam subscrever

Page 36: Capítulo 21 Da OrDem ecOnômica e Da OrDem SOcial · 1205 Da Ordem Econômica e da Ordem Social submetida.8 Por isso mesmo, a Constituição Econômica não pode ser lida a parte

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Bernardo Gonçalves Fernandes

Na sequência temos que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (art. 232 da CR/88). Por força do art. 109, XI da CR/88, compete à Justiça Federal processar e julgar conflitos que versem sobre direitos indígenas, isto é, sobre: cultura indígena; direitos sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios; interesses constitucionalmente atribuíveis à União, como as infrações praticadas em detrimento de bens e interesses da União. Assim, incluem-se nesse rol de competências os crimes que estão relacionados aos direitos dos índios.69

Por fim, no que concerne à educação, o art. 210, § 2º, da Constituição bra-sileira garante às comunidades indígenas a utilização, conjuntamente com o por-tuguês, de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Tais ações educacionais estão inscritas na esfera de competência do Ministério da Educação, ouvida a FUNAI.

o laudo a ser confeccionado; 4) em conseqüência da premissa constitucional de se levar em conta a posse indígena, a demarcação deveria se fazer sob tal ângulo, afastada a abrangência que resultou da primeira, ante a indefinição das áreas, ou seja, a forma contínua adotada, com participação do Estado de Roraima bem como dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia no processo demarcató-rio; 5) audição do Conselho de Defesa Nacional quanto às áreas de fronteira.” (Pet nº 3.388/RR, Rel. Min. Carlos Britto, 18 e 19.3.2009).

69. Todavia, se a hipótese é de crime praticado por um índio contra outro índio, ainda que dentro da aldeia, sem qualquer relação com direitos indígenas, a competência fica a cargo da Justiça Estadual.. Nesse sentido, ver o julgado do STF, RE nº 419.528, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 09/03/2007.