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Capítulo 1:
TRAZENDO ASPECTOS DA HISTÓRIA DA MÚSICA NA IGREJA E NA ESCOLA
1.1. Música E escola na Historiografia da Educação Brasileira
O campo da História da Educação Brasileira, através de seus estudos, tem respondido
questões relacionadas à educação escolar em São Paulo, nos aspectos institucional, de prática
pedagógica e de cultura escolar, sendo que os trabalhos apresentados procuram compreender
como a escola foi se constituindo.
Hilsdorf (2001, p. 67-68), citando Vidal e Souza (1999, p.7-8), aponta que os
pesquisadores da História da Educação Brasileira estão realizando pesquisas com o intuito de
entender os aspectos relacionados à escola, e que esta foi se tornando um local
especificamente destinado ao cuidado da infância e adolescência. Gradativamente a escola foi
se afastando de outras instituições como a família e a Igreja, acabando por impor à sociedade
novos tempos ao construir seu próprio tempo escolar. Ressaltam também como a escola
produziu formas e culturas escolares que distinguem as normas e fazeres da escola dos praticados em outros lugares sociais. Como elaborou um espaço escolar distinto de outros espaços sociais e identificável rapidamente por sua arquitetura singular. De que maneira conformou o seu corpo profissional, criando maneiras próprias de sua formação, através do surgimento e proliferação das escolas normais, e permitindo a elaboração e consolidação de saberes pedagógicos e escolares, resultado de apropriações particulares dos saberes sociais.
Neste momento nos deteremos nos trabalhos de historiadores da educação que
mencionam ou estudam a atividade musical na escola, apresentando uma Revisão
Bibliográfica dos trabalhos, do campo da História da Educação, que serviram como
referenciais teóricos para esta pesquisa. O que caracteriza esta produção é que estão
concentrados na província, depois estado de São Paulo, no final do Império e primeiros anos
da República e mapearemos as questões relacionadas ao ensino da música. Procuraremos
apresentar a posição do autor, as fontes por ele usadas, destacando as contribuições que
trouxeram para este trabalho. No entanto, ainda que tenham sido de fundamental relevância
para a análise do ensino da música nas escolas americanas de confissão protestante e que esta
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pesquisa tenha se valido principalmente destes conhecimentos dos historiadores da educação,
por tratar-se de uma pesquisa interdisciplinar, foi necessário percorrer outros campos de
estudos, como os da Ciência da Religião, História Eclesiástica, da Educação Musical e da
História da Música.
As referências às atividades musicais nos trabalhos consultados apresentam-se com
diferentes nomenclaturas, tais como: canto, canto coral, canto orfeônico, coral, cânticos,
cânticos evangélicos, hino, hino religioso, hinos cristãos, piano, música, música vocal, música
religiosa e música eclesiástica.
Durante a elaboração de nosso projeto de pesquisa evidenciamos que a Dissertação de
Mestrado de Maria Lúcia Hilsdorf, intitulada “Escolas Americanas de Confissão Protestante
na Província de São Paulo: um estudo de suas origens” (FE-USP, 1977), foi o primeiro
trabalho a pesquisar as escolas americanas em São Paulo do ponto de vista da educação.
Pudemos verificar que foi, e continua sendo, de fundamental importância para muitas outras
pesquisas que vieram a posteriori, como é o caso da nossa. Como dito anteriormente, nossa
atenção está voltada para as questões relacionadas ao ensino da música.
O objetivo que norteou a pesquisa de Hilsdorf foi
investigar um episódio da história da educação brasileira que ainda se apresenta como questão a ser elucidada: a do aparecimento e êxito de escolas americanas de confissão protestante nos quadros de ensino paulista nas últimas décadas do século XIX. A atuação dessas escolas na Província de São Paulo data de 1869 e tem sido referida por estudiosos da nossa educação como renovadora e até mesmo inspiradora de reformas republicanas do ensino paulista (p. 1).
As principais fontes utilizadas foram Jornais e Arquivos Públicos.
No primeiro capítulo Hilsdorf apresenta um panorama geral do ensino público e
particular na Província de São Paulo, que passava por um período pouco favorável ao
desenvolvimento, no início do século XIX. As informações sobre a concorrência entre escolas
públicas e particulares são também deste período, bem como a tentativa de organização e
sistematização do ensino provincial. “Em 1829, o Presidente da Província tinha informações
sobre 33 escolas públicas e 35 escolas particulares de primeiras letras” (p. 21).
Em meados do século XIX houve uma expansão das aulas avulsas públicas no interior,
porém os estabelecimentos particulares, em sua maioria, estavam concentrados na capital.
“Para 7 escolas públicas de primeiras letras, existiam 12 escolas particulares, entre primárias e
secundárias. Delas a mais antiga em funcionamento era a escola de primeiras letras masculina,
de Joaquim Mariano Lobo, aberta em 1812” (p. 24).
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Havia poucos colégios de primeiras letras para meninas. “O ensino ministrado nesses
estabelecimentos, embora acanhado era mais rico e aprofundado que o oferecido nas escolas
públicas de primeiras letras” (p. 25). Observa-se a inauguração da prática de entregar a uma
instituição a educação das meninas. Geralmente essas escolas possuíam pensionatos, que
favoreciam o preparo para as atividades sociais e as instruções próprias para o elemento
feminino. Três destes colégios pioneiros estavam localizados na capital, entre eles, o Colégio
de Rita Leopoldina da Silva, uma viúva que fora educada na corte, que estava estabelecido em
São Paulo desde 1849. Observamos que a música e a dança faziam parte do currículo:
“...alunas de 5 a 14 anos aprendiam as primeiras letras, francês, música, dança, gramática
nacional, geografia, desenho e trabalhos manuais” (p. 25).
Em 1854 observamos que a música foi oferecida como aulas avulsas particulares
secundárias, para o sexo masculino e feminino e que o mesmo não acontecia na escola pública
(p. 27 – Tabela).
Ainda na década de 50, a música foi apresentada na medida do interesse dos alunos
nos colégios de instrução secundária masculina da capital, como o “Brasileiro”, “Emulação”,
“Colégio Glória”, “Ateneu Paulistano” e “Culto à Ciência” (p. 27).
Em 1858, na escola católica “Patrocínio”, música vocal e piano são disciplinas
oferecidas no currículo (p. 30).
Com a chegada dos primeiros imigrantes estrangeiros, chegam também as
denominações protestantes. “No processo de adaptação à nova terra, entre inúmeras outras
dificuldades, esses colonos enfrentaram as diferenças culturais de religião e educação... os
protestantes que emigraram para São Paulo se viram entregues à própria sorte” (p. 31-2).
Hilsdorf cita Thomaz Davatz, em seu livro “Memórias de um colono no Brasil”, que
traz o relato de seu contato como professor e de atividades escolares iniciadas em 1856.
“Dava trinta e cinco aulas por semana, inclusive oito noturnas e uma aos domingos, de tarde.
Reparti os alunos – cento e oito ao todo – por três classes, a saber, os grandes e pequenos de
aula diurna e os de aula noturna. O número de disciplinas limitava a cinco: Leitura, Caligrafia,
Aritmética, Canto e História Sagrada” (p. 74).
O “Colégio Piracicabano”, americano de confissão protestante “desde o início de seus
trabalhos, apresentou um currículo mais completo que o da maioria dos colégios femininos
seus contemporâneos, abrangendo as seguintes matérias: português, francês, latim, inglês e
alemão, aritmética, álgebra, geometria, astronomia, cosmografia, geografia, história universal,
pátria e sagrada, literatura, ciências naturais, desenho, música e trabalhos de agulha” (p. 43-4).
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Ao mencionar o corpo docente do “Colégio Pestana”, instalado em São Paulo em
1876, por Francisco Rangel Pestana, Hilsdorf apresenta o nome do Maestro Pons como
professor(p. 44). De acordo com o “Dicionário Grove de Música” (1994, p. 564-565), maestro
é um título empregado na linguagem musical. Pode de referir a um professor, compositor,
regente, enfim, o músico encarregado de uma instituição musical. “No Brasil, seguindo o
costume italiano, é muito mais freqüente usar o termo “maestro” do que “regente” para
qualificar aquele que rege uma orquestra”. Observamos também que a música esteve presente
em diversos currículos das escolas da época. O “Patrocínio”, colégio católico, organizado em
1858 em Itu, nos moldes da escola francesa, proporcionava estudos seriados e regulares em
três séries primárias e quatro secundárias, de doutrina cristã, gramática portuguesa, aritmética,
geometria e cosmografia, história sagrada e profana, botânica e história natural, literatura
(cartas), francês, italiano, música vocal, piano, desenho, caligrafia e trabalhos manuais.
A seguir, destacamos mais uma informação apresentada por Hilsdorf, com relação a
escolas e currículos:
Em 1873, já existiam na província 7 cursos noturnos masculinos de 1º grau e um de 2º grau para ambos os sexos, sustentado este na capital desde 1873 pela “Sociedade Propagadora da Instrução Popular”, com as seguintes matérias: leituras de clássicos, português, composição, gramática, geografia, matemática, física, política, história do Brasil, língua francesa, escritura mercantil e música vocal (p. 39).
Em 1884 a “Escola Primária Neutralidade” ministrava: língua materna, cálculo, canto,
desenho, francês, italiano, espanhol, inglês e as ciências relativas ao mundo bruto, ao animado
e ao social na sua parte mais concreta.
Ao adentrarmos no segundo capítulo, verificamos que foi realizada “uma abordagem
das motivações que levaram protestantes americanos a fundar e manter escolas em São Paulo”
(p. 3). Hilsdorf detalha neste capítulo o desenvolvimento das denominações protestantes no
Brasil e as atividades desenvolvidas pelas escolas, que eram particulares e ligadas às igrejas
protestantes. Estas escolas ao serem fundadas representavam uma resposta às necessidades
dos norte-americanos que se instalaram em São Paulo, sendo destinadas às instruções de seus
filhos. No entanto, serviam também como uma maneira de atuação na sociedade brasileira,
uma vez que tinham interesse em exercer atividades de evangelização.
No terceiro capítulo vemos como se deu o aparecimento das escolas americanas de
confissão protestante na província de São Paulo, apontando as localidades onde se instalaram,
quais os alunos que freqüentaram essas escolas, os aspectos pedagógicos que desenvolveram e
os reflexos no ensino da época. Hilsdorf destaca que estas escolas atestam o compromisso
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com uma renovação educacional, confirmam os recursos materiais que dispunham, os prédios
próprios com modernas aparelhagens, professores especializados, enfim, a eficiência e
seriedade no trabalho.
Quanto às atividades musicais desenvolvidas nas escolas, citamos a seguir alguns
episódios apontados por Hilsdorf, que serão retomados no próximo capítulo ao analisarmos a
utilização da música nas escolas americanas de confissão protestante em São Paulo, ligadas a
três Igrejas Históricas: Presbiterianos, Metodistas e Batistas.
Em 1900 o “Colégio Piracicabano” ofereceu uma festa à sua diretora Martha Watts e
um grupo de alunas executou uma parte lítero-musical (p. 162). Ao descrever a presença dos
professores, que eram preparados e especializados, Hilsdorf apresenta uma citação do Jornal
“A Província de São Paulo”, datado de 30 de janeiro de 1875, em que apontava, na “Escola
Americana”, a presença de “uma senhora inglesa completamente habilitada” para línguas e
artes: piano, desenho e canto. Informa também que Martha Watts era formada pela “Escola
Normal” de Louisville, nos EUA. O fato de possuírem professores especializados para o
magistério, credenciava as escolas americanas quanto à eficiência e seriedade de seu trabalho
(p. 164). No ano letivo de 1887, Palmira Excel e miss Effie Lenington eram as professoras de
música da “Escola Americana” (p. 168). A música vocal era uma das matérias do curso
primário. Ainda sobre a “Escola Americana”, encontramos que os alunos se reuniam em
Assembléia Geral, na Sala Grande para entoar cânticos evangélicos, muitos deles compilados
nos “Sagrados Cânticos” de autoria da professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade.
Outra informação que merece destaque: “Em 1887 o corpo docente do “Piracicabano” incluía
nove professores entre nacionais e missionárias estrangeiras: miss Mary W. Bruce para a
diretoria e aulas de música” (p. 165). Também no “Piracicabano” a professora Martha Watts
reunia as crianças em um salão e após fazer a chamada para verificação da presença fazia a
leitura e comentário de um trecho das Escrituras. Pronunciavam a oração do Pai Nosso e
cantavam um hino religioso, geralmente escolhido por uma das crianças.
Em sua Tese de Doutorado, “Francisco Rangel Pestana: jornalista, político, educador”
(FE-USP, 1986), Maria Lúcia Hilsdorf também teve por objetivo “estudar o pensamento e a
ação político-pedagógica de Rangel Pestana na Província de São Paulo ao longo de três
décadas em que aqui viveu”, além de “resgatar o pleno direito de Rangel Pestana ao título de
educador” (p. 4).
Rangel Pestana nasceu em Iguaçu, interior da Província do Rio de Janeiro, em 26 de
novembro de 1839. Sua família transfere-se para a corte e em 1851 Rangel Pestana foi
matriculado no Colégio de Curiáceo Pestana de Simas, como aluno externo de primeiras
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letras. Depois estudou no Colégio Pedro II, como aluno externo, preparando-se para ingressar
na Academia de Direito de São Paulo. Mais tarde realizou estudos fragmentários, um recurso
legal oferecido pelo governo central e tornou-se bacharel, formado em Ciências Sociais e
Jurídicas pela Faculdade de São Paulo. Foi membro do Instituto da Ordem dos Advogados da
capital do Império, com atuações relevantes como jornalista, educador e como representante
do partido republicano na Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo.
Ao apresentar a trajetória de Rangel Pestana, Hilsdorf traz muitas contribuições para
nossa pesquisa, e as destacaremos a seguir.
Informa que a música estava presente no currículo do Colégio Pedro II e também era
oferecida como aulas avulsas particulares na província de São Paulo.
Que o ensino era precário em outras escolas públicas e que a opção oferecida aos
estudantes era de iniciativa particular. Em 1854, além das aulas avulsas havia em São Paulo
vários colégios de instrução secundária para meninos, em que os mais conhecidos eram: o
Brasileiro, o Emulação, o Glória, o Ateneu Paulistano, o Liceu Paulistano, o Ipiranga e o
Culto à Ciência. Para as meninas apenas estabelecimentos de ensino elementar.
Outro aspecto relevante para nossa pesquisa é que esses colégios se inspiraram nos
modelos norte-americanos. Vemos isso no Colégio Ipiranga, que “tornara-se conhecido pelos
métodos de ensino empregados pelo diretor José Tell Ferraz, inspirados em padrões norte-
americanos. As diretrizes do Colégio davam ênfase à formação integral do aluno, objetivando
cultivar-lhe os aspectos físicos, intelectuais e morais” (p.17).
O Liceu Paulistano era um colégio particular de instrução secundária e foi fundado
pelo padre Mamede José Gomes da Silva, que era “músico e compositor reconhecido,
deputado provincial na legislatura de 1862-63 pelo partido liberal”. Pestana foi aluno de Padre
Mamede e com “ele teria se defrontado com um ideário liberal-democrata decisivo para sua
formação” (p. 20).
Quando Rangel Pestana chegou a São Paulo para se preparar para a Academia de
Direito, encontrou “um cenário político e intelectual onde a agitação liberal começava a se
fazer cada vez mais presente” (p. 21) e os estudantes da Academia de Direito “já estavam
politicamente divididos em liberais e conservadores” (p. 20)
Hilsdorf se ressente da falta de documentação acadêmica oficial de Pestana enquanto
aluno da Faculdade de Direito, uma vez que grande parte da documentação foi destruída por
um grande incêndio ocorrido no dia 16 de fevereiro de 1880, mas consegue levantar
informações sobre a vida acadêmica e sobre as atividades desenvolvidas por Rangel Pestana
neste período.
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No segundo capítulo encontramos as informações sobre a atuação de Rangel Pestana
na Imprensa. Destacaremos algumas que fazem ligação com nossa pesquisa.
Rangel Pestana trabalhou na “Gazeta de Campinas” de 1870 a 1874 participando
como editorialista, articulista, redator interino, simples colaborador e figurante em seus
noticiários. Em seus escritos mostra simpatia pelos Estados Unidos. “O modelo sócio-político
norte-americano, nesses textos, está subjacente, mas não é explicitamente referido” (p. 76).
Em seus escritos não há referências diretas à questão da escravidão, nem à educação escolar,
embora neste período tenha lecionado em vários colégios, entre eles o Colégio Internacional,
de confissão protestante.
Se Rangel Pestana teve diversas funções dentro da Gazeta não foi, entretanto, o redator ou colaborador encarregado da seção sobre educação. Na Gazeta de Campinas os problemas concernentes à educação nacional são tratados por Francisco Quirino, Jorge de Miranda, Campos Sales e Américo Brasiliense, que escrevem, entre 1869 e 1874, a favor do ensino popular e obrigatório, da educação feminina, da fé no poder da iniciativa particular, da crença no poder da escola para afastar o fanatismo, a indigência e o despotismo, e outros temas que empolgavam as lideranças políticas e culturais do país (p. 77).
Estes jornalistas apresentam como modelo educacional o norte-americano, seja com
relação aos aspectos políticos ou propriamente pelos aspectos pedagógicos. O ensino norte-
americano é amplamente citado, sendo esta uma característica observada nos republicanos e
liberais.
Rangel Pestana trabalhou em vários jornais da época e procurou esclarecer a opinião
pública sem fazer, no entanto, propaganda revolucionária. “Veremos, outrossim, que Pestana
fez um intenso uso político da educação e do ensino” (p. 96)
Em 4 janeiro de 1875 foi fundado o jornal A Província de São Paulo. Foi apresentado
como órgão não pertencente a nenhum partido e colocando-se a serviço da Província de São
Paulo, que propunha debates na busca de soluções para os problemas que a afetavam. Rangel
Pestana assumiu a parte da redação política ao lado de Américo de Campos. “É importante
assinalar que Rangel Pestana esteve envolvido com o empreendimento desde o início,
entendendo-se este termo não só como ‘começo temporal’, mas ainda no seu sentido de
‘origem’ ou ‘matriz’” (p. 83). Devido à estruturação implantada por Pestana, este jornal
apresenta um marco no panorama da imprensa destacando-se por dois aspectos: “o político e
o técnico; o formativo ou doutrinário e o informativo” (p. 87), sendo também “um dos
primeiros jornais organizados em moldes empresariais” (p. 87).
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Os temas educação e ensino estão sempre presentes no jornal A Província de São
Paulo graças à visão de Rangel Pestana. A partir das reflexões propostas pelo jornal é
possível observar uma política de educação derivada de um ideário político e “uma proposta
de implementação dessa prática”. Este jornal se posiciona “contra tudo o que venha da
monarquia e de sua tradicional aliada, a Igreja Católica” e a favor de “tudo aquilo que
representa Modernidade, Liberdade e Progresso”. Rejeita “todo o sistema público de ensino
oferecido ao povo da província de São Paulo, por considerá-lo insuficiente, inútil e
desatualizado” e a favor “das escolas mantidas por americanos de confissão protestante, pois
seu ensino, embora confessional, estava organizado segundo os padrões práticos e do made by
yourself da nação tomada como modelo pelas vanguardas políticas e culturais da época” (p.
97-8).
Em 1876 o presidente da província foi elogiado pelo jornal por dar os primeiros passos
para solucionar a questão de instalações adequadas ao funcionamento das escolas, sendo
apontado como um dos problemas crônicos do ensino público provincial. Nesta época cabia
aos professores conseguir uma sala e materiais didáticos para ministrar suas aulas e o que se
via eram classes instaladas em lugares inadequados. Transcrevemos a seguir a citação
apresentada por Hilsdorf, retirada do Folhetim da Província de São Paulo de 19 de setembro
de 1879, onde o autor descreve uma dessas escolas que funcionava na casa do professor:
Como o professor é pobre e escasso o ordenado instala a escola numa saleta qualquer, contanto que seja barata e lhe não absorva o ordenado. A título de mobília procura 2 ou 3 bancos de pau, uma cadeira para si, uma mesa onde ao menos possa encostar os cotovelos e tomar notas, um pote e uma caneca, e aí temos armado o alcatifado palacete da instrução. Agrupam-se aí dentre 20, 30 ou 40 crianças, tendo por único horizonte as frestas sombrias de uma rótula e durante 4 ou 5 horas diárias martirizam os ouvidos e as cordas vocais da laringe em insólito berreiro, respirando ar viciado e poeira, arruinando a saúde, cansando a inteligência, matando a vontade de aprender, a natural curiosidade infantil e a paciência (...) O resultado é tornar-se a escola o mau sonho das crianças. (p. 104)
Várias outras críticas são apontadas pelo jornal A Província de São Paulo ao sistema
de ensino vigente com o intuito de alertar os leitores, defendendo o princípio da liberdade de
ensino, “isto é, o direito dos particulares abrirem escolas livres da ‘doutrina oficial’, isto é,
dos dogmas ultramontanos e abertas para conteúdos científicos modernos, positivos” (p. 117).
Hilsdorf apresenta ainda neste segundo capítulo várias passagens retiradas do jornal A
Província de São Paulo, onde está presente a discussão de aspectos políticos e pedagógicos
do ensino em São Paulo.
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Empenhados, sob a inspiração explicita de padrões norte-americanos, na propagação do ‘culto santo da educação popular’, Pestana e o grupo da Província de São Paulo vão, pelo jornal, promover, coadjuvar, sugerir e registrar um variado elenco de iniciativas educacionais, escolares ou não, as quais, acreditavam, atenderiam a intenção. Dentre estas atividades podemos destacar aquelas referentes à divulgação de livros e de métodos de leitura, a promoção de conferências populares e o apoio às escolas noturnas gratuitas, de primeiras letras ou profissionalizantes (p. 120).
Dentre os métodos que receberam apoio de Pestana, apontados por Hilsdorf,
destacamos o método para o ensino de leitura de João Köpke, por ter sido “criado para uso
dos alunos da Escola Americana de São Paulo com a finalidade de substituir os tradicionais
silabários”.
No terceiro capítulo de sua Tese de Doutorado, Hilsdorf apresenta a atuação de Rangel
Pestana como educador e afirma que ele “não apenas pregou e escreveu sobre o ensino na
imprensa, difundindo idéias, educando enquanto jornalista, como também atuou diretamente,
criando, dirigindo, lecionando e colaborando em escolas de modo regular e sistemático, ao
longo das décadas de 70 e 80” (p. 171). Desta forma concretizava o que pregava o
liberalismo, ou seja, a crença de que o ensino seria um elemento transformador da sociedade.
Uma educação escolar “com funções sociais específicas, com uma estrutura pedagógica
própria, com características metodológicas e curriculares adequadas aos seus objetivos
político-ideológicos mais amplos”. Criticando o ensino aplicado na escola pública existente e
defendendo a criação de escolas que aplicassem a metodologia utilizada pelos povos
modernos, não só nos aspectos pedagógicos como também nos político-sociais.
Entre 1872 e 1873 ocupou-se da direção do Colégio Almeida Martins, voltando a
residir na Corte (Rio de Janeiro) e participando do Diretório Republicano local. No segundo
semestre de 1873 lecionou também na Escola do Povo, que representou a “tentativa mais
integra de concretização do pensamento político-pedagógico das lideranças democráticas dos
inícios da década de 70, sobre educação popular, amplamente influenciado por padrões norte-
americanos” (p. 173). Esta escola era de iniciativa privada, um empreendimento coletivo, com
currículo atualizado, diferente do programa oficial e oferecia cursos diurnos regulares abertos
aos meninos até 14 anos, além de aulas noturnas avulsas para ambos os sexos. Oferecia
também serviços biblioteca e havia um cuidado com a preparação dos materiais e
aparelhamento das instalações. “Não sabemos se a criação da Escola do Povo foi iniciativa
pessoal de Rangel Pestana. Podemos conjeturar que sim” (p. 177).
Hilsdorf informa que “esse padrão de escola livre será representado com maior ou
menor inteireza pelas instituições educativas em que Pestana vai atuar nos próximos anos”
(...) (p. 178), como é o caso do Liceu de Artes e Ofícios. “A instalação do Liceu de Artes e
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Ofícios seria, pois, mais um empreendimento das lideranças democráticas, de republicanos e
liberais adiantados comprometidos com a transformação da Província de São Paulo” (p. 180).
Os cursos eram de primeiras letras e profissionalizantes. As aulas teóricas aconteciam nas
dependências da Escola Normal e para a parte prática “seriam usadas as oficinas do Instituto
de Educandos Artífices e outras particulares” (p. 181). Hilsdorf informa também que havia
aulas avulsas de música, e o professor era Antonio Carlos R. de Andrada M. e Silva Júnior,
que também exercia a função de 2º. Vice-Presidente do Liceu de Artes e Ofícios (vale destacar
que Rangel Pestana atuava como 1º. Vice-Presidente). Ao trazer as informações sobre as
conferências que eram realizadas aos domingos ou nos dias santificados, destaca que a música
era um dos assuntos apresentados sendo os conferencistas, E. Caetano e E. Vecchi.
Ao abordar as escolas americanas de confissão protestante, Hilsdorf pontua as razões
que a fizeram realizar a pesquisa anterior sobre este assunto, explicando que as lideranças
progressistas paulistas de liberais e democratas apoiaram essas escolas por representarem “a
possibilidade de um novo Lócus para a manifestação e experimentação de seus ideários” (p.
186). Os protestantes tiveram o apoio dos anti-clericais e dos maçons, além da acolhida dos
liberais e republicanos, que entendiam que “nessas escolas haveria a possibilidade de garantir
aos setores progressistas um ambiente de respeito aos seus princípios” (p. 187). E ainda
abririam caminho para as renovações que estavam sendo propostas.
Rangel Pestana, mais do que qualquer outro representante dessas lideranças promoveu e incentivou a aceitação desses colégios pela sociedade paulista: como jornalista, fez em seus artigos, a defesa dessa pedagogia; como educador (escolar), colaborou de diferentes maneiras, com essas escolas, lecionando, examinando seus alunos, etc.; como legislador, tomou as idéias e práticas educativas que elas propunham como um dos modelos das reformas do ensino paulista que promoveu e orientou na transição Império-República. (p. 188)
Como vimos, as escolas americanas receberam da parte de Rangel Pestana total apoio
ao serem instalados em pontos estratégicos da Província de São Paulo a partir da década de
setenta. “Mais para o final da década de 80 e no decorrer da década de 90, Horace M. Lane, o
novo diretor da Escola Americana terá um papel relevante na implantação das reformas
republicanas da instrução pública, as quais deveram às escolas americanas de confissão
protestante, em muito, sua inspiração e sua execução” (p. 191).
Hilsdorf traz informações relevantes sobre a Escola Americana e o Colégio
Piracicabano, que serão detalhadas no próximo capítulo, inclusive sobre a presença da
música no âmbito escolar.
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“Não sabemos se Rangel Pestana exerceu atividades docentes na Escola Americana;
sabemos, isto sim, que tinha ligações estreitas com Horace Lane e que confiava na sua
competência pedagógica” (p. 208), mas podemos afirmar quanto à participação de Rangel
Pestana em outra escola americana de confissão protestante, trata-se do Colégio
Piracicabano. Desta vez Pestana “envolveu-se pessoalmente com o colégio, referendando
publicamente sua adesão (ou simpatia) aos princípios pedagógicos, políticos e religiosos que o
embasavam” (p. 210).
Preocupado com a educação feminina, Rangel Pestana abriu um colégio, inovador
para a época, em São Paulo, no início de 1876. O Colégio Pestana, como foi denominado,
“resultava de um amálgama de princípios liberais e positivistas e da prática vivenciada nos
colégios americanos de fé protestante” (p. 220). O ensino no colégio era leigo e cientificista-
positivista, oferecia um curso regular e seriado para meninas de 7 a 14 anos. Era ministrado
também o ensino religioso de acordo com a religião dos pais. A música estava presente no
currículo desta escola, sendo oferecida no terceiro e no quarto ano. Infelizmente esta
experiência não foi bem sucedida e Rangel Pestana se retirou da direção do Colégio e o
vendeu para Anna Schraeder.
Em 1884 Rangel Pestana participou de outra instituição escolar denominada Escola
Neutralidade, que “resultou da evolução de uma iniciativa de João Köpke, cujas origens
podem ser datadas de 1878” (p. 228). Esta escola foi organizada seguindo a metodologia de
ensino intuitivo e concreto, de caráter leigo e positivista, para meninos, procurando oferecer
“tudo o que as elites progressistas consideravam necessário para a formação do espírito e do
caráter do homem moderno” (232). Era oferecida instrução física, mental e moral às crianças,
sem recorrer a doutrinas ou cultos religiosos. Köpke utiliza-se permanentemente de literatura
infantil e de canções e versos “como material de seus textos didáticos, dos quais retirava
valoração moral tanto quanto fruição estética” (p. 233).
As decisões sobre a vida escolar eram tomadas pelos pais de alunos e professores, que
formavam a congregação. Essa sistemática foi utilizada também para a elaboração dos
programas de exame finais e em outras decisões, tais como:
abolição dos castigos corporais, desde março de 1885; abertura de matrículas apenas no início do ano letivo; a criação de uma aula de canto coral para adultos, oferecida aos alunos de Escola Normal, e a promoção de conferências públicas para divulgação da metodologia utilizada na Escola Neutralidade como uma “irradiação de seus serviços para a comunidade” e a criação do curso secundário para o ano de 1886 (p. 234).
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Em nota, Hilsdorf esclarece que “o curso de música seria ministrado pelo professor do
estabelecimento Gustavo Wertheimer que, aliás, compôs o hino da Escola, com letra de
Köpke” (p. 259). Na análise da programação curricular do curso secundário, observa-se que a
música está presente nos quatro anos do curso.
No quarto capítulo, intitulado “O educador na Assembléia Legislativa Provincial”,
Hilsdorf apresenta os resultados da atuação de Rangel Pestana enquanto homem público e sua
constante preocupação com as questões educacionais e suas lutas por um sistema de ensino
público.
Além destes trabalhos, outros livros de Maria Lúcia Hilsdorf forneceram pistas
importantes que remetem ao ensino da música nas escolas americanas de confissão
protestante em São Paulo. Como este não foi seu foco principal, entendemos que cabe um
estudo mais aprofundado quanto a este aspecto e durante a apresentação de nossa pesquisa
estaremos apontando os dados obtidos através de suas contribuições.
Em Templos de Civilização: a implantação dos Grupos Escolares no Estado de São
Paulo (1890-1910), Tese de Doutorado de Rosa Fátima de Souza, apresentada à Faculdade de
Educação da USP em 1997, encontramos um estudo sobre a implantação dos grupos escolares
no estado de São Paulo em 1893. Isto se deu em consonância com o projeto republicano de
educação escolar recebendo, portanto, apoio dos políticos republicanos, das elites intelectuais
e dos educadores, que buscavam instituir uma nova realidade educacional. “De fato, a
implantação dessa nova modalidade escolar trouxe mudanças significativas para o ensino
primário e para a sociedade da época” (p. 7).
Foram utilizadas fontes documentais encontradas no Arquivo do Estado e também em
arquivos escolares. Os documentos trabalhados foram os Relatórios de Diretores dos Grupos
Escolares e das Escolas-Modelo, além dos Anuários do Ensino do Estado de São Paulo,
Coleção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo, revistas pedagógicas e artigos de jornais.
Os ofícios e pareceres serviram como fontes complementares.
No primeiro capítulo encontra-se a discussão sobre a implantação dos grupos escolares
no estado de São Paulo. É apresentada também a experiência da escola-modelo e as mudanças
introduzidas no ensino, passando pela questão da formação, dos critérios de recrutamento, das
condições de trabalho dos professores e diretores. Souza afirma que os republicanos paulistas
estavam com os olhos voltados para os países europeus e principalmente para os Estados
Unidos devido aos sistemas nacionais de ensino nesses países e os avanços educacionais e
apresenta vários nomes como Oscar Thompson, Rangel Pestana, Caetano de Campos,
36
Américo Brasiliense, Silva Jardim, Campos Sales, Prudente de Moraes, Francisco Glicério,
entre outros, que estiveram envolvidos com estas escolas.
Como contribuição para o nosso trabalho, destacamos os dados a seguir:
Souza cita o trabalho de Hilsdorf, que destaca a influência das escolas americanas de
confissão protestante nas primeiras reformas da instrução pública realizadas em São Paulo no
período republicano.
“Os republicanos paulistas iniciaram, em 1890, a reforma do ensino pela reforma da
Escola Normal” (p. 29). Caetano de Campos depositou nesta escola toda a esperança de
renovação e foi considerada a base da reforma da instrução pública.
Para dirigir cada uma das seções da escola-modelo, Caetano de Campo buscou profissionais cujo requisito principal fosse o domínio de novos métodos de ensino. Para tanto foram contratadas as professoras Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e Miss Márcia Browne. Ambas indicadas pelo professor Lane, diretor da Escola Americana, tinham formação nos Estados Unidos. Os esforços despendidos por Caetano de Campos para a contratação das duas professoras, conforme descreve João Lourenço Rodrigues (1930), denotam por um lado a crença no valor do método e, por outro lado, a consagração da influência americana nesse primeiro período de reforma da instrução pública no estado de São Paulo (p. 30).
No programa de ensino dos grupos escolares estavam presentes as disciplinas “leitura
de música” e “canto” (p. 37).
Souza (p. 44) cita Rodrigues (1930, p.217) quando assinala o contraste da escola-
modelo em relação à escola pública:
A mobília, cedida pela Escola Americana, era nova e envernizada; o aspecto das classes, munidas do material necessário para a prática do ensino intuitivo, causava excelente impressão. Notava-se por toda a parte ordem, asseio e não faltava nem esmo a nota artística de algumas jarras de flores, alinhadas sobre as mesas. O ambiente não podia ser mais sugestivo.
Gabriel Prestes, diretor da Escola Normal, ao apresentar o relatório referente ao ano de
1895, ao descrever o programa de ensino. “Em itens separados, trata do ensino de ginástica,
música e canto, trabalhos manuais, seguidos de seus respectivos horários” (p. 46).
Destacamos mais algumas informações para nossa pesquisa:
Além disso, para manter-se um justo equilíbrio entre a atividade e a atenção que as crianças têm de manter, os exercícios são geralmente intercalados de marchas entre bancos, de canto ou de ginástica, que constituem verdadeiros períodos de recreio, em que as crianças descansam o espírito, predispondo-se para novos exercícios. (...)
Os 10 primeiros minutos depois da entrada são ocupados pela chamada, revista de asseio, recitação de máximas morais e canto. O tempo escolar é dividido em dois
37
períodos separados por um recreio de maia hora. O primeiro período é consagrado aos exercícios reputados essenciais e que exigem maior atenção, tais como os exercícios de linguagem e de Aritmética. Cada um dos períodos é ainda subdividido em dois outros separados por exercícios de canto ou por marchas, acompanhada de música ou canto (p. 47).
A música estava presente também no currículo da Escola Normal, que era “uma escola
de excelência numa época em que o estado de São Paulo contava com poucas escolas públicas
de ensino secundário” (p. 53).
Na escola complementar a formação de professores era muito precária e foi criticada
pelos profissionais na época. A propósito deste tema, destacamos um trecho do relatório do
diretor das Escolas Modelo e Complementar de Itapetininga, apresentado em 05/04/1902,
reclamando medidas do governo:
Algumas das disciplinas do programa, tais como: trabalhos manuais, ginástica e exercícios militares, torno e marcenaria, prendas domésticas, música, modelagem e desenho, têm sido sacrificadas, umas totalmente e outras em parte, devido a falta de professores especiais. Além disso, não possui a escola um gabinete, laboratório, oficina e nem sequer um aparelho para ginástica (p. 56)
Um novo profissional surge no cenário educacional: o diretor de escola. Este cargo era
exercido, em sua maioria, por profissionais do sexo masculino. Este privilégio pode ser visto
como uma reserva de marcado, pois podiam contar com melhores salários e maior prestígio
social. “Exceção deve ser destacada às diretoras das escolas-modelo para Márcia Browne,
Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e Eliza de Andrade Macedo” (p. 68).
No segundo capítulo o foco está na inserção do grupo escolar no meio urbano. Como
visto anteriormente os republicanos deram um lugar de destaque à educação e segundo Souza,
um número significativo de escolas foi criado nas cidades, pois ofereciam maior visibilidade à
ação política do estado e propaganda do novo regime. “Observando a distribuição regional da
criação dos primeiros grupos escolares nota-se que ela acompanhou, de certa forma, o
caminho percorrido pelo café. (...) Desde a segunda metade do século XIX, o café vinha se
transformando na maior fonte de riqueza do estado de São Paulo e do país” (p. 82). Informa
também que “apesar de todas as iniciativas desencadeadas no estado de São Paulo em prol da
educação popular, a expansão do ensino não acompanhou a demanda e o crescimento
demográfico” (p. 90) e como não foi possível criar o número de escolas suficientes para
atender a todos, a solução encontrada pelo estado foi duplicar os turnos de funcionamento dos
grupos escolares. Esta decisão foi criticada por Oscar Thompson, diretor do ensino público na
época, mas não deixou de ser implantada.
38
Destacamos para a nossa pesquisa a informação sobre a inauguração do Grupo Escolar
de Jundiaí, em 12 de abril de 1896, tendo uma comitiva viajado de trem para esta
inauguração. “Ao chegar a Jundiaí a comitiva foi recebida por duas bandas de música que
fizeram ouvir o Hino Nacional” (p. 78). Em seguida, Souza apresenta um texto retirado da
Revista “A Eschola Pública” falando sobre a recepção aos convidados e sobre a inauguração
da escola, onde crianças de ambos os sexos pertencentes às escolas estavam presentes. “Mais
tarde começou a solenidade no edifício do grupo. Constou de uma imponente sessão literária,
hinos cantados pelos alunos e um grande banquete onde se trocaram brindes” (p. 78).
“O jardim de infância não era uma instituição de uso comum” (p. 105). Os pais é que
decidiam quando mandar seus filhos à escola, a maior parte das crianças entrava na escola
com 8 ou 9 anos de idade.
No terceiro capítulo Souza trabalha a questão do espaço físico das escolas. “O Estado
republicano implementou a construção de edifícios escolares, dessa forma, a arquitetura dos
primeiros grupos escolares foi responsável pela configuração da escola como um lugar dotado
de uma identidade sociocultural” (p. 12). É a busca por espaços construídos especificamente
para o serviço escolar, diferentemente do período do Império, em que “a escola pública era
muitas vezes a extensão da casa do professor” (p. 111).
Souza informa que existiam nas escolas, alas para meninos e alas para meninas, com
entradas independentes, cumprindo a prescrição legal. Em alguns casos esta prescrição era
levada a extremos e as alas não se comunicavam. Havia uma vigilância permanente dos
alunos e isto era justificado, uma vez que a finalidade da escola era civilizar e moralizar.
Outro aspecto apontado é a questão da mobília escolar. Discussões aconteceram entre
médicos, higienistas, pedagogos, administradores e industriais sobre o melhor modelo de
carteiras a serem utilizadas pelas crianças.
Vários professores eram favoráveis aos castigos físicos e tinham dificuldades em
aceitar as orientações da pedagogia moderna utilizada nas escolas públicas estrangeiras. No
entanto, “todos os regulamentos da instrução pública do período aqui considerado (1890-
1910) reafirmavam que a disciplina escolar deveria repousar essencialmente na afeição do
professor para com os alunos, de modo a estes serem dirigidos, não pelo temor, mas pelo
conselho e pela persuasão amistosa” (p. 139).
O quarto capítulo trata da formação do cidadão republicano. “Educar o povo consistia
em preparar as crianças para a vida social” (p. 149). A partir desta missão surge a necessidade
de estabelecer o programa e as orientações metodológicas. A formação dos professores
acontecia de acordo com a prática dos novos processos pedagógicos. É apresentada também a
39
análise do método intuitivo, considerado o principal elemento de renovação do ensino na
época. As lições de coisas era o método moderno por excelência, sendo defendido por Rui
Barbosa, que inclusive fez uma adaptação para a língua portuguesa do livro de Norman Alice
Calkins intitulado “Primary Object Lessons”, traduzido como “Primeiras Lições de Coisas”.
No projeto de educação integral algumas matérias tinham o objetivo de auxiliar na
formação moral, cívica e instrumental. A música estava neste grupo de disciplinas e através
dela esperava-se “a docificação dos costumes, a harmonização do espírito e a aquietação dos
ânimos. De preferência os hinos de louvor à pátria, à cidade, à escola, ao Estado, à
República!” (p. 173)
Houve uma reformulação dos programas que passou a vigorar em 1905.
A elaboração deste programa contou com a participação de Oscar Thompson e Horácio Lane1. O primeiro deles era, na época, inspetor-geral da instrução pública e participara na elaboração do programa que se encontrava em vigor anteriormente; o segundo era diretor da Escola Americana e há muitos anos participava ativamente, de forma indireta, na condução da instrução pública no estado de São Paulo (p. 181).No 1º. ano, adotava-se o método americano denominado Tonic-solfa compreendendo o ensino das notas musicais. Em 1895, a escola adotou, no 2º. Ano, o sistema denominado Galin-Paris-Chevé segundoo qual as notas musicais eram representadas por sete algarismos, facilitando o solfejo através de exercícios escritos. O professor João Kopke ofereceu à escola manuais e coleções de exercícios sobre esse método (p. 186).
Na caligrafia observa-se o ensino em conformidade com o sistema Americano, ou
seja, a adoção da caligrafia vertical ou escrita direita, utilizada também nas escolas argentinas
e européias. As diretoras da Escola-Modelo não só introduziram a caligrafia americana, como
adquiriram, inicialmente nos Estados Unidos, cadernos específicos para esta atividade.
Na relação de materiais importados para as Escolas-Modelo encontramos a indicação
dos harmônios, que eram utilizados nas aulas de música.
No quinto capítulo são analisados os exames, as festas de encerramento, as exposições
escolares e as comemorações cívicas. “A instituição dos exames públicos constituiu uma das
“inovações” educacionais mais contraditórias e conflituosas no processo de construção da
escola primária pública renovada” (p. 242). As festas de encerramento do ano letivo e as
exposições escolares faziam parte do ritual do exame. As festas escolares eram noticiadas nos
jornais da cidade e se constituíram em acontecimentos sociais importantes. Verificamos que a
música sempre fazia parte do programa da festa.
1 A participação de Horacio Lane denota a permanência da influência americana na instrução pública do estado de São Paulo no início do século XX. Da escola americana vieram a sugestão das diretoras da primeira Escola-Modelo, a mobília e o material para as primeiras escolas renovadas, o método e os livros de leituras mais utilizados no ensino primário, na época escritos por João Kopke.
40
Mônica Appezzato Pinazza em sua Tese de Doutorado intitulada “A pré-escola
paulista à luz das idéias de Pestalozzi e Froebel: memória reconstituída a partir de periódicos
oficiais” (FE-USP, 1997), procurou “realizar uma análise histórica do estabelecimento da pré-
escola no cenário educacional paulista” (p. 9), ao mesmo tempo em que investigou a maneira
como as idéias pedagógicas de Pestalozzi e Froebel foram apropriadas pelos agentes da
educação no Estado de São Paulo. Trabalhou com fontes primárias: publicações em
periódicos oficiais paulistas na tentativa de resgatar elementos da memória da pré-escola em
São Paulo. Utilizou-se das revistas: A Escola Pública (1893-1897); Revista do Jardim de
Infância (1896-1897), Revista de Ensino (1902-1918); Revista Escolar (1925-1927) e
Educação (1927-1961) e também do Anuário do Ensino do Estado de São Paulo.
Como contribuições para nosso trabalho, destacamos a informação que Miss Márcia
Browne e Maria Guilhermina Loureiro de Andrade foram destacadas da Escola Americana
pelo prof. Horace Lane para introduzirem na escola pública o pensamento pedagógico com
base nos preceitos pestalozzianos e froebelianos utilizados nos Estados Unidos (p. 32-33).
Oscar Thompson realizou uma visita ao Jardim da Infância, vinculado à Escola
Normal e teceu comentários elogiosos na Revista A Escola Pública, informando que todo o
material foi trazido da América do Norte e que as mesas e cadeiras são baixas com capacidade
para acomodar 8 crianças.
A organização inicial das atividades do jardim de infância implicou na tarefa de reunir planos e guias práticos de instituições estrangeiras, especialmente norte-americanos e textos, contos, versos e cantos, publicados, sobretudo em inglês e alemão (p. 42).
Na Revista do Jardim da Infância encontram-se cantos e marchas, traduzidos e
adaptados para o português, para acompanhar jogos e ocupações retirados de coleções norte-
americanas, como é o caso da Boston Collection of Kindergarten Stories. Ainda na revista
encontram-se trechos de livros estrangeiros que trazem os princípios pedagógicos de Froebel.
O ensino seqüencial e graduado seria feito conforme as potencialidades, necessidades e interesses particulares da criança. As atividades desenvolvidas com a participação e cooperação do aluno deveriam privilegiar a observação, reflexão e execução e, portanto, incluir exercícios sensoriais e motores com objetos concretos (p. 57-8).
Na Revista de Ensino de outubro de 1902, Romão Puiggari tece comentários a respeito
do método do ensino primário: “É, pois, exercitando constantemente a atenção, o
41
entendimento e a espontaneidade natural do aluno, que o ensino primário deve subsistir. É ele
essencialmente intuitivo e prático” (p. 59).
Respondendo pela atividade docente de música encontramos o nome do prof. João
Gomes Jr. (p. 84).
Segundo Pinazza “o movimento de idéias pedagógicas que se expande por toda a
Europa a partir do século XVIII, atinge países americanos em meados do século XIX e chega
ao Brasil, ao final desse mesmo século” (p. 139).
Nas doutrinas de Pestalozzi e Froebel encontram-se os princípios da prática educativa
em que a observação, a reflexão, e a liberdade e pensar e agir constituem elementos básicos.
Como decorrência, cabe no processo educativo atividades que permitam ao aluno sua
participação efetiva na realização, destacando-se entre as práticas pedagógicas: tarefas
cotidianas, trabalhos manuais, desenho, música, conto e ginástica.
Froebel demonstrou grande afinidade pelas coisas da natureza. Quando criança passou
por uma escola “onde os exercícios consistiam, basicamente, na memorização de passagens
bíblicas e de hinos”. As muitas experiências de vida proporcionaram a Froebel oportunidade
de transitar por diferentes caminhos. Seu interesse pelas questões da educação se deu ao
conhecer as idéias de Pestalozzi. Interessou-se especialmente pelos passeio que Pestalozzi
realizava com seus alunos, colocando-os em contato com a natureza, permitindo lições
práticas e os jogos ao ar livre.
Embora o conceito de espontaneidade tenha sido anunciado por Pestalozzi, foi Froebel
quem o desenvolveu mais nitidamente, “colocando-o no eixo de sua pedagogia” (p. 171).
“Froebel apresenta sua concepção de jogo, como uma atividade fundamental da
criança e própria de sua natureza” (p. 173). Segundo ele, somente através dos símbolos a
criança pode chegar à verdade dos fatos. Entende ainda que é fundamental uma educação
escolar apropriada às necessidades da criança. Além disso, esteve sempre preocupado com a
formação de quem iria cuidar das crianças.
Nos postulados de Pestalozzi a ênfase é dada às noções de educação integral, processo
intuitivo e ensino graduado. Desta forma, pretendia-se apresentar ao mundo a proposta
pedagógica das escolas primárias paulistas. Estas questões foram apresentadas no Memorial
assinado por Carlos Reis, Oscar Thompson e Horace Lane, encaminhado à Exposição
Universal de São Luiz (Massachussets) e publicado na Revista de Ensino de Fevereiro de
1904. “Isso pode ser constatado, ao considerar a maneira como foram introduzidas as aulas
intuitivas ou lições de coisas nas escolas primárias” (p. 204).
42
Ailton Pereira Morila traz contribuições para nossa pesquisa através de sua
Dissertação de Mestrado A escola da rua: cantando a vida na cidade de São Paulo (1870-
1910) - (FE-USP, 1999). Este trabalho se encaixa no contexto de história social, entendendo
“a música como fonte rica o suficiente para vislumbrarmos o viver das camadas populares da
cidade de São Paulo no período em questão” (p. vii), buscando ao mesmo tempo “analisar o
papel da música na transmissão e transformação cultural das camadas sociais” (p. vii).
A cidade de São Paulo no período será o palco da República do Café e através do
projeto imigrantista acaba por atrair muitas pessoas para trabalhar nas grandes propriedades
de café. A chegada dos imigrantes transforma São Paulo e inaugura uma nova fase na cidade,
marcada pelas falas, línguas e cantos tão diversos.
O canto, i.e., a música representa um papel especial, transmitindo valores, conselhos, visões de mundo, de geração a geração. Através da música, criada e transformada no cotidiano e transmitida oralmente, podemos vislumbrar o mundo visto por estas classes populares (p. vi)
As fontes utilizadas neste trabalho são memórias e memorialistas; e coletâneas de
músicas.
Morila aponta que uma série de medidas legais acontece com o propósito de controlar
o espaço público e privado das classes populares. Há espaço para o discurso higienista, com a
preocupação de controlar as epidemias, que se tornam um problema apontado pela elite, e que
deve ser resolvido (p. 88-9).
Existe um processo de reforma da sociedade e a educação escolar é apontada pelos
republicanos como a grande arma da transformação da sociedade brasileira. “Rangel Pestana,
que segundo Hilsdorf foi o principal articulador da educação do grupo republicano em São
Paulo, participando ativamente como jornalista, educador e legislador” (p. 203-4), entendia
que o caminho a ser seguido era a formação do cidadão e da nacionalidade por meio da
educação. “No projeto republicano paulista, não só o preconceito, o obscurantismo, os saberes
populares precisavam ser rechaçados, racionalizados. O trabalho também deveria ser racional.
(...) A escola republicana é, portanto uma escola que se pretende racional” (p. 209).
Com a criação de grupos escolares em 1894 é possível verificar a divisão do trabalho
dos professores segundo a divisão das crianças em classes seriadas e graduadas. A música
estava presente nas escolas, seja através dos hinos patrióticos ou canções com finalidades
didáticas.
43
A instrução era, no período republicano, o elemento capaz de fazer evoluir a sociedade para uma moderna sociedade burguesa. Mas não era o único elemento: como vimos, ordem progresso, razão e trabalho já vinham se insinuando na cidade de São Paulo, através da organização dos espaços, na habitação, na organização e moralização do lazer, na criação de uma ideologia do trabalho.
Morila apresenta a definição de hino encontrada no Dicionário Musical Brasileiro,
organizado por Mário de Andrade: “Cântico Festivo, solene, em honra de divindades, heróis
ou honra nacionais” (p. 211) e faz uma análise das letras de vários hinos cívicos, mostrando
que eles eram cantados diariamente e não só em dias festivos. Aponta também para o fato de
que a partir de contextos sócio-políticos diferentes, os hinos propunham a valorização da idéia
de pátria e de uma nação forte e promissora (p. 213).
Citando Kishimoto (1993), informa que nos jardins de infância “também era comum o
emprego da música com fins didáticos e por razões culturais, já que a música perpassava
todas as esferas da vida da cidade” (p. 214); e em nota de rodapé indica que o primeiro jardim
de infância em São Paulo foi criado na Escola Americana, em 1877.
“Kishimoto alerta que o Jardim de Infância nos seus primórdios no Brasil atendia apenas aos filhos da elite. Enquanto se procurava negar a brincadeira de rua para as crianças da elite, o jogo e a música eram utilizados em instituição para ensinar estas mesmas crianças” (p. 216).
Morila aponta que era dada relevância ao ensino da música, assim:
A “Escola Americana” – um dos modelos para o projeto republicano de educação escolarizada – ensinava música vocal ainda na escola primária e música no curso secundário. A “Escola Normal” oferecia canto coral para adultos, além de música. A “Escola Neutralidade” entremeava seus exames com canções e declamações de poesia (p. 218).
Ao responder a pergunta, quais as razões para o espaço que a música tinha na escola,
Morila cita Marta Maria Chagas de Carvalho, que traz a fala de João Lourenço Rodrigues, um
aluno da Escola Normal.
As crianças, que outrora fugiam com horror da escola, eram agora as primeiras a chegar. Pudera! À imobilidade de outrora, que as fazia morrer de tédio, sucediam agora, alternando com lições curtas, exercícios de marcha e canto, que imprimiam à vida escolar um tom (p. 220)
Desta forma é possível entender que a música amenizava o ambiente escolar,
tornando-o mais agradável. Morila mostra, ao analisar as canções, que a música poderia ser
44
utilizada também para a transmissão de um conhecimento novo, uma vez que estava presente
em todas as esferas do cotidiano.
Bastos é citado por Morila no que se refere à utilização da música com função
pedagógica. Este afirma que a sistematização da música com função pedagógica acontece pela
primeira vez com o Canto Gregoriano (p. 221).
É possível observar que a música foi bastante utilizada para educar o cidadão
republicano, “educação esta que deveria ser racional, liberal, incutindo, principalmente nas
camadas populares, a ideologia do trabalho” (p.222). Essa utilização da música no cotidiano
escolar se deu tanto como pedagogia, quanto como diversão, necessária ao ambiente escolar,
ou ainda como linguagem.
Em sua Dissertação de Mestrado, intitulada Reconstrução histórica do Curso Normal
da Escola Americana de São Paulo (1889-1933) – internato de meninas: uma leitura de seu
cotidiano e da instrução e educação feminina aí ministradas (PUC, 1999), Shirley Puccia
Laguna teve por objetivo estudar uma instituição de ensino particular religiosa, tendo por
objeto o Curso Normal da Escola Americana, desde a sua oficialização em 1889 até a sua
suspensão em 1933.
No primeiro capítulo Laguna recupera parcialmente a estrutura e o funcionamento da
Escola Americana e do Mackenzie College. No segundo capítulo, faz uma leitura do
protestantismo e sua versão Presbiteriana, que nortearam a concepção de educação a ser
oferecida à sociedade paulistana. No terceiro capítulo apresenta alguns dos princípios e
normas da educação na Escola Americana, sob a ótica de Horace Lane que atuou como
presidente da instituição entre os anos de 1884 e 1912. No quarto capítulo faz a reconstrução
histórica do Curso Normal da Escola Americana, recuperando os aspectos relativos à sua
estrutura e funcionamento. No quinto capítulo traz as informações sobre o Internato de
Meninas, uma vez que o internato era a extensão da escola e do lar.
As contribuições trazidas por Laguna para nossa pesquisa serão apontadas no decorrer
do segundo capítulo.
Outro trabalho que utilizamos como referencial teórico foi a Dissertação de Mestrado
de Vera Lúcia Gomes Jardim, intitulada “Os sons da República: o ensino da música nas
Escolas Públicas de São Paulo na Primeira República – 1889-1930” (PUC-SP, 2003).
Em sua pesquisa Jardim procura desmistificar a idéia de que o período pós-30 teria
marcado o início da educação musical nas escolas brasileiras. É certo que com Villa-Lobos,
artista brasileiro reconhecido internacionalmente, a educação musical teve grande
visibilidade, mas a pesquisa apresenta como justificativa a relevância de estudar o período
45
anterior a 1930 “por ter sido em meados do século XIX que correntes do pensamento
pedagógico, com vistas à renovação dos métodos e das finalidades do ensino, começam a
repensar a profundidade da natureza da formação dada aos alunos” (p. 19).
Jardim apresenta como objetivo de seu trabalho “reconstruir historicamente o ensino
musical nas escolas públicas de São Paulo na Primeira República, momento em que
importantes reformas são realizadas” (p. 23).
As fontes utilizadas foram a legislação e documentos localizados no Arquivo Histórico
de São Paulo, no Centro de Professorado Paulista e na Biblioteca do Conservatório Dramático
e Musical de São Paulo.
No primeiro capítulo, intitulado “Análise da legislação referente ao ensino musical no
período da Primeira República – 1889-1930”, Jardim discute a legislação concernente ao
ensino musical aplicado nas escolas públicas paulistas no período republicano, ou seja, “a
determinação da carga horária, a permanência nas séries e nos graus, a definição, organização
e gradação dos conteúdos, as formas de avaliação; bem como sua situação hierárquica no
currículo” (p. 27-28). Também analisou as prescrições legais e relacionou a estreita ligação
entre a formação de professores e a formação de alunos.
Na lei nº. 88, de 08 de dezembro de 1892 há a subdivisão do ensino primário em
Preliminar e Complementar e estabelece para o ensino preliminar matéria Música e Leitura da
música. No decreto nº. 248, de 26 de julho de 1894 encontramos o programa para as Escolas
Preliminares com uma quantidade de três aulas de música por semana, carga horária
equivalente a outras disciplinas como Geometria, Geografia Geral e Desenho.
O decreto nº. 1239 de 30 de setembro de 1904 estabeleceu uniformidade dos programas entre as escolas-modelo, grupos escolares e escolas isoladas. Há aqui a intenção de ampliar e disseminar uma experiência relevante para os legisladores, que advertiam no decreto nº. 1253, de 28 de novembro de 1904, que o ensino deveria ser ministrado nas respectivas classes, de inteiro acordo com o programa adotado, sem preferência de umas sobre as outras matérias, reiterando que o ensino de música seria ministrado pelos próprios professores da classe, mesmo que o conteúdo exigisse, como exigia, um conhecimento e domínio especifico do professor. (p. 37)
Com o decreto nº. 3858, de 11 de junho de 1925, verificamos a consolidação do
ensino de música nas escolas públicas e do apuro técnico, pois criava o cargo de Inspetor
Especial de Ensino para Música. Este deveria orientar e dirigir o Orfeão Infantil.
Apesar das dificuldades apontadas nos relatórios quanto à falta de material e preparo
dos professores de música, a disciplina permaneceu no currículo.
46
No segundo capítulo, “Os métodos de ensino musical”, Jardim traçou um panorama
das tendências da pedagogia musical e a descrição dos métodos localizados. A necessidade da
aplicação do método analítico para o ensino da música vem apoiado nas explicações do
educador João Köpke. O método “Aulas de Música” de João Gomes Jr. é um manual de teoria
musical que traz uma descrição sintética dos conceitos dos pontos principais da Teoria
Musical, para ser usado pelos alunos das escolas normais.
O terceiro capítulo, intitulado “As Prescrições”, traz a organização das orientações
para o ensino da música, demonstrando as expectativas das práticas de ensino. Analisa o
repertório musical por seu conteúdo e sentido musical, prescrito e adequado ao ambiente
escolar, com o objetivo de criar uma cultura musical específica. “As partituras musicais foram
recolhidas do Álbum de música da Escola Modelo Caetano de Campos – secção feminina, de
1897; das publicações da Revista de Ensino e da Revista Escolar; e de edições especializadas
para uso nas escolas...” (p. 28). Predominam no álbum os hinos e marchas, que deveriam ser
tocadas ao piano, mas há também canções ligadas a sentimentos mais íntimos.
Apesar das contribuições desta pesquisa para a nossa, destacamos que a sua
preocupação foi com o ensino musical nas escolas públicas de São Paulo na Primeira
República e não com o ensino musical nas escolas americanas.
Renato de Souza Porto Gilioli em sua Dissertação de Mestrado “Civilizando pela
música: a pedagogia do Canto Orfeônico na Escola Paulistana da Primeira República” (FE-
USP, 2003), apresenta “um estudo documental e bibliográfico acerca das características do
projeto de canto orfeônico das décadas de 1910 e 1920, buscando compreender como essa
modalidade inseriu-se no projeto de ‘civilização’ dos costumes e de construção de uma
identidade nacional, desenvolvido pela escola da época” (p. 9), tratando-se das escolas
paulistas. Apresenta destaque para os professores que foram os pioneiros em aplicar esta
modalidade de ensino musical em São Paulo.
Os manuais didáticos do período foram utilizados como importante fonte documental,
sendo que “as demais fontes aparecem complementarmente como suporte para contextualizar
e compreender adequadamente os manuais” (p. 9).
No capítulo 1, “O universo sonoro da música ocidental erudita”, Gilioli discute sobre o
discurso musical presente no canto orfeônico, através de uma compreensão do universo
sonoro.
No capítulo 2, “Recuperando aspectos do canto orfeônico”, desenvolve um histórico
sobre o canto orfeônico, abordando sua origem, significado e um panorama de seu
desenvolvimento na Europa e nos EUA.
47
Primeiramente é útil esclarecer que o canto orfeônico é uma modalidade de canto coral (geralmente executado a cappella, ou seja, sem o acompanhamento de instrumentos) destinados a amadores, cuja característica é ser uma prática musical de teor essencialmente pedagógico-escolar e moral. Junto ao termo canto orfeônico sempre aparece o nome que designa as sociedades que promovem esta prática específica de canto, os Orfeões (p. 33).
Gilioli apresenta também as definições e diferenciações entre canto coral e canto
orfeônico trazidas por Ceição de Barros Barreto, Maria Luisa Priolli e Villa-Lobos para a
aplicação no Brasil.
No Brasil, essa distinção delineou-se pelo menos desde os princípios da aplicação do canto orfeônico nas escolas paulistas, na década de 1910. Já se dizia, naquela época, que o objetivo desta prática não era formar “pequenos maestros” ou músicos profissionais, mas sim alfabetizar musicalmente as crianças (p. 33).
Ao falar sobre as sociedades corais na Alemanha, afirma que “nos estados germânicos,
a importância religiosa e educativa dos corais já era afirmada pelo menos desde Lutero” (p.
57).
No capítulo 3, “Aspectos históricos gerais do canto orfeônico no Brasil”, encontra-se
um estudo biográfico dos mentores do movimento orfeônico – João Gomes Junior, Carlos
Alberto Gomes Cardim, Fabiano Lozano, Lázaro Lozano, Honorato Faustino e João Batista
Julião – que foram pioneiros em trazer esta modalidade de ensino musical para a escola
brasileira e de músicos intelectuais próximos a eles.
Neste capítulo as principais contribuições do trabalho de Gilioli, para este são as
seguintes:
Salienta a presença da música nos currículos e a “atuação de Miss Márcia Browne no
ensino de música, colocando o Tonic Sol-Fa na escola pública paulista na década de 1890” (p.
86). Esta iniciativa foi de grande importância para o desenvolvimento do canto orfeônico nas
décadas de 1910 e 1920. Destaca também que o “Colégio Piracicabano pode ter sido o
pioneiro na inovação da pedagogia musical da época” (p. 86). Este colégio iniciou suas
atividades sob direção de Miss Martha Watts, que pertencia a Igreja Metodista dos EUA.
Assinala que havia uma circulação de novas idéias no ensino musical alimentadas pelo regime
republicano em oposição ao “velho regime” (o Império) que utilizava as “Artinhas”, que eram
manuais didáticos para uso dos Conservatórios.
Selecionamos uma citação que destaca alguns antecedentes do canto orfeônico no
Brasil, no tempo do Império:
48
A legislação nacional de 1854 (Decreto 331 A, de 17/11) dividia as escolas públicas primárias em duas classes, conforme terminologia usada na época: As de 1º. e 2º. Graus. Os itens h) noções de música e i) exercícios de canto aparecem no programa de 2º. Grau. Especificamente na Província de São Paulo, é a Reforma de 1887 (Rangel Pestana) que institui o canto coral no sistema escolar, através da Lei 81 – 06/04/1887. Para se ter idéia de como o ensino musical aparece cedo na escola paulista, só em 1896 o Estado de São Paulo tornou obrigatório o ensino de língua nacional – numa ofensiva contra as escolas estrangeiras (p. 78).
Das informações biográficas sobre os mentores do canto orfeônico e de outros nomes
ligados ao movimento destacamos os de João Gomes Junior e Fabiano Lozano.
João Gomes Junior foi nomeado professor catedrático de música da “Escola Modelo
do Carmo” em 1893, da “Escola Prudente de Moraes” em 1894 e foi também professor da
“Caetano de Campos”. Ele criou o mano-solfa, um método pedagógico acessório, inspirado
no Tonic Sol-Fa e em 1926 foi nomeado inspetor Especial de Música. Em seus relatórios “são
compilados os itens básicos que se imaginavam necessários a um docente especializado (...),
ou seja, a preocupação de formação de professores era explícita” (p. 96).
Fabiano Rodrigues Lozano pertencia a uma família de músicos. Estudou no “Colégio
Piracicabano”, em 1903 “foi para a Europa, onde freqüentou o Real Conservatório de Madri,
tendo concluído o curso em 1908” (p. 115) e em 1914 passou a exercer o cargo de professor
de música da Escola Normal de Piracicaba. “No entanto, antes da Escola Normal, Fabiano
fora professor do Grupo Escolar Moraes e Barros” (p. 105). Era um homem muito próximo a
Lourenço Filho, que esteve em Piracicaba para a implantação da reforma Sampaio Dória, de
1920. “A reforma colocou pela primeira vez, num texto de legislação, a exigência de ensaios
obrigatórios de orfeão uma vez por semana, fora da carga horária prevista de aulas de música”
(p. 105).
No capítulo 4, “O canto orfeônico paulista nas décadas de 1910 e 1920”, aprofunda a
questão da formação docente para o ensino orfeônico, analisa os principais manuais didáticos
publicados à época e o debate entre os tradicionalistas e os renovadores.
No capítulo 5, “O início do canto orfeônico e o método analítico”, analisa o início do
canto orfeônico na Escola Normal da Capital e discute aspectos do discurso teórico que o
embasou nas décadas de 1910 e 1920. Examina o manual “O ensino de música pelo método
analítico”, cuja primeira edição é de 1914.
No capítulo 6, “Erguendo a sociedade do futuro”, insere o canto orfeônico no quadro
geral da Primeira República abordando aspectos acerca da questão da identidade nacional,
49
“destacando o sentido que a música adquiriu dentro da escola da Primeira República” (p.
229).
Nas considerações finais, Gilioli afirma:
[...] com o advento da República, os ventos da renovação sopraram na escola pública. O Estado de São Paulo não foi exceção: aliás, representou um dos núcleos nacionais que lideraram o ímpeto de reforma da Instrução Pública. [...] No âmbito das disciplinas escolares, várias delas tiveram seus procedimentos pedagógicos adaptados ou alterados segundo os cânones mais modernos do ensino praticado na Europa – em especial na França – e nos Estados Unidos da América. Já na década de 1890, a música também vivenciou tentativas de reforma dos currículos e métodos de ensino (p. 243).
Este trabalho aponta algumas contribuições trazidas pela escola americana, mas não
faz a ligação com o protestantismo no que se refere às renovações dos métodos de ensino.
Sendo esta uma das proposições da nossa pesquisa.
Em sua Tese de Doutorado, Dando o tom: música e cultura nas ruas, salões e escolas
da cidade de São Paulo (1870-1906) - (FE-USP, 2004), Ailton Pereira Morila se baseia no
conceito de música como parte da cultura e também que as culturas popular, erudita e escolar
não são autônomas, devendo ser analisadas à luz do contexto histórico.
A cultura escolar – no que tange à educação musical – não surge, portanto do nada, parte das culturas popular e erudita, participa de algumas discussões destas, enquanto silencia outras. Adapta, transforma, aclimata métodos e obras da cultura popular e da cultura erudita ao mesmo tempo em que suprime partes. [...] A cultura escolar influencia também a cultura popular e erudita e as transforma. Uma complexa relação dialética pode ser observada entre as culturas (p. 238).
O presente trabalho teve como objetivo “analisar o papel da música nas
transformações da sociedade, na conformação da cultura popular, erudita e escolar, as
relações entre elas e os sujeitos envolvidos, na cidade de São Paulo, no período de 1870 a
1906” (p. 9).
Destacaremos o terceiro e quarto capítulos, que estão diretamente relacionados à nossa
pesquisa.
No capítulo 3, Terceiro Movimento: música e cultura escolar, Morila retoma a
trajetória de músicos que “encontraram na escola um espaço de atuação e de discussão dos
principais temas relacionados à música” (p. 118). Alguns destes nomes estavam engajados na
vida musical de São Paulo e tinham como alvo educar o povo brasileiro, elevando o seu gosto
50
musical. Outros atuavam somente no ambiente escolar, além dos professores particulares que
compunham o cenário musical.
Num segundo momento faz uma síntese da legislação “no intuito de definir o espaço
legal da música na escola” (p. 122), baseando-se no trabalho de Vera Jardim.
Através deste trabalho é possível verificar que o ensino de música está presente como
disciplina em muitas escolas, antes mesmo da proclamação da República. “O ensino da
música, em suas várias modalidades, era uma constante nas escolas públicas e privadas do
século XIX” (p. 124).
A seguir faz um levantamento dos programas, considerando o conteúdo programático
e a prática pedagógica explicitada nos decretos.
...a elevação do país à condição de “nação civilizada” passava pelas questões políticas, econômicas e sociais. A educação teria um papel primordial nesta última. Os músicos do período atrelaram a este discurso a educação musical (...). A inserção da música na escola como disciplina demonstra que p discurso foi vitorioso. Mais do que simples questão de músicos, a música e o ensino da música eram tidos como importante na formação básica da pessoa (p. 133).
Destaca também o papel da música na escola, a partir da imprensa educacional.
Baseia-se nos periódicos e relatórios da época, contextualizando as publicações e conclui que
a música se coloca o ambiente escolar como uma disciplina específica ou entremeando outras
atividades. Outras concepções importantes que são apresentadas neste trabalho: a educação
estética musical e a educação estética através da música. Os educadores musicais da época
entendiam que a música seria capaz de elevar os costumes, o heroísmo, incutindo novos
valores e imprimindo uma orientação moral. Alguns fazem uma aproximação entre música e
civilização.
Ainda neste capítulo analisa a produção musical na escola, seus gêneros musicais,
temáticas e significados. Observa que há uma troca de canções de rua por canções escolares,
que estão repletas de valores que se quer incutir e tece considerações e comparações entre a
música popular e música escolar.
No capítulo 4, Métodos de ensino musical, Morila relaciona a educação musical na
cultura popular, erudita e escolar, utilizando-se destes métodos e suas críticas. Observa que o
ensino musical em São Paulo, dentro e fora das escolas, estava longe de ser um consenso e
que foram inúmeras as discussões com proposições de vários métodos. Termina o capítulo
apontando semelhanças e diferenças entre os diversos métodos apresentados.
51
Noemi Paulichenco Loureiro apresentou sua Dissertação de Mestrado com o título
Anna Bagby, Educadora Batista (1902 – 1919), à Faculdade de Educação da USP no ano de
2006. Deste trabalho recolhemos as informações sobre o Colégio Progresso Brasileiro,
atualmente, Colégio Batista Brasileiro.
Neste trabalho Loureiro procurou “estudar a figura de uma educadora protestante
norte-americana de origem batista, que chega ao Brasil na transição Império-República e
começa sua atuação educacional em 1902.” (p. 8). Teve como fontes, além da bibliografia,
jornais da denominação batista, atas e anais da Convenção Batista Brasileira e documentos
localizados no Arquivo Histórico, biblioteca e arquivo do Colégio Batista Brasileiro; na
Faculdade Teológica de São Paulo e na Convenção Batista do Estado de São Paulo. Nos
Estados Unidos, pesquisou na Biblioteca Texas Collection, da Universidade de Baylor, onde
localizou o acervo denominado Luther-Bagby-Smith-Family Papers.
Do ponto de vista da História da Educação Brasileira, estudar a vida de Anna Bagby, pioneira do trabalho batista no Brasil, nos ajuda na análise de uma dupla questão: a presença feminina na educação protestante e a presença protestante na educação feminina. Assim, estudando a vida de Anna Bagby e o Colégio Batista Brasileiro que ela fundou em São Paulo, em 1902, suas práticas pedagógicas, dentro do contexto e realidade do período proposto, procuramos investigar a contribuição desta instituição à realidade educacional da época segundo essa perspectiva (p. 9).
O trabalho está dividido em três partes. Na primeira parte encontramos uma
apresentação de Anna Bagby “e sua trajetória de vida até a chegada ao Brasil” (p. 12). Na
segunda parte é enfocada a atuação de Anna Bagby, enquanto missionária e educadora e na
terceira parte estão as informações sobre o Colégio Progresso Brasileiro.
Para a nossa pesquisa estamos nos valendo das informações sobre o Colégio Progresso
Brasileiro, que mais tarde veio a se chamar Colégio Batista Brasileiro, por estar dentro da
categoria escola americana de confissão protestante.
Loureiro relata que Anna Bagby, em 1877, era a organista da igreja em Galveston, no
Texas, onde seu pai era pastor. John Hill Luther, pai de Anna, era também professor e
jornalista. Em 1878 ele foi chamado para direção do Baylor College, no Texas, onde Anna foi
professora e deã, representando a instituição nos encontros da denominação batista.
Anna casa-se com William em 21 de dezembro de 1880 e chegam ao Brasil em 02 de
março de 1881. São recebidos por Mary Ellis McIntyre em Santa Barbara d’Oeste para
aprender o português. Lá conhecem o ex-padre Antonio Teixeira de Albuquerque que foi
grande auxiliar do casal no aprendizado da língua e na implantação do trabalho batista no
Brasil. Por recomendação da Sra. Ellis, dirigem-se ao Colégio Internacional de Campinas para
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continuarem os estudos da língua portuguesa, ficando ali por quinze meses. Anna e William
lecionaram em várias classes. Além disso, Anna deu aulas de piano e substituiu a diretora da
escola, Miss Henderson, durante suas férias. William, em carta à sua mãe datada de 10 de
novembro de 1881, relata:
Nós estamos contentes por sermos capazes de ajudá-la, e sabemos que ensinando + conversando na língua, diariamente na escola, somente nos ajudará mais em nossos estudos. [...] Eu tenho seis classes em Português, uma em inglês. Ann ouve várias recitações em Inglês, em Português, e ensina suas classes de música: também, ela supervisiona as questões domésticas, e toma conta dos cuidados gerais da escola [...]. Tudo está caminhando agradavelmente [...] (p. 33).
Vera Lúcia Jardim, em sua Tese de Doutorado, “Da arte à educação: a música nas
escolas públicas - 1838-1971” (PUC, 2008), traçou o percurso histórico do ensino da música
nas escolas, demarcando seus processos de adaptação e transformação da disciplina escolar.
Através desta pesquisa procurou-se entender o ensino da música, verificando a sua
função nos projetos educacionais, procurando caracterizar as condições e descobrindo as
necessidades específicas com que se adequaram às atividades e condições escolares.
No primeiro capítulo Jardim apresentou a formação do professor de música,
investigando os processos e exigências para sua formação em instituições especializadas. No
segundo capítulo apresentou as diferenças existentes na formação do profissional que era
preparado para ensinar música na escola. Houve a preocupação que os professores passassem
por processos de especialização constante, sendo esta formação indispensável para o exercício
da atividade docente. No terceiro capítulo vemos as relações entre a música e a palavra
demonstrando preocupação com a linguagem e emissão e articulação perfeitas. A respiração e
higienização da voz foram trabalhadas com o objetivo de aquisição de hábitos higiênicos. As
músicas selecionadas para o ensino nas escolas faziam parte do universo da música culta e
civilizada. No quarto capítulo, Jardim trabalha com a construção do repertório utilizado
procurando compreender como era feito o movimento de seleção das músicas destinadas ao
espaço escolar. O quinto capitulo trata dos livros didáticos para o ensino da música na escola,
discutindo as diversas tendências e as conexões com as idéias de âmbito internacional. Trata
também da importância dos manuais didáticos e das inovações presentes nesse manual,
ressaltando as propostas republicanas.
Ao fazer um balanço do que diz a História da Educação sobre a presença da música na
escola, verificamos que ela se apresenta tanto nas escolas públicas, quanto nas particulares em
São Paulo. Dentre as escolas particulares em que a música esteve presente, encontram-se as
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escolas americanas de confissão protestante. Algumas vezes a música se apresenta como parte
integrante do currículo, outras na medida do interesse dos alunos. As festas escolares de
encerramento do ano letivo eram noticiadas nos jornais e se constituíram em acontecimentos
sociais importantes, sendo a música um elemento integrante do programa da festa.
Pudemos observar, de acordo com os estudos apresentados, que as escolas americanas
de confissão protestante exerceram influência nas primeiras reformas da instrução pública no
período republicano e que atestaram o compromisso com uma renovação educacional, pois
possuíam muitos recursos materiais, prédios próprios e construídos segundo as regras da
“moderna ciência sanitária”. Dentro desta idéia, surgiram, por exemplo, várias discussões
sobre o melhor modelo de carteiras a serem utilizadas pelas crianças. Estas discussões
envolveram médicos, higienistas, pedagogos, administradores e industriais. Estas escolas
receberam apoio dos liberais, democratas, dos anti-clericais e dos maçons, sendo Rangel
Pestana um dos que mais promoveu e incentivou a aceitação destes colégios pela sociedade
paulista.
Reproduzimos na tabela a seguir as instituições escolares, públicas e particulares, que
traziam o ensino da música em seu currículo, na província de São Paulo. As informações
foram retiradas de “Tempos de Escola: fontes para a presença feminina na Educação, São
Paulo – Século XIX (Hilsdorf, 1999), de “Dando o tom: música e cultura nas ruas, salões e
escolas da cidade de São Paulo (1870-1906)” (Morila, 2004) e de “Ide por todo mundo: a
província de São Paulo como campo de missão Presbiteriana 1869-1892 (Bencostta, 1996).
Tabela 1 – Estabelecimentos de ensino com disciplinas de música na província de São Paulo
Estabelecimento de Ensino Disciplinas Período
Colégio de Rita Leopoldina da Silva Música e Dança 1849-1869 Colégio Sant’ana de Maria das Dores do Amaral Fontoura
Música e Piano 1853 1857-58
Colégio de Meninas de D. Rita Leopoldina da Silva
Dança, música, piano e canto
1854
Liceu Paulistano Música 1856 Colégio Mamede Música 1856 Colégio Elementar de Belas Artes Música teórica e prática
vocal e instrumental 1856
Colégio Ypiranga de Educação de Meninos Música teórica e aplicada a qualquer instrumento
1856
Seminário Episcopal Música, piano, música vocal, cantochão, canto gregoriano, música instrumental,
1863; 1866; 1873 1883-88 1890-91; 1896
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Colégio para meninas da Piedade Música, piano e canto 1864 Colégio União Teoria, piano e outros
instrumentos 1868
Escola Americana Piano e canto, música e música instrumental
1870 em diante
Sociedade Propagadora de Instrução Popular Música, canto, piano, solfejo, instrumentos de sopro
1873-1882
Colégio para meninas de Francisco Rangel Pestana e Domiana Q. Rangel Pestana
Música, Dança
1876-78
Instituto de Educandos Artífices Música 1878; 1883 Instituto D. Ana Rosa / Sociedade Protetora da Infância Desvalida
Música 1878; 1883; 1886-88; 1895-97
Colégio Educação da Mulher Art. 5º. Música, piano e canto 1880 Ateneu Amparense de Amparo Música 1880 Colégio Piracicabano, Piracicaba Música vocal e instrumental 1881 em diante Liceu de Artes e Ofícios Música, canto, piano, solfejo,
instrumentos de sopro, instrumentos de corda, composição, história da música.
1882 em diante
Deutsche Schule (Escola Alemã) Música e canto 1883; 1894 Escola Neutralidade Canto 1884 Colégio São José, São Carlos do Pinhal Música 1885 Instituto João Köpke, São Paulo Música 1886 Colégio Joaquim Carlos (Colégio Ivahy, a partir de 1886 e Colégio Galvão, em 1896-97
Música, piano e canto 1884-86; 1896-97
Colégio Andrade Música e canto, piano, harpa 1890 Liceu de Artes e Ofícios do Sagrado Coração de Jesus Música vocal e instrumental 1891 Colégio Paulista Música vocal e instrumental 1891 Seminário da Glória de Educandas Música vocal 1895-97 Escola Normal da Capital Música 1895-97 Escola Modelo da Rua do Carmo ( Música 1896-97 Escola Modelo Caetano de Campos Música 1896-97 Grupo Escolar (Sé) Música 1897 Escola Modelo Prudente de Moraes Música 1897 Escola Modelo Maria José Música 1897 Dio e Pátria Instituto / Convitto Dall’Acqua Música 1900 Colégio N. Sra. da Conceição Piano Colégio São João Evangelista de Taubaté (fundado em 1861)
Música e Dança
Colégio Santa Cruz de Rio Claro Música Colégio Alemão, São Paulo (fundado em 1879) Música, canto e ginástica
Concordamos com as colocações de Morila quanto à possibilidade de indicação que
este ensino de música em tantas escolas, quer seja vocal ou instrumental, fazia parte de uma
formação ampla oferecida nas escolas primárias.
Trabalhando no campo da História da Educação, como apresentado nos apontamentos
anteriores, é possível perceber, através do levantamento feito, que a música estava presente no
currículo escolar. Por meio destas leituras pudemos observar que dentre as escolas em São
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Paulo que utilizavam a música em seu currículo, temos as escolas americanas de confissão
protestante. São elas: Escola Americana, Colégio Internacional, Colégio Piracicabano.
Mediante os estudos realizados foi possível constatar também que as escolas
americanas de confissão protestante surgiram no seio das Igrejas Protestantes que chegaram
ao Brasil no século XIX. Apesar de muitas informações sobre estes estabelecimentos de
ensino já terem sido coletados, não encontramos nenhum trabalho que tenha abordado
especificamente o ensino da música nas escolas americanas de confissão protestante, em São
Paulo, no período entre 1870 e 1920.
Surgem alguns questionamentos: continuaria sendo importante a utilização da música
nas Igrejas Protestantes que chegaram ao Brasil, como foi no período da Reforma? Os
músicos continuam encontrando espaço para atuarem nas igrejas como aconteceu nos tempos
posteriores à Reforma? Se a música estava presente nas escolas que surgiram no seio destas
igrejas no Brasil, como teria sido a sua utilização? Com quais propósitos? Por que precisam
ser estudadas?
Apresentamos como hipótese a idéia de que a utilização da música permanece
relevante para a igreja protestante e para as escolas ligadas a estas igrejas, desde o século XVI
até o século XIX. Encontramos apoio para nossa hipótese na pesquisa de Denise Cordeiro de
Souza Frederico, intitulada “Cantos para o Culto Cristão” (2001), desenvolvida no Instituto de
Pós-Graduação em Teologia da Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo – RS, no que
diz respeito à música sacra e sua utilização na igreja. O trabalho de Frederico merece destaque
porque apresenta um histórico detalhado sobre a produção e utilização de Hinários contendo
os cantos para o culto cristão. Neste movimento de recuperação de momentos da história da
música sacra, desde a antiguidade até os dias de hoje, ela nos oferece subsídios para a
percepção das relações entre música e culto. Pela sua abrangência recorreremos ainda a este
trabalho em outros momentos de nossa análise, trazendo as contribuições deste trabalho para
nossa pesquisa.
1.2. Música, Reforma Protestante e Educação Escolar
Além das informações colhidas no quadro de leituras apresentado, sentimos a
necessidade de fazer um breve percurso pela história para resgatar a ligação entre Música,
56
Reforma Protestante e Educação Escolar. Este objetivo pode ser alcançado analisando as
contribuições das pesquisas realizadas nos campos de História da Educação, da Ciência da
Religião, História Eclesiástica, da Educação Musical e da História da Música.
Começamos, a partir do campo da História da Educação, com as informações trazidas
por Luciane Muniz Ribeiro Barbosa em sua Dissertação de Mestrado, intitulada “Igreja,
Estado e Educação em Martinho Lutero: uma análise das origens do direito à educação”, (FE-
USP, 2007). Esta pesquisa teve como objetivo analisar o pensamento e as ações de Martinho
Lutero frente às novas relações que ele estabeleceu entre a Igreja, Estado e a Educação
durante o movimento da Reforma Protestante do século XVI:
“Cabe ressaltar que o objetivo maior deste trabalho é uma análise das origens do direito à educação, contudo, não mediante a vertente de análise da educação como um direito social, ênfase dada à educação escolar pública gratuita e laica, que teria surgido como fruto da Revolução Francesa, no século XVII. Trata-se da emergência da educação como uma responsabilidade do Estado, a partir de seus interesses” (p. 15-6).
Retomando a argumentação de Barbosa, verificamos que procura situar Lutero na
história e no movimento da Reforma no segundo capítulo de sua Dissertação. Informa que ele
nasceu em Eisleben, em 10 de novembro de 1483 e recebeu este nome por ter nascido na
véspera do dia de São Martinho foi batizado no dia dessa comemoração. Apesar da origem
pobre, a família de Lutero cuidou de sua primeira educação doméstica “baseada em princípios
cristãos e atitudes severas marcadas por castigos” (p. 50). Estudou em uma escola de
Mansfield e aos sete anos “aprendeu basicamente a ler e escrever em Latim, a gramática
latina, as orações, canto litúrgico e o básico de música” (p. 50).
Aos 14 anos estudou em Magdeburgo em uma escola de Franciscanos e morou em
uma casa mantida pelos “Irmãos da Vida Comum”. Dos 15 aos 18 anos esteve na escola latina
de Eisenach. O próprio Lutero declarou que durante este período de estudante fora um
mendicante. Havia um costume na época em que os pobres quando tinham fome cantavam nas
portas das casas para ganharem pão.
Em Eisenach foi acolhido por duas famílias ricas da cidade, que eram marcadas por
uma espiritualidade franciscana, recebendo delas ajuda financeira. Foi nesse período que
aprendeu a tocar flauta e alaúde. Aos 18 anos foi para a Universidade de Erfurt, uma das
principais universidades alemãs da época. Aos 22 anos fez votos para uma vida de santidade e
ingressou no mosteiro de ordem de Santo Agostinho, em Erfurt, onde permaneceu por quinze
anos.
57
No convento continuou desenvolvendo sua formação e em 1513 começou a lecionar
na faculdade de teologia de Wittenberg. No ano seguinte também se tornou pregador na igreja
dessa cidade.
O dia 31 de outubro de 1517 marcou o início formal da Reforma2, pois foi o dia em
que Lutero afixou nas portas da Igreja de Wittenberg “suas 95 teses contra as práticas do
papado, especificamente contra as indulgências. Contudo, sabe-se que o princípio da Reforma
antecede esse ato, que se tornou um marco e não se limitou somente à ação de Lutero” (p. 36).
Ainda neste capítulo Barbosa apresenta as principais teses de Lutero e suas
repercussões. A seguir faz um levantamento de suas produções e publicações. Como parte da
produção de Lutero destaca que uma das áreas foi a musical, defendendo-a inclusive como
componente curricular das escolas. “Ele mesmo chegou a escrever hinos em alemão, com o
objetivo de veneração e também de auxílio na memorização das afirmações de fé (...)” (p. 86).
Traz a informação que a valorização da música nas escolas já acontecia desde as escolas
medievais onde os hinos para a liturgia do culto eram ensinados em latim. “A música era tão
importante que a escola medieval chegou a ser pejorativamente chamada de Gesangshule
(escola de canto)” (DEFREYN apud BARBOSA, p. 87). No entanto, o que fez Lutero avançar
foi a utilização de hinos na língua alemã, como forma de atingir diretamente o povo e sendo
isto considerado como “algo de grande valor para a educação popular” (Ibid).
No terceiro capítulo de sua Dissertação, Barbosa discorre sobre Lutero e a Educação.
Quanto aos métodos de ensino utilizados por Lutero, Barbosa (p. 117) salienta que há
uma reivindicação de aplicação de novos métodos no processo educacional e uma crítica
severa aos métodos utilizados para o ensino nas universidades e conventos. “Na proposição de
novos métodos, ele opõe-se ao antigo sistema escolar baseado em punições físicas e pressões
psicológicas que causavam sofrimento aos alunos (ou seja, a disciplina severa que recebeu na
educação familiar e escolar)” (p. 117- 8). A posição apresentada por Lutero é de que o ensino
2 A Reforma Protestante aconteceu na Alemanha, no início do século XVI e ultrapassou o âmbito religioso, trazendo mudanças tanto para a Igreja como para as demais áreas da sociedade. “Martinho Lutero, monge da ordem de Santo Agostinho, é quem inicia esse movimento de reforma na Igreja Católica” (p. 11). Muitas pessoas compartilharam das idéias de Lutero e o auxiliaram na implantação de uma reforma na Igreja, não só na Alemanha, como em outras partes do mundo. Poderíamos citar Calvino, na França, Zwinglio na Suíça, John Knox na Escócia, entre outros. “Apesar das diferenças de posições e ideais, formação e tempo de atuação, o fato é que Lutero não foi o primeiro nem o único a se rebelar contra os erros da Igreja. Contudo, partiu dele uma proposta de Reforma que chegou na sua forma mais radical com a cisão da Igreja. Entretanto o mérito não se deve a sua pessoa e nem foi sozinho que conduziu o movimento da Reforma (...)” (p. 60)
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deve acontecer de forma prazerosa e por meio de brincadeiras, ou seja, ele era a favor de uma
educação lúdica.
Lutero entendia também que os professores deveriam ser bem preparados e reclamava
da falta de pessoas qualificadas para o ensino (p. 122). Fez um apelo aos pais que enviassem
seus filhos à escola e “explicita que o seu objetivo é o de que todas as crianças recebam uma
educação formal cristã, ou seja, que todas, independentemente do tipo de família a que
pertençam, freqüentem a escola” (p. 125). Depois de discutir a questão da educação popular,
Barbosa conclui que Lutero pode não ter sido “o primeiro a se preocupar com uma educação
popular; entretanto, segundo Mário Manacorda (1989) é evidente que o impulso prático que
ele deu e sua força política foram os responsáveis pelos novos progressos” (p. 129). Lutero
entendia também que as escolas deviam ser mantidas com recursos públicos. “Sendo assim, os
princípios de uma educação popular, gratuita e obrigatória e de caráter estatal podem ser
encontrados já no século XVI nas propostas de Lutero para a educação no movimento da
Reforma Protestante” (p. 142).
Lutero também defendia a educação escolar elementar, que já havia sido oferecida
pelos Irmãos da Vida Comum3 às crianças de suas comunidades desde o século XIV (p. 143).
Em suas escolas “os Irmãos da Vida Comum ensinavam somente a ler, escrever e cantar
juntamente com uma formação moral e aulas de doutrina cristã; posteriormente, tornaram-se
diretores e mestres de ginásios clássicos” (NUNES apud BARBOSA, p. 148).
Hilsdorf (2006, p. 166-7) vai além deste pensamento ao informar que Manacorda
entendia que a os movimentos populares heréticos promoviam o ensino com o objetivo de que
cada um pudesse ler e interpretar pessoalmente a Bíblia, sem a mediação do clero. Lutero
então propõe, em carta escrita em 1524, “que as escolas de ensino da língua materna e cálculo
para o desempenho de ofícios fossem assumidas pelos governantes e tornadas de freqüência
obrigatória”. Diante destes fatos, Hilsdorf (2006, p. 167) apresenta que seja a origem do
movimento da educação escolar elementar uma continuidade, ou uma ruptura, é fato “que as
cidades de confissão reformada reorganizaram suas escolas ao longo do século XVI,
prescrevendo-lhes novos regulamentos de ensino articulados pela religião.
Lutero discutiu em vários de seus textos como deveria ser o Estado. Suas idéias
aproximam-se de Erasmo e distanciam-se de Maquiavel, ao defender que o estado era um
organismo moral, sujeito ao julgamento ético. Barbosa entende que “o Estado tinha, na visão
3 Comunidade religiosa católica que abrigou Lutero quando este foi estudar na escola de Franciscanos em Magdeburgo e que apresentava como um dos objetivos principais a busca por uma vida de intima ligaçao com Deus e de renovação do cristianismo (p. 146).
59
de Lutero, origem divina e teria sido instituído para preservar a paz no mundo, reprimindo os
que prejudicam a sua conquista” (p. 173) e as funções do Estado não deveriam confundir-se
com as da Igreja, apesar de não serem totalmente distintos um do outro. Também ressalta que
as mudanças que aconteceram no período da Reforma “não podem caracterizar um processo
de secularização da educação tal como a que se conhece e vivencia hoje, visto que a educação
manteve a sua função religiosa e continuou vinculada à Igreja, tanto no que diz respeito à sua
organização e funcionamento, como no processo de ensino” (p. 214).
Um historiador da educação que traz contribuições ricas para a compreensão da
ligação entre Música, Reforma Protestante e Educação Escolar é Frederick Eby (1976, p. 65).
Este autor foi professor de História e Filosofia da Educação na Universidade do Texas,
servindo de fonte para Hilsdorf (2006) e Barbosa (2007). Ao falar sobre a atuação de Lutero,
ele afirma:
Nenhum educador desde Platão, atribuiu maior valor educacional à música. Antes da Reforma, toda a música eclesiástica era em latim. Um dos primeiros movimentos de Lutero para a Reforma foi a criação de uma hinologia vernácula, a fim de que o povo pudesse participar do serviço da igreja numa língua que pudesse compreender. Escreveu certo número de hinos em alemão e incentivou seus amigos que tinham talento poético a fazer o mesmo. O primeiro hinário alemão foi impresso sob sua direção, em 1524. Daí em diante, a música religiosa tornou-se um dos principais interesses de todas as escolas alemãs; e por vários séculos a escola forneceu o coro para todos os serviços da Igreja. No seu amor exaltado pela Música e seu desejo de incluí-la no currículo escolar, Lutero foi superior aos outros reformadores.
Segundo Eby, Lutero deve ser reconhecido como o primeiro reformador moderno a
defender a educação religiosa obrigatória. Com relação ao controle e manutenção estatal das
escolas admite: “a mais significativa inovação de Lutero está em colocar tanto as escolas
como a Igreja sob a guarda do estado e em manter as autoridades civis como responsáveis
pelo seu estabelecimento e manutenção” (p. 61). Defendeu a escola para meninas e sugeriu o
que deveria ser estudado nas escolas elementares: “eu os faria estudar não só as línguas e a
História, mas também Canto, Música Instrumental e todo o curso de Matemática”.
Ao fazer um sumário das contribuições educacionais de Lutero, Eby lista cinco
pontos4. Destaco o quinto ponto que é relacionado à música: “Outra contribuição de Lutero
que não é passível de avaliação exata, foi a da música. Todos os professores alemães tinham
de tocar violino e ensinar as crianças a cantar” (p. 68). Em outro momento reforça a
4 Outros 4 pontos do sumário das contribuições de Lutero: 1) Incluiu todas as crianças nos seus planos e instrução religiosa vernácula. 2) Traduziu as Escrituras para o dialeto alto alemão quando ficou abrigado no Castelo de Wartburgo. 3) Traduziu as fábulas de Esopo e seus catecismos tiveram notável influência. 4) Ao romper com Roma, assumiu uma posição que favoreceu a emancipação popular e a ilustração.
60
informação de que várias escolas latinas e elementares foram organizadas, “nas quais se
ensinava a ler e escrever o alemão, catecismo e música” (p. 72).
Segundo o historiador Paul Monroe (1979, p. 179), confirma-se que o currículo das
escolas elementares vernáculas, existente em cada aldeia, contemplava a leitura, a escrita, a
religião e a música sacra.
Diante do que foi exposto, podemos afirmar que a música estava presente na escola no
período da Reforma Protestante. Além do ensino da música, houve também uma preocupação
com os métodos de ensino, com o preparo dos professores e com a utilização da música para
fixação dos ensinamentos bíblicos. Pudemos perceber que era esperado que os professores
soubessem música para que pudessem ensinar as crianças a cantar. Os hinos, que eram
cantados em latim, passaram a ser cantados em alemão e houve também a preocupação com
novas publicações de hinários e vários compositores foram estimulados a comporem novos
hinos. Lutero entendia que não só o canto, mas também a música instrumental poderia ser
ensinada às crianças, na escola. Essa tradição permaneceu e por vários séculos a música
religiosa esteve presente na escola, fornecendo, inclusive, os coros para todos os serviços da
igreja.
Ligações entre Música e Reforma Protestante também podem ser encontradas em um
autor que, vindo do campo da Ciência da Religião, aborda os aspectos referentes aos cultos na
Igreja Protestante. Vieira (2005, p.70) nos informa:
Martinho Lutero (1483-1546) não descuidou da música litúrgica ao empreender a Reforma. Insistiu no direito e no dever da participação de todos os fiéis no culto divino. Para atender a essa necessidade ele passou a utilizar o coral na língua alemã com o intuito de que todos, sem exceção, pudessem compreendê-lo e cantá-lo. Com o restabelecimento do canto congregacional, abolido desde as Constituições Apostólicas no século II, Lutero deu a todos a oportunidade de tomar parte ativa no serviço religioso. O coral luterano era constituído de uma melodia acessível e harmonizada simplesmente para quatro vozes e como canto congregacional, teve o seu uso generalizado na segunda metade do século XVI, quando, após um período de evolução, fixou a sua estrutura.
Vieira acompanha neste ponto, as colocações de Frederico (2001, p. 135-136) sobre o
canto congregacional:
Por causa da sua percepção teológica do sacerdócio geral de todos os crentes, Lutero introduziu o canto congregacional no vernáculo. Ele entendia que a participação popular no culto através do canto era uma forma de o povo expressar sua nova condição de elemento ativo da ação litúrgica. Na concepção de Lutero, a música adequada para a liturgia seria a que contivesse os seguintes princípios: em primeiro plano que fosse um meio de louvor e adoração a Deus; a seguir, instrumento auxiliar à devoção e piedade do cristão e ainda elemento eficaz na educação cristã e na
61
propagação do evangelho. Em razão desse ponto de vista didático, Lutero rearranjou o canto, com texto inserido em melodias antigas e populares, a fim de que a participação fosse mais íntima e pessoal.
Em seu movimento de recuperação da história dos cantos utilizados no culto cristão,
Frederico (2001) cita que Lutero queria a participação mais ativa dos crentes no momento de
culto, por isso os hinos deveriam ser cantados em alemão. Desta forma o texto seria
claramente compreendido e o fiel se dirigiria a Deus pessoalmente. “O canto de hinos pela
congregação era algo muito inovador e os hinários ainda não eram acessíveis ao povo” (p.
138). Lutero buscou ajuda de outros compositores, solicitando que compusessem novos hinos
em língua alemã, como foi o caso de Johann Walther, que publicou o primeiro hinário da
igreja luterana em 1524, sob orientação de Lutero. Alguns cantos sacros anteriores à Reforma
foram incluídos na liturgia por serem conhecidos e Lutero mantém ainda algumas partes do
culto em latim. Anteriormente a prática do canto na missa ficava delegada aos que a
presidiam (p.138). Lutero também se preocupou em tornar a tradição, representada pelos
Salmos, acessível ao povo e desejou transformar os salmos em hinos para alcançar esta
finalidade (p. 140).
Além disso, [os hinos] foram arranjados a quatro vozes por nenhuma outra razão senão o meu desejo de que a juventude, a qual afinal de contas deve e precisa ser educada na música e em outras artes dignas, tenha algo com que se livre das canções de amor e dos cantos carnais para, em lugar destes, aprender algo sadio, de modo que o bem seja assimilado com vontade pelos jovens, como lhe compete.5
O aspecto sobre o qual estamos tratando, as relações entre a modalidade de prática
musical na igreja e as concepções eclesiológicas e educacionais de Lutero, é um ponto
importante e também apresentado no campo da Educação Musical e História da Música.
A contribuição de autores destes campos nos ajudou na compreensão dos aspectos
pedagógicos mais específicos, uma vez que aqui encontramos aqueles que trazem indicações
de utilização da música nas escolas protestantes históricas, considerando suas formas e
conteúdos próprios, ou seja, avançando nas questões referentes à opção de Lutero por uma
determinada prática musical, seja na igreja ou na escola, e sua adaptação à nova realidade da
Igreja Reformada. É interessante observar que mesmo os autores mais recentes continuam
trazendo essa visão da importância de Lutero.
Fonterrada (2005) no primeiro capítulo de seu livro “De tramas e fios: Um ensaio
sobre música e educação”, intitulado Educação Musical: tecendo a linha do tempo, apresenta
5 Palavras de Lutero no Prefácio do Hinário Witenberguense de 1524, citado por Frederico (2001, p. 140).
62
as mudanças que vão ocorrendo na educação musical a cada período histórico, de acordo com
os valores e a visão de mundo. “Ver-se-á, que em cada época, os valores, a visão de mundo,
os modos de conceber a ciência dão suporte à prática musical, à ciência da música e à
educação musical [...] (p. 17), e aponta a necessidade de se refazer o percurso histórico com o
objetivo de compreender a problemática do ensino da música hoje. Ao falar sobre a Educação
Musical no período renascentista aponta uma importante mudança que acontece a partir dessa
época, com relação à educação, que já foi apontada pelos historiadores da Educação, sobre a
visão da criança como “um ser que necessita de cuidados especiais, de saúde, educação e
lazer, afastando-se da maneira de entendimento vigente no período medieval, em que é
considerada um tipo de animal de estimação, feita para divertir os adultos e conviver com
eles” (p. 38).
Nesse período ainda se encontram vigentes os princípios da schola cantorum6, onde a
prática musical era desenvolvida a partir das necessidades da igreja, porém durante o século
XVI “começam a ser criadas escolas de formação básica em música, dentro de um princípio
de organização diferente do das scholae” (p. 38).
Também concordando com a bibliografia historiográfica (Hilsdorf, 2006), Fonterrada
acrescenta que a partir desse momento observa-se a organização da educação nos colégios e
seminários e a criança passa a ser encarada com maior responsabilidade pela família e pelas
autoridades da Igreja e do Estado.
As escolas protestantes, assim como as mantidas pela Igreja Católica, esmeram-se para fornecer aos alunos formação competente, e exigem registros detalhados do que se julgava adequado constar em seus currículos. Mas tanto na Igreja Católica quanto na Protestante, a necessidade de buscar critérios uniformes que não descaracterizassem a música cristã enquanto esta se expandia criou a necessidade da transmissão formal de conhecimento. A modificação dos hábitos posta em evidência a partir da Reforma, especialmente entre os luteranos, em que a assembléia é estimulada a participar do culto religioso, institui o coral homofônico. Na verdade exacerba-se, com essa prática, a característica encontrada na concepção renascentista de mundo, que privilegia a simultaneidade, pois o novo estilo coral, vertical, é amplamente difundido na Igreja Reformada, favorecendo a participação comunitária, o que, sem dúvida, é também um tipo de educação musical, embora não necessariamente intencional (p. 39).
Lembramos que coral homofônico refere-se “à música em que as partes não têm
independência melódica nem rítmica. As músicas de hinos são usualmente homofônicas”
(Dicionário de Música Zahar, 1985, p.174). Significa uma escrita musical em que todas as
partes (vozes) seguem o mesmo ritmo, sendo que uma parte (voz) tem a melodia e as outras
6 O termo significa “escola de cantores”, que foi fundada durante o papado de Silvestre (314-335 d.C.)
63
fazem o acompanhamento harmônico, ou seja, de maneira vertical. Ao contrário do que
ocorre no tratamento polifônico no qual duas ou mais linhas melódicas soam
simultaneamente, podendo seguir de maneira independente, ou seja, de maneira horizontal.
Já Raynor (1981, p. 129-50), um autor do campo da História da Música, em seu livro
História Social da Música, traz um capítulo falando sobre a música na Reforma e Contra-
Reforma e assim inicia este capítulo:
Lutero era alemão, nacional, homem do povo. É admirável verificar que ele sabia tocar alaúde e cantar com voz de tenor. [...] Como menino, antes de fazer os votos religiosos ou tomar as ordens sagradas, Lutero teve o completo preparo normal de um menino corista alemão e, como todos os demais meninos, cantava nas procissões Kurrende, que se faziam freqüentemente à cata de esmolas pela cidade e nos casamentos e funerais dos dignitários locais. Sua dedicação total à música teve influência em tudo o que fizesse, não apenas na sua liturgia alemã, mas também na sua educação alemã, e a sua vida foi quase tão importante para o futuro da música como o foi par o futuro da religião (p. 129).
Destacamos outras contribuições desse autor para o nosso trabalho. Segundo ele
Lutero declarava que “Um professor deve saber cantar. Se não souber cantar, não é dos
nossos. Se jovens não estudaram e praticaram música, jamais os admitiria ao ministério”
(p.135). De maneira geral os professores recebiam formação para ensinar canto e elementos
de música, pois assim, mesmo que a escola não fosse bastante abastada para manter os
serviços de um especialista em música, as crianças receberiam uma base musical suficiente
para participarem das sociedades corais que existiam na época. Aqui Raynor (1981) avança na
informação com relação a outros pesquisadores, pois apresenta o ensino da música também
nas escolas de negócios.
Já antes mesmo da Reforma, os cidadãos de muitas cidades alemãs começaram a organizar escolas para crianças onde ainda não havia escolas religiosas, de modo que seus filhos pudessem receber a educação necessária para o êxito nos negócios. Como nas escolas religiosas, a música era entusiasticamente ensinada não só como valiosa disciplina intelectual, mas também como dever religioso e prazer social. Sobrevivem inúmeros manuais alemães, da Reforma e de épocas imediatamente posteriores, destinados ao ensino da música, abrangendo não só o canto como também a teoria e composição (p. 135).
Raynor (1981) e Hilsdorf (2006) concordam no aspecto que o luteranismo entendia a
religião como estatal, e a organização da Igreja deveria acontecer através do aparelho político
governamental.
Raynor (1981) nos explica também desde o início Lutero cuidou atentamente da
estrutura musical do novo ofício religioso. Buscou ajuda de pessoas especializadas no
64
assunto, como foi o caso de Johann Walther, já apresentado anteriormente; e ao que tudo
indica, foi quem “providenciou a minuciosa organização da música luterana” (p. 130). O
próprio Lutero escreveu os textos e/ou as melodias de vários corais, sendo o mais famoso o
Ein feste Burg ist unser Gott (Castelo Forte, É nosso Deus), uma paráfrase do Salmo 46.
Este coral foi mais tarde utilizado por Bach na Cantata BWV 80, composta por ocasião
do aniversário da Reforma; por Mendelssohn, em sua Sinfonia nº. 5 em ré maior opus 107,
por Meyerbeer, em Os Huguenotes; e por Stravinski em A História do Soldado.
A Reforma Protestante desencadeou inúmeras transformações e reflexões que
trouxeram contribuições para os séculos vindouros no que diz respeito à educação,
produzindo grandes educadores. Lutero entendia que todos deveriam estudar e que a educação
deveria ser gratuita, ou seja, o Estado deveria provê-la. Deveria ser oferecida a meninos e
meninas indistintamente. Calvino também propunha a educação para todos tendo a Bíblia
como livro fundamental. Vale a pena ressaltar que a educação deveria ser oferecida,
independente da classe ou posição social das pessoas.
Os cânticos tinham grande apelo didático para os reformadores, sendo um dos maiores
objetivos de sua utilização proporcionar ao povo a fixação das Escrituras. Lutero entendia a
música como dom de Deus a ser usada como veículo para tornar o texto bíblico mais
compreensivo e sempre enfatizou o enorme poder da música.
Lutero reteve da tradição católica a missa, as matinas e as vésperas, e por isso a música que ele usava nas missas em latim ainda era a tradicional, do rito católico, ou seja, o canto gregoriano e arranjos polifônicos para o coro. Alem desses cantos litúrgicos provenientes da Igreja Católica, foram incluídos os cantos sacros de Lieder alemães usados no período anterior à Reforma e ainda canções de cunho popular, as quais revestiu à maneira cristã. (FREDERICO, 2001, p. 134)
Os reformadores entendiam que através dos cantos as doutrinas poderiam ser
rapidamente disseminadas. No entanto havia diferenças quanto à forma musical adotada.
Corais, implantados na Alemanha por Lutero, e Salmos, apresentados na França e na Suíça
por Calvino, influenciaram-se mutuamente, ambos transpuseram fronteiras e foram adotados
em outros países: na Inglaterra, na Escócia, nos Países-Baixos, na Boêmia e na América do
Norte.
65
Carpeaux (1977, p. 28) nos auxilia na compreensão que o Coral Luterano era diferente
do Coral Gregoriano utilizado pela Igreja Católica, isto é, a arte polifônica cantada por coros
separados do povo não deveria ser utilizada no culto. O Coral Luterano7:
é uma melodia sacra popular ou de origem popular e depois harmonizada, cantada não por um coro de cantores profissionais, mas pela comunidade inteira, acompanhada pelo órgão, ao qual também se concede o direito de preludiar o canto ou de orná-lo com variações livres.
Massin & Massin (1997, p. 289) ressaltam que dois fatos importantes para a história
da música aconteceram no século XVI, a invenção da imprensa e a formação de uma arte
musical especificamente alemã. Atribuem como principal contribuição da “reforma de
Martinho Lutero” para a música, o coral. “Essa contribuição foi tanto técnica quanto
espiritual, porque o coral apareceu a um tempo como uma forma musical bem definida e
como o veículo de uma interioridade, individual e coletiva, completamente nova” e
acrescentam:
No plano estritamente musical, o elemento fundamental dessa comoção representada pela Reforma foi a decisão de Lutero no sentido de generalizar o oficio religioso em língua alemã (e não mais em latim), com a participação ativa da comunidade religiosa; em outras palavras, a decisão de fazer a multidão de fieis cantar as preces (os cânticos) em língua vulgar – não mais hinos latinos, mas cantos em alemão.
Destacam também que Lutero teve uma intuição genial ao “transpor os textos para
poemas curtos e fixá-los em música, a mais simples possível, tão clara, fácil e ‘memorizável’
quanto uma canção popular”, onde melodia e texto eram indissociáveis, ou seja, a melodia era
simples e servia de suporte ao texto. Quanto ao estilo musical dos corais luteranos, afirmam
que eram “de caráter popular, entonação fácil e cadência marcada em frases curtas, em geral
correspondentes a versos de oito pés” (p. 290).
O Dicionário Grove de Música (1994) traz que hino é o “termo usado nos tempos
antigos para canções em honra de deuses, heróis ou homens notáveis, e no culto cristão para
canções estróficas em louvor a Deus” (p. 432). Datam do séc. XI ou XII os primeiros hinários
latinos com melodia. No século XIV surge um grupo de partituras para três vozes,
provavelmente composta por Avignon para a corte papal, sendo o cantochão8 tradicional
7 Colocamos no Anexo E os verbetes CORAL e CORO retirados do Dicionário Grove de Música (1994), pois entendemos que estas definições ajudarão ao leitor a ter um exato entendimento das nuances dos termos, que ao longo dos tempos, no Brasil, foram tornando-se sinônimos. 8 Cantochão é “O canto monofônico e em uníssono, originalmente sem acompanhamento, empregado em liturgias cristãs. A palavra refere-se particularmente aos repertórios como textos latinos, i.e., os das principais
66
colocado em uma das vozes, geralmente a superior. “Em 1500 eram habituais as partituras
para quatro vozes. Na Alemanha, estabeleceu-se um estilo que foi usado por toda a Europa no
séc. XVI, com o cantochão no cantus firmus9 em notas iguais e as outras vozes tecendo um
fundo contrapontístico para ele” (p. 432). Com a Reforma Protestante o hino em vernáculo
passou a fazer parte do culto luterano. O calvinismo opõe-se ao hino na liturgia e utiliza-se
essencialmente dos salmos métricos. No séc. XVIII há uma nova retomada dos hinos pelos
não-conformistas como os irmãos Wesley, que passam a ter uma posição fundamental em seu
culto.
Morila (1999) ao apresentar a música na escola, fala sobre os hinos, que propunham a
valorização da idéia de pátria e de uma nação forte e promissora. A definição que apresenta
foi retirada do Dicionário Musical Brasileiro, bem parecida com a que encontramos no
Dicionário Grove de Música, mas não menciona a segunda parte da definição, que está
relacionada aos hinos religiosos, talvez pelo fato de sua pesquisa contemplar o viés da escola
e não o da igreja.
Entende-se por Hinologia a ciência ou estudo de hinos e Hinódia indica o estudo das
formas do hino cristão. Por exemplo: dentro da hinologia cristã temos a hinódia alemã, a
hinódia inglesa, hinódia brasileira etc.
Edmond D. Keith, um estudioso da música sacra, reconhecido como autoridade no
assunto de Hinódia Cristã, nos informa:
O hinário cristão é uma antologia de louvores a Deus, colhido de toda a parte da terra desde o começo dos séculos. Ele é uma fusão dos pensamentos mais nobres e mais sagrados que o homem tem com respeito ao seu Criador, uma expressão dos desejos mais profundos de sua alma, das suas orações contritas, de sua fé perseverante e da sua chamada ao trabalho cristão (KEITH, s.d., Prefácio do livro Hinódia Cristã).
Como apontado anteriormente, João Calvino (1509-1564) foi outro reformador que,
segundo Eby, por entender que a França era hostil ao Protestantismo, atuou em Genebra
“onde se tornou um pastor da cidade” (p. 100). Sua posição com relação à música para ser
usada na igreja era diferente da de Lutero. Segundo Frederico (2001, p. 148):
liturgias cristãs ocidentais (AMBROSIANO, GALICANO, MOÇÁRABE E GREGORIANO), e, num sentido mais restrito, ao repertório do canto gregoriano, o canto oficial da Igreja Católica Romana” (Dicionário Grove de Música, 1994, p. 166). 9 Cantus firmus (Lat., “canto fixo”) “Expressão usada no contexto da polifonia dos sécs. XIV-XVI para uma melodia de cantochão, freqüentemente em valores de notas longos e iguais, ou para uma melodia já existente usada como base de uma composição polifônica; em geral situava-se na parte do tenor” (Dicionário Grove de Música, 1994, p. 167). .
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A posição teológica de Calvino influenciou seu ponto de vista com relação a que tipo de música adotar na liturgia. A liturgia no seu entender, era um meio pelo qual o povo de Deus poderia receber Sua Palavra. [...] Sua pregação pela “purificação” do rito, que não aceitava os poderes miraculosos da missa, incluindo aí a música tocada pelo órgão, o latim, os altares, as pinturas e os candelabros. [...] Na sua opinião, os Salmos representavam o que havia de mais autêntico a ser cantados pelos cristãos.
Diante do exposto, só os Salmos métricos deveriam ser cantados, portanto os
calvinistas deixaram de lado o cântico dos hinos. Na música, os calvinistas, no seu movimento
de Reforma, usaram os mesmos princípios de Lutero, mas harmonizando melodias para os
Salmos metrificados. Novamente recorremos ao Dicionário de Música Grove (1994, p. 815-6)
para compreensão dessa diferenciação:
No séc.XVI, as igrejas protestantes estimularam o canto congregacional dos salmos, adotando versões métricas em linguagem vernacular. Uma das mais importantes entre as primeiras traduções foi a de Clément Marot, base do saltério calvinista. [...] Após 1600, o canto dos salmos métricos continuou nas igrejas protestantes do norte da Europa. Neste período, a composição mais ambiciosa de salmos limita-se em grande parte ao moteto e ao hino, mas alguns compositores continuaram a produzir coletâneas de salmos, especialmente Sweelink, que musicou todos os 150 salmos em versões métricas francesas para de três a oito vozes, usando melodias do saltério de Genebra como cantus firmi. Schütz10 também musicou o saltério completo em versões métricas alemãs, além de ter composto algumas partituras mais elaboradas.
Portando, Calvino enfatizou o cântico congregacional, mas optou pelo cântico de
Salmos. Publicou os Saltérios Aulcuns pseaulms et cantiques mys em chant (Alguns
salmos e cânticos postos em canto), Cinquante pseaulmes (Cinqüenta Salmos), Pseaulmes
octantetrois (Oitenta e três Salmos) e o Saltério Genovês ou Saltério Huguenote. Saltério é
a edição do Livro dos Salmos, parafraseados para entoação como parte da liturgia protestante.
Frederico confirma e amplia esse entendimento de Calvino:
A posição de Calvino influenciou seu ponto de vista em relação a que tipo de música adotar na liturgia. A liturgia, no seu entender, era um meio pelo qual o povo de Deus poderia receber Sua palavra. [...] Na sua opinião, os Salmos representavam o que
10 Trata-se de Heinrich Schütz (1585-1672), considerado o maior compositor alemão do séc. XVII. Foi menino cantor em Kassel, onde estudou música com o Kapellmeister (mestre capela) da corte, Georg Otto. Estudou música em Veneza com G. Gabrieli. Serviu como Kapellmeister em Dresden, sendo responsável pela música apresentada nas principais cerimônias da corte, religiosas ou políticas. Voltou a Veneza para estudar com Monteverdi. Trabalhou também em Copenhagen, em Brunswick, Weissenfels, sempre voltando a Dresden entre uma mudança de cidade e outra. Sua produção foi quase que exclusivamente sacra; musicou, sobretudo, textos bíblicos, quase todos em alemão, atendendo aos esforços de Lutero para firmar o vernáculo como língua literária e litúrgica (Idem, ibidem, p. 845-6) .
68
havia de mais autêntico a ser cantado pelos cristãos. [...] Para justificar que a música sacra não deveria ser frívola, antes “sóbria e majestosa”, Calvino citava Agostinho, que teria usado a mesma expressão em suas obras. Sua concepção de música a ser usada na igreja diferia da de Lutero. Este último utilizou recursos antigos no âmbito popular para trazer novidades ao canto da igreja protestante. Já Calvino insistiu num estilo completamente diferente. [...] Para o canto dos Salmos, Calvino mais uma vez enfatizou: que brotasse sinceramente do coração, mas que fosse executado com entendimento e ainda que fosse cantado de memória, para que não ocorresse nenhuma distração por parte do que canta. [...] somente os Salmos podiam expressar o que de melhor havia para ser oferecido a Deus. No seu entender a música sacra devia ser simples, porque é expressão de um povo, e modesta, já que é oferecida a Deus (FREDERICO, 2001, p. 148-51).
Os cânticos eram sem acompanhamento instrumental, ainda que Calvino apreciasse a
harpa. Ele seguiu de perto o pensamento de Agostinho (354-430) que dizia sentir na alma os
benefícios do canto nos primórdios da sua conversão. Sentia-se atraído não pela música, mas
pela letra. Todos deveriam cantar, homens e mulheres, com o livro de cânticos na mão [Fig.
1]11. Frederico (2001, p. 151) apud Dunning, informa que Calvino só permitia a utilização da
polifonia em ambientes domésticos, pois entendia que a polifonia perturbava a participação do
povo. Devido a esse radicalismo, em termos de música, poucas novidades ocorreram em sua
comunidade.
Os Salmos Metrificados eram, portanto, as paráfrases dos Salmos bíblicos em versos.
Geralmente eram aplicados à melodias simples. Ainda nos dias de hoje, na maioria dos
hinários encontra-se uma indicação de metro ou número de sílabas de cada estrofe dos hinos.
Mais adiante neste capítulo, traremos novas informações sobre este aspecto, quando falarmos
sobre os hinários usados pelos protestantes que chegaram ao Brasil no Séc. XIX.
“Acha-se o metro de um hino, contando-se o número de sílabas de cada verso, isto é, de cada linha, e o número de versos de cada estrofe. A métrica 8.7.8.7 por exemplo, indica que o hino é formado de estrofes que tenham oito sílabas no primeiro verso, sete no segundo, oito no terceiro e sete no quarto, sendo a estrofe de quatro versos, pois são quatro os algarismos” (FAUSTINI, 1973, p. 91).
Outro reformador protestante, que atuou em Zurique, foi Ulrico Zwínglio (1484-
1531). Ele tornou-se padre no final de 1506, mantendo-se nesta posição por dez anos.
Enquanto padre em Glarus abriu uma escola onde lecionava latim e música. Dos
reformadores, foi o mais preparado musicalmente, sabendo tocar vários instrumentos
musicais. Porém, aboliu a música do culto por entender que a música poderia servir como um
elemento de distração para os fiéis. Sua atitude em relação à música chegou a influenciar
11 As fotos indicadas no texto encontram-se no segundo volume desta Tese, que foi dedicado aos anexos. Especificamente no “Álbum de Fotos”.
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alguns pastores batistas, como foi o caso de John Smith, que, em 1609 fundou a primeira
Igreja Batista na Holanda (FREDERICO, 2001, p. 151-7).
No século XVII a música continuou sendo elemento da cultura religiosa e da cultura
escolar de matriz reformada, sendo que a música neste período estava diretamente ligada à
cultura e à vida social da época.
Época de unificação e de absolutismo monárquico, para a era barroca a músicadevia servir no ápice da hierarquia social, o monarca. Mas também estava a serviço de Deus: chegava mesmo a existir uma música celeste e angélica. Observa-se inclusive, com muita freqüência, um certo paralelismo de estilo e de caráter entre a música de igreja e a música de corte (...) (MASSIN & MASSIN, 1997, p. 315-6)
Tanto o catolicismo quanto o protestantismo recorriam à música para exemplificar a
sua glória e a sua fé, apresentando novas estruturas musicais e estreitando a ligação com a
religião, graças à posição que atribuíram ao texto. Fazia parte dessas novas estruturas
musicais o aparecimento do recitativo; da dissonância; da tonalidade; das formas musicais
como, árias, oratórios, cantatas, motetos, corais, paixões, concertos, sonatas, além disso,
observa-se também a primazia dada aos instrumentos musicais, que passam a dividir o espaço
anteriormente destinado à voz humana.
Frederico (2001) comenta que a música sacra tornou-se objeto de arte, sendo escrita
para uma minoria de aristocratas e de pessoas intelectuais da sociedade, iniciando um
processo de profissionalização.
Massin & Massin (1997, p. 320) também trazem este posicionamento, mas informam
que ao povo era dada a oportunidade de apreciar execuções musicais durante algumas festas
em lugares públicos.
No século XVII, as festas públicas proporcionavam ao povo oportunidades de ouvir música gratuitamente (...). A igreja era outro lugar em que pessoas simples podiam ouvir obras musicais, que não compreendiam bem, mas que eram de valor artístico mais elevado. A boa música de igreja conferia tanto prestígio a uma cidade, que as autoridades municipais atribuíam muita importância ao emprego de músicos de destaque, capazes de produzi-la em alto nível. Depois das cortes e das academias, as igrejas foram o terceiro centro mais importante da vida musical do século XVII.
Veneza pode ser vista como um exemplo de cidade onde os músicos eram bem pagos
e respeitados. A Catedral de São Marcos promovia concurso público para provimento de seu
maestro di cappella, posto que atraía músicos de várias lugares a Veneza desde o início do
séc. XV. Raynor (1981, p.212) descreve a organização musical implantada por Willaert, em
1527, na Catedral de São Marcos:
70
Em São Marcos [Willaert] encarregou-se de uma organização musical que contava entre os seus subordinados o primeiro e segundo organistas da catedral, um conjunto completo de musicistas de corda e sopro e um grande coro, famoso na época por seus padrões musicais. O coro da Catedral de São Marcos, com as galerias ocupadas pelos cônegos da catedral, foi arquitetado para ter uma galeria de cantores de cada lado, e cada uma delas tinha o próprio órgão para ser utilizado na antífona.
Em 1614 quem ocupou o cargo de maestro di cappella foi Monteverdi, um músico de
grande importância que compôs tanto música sacra quanto profana.
Heinrich Schütz foi, ao lado de Monteverdi, Bach e Purcell, outro compositor de
destaque. Schütz era músico alemão, e também músico protestante, luterano desde criança,
totalmente aberto às idéias e técnicas novas. Viveu em uma época em que a composição era
reconhecida como ciência entre as ciências e o estudo das humanidades (gramática, retórica,
poética, história e filosofia) e das disciplinas matemáticas era uma obrigação para um futuro
mestre de capela. “As matérias extramusicais não eram cultura para Schütz, mas parte
integrante de sua formação. Não as esqueceu, serviu-se delas. Característica dessa atitude foi
a recomendação que deu a seu aluno Matthias Weckmann para ‘aprender hebraico, porque era
útil para musicar os textos do Novo Testamento’” (MASSIN & MASSIN, 1997, p. 386).
1.2.1. Comenius e a arte de ensinar tudo a todos
No campo da educação é possível confirmar a presença da música na escola através de
Comenius.12 Na concepção de Comenius a pedagogia deve informar e formar, ensinar e
educar. Ele sofreu a influência de John Huss, que apregoava a necessidade de ser fiel às
Escrituras Sagradas.
Eby (1976, p. 154-78) no capítulo deste livro intitulado “Comenius, profeta de
princípios e métodos modernos”, desenvolve um histórico sobre a vida deste, que foi
considerado o “pai da pedagogia moderna”, e seus pensamentos sobre a educação,
12 Hilsdorf (2006. p. 131) confirma a importância de Comenius, mas sem fazer a ligação com a utilização da música. Apresenta Comenius como um dos integrantes do círculos dos baconianos e discute neste texto as considerações sobre Comenius apresentadas por Manacorda, Mandrou, Yates, Nunes, Rossi e Cauly. Nos informa que “Comenius elaborou um método capaz de recolher e expor, de forma ordenada e classificada, todos os conhecimentos já acumulados pela humanidade, de modo a torná-los disponíveis e compartilhados entre todos os homens, enquanto caminho de salvação eterna” e que “Comenius segue Bacon quando afirma o caráter não-iniciático do conhecimento, a possibilidade de ensinar tudo a todos (...)”.
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confirmando a presença da música nas escolas, não só através do currículo, mas também
através de atividades práticas. “O plano de Comenius de educação pansófica13 compreendia a
arte de ensinar tudo a todos”. Ao estudarmos seus conceitos sobre educação, verificamos que:
Opunha-se à prática rigorosa de forçar crianças pequenas a estudar seis ou oito horas por dia. Para crianças menores especificou quatro horas de trabalho escolar por dia; para maiores, seis. Não seria exigido trabalho de casa, pois provavelmente seria malfeito; esta é uma estranha profecia de uma atitude similar nas escolas americanas de hoje. Uma meia hora de descanso deverá seguir cada aula, e férias deverão ser freqüentes, mas não prolongadas. As horas matinais devem ser dedicadas a trabalho que exija o intelecto e a memória; a tarde, a trabalhos manuais, música e atividades práticas.
Na Didática Magna (1957) encontramos que todos devem ser enviados às escolas,
ricos ou pobres, meninos ou meninas. Comenius afirmava que, perante Deus, não há pessoas
privilegiadas e defendia uma instrução prática, que deveria partir do concreto para o abstrato,
oferecendo aprendizado para a vida.
Comenius prometia uma organização das escolas através da qual:
1. Toda a juventude seja formada. 2. Em todas aquelas coisas que podem tornar o homem sábio, probo e santo. 3. Que essa formação, enquanto preparação para a vida, esteja terminada antes da
idade adulta. 4. Que essa mesma formação se faça sem pancadas, sem violências e sem
qualquer constrangimento, com a máxima delicadeza, com a máxima doçura e como que espontaneamente.
5. Que todos se formem com uma instrução não aparente, mas verdadeira, não superficial, mas sólida.
6. Que essa formação não seja penosa, mas facílima, isto é, não consagrando senão quatro horas por dia aos exercícios públicos e de tal maneira que um só professor seja suficiente para instruir, ao mesmo tempo, centenas de alunos, com um esforço dez vezes menor que aquele que atualmente costuma dispender-se para ensinar cada um dos alunos (p. 163-5)
No capítulo intitulado “Método para ensinar artes”, Comenius afirma que a arte
requer três coisas: 1. O modelo ou imagem, que é uma espécie de forma externa, que o artista
observa e tenta reproduzir. 2. A matéria, que é aquilo a que deve imprimir-se a nova forma. 3.
Os instrumentos, com a ajuda dos quais se executa o trabalho. Entende também ser importante
que se ensine aos alunos onde e como cada uma destas três coisas deve ser utilizada. Os
modelos a imitar devem ser os mais perfeitos possíveis, é preciso ainda ensinar o aluno a
afastar-se dos erros, e se errar, é necessário corrigir. Concordando com Aristóteles, defende
que os estudantes devem aprender a fazer fazendo, deixando clara a sua teoria de
13 Pansophia significa Sabedoria Universal.
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aprendizagem, “portanto, também nas escolas, deve aprender-se a escrever, escrevendo; a
falar, falando; a cantar, cantando e a raciocinar, raciocinando, etc., para que as escolas não
sejam senão oficinas onde se trabalha fervidamente” (p. 320).
Em dois momentos do livro menciona, a título de exemplificação, como sendo
conhecida a experiência de Timóteo. “Célebre músico de tempos passados”, professor de
música, que cobrava o dobro do valor das lições ao aluno que já havia estudado com outros
professores, apresentando a razão de duplicação de trabalho: “um para lhe fazer desaparecer
as coisas que havia aprendido mal; e outro para lhe ensinar a arte verdadeira” (p. 326-7 e
394). Na primeira menção refere-se ao primeiro esforço de imitação que deve ser o mais
aprimorado possível, e na segunda refere-se à preocupação de levar as crianças ao
conhecimento de Jesus Cristo diretamente através da Sagrada Escritura, e não através de
outros livros.
Eby afirma que “o conhecimento inadequado de psicologia freqüentemente levou-a a
exagerar no uso de analogias”, como a que apresentamos a seguir. Ao falar sobre a disciplina
escolar, Comenius faz uma comparação com o músico:
E o músico, se a guitarra, ou a harpa, ou o violino está desafinado, não bate nas cordas com o punho ou com o pau, nem atira contra uma parede, mas procede com arte até que as tenha bem afinadas. É desta maneira que deve chegar-se a criar, nos alunos, um amor harmonioso dos estudos, se se quer evitar que a sua indiferença se transforme em hostilidade, e a sua apatia em estupidez. (p. 403)
Em outro momento, ao falar da organização das escolas e dos instrumentos adequados
ao ensino, faz outra comparação com uma atividade musical:
Com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer sinfonia, olhando para a partitura, a qual talvez ele não fosse capaz de compor, nem de executar de cor só com a voz ou com o órgão, assim também porque é que não há de o professor ensinar na escola todas as coisas, se tudo aquilo que deverá ensinar e, bem assim, os modos como há de ensinar, o tem escrito como que em partitura?
Comenius apresenta um sistema escolar definido, dividido em quatro níveis de seis
anos cada, e como dito anteriormente, verificamos que a música estava presente no currículo
de três destas escolas. Segundo Eby (1976), o currículo composto por Comenius é
enciclopédico e objetivo, mas apesar de seus interesses enciclopédicos e de suas concepções
teológicas, exigia apenas conhecimento útil, como Bacon. Defendia bastante atividade física e
jogos e revelou sua “concepção sumamente original quando encareceu o desenvolvimento do
senso de humor com um meio de educação” (p. 168). Eby acrescenta que Comenius “era um
73
defensor entusiasta de contos de fadas, histórias da carochinha e narrativas, jogos,
construtividade manual, música e até de humor” (p. 161). Hilsdorf (2006, p. 184) ao
apresentar a ênfase no ensino intuitivo baseado nos sentidos, aponta que Comenius “com suas
propostas de quadros murais e de livros ilustrados com figuras (...) levou ao uso de jogos com
cartões de letras e palavras: um deles, de 1773, tem o título sugestivo de ‘Espinhos
transformados em Rosas’”.
Comenius criticou tanto as escolas protestantes, quanto as católicas por não terem
exercitado a habilidade dos estudantes de pensarem com suas próprias mentes. “Ao projetar
sua escola, Comenius tinha claramente em vista os defeitos e omissões evidentes das escolas
de seu tempo” (p. 159), e o seu interesse pelo método surgiu pela própria experiência de vida.
Lembrava-se com tristeza que os ensinamentos eram violentamente introduzidos no intelecto
à base de chicote.
Nos capítulos XXVII a XXXI da Didática Magna (1957, p. 409-54), Comenius
apresenta a organização do sistema escolar e as informações curriculares, de acordo com a
idade e com o aproveitamento. “Embora estas escolas sejam diversas, não queremos, todavia,
que nelas se aprendam coisas diversas, mas as mesmas coisas de maneira diversa” (p. 410).
Destacaremos as questões relacionadas à música.
Escola Materna, ou escola da infância, para a infância - de 0 a 6 anos.
A escola materna deve existir em todas as casas. Comenius entendia que nesta fase as
crianças deveriam adquirir “os primórdios da música, aprendendo alguns dos mais fáceis
salmos e hinos sagrados, o que terá lugar nos exercícios cotidianos de piedade” (p. 418)
Escola Vernácula ou primária, ou escola pública de língua vernácula, para a puerícia -
de 6 a 12 anos.
A escola vernácula deve existir em todas as comunas, vilas e aldeias. Quanto ao
ensino da música observa-se que poderia ser efetivado para aqueles que tivessem interesse, no
entanto, todos deveriam cantar.
Cantar melodias das mais correntes; e aos que tiverem mais aptidões para isso, ensinar também os rudimentos da música. Aprender de cor a maior parte das salmódias e dos hinos sagrados que são usados em vários lugares, para que, alimentados pelos louvores a Deus, saibam (como diz o Apóstolo) ensinar-se e admoestar-se a si mesmos, mediante os salmos, os hinos e os cânticos espirituais, cantando-os em louvor a Deus nos seus corações. (p. 428)
Propunha para esta escola livros didáticos, impressos, adaptados à criança, com títulos
sugestivos e com uma linguagem agradável e lúdica. Deveriam ser apresentados em dois
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gêneros: livros de textos para os alunos e livros-roteiros para os professores. Infelizmente não
tivemos acesso a um livro destes para saber como seriam apresentadas as músicas.
Segundo Eby (1976, p. 162), “até esta época nenhum reformador tivera um sistema de
educação tão compreensivo para todas as crianças”.
Escola Latina ou ginásio, para a adolescência – de 12 a 18 anos.
A escola latina deve existir em todas as cidades. Ao fixar as metas para esta escola,
Comenius propunha: quatro línguas e toda a enciclopédia de artes. Eby argumenta que esta
escola deveria oferecer a formação elementar que seria útil para toda a vida e preparar aqueles
que quisessem ingressar na escola latina ou nas profissões especializadas.
Quanto aos músicos, deveriam ser práticos e teóricos.
Academia ou Universidade e viagens, para a juventude – de 18 a 24 anos
A Academia deve existir em todos os reinos e até nas províncias mais importantes.
Comenius admitia, “Em verdade, nosso método não se estende até à Academia
(Universidade). Mas que mal há em abordar este tema, para dizer quais são nossos votos a seu
respeito?” E complementa”
Desejamos, portanto, que nas Academias: I. Se façam estudos verdadeiramente universais, de tal maneira que nada
exista nas letras e nas ciências que lá se não ministre. II. Se adotem os métodos mais fáceis e mais seguros, para imbuir todos
aqueles que as freqüentam para uma erudição sólida. III. Que os cargos públicos não sejam confiados senão àqueles que nelas se
prepararam com sucesso, e que são dignos e idôneos para que se lhes entregue com segurança o governo das coisas humanas. (p. 447)
Comenius entendia que deveriam ir para a Academia os estudantes que terminassem a
escola latina e que fossem selecionados por um exame público. Entendia também que cada
um deveria aplicar-se ao estudo na área em que fosse mais apto. “Com efeito, assim como,
por instinto natural, um se torna músico, poeta, orador, naturalista, etc., melhor que outro,
assim também um é mais apto que outro para a teologia, para a medicina ou para a
jurisprudência” (p. 448). Para que estes alunos tivessem êxito em seus estudos era necessário
prover-lhes professores eruditos e ardorosos além de Biblioteca seleta para o uso comum.
Se fizermos uma avaliação sobre o pensamento de Comenius com relação à música,
veremos que ele entendia que as crianças deveriam aprender a cantar, cantando, ou seja, era
uma atividade prática, aprendida por imitação. Para que isso acontecesse, os professores
deveriam ser bons modelos e a imitação deveria ser a mais aprimorada possível. Na escola
materna as crianças deveriam aprender alguns dos mais fáceis salmos e hinos sagrados,
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adquirindo assim uma iniciação musical. Já na escola vernácula todos deveriam cantar as
melodias mais usuais. Deveriam também aprender de cor a maior parte das salmódias e dos
hinos sagrados. No entanto, o ensino da música deveria ser oferecido àqueles que tivessem
interesse. Já na escola latina, que deveria oferecer a formação elementar que seria útil para
toda a vida, os que quisessem atuar como músicos, deveriam ser práticos e teóricos, ou seja,
deveriam tocar e cantar não só por memorização, mas também receber formação teórica dos
elementos da música. Para os que estivessem na Universidade, cada um deveria estudar na
área em que fosse mais apto. Haveria os que optariam pela música e estes deveriam receber
orientação de professores eruditos, além de terem acesso a uma biblioteca com livros
selecionados e que fosse comum a todos.
Comenius entendia também que o ensino deveria ser sem violência e sem castigo, que
as crianças deveriam ser levadas ao conhecimento de Jesus Cristo diretamente através da
Bíblia. Defendia o uso de muita atividade física, jogos, música, histórias da carochinha,
contos de fadas, livros ilustrados com figuras, quadros murais e o desenvolvimento do senso
de humor.
Através destes apontamentos pudemos perceber que os adeptos da Reforma
Protestante continuavam priorizando o ensino da música nas escolas. É certo que Comenius
vai influenciar através dos pietistas.
1.2.2. Música no movimento pietista
No final do séc. XVII e na primeira metade do séc. XVIII observa-se “o início da
transição para a era da sociedade e educação atuais. [...] Quatro importantes movimentos
desafiaram os melhores pensadores do tempo e produziram amargas controvérsias. [...] Na
Alemanha, o novo movimento tomou a forma de Pietismo, e na Inglaterra foi o aparecimento
da educação não-conformista” (EBY, 1976, p. 212).
Sobre o Pietismo Hilsdorf (2006, p. 137-8), concordando com Eby, informa:
O pietismo é identificado pelos historiadores como um movimento que surgiu na Alemanha, depois da Guerra dos Trinta Anos, procurando fazer a religião reformada retornar à linha agostiniana de uma vida mais piedosa, austera e interiorizada, alimentada nos “círculos de reavivamento” privados, no lugar do confessionalismo [...]. A base social do pietismo, porem, era a burguesia e, por isso, ele tinha uma face
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operante e visível: a filantropia, pela qual a fé, sob a forma de caridade, agia desenvolvendo uma reforma da sociedade pela obra educativa, inclusive a escolar.
Segundo Eby (1976) e Hilsdorf (2006), os pietistas resgataram as questões apontadas
por Lutero com relação ao estudo da Bíblia, oração e fé, e uniram com a insistência no
puritanismo da conduta defendido pelos calvinistas. O movimento estava em concordância
com o ponto de vista inicial de Lutero, no entanto apresentou uma tendência mais pacífica
cooperando com a Igreja da Inglaterra, a Igreja Reformada, e as seitas perseguidas da
Alemanha. A característica principal do Pietismo era o aspecto religioso do movimento
realista, exigindo a separação do individuo do mundo, e o afastamento dos prazeres da vida,
opunham-se à dança, brinquedos infantis, idas ao teatro, excessos o vestir, gracejos, e à leitura
de romances e até de jornais.
Segundo Eby (1976, p. 214-21), August H. Francke converteu-se ao Pietismo e pouco
tempo depois se juntou a Philip Jakob Spener, desenvolvendo as atividades com uma única
mentalidade e espírito. Spener foi considerado o pai do movimento Pietista e fundou em
Frankfurt o “Collegium Pietatis” em 1670. Francke, depois de expulso da Universidade de
Leipzig conseguiu uma colocação na Universidade de Halle, graças à indicação de Spener.
Conservou em Halle os textos de Comenius e fundou diversas escolas nessa cidade. Nessas
escolas a música religiosa estava presente no currículo e eram praticados procedimentos
intuitivos, mediante o uso de herbários para as aulas de ciências, e instrumental adequado para
as demais disciplinas, como laboratórios de Física e Química e um museu de História Natural.
Havia também aulas de “lições de coisas”, seguindo o roteiro de Comenius.
Eby (1976, p. 222) informa que Francke influenciou diretamente a educação na
Geórgia e Pensilvânia, através de seus seguidores que foram para a América. “Durante a
primeira parte do século XVIII, numerosas seitas emigraram para o Novo Mundo com o
objetivo de garantir a liberdade religiosa. Pequenas colônias de salzburguenses e morávios se
estabeleceram na Geórgia”.
Segundo Frederico (2001, p. 180-1), o objetivo da música sacra ainda se voltava a
propagar os princípios bíblicos, porém agora influenciada pelo movimento pietista. Os hinos
coletados nos hinários da época foram “modernizados” e muitos dos hinos tradicionais foram
suprimidos, sem preocupação com os valores históricos.
Paul Gerhardt (1607-1676), compositor alemão cujos hinos foram mais tarde
traduzidos para o inglês por John Wesley, foi o grande representante da hinódia do
movimento pietista:
77
O movimento pietista inspirou uma hinódia marcada pelo subjetivismo, com melodias adaptadas para o compasso ternário, que servia para as danças, em contraste com o estilo coral anterior. Na luta entre ortodoxos e pietistas, Johann S. Bach posicionou-se a favor dos primeiros, embora se saiba que sua obra religiosa não pôde fugir de uma forte influência pietista, apresentando, principalmente no texto de suas cantatas, um misticismo introspectivo. (...) Sob influência do pietismo surgiram inúmeras coletâneas de hinos destinados ao canto individual, contendo árias com letras sentimentais, mas pouco aceitas para o canto congregacional, dadas as suas feições com passagens para solos virtuosísticos e tessituras que abrangiam grande extensão de voz (FREDERICO, 2001, p. 181-2).
Frederico ainda informa que Nikolaus Ludwig, conde de Zinzendorf, foi o fundador da
Comunidade de Irmãos em terras prussianas, sendo também responsável pela produção de
dois mil hinos. Ficou conhecido pelo nome de Zinzendorf e inaugurou o que denominou de
“horas de canto”. Ele achava que essas horas seriam uma maneira de expressar a fé pietista,
tornando-se uma medida da condição espiritual da congregação. Entendia que as canções
seriam a melhor maneira de manter a verdade de Deus no coração.
Eby (1976, 223) complementa as informações trazidas por Frederico dizendo que, no
entanto, a obra de Zinzendorf mais importante foi a fundação de colônias e escolas morávias
na Pensilvânia. “Tinham escola maternal para crianças pequenas, internatos para meninos e
meninas e colégios secundários para adolescentes”. As crianças recebiam educação
vocacional e o ensino da religião era acrescentado às matérias regulares. Muitas destas
instituições tornaram-se famosas e todas elas mostram a influência recebida de Francke, que
ainda teve outros seguidores, tal como Henrique Melquior Muhlenberg, responsável pela
organização de um sistema de escolas entre os luteranos da Pensilvânia, mas essas eram
escolas paroquiais. Muhlenberg ficou encarregado pelas igrejas luteranas próximas de
Filadélfia. “Quando chegou, em 1742, havia aproximadamente 50.000 alemães na
Pensilvânia. Por volta de 1742, o número tinha aumentado para 90.000 e havia grande
necessidade religiosa e cultural entre eles”.
Hilsdorf (2006, p. 139-40) também traz a informação que muitos professores e
supervisores das escolas de Francke, em Halle, acompanharam emigrantes da Alemanha e da
Europa central para as colônias da América do Norte, estabelecendo-se na região da Geórgia e
da Pensilvânia. Hilsdorf vai além ao informar que muitos deles eram luteranos, porém de
orientação pietista.
Raynor (1981, p. 241) nos ajuda a compreender que:
As dificuldades práticas de manter coros e orquestras em igrejas, conseqüência a longo prazo da Guerra dos 30 Anos, eram acompanhadas do aumento do pietismo, um novo movimento reformista. O luteranismo era majestoso, formal e impessoal. O
78
seu culto seguia antigas tradições e dava pouco ensejo à devoção pessoal. Como o surgimento do metodismo na Inglaterra, o advento do pietismo na Alemanha era a exigência de uma religião menos formal e intensamente pessoal.
1.2.3. Música no séc. XVIII: mudanças sócio-culturais
No século XVIII, observa-se mudança profunda para a vida musical, a partir das
modificações que acontecem na vida econômica e social, “a grosso modo, a música passa de
uma posição de ornamento secundário na vida da elite social e de instrumento de culto
religioso, da festa e do cerimonial, ao estatuto de importante item da vida cultural”. (MASSIN
& MASSIN, 1997, p. 415)
Houve um afastamento da igreja pela classe média alta, devido a influência dos
concertos públicos. Observa-se também que a música secular recebeu grande incentivo.
Paralela à vida musical da corte, houve o desenvolvimento aos poucos da burguesia. “O
piano, esse símbolo da prosperidade burguesa, faria sua entrada um pouco mais tarde nas
casas da burguesia, e o estudo de piano, principalmente pelas moças, ficou sendo um
‘imperativo social’, um signo de boa educação” (MASSIN & MASSIN, 1997, p. 413).
Bach foi um músico que se dedicou totalmente à Igreja Luterana, atuando como
organista e diretor musical em várias cidades alemãs. Ele explicava que para executar a
música religiosa de maneira correta, era preciso de cantores e instrumentistas. “Em 1729
houve nove vagas para o coro de estudantes na escola, e Bach examinou 23 candidatos”
(Raynor, 1981, p. 251).
Eby informa que por esse tempo, tanto na Inglaterra quanto na América, irrompeu a
revivecência do entusiasmo religioso e em 1730 surgiu o metodismo na Inglaterra14.
Segundo Frederico (2001, p. 184), na segunda metade do século XVIII, o iluminismo
passa a influenciar na teologia e na música sacra. A classe média alta, na Alemanha começou
a se afastar da igreja, devido a influência dos concertos públicos.
Na perspectiva iluminista, só deveria permanecer como música verdadeiramente sacra aquela que pudesse servir à “edificação”, significando que essa música deveria
14 Para a compreensão do metodismo na Inglaterra e da constituição da Igreja Metodista nos Estados Unidos ver o Livro Richard P. Heitzenrater. Wesley e o povo chamado metodista. São Bernardo do Campo, EDITEO; Rio de Janeiro, Pastoral Bennett, 1996.
79
suscitar reverência em todos os congregados para o culto. [...] Toda música sacra moderna do período deveria conter esse espírito ditado pelo iluminismo, ou seja, possuir um estilo popular e melodioso, como o encontrado nas óperas.
Segundo George Feder apud Frederico (2001, p. 186-7), houve muita discussão sobre
estas questões: uns entendiam que deveriam ater-se à tradição e outros entendiam que
deveriam partir para algo mais atual no canto congregacional. “Era comum o aproveitamento
de uma mesma melodia para inúmeros textos, processo denominado de contrafactum, já
utilizado largamente no século XIII pelos trovadores, mais tarde nos corais protestantes de
Lutero e por Calvino nos seus salmos”. Embora a utilização de uma melodia conhecida
pudesse ajudar para que o hino fosse aprendido rapidamente, por outro lado, “limitava o
conhecimento de novas expressões musicais por parte da congregação”.
Como resultado destas inquietações, os fiéis passaram a utilizar também os hinos
evangélicos, que davam ênfase às doutrinas cristãs. Um tema muito utilizado foi a esperança
de dias melhores e o encontro dos crentes no céu. Os líderes metodistas Isaac Watts, John e
Charles Wesley se destacaram como pioneiros da hinódia inglesa, influenciando no futuro a
hinódia americana, bem como a hinódia dos países alcançados por suas missões
evangelizadoras. “Enquanto a Watts atribui-se a paternidade dos hinos litúrgicos em língua
inglesa, aos Wesley atribui-se a paternidade dos hinos para devoção particular e para as
campanhas de evangelização de massas” (FREDERICO, 2001, p. 199).
Os hinos dos irmãos Wesley estavam repletos de verdades bíblicas, pois visavam
educar o povo, nas doutrinas cristãs, com cuidado especial pelas crianças. John Wesley
recebeu forte influencia dos hinos morávios e no verão de 1738 ele viajou para a Alemanha
com o propósito de encontrar-se com Zinzerdorf, sendo uma das preocupações dos morávios
o aspecto da comunhão entre irmãos.
A fim de implantar os ensinamentos metodistas nas mentes e memórias do povo, os Wesley haviam, durante anos, incorporado o cântico de hinos em seus serviços religiosos e haviam publicado dúzias de hinários e panfletos. (...) Cantar proporcionava aos crentes uma oportunidade para darem testemunho e compartilharem suas experiências espirituais. (...) John Wesley estava se tornando cada vez mais preocupado com o trabalho metodista junto às crianças e frequentemente exorta os pregadores a passarem mais tempo com elas. (...) Esta preocupação com as crianças era uma das diversas matérias incorporadas em uma série de questões feitas aos pregadores antes de serem plenamente admitidos na conexão (Heitzenrater, 1996, p. 231-2).
Hustad (1981, p. 101), músico norte-americano, professor, compositor e editor, como
parte de sua pesquisa sobre a música eclesiástica evangélica, assim nos informa sobre o
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cântico de hinos nessas igrejas independentes, na passagem da Inglaterra para os Estados
Unidos:
Os primeiros americanos só cantavam salmos metrificados. Pode-se conjecturar que a insistência de Calvino no uso exclusivo de salmos (que influenciou todos os protestantes de fala inglesa) foi uma tentativa de voltar a uma adoração “bíblica”, livrando-se das adições pós-bíblicas da igreja medieval. O requisito de um salmo era que ele correspondesse rigorosamente ao conteúdo e à ordem da passagem bíblica original (...) No meio do século XVIII, o evangelista metodista inglês George Whitefield popularizou os hinos do ministro congregacional Isaac Watts, “Pai da Hinologia Inglesa”, em suas reuniões nas colônias americanas. (...) No fim do século XVIII e começo do XIX, os hinos de Charles começaram a aparecer (...) Nesse ínterim, outros grupo étnicos (notavelmente alemães) chegaram aos Estados Unidos, trazendo com eles as suas tradições de hinologia morávia, luterana e reformada. (...) Grande parte desse grupos foi influenciada pela tradição reavivamentista do século XIX (...) (Hustad, 1981, p. 224-5).
Outras informações trazidas por Hustad nos ajudam a compreender o momento
histórico, como é o caso do movimento pietista e suas influências na hinódia, a criação das
escolas para a reforma do canto nas igrejas protestantes norte-americanas, que surgem pouco
depois de 1710, e até mesmo sobre as colaborações trazidas pelo autor e editor de muitos
hinos, chamado Lowell Mason (1792-1872), que “foi o responsável pela introdução do canto
como disciplina regular nas escolas públicas de Boston” (FREDERICO, 2001, p. 218-9).
Segundo o Dicionário Grove de Música (1994, p. 581) Lowell Mason foi um
Educador de música, compositor e regente norte-americano. Foi o principal pioneiro na
introdução da instrução musical nas escolas norte-americanas e um importante reformador da
música eclesiástica. Em Savannah, 1812-27, depois em Boston até 1851, teve grande sucesso
como maestro de coro em igreja, tendo também dirigido a Handel and Haydn Society de
Boston, 1827-32. Através de suas aulas de canto para crianças, seus livros de melodias de
hinos e livros de instrução musical (baseados em modelos europeus), e especialmente através
do treinamento de professores disponível em sua Academy of Music (1833), conseguiu dar à
música um lugar constante nas escolas de Boston. Continuou a ensinar até 1851. Nos últimos
anos produziu novos livros, coletâneas de música eclesiástica e composições, principalmente
obras vocais sacras.
Frederico (2001, p. 218-9) estabelece uma ligação de Mason com a influência das
doutrinas de Pestalozzi nos Estados Unidos:
81
Baseado nas teorias pedagógicas de Pestalozzi15, Lowel compreendeu que o progresso musical só viria se os esforços fossem concentrados no treinamento das crianças. Até que conseguisse que o canto fosse adotado nas escolas como matéria de ensino regular, Lowell trabalhou com metas de curto prazo, como a edição da The Juvenile Lyre e com o ensino gratuito de aulas de música na igreja da rua Bowdoin até que fundou uma academia de música. Em 1838, foi nomeado superintendente do ensino musical nas escolas públicas.
Hilsdorf (2006, p. 198-9) aponta que Eby é o autor da história da educação que melhor
tem a percepção que Pestalozzi apresenta uma educação elementar com marcas próprias e que
entende a instrução a partir de três pontos de partida: a forma, o número e as palavras. “A
música, especialmente o canto, era considerada uma forma de linguagem” (EBY apud
HILSDORF, 2006, p. 199) e assim incorporado no currículo das escolas elementares.
Não poderíamos deixar de destacar a maneira como Hilsdorf (2006) conclui seu livro
“O aparecimento da escola moderna: uma história ilustrada”, apresentando como última
gravura “A lição de canto”16:
A influência de Pestalozzi ajuda a entender por que a Alemanha foi, então, como diz Léon, “berço da escola primária”. Pela via da história da arte porém, é também possível conhecer a aceitação desse modelo escolar pestalozziano: nossa última gravura traz, de maneira encantadora, as suas marcas – presentes, se não na realidade, ao menos no imaginário da época -, ao encenar a classe única de uma pequena escola empenhada coletiva e prazerosamente em uma aula de música escrita, sob a condução atenta e paternal do professor e... o controle do relógio de pêndulo!”(p. 200)
Eby (1976, p. 246-7) esclarece ainda que no século XVII aconteceram várias
mudanças importantes que apontavam para importantes progressos na educação. “A aceitação
do princípio de tolerância religiosa na maioria dos países da Europa Setentrional deu novas
oportunidades de desenvolvimento aos elementos mais progressistas nas várias entidades
religiosas, especialmente as seitas evangélicas”. Surgem novos movimentos religiosos, dos
quais destacamos o pietismo na Alemanha, a Unitas Fratrum, na Morávia e os puritanos na
Inglaterra. Estes grupos se preocupavam com os pobres e ofereceram o ensino para eles como
um ato de caridade.
15 Neste momento do texto a autora apresenta a seguinte nota de rodapé: Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) foi um pedagogo suíço voltado para a educação primária das crianças. Fundou uma instituição que funcionou como centro disseminador de suas idéias revolucionárias sobre o ensino. O currículo que defendeu dava ênfase à geografia, matemática, às artes manuais, ao canto, às atividades de grupo e ao contato com a natureza. (Enciclopédia Mirador Internacional, v. 16, p. 8847) 16 Litogravura de Barry, de um quadro de C. Schloesser, c. 1850 (p. 221)
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1.3. Música na pedagogia norte-americana
Os colonizadores puritanos, segundo Eby, é quelevaram para a América seus variados
ideais e políticas educacionais. Dentre os que seguiram os ideais e as práticas calvinistas estão
os puritanos na Nova Inglaterra, os holandeses em Nova York, os presbiterianos e os
huguenotes dispersos em vários Estados. Foram estabelecidas colônias suecas, luteranas,
menonitas entre outras, e cada uma destas colônias tomou suas providências para a educação.
Observa-se então que, sob influência da Reforma Protestante, os Estados Unidos
passaram por uma revolução educacional e desenvolveram um sistema pedagógico
importante. No séc. XVIII implantaram escolas que atendiam a todas as faixas etárias, desde
crianças até adultos.
Souza (2005) examina a renovação pedagógica norte-americana que serviu de
referência para outros países, tomando como fontes de pesquisa os primeiros programas de
ensino e os manuais de lições de coisas em circulação na época. “A partir da segunda metade
do século XIX, selecionar conteúdos e especificar a sua seqüência e como ensinar em cada
série passou a constituir-se em uma prática racional de controle do ensino e da aprendizagem
nas escolas norte-americanas” (p. 10).
Informa também que era fundamental a prescrição do método de ensino, vinculados à
maneira como a criança aprende. Esta prescrição do método de ensino era vista pelos
profissionais da educação da época como fundamento da renovação pedagógica. Os líderes da
reforma educacional americana buscaram na Europa o modelo a ser seguido. Dentre os
principais líderes apontados pela historiografia da educação norte-americana encontram-se
Horace Mann, Henry Barnard e John Philbrick.
Dos primeiros esforços de elaboração dos programas para o ensino primário na década de 1860, aliados às tentativas de adoção do método intuitivo, até os debates sobre currículo na virada do século XIX para o século XX, a criança e o currículo foram reinventados na sociedade norte-americana tornando-se objetos de conhecimento e de intervenção política (p. 10).
Ainda segundo Souza (2005, p. 21), o método intuitivo foi denominado, nos Estados
Unidos, object teaching, sendo que na Inglaterra os princípios pedagógicos de Pestalozzi
foram difundios pelo termo object lesson e na França a expressão leçon de choses foi
popularizada por Mme Pape-Carpentier. Muitos foram os manuais de lições de coisas
produzidos os Estados Unidos, com o objetivo de contribuir para uma mudança no sistema de
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instrução primária. Para o professor isto significava um “enorme esforço de redefinição de
suas concepções de educação e de suas práticas de ensino” (p. 31).
Neste movimento de inovações pedagógicas, que foi marcado pelo grande entusiasmo
pela difusão do saber, Eby (1976, p. 340-56) destaca que todos os países civilizados revisaram
seus programas educacionais, sendo este um dos fenômenos proeminentes da História. Nos
Estados Unidos a multiplicação de colégios deu-se também em virtude de um amplo
renascimento religioso, conhecido com o “Grande Despertar”. Este movimento consistia em
um aumento do número de adeptos das várias denominações protestantes e a preocupação
com a formação de ministros que atendessem a esta demanda. Eby traz uma lista de
importantes instituições de ensino fundadas nesta época, fruto do avivamento: entre eles
estavam o Colégio de Nova Jersey (mais tarde Princeton, fundado pelos presbiterianos em
1746), o King’s College (atualmente Universidade de Columbia, fundado pelos episcopais,
em 1754), o Brown, (pelos batistas em Rhode Island, em 1764), o Rutgers, em Nova Jersey,
(pela Igreja Reformada Holandesa, em 1766) e o Dartmouth, em Nova Hampshire, (pelos
congregacionais, em 1769). Observa-se que algumas delas permanecem até hoje como
instituições de ensino nos Estados Unidos, como é o caso das Universidades de Princeton e
Columbia.
Segundo Tyack (2001), nos Estados Unidos havia um pensamento que conforme as
escolas fossem melhorando, por intermédio delas, a nação também melhoraria. Horace Mann
era um dos reformadores que, em meados do século XIX, representava uma corrente que,
entre outras questões, defendia o ensino público e obrigatório e a difusão da escola para todas
as crianças. Os líderes da reforma educacional se baseavam em uma ideologia republicano-
protestante, entendendo que uma educação adequada poderia fazer com que os Estados
Unidos fossem, literalmente, o país de Deus.
Nascimento17 (2007) concorda com Hilsdorf (2006) e apresenta que a cultura norte-
americana foi o resultado de homens e mulheres que buscaram, entre outros fatores, a
liberdade religiosa nos Estados Unidos. Estes imigrantes europeus vieram de países que
sofreram modificações políticas, religiosas e econômicas. Os imigrantes puritanos que vinham
da Inglaterra, Irlanda e Escócia eram calvinistas. Eles viam-se como povo escolhido de Deus
17 Esther Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento é uma pesquisadora da história da educação. Em sua Dissertação de Mestrado intitulada “A Escola Americana: origens da educação protestante em Sergipe (1886-1913), defendida em outubro de 2000, na Universidade Federal de Sergipe, estudou a trajetória da Escola Americana de Sergipe no período do seu funcionamento, entre 1886 e 1913. Em sua Tese de Doutorado, defendida em 2005, na Pontífice Universidade Católica de São Paulo, estudou o Instituto Ponte Nova, que foi uma instituição presbiteriana de ensino na Bahia, que se dedicou a formar professores e evangelistas, a partir de 1906.
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e sentiam-se com liberdade para construir no Mundo Novo, um Estado Puritano, tanto no
sentido espiritual como no intelectual, uma vez que já tinham lutado pela liberdade religiosa
em seus países de origem. Com isso os norte-americanos se colocavam como uma categoria
especial, construindo uma imagem que tinham sido escolhidos por Deus para herdar,
aperfeiçoar e consumar as esperanças da humanidade.
Os Estados Unidos anteviram a possibilidade de construir uma civilização cristã, modelo que pudesse se expandir além de suas fronteiras formadas, de um lado na desinstitucionalização eclesiástica e, de outro, na ordenação da vida segundo o tripé religião-moralidade-educação cumprindo sua missão civilizadora. A ideologia do Destino Manifesto se originava na Teologia do Pacto, onde a promessa outorgada pelos judeus através de Abraão se transferia agora para os americanos num messianismo nacional direcionado para a redenção política, moral e religiosa do mundo (NASCIMENTO, 2007, p. 54).
1.4. Chegada dos norte-americanos ao Brasil
Ainda concordando com Hilsdorf, Nascimento afirma que as missões protestantes
norte-americanas vieram para o Brasil, a partir de meados do século XIX, e os missionários
batistas, presbiterianos, metodistas, episcopais e outras vertentes reformadas, fundaram igrejas
e colégios, “subvencionados e subordinados por suas matrizes norte-americanas”. Informa
também que:
Diferentemente da corrente histórica que interpreta a presença de norte-americanos no Brasil como uma tentativa de invasão, Bastian defende que a proliferação de sociedades protestantes na América Latina, “em uma época de graves confrontos com o Estado liberal e a Igreja católica, não proveio de uma invasão ou de uma conspiração de origem exógena”. Aquelas instituições “surgiram de um movimento social, da febre associativa que animava as minorias liberais radicais e do anticatolicismo militante destas últimas” no país. Os liberais que encontravam-se no poder “solicitaram sua presença, dentro de uma corrente tática que buscava o enfraquecimento da Igreja católica. Em ambos os casos, as próprias demandas dos setores liberais radicais explicaram a explosão protestante e propagação de suas sociedades
A realidade brasileira na área educacional, quando da chegada dos norte-americanos,
era precária e preocupante. Vê-se o interesse dos missionários no estabelecimento de escolas
junto às suas comunidades, com o objetivo de contribuir para a formação cultural do povo
brasileiro com princípios morais e éticos.
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Nascimento (2007, p. 42) cita Hilsdorf (1977) ao afirmar que estes missionários
protestantes norte-americanos receberam apoio das vanguardas políticas e culturais da
Província e garantiram a maior parte da clientela escolar a estas primeiras escolas americanas
de confissão protestante. Com isso abre-se caminho para a renovação das mentalidades e das
práticas não só nos quadros pedagógicos, mas também, e por extensão, na sociedade
brasileira.
1.5. Primeiros hinários utilizados no Brasil
Com relação ao aspecto da utilização da música na igreja protestante brasileira,
Henriqueta Rosa Fernandes Braga (s.d. [196?]), a conhecida historiadora da música sacra, em
seus livros “Música Sacra Evangélica no Brasil” e “Do Coral e sua projeção na História da
Música” traz uma visão panorâmica do seu desenvolvimento. Segundo Braga, houve na época
da Reforma um enriquecimento do patrimônio hinológico. Textos e melodias tiveram diversas
procedências: salmódia, hinódia alemã, hinódia inglesa, hinódia do reavivamento, etc. Os
primeiros hinos evangélicos cantados em português foram traduzidos pelo casal de
missionários Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley. “Foi o casal Kalley, nas mãos de
Deus, o instrumento com que se plantou um dos grandes marcos evangélicos no Brasil: a sua
hinologia” (Música Sacra Evangélica no Brasil, p. 107). O casal também foi responsável pela
primeira edição do hinário Salmos e Hinos, publicado no Rio de Janeiro em 1861, trazendo
apenas as letras dos hinos. A publicação continha 50 cânticos, sendo 18 Salmos e 32 Hinos.
Cardoso (2005), em seu livro Sarah Kalley: missionária pioneira na evangelização do
Brasil, originalmente parte de sua tese de doutoramento em Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo, busca reconstruir esta memória, resgatando o perfil de
Sarah e sua atuação na sociedade. “O nome de Sarah, esposa do médico-missionário escocês
Robert Reid Kalley, é conhecido em quase todos os segmentos do protestantismo do Brasil
devido ao hinário que lançou em 1861, o Salmos e Hinos” (p. 17).
O valor de “Salmos e Hinos” é inegável; e o seu passado histórico e atuante através dos anos, nas mãos de Deus, é irretorquível. Só a eternidade poderá revelar a multidão de pessoas convertidas por seu intermédio, porque os hinos são pregações. “Salmos e Hinos” ... foi o primeiro hinário evangélico brasileiro no vernáculo, tendo
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servido a todas as denominações, indistintamente, até que organizassem seus próprios hinários. (Braga apud Cardoso, 2005, p. 17)
Sarah é apresentada como descendente de huguenotes – protestantes franceses –
vertente protestante que se organizou no mesmo período da Reforma em Genebra. Pertenciam
às camadas sociais mais privilegiadas – comerciantes, industriais, banqueiros, clérigos e
nobres. “Sarah, portanto, descendia de refugiados franceses perseguidos pelo catolicismo e
pelo rei da França, que, em 1685, fugindo do decreto real, atravessaram o Canal da Mancha e
buscaram asilo na protestante Inglaterra” (p. 31). Tanto do lado materno quanto do lado
paterno, Sarah descendia de “famílias inglesas não-conformistas que possuíam forte
vinculação com o movimento puritano inglês”, e eram industriais têxteis. “Como resultados
dos sucessos nos negócios, os Morley e os Wilson passaram a possuir enorme riqueza” e
praticavam a filantropia como princípio de vida (p. 69). Entendiam que por prosperarem nos
negócios deveriam demonstrar gratidão a Deus realizando obras de caridade.
Sarah teve uma excelente formação musical. Cardoso (2005, p. 88-9) informa que os
tios de Sarah eram músicos e tocavam vários instrumentos musicais. O entusiasmo da família
pela música era notório e “na ‘Casa das Águias’, residência londrina dos Morley, era
cultivada uma intensa tradição musical que mobilizava toda família”. Passavam horas
ensaiando, revezavam-se em diversas formações de grupos entre si e também participavam
dos cultos dominicais da Igreja Congregacional. “As músicas eram descontraídas e eles
costumavam encerrar seus ensaios com o cântico ‘Home, Sweet Home’ e o hino nacional.
Como visto anteriormente, os huguenotes eram um grupo com alta musicalidade e
Cardoso (2005) relembra que “outra característica presente no movimento huguenote foi o
ministério de colportagem, distribuição de Bíblias e tratados religiosos” (p. 38-39). No início
das atividades do casal no Brasil, o sistema de colportagem foi montado e “o controle das
vendas e dos estoques da colportagem era efetuado por Kalley” (p. 197). Em 1864 “Sarah
assumiu definitivamente o ministério de colportagem” (p. 199).
Muitas outras questões poderiam ser abordadas sobre o trabalho realizado por Sarah e
Robert Kalley enquanto missionários no Brasil. No momento destacamos que eles não eram
do grupo de norte-americanos, pertenciam à denominação Congregacional e contribuíram
para que o protestantismo fosse uma realidade em terras brasileiras. Ao retornarem
definitivamente à Escócia, depois de vinte e um anos (1885-1876) de atividades no Brasil,
ainda continuaram contribuindo para o trabalho missionário, seja despertando novos
missionários para virem ao Brasil ou preparando, de lá mesmo, novas edições do Hinário
Salmos e Hinos.
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O casal Kalley foi, na Divina Providência, o verdadeiro baluarte da hinologia evangélica brasileira. Para isto, achavam-se os dois magnificamente preparados: eram, antes de tudo, cristãos consagrados; além disso, possuíam fina educação aliada a sólida cultura e a notáveis dons artísticos. Ambos escreveram hinos originais e traduziram inspirados cânticos (dos cento e oitenta e dois números que hoje se encontram em Salmos e Hinos com a inicial K, cento e sessenta e nove foram produzidos por D. Sara e, treze, pelo Dr. Kalley. (BRAGA, Música Sacra Evangélica no Brasil, p. 125)
Neste mesmo livro, Braga informa que “a produção de hinos evangélicos para o setor
da educação primária também fez parte das cogitações de D. Sarah” (p. 113). Para as escolas
que foram inauguradas, Sarah Kalley preparou hinos adequados à abertura e encerramento das
aulas, “hinos que ao mesmo tempo recreavam e eram veículos de preciosos ensinamentos” (p.
114).
Localizamos uma edição do hinário Salmos e Hinos, contendo apenas as letras dos
hinos, datada de 1916, tendo sido publicado em Lisboa, pela Livraria Evangélica. Tratava-se
de uma nova edição aumentada com 82 hinos novos, perfazendo um total de 608 hinos. No
prefácio deste hinário os editores reafirmaram a importância dos hinos para os fiéis:
Os hinos são uma riqueza para o culto cristão, para a família e para o indivíduo. Quantas vezes não é o hino o portador da mensagem da vida eterna ou o instrumento de que Deus se serve para inspirar ou consolar uma alma em qualquer transe da vida! O nosso desejo é que esta coleção continue a ser ricamente abençoada como mensageira das boas novas do Evangelho de Jesus Cristo e instrumento para o culto de louvor a Deus, que todos lhe devemos.
Verificamos que no Brasil, no início do trabalho missionário as melodias foram
aprendidas e fixadas por repetição e memorização, bastando para isso, que os hinários
trouxessem as letras dos hinos.
No Anexo E transcrevemos as informações históricas que são encontradas na quinta
edição de Salmos e Hinos, de 1975, já com o título de Hinário Salmos e Hinos com Músicas
Sacras, por serem esclarecedoras quanto ao histórico dessa obra.
Henriqueta Rosa Fernandes Braga, em seu livro Música Sacra Evangélica no Brasil
nos informa que tanto os Presbiterianos quanto os Metodistas utilizaram-se dos Salmos e
Hinos no início das atividades no Brasil.
Desde o início do trabalho presbiteriano no Brasil, em reuniões missionárias, igrejas ou escolas, nunca se dispensou, conforme assinalado, a contribuição da música sacra, tendo sido adotada a coleção Salmos e Hinos até que se tornou possível aos missionários organizar um hinário próprio (p. 153).
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Como todas as igrejas evangélicas, também a Metodista nunca dispensou o canto congregacional. O hinário usado desde o começo foi Salmos e Hinos (p. 169).
Destacamos também o hinário intitulado Cantor Cristão, que foi compilado pelo
pastor batista Salomão Ginsburg18 e publicado em Salvador em 1891. Apenas em 1924 a Casa
Publicadora Batista lançou a primeira edição do Cantor Cristão com Músicas Sacras, com
quinhentos e setenta e oito hinos. A 36ª. edição revista e documentada, de 1971, traz
quinhentos e oitenta e um hinos. No prefácio encontram-se notas históricas assinadas por Bill
H. Ichter, informando que este é o segundo hinário dos evangélicos brasileiros, sendo o
primeiro o Salmos e Hinos. O texto completo encontra-se no Anexo E.
Em nossa pesquisa pudemos constatar que em São Paulo, no início do trabalho de
evangelização pelos protestantes, tanto nas igrejas, quanto nos colégios, os hinos sempre
foram cantados. Também verificamos que os hinários Salmos e Hinos e Cantor Cristão
continuam sendo utilizados até os dias de hoje nas igrejas evangélicas no Brasil.
Muitas destas músicas, contidas nos hinários, foram cantadas nas escolas americanas
de confissão protestante, como veremos a seguir. No próximo capítulo estudaremos como a
música estava inserida na escola americana de confissão protestante, no período entre 1870 e
1920, em São Paulo e no terceiro capítulo analisaremos as músicas utilizadas nas escolas.
Buscaremos também compreender se outras influências da Reforma Protestante se
fizeram presentes no ensino apresentado nas escolas americanas de confissão protestante em
São Paulo.
18 Salomão L. Ginsburg (1867-1927) era judeu russo convertido ao Evangelho. Chegou ao Brasil em 10 de junho de 1890. Já conhecia o português, pois estivera antes em Portugal. Um ano após sua chegada ao Brasil, reuniu dezesseis hinos e publicou a primeira edição do Cantor Cristão. No mesmo ano lançou a segunda edição com 23 hinos. Ao falecer, em 31 de março de 1927, o hinário já se encontrava em sua décima oitava edição, contendo quinhentos e setenta e oito hinos. Segundo Braga, Ginsburg foi o Kalley batista, no domínio da Hinologia. Vários de seus hinos encontram-se também nos Salmos e Hinos.